REVISITANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS: NOTAS SOBRE ONTEM E HOJE

September 9, 2017 | Autor: Igor De Sousa | Categoria: Quilombos, Antropología Política, História dos Movimentos Sociais, Teoria Dos Movimentos Sociais
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Igor Thiago Silva de Sousa

REVISITANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS: NOTAS SOBRE ONTEM E HOJE

Florianópolis 2014

IGOR THIAGO SILVA DE SOUSA

REVISITANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS: NOTAS SOBRE ONTEM E HOJE

Ensaio apresentado à disciplina Movimentos sociais, territórios e identidades para composição de avaliação. Prof. Dr. Thiago Juliano Sayão

Florianópolis 2014

REVISITANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS: NOTAS SOBRE ONTEM E HOJE1

Em cenários carregados de disputas, com vozes destoantes quanto a projetos políticos, sociais e econômicos, mostra-se necessário entender as formas de ação política coletiva que emergem e ganham destaque pelas possibilidades que criam em termos de demandas e a organização de atores sociais. Vivemos períodos democráticos de baixa intensidade (SOUSA, 2006), com amplo aparelhamento por parte dos partidos a sindicatos, fóruns de debate e demais organizações da sociedade civil e temos como reflexo, um esvaziamento da participação política pela via institucional, com doses de descrédito e ceticismo entre os mais jovens, ocorrendo a busca de circuitos de poder críticos e desatrelados do poder estatal e financeiro, fugindo de um lado de políticas de austeridade fiscal e financeiras que marcaram os anos de 1990, pelo profundo desprezo com conquistas sociais e por outro, de formas de participação que transformam os atores sociais em correias de transmissão de instituições governamentais que acabam por transformá-los em agentes sem grandes poderes de intervenção. Essas ações são muitas, ocorrendo de várias formas e com lutas que envolvem um leque significativo de demandas, recursos simbólicos, materiais e políticos. São lutas por melhores condições de trabalho, garantias trabalhistas, acesso a formas de proteção em períodos de austeridade, respeito e liberdade de orientação sexual, garantias territoriais e culturais, lutas contra desigualdades estruturais relativas ao racismo e sexismo, concentração fundiária e lutas por serviços públicos de qualidade. Assim, tem-se trabalhadores, desempregados, gays, indígenas, imigrantes, mulheres, negros, camponeses, estudantes, entre outros. Essas ações em muitos casos se entrecruzam, mas também se afastam, divergindo quanto aos métodos e objetivos a serem almejados a curto e médio prazo. As análises referentes aos movimentos sociais são vastas, percorrendo disciplinas como a sociologia, antropologia, ciência política, história, geografia e pedagogia e cada uma dessas áreas enfocando aspectos específicos quanto a análise desse tipo de ação social segundo seus ramos teóricos e especificidades. No Brasil, 1

Este ensaio foi parcialmente escrito após sugestões recebidas pelo docente na disciplina “métodos e técnicas II, na UFSC, no segundo semestre letivo de 2014, ministrada pela Profª Drª Miriam Pillar Grossi.

essas análises tornaram-se importantes a partir do período de distensão da ditadura civilmilitar, percorrendo formas de luta por novas garantias constitucionais, formas de participação na democracia que se inaugurava, entre outras. Já em outros países, como França e Estados Unidos, tem-se uma longa tradição referente a análise dos movimentos sociais, com escolas divergentes quanto a forma de perceber e os recortes teóricos empregados na análise dos mesmos (GOHN, 2012). Porém, como traço compartilhado tem-se que essas formas de ação podem ser caracterizadas, por apesar de possuírem variações nas expressões, atores e emergência, por apresentam características indissociáveis quanto a organização, o que permite a definição enquanto mobilizações de caráter ímpar (TOURAINE, 2008). Assim, na definição de Alain Touraine, para entender a ação dos movimentos sociais e suas disputas é necessário a discussão de três conceitos chave que são: identidade, oposição e totalidade. Para esse autor francês, consagrado na análise dos movimentos sociais, com um trabalho vasto e experiências de análise sobre as mobilizações estudantis de maio de 1968 na França e a organização de trabalhadores na Polônia, a partir do movimento sindical autônomo Solidarność (Solidariedade) nos anos de 1980, bem como análises sobre a América Latina, tem-se uma definição que se tornou clássica, por conseguir perceber a identidade aferida pelos próprios sujeitos, ou seja, pelas formas como se reconhecem e se autoidentificam, percebendo por trás disso um uso político mobilizável; por levar em consideração as disputas com antagonistas por recursos considerados importantes, sejam eles de ordem simbólica, material ou política, em que o próprio conflito é que vai delineando o surgimento de polos em oposição; a luta por um plano político maior, pelo direcionamento de certas ações em dado bloco histórico e não apenas a lutas pontuais, mas por certos direcionamentos a partir de entendimentos políticos e ideológicos dos atores postos em movimento. Portanto, tem-se uma grade conceitual que conseguiria capturar certa unidade da ação social a partir dos conceitos expostos. Todavia, a análise encaminhada por Touraine relega a uma condição menor determinados aspectos, como certa ordem solidária que envolve a aglutinação de atores políticos, a criação de redes de compartilhamento de informação, conhecimentos, pautas em comum, ou seja, a criação de redes de movimentos sociais em toda a sua complexidade. Assim, é a partir das análises de Ilse Scherer-Warren, que se busca

preencher essas lacunas, bem como compreender certas conexões entre atores individuais e coletivos: Movimentos sociais são redes sociais complexas, que transcendem organizações empiricamente delimitadas e que conectam de forma simbólica, solidarística e estratégica, sujeitos individuais e coletivos que se organizam em torno de identidades ou identificações comuns, da definição de um campo de conflito e seus principais adversários políticos ou sistêmicos e de um projeto ou utopia de transformação social (SCHERER-WARREN, 2012, p. 24).

Esse enquadramento teórico é rico ao possibilitar o entendimento de uma forma de ação em múltiplos eixos: de um lado, transcendem-se organizações empiricamente determinadas, ou seja, lugares específicos como sedes, clubes e grêmios avançando-se no sentido de apreender certa unidade de ação de forma comparativa, o que permite heuristicamente vislumbrarem-se características gerais de uma forma de ação coletiva para além de lugares determinados. Por outro, há a possibilidade de perceber os eixos de articulação simbólica e solidarística entre sujeitos e coletivos que se organizam e se unem em torno de identificações e pautas comuns. Outro ganho importante refere-se ao aspecto estratégico e conflitual que envolve o surgimento de um movimento social, ou seja, a disputa de certos recursos considerados indispensáveis com outros agentes políticos (MELLUCI, 2001) e o reconhecimento de adversários em campo partilhado. Dessa forma, permite-se uma análise que supera o lugar social dos sujeitos como pressuposto de sua mobilização, levando-se em consideração recursos valorizados e não apenas esquemas de estratificação social como definidores de ação. Portanto, disputam-se materialidades e valores entre antagonistas postos em conflito e é essa dimensão da disputa que faz com que se reconheçam enquanto adversários em um campo de disputas comum. Os atores de um conflito se enfrentam, no interior de um campo comum, para o controle dos mesmos recursos. Para que exista um conflito é preciso poder definir os atores a partir de um sistema comum de referência e é necessário que exista uma aposta em jogo na qual ambos os adversários se referem implícita ou explicitamente (MELUCCI, 2001. P. 34-35).

Nesse sentido, é o próprio conflito que faz com que se definam os antagonistas, não sendo essa uma etapa a priori na organização dos movimentos sociais (TOURAINE, 2008), mas ocorrendo na medida em que os mesmos vão tomando forma. Como mais um avanço, tem-se a dimensão dos projetos dos movimentos sociais, ou seja, sua visão de mundo e sua capacidade de influir em decisões. Assim, “sempre existe um paradigma ideológico, construído fora do movimento, a alimentar a sua atuação” (GOHN, 2012, p. 260).

Todavia, em leituras mais contemporâneas, focadas na implementação e demandas por políticas públicas, tem-se certas críticas à visão restritiva dos movimentos sociais, buscando um olhar mais alargado e que o entrecruze com outros agentes sociais, principalmente frente ao aparelho estatal. Dessa forma, a partir do trabalho de ABERS e VON BÜLOW (2011) é importante questionar em que termos se diferem membros de movimentos sociais de outros agentes e se existem vínculos entre membros desses movimentos com membros do corpo estatal, iniciativa privada e ONGs (Organizações Não Governamentais). Para as autoras, em uma releitura da produção de políticas públicas no Brasil (saúde, proteção ambiental, proteção da mulher), mostra-se como a ação dos movimentos sociais fez-se na reivindicação e gestão dessas políticas e não relegada a condição de meros demandantes, mas atuando a partir de relações dentro do próprio aparelho estatal, ocupando posições em partidos, indicando quadros para ocupação de cargos, estabelecendo relações com o ministério público e outras agências. O desafio metodológico, é claro, é mapear e analisar as redes que conectam atores de movimentos sociais com atores estatais, de tal forma que possamos verificar se indivíduos que ocupam cargos no Estado podem ser incluídos como “membros” de um movimento (ABERS; VON BÜLOW, 2011, p. 78).

Assim, se tem uma leitura estendida de movimentos sociais, os percebendo em suas tramas de relação, havendo um ganho teórico ao fugir de uma visão dicotômica de sociedade e Estado, percebendo as intersecções entre polos supostamente opostos, fugindo de uma leitura assentada nos planos insider-outsider, autonomia-cooptação que supõem uma separação rígida entre movimentos sociais e a política institucionalizada. Essas teorias explicavam a inserção de atores coletivos em instituições políticas a partir da ideia de institucionalização dos movimentos sociais, em que se tem o enfoque associado à desmobilização, burocratização, profissionalização e descolamento da base social (TARROW, 1998; McCARTHY, ZALD, 1973). Outro importante apontamento contemporâneo, refere-se a relação entre movimentos sociais e cultura. Em uma leitura mais difundida, haveria uma tipologia de movimentos sociais assentada principalmente em suas formas de expressão e pertencimentos de classe. De um lado, teriam movimentos sociais classistas (urbanos, de bairro, camponeses) ou os velhos movimentos sociais, assentados em reivindicações dos trabalhadores e com certa racionalidade quanto a fins; de outro, surgiriam novas formas de fazer política e sociabilidade, mais atrelados a reivindicações de atores políticos não vinculados propriamente a dimensões de classe em que o que estaria em voga seria certa dimensão identitária (étnicos, de gênero, orientação sexual, questões

raciais, neonacionalismos) ou os novos movimentos sociais. Assim, haveria um movimento social específico pelo uso político de recursos culturais, que outros movimentos sociais não teriam a capacidade de realizar. Todavia, a partir de leituras mais antropológicas constata-se que todos os movimentos são vinculados à cultura, influindo na construção, debate e produção de significados; influem na cultura política a partir de suas políticas culturais (HALL, 2003). A cultura política é o domínio em que os processos sociais são configurados, transmitidos, vistos e sentidos, como se dá a organização social de práticas envolvendo instituições, domínios públicos e diferentes grupos sociais, subculturas em uma complexa rede de relações. Portanto, por mais que hajam diferenças e especificidades de sujeitos e coletividades, existem campos partilhados, configurações políticas e econômicas que superam localismos e nesse sentido que se fala de culturas políticas hegemônicas, pois são modeladoras de forma significativa de práticas em termos macrossociais. Assim, tem-se uma abstração importante no sentido de tentar compreender modelos de organização social e práticas políticas. Cultura política é o domínio de práticas e instituições, retiradas da totalidade da realidade social, que historicamente vem a ser consideradas como propriamente políticas (da mesma maneira que outros domínios são vistos como propriamente “econômicos”, “culturais” e “sociais”) (ALVARÉZ, DAGNINO, ESCOBAR, 2000, p. 25-26).

Os movimentos sociais tem dimensões não apenas políticas e organizativas, mas carregam consigo formas de perceber, moldar e serem moldados pelo mundo, de atribuir sentidos, influir politicamente, formar e se distinguir de outros atores políticos, ou seja, de diferenciarem-se e serem reconhecidos simbolicamente como diferentes. Nesse sentido, existem relações entre política e cultura não como campos disjuntivos, mas interligados em processos mobilizatórios, onde se disputam a relevância de significados e práticas. Nossa interpretação de política cultural é ativa e relacional. Interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjunto de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito com os outros (ALVARÉZ, DAGNINO, ESCOBAR, 2000, p. 24).

Os movimentos sociais são formas de (des)estabilizar a cultura política hegemônica, trazem a tona formas de participação, contestação e afirmação de valores e práticas sociais, mantendo relação com campos institucionalizados e realizando negociações e enfrentamentos com outros atores políticos. A relação com a cultura é implícita ou explicita, pois é o pressuposto de orientação das condutas e práticas postas

em movimento. Dessa forma, mais do que um levantamento sobre os tipos de movimentos sociais, cabe perceber como se comunicam, criam rupturas e continuidades nesse processo de intervenção e disputas de sentido. Portanto, a análise dos movimentos sociais tem se enriquecido com a discussão a partir de leituras entrecruzadas, revisitando conceitos e encaminhando-se com o relacionamento de disciplinas, tendo em vista o entendimento a partir de fenômenos antes pouco conceitualizados ou vistos de forma marginalizada, como é o caso da análise da cultura e política nos movimentos sociais. Assim, vê-se a capacidade de rever criticamente leituras clássicas, seja frente a especificidade de cada movimento social e suas formas de mobilização política, seja frente a acontecimentos que revelam novas dimensões dos sujeitos coletivos a partir de certas dimensões históricas, percebendo os movimentos em seu leque polissêmico, com formas de mobilizar recursos de formas distintas, com olhares próprios sobre a realidade, seja em seus processos constitutivos na construção e influência na cultura política.

REFERÊNCIAS

ABERS, Rebecca; VON BÜLOW, Marisa. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Revista Sociologias, Rio Grande do Sul, n. 28, v. 13, p. 52-84, 2011. ALVARÉZ, S. E., DAGNINO, E., ESCOBAR, A.(Org.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2012. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. McCARTHY, J.; ZALD, M. The trends of social movements in America: professionalization and resource mobilization. Morristown: General Learning Press, 1973. MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez Editora, 2006. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes emancipatórias: nas lutas contra a exclusão e por direitos humanos. Curitiba: Appris, 2012. TARROW, Sidney. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis: Vozes, 2009. TOURAINE, Alain. Os Movimentos sociais. In: FORACCHI, Mariliace M., MARTINS, José de Sousa. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

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