Retóricas do poder: biologização e culturalismo das identidades

June 3, 2017 | Autor: Berenice Bento | Categoria: Feminist Theory, Race and Racism
Share Embed


Descrição do Produto

14/05/2016

Revista Cult BERENICE BENTO: Retóricas do poder – biologização e culturalismo das identidades

Retóricas do poder: biologização e culturalismo das identidades  

  No  ano  passado,  a  ativista  estadunidense  Ashley  Yates  esteve  no  Brasil  para  participar  de alguns  eventos.  Ela  é  uma  das  organizadoras  do  movimento  #BlackLivesMatter  (Vidas  Negras Importam),  articulado  a  partir  do  assassinato  do  adolescente  negro  Michel  Brown,  em Fergunson, na periferia de Saint Louis (Missouri), por policiais brancos. O corpo do adolescente ficou  jogado  na  rua  por  mais  de  quatro  horas,  depois  de  ele  ter  sido  assassinado.  A  ativista relatou  que,  no  primeiro  momento  do  assassinato,  a  imprensa  nem  citava  seu  nome.  A  mídia dizia apenas: “é um homem”. Ele tinha 17 anos. Depois disso, durante os protestos, a repressão policial, mais uma vez, foi violenta. Com uma sensibilidade apurada, Ashley desvenda um dos mecanismos mais sutis da retórica do poder ao afirmar, em uma de suas entrevistas aqui no Brasil: “Se um negro erra, culpam a todos os  outros;  quando  é  um  branco,  é  caso  isolado”.  Esta  análise  também  serve  para  a  realidade brasileira.  É  como  se  o  erro  de  uma  pessoa  negra,  ou  mesmo,  o  seu  assassinato,  não surpreendesse,  porque  erro  e  morte  por  assassinato  já  estariam  previstos  no  destino  de  uma espécie  nascida  para  o  fracasso.  Daí  o  pouco  ou  nenhum  luto  social  diante  dos  sucessivos anúncios dos assassinatos pela polícia da nossa juventude negra. Esvaziar  o  outro  de  singularidade,  de  biografia  e  jogá­lo  dentro  de  uma  narrativa  ahistórica, naturalizando  comportamentos  e  subjetividades,  tem  sido  uma  poderosa  estratégica  discursiva que  tem  efeitos  letais.  Por  esta  lógica,  é  como  se  a  pessoa  negra  já  nascesse  morta.  O abortamento  social  é  transfigurado  em  natureza.  Entender  (ou  desvendar)  a  estrutura  dos discursos  do  poder,  conforme  nos  apontou  Ashley  Yates,  talvez  seja  o  passo  mais  importante para aqueles/aquelas que se dedicam à transformação social. Além  da  retórica  da  naturalização  dos  comportamentos,  há  outro  dispositivo  discursivo  que passou  a  ser  utilizado  largamente  nas  últimas  décadas:  a  visão  culturalista,  que  se  caracteriza pelo  apagamento  da  história  de  uma  determinada  cultura.  Geralmente,  quando  se  fala  de “cultura”,  imaginam­se  práticas  sociais  imersas  em  largos  e  longos  períodos  históricos.  Sabe­se que  os  sujeitos  têm  uma  história;  que  as  relações  sociais  não  são  resultado  do  imperativo http://revistacult.uol.com.br/home/2016/03/retoricas­do­poder­biologizacao­e­culturalismo­das­identidades/

1/2

14/05/2016

Revista Cult BERENICE BENTO: Retóricas do poder – biologização e culturalismo das identidades

biológico, mas a historicidade se perde num quase “desde sempre”. Então, por exemplo, quando escutamos  comentários  que  dizem  que  os  árabes  não  se  entendem  e  que  sempre  foi  assim, estamos diante da visão culturalista. Para se referir à especificidade desta estratégia em relação aos povos árabes, Edwar Said inventou o conceito de “orientalismo”. Com  a  visão  culturalista  (ou  determinismo  cultural),  nos  deparamos  com  uma  certa “sofisticação”  do  argumento  em  relação  ao  determinismo  biológico.  Esta  narrativa  tem  sido acionada  pelos  neocolonizadores  (a  exemplo  do  Estado  sionista  de  Israel)  para  justificar  a invasão,  pilhagem,  tortura,  morte  e  roubo  (apropriação)  das  riquezas  de  outras  nações,  a exemplo  do  que  acontece  hoje  em  relação  à  Palestina.  Estrutura­se,  metonimicamente,  o argumento.  Pinça­se  uma  pequena  parte  dos  comportamentos  dos  sujeitos  pertencentes  a determinada cultura e passa­se a ler o todo a partir deste fragmento. A feminista palestina Nadera Shalhoub­Kevorkian (no livro Militarization and violence against women  in  conflict  zones  in  the  Middle  East:  a  Palestinian  case­study),  aponta  que  o esvaziamento  do  outro,  mediante  a  negação  da  diferença,  torna­se  ainda  mais  agudo  quando estamos  discutindo,  especificamente,  violência  contra  as  mulheres  nos  territórios  ocupados  da Palestina,  pois  há  uma  tendência  a  culturalizar  a  violência  como  uma  forma  de  descartá­la. Desta  forma,  a  violência  contra  as  mulheres  na  Palestina  é  sempre  uma  questão  de  cultura, enquanto que os atos de violência no Ocidente são analisados fora da ideologia e abertos à ação legal,  à  ação  da  psicologia,  e,  principalmente,  às  narrativas  individualizantes.  Assim,  se  um homem  estupra  uma  mulher,  ele  poderá  ser  considerado  louco  e/ou  criminoso  e  será  punido individualmente.  Ou  seja,  o  problema,  aqui,  não  está  na  cultura,  mas  nos  desvios  individuais. No  entanto,  a  violência  contra  a  mulher  palestina  é  endêmica  devido  à  sua  herança  cultural. Ora, o desdobramento deste raciocínio é inevitável: precisamos salvar as mulheres desta cultura bárbara,  para  lembrar  Lila  Abu­Lughod,  outra  feminista  palestina,  no  seu  artigo  As  mulheres muçulmanas  precisam  realmente  de  salvação?  Reflexões  antropológicas  sobre  o  relativismo cultural e os Outros. A análise cultural, desvinculada das questões históricas e políticas, pode levar à essencialização das  identidades  nacionais  (sejam  elas  de  gênero,  sexualidade,  religiosa  e  racial).  Nenhuma cultura é um todo homogêneo. A concepção culturalista nos faz esquecer as fissuras, disputas e as  desumanizações  que  existem  no  âmbito  das  culturas  nacionais.  Talvez  seja  a  disputa  mais dura  que  o  feminismo  palestino  enfrenta,  a  meu  ver,  a  luta  contra  esta  visão  de  corpos  sem agências, dominados e oprimidos. Pensar as diferenças culturais é, antes de tudo, pensar contra a noção de cultura. Daí,  portanto,  ser  importante  diferenciar  as  duas  estratégias  discursivas  do  poder.  No  caso  da biologizante das identidades, não há esperança para mudanças. No segundo, a transformação só  acontecerá  mediante  uma  força  civilizatória  externa.  Ou  seja,  será  o  feminismo  ocidental  (e colonizador)  que  levará  liberdade  para  as  pobres  mulheres  oprimidas  do  Oriente.  Será  o Ocidente,  com  seus  valores  calcados  no  individualismo,  que  retirará  as  pessoas  de  suas  hordas bárbaras.  E,  por  fim,  será  a  promessa  de  progresso,  via  reconhecimento  dos  méritos  pelo mercado, que fará a vida prosperar.

http://revistacult.uol.com.br/home/2016/03/retoricas­do­poder­biologizacao­e­culturalismo­das­identidades/

2/2

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.