Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Languages and Linguistics, Lingüística, Letras
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Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009

QUANDO DANTE ENCONTRA FLASH GORDON: FORMAS DE PRESENÇA DO OUTRO NO ROMANCE A MISTERIOSA CHAMA DA RAINHA LOANA, DE UMBERTO ECO Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva* Resumo O objetivo deste artigo é identificar algumas formas de presença do gênero histórias em quadrinhos (HQ) na edição brasileira de 2005 do romance ilustrado A Misteriosa Chama da Rainha Loana, do escritor italiano Umberto Eco, e refletir sobre os sentidos criados por essa interdiscursividade. Consideramos a obra de Eco um enunciado em que imagem e palavra contribuem igualmente para a criação do sentido. A partir de contribuições teóricometodológicas da perspectiva dialógica do discurso, extraídas da obra de Bakhtin e seu Círculo, como os conceitos de discurso citado, forma arquitetônica e composicional e plurilinguismo, mostraremos como as diferentes formas de citação do gênero HQ contribuem para a construção do conceito de memória semântica em diálogo com o conceito de memória afetiva /individual, um dos temas centrais abordados por Eco nesse romance ilustrado. Palavras-chave: Discurso citado. Gênero HQ. Romance ilustrado. Forma arquitetônica. Plurilinguismo.

Abstract The aim of this article is to identify some forms of the presence of the comic book genre in the Brazilian edition (2005) of the illustrated novel The Mysterious Flame of Queen Loana, by Italian author Umberto Eco, and reflect on the meanings created through this interdiscursivity. We consider that images and verbal aspects contribute equally to the construction of the meaning. Building on a dialogical prospective, extracted from Bakhtin‟s Circle theoretical-methodological approach to discourse, which includes the concepts of reported speech, architectonic and compositional form and plurilingualism, we will show how the different forms of quotation in the comic book genre contribute to the construction of the concept of semantic memory in dialogue with the concept of individual/affective memory, one of the central themes in Eco‟s illustrated novel. Key words: Reported speech. Comic book genre. Illustrated novel. Architectonic form. Plurilingualism.

Neste artigo, objetivamos identificar, descrever e atribuir sentidos a algumas formas de presença do outro no romance ilustrado A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de Umberto Eco. Para tanto, embasamo-nos teoricamente nos conceitos de forma arquitetônica, formas composicionais e plurilinguismo no romance, elaborados por Bakhtin no ensaio O problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária, escrito entre 1923 e 1924, e no estudo O Discurso no Romance, escrito entre 1934 e 1935. Tais escritos foram reunidos no livro Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. Também 

Mestre em Língua e Literatura Italianas pela FFLCH-USP - [email protected] 13

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traremos noções presentes em outras obras do Círculo de Bakhtin, como gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003) e discurso citado ou discurso de outrem e signo ideológico (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004). O foco de nossa discussão será a presença do gênero Histórias em Quadrinhos (doravante, HQ). Hipotetizamos que tal gênero está presente discursivamente nesse romance por citações verbais e visuais e pela forma arquitetônica interdiscursiva. Além disso, sustentamos que essas formas de presença contribuem para a criação do sentido de memória semântica e memória afetiva e da própria constituição arquitetônica desse romance ilustrado. A tradução brasileira da obra de Eco, de 2005, deu origem a inúmeros artigos e resenhas. Cristóvão Tezza, na resenha Em busca do Mickey perdido, publicada no caderno Mais! Da Folha de S. Paulo de 03/07/2005, define A Misteriosa Chama da Rainha Loana como um “agradável cruzamento de literatura propriamente dita com imagens irresistíveis da cultura de massa que percorreram os corações e mentes da infância e juventude do autor”. Para Tezza, no entanto, “as reproduções coloridas que pontuam o livro” não são constituintes de sua estrutura, o que as caracterizaria como meras ilustrações. Com nossas análises, pelo viés da presença do gênero HQ, colocamo-nos em posição antagônica à do romancista Tezza: defendemos que o romance ilustrado proposto por Eco é um enunciado constitutivamente verbo-visual, em que a presença das reproduções, coloridas ou não, não se subordina nem se sobrepõe ao texto verbal, caracterizando a obra como um todo verbo-visual. Apesar disso, para efeitos de análise, indicamos inicialmente algumas das citações sobre as quais refletiremos como verbais ou visuais. Esclarecemos que tal recorte tem caráter analítico e que em nossa interpretação sempre consideramos o diálogo entre os elementos verbais e visuais como constitutivo do enunciado. Em nosso percurso, abordaremos, inicialmente, a noção de forma arquitetônica. Em seguida, traremos uma sumária apresentação do romance A Misteriosa Chama da Rainha Loana que nos permita esclarecer as ocorrências da interdiscursividade com o gênero HQ. Destacaremos alguns momentos da obra: inicialmente, a composição verbo-visual da capa, em diálogo com o discurso verbo-visual da página 251, e a citação visual de uma tirinha de Walt Disney, na página 75 do livro, momento em que explicitaremos a concepção de plurilinguismo. Apresentaremos, ainda, considerações sobre a forma composicional híbrida presente entre as páginas 420 e 443, que reúne elementos do romance e elementos do gênero HQ. Nesse percurso recorreremos a outros elementos que, de alguma maneira, corroboram nossas hipóteses sobre as formas de presença do HQ nessa obra de Eco. Assim, teceremos considerações sobre alguns subtítulos da primeira parte do romance e sobre a forte presença do discurso de Dante Alighieri em A misteriosa chama da Rainha Loana, permitindo-nos uma divagação sobre o sentido da escada como signo ideológico (cf. BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004,p.31-8) no universo dantesco. Para Bakhtin (1993), há duas direções a partir das quais a forma pode ser compreendida e estudada. A primeira acontece a partir do interior do objeto estético puro e desvela a forma arquitetônica voltada para o conteúdo; a segunda direção parte do todo composicional da obra e promove um estudo técnico. Para o autor, interessa a primeira direção, ou seja, o estudo de como a forma, realizada num material, torna-se forma arquitetônica e se relaciona com o conteúdo. Ressaltamos que para esse estudo não se nega a presença de uma forma composicional, mas sua mera identificação, dissociada do conteúdo, do material, do autor, em nada contribui para o entendimento dos sentidos criados pela obra. 14

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A forma arquitetônica, expressão da atividade artística, tem como momento constitutivo um autor-criador, diferentemente da forma cognitiva. Afirma Bakhtin: Eu devo experimentar a forma como minha relação axiológica ativa com o conteúdo, para prová-la esteticamente: é na forma e pela forma que eu canto, narro, represento, por meio da forma eu expresso meu amor, minha certeza, minha adesão. (1993, p. 58) Embora a forma acolha o conteúdo, este pode revoltar-se e abafá-la quando há uma recepção da obra de arte num nível elementar. Para que isso não aconteça, “é preciso ingressar como criador no que se vê, ouve e pronuncia, e desta forma, superar o caráter determinado, material e extra-estético da forma, seu caráter de coisa [...]” (1993, p.59). Na recepção de uma obra, o indivíduo que percebe estabelece sua própria relação axiológica com o conteúdo, tornando-se ativo na forma e conferindo um acabamento à realização estética. O Romance Ilustrado A Misteriosa Chama da Rainha Loana é um convite para que o leitor ingresse como criador no acabamento do texto. De fato, o mistério criado pelas inúmeras citações cujas fontes não são reveladas gerou fóruns de discussão e sites na internet, como o , em que se procura criar uma enciclopédia esclarecedora das fontes do autor italiano. Não pretendemos discutir a validade da iniciativa. No entanto, ela é, para nós, reveladora do efeito que Eco causa ao criar um romance em que a memória semântica de uma geração é derramada “sem legendas” por mais de 400 páginas, levando alguns de seus interlocutores a uma imensurável pesquisa em busca do conteúdo e do preenchimento das lacunas de sua própria memória semântica. A Misteriosa Chama da Rainha Loana tem como protagonista Yambo, bibliófilo de quase sessenta anos, proprietário de uma livraria especializada em obas raras, que, em 1991, sofre um acidente vascular cerebral e tem sua memória afetada de maneira particular: apenas sua porção individual, ou afetiva, é apagada. A memória coletiva ou semântica continua intacta, como explica uma das personagens do livro ao protagonista: “é como se aprendesse tudo aquilo que se aprende por ter lido em algum lugar ou ouvido dizer, mas não o que está associado às suas experiências diretas.” (ECO, 2004, p.19). O protagonista lembra-se de tudo o que leu ou soube pelos relatos de outros, mas ignora o conhecimento obtido por experiências vividas diretamente. Esquece o próprio nome, ignora suas preferências e gostos pessoais e não reconhece seus familiares. Por outro lado, sabe de cor a biografia de grandes figuras da História e trechos da literatura universal e reconhece ícones da cultura de massa, como as personagens das histórias em quadrinhos e as canções populares da música italiana. A obra está dividida em três partes. A primeira tem início quando Yambo recupera a consciência depois de ter sofrido o acidente vascular cerebral. Desenvolve-se, então, a ideia da memória semântica e afetiva pelo estranhamento do personagem ao vivenciar situações cotidianas, como tomar um chá ou escovar os dentes. Essa ideia tem como contraponto a naturalidade da personagem ao citar seu conhecimento enciclopédico, popular e erudito, de cor. A cultura do protagonista confunde-se com a de Eco e é, portanto, vastíssima. A segunda parte da obra narra a viagem de Yambo a uma propriedade de campo da família, em Solara, e traz um desfile de ícones do seu passado, como livros, selos, canções, objetos como um velho rádio Telefunken, revistinhas em quadrinhos etc. Essa parte termina com um novo derrame de Yambo que, nos últimos capítulos do livro, permanece numa espécie de coma delirante, em

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que nos descreve sua ebulição mental na qual as memórias semântica e afetiva voltam a coatuar de maneira desordenada, parecendo sobrepor-se. O discurso do protagonista, dessa maneira, é uma colcha de retalhos de discursos de outrem, que não lhe dizem respeito afetivamente. A composição do romance, portanto, apoiase fortemente na noção de palavra alheia, de discurso citado, de plurilinguismo. No ensaio O discurso no romance, Bakhtin explica que as forças que impelem a uma homogeneização de uma “língua comum”, as assim chamadas forças centrípetas, atuam numa arena em que consistem diversas “línguas sócio-ideológicas: sócio-grupais, „profissionais‟, de gêneros, de gerações etc.” (BAKHTIN, 1993, p.82). No romance, o plurilinguismo organizase a partir de várias formas, como a parodização do discurso citado ou a introdução de gêneros intercalados. Para o autor, esta última é “uma das formas mais importantes e substanciais da introdução e organização do plurilinguismo no romance”: O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos etc.) como extraliterários (de costume, retóricos, científicos, religiosos e outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance [...]. Os gêneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e sua originalidade linguística e estilística. Porém, existe um grupo especial de gêneros que exercem um papel estrutural muito importante nos romances, às vezes chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco [...] (BAKHTIN, 1993, p.124) Em A misteriosa chama da rainha Loana, percebemos o plurilinguismo nos discursos sócio-ideológicos trazidos a partir de citações verbo-visuais e também pelos gêneros intercalados, que, de fato, são constituintes da estruturação do romance. O protagonista representa a geração de Eco, e, no resgate de sua memória afetiva, surgem elementos discursivos que constituem a cultura dessa geração, que viveu os anos fascistas da Itália, aprendendo as glórias do Duce no encarte infantil Corrieiri dei Piccoli, como nos narra Yambo ao deparar-se com um exemplar antigo do jornal Corriere della Sera: [...] Com absoluta indiferença, o Corrierino falava de glórias fascistas e de universos fantásticos povoados de personagens fabulosos e grotescos. Oferecia novelas ou quadrinhos sérios de absoluta ortodoxia lictória e páginas de quadrinhos que eram, ao que se saiba, de origem americana. Única concessão à tradição, foram eliminados os balões ou aceitos apenas como decoração: todas as histórias do Corrierino tinham apenas longas legendas nos contos sérios e quadrinhos para as histórias cômicas. (ECO, 2005, p.228) A presença de personagens e elementos pictóricos de histórias em quadrinhos norteamericanas, nesse contexto, contribui para a constituição dos valores que circulavam na juventude de Yambo/Eco, que lia no jornal as aventuras de soldados fascistas, mas tinha como um de seus ídolos Flash Gordon, combatente que atuava contra o tirano Ming, senhor do reino de Mongo. É do universo de Flash Gordon, desenhado então por Alex Raymond, que vem figura da escada, central em nossas reflexões, presente na composição em relevo da capa e na 16

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sequência verbo-visual da terceira parte do livro, que mencionaremos adiante. Todas essas composições foram elaboradas pelo próprio Umberto Eco, sobre os desenhos de Raymond. Passemos à descrição das formas de presença do gênero HQ no texto de Eco. Como a forma de presença do outro é nosso tema, ressaltamos que, ao fazermos citações verbais do romance, usaremos itálico apenas quando o texto assim se configurar no original. Para destacar termos e expressões citadas, recorreremos às aspas. Indicaremos em nota de rodapé se houver aspas no original. Em linhas gerais, identificamos três formas de presença do gênero HQ no romance de Eco: as citações verbais, as citações visuais e a contaminação da forma do romance pela forma das HQs. Procuraremos, a seguir, trazer exemplos de cada uma dessas formas de presença, fundamentando-as, como já mencionamos, em aportes da teoria que emerge da obra de Bakhtin e seu Círculo, sem a pretensão de esgotar tal fundamentação. Inicialmente, temos, na capa da edição brasileira (RECORD, 2005) o título A Misteriosa Chama da Rainha Loana e a ilustração da personagem-título, com as extremidades enevoadas:

Há diferentes soluções composicionais nas capas das edições italianas, mas em todas prevalece um discurso visual que dialoga com revistas em quadrinhos. Um elemento de destaque nessa forma composicional é a figura em relevo da escadaria1, sobre a qual discorreremos mais adiante. Verbalmente, temos o primeiro nome do autor, em letras maiúsculas, seguido pelo seu sobrenome, também em maiúsculas, mas escrito numa fonte maior. A palavra “eco”, assim, ganha destaque, o que pode remeter-nos à presença de diversas vozes, ou ecos de outros

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Como a composição em relevo tem cor próxima ao fundo da capa, na reprodução digital não se percebe a escada tão nitidamente como ao manusear-se o livro. 17

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discursos2. Lemos também que se trata de um romance ilustrado. Quanto ao título, que é uma citação, como o leitor pode descobrir na página 251 do livro, vemos que não há marcas tipográficas indicando que o sintagma nominal “A misteriosa chama da rainha Loana” não seja um discurso do autor do livro (cf. BAKHTIN, 1993). Se houvesse aspas em cada citação, todos os títulos e subtítulos das três partes da obra estariam marcados e teríamos, nas palavras de Bakhtin, um romance salpicado de aspas, expressão que o pensador russo emprega ao referir-se ao romance de Dickens: [...] em suma, todo o seu texto poderia ser salpicado de aspas, destacando as ilhotas do discurso direto e limpo do autor, que se encontra espalhado, ilhotas banhadas por todos os lados pelas ondas do plurilinguismo. Mas seria impossível fazer isso, pois, como vimos, frequentemente um mesmo discurso penetra ao mesmo tempo no discurso de outrem e no do autor. (BAKHTIN, 1993, p.113) Assim, essa introdução do discurso alheio sem marcações gramaticais ou composicionais, característica do que Bakhtin chama de forma dissimulada de introdução do discurso de outrem (cf. 1993, p.113), evidencia-se não só no título do livro, que remete ao gênero HQ, mas em todos os títulos e subtítulos das três partes da obra. Em alguns, há uma indicação a posteriori da referência da citação, como acontece com o próprio título “A misteriosa chama da rainha Loana”, cuja origem é revelada ao herói no capítulo em que ele está em Solara, buscando recuperar sua memória pelo contato com objetos que dizem respeito a seu passado: Entre os muitos números de Cino e Franco caiu em minhas mãos uma coisa que fez com que me sentisse no limiar de uma revelação finalmente decisiva. A revista, de capa multicolorida, intitulava-se A misteriosa chama da rainha Loana. Lá estava a explicação para as misteriosas chamas que me agitavam desde o despertar, e a viagem a Solara finalmente ganhava um sentido. (ECO, 2005, p.251) Na mesma página 251, temos a ilustração da revistinha de Cino e Franco, em que está representada a personagem Loana. Essa citação visual dialoga com a capa do romance:

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Em italiano, o substantivo feminino eco tem o mesmo significado que o substantivo masculino “eco” em português. 18

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Retomando nossa análise da capa da edição brasileira, vemos, além da citação não marcada do nome da revista HQ, a presença da figura de Loana. A rainha, na capa da revista HQ está no alto, à esquerda, e parece interagir com uma figura humana deitada. A Loana de Eco encontra-se no lado direito superior da capa, em posição oposta àquela da rainha na capa do álbum de HQ. No livro, não há figura humana na área de influência da chama e uma névoa envolve a região em que tal figura estaria se fosse mantido o paralelismo com a capa da revista HQ. A névoa é uma presença fortíssima no romance: referência à cidade natal de Yambo, a enevoada Milão, é uma espécie de obsessão do protagonista, o que poderia indicar que ele seria a figura humana deitada que falta na capa do romance, se considerarmos um paralelismo com a capa da revista HQ. Yambo tem notícia dessa sua obsessão por Sibila, sua secretária, que lhe mostra uma coleção de anotações e recortes sobre o tema, elaborada por ele antes do acidente: Reunira pelo menos cinquenta páginas de citações sobre a névoa. Devia ser muito importante para mim. Aqui está Flattland de Abbott: um país de duas dimensões apenas, onde vivem só figuras planas, triângulos, quadrados e polígonos. Como reconhecer um ao outro se não se vêem do alto e reconhecem somente linhas? Graças à neblina. [...] Felizes desses triângulos que vagam pela bruma e vêem alguma coisa, eis um hexágono, eis um paralelogramo. Bidimensionais, porém mais afortunados que eu. (ECO, 2005,p.64) A capa do romance aponta para seu interior e também para outros enunciados que a precederam. A forma de interação com esses enunciados, ou seja, uma citação cuja fonte só será revelada posteriormente, na já citada página 251, cria no leitor o sentido do mistério vivido pelo protagonista. A dúvida sobre a identidade da rainha Loana, que acompanha o protagonista até o momento no qual ele se depara com a revistinha de Cino e Franco, é a mesma dúvida do leitor, que se pergunta até o momento dessa revelação quem é a rainha que dá nome ao romance. Assim, ganham sentindo, no mesmo ponto da narrativa, a viagem a Solara, para o herói e o título da obra, para o leitor. A misteriosa chama, em itálico na página 251, é logo reassumida pelo narrador, que enuncia as suas “misteriosas chamas” sem marcas gramaticais (cf. p. 6 deste artigo) e composicionais, numa representação visual: a passagem do itálico para o não itálico, indicando uma incorporação, ressignificada, da palavra de outrem, típica de um discurso bivocal, em que a palavra serve a mais de um amo, pertence ao discurso citado e ao discurso do que cita. A bivocalidade, para Bakhtin, é o fenômeno central da Metalinguística, ciência proposta pelo autor para o estudo das questões discursivas. (1997, p.184-185). Essa incorporação do discurso de outrem através de citações, ora referidas, ora não, acontece, também, nos vários subtítulos da obra. Por exemplo, os quatro capítulos que compõem a primeira parte do romance são assim intitulados: O mais cruel dos meses, O cicio que faz a folha, Talvez alguém te deflorasse e Sozinho sigo pela cidade. O título do quarto capítulo é explicado em seu corpo: trata-se de um verso da canção In cerca di te, que o protagonista canta e sua esposa reconhece. Os outros títulos são citações cujas fontes não são reveladas no romance nem nos créditos finais. O leitor pode contar apenas com a memória semântica (ou com modernas ferramentas de pesquisa) para nomear o outro cujo discurso está presente.

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Temos, nos capítulos da primeira parte do livro, citações extraídas do poema The Waste Land, de T.S. Elliot, de La sera fiesolana, de Gabrielle D‟Annunzio e de Adolescente, de Vinenzo Cardarelli. O nome de Cardarelli é citado no capítulo intitulado com seu verso, mas não há nenhuma indicação de que ele seja o autor de Talvez alguém te deflorasse. Parecenos que essa forma de incorporar o discurso alheio sem especificar a fonte, recorrente na obra, reforça axiologicamente a criação do sentido da memória semântica, um “bem público” (ECO, 2005, p.23). A reação de um interlocutor frente a citações cujas fontes não são explicitadas evidencia-se num diálogo entre Yambo e seu médico, no capítulo 13: “[...] Como é a névoa?” “Não me ponha em apuros, sou apenas um médico. E depois, não posso mostrá-la. Hoje é dia 25 de abril.” “Abril é o mais cruel dos meses” “Não sou muito culto, mas creio que é uma citação. [...]” (ECO, 2005, p.13). Os títulos dos outros capítulos que mencionamos, pertencentes à primeira parte do livro, bem como os demais títulos e citações verbais não referenciadas no corpo da obra, podem provocar essa resposta do interlocutor-leitor, que assume a fala do médico: “Não sou muito culto, mas creio que é uma citação”. O mergulho no mar de erudição e cultura popular que os vários discursos citados provocam no leitor faz experimentar essa “memória semântica”, de certa forma personagem da obra. A respeito dessa memória acionada no leitor, podemos afirmar que o efeito causado pelo discurso prolixo em citações populares e eruditas depende da esfera de recepção e, portanto, não é o mesmo no público leitor de Eco na Itália e nos outros países em que as traduções circulam. Para qualquer leitor italiano, por exemplo, cremos ser marcante a presença de Dante Alighieri tanto em citações da Divina Comédia não referenciadas no primeiro capítulo (como em “O amor que move o sol e outras estrelas”, na página 27), quanto na própria estrutura tripartite do romance, que remeteria aos três reinos da Comédia: inferno, purgatório e paraíso. Há também, como veremos adiante, referências claras ao conteúdo da Vida Nova, obra de Dante que tem como tema os encontros e desencontros entre o poeta e Beatriz. A própria escada, presente na capa e retomada na sequência verbo-visual configurada entre as páginas 420 e 443, embora seja uma elaboração de Eco sobre um desenho Alex Raymond para as aventuras de Flash Gordon, pode remeter ao universo de Dante. A escada, assim, é um signo que traz simultaneamente os discursos do gênero HQ, de forma explícita, e da mais alta literatura italiana, constitutivamente. Ressignificada por Eco, serve a mais de dois amos, portanto. Postulamos que essa simultaneidade de presenças confere ao discurso do autor sobre a memória semântica um sentido de integração da cultura de massa com o discurso da erudição como constitutivos da geração do protagonista, que coincide com a de Eco. A figura da escada na Divina Comédia está presente no famoso verso “Lo scendere e ‘l salir per le scale altrui”, do canto XVII do inferno. No romance de Umberto Eco, ela salta 3

Aspas presentes no original. 20

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aos olhos, literalmente: em relevo na capa, o signo domina a última parte do livro, nascendo como representação visual do liceu de Yambo e transformando-se em passarela do delírio do herói, por onde sobem e descem figuras da memória semântica e afetiva: o diretor do liceu, Mandrake, Flash Gordon, Mickey e Minie, Cyrano de Bergerac e tantos outros. Aos leitores que têm na própria memória a vida e obra de Dante, esse discurso é atravessado pelo sentido do exílio, dos anos de inferno que marcaram a última parte da vida do ilustre florentino, que foram, na Comédia, anunciados ao poeta-personagem na voz de seu trisavô, Cacciaguida, alma beata do Paraíso, que entoa a profecia: Tu lascerai ogni cosa diletta più caramente; e questo è quello strale che l’arco de lo esilio pria saetta. Tu proverai sí come as di sale lo pane altrui, e come è duro calle lo scendere e ‘l salir per l’altrui scale. (Paradiso, XVII, 55-60)4

O exílio, evento real na vida de Dante, que o poeta faz, na obra, ser profetizado por seu antepassado, foi consequência de seu envolvimento político nas disputas entre as duas facções do partido Guelfo, que apoiava o papa, em oposição aos Guibelinos, partidários do Imperador. Os Guelfos, por disputas familiares, cindiram-se em Brancos, moderados, e Negros, radicais. O autor da Comédia, pertencente aos Brancos, ingressou na vida política em 1290. Em 1301, ocupando o cargo de prior da Comuna, participou de uma expedição diplomática a Roma. Durante sua ausência, os Negros tomaram o poder e julgaram e condenaram diversos líderes Brancos, inclusive Dante, que foi condenado injustamente por corrupção e improbidade administrativa. O poeta nunca mais retornou a Florença e passou e resto de sua vida em diversas cidades, protegido por famílias nobres que o acolhiam em suas cortes. Dentre estas, destaca-se a família Scaligeri (sobretudo Cangrande della Scala), em Verona, que, segundo os críticos da Comédia, é citada no verso “lo scendere e „l salir per le altrui scale” sob a máscara do signo “escadas”. Dante lutou até o fim da vida pela suspensão de seu exílio, mas não aceitou, em 1315, uma anistia que poderia ter recebido desde que assumisse sua culpa e reentrasse na cidade 4

Na tradução de Eugênio Mauro:

De teus mais caros bens a aventurança tu perderás, e essa é a flecha fatal que, de primeiro, o arco do exílio lança Tu provarás como tem gosto a sal o pão alheio, e descer e subir a alheia escada é caminho crucial (Alighieri, 1999: 123) 21

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sofrendo humilhações, coberto de cinzas e vestido em farrapos. Ele morreu em 1321, a caminho de Ravena, onde foi sepultado. Os florentinos reclamam seus ossos até hoje, mas os descendentes do poeta nunca permitiram que ele retornasse a Florença. A cidade que exilou Dante deve-se, hoje, contentar com um cenotáfio na Igreja de Santa Croce. As desventuras de Dante são narradas tanto na Divina Comédia quanto na Vida Nova, duas vozes presentes no romance de Eco. O paralelismo entre os amores de Dante e Beatriz e de Yambo de Lila Saba, o amor de infância cuja lembrança o protagonista deseja ardentemente recuperar, é assim descrito Gianni, amigo de Yambo: No primeiro ano nós éramos uns fedelhos cheios de espinhas e de calças curtas. Elas na mesma idade já eram mulheres e nem olhavam para nós, só flertavam com os universitários que esperavam na saída. Mas assim que a viu você ficou caído. Tipo Dante e Beatriz, e não falo por acaso, porque no primeiro nós estudávamos a Vida Nova e as claras frescas e doces águas5, e era a única coisa que sabia de cor, porque falava de você. Se considerarmos que Yambo, após o segundo acidente, foi exilado do controle de seu corpo, ficando preso num delírio em que as memórias afetivas retornaram desordenadamente, abre-se a possibilidade de uma leitura do trânsito das personagens que desfilam pela escada no delírio atravessada pela leitura dos discursos biográficos e poéticos de Dante. Como Dante, que desmaia instantes antes de ter a visão que buscava, de Deus, Yambo perde a visão dentro de seu delírio quando o momento de encontrar sua amada Lila se aproxima. Dante jamais voltou para casa de seu exílio, e a obra de Eco dá-nos indícios de que tampouco Yambo pôde fazer o percurso de volta. A escada, portanto, é uma forma que marca tanto a presença das revistas de HQ6 como a presença de Dante em A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Simboliza, talvez, esse amálgama entre memória afetiva e semântica e entre cultura popular e erudita que traz a terceira parte do livro. A citação visual é a segunda forma de presença do gênero HQ que encontramos em A Misteriosa Chama da rainha Loana. A primeira forma que identificamos foi a citação verbal, como, por exemplo, aquela presente no título do romance, já na capa da obra, que consideramos uma composição híbrida, uma forma dissimulada (ao menos até ser explicitada) de plurilinguismo. A citação visual é assim também marcante já na capa, pelas figuras da escadaria e da própria personagem Loana, sobre a qual já discorremos. Evidencia-se também, por exemplo, nas páginas 74 e 75, em que temos reproduções visuais da capa de um álbum do Mickey e de uma das tirinhas da história O tesouro de Clarabela que dará nome ao capítulo 5 da obra. A tirinha é reproduzida sem o texto verbal dos balões, concretizando visualmente as palavras Yambo: “Folheei o álbum depressa [...] mas era como se não tivesse vontade de ler o que estava escrito nos balões” (ECO, 2005, p.74). A citação visual, assim, compõe com o texto um enunciado verbo-visual, e é nessa composição que se cria o tema ou sentido do enunciado, único e irrepetível. (cf. BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004) 5

“Claras, frescas e doces águas” é o verso inicial de um dos mais famosos poemas do Canzoniere de Francesco Petrarca (SQUAROTTI, 1989: 176), uma presença cuja fonte não é explicitada por Eco. 6 Lemos na sessão “Fontes das citações e das ilustrações” que todas as ilustrações que contêm a escada são elaborações de Eco sobre desenhos de Alex Raymond para Flash Gordon. 22

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Tal passagem traz a presença do gênero HQ não só pictoricamente, mas também revela, na sua forma de representação associada às palavras de Yambo, uma das possibilidades da recepção das tirinhas: a da leitura que despreza o verbal. Nesse momento, na leitura do romance de Eco, o leitor é convidado a considerar apenas o visual da tirinha de Walt Disney, ou seja, é levado a ler como o protagonista:

Compreendemos esse momento da obra como uma marcante passagem plurilíngue. Bakhtin esclarece esse conceito no ensaio O discurso do romance, do qual depreendemos que a questão do plurilinguismo se estabelece a partir das diferentes línguas da vida de que cada um faz uso nas mais diversas atividades, mesmo sem delas ter consciência. Um exemplo trazido pelo pensador russo é o do camponês que vive mergulhado em vários sistemas linguísticos: a língua oficial, a familiar, a usada na reza etc. O romancista, com sua consciência linguística literariamente ativa, tem a capacidade de perceber a tensão socialideológica entre essas diferentes línguas na vida e na arte. Para Bakhtin, o romance é o placo literário ideal para o brilho do plurilinguismo: O prosador não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem, não destrói os germes do plurilinguismo social que estão encerrados neles, não elimina aquelas figuras linguísticas e aquelas maneiras de falar, aqueles personagens narradores virtuais que transparecem por trás das palavras e formas da linguagem, porém dispõe todos estes discursos e formas a diferentes distâncias do núcleo semântico decisivo da sua obra, do centro de suas intenções pessoais. (BAKHTIN, 1990,p.195) Na página 75 do romance de Eco, assim, o autor-narrador traz, de modo bastante sofisticado, a sua maneira de ler quadrinhos quando pequeno. O gênero HQ é citado verbal e visualmente no romance, mas, mais do que isso, a forma das histórias em quadrinhos, em que há o predomínio do visual, marca presença na citação da tirinha de O tesouro de Clarabela, fazendo com que o leitor leia aquela ilustração com os olhos do pequeno Yambo.

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A terceira forma de presença do gênero HQ que pudemos identificar relaciona-se justamente com a interdiscursividade entre as formas composicionais do gênero HQ e do gênero romance. Tal presença evidencia-se entre as já mencionadas páginas 420 e 443, trecho em que, embora não haja o confinamento do texto verbal em balões, típico dos quadrinhos, o espaço material ocupado pelas imagens supera aquele ocupado pelo texto escrito. Sobram espaços em branco em algumas dessas páginas, exatamente onde há o texto verbal. Lemos tal composição como uma forma híbrida, em que sentimos a voz do gênero romance, pela característica corrida do texto, e a voz do gênero HQ, pelo predomínio espacial das imagens, como vemos na reprodução das páginas 420/421:

A respeito do hibridismo, Bakhtin afirma: Denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde, na realidade, então confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas “linguagens”, duas perspectivas semânticas e axiológicas. Repetimos que entre esses enunciados, estilos, linguagens, perspectivas, não há nenhuma fronteira formal, composicional e sintática [...] (1993,p.110). Estamos, portanto, ampliando o conceito de hibridismo para a forma composicional dos diferentes gêneros, considerando que Bakhtin, ao mencionar diferentes estilos, linguagens e perspectivas axiológicas, nos dá essa possibilidade. A concepção de forma a que nos referimos como resultante desse hibridismo é a de forma arquitetônica, que o autor desenvolve no capítulo IV de Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. Em contraposição à forma técnica, estudada “a partir do todo material e composicional da obra” (BAKHTIN, 1993:57), realizada num material e determinada por seu objetivo estético e pela natureza do próprio material, a forma arquitetônica põe em evidência a relação de valor entre a forma e o conteúdo, a partir do centro emocional e volitivo de um ponto único de valores, que é o aspecto do autor (criador e contemplador):

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Assim, a forma é a expressão da relação axiológica ativa do autorcriador e do indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo; todos os momentos da obra, nos quais podemos sentir a nossa presença, a nossa atividade relacionada axiologicamente com o conteúdo, e que são superados na sua materialidade por essa atividade, devem ser relacionados com a forma. (BAKHTIN, 1993, p.59) Bakhtin alerta o leitor, no primeiro capítulo da obra, intitulado Crítica da arte e Estética Geral, sobre a difícil tarefa de diferenciar-se a forma composicional da arquitetônica (cf. BAKHTIN, 1993, p.25). As formas arquitetônicas são o resultado da organização artística e estética de uma forma composicional; estão, portanto incluídas no objeto estético e relacionam-se emocional e volitivamente com o conteúdo. Embora admitamos as dificuldades de pleno entendimento do conceito, identificamos que há na composição verbo-visual presente entre as páginas 420 e 443 do romance de Eco uma forma arquitetônica híbrida de romance e quadrinhos, que traz em si o valor do resgate da memória afetiva da personagem Yambo. Nesse resgate, o gênero HQ, o “outro” cuja presença procuramos identificar, enuncia-se como arquitetura do delírio da personagem e da leitura do interlocutor, como a forma de um conteúdo, e, portanto, mais do que composicional, arquitetônica. Centramo-nos na presença do gênero HQ e na forma pela qual a interdiscursividade com ele se dá. No entanto, as observações que fizemos sobre sentidos particulares criados pela presença de tal gênero aplicam-se a outros diálogos presentes no romance ilustrado de Eco. Dessa forma, consideramos que as ilustrações da obra, aspectos de uma forma arquitetônica particular, não são subordinadas ao texto verbal, mas são constitutivas do enunciado, entendido como a totalidade desse romance ilustrado. A presença do gênero HQ, desse modo, evidencia-se por, pelo menos, três maneiras: as duas primeiras são as citações verbais e visuais, que podem ser analisadas em relação à evidência ou não de suas fontes e à presença ou ausência de marcas gramaticais e composicionais que indiquem possíveis limites entre o discurso do autor-narrador e do outro; por último, temos o que propomos chamar de interforma ou a contaminação da forma do gênero romance pela forma do gênero HQ, que acaba por determinar os sentidos (cf. BAKHTIN, 1993, p.124) dessa obra de Eco e criar a forma arquitetônica desse romance ilustrado, lugar do improvável encontro entre Dante e Flash Gordon.

Referências ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. A cura di Umbreto Bosco e Giovanni Reggio. Le Monnier, Firenze, 1991. ______ A divina comédia. Edição bilíngue. Trad. e notas de Eugênio Mauro. São Paulo, Editora 34: 1998. BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et. ali. São Paulo: Hucitec, 1993. ______ O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et. ali. São Paulo: Hucitec, 1993.

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______ Problemas da poética de Dostoiévski. (Trad. de Paulo Bezerra). 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BAKHTIN, M. (V.N. VOLOCHINOV) (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. (Trad. de Michel Lahud e Yara F. Vieira). 11. ed. São Paulo, Hucitec, 2004. DOTTI, Ugo. Storia della letteratura italiana. Roma: Laterza, 1991. ECO,Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. ______ La misteriosa fiamma della Regina Loana. Romanzo illustrasto. Milano: Bompiani, 2005. MAURO, Walter. Invito alla lettura di Dante. Milano: Mursia, 1993. SQUAROTTI, Giorgio Barberi (org). Literatura Italiana: linhas, problemas, autores. Trad. Nilson Carlos Louzada et al. Edusp/Nova Stella: São Paulo, 1989. TEZZA, Cristóvão. Em busca do Mickey perdido. In Folha de S. Paulo, 03/07/2005; Caderno Mais! último acesso em 10/07/2010

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A CONSTRUÇÃO METAFÓRICA DE ELEIÇÃO NO DISCURSO JORNALÍSTICO Ana Rosa Ferreira Dias* Luciana Soares da Silva** Resumo Objetivamos, neste artigo, identificar e caracterizar as metáforas no discurso jornalístico. A fim de alcançarmos esses objetivos, constituímos o corpus do trabalho com textos do jornal Folha de S. Paulo, obtidos entre setembro e outubro de 2006, acerca da eleição presidencial, e procedemos com a análise, baseando-nos nos estudos da Análise do Discurso e da Linguística Cognitiva. Verificamos que as metáforas constituem o discurso jornalístico como estratégia linguístico-discursiva, possibilitando a construção do discurso, na avaliação e crítica da notícia, e influenciando os efeitos de sentidos promovidos pela mídia escrita. Palavras-chave: discurso jornalístico; metáfora conceptual; eleições 2006. Abstract This work seeks to identify the uses of metaphors in the journalistic discourse. We selected texts from the mainstrain newspaper Folha de S. Paulo´s coverage of Brazilian presidential election in the period between September and October 2006, as the corpus of this research. Then, we proceeded with the analysis, mainly based on the teorethical approach of the Discourse Analysis and Cognitive Linguistic studies. We have found that metaphors create the journalistic discourse as a linguistic-discursive strategy that both enables the construction of a particular discourse in the assessment and consumption of news, and produces effects over the meanings of news coverage. Keywords: journalistic discourse; conceptual metaphor; elections 2006. Introdução O tema deste artigo, a presença da metáfora na construção do discurso jornalístico escrito, foi motivado pela observação de jornais da mídia escrita, na qual reconhecemos o uso recorrente de metáforas na veiculação da informação, desfazendo a perspectiva de existência da metáfora somente em textos literários. Essa idéia foi suscitada pelo conhecimento dos estudos de Lakoff e Johnson (2002, p.45), os quais apresentam a metáfora como “entendimento de um conceito em termos de outro”. Para eles, “a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e ação” (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p.25). Sendo assim, o sistema conceptual ordinário é fundamentalmente metafórico. Diante da constatação da existência da metáfora no discurso jornalístico, questionamonos de que maneira a metáfora apresenta-se nesse tipo de discurso e qual a relevância da metáfora na sua constituição. Partimos da hipótese de que a metáfora é uma estratégia linguístico-discursiva que, além de estar presente na mídia escrita por constituir nosso sistema conceptual ordinário, auxilia a construção do discurso jornalístico, influenciando a concepção da realidade. Essa hipótese fundamentou-se na leitura de estudos da área da Análise do Discurso (AD), bem como da Linguística Cognitiva. A primeira fornece-nos, conforme Orlandi (1999, *

Doutora em Filologia e Língua Portuguesa – USP - [email protected] Doutoranda em Língua Portuguesa - PUC-SP - [email protected]

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p.17), uma perspectiva de que a linguagem não é um mero instrumento de comunicação ou suporte de pensamento, mas um ato social imbricado nos processos histórico-sociais, não podendo ser dissociada da sociedade que a produz. Já a segunda oferece a visão da metáfora como fenômeno cognitivo-social, uma vez que a observa como constituinte da linguagem no nível cognitivo, mas também a vê como designadora da relação de similaridade entre termos que possibilitam o modo que vemos e nos relacionamos com a realidade em que estamos inseridos. A metáfora reflete por si só a concepção de mundo que as culturas possuem. Na nossa, por exemplo, há uma visão mercantilista do tempo, na qual TEMPO É DINHEIRO1 (cf. LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 243). Portanto, a metáfora constitui-se e é entendida conforme os conflitos ideológico-sociais impregnados nela. Tal proposição incitou-nos a propor como objetivo geral deste artigo o diálogo entre os estudos da AD e a Linguística Cognitiva, no que tange ao conceito de metáfora conceptual proposta por Lakoff e Johnson (2002), uma vez que ela está submetida à cultura e à sociedade e, provavelmente, participa da constituição do discurso. Já como objetivos específicos, traçamos: examinar a metáfora como estratégia linguístico-discursiva na construção do discurso jornalístico e verificar a construção metafórica do conceito eleição. Esse último objetivo foi motivado pelo corpus do trabalho, constituído por um conjunto de textos jornalísticos acerca da eleição para Presidente da República do Brasil de 2006, recolhidos entre setembro e outubro desse ano. A eleição é um evento de extrema pertinência social e política para o país, o que a faz ter grande destaque nos meios de comunicação, principalmente na mídia escrita, na qual são dedicados inúmeros artigos, notícias, reportagens etc. Os textos foram recolhidos do jornal Folha de S. Paulo, devido à sua grande circulação estadual e nacional e à sua relevância no cenário midiático. Durante o processo de pré-análise, verificamos que a mera identificação de tipos de metáforas não dava conta de caracterizar e entender a pertinência desse fenômeno no discurso jornalístico. Por essa razão, procuramos relacionar a metáfora ao discurso, observando-a como estratégia linguístico-discursiva de construção do discurso jornalístico. Assim, este artigo estrutura-se basicamente na identificação e classificação das metáforas encontradas no corpus e discussão da relação dessas metáforas com a realidade sociocultural em que estão inseridas. Antes, porém, faremos uma breve discussão sobre a metodologia de análise das metáforas. Metodologia Diante dos nossos objetivos, deparamo-nos com a necessidade de optar por um método para seleção do material de análise. No que tange às formas de seleção de metáforas, tal como apresenta Sardinha (2007, p.139), é possível identificá-las por meio de quatro formas: pela introspecção, pela leitura, pelo emprego de um tipo de programa de computador (concordanciador) ou pelo emprego de um programa de computador especializado em identificação de metáforas. Segundo Sardinha (2007), a introspecção diz respeito ao exame de si mesmo em busca da exemplificação de metáforas, procurando na própria mente expressões metafóricas. Esse método, usado por Lakoff e Johnson, desperta a suspeita quanto à existência dessas metáforas na língua em uso, pois as informações intuitivamente geradas, em grande parte, não correspondem à linguagem natural. Um outro método apresentado pelo autor é o da leitura, o qual se baseia na leitura de texto(s) em busca de metáforas específicas ou em busca da localização de metáforas sem nenhuma definição prévia. Em relação à identificação da metáfora conceptual, afirma que os 1

Ao referir-nos aos conceitos metafóricos, usaremos, tal como posto na bibliografia consultada, letras maiúsculas. 42

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critérios não são claramente colocados, uma vez que a preocupação está direcionada ao estudo de metáforas mentais abstratas. Para ele, a opção pelo método de leitura para identificação de metáforas requer a determinação de critérios claros pelo analista. A introspecção e a leitura são métodos “manuais”, uma vez que necessitam da observação do ser humano. Os dois próximos métodos valem-se da tecnologia para constituição do corpus. O primeiro deles é um programa de computador, que se encarrega de encontrar uma sequência de letras (palavra inteira, parte de uma palavra, combinação de palavras etc.), chamado concordanciador. Há diversos programas concordanciadores disponíveis atualmente, entre eles há o Concord, um programa voltado para o sistema operacional Windows, incluso no programa de análise de corpus WordSmith Tools (SCOTT, 1997, apud SARDINHA, 2007). Um outro programa disponível é o Concordanciador Online2 do CEPRIL3, o qual se adapta a qualquer sistema operacional e não necessita de instalação. No que diz respeito à localização das metáforas, esses programas auxiliam o analista a encontrar a freqüência do uso metafórico de certa palavra pré-estabelecida por ele. No entanto, não dispensam o método anterior, leitura, uma vez que o julgamento do sentido metafórico é feito pelo analista e o programa não reconhece metáforas abstratas, como as conceptuais. O segundo método ligado à tecnologia é um programa específico para a identificação de metáforas em arquivos de computador. Esse tipo de programa ainda é raro, havendo apenas um programa disponível ao público em geral, desenvolvido por Sardinha no CEPRIL, chamado Identificador de Metáfora4. Dentro de uma proposta de pesquisa da linguística de corpus, o programa funciona como um “etiquetador”, no qual são colocadas etiquetas nas palavras do corpus, indicando sua probabilidade de uso metafórico. (cf. SARDINHA, 2007, p.156). O programa é composto por bancos de dados formados pela pesquisa de Sardinha5, obtidos pela anotação manual de metáforas em corpora, leitura. Observando os métodos e nossa proposta de pesquisa, estabelecemos o modo mais adequado para o alcance de nossos objetivos. O método de introspecção, utilizado em grande parte por Lakoff e Johnson (2002), não poderia atender aos nossos objetivos, uma vez que nos propusemos a analisar um certo tipo de discurso, no caso, o jornalístico, constituindo um corpus de análise. Além disso, uma vez que tomamos como base o diálogo entre os estudos da AD e da Linguística Cognitiva, a introspecção não corresponderia à concepção de discurso como ação social, em que se deve considerar as condições socioculturais nas quais está inserido. Também os programas de computador, concordanciador e identificador de metáforas, não seriam adequados para nós, já que trabalham com a procura de determinada sequência em arquivos ou banco de dados. O primeiro apresenta um problema no tocante ao préestabelecimento de possíveis metáforas, o que restringiria o encontro de expressões metafóricas. Já o segundo pretende suprir um objetivo que não nos interessa neste artigo, a probabilidade do uso metafórico das palavras. Dessa maneira, o método mais adequado para a nossa proposta de pesquisa é o de leitura. Embora possa ser considerado recentemente por alguns autores como antigo, esse método propicia o posicionamento do analista frente à constituição do corpus. É reconhecida nesse procedimento, de acordo com a AD, a subjetividade dos sujeitos envolvidos no processo de análise, ou seja, no caso do discurso jornalístico, os enunciadores do discurso 2

Disponível em http://www2.lael.pucsp.br/corpora. Centro de Pesquisa, Recursos e Informação em Linguagem (CEPRIL), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUC-SP. 4 Disponível em http://www2.lael.pucsp.br/corpora/metaphor_tagger/index.html. 5 Essa pesquisa, intitulada O léxico metafórico do português, foi apresentada no V Encontro de Corpora, na Universidade Federal de São Carlos em novembro de 2005. 3

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(instância de produção6), os co-enunciadores (instância de recepção) e o próprio analista, visto que todo sujeito é interpelado pelos fatores sociais, ideológicos e culturais. Além do mais, a identificação de metáforas conceptuais exige uma reflexão do analista, visto que elas são mentais e abstratas. Os outros métodos, mesmo implicitamente, também trazem a subjetividade, apesar de procurarem, a princípio, o distanciamento por meio do uso de programas de computador. Análise do corpus Uma vez estipulada a base metodológica, a leitura, os textos recolhidos do jornal Folha de S. Paulo foram analisados a partir da classificação de metáforas conceptuais propostas por Lakoff e Johnson (2002) e Lakoff e Turner7 (1989) em paralelo aos estudos da AD, sobretudo, aos de Maingueneau (1993; 2002) e Charaudeau (2006). Com a composição do corpus, observamos a recorrência de duas metáforas estruturais na conceituação de eleição. A primeira delas é ELEIÇÃO É FUTEBOL e a segunda, ELEIÇÃO É GUERRA. Essas duas metáforas, tal como afirma Lakoff e Johnson (2002) e Lakoff e Turner (1989), estruturam o pensamento, proporcionando expressões linguísticas que as caracterizam. Aqui, o conceito eleição é estruturado metaforicamente em termos de dois outros conceitos, futebol e guerra, respectivamente. Em relação à compreensão das metáforas, Lakoff e Turner (1989) afirmam que ela depende do conhecimento convencional sobre certo domínio. No exemplo dado pelos os autores, VIDA É UMA VIAGEM, o conhecimento do domínio viagem (domínio-fonte) é que possibilita o entendimento da vida (domínio-alvo) a partir desse conceito. Já na nossa análise, há o reconhecimento do domínio-alvo, eleição, e de dois domínios-fonte, futebol e guerra. Tendo em vista que cada domínio é formado por estruturas, o conhecimento de futebol, por exemplo, é estruturado de forma esquelética por esquemas. Uma vez aprendido o esquema, ele se torna inconsciente e é usado cada vez que se necessita dele, não sendo preciso aprendêlo novamente em cada momento em que ele seja utilizado. Essa internalização que possibilita a relação entre esquemas diferentes, para compreensão das metáforas conceptuais, ou seja, a compreensão de eleição em termos de futebol ou de guerra. Na primeira metáfora estrutural, ELEIÇÃO É FUTEBOL, reconhecemos a eleição como jogo. Nesse sentido, os candidatos formam times que disputam um grande campeonato. O jogo pressupõe estratégias para alcançar o resultado pretendido, baseadas no alcance da pontuação de uma das partes maior do que as demais. Assim, verificamos a relação entre o domínio-fonte: futebol e o domínio-alvo: eleição: ELEIÇÃO É FUTEBOL Lula atribui previsão de baixo crescimento a torcida8 contra (Manchete. Folha de S. Paulo, 02/09/2006, p. A4, Brasil Eleições 2006). O risco do empate técnico (Manchete. Fernando Rodrigues. Folha de S. Paulo, 27/09/2006, Opinião, p. A2). Um risco ronda a eleição presidencial. Se a diferença entre Lula e os demais candidatos for menor do que 0,5 ponto percentual no domingo, há 6

Os conceitos de instância de produção e de recepção são discutidos por Charaudeau (2006). As reflexões feitas por esses autores são posteriores ao livro Metaphors We Live By, escrito por Lakoff e Johnson, o qual teve sua primeira publicação em 1980. Usamos, neste trabalho, a versão traduzida desse livro, realizada em 2002, intitulado Metáforas da vida cotidiana. Todavia, por não haver tradução em português do livro de Lakoff e Turner, usamos a versão original em inglês realizada em 1989. 8 A título de destaque de algum termo ou expressão, usaremos como estilo de fonte o itálico no corpus analisado. 7

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chance real de a disputa parar no tapetão. (Excerto. O risco do empate técnico. Fernando Rodrigues. Folha de S. Paulo, 27/09/2006, Opinião, p. A2). São Paulo, em clima de 0 a 0, vê voto sem festa (Manchete. Folha de S. Paulo, 02/10/2006, Especial Eleições 2006, p. 9). O domingão do paulistano transcorreu sob o signo do “empate técnico” (Excerto. São Paulo, em clima de 0 a 0, vê voto sem festa. Folha de S. Paulo, 02/10/2006, Especial Eleições 2006, p. 9). Nesses enunciados, notamos a correspondência entre os dois domínios conceituais citados a partir do léxico (“torcida”, “empate técnico”, “tapetão”, “0 a 0”). De acordo com Lakoff e Turner (1989), o conhecimento da estrutura do domínio-fonte possibilita a compreensão do domínio-alvo, as quais evidenciam as seguintes implicações metafóricas: - Eleição é jogo. - Eleitores são torcida. - Segundo turno é tapetão9. - Candidatos são jogadores. - Partidos políticos são times. Nos próximos recortes, é encontrado o uso do conceito metafórico ELEIÇÃO É FUTEBOL para avaliar o cenário político. No primeiro deles, o enunciador 10 avalia os candidatos do segundo turno, Lula e Alckmin, usando expressões do domínio-fonte (futebol): Bola em campo (Manchete. Eliane Cantanhêde. Folha de S. Paulo, 08/10/2006, Opinião, p. A2). Lula foi melhor do que Alckmin no aquecimento do segundo turno, ao partir para o ataque na cara dura: [...] Alckmin também entrou no vale-tudo, abraçou-se aos [sic] Garotinho e reacendeu no segundo turno, já no aquecimento, o clima de “crise” que varou todo o primeiro tempo, quer dizer, o primeiro turno. A diferença é que Lula pisa na bola, mas o efeito pode valer a pena, já que a máquina é poderosa num jogo eleitoral. E Alckmin pisa na bola, mas o efeito é incerto e não sabido. [...] É hoje, ao vivo e em cores, que se vai saber na prática qual o jogador mais preparado, mais ágil, mais convincente e com maior capacidade de levar seu time à vitória. Sem desconsiderar as partidas mais “técnicas” (ou menos sinceras): os programas de rádio e TV. Não dá para adivinhar resultados antes do início da partida, e esse início é hoje. Começam as apostas. (Excerto. Bola em campo. Eliane Cantanhêde. Folha de S. Paulo, 08/10/2006, Opinião, p. A2). No próximo recorte, essa metáfora estrutural também fundamenta a avaliação do enunciador, o qual a usa para criticar a maneira pela qual o período eleitoral foi conduzido: Bola demais. (Manchete. Carlos Heitor Cony. Folha de S. Paulo, 30/10/2006, Opinião, p. A2). 9

Decidido em audiências judiciais. Usaremos os termos enunciador e co-enunciador propostos por Maingueneau (2002), por estes motivarem o reconhecimento da interação entre os sujeitos envolvidos (produtor do texto e leitor). 10

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[...] Na verdade, fica difícil escolher um assunto quando a área está embolada, todo mundo chutando todo mundo, nem se sabe onde está a bola, nem mesmo se há bola em campo. Desconfio que, há muito, o jogo a que assisto, como testemunha, vítima e cúmplice, é uma partida idiota, pois há adversários, campo, juízes, bandeirinhas, balizas, laterais, redes, regras, platéia, mas falta o essencial, a bola.[...] (Excerto. Bola demais. Carlos Heitor Cony. Folha de S. Paulo, 30/10/2006, Opinião, p. A2). Constatamos que o enunciador cria uma relação analógica entre “bola” e os assuntos principais que deveriam ser abordados da eleição. A bola é algo essencial para que a partida de futebol ocorra, sendo possível a ausência de algum outro elemento como bandeirinhas, juízes, mas não dela. Assim, o enunciador chama a atenção para a falta de abordagem de questões que consideraria realmente importantes, como as denúncias de corrupção sofridas pelo governo Lula. Isso pode ser inferido por meio da conclusão do texto: Se vivo fosse, Glauber clamaria mais uma vez contra o conflito entre pobres e ricos, dando como exemplo mais recente a vitória de Lula sobre Alckmin. Mais da metade do povo brasileiro vive na pobreza e não tomou conhecimento da corrupção do governo Lula, de suas falhas administrativas e éticas. (Excerto. Bola demais. Carlos Heitor Cony. Folha de S. Paulo, 30/10/2006, Opinião, p. A2). Já na segunda metáfora estrutural acerca do conceito de eleição, encontramos ELEIÇÃO É GUERRA. Nessa estruturação, a disputa eleitoral equivale à guerra. Assim, os candidatos tomam uma posição de conflito, na qual, como se fossem nações em combate, atacam e defendem-se. As armas passam a ser as idéias que objetivam o acerto no alvo do inimigo e sua conseqüente derrota: ELEIÇÃO É GUERRA Sem citar seu principal rival na campanha, Geraldo Alckmin (PSDB), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) respondeu à elevação dos ataques que partem do adversário e acusou o tucano de promover “pequena guerra, com infâmia e jogos rasteiros”. Defendeu ainda aliados vaiados ontem, em Juiz de Fora (MG).[...] “Poderíamos estar apenas fazendo disputa eleitoral, como em um país civilizado, fazendo comparações entre programas, partidos e governos. Mas muitas vezes uma campanha no Brasil se transforma em guerra”. (Quadro. Lula atribui previsão de baixo crescimento a torcida contra. Folha de S. Paulo, 02/09/2006, Brasil Eleições 2006, p. A4.). No próximo recorte, identificamos a conceitualização de eleição como guerra a partir do discurso relatado. Charaudeau (2006: 162), motivado pela abordagem dialógica da linguagem, na qual se reconhece que o discurso nasce e forma-se a partir da interação dos sujeitos, apresenta o discurso relatado como a palavra do outro presente no ato de enunciação, retomando assim o conceito de polifonia11, em que são reconhecidas as diferentes vozes constituintes do discurso. Para ele, o discurso relatado é caracterizado pelo encaixe de um dito em outro dito. Nessa mesma direção, Maingueneau (2002: 139) afirma que “o discurso relatado constitui uma enunciação sobre outra enunciação”. Esse fenômeno é muito usado no 11

Conceito introduzido por Bakhtin (2003), filósofo da linguagem. 46

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discurso jornalístico, uma vez que a notícia é construída a partir das informações recolhidas em diversas fontes. Na primeira parte do recorte, é usada uma ilha enunciativa, isto é, uma forma híbrida composta por discurso indireto e um fragmento do discurso citado (cf. Maingueneau, 2002), para reportar a fala do candidato (“pequena guerra, com infâmia e jogos rasteiros”). Já na segunda parte, é usado o discurso direto (“Poderíamos estar apenas fazendo...”). Tanto este quanto aquele pretendem eximir o enunciador da responsabilidade do dito relatado. No entanto, de acordo com a análise do corpus, verificamos que a metáfora ELEIÇÃO É GUERRA estrutura a abordagem desse evento político no discurso jornalístico: ELEIÇÃO É GUERRA Alckmin mira em SP e diz que 2º turno desespera PT (Manchete. Folha de S. Paulo, 04/09/2006, Brasil Eleições 2006, p. A4.). Tucanos travam batalha interna para formar bancadas (Manchete. Folha de S. Paulo, 17/09/2006, Brasil, Eleições 2006/presidência, p. A18). Grupos de Geraldo Alckmin e José Serra promovem duelo para eleger seus deputados, de olho nas próximas eleições (Linha fina. Tucanos travam batalha interna para formar bancadas. Folha de S. Paulo, 17/09/2006, Eleições 2006/presidência, p. A18). Ausente, Lula é alvo de ataques em debate (Manchete. Folha de S. Paulo, 29/09/2006. Capa). Os ataques incluíram desde uma sugestão de Cristovam para que Lula renuncie, caso se reeleja, até a afirmação de Heloísa de que o PT virou uma “organização criminosa comandada pelo presidente da República”. Alckmin disse que o mensalão foi “tramado no Planalto, por meio da cúpula do PT”. (Excerto. Ausente, Lula é alvo de ataques em debate. Folha de S. Paulo, 29/09/2006, Capa). Lula é alvo de rivais por ausência e corrupção (Manchete. Folha de S. Paulo, 29/09/2006, Brasil Eleições 2006, p. A8). O tiroteio sobre o presidente foi de sugestão de Cristovam Buarque (PDT) para que renunciasse, em caso de ser reeleito, até a duríssima afirmação da senadora Heloísa Helena (PSOL) de que o PT se transformou “em organização criminosa comandada pelo presidente da República”. (...)Cristovam Buarque, sorteado para ser o primeiro a perguntar, escolheu precisamente Lula e disparou: (...) (Excerto. Lula é alvo de rivais por ausência e corrupção. Folha de S. Paulo 29/09/2006, Brasil Eleições 2006, p. A8). Lula e Alckmin partem para o ataque no primeiro debate (Manchete. Folha de S. Paulo, 09/10/2006, Capa). Lula respondeu lançando suspeitas sobre quem arquitetou o “plano maquiavélico”, dizendo-se o maior prejudicado pelo caso. O petista contraatacou, com menção ao ex-ministro da Saúde Barjas Negri, investigado no caso dos sanguessugas, que foi secretário no governo de Alckmin em São Paulo. (Excerto. Lula e Alckmin partem para o ataque no primeiro debate. Folha de S. Paulo, 09/10/2006, Capa).

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Alckmin ataca e Lula reage em debate inflamado na TV (Manchete. Folha de S. Paulo. 09/10/2006. Brasil Eleições 2006. p. A4.). Aliados de petista festejam recuo de tucano no debate (Manchete. Folha de S. Paulo, 20/10/2006, Brasil,Eleições 2006, p. A6). Desse modo, verificamos as implicações metafóricas construídas entre o domíniofonte: guerra e o domínio-alvo: eleição, da qual podemos identificar que - Eleição é guerra - Candidatos são nações em conflito. - Argumentos são armas. Ainda nessa perspectiva de guerra, o próximo recorte traz uma avaliação da disputa eleitoral: Guerra suja. (Manchete. Boris Fausto. Folha de S. Paulo, 17/10/2006, Opinião, Tendências e debates, p. A3). Os boatos sem fundamento e a exploração do medo passaram a ser a marca da campanha eleitoral do candidato-presidente e de seu partido. Em poucas palavras, entrou em cena a guerra suja. (Excerto. Guerra suja. Boris Fausto. Folha de S. Paulo, 17/10/2006, Opinião, Tendências e debates, p. A3). Mais do que refletir o conceito estrutural, o enunciador avalia a eleição, por meio da adjetivação de guerra como “suja”. Assim, é usada a correspondência entre os domínios fonte e alvo para expor a opinião do enunciador. Observando essas duas metáforas estruturais encontradas na amostra, identificamos alguns resultados pertinentes para a discussão acerca desse fenômeno no discurso jornalístico. O primeiro deles, sem dúvida, é a confirmação da existência da metáfora em um texto nãoliterário. Tal como defendido por Lakoff e Johnson (2002), os conceitos metafóricos permeiam a linguagem cotidiana, estruturando a visão de mundo a partir da experiência de um domínio-fonte. No jornal, diversas metáforas são usadas, tal como apresentado pelos estudos de Sardinha (2007), o qual se preocupou com a predominância da metáfora no jornal Folha de S. Paulo. Ao contrário desse autor, que priorizou a probabilidade de algumas palavras serem metafóricas, por meio do Identificador de Metáforas, citado anteriormente, nós verificamos as expressões metafóricas relacionadas à eleição. Tal procedimento levou-nos a identificar os conceitos estruturais sobre esse tema, retratados no discurso jornalístico. É importante ressaltar o predomínio destes conceitos estruturais, ELEIÇÃO É FUTEBOL e ELEIÇÃO É GUERRA, na cobertura da eleição presidencial. Por que razões seriam priorizados esses mapeamentos em detrimento de outros? Qual a relevância desse fenômeno no discurso jornalístico? Segundo Helal (1997), o futebol pode ser considerado um meio de integração social no Brasil, já que proporciona um sentido de totalidade e unidade brasileira. Nesses enunciados, o enunciador, ao avaliar o contexto eleitoral por meio da metáfora estrutural ELEIÇÃO É FUTEBOL, interage com os co-enunciadores, uma vez que compartilham o mesmo contexto sociocultural. Cabe ressaltar, também, a relevância do futebol para a sociedade brasileira. De acordo com Helal (1997), com a vitória das Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970 e com a consagração de Pelé como o maior jogador de futebol de todos os tempos, o futebol consolidou-se como forma cultural responsável pelo orgulho da nação frente ao mundo. 48

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Embora entre os anos de 1970 e 1990 a seleção brasileira não tenha ganhado nenhuma copa, o futebol continuou sendo uma paixão nacional, sendo bastante explorado pela mídia e pelos governos. É importante relembrar, por exemplo, a ênfase dada à Copa do Mundo de 1970, em plena Ditadura Militar (cf. GUTERMAN, 2006). DaMatta (1994), por sua vez, afirma que o futebol é uma dramatização de diversos aspectos da sociedade brasileira. Conforme esse autor, o futebol traz a experiência de coletividade, visando ao prazer e ficando, assim, em oposição às instituições públicas desmoralizadas, sobretudo as políticas. Do mesmo modo, o futebol proporciona a vivência da vitória e do êxito àqueles normalmente destituídos de benefícios na sociedade. Em uma sociedade capitalista, na qual o sucesso é oriundo da concentração de riquezas, o pobre pode experienciar o gosto da vitória em uma partida. Além disso, a idéia de igualdade e de justiça social é experienciada pela sociedade brasileira, uma vez que o futebol é um jogo governado por regras que regem todos os envolvidos sem discriminação. Nesse cenário, é possível entender a relevância desse esporte na construção discursiva do brasileiro, o que possibilita a estruturação do conceito “eleição” em termos de “futebol”. Mais do que estar relacionada ao dia-a-dia, o futebol configura-se como um elemento sociocultural importante na sociedade brasileira. Podemos, assim, relacionar esse mapeamento metafórico à discussão de Charaudeau (2006), no tocante à estruturação do saber pelo ser humano. Se levarmos em conta que os saberes de crença dizem respeito ao resultado do olhar subjetivo do humano sobre o mundo, ao contrário dos saberes de conhecimento que se ligam à racionalidade, e que o futebol forja a experiência da eleição, verificamos que a metáfora relaciona-se à construção dos saberes de crença. Além disso, ao serem evidenciadas implicações metafóricas que envolvem um elemento sociocultural, futebol, são evocados valores afetivo-sociais, o que faz os enunciadores do discurso jornalístico aproximarem-se dos seus co-enunciadores. Como o primeiro conceito, ELEIÇÃO É FUTEBOL, a metaforização de eleição como guerra (ELEIÇÃO É GUERRA) liga-se às relações socioculturais do ser humano. De acordo com Numeriano (1990), a guerra sempre permeou as civilizações, como os egípcios, os hebreus, babilônicos e persas, sendo a expansão de seus impérios o principal objetivo. Mesmo na dimensão divina, é possível encontrar personagens guerreiras, como o deus Ares, que significava guerra na mitologia grega. Na tradição cristã, o profeta Moisés torna-se um chefe militar, além de líder espiritual ao conduzir o povo hebreu à “terra santa”. Definida por Clausewitz (1996, p.7) como “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”, a guerra perpassa pelas histórias dos povos, constituindo sua visão de mundo. No âmbito da estruturação metafórica, o uso dos argumentos (“armas”) visa à superação do adversário (“candidato”), para assim vencer a eleição (“guerra”). O “ato de violência”, mencionado pelo autor, não fere a parte física, mas sim a psicológica. O ato é metaforicamente substituído pelas agressões verbais. A guerra, ao contrário do futebol, não só se relaciona ao brasileiro, mas a todas as sociedades, configurando-se como inerente a história do ser humano. Provavelmente, seja essa a razão pela qual o domínio-fonte guerra organiza diversas atividades, como discussão racional, estudada por Lakoff e Johnson (2002). Embora os autores evidenciem esta metáfora estrutural, DISCUSSÃO RACIONAL É GUERRA, verificamos que o domínio-fonte guerra pode ser utilizado em relação a outros domínios-alvo, no nosso caso, a eleição. Vale ressaltar, ainda, que os dois domínios-fonte, futebol e guerra, que estabeleceram as metáforas estruturais ELEIÇÃO É FUTEBOL e ELEIÇÃO É GUERRA, configuraram-se como tal, por causa das condições socioculturais e históricas em que estavam inseridas, sendo que, em outra condição, poderiam ser domínios-alvo. É o que demonstra a pesquisa de Oliveira (2004), na qual encontramos a metáfora estrutural FUTEBOL É GUERRA, trazendo futebol como domínio-alvo no discurso jornalístico. 49

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Considerações finais A primeira consideração, acerca do estudo desenvolvido neste artigo, diz respeito ao fato de conseguirmos promover um diálogo entre duas disciplinas distintas, a Análise do Discurso e a Lingüística Cognitiva. Isso foi possível devido ao princípio de interdisciplinaridade que nos ensina que as manifestações linguísticas necessitam de perspectivas diferentes para serem compreendidas em sua integralidade. Neste trabalho, procuramos unir o conceito de metáfora conceptual ao de discurso, uma vez que o primeiro é reconhecido no segundo. Dessa maneira, constatamos que a metáfora não apenas compõe a linguagem cotidiana, mas demonstra uma visão de mundo conforme a sociedade em que está inserida. Essa idéia pode ser comprovada com a identificação da metáfora estrutural que proporciona o entendimento de eleição metaforicamente como futebol e guerra. Como vimos, o futebol é uma atividade que está intrinsecamente ligada à cultura brasileira, ao passo que a guerra liga-se à própria historia da humanidade, o que facilita o estabelecimento de relações entre os domínio-fonte futebol/ guerra e o domínio-alvo eleição. Tal como proposto por Lakoff e Johnson (2002), a metáfora não se limita à literatura e está presente na linguagem cotidiana. Ressaltamos, no entanto, que sua presença não só traz os conceitos social e culturalmente construídos, como também é usada como estratégia linguístico-discursiva para construção do discurso. Além disso, o discurso jornalístico, ao apresentar essas metáforas, favorece a construção da realidade, na medida em que os seus coenunciadores assimilam esses conceitos e os integra à sua vida, evidenciando o caráter ideológico delas. As metáforas, portanto, exercem um papel ideológico no discurso jornalístico. Se, por um lado, as metáforas refletem a concepção do mundo de certa cultura, por outro, podem construir o modo como se conceberá as questões apresentadas de acordo com as intenções do seu enunciador. Uma outra consideração importante diz respeito ao papel constitutivo do uso das metáforas no discurso jornalístico, o qual pode ser percebido de duas formas. Por um lado, o sujeito enunciador, que está inserido na instância de produção, ao manifestar linguisticamente os conceitos metafóricos, interage com os co-enunciadores, participantes da instância de recepção, uma vez que ambos compartilham do mesmo contexto sociocultural. Por outro lado, ainda, tanto o uso de conceitos metafóricos estruturais conhecidos quanto a criação de conceitos metafóricos novos possibilitam a construção do discurso, na avaliação e crítica da notícia, influenciando os efeitos de sentidos. O jornal, que prima pelos seus leitoresconsumidores, usa a metáfora como estratégia linguístico-discursiva, a fim de aproximar-se deles. Há, também, a relevância do discurso relatado para evidenciar a metáfora, sobretudo na temática recortada por nós, eleição. Assim, temos a citação dos ditos dos candidatos que podem ser usados para promovê-los ou prejudicá-los, mas sempre para eximir de responsabilidade o enunciador, bem como para criar a aparência de sua seriedade e distanciamento na produção da notícia. Por fim, gostaríamos de ressaltar o papel do jornal Folha de S. Paulo na cobertura da eleição presidencial de 2006. A Folha dedicou boa parte de suas notícias para esse evento, apresentando, em sua maioria, textos críticos para avaliar o processo eleitoral. Por esse motivo, pôde influenciar a construção da opinião sobre os fatos políticos, demonstrando a pertinência da mídia escrita nesse ponto. Além disso, verificamos que de fato a metáfora não se restringe ao universo literário, estando, sobremaneira, presente no discurso jornalístico.

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Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4 ed. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Tradução: Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006. CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. Tradução Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio: notas do significado social do futebol brasileiro. Revista da USP - Dossiê Futebol, São Paulo, n. 22, junho/julho/agosto. 1994. Disponível em http://www.usp.br/revistausp/22/rev.usp.22.artigo02.pdf. Acesso em 03/03/2008. GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: o caso da Copa de 70. Dissertação de Mestrado (História). São Paulo: PUC-SP, 2006. HELAL, Ronaldo. Passes e impasses: Futebol e cultura de massa no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Tradução Mara Sophia Zanotto (coord.). São Paulo: Educ, 2002. LAKOFF, George e TURNER, Mark. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago: The University of Chicago Press, 1989. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 2. ed. Tradução Freda Indursky. Campinas, SP: Pontes/ Editora da UNICAMP, 1993. ______. Análise de textos de comunicação. Tradução Cecilia P. de Souza-e-Silva, Decio Rocha. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002. NUMERIANO, Roberto. O que é guerra. São Paulo: Brasiliense, 1990. OLIVEIRA, Adilson S. Metáforas em campo: o futebol e sua plurivalência metafórica no jornal Agora São Paulo. Dissertação de Mestrado (Língua Portuguesa). São Paulo: PUCSP, 2004. ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1999. SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007.

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LINGUAGEM E IDEOLOGIA: REFLEXÕES PRELIMINARES Fabiana Andrade Santos* RESUMO Esta pesquisa tem como escopo principal fazer uma análise da ideologia predominante em quatro edições da Revista Boa Forma, dos anos de 2005,2010,1997 e 2007, especificamente, os títulos das reportagens principais de cada exemplar. Para tanto, priorizamos uma abordagem enunciativa/discursiva da linguagem, tendo como âncora as ideias-chave postuladas por Bakhtin, no que se refere à encarnação material do signo linguístico enquanto objeto eminentemente ideológico.Logo, foi utilizado o método qualitativo, já que o tema pesquisado demandou um estudo fundamentalmente interpretativo que nos levou a concluir que a superestrutura, representada pela mídia, através da sua linguagem manipuladora institucionaliza um determinado padrão de beleza que deve ser mimetizado pelo seu real auditório, a saber,as leitoras da Revista Boa Forma. Palavras-chave: Ideologia. Signo.Institucionalização.Boa Forma.Sociedade.

ABSTRACT This research has as main purpose to analyze the prevalent ideology in four editions of the Boa Forma Magazine in the years 2005, 2010, 1997 and 2007, specifically, the titles of major stories of each issue. To this end, we have prioritized a discursive approach of the language, and having as an anchor the key ideas postulated by Bakhtin, in relation to the material embodiment of the linguistic sign as an object eminently ideological. Then, the qualitative method was used, since the researched subject demanded fundamentally an interpretive study that led us to conclude that the superstructure, represented by the media, through its manipulative language institutionalizes a certain standard of beauty that should be mimicked by its real audience, namely the readers of the Boa Forma Magazine. Key-words: Ideology. Sign. Institutionalization. Fitness. Society.

INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é fazer uma análise da importância de se conceber a linguagem numa perspectiva enunciativa/discursiva, levando em consideração o seu aspecto ideológico. Para tanto, inicialmente, abordaremos a concepção formalista da linguagem, cujo fundamento é a teoria saussuriana. Após isso, falaremos da linguagem numa perspectiva enunciativa/discursiva e da relação desta com a ideologia nos reportando às ideias-chave postuladas por Bakhtin (Volochinov), no livro Marxismo e filosofia da linguagem, claro que a partir de tímidos recortes, em função da complexidade das considerações tecidas por esse autor e das dimensões deste estudo. Em seguida, faremos uma análise dos títulos das reportagens principais da Revista Boa Forma correspondentes aos anos de 2005,2010,1997 e 2007 observando qual a ideologia preconizada nos enunciados desses periódicos. Finalmente, na conclusão, teceremos as considerações finais a que chegarmos em função das linha teóricas que foram apresentadas e do corpus analisado. 1 Concepção saussureana de linguagem *

Mestranda em Letras (UFBA) - Professora auxiliar UNEB/Campus XX/Brumado [email protected]; [email protected]; [email protected] 85

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A linguística enquanto ciência teve a sua origem a partir das ideias difundidas pelo paladino Saussure que, apesar de ter participado de outros círculos de abordagem da linguagem, a saber, o dos neogramáticos, separou-se destes mesmo eles tendo questionado os pressupostos tradicionais da prática histórico-comparativa e estabelecido o estudo de imanência das unidades da língua com a introdução da lei fonética como princípio absoluto, ideias também defendidas por Saussure. Porém, tal cisão se deu em função desse grupo não se preocupar em engendrar uma nova metodologia para os estudos linguísticos, a qual priorizasse a criação de uma disciplina para o campo específico de estudo da linguística, preocupação basilar das concepções saussurianas que postularam a cientificidade da linguística. Assim, em 1916, através da publicação do livro Cours de linguistique générale os seus discípulos Baally, Riedliger e Sechehaye difundiram as ideias saussurianas acerca do estudo da linguagem que hodiernamente são o ponto de apoio para toda e qualquer teoria se fundamentar ou concordando ou discordando, tecendo críticas,reproduções e inovações. No Curso de lingüística geral, Saussure desenvolveu conceitos individuais de linguagem – language , língua – langue e fala- parole e foram tais reflexões e divisões que servem de análise para muitos pesquisadores seja do “núcleo rígido” ou dos estudos discursivos. Para esse linguista genebrino (1960, p.16) “a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado”, ele ainda ressalta que ela é heteróclita e multiforme, composta por duas faces, a saber, a língua- social- e a fala – individual-, faces essas indissociáveis, é como se fosse uma moeda com dois lados que fossem inseparáveis, sem possibilidade de cisão. Porém, mesmo apresentando essa definição acerca da linguagem, Saussure afirma que o objeto de estudo da linguística é a língua, um sistema social, eminentemente organizado e composto por regras invioláveis que devem ser analisadas internamente. A esse respeito Saussure(1960,p.17) postula: Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao mundo social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. Mais adiante o linguista genebrino (1960,p.28) ressalta : Cumpre escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente.Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingüística para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingüística da fala. Será, porém, necessário não confundi-la com a Lingüística propriamente dita, aquela cujo único objeto é a língua. Diante do transcrito, é inquestionável a postura e a prioridade da proposta de Saussure. Mesmo reconhecendo que a fala é uma das faces da linguagem e que pode ser investigada ele deixa claro que o objeto da linguística é, especificamente, a língua um sistema gramatical perfeito e inviolável, formado por normas indestrutíveis, peremptórias, que devem ser investigadas observando as suas estruturas constitutivas, numa perspectiva imanente, ou seja, 86

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o estudo da língua pela língua, sem levar em conta os contextos imediato e social, a história os interlocutores etc. Em relação a essas postulações, Bakhtin (2004, p.72) reflete formalizando que esse tipo de estudo induz a um tipo de orientação denominada de “objetivismo abstrato”, uma vez que é um sistema fechado, engessado, em que se prioriza o estudo de normas internas, com regras específicas e invioláveis. Outra informação teórica importante que é apresentada por Saussure (1960, p:21), ainda em relação à linguagem, diz respeito à liberdade que o falante tem de usar a fala nas mais diversas situações sendo ele o seu “dono” e também do caráter individual, eminentemente acessório, dessa outra face da linguagem. A parte psíquica não entra tampouco totalmente em jôgo; o lado executivo fica de fora, pois a sua execução jamais é feita pela massa; é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor, nós a chamaremos fala (parole). No nosso entendimento esse tipo de afirmação é um tanto temerária. Como podemos conceber que o indivíduo pode ter o livre arbítrio para escolher o que falar, já que o mesmo é um sujeito, inserido em um contexto social que institui o que deve ser falado, o momento adequado, e, até mesmo, em algumas situações, com delimitação de tempo e de palavras? Outra questão que também nos aflige e nos impele a considerar é que diante da escolha de Saussure de estudar a língua mesmo reconhecendo a existência da fala e até a possibilidade de se falar de um linguística da fala ele não estaria, intuitivamente e/ou conscientemente, já deixando claro a riqueza e a complexidade de se fazer uma investigação dessa outra face da linguagem? Existem muitas considerações de diversos pesquisadores dos mais variados ramos do saber relacionadas à prioridade dada por Saussure de estudar a língua em detrimento da fala e também de apresentar um estudo imanente da primeira, desconsiderando o contexto, a história, a ideologia etc; porém, mesmo reconhecendo esses hiatos, é inquestionável o grande divisor de águas que existe nos estudos linguísticos antes de Saussure e após Saussure, já que a partir da sua abordagem a linguística ganhou o status de ciência autônoma, considerada em si mesma e por si mesma, numa perspectiva proeminentemente sincrônica. Além disso, Saussure despertou-nos para a necessidade de ser feito um estudo da linguagem levando em consideração as duas faces da moeda numa perspectiva sócio-histórico- cognitiva – interacionista, a partir de um diálogo com outros ramos do saber, com outras disciplinas. Assim é que surgiu o estudo da linguagem numa perspectiva discursiva que partindo de Saussure ou para contradizê-lo ou buscando a complementaridade das suas contribuições propõe um novo olhar para os estudos linguísticos, colocando em xeque , principalmente, o objeto de estudo da linguística da forma como foi projetada pelo “pai da linguística”. 2 Linguagem e ideologia: uma perspectiva enunciativa/discursiva A primeira consideração que achamos relevante ressaltar no estudo da linguagem numa perspectiva enunciativa/discursiva é que de acordo às nossas leituras e pesquisas temos observado que não existe, por parte dos pesquisadores, uma preocupação premente em conceituar a linguagem, a língua e a fala como se fossem categorias estanques e como se fosse possível abordá-las separadamente. É importante ressaltar que os estudos discursivos iniciam as suas considerações acerca da linguagem partindo da concepção saussuriana, mas questionando a inviabilidade de divórcio da língua e da fala e, ao mesmo tempo, a autonomia da linguística enquanto uma ciência que privilegia o estudo das unidades da língua numa abordagem imanente 87

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desconsiderando o processo de compreensão, elaboração e reflexão do sistema linguístico. Entendemos que Bakhtin ( 2004, p.93) afirma que o primordial na tarefa de descodificação, ou seja, compreensão, não consiste no reconhecimento da forma utilizada, no estabelecimento de normatizações e nem muito menos na priorização de uma taxonomia das unidades linguísticas, mas na utilização da língua como uma forma de ação sobre o outro, uma vez que toda enunciação produz efeitos de sentidos, é carregada de ideologia e é produzida para interlocutores concretos, demandando sempre uma réplica independente de estar impressa ou ser verbalizada. Verificamos que o pensamento bakhtiniano (2004, p.113) nos induz a concluir que toda palavra é constituída socialmente e dirigida para interlocutores reais o que pode ser comprovado na transcrição abaixo: Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Outra questão importante que merece ser ressaltada é que o processo de elaboração da enunciação não é um ato individual como foi apregoado pelo “objetivismo abstrato”, nomenclatura utilizada por Bakhtin para designar os estudos da língua numa perspectiva formalista em que se concebe a fala - parole – como o lado individual da linguagem, mas, contrariamente ao que foi abordado pelo estruturalismo saussuriano, a enunciação é um ato elaborado socialmente, é um produto de interação social independente da dimensão da palavra e do contexto onde os interlocutores estão inseridos. Toda enunciação tem uma natureza dialógica, porém, ao mesmo tempo, todo enunciado é único. Isto é, o sujeito constrói o seu conteúdo interior a partir das suas vivências e do diálogo que ele mantém, independente se face a face ou não, com seus interlocutores, mas no momento em que ele materializa a sua ideologia, já que todo signo é ideológico, o que foi verbalizado naquela situação é único e não volta, mesmo que o locutor se esforce para repeti-lo. Essa é, dentre tantas, uma das grandes reflexões feitas por Bakhtin, a materialidade linguística e também o conteúdo interior são sempre perpassados, construídos numa sociedade por pontos de vistas diferentes, ideias gerais, a partir de conhecimentos que foram apreendidos em ambientes formais e informais, explicitado e/ou implicitado por discursos alheios, porém todos os enunciados são irrepetíveis, já que são acontecimentos ímpares. Diferentemente das unidades da língua que não têm um interlocutor, não pertencem a ninguém e não revelam um sentido, uma ideologia. É nessa linha teórica que Bakhtin apresenta o funcionamento real da linguagem. Postulando que (2004,p.123): A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. O supracitado autor ainda nos leva a compreender que todo enunciado comporta uma compreensão responsiva por parte do interlocutor que se esforça para descodificá-lo dando respostas ao locutor com base na sua compreensão e, logo após esse ato, existe uma alternância de sujeitos que muda naturalmente de papel.Logo, ao “concluir” o seu enunciado, 88

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o locutor concede a palavra ao outro esperando uma atitude ativa deste. É imperioso ressaltarmos ainda que a teoria bakhtiniana considera que a elaboração de um enunciado não é monológica, como foi abordado pelos estudos formalistas, mas sim dialógica uma vez que cada enunciado é construído a partir de outros enunciados que fazem parte da história e do contexto social dos interlocutores. Destarte, segundo o pensamento bakhtiniano, observamos que a linguagem é concebida de um ponto de vista histórico-social e os sujeitos são seres sociais que não são “senhores” da sua fala. Essas reflexões nos induzem a apresentar um outro conceito importantíssimo elaborado por Bakhtin que está relacionado à ideologia presente nas construções enunciativas. Construções estas, vale ressaltar, que podem ser verbalizadas ou não. Logo, independentemente de ser materializado linguisticamente, todo enunciado é constituído por um sistema ideológico que traduz o que é predominante em uma dada época, em um dado contexto, em uma determinada instituição. Em relação a isso Bakhtin (2004, p.95) assevera: De fato, a forma lingüística, como acabamos de mostrar, sempre se apresenta aos interlocutores no contexto de enunciações precisas, o que implica sempre um contexto ideológico preciso. Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. Face ao exposto, o autor ( BAKHTIN, 2004,p.112) nos leva a apreender, contrariamente às proposições formalistas, que “não é a atividade mental que organiza a expressão, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”. Para Bakhtin, toda expressão, independentemente de ser exteriorizada, é formulada num contexto social , é na interação verbal, na sociedade, que se dá a tomada de posição que se constrói a ideologia, logo, toda enunciação é ideológica. A simples tomada de consciência pode dispensar uma verbalização mas não dispensa uma dimensão ideológica. Segundo o autor a ideologia pode ser representada pela ideologia do cotidiano e pelos sistemas ideológicos constituídos. Em relação a isso Bakhtin (2004,p.118 e 119) ressalta: Pode-se dizer que não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior, mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis. Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana, assim como a expressão que a ela se liga, ideologia do cotidiano, para distingui-la dos sistemas ideológicos constituídos, tais como a arte, a moral, o direito, etc. A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência. [...] Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia Diante do que foi discutido fica claro podermos entender que a ideologia do cotidiano é construída socialmente pelo sujeito e é determinada pelos sistemas ideológicos oficiais. Logo, o nosso conteúdo interior, a nossa tomada de consciência ou a materialidade desse 89

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conteúdo são elaborados dentro de uma organização social, assim, a seiva da sua carga ideológica foi engendrada a partir de instituições oficialmente organizadas que preconizam, sorrateiramente, a elaboração da nossa atividade mental. É interessante essa reflexão porque isso vai de encontro, segundo a nossa ótica, sobre o que foi formalizado por Saussure( 1960,p.22) acerca da fala como “um ato individual de vontade e inteligência” do indivíduo. Entendemos que a fala é um produto social carregado de tudo que a sociedade institucionaliza, não temos como fugir desse fato, nessa perspectiva, observamos ainda a inviabilidade de tecermos considerações acerca da linguagem dispensando a faceta ideológica. 3 Análise do corpus Todo e qualquer enunciado por mínimo que seja traz marcas de uma ideologia predominante que é determinada pela infra-estrutura, ou seja, as bases sócio-econômicas determinam a carga ideológica da superestrutura que, por conseguinte, sendo representada pela classe dominante, perpetua os seus valores sociais. No caso do signo “linguístico”, observa-se que na sua materialização é refletida a ideologia institucionalizada por esse grupo social. A esse respeito Bakhtin (2004, p.45) postula : Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições sócioeconômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual; somente então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social. Essa passagem é por demais oportuna, pois ela, além de coadunar com o comentário citado no primeiro parágrafo, nos leva a ratificar que, diferentemente da concepção formalista da linguagem, que restringe a análise das unidades linguísticas a uma abordagem gramatical, fazendo um “estudo” mecanicista dos constituintes – fonemas e/ou morfemas - presentes naquele sinal (já que para Bakhtin se o interlocutor não se dispuser a compreender, a interagir com o signo, através de uma réplica, por exemplo, ele não passará de um sinal), o trecho em destaque postula mais uma vez a inexistência da autonomia do indivíduo e a indissociabilidade do signo com o seu material ideológico, que só pode ser construído dentro de um corpo social. Tendo como âncora também a afirmação de que “ tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”. (BAKHTIN, 2004,p.31) , ao procedermos a uma análise preliminar dos principais enunciados, ou seja, dos títulos das reportagens principais da Revista Boa Forma dos anos 2005, 2010, 1997 e 2007 pudemos verificar que no primeiro anúncio do ano 20, n.6, edição:216 , junho 2005,p.56, a saber, “Adriane Galisteu a corrida enxuga este corpinhho” foi materializado através dos signos corrida, enxuga e corpinho uma ideologia que nos leva a pressupor qual tipo de corpinho está sendo propagado pelo publicitário, independentemente de termos acesso à foto da modelo, a única descodificação possível é que Adriane está muito magra, já que o signo corpinho apesar de ser empregado no diminutivo traz marcas de uma avaliação apreciativa positiva, ou seja,é banhado pela ideia de que se refere a algo valorativo, e ser magro, hodiernamente, na nossa sociedade, tem como conotação saúde, estar bem, beleza, produção, modernidade etc . Em relação a “enxuga” entendemos que Adriane não possui nenhum excesso de gordurinha, a barriga está chapada, ela está completamente esguia e está autorizada a exibir todas as suas 90

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formas, já a palavra “corrida” nos incita a interpretar a necessidade de serem realizados exercícios físicos para aquisição do que se institucionaliza como padrão de corpo perfeito, ou seja, padrões de medida institucionalizados por uma superestrutura que, nesse caso, é representada pela mídia. Essa reflexão pode ser também ratificada na análise do anúncio do próximo periódico do ano 25, n.6, edição:280 , junho 2010, p.78, que é representado pelo enunciado “Carol Castro beleza iluminada. Recém-casada, linda e de volta às novelas, a atriz dá um show pelo seu jogo de cintura ao conciliar carreira, amor, malhação e vida pessoal. Conheça seus truques para enfrentar o dia a dia com muita leveza e inspire-se!” , já que mais uma vez, considerando o momento histórico e a situação concreta da enunciação que foi materializada pelas palavras “leveza”,”malhação” e “inspire-se”, a linguagem publicitária veicula a sua ideologia de que o corpo perfeito, a boa forma, só pode ser exibida por quem possui um corpo esbelto e que, para conseguir tal feito, o seu auditório concreto deve inspirar-se em Carol, adotando um comportamento mimético , ou seja, malhar a fim de chegar ao padrão de corpo que a atriz possui e/ou voltou a possuir a fim de, certamente, posar para a Revista Boa Forma e exibir as formas ditadas pela linguagem publicitária. Verificamos que tais palavras foram utilizadas com uma função específica, elas foram engendradas nesse contexto com o objetivo de apregoar uma determinada ideologia. A esse respeito Bakhtin (2004, p.36) coloca: A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social . Outra questão relevante a ser considerada nas palavras utilizadas pelo produtor da reportagem diz respeito ao que Bakhtin reflete acerca do signo neutro, ou seja, da “neutralidade” das palavras o que significa dizer que “qualquer” palavra pode ser escolhida pelo locutor para que em um contexto específico ela passe a desempenhar o tema que esse deseja naquela situação ad hoc. Isso pode ser observado no signo “leveza” que nessa situação traz a conotação não só da tranquilidade e do equilíbrio da atriz diante das atividades desempenhadas por ela no seu dia a dia, como também, intencionalmente, pode receber a carga temática de que a mesma encontra-se magra, leve, sem excesso de peso, exibindo um padrão de corpo em consonância ao estabelecido pela mídia, sem precisar esforçar-se tanto. Destarte a palavra leveza, ao ser materializada nesse contexto, está assumindo uma função ideológica que poderá ser diferente em outra situação. O próximo anúncio a ser analisado da Revista Boa Forma é do ano 22, n.10, edição:45 , outubro 2007, p.89 e traz como título principal “ A nova Paola - 6 quilos e uma barriga de dar inveja”. Podemos concluir que esse enunciado reflete uma realidade de mudança, de transformação pela qual a atriz passou e carrega a ideologia de que a nova Paola é invejada e/ou deverá despertar inveja, porque não tem barriga e perdeu 6 quilos, aliás, nesse enunciado o leitor não precisa fazer inferências acerca dessa significação, já que os sinais que foram convertidos em signos ideológicos, a saber, “- 6 quilos”, “barriga” e “inveja”, nesse contexto, já pressupõem essa compreensão. É interessante ressaltar ainda, recobrando inclusive o que foi exposto na análise do anúncio anterior, que a intenção do produtor da matéria é também através da palavra “inveja” induzir, seduzir o seu real interlocutor a mimetizar a atitude de Paola, ou seja, emagrecer para que as suas formas sejam aceitas pelo corpo social. Finalmente, no último periódico analisado que se refere ao ano 12, n.4, edição:118, abril 1997, p.30, cuja ideologia foi materializada a partir do enunciado “ Xuxa em busca do equilíbrio : Ninguém tem dúvidas de que ela já conquistou seu lugar ao sol. Mas agora Xuxa quer mais. Aos 34 anos, cheia de planos para o futuro, está preocupada como nunca em 91

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manter a forma. “Quero estar bem para curtir as coisas boas da vida” observamos que a ideia premente diz respeito à necessidade que Xuxa tem, por já ter passado dos trinta anos, em manter a forma do seu corpo, o padrão que ela já conseguiu e que precisa ser mantido, pois essa é uma condição sine qua non para que a apresentadora tenha condições de “curtir as coisas boas” que a vida lhe proporcionará. Entendendo a necessidade de ser feita sempre “uma análise profunda e aguda da palavra como signo social” ( BAKHTIN, 2004 ,p.37) compreendemos que a palavra “bem”, dentro de um determinado contexto social, ou seja, concretizado numa situação em que a época e a sociedade reivindicam apenas um único tipo de estética corporal, não está diretamente relacionada com a qualidade de vida da apresentadora, mas sim com a sua boa forma, ou seja, estar sempre esbelta, magra. Podemos ainda verificar que nas quatro edições que foram analisados os enunciados, todos estão marcados ideologicamente pela luta das modelos por um corpo esguio, esse é o objetivo individual e social que foi formalizado, logo, verificamos que a ideologia é marcada por uma individualidade que só pode ser construída numa sociedade. Em relação a isso Bakhtin (2004, p.59) aborda que : Todo produto a ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da individualidade, é social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após essa reflexão entendendo que hodiernamente não tem como pensarmos na linguagem sem visualizarmos a relevância da sua ação sobre o homem, visto como um sujeito inserido numa sociedade e historicamente constituído, percebemos a necessidade de uma abordagem e análise enunciativa/discursiva da mesma que reflita sobre a sua constituição ideológica . Vemos que a pós-modernidade reivindica uma postura responsiva dos interlocutores e tal posicionamento só é possível entendendo que todo e qualquer enunciado é dialogicamente constituído. Mesmo reconhecendo a importância de uma análise imanente da língua, isso não deve, em hipótese alguma, prescindir uma reflexão que considere o funcionamento da linguagem em situações concretas, já que todo discurso reproduz um ato de fala que é orientado em função dos interlocutores e do contexto em que o mesmo encontra-se inserido, logo, o enunciado de todo e qualquer indivíduo está eivado por ideologias que mesmo não sendo materializadas, não são construídas na sua consciência mas dentro de uma sociedade, refletindo então a sua ideologia .

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REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov).Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. Boa Forma. São Paulo.Editora Abril, ano 20, edição 216, n. 6, junho 2005, p.56. Boa Forma. São Paulo.Editora Abril, ano 25, edição 280, n. 6, junho 2010, p.78. Boa Forma. São Paulo.Editora Abril, ano 22, edição 245, n. 10, outubro 2007, p.89. Boa Forma. São Paulo.Editora Abril, ano 12, edição 118, n. 4, abril1997, p.30. SASSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini et al.São Paulo: Cultrix,1960 (Título original, 1916).

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A SEMÂNTICA E A RELAÇÃO ENTRE LINGUÍSTICA E ANÁLISE DO DISCURSO Fábio Araújo Oliveira*

Neste trabalho, analisamos o “lugar” da semântica na Análise do Discurso, através da abordagem da presença da linguística na articulação do quadro epistemológico da Análise Automática do Discurso (AAD). Para isso, utilizamos o artigo “A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas (1975)”, publicado pela primeira vez no número 37 da revista francesa Langages e escrito por Michel Pêcheux e Catherine Fuchs. Desse texto, trabalhamos com a primeira parte, a mais teórica e a que apresenta novidades para a teoria do discurso. Nela, os autores afirmam que o papel da semântica constitui um problema para a análise linguística, que é uma fase de análise imprescindível na AAD, já que a língua é o lugar material em que se realizam os efeitos de sentido. Assim, eles fazem atualizações sobre essa questão, reelaborando, inclusive, um conceito-chave da Semântica, a enunciação. Tal reelaboração interessa-nos para compreendermos a construção do “efeitosujeito”, que se realiza na língua. Entretanto, o problema que se coloca é a ausência do desenvolvimento de uma teoria para explicar a precedência e o domínio do “não-afirmado” sobre o “afirmado” na língua, já que essa precedência e esse domínio são evocados no texto. Palavras-chave: Semântica. Análise do Discurso. Lingüística. Psicanálise. Efeito-sujeito.

ABSTRACT Taking into account the presence of Linguistics in the method of Automatic Discourse Analysis (ADA), this paper focuses on analyzing the “place” of Semantics in the Discourse Analysis theory. Our reflections ara based on the article “A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas (1975)” by Michel Pêcheux and Catherine Fuchs, which was first published in the French magazine Langages. We selected the first part of this text, which is the most theoretical part and the one introduces new aspects for the discourse theory. According to the authors, the role of semantics represents a problem for linguistic analysis, which is an essential step of the analysis in the ADA, once the language is the place where the effects of meaning take place. As a result, they update the subject and propose a new definition for a key concept of semantics, the becomes real in the language. However, the problem is the absence of a theory that explains the precedence and the power are dealt with in the text. Key-words: Semantics. Discourse Analysis. Linguistics. Psychoanalysis. Subject-Effect.

Introdução A Análise do Discurso de Pêcheux foi construída a partir do confronto de três áreas diferentes de conhecimento: a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo, formando uma espécie de Tríplice Aliança. Através da releitura de Marx feita por Althusser, da releitura de Freud por Lacan, e da releitura do estruturalismo linguístico de Saussure feita pelo próprio Pêcheux, a

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Mestre em Letras e Linguística/ UFBA - Doutorando em Linguística/ Unicamp - [email protected] 65

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Análise do Discurso nasceu tentando suprimir faltas que cada uma dessas áreas possuía isoladamente, porque cria um objeto que está na fronteira de todas elas: o discurso. Se ao Marxismo faltava a materialidade linguística e o inconsciente na abordagem da ideologia, se à Linguística faltava a ideologia e o inconsciente na abordagem da língua, e se à Psicanálise faltava a ideologia na abordagem do inconsciente, o discurso pretendia resolver tais falhas, já que tocava nas três dimensões: ele é ideológico, é afetado pelo inconsciente e possui materialidade linguística. Dessa forma, não sendo nem Linguística, nem Psicanálise, nem Marxismo, a Análise do Discurso era um novo campo de conhecimento fechado em si mesmo, mas que aliava essas três áreas. Entretanto, a abordagem psicanalítica na teoria em questão não se dá de forma tranquila; ao contrário, ela instaura fissuras nesse novo campo teórico, principalmente no que diz respeito à questão do sujeito, da subjetividade. Toda a obra de Pêcheux é marcada por inquietações e questionamentos provocados pelo saber psicanalítico, principalmente da produção lacaniana, conforme analisaremos a seguir, no artigo A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas (1975), publicado pela primeira vez no número 37 da revista francesa Langages e escrito por Michel Pêcheux e Catherine Fuchs (In: GADET e HAK, 1997). Desse texto, trabalhamos com a primeira parte, a mais teórica e a que apresenta novidades para a teoria do discurso. Segundo Maldidier (2003, p. 38), essa seria a parte pertencente a Michel Pêcheux.

Análise Automática do Discurso, Linguística e Psicanálise No artigo “A propósito da Análise Automática do Discurso(...)”, Pêcheux e Fuchs (In: GADET e HAK, 1997) reafirmam que a linguística é uma das regiões do conhecimento utilizada na articulação do quadro epistemológico geral da Análise Automática do Discurso (AAD). Nesse quadro, essa região é entendida “como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo.” (ibidem, p. 163) As outras duas regiões são o materialismo histórico e a teoria do discurso. Todas elas são articuladas e atravessadas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica. Nesse texto, o recurso à Psicanálise para intervir no quadro epistemológico da AAD permite aos autores a reformulação da questão do efeito leitor como constitutivo da subjetividade. Em outras palavras, conforme nos encaminha Leite: O recurso à Psicanálise se faz, neste momento, sob o signo de uma resposta à questão fundamental de como se constitui a ilusão subjetiva, possibilitando, deste modo, a relação do ideológico com o discursivo e deste com o lingüístico. Mais ainda, a teoria psicanalítica se apresenta como o dispositivo teórico científico capaz de garantir o atravessamento do efeito-sujeito.(LEITE,1994, p. 138) Entretanto, se na psicanálise os autores encontram fundamentação para analisarem a constituição da subjetividade na língua, o que se evidencia através da noção da AAD de esquecimento número 1, é na linguística que encontram fundamentação para analisarem as formas subjetivas da realização dessa constituição, o que se evidencia em outra noção, a de esquecimento número 2. Sabendo do lugar da linguística na AAD delineado no número 37 de Langages, interessa-nos analisar a relação entre tais áreas de conhecimento, o que implica em uma abordagem sobre Semântica e Enunciação.

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Análise Automática do Discurso e Semântica Em “A propósito da Análise Automática do Discurso(...)”, é apresentado um problema central na relação entre linguística e Análise Automática do Discurso, que é o “lugar” da semântica na análise linguística. O dispositivo da AAD pressupõe uma fase de análise linguística, já que ele parte de corpus discursivo para evidenciar os traços dos processos discursivos, e este corpus está, é claro, em língua natural. Obviamente, a escolha da prática de análise linguística define previamente a natureza e o papel da língua. Na perspectiva da teoria do discurso, a língua é entendida em sua relação com os processos discursivos. Sobre isso, os autores afirmam que: (...) estando os processos discursivos na fonte de produção dos efeitos de sentido, a língua constitui o lugar material onde se realizam estes efeitos de sentido. Esta materialidade específica da língua remete à idéia de “funcionamento” (no sentido saussuriano), por oposição à idéia de função. A caracterização desta materialidade constitui todo o problema da linguística. ( Pêcheux e Fuchs In: GADET e HAK, 1997, p. 172) (grifo dos autores) Entretanto, a fase de análise linguística, pressuposta pela AAD para sua análise nãosubjetiva dos efeitos de sentido, apresentava problemas. É neste ponto que a semântica entra em foco, já que “a questão gira em torno do papel da semântica na análise lingüística.” (ibidem, p. 172) (grifo dos autores) Um dos problemas era o fato de a análise linguística da AAD ser de natureza morfossintática, permitindo, assim, a des-linearização especificamente linguística dos textos, mas as condições desta análise estavam definidas sem clareza, e o recurso a um semantismo implícito sempre estava presente na análise. Outro problema era considerar que sintaxe e semântica, de um lado, e léxico e gramática, de outro, constituíam níveis distintos, quando, por exemplo, regras sintáticas aplicadas na fase linguística da AAD recorriam a recursos não controlados de sentido. Ao reavaliarem tais problemas, os autores nos dizem que: O que falta atualmente é uma teoria do funcionamento material da língua em sua relação consigo própria, isto é, uma sistematização que não se opõe ao não sistemático (língua/fala), mas que se articula em processos. Se convencionamos chamar “semântica formal” à teoria deste funcionamento material da língua, pode-se dizer que o que falta à análise linguística é precisamente essa semântica formal que não coincide de modo nenhum com a “semântica discursiva” (...). A expressão “semântica formal” (...), que definiremos adiante como o último nível de análise linguística, atingiria, neste sentido, o lugar específico da língua, que corresponde à construção do efeito-sujeito. (ibidem, p. 173-4) Como a AAD pretende “atravessar o efeito-sujeito”, caberia a ela aferir onde se dá esse atravessamento na língua. Isto remete necessariamente a outro problema, a questão da enunciação, o que mantém a semântica em foco.

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A Enunciação Para Pêcheux e Fuchs, a dificuldade das teorias de enunciação está na reprodução por elas da “ilusão necessária construtora do sujeito”, ou seja, “elas se contentam em reproduzir no nível teórico esta ilusão do sujeito, através da ideia de um sujeito enunciador portador de escolhas, intenções, decisões etc” (ibidem, p. 175) (grifo dos autores). Tal abordagem é encontrada nos trabalhos de Bally, Jakobson e Benveniste. Nessa perspectiva, a enunciação é entendida como a relação necessariamente presente entre enunciador e seu enunciado. Contra essa abordagem, os autores reformulam o conceito de enunciação e introduzem modificações na concepção de língua. Para eles, (...) os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o “dito” e em conseqüência rejeitar o “não dito”. A enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre o que é “selecionado” e tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o “universo do discurso”), e o que é rejeitado. (ibidem, p. 176) Assim, o estudo das marcas de enunciação, que deve constituir uma etapa importante da fase linguística, nos conduz a uma concepção de língua em que: * o léxico não é simplesmente um “estoque de unidades lexicais”, mas um “conjunto estruturado de elementos articulados sobre a sintaxe”. * a sintaxe não é o domínio neutro de regras formais, mas o modo de organização dos traços das referências enunciativas. Além disso, o estatuto da enunciação é definido também através da “teoria dos esquecimentos” elaborada pelos autores, conforme verificaremos a seguir.

A teoria dos esquecimentos Pêcheux e Fuchs (ibidem) apresentam, nesse artigo, dois tipos de esquecimentos. O esquecimento número 1 refere-se à “ilusão subjetiva”, ou seja, ao fato de o sujeito falante acreditar que, por ser consciente, ele é a origem dos sentidos de sua produção verbal. A construção dessa ilusão relaciona-se com uma definição de enunciação, conforme nos mostram os autores: Se definirmos a enunciação como a relação sempre necessariamente presente do sujeito enunciador com o seu enunciado, então aparece claramente, no próprio nível da língua, uma nova forma de ilusão segundo a qual o sujeito se encontra na fonte do sentido ou se identifica à fonte do sentido. (ibidem, p. 174) No entanto, para os autores a subjetividade na língua é constituída pelo esquecimento número 1, uma zona inacessível ao sujeito. Em outras palavras, a subjetividade é fundada em uma recalque daquilo que a constitui, e esse recalque é de natureza inconsciente, “no sentido em que a ideologia é constitutivamente inconsciente dela mesma.” (ibidem, p. 177) Tal recalque possui, ao mesmo tempo, o processo discursivo e o interdiscurso como seus objetos. A esse último objeto, o interdiscurso, o esquecimento número 1 articula-se por relações de contradição, submissão ou de usurpação. O interdiscurso é definido, em uma nota, como “o 68

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„exterior específico‟ de um processo discursivo determinado (...), isto é, os processos que intervêm na constituição e na organização deste último.” (ibidem, p. 239, nota 29) Acreditamos que o esquecimento de que se trata na noção de “esquecimento número 1” refere-se a uma exterioridade jamais conhecida pelo sujeito, que por isso mesmo não pode ser produzida verbalmente. Isso relaciona tal noção à noção psicanalítica de real. Essa é, por exemplo, a compreensão de Leite a respeito da questão, conforme mostramos a seguir: O termo esquecimento, conforme apontado em nota de rodapé no texto de 75, não remete a um problema de memorização, de ordem individual. O autor [Pêcheux] faz notar que ele designa paradoxalmente “aquilo que jamais foi sabido”, apontando, deste modo, para a dimensão de um saber impossível. Mais ainda, o autor comenta que o sujeito “falante” mantém com este saber uma relação de “estranha familiaridade”, típica da relação que mantém com as causas que o determinam, em toda ignorância de causas. Este esclarecimento faz coincidir o esquecimento com a definição mesma de inconsciente no seu estatuto de real. (LEITE, 1994, p. 145) Assim, o interdiscurso, objeto do esquecimento número 1, seria afetado por um saber impossível, ou seja, a exterioridade dos processos discursivos que os determina se articularia a uma exterioridade de um saber impossível. A respeito dessa articulação, os autores não desenvolveram uma teoria que possibilitasse uma análise de dados. Conforme Pêcheux e Fuchs, o esquecimento número 1 regula as relações estabelecidas no “esquecimento número 2”. Além disso, é neste último que se situam as formas subjetivas, materializadas em língua, que possibilitam a realização da existência (não subjetiva) da ilusão subjetiva, sobre a qual já nos referimos na abordagem da noção de esquecimento número 1. Para os autores, o esquecimento número 2 diz respeito ao efeito de ocultação parcial do “não dito” em relação ao “dito” pelo sujeito, o que faz ele pensar que sabe exatamente o que diz. Assim, essa zona de número 2 é a dos processos de enunciação, sobre a qual já abordamos. Isso significa que é nesta zona que se pode realizar o trabalho de análise linguística, a fim de constatar marcas na língua do atravessamento do efeito-sujeito. Ao contrário do que ocorre no esquecimento número 1, o sujeito pode penetrar conscientemente na zona de número 2, por meio de reformulações. A oposição entre os dois tipos de esquecimento, segundo os autores, relaciona-se à oposição entre situação empírica concreta do sujeito, marcada pela identificação imaginária do “eu”, em que o outro, inclusive, é um outro “eu”, e o processo de interpelaçãoassujeitamento do sujeito, que se dá por meio do “Outro”, na concepção lacaniana do termo. Leite, a respeito dessa oposição, nos encaminha a uma compreensão de que: (...) a diferenciação dos tipos de esquecimento, bem como a tentativa de articulá-los, é correlativa da distinção entre o plano de assujeitamento inaugural (condição de existência) e o plano das atualizações de subjetividades constituídas. Com isto apontamos que aquilo que Pêcheux denominou de esquecimento nº 1 corresponde ao que na teoria psicanalítica recobre o conceito de recalque originário, o qual está indissociavelmente ligado ao recalque secundário ou retorno do recalcado, que na teoria do discurso remete ao esquecimento número 2. (LEITE, 1994, p. 146) A autora, entretanto, identifica alguns problemas nesta aproximação, mas não 69

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abordaremos isso neste trabalho.

Conclusão As atualizações e reelaborações feitas no artigo A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas (1975) interessam-nos para compreendermos a construção do “efeito-sujeito”, que se realiza na língua. Entretanto, o problema que se coloca é a ausência do desenvolvimento de uma teoria para explicar a precedência e o domínio do “não-afirmado” sobre o “afirmado” na língua, já que essa precedência e esse domínio são evocados no texto. Como acreditamos que tal questão está relacionada também à Psicanálise, mesmo os autores recorrendo a ela e desenvolvendo a Teoria dos Esquecimentos, não há no artigo o desenvolvimento de uma teoria que contribua para o entendimento do “não afirmado” situado numa zona inacessível ao sujeito, como é a zona do esquecimento no. 1. Dessa forma, os autores esquecem de nos fornecer instrumentos para compreendermos como se processa, na enunciação, os efeitos do inconsciente. Assim, apesar da AAD pretender nela própria um atravessamento de uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, na verdade é a própria presença da Psicanálise que lhe abre uma fissura.

REFERÊNCIAS

LEITE, N. Psicanálise e análise do discurso: o acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1994. MALDIDIER, D. (Re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2003. PÊCHEUX, M. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas (1975). In: GADET, F. e HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani... [ET AL.] 3 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.

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AS EXPRESSÕES LINGUÍSTICAS METAFÓRICAS E METONÍMICAS COMO RECURSO MODALIZADOR NA NOTÍCIA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Gabriel Domício Medeiros Moura Freitas* Lucienne Claudete Espíndola**

O presente artigo, resultado de uma pesquisa vinculada ao Laboratório Semântico-Pragmático de Textos (LASPRAT)1, investiga a função semântico-argumentativa das expressões linguísticas metafóricas e metonímicas encontradas em notícias de divulgação científica. Como referencial teórico para essa investigação, recorremos às contribuições teóricas de autores como Lakoff e Johnson (2002[1980]), Lakoff e Johnson (2003), Barcelona (2003), Espíndola (2007), Castilho e Castilho (1993), Cervoni (1989) e Nascimento (2009). Nessa pesquisa, se verifica, por meio da Teoria da Modalização, como as metáforas e as metonímias conceptuais são utilizadas como estratégia argumentativa por quem se responsabiliza pela redação das notícias de divulgação científica. Os resultados analisados neste trabalho são comparados com aqueles encontrados por Lima (2008) sobre a notícia policial. Palavras-chave: notícia de divulgação científica, metáforas/metonímias, modalização. This article is related to “Laboratório Semântico-Pragmático de Textos (LASPRAT)” and investigates the semantic-argumentative function of metaphorical and metonymical expressions which were found in scientific divulgation news. We have used for this investigation contributions from authors such as Lakoff e Johnson (2002[1980]), Lakoff e Johnson (2003), Barcelona (2003), Espíndola (2007), Castilho e Castilho (1993), Cervoni (1989) and Nascimento (2009). This work analyses throughout the Modalization Theory how conceptual metaphors and conceptual metonymies are used as argumentative strategy for those who are responsible to write scientific divulgation news. The results which are analyzed in this research are also compared with the analysis made by Lima (2008) on her study about police news. Keywords: scientific divulgation news, metaphors/metonymies, modalization. 1. METÁFORA/METONÍMIA CONCEPTUAIS: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Desde os pré-socráticos até a contemporaneidade, a tradição do pensamento ocidental tem por fundamento defender a ideia de que podemos construir verdades absolutas e incondicionais a respeito da realidade em que nos encontramos inseridos, seja por meio de uma capacidade racional inata, como defendem os racionalistas, seja por meio dos sentidos e sensações, como postulam os empiristas, ou ainda mediante a combinação de ambas as faculdades, conforme defende o filósofo alemão Immanuel Kant ao longo de suas obras. Nesse contexto, as metáforas são comumente entendidas por filósofos e outros autores alinhados com essa tradição do pensamento ocidental como meros ornamentos de linguagem e, portanto, consideradas apenas figuras de linguagem cuja natureza não permite enunciar verdades de forma direta, a não ser indiretamente por meio de alguma paráfrase não metafórica supostamente literal.

*

Mestrando em Letras – UFPB – Bolsista CNPq - [email protected] Doutora em Linguística – UFPB - [email protected]

** 1

Laboratório vinculado ao DLCV e ao PROLING e coordenado pela professora Lucienne C. Espíndola. 52

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Com o objetivo de questionar esse estado de coisas defendido por essa tradição do pensamento ocidental, Lakoff e Johnson (2002[1980]) lançam a obra Metaphors we live by, na qual defendem a tese de que acreditar na existência de uma verdade absoluta e objetiva é não somente um erro, mas também um perigo social e político, pois o que entendemos como verdade é sempre relativo a um sistema conceptual construído, em grande medida, por meio de metáforas. Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 293) não pretendem com essa afirmação defender um retorno à subjetividade e à arbitrariedade ao modo do personagem Humpty Dumpty de Alice através do espelho, de Lewis Carroll, em que cada coisa significa exatamente o que se quer que ela signifique, nem mais, nem menos. Ao contrário, os referidos autores consideram um equívoco conceber que a única alternativa possível aos postulados objetivistas seja a subjetividade radical, sem com isso se pensar na possibilidade de uma terceira via que constitua um legítimo contraponto aos mitos do objetivismo e do subjetivismo. Vale salientar que o termo „mito‟ não é usado aqui pejorativamente, pois Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 294) entendem que os mitos organizam as nossas vidas e nos oferecem referenciais para a compreensão das experiências. Assim, tal como ocorre em relação às metáforas, (...) os mitos são necessários para fazer sentido do que se passa ao nosso redor. Todas as culturas têm mitos e as pessoas não podem viver sem eles assim como não podem viver sem a metáfora. E assim como consideramos freqüentemente as metáforas de nossa cultura como verdades, do mesmo modo também consideramos freqüentemente os mitos de nossa cultura como verdades. (LAKOFF E JOHNSON, 2002[1980], p. 294).

Nesse sentido, os dois autores denunciam o mito do objetivismo como perigoso, uma vez que este, além de não se afirmar como um mito, rebaixa e menospreza os mitos e metáforas por não considerá-los objetivamente verdadeiros. No decorrer desse processo, o mito do objetivismo deixa de perceber que nem mesmo ele é em si mesmo objetivamente verdadeiro. Tal constatação, todavia, não deve transformá-lo em motivo de desconsideração, mas sim de exame e compreensão a seu respeito. O que o mito do objetivismo deixa de reconhecer, portanto, é que a verdade está relacionada ao nosso sistema conceptual, o qual é construído e constantemente testado por meio das nossas experiências e das vivências de outros integrantes da cultura a que pertencemos, seja por meio de nossas interações diárias ou pelo contato constante com os ambientes físico e cultural nos quais estamos inseridos. Por outro lado, o subjetivismo, ao defender que a verdade somente pode ser alcançada por meio de uma imaginação alheia a quaisquer restrições de ordem externa, apresenta-se como oposição ao objetivismo por acreditar que, defendendo as emoções, o conhecimento intuitivo, a imaginação, os sentimentos humanos e a arte, estaria denunciando os valores desumanizados da razão, da ciência e da objetividade. Para Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 302), essa postura adotada pela tradição romântica, partidária do mito do subjetivismo, apenas reforçou a dicotomia entre razão e verdade, de um lado, e imaginação e arte, do outro, pois, ao abdicarem de qualquer valorização da racionalidade, os românticos acabaram por fazer o jogo do mito do objetivismo, conferindo-lhe ainda mais poder desde então. Essas limitações apresentadas pelos mitos do objetivismo e do subjetivismo fundamentam a proposta de Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 302) de voltarem suas atenções para a metáfora, uma vez que esta não se fundamenta em uma oposição entre razão e imaginação. A razão, no mínimo, envolve a categorização, a implicação, a inferência. A imaginação, em um dos seus muitos aspectos, implica ver (sic) um tipo de coisa em termos de um outro tipo de coisa o que denominamos pensamento metafórico. A metáfora é, pois, uma racionalidade imaginativa. Como as categorias de nosso 53

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pensamento cotidiano são largamente metafóricas e os nossos raciocínios diários envolvem implicações e inferências metafóricas, a racionalidade ordinária é, pois, imaginativa por natureza. (LAKOFF E JOHNSON, 2002[1980], p. 302, grifo do autor).

Assim, a abordagem experiencialista proposta pelos referidos autores permite que se estabeleça uma relação entre os mitos objetivista e subjetivista no tocante à imparcialidade e à possibilidade de ser justo e objetivo. O recurso por meio do qual ambos os mitos se conciliam, sem uma necessária exclusão mútua, é a utilização da metáfora, aqui entendida como apresentando uma natureza conceptual, uma vez que é responsável por estruturar, em grande medida, os sistemas conceptuais das mais diversas culturas conhecidas. A metáfora é um dos mais importantes instrumentos para tentar compreender parcialmente o que não pode ser compreendido em sua totalidade: nossos sentimentos, nossas experiências estéticas, nossas práticas morais e nossa experiência espiritual. Esses esforços da imaginação não são destituídos de racionalidade; como se utilizam da metáfora, empregam uma racionalidade investigativa. (LAKOFF E JOHNSON, 2002[1980], p. 303).

Percebe-se pois, a partir da caracterização do mito experiencialista proposto por Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 302-304), que os mitos do objetivismo e do subjetivismo ignoram o modo de compreendermos o mundo mediante a nossa interação com o mesmo. Desse modo, se por um lado o objetivismo desconsidera a evidência de que a verdade é necessariamente relativa a um sistema conceptual e de que este apresenta natureza metafórica, envolvendo a compreensão imaginativa de uma coisa em termos de outra; por outro o subjetivismo ignora tanto a circunstância de que nossa compreensão, mesmo a mais imaginativa, ocorre em termos de um sistema conceptual construído por meio de nossa inserção em determinados ambientes físicos e culturais quanto à constatação de que a compreensão metafórica está relacionada à implicação metafórica, constituindo esta, por sua vez, uma forma imaginativa de racionalidade. Lakoff e Johnson (2002[1980]) classificaram as metáforas conceptuais em três tipos: estruturais, orientacionais e ontológicas. As metáforas estruturais ocorrem naqueles casos em que um conceito abstrato é estruturado metaforicamente em termos de outro de natureza concreta. Exemplo disso pode ser observado na metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA, pois aqui a discussão, enquanto conceito mais abstrato, é estruturado a partir do conceito de guerra, enquanto conceito mais concreto. Assim, verifica-se nesse caso a estruturação de um domínio-alvo (a discussão) por um domínio-fonte (a guerra). Esse processo de estruturação de um domínio pelo outro ocorre por meio do mapeamento de algumas características do domínio-fonte que ajudam a entender o conceito relativo ao domínio mais abstrato. A escolha dos elementos que serão mapeados do domínio-fonte ao domínio-alvo obedece ao seguinte critério imprescindível: (...) “ „Não mapeie um elemento caso ele gere uma contradição no domínio-alvo.‟ ”2 (LAKOFF apud LAKOFF E JOHNSON, 2003, p. 254, tradução nossa). As metáforas orientacionais, por sua vez, não são definidas como um conceito estruturado metaforicamente em termos de outro, mas sim por organizar todo um sistema de conceitos em relação a outro. Assim, as metáforas orientacionais estão relacionadas a orientações espaciais do tipo para cima – para baixo, dentro – fora, frente – trás, em cima de – fora de (on-off), fundo – raso, central – periférico. As orientações espaciais, portanto, decorrem das características dos corpos que temos e da forma como eles funcionam no ambiente físico que nos circunscreve. Desse modo, para Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 59 e 60), as metáforas orientacionais conferem a um conceito uma orientação espacial. Exemplo disso pode ser observado no caso das metáforas 2

(…) “Don´t map an element if it would give rise to a contradiction in the target domain.” (LAKOFF apud LAKOFF E JOHNSON, 2003, p. 254). 54

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conceptuais FELIZ É PARA CIMA, TRISTE É PARA BAIXO, que são atualizadas por expressões linguísticas como “Estou me sentindo para cima”, “Meu astral subiu”, “Estou me sentindo para baixo” e “Estou no fundo do poço”. Por outro lado, existe um conjunto de outras experiências cuja base para a compreensão não reside na simples orientação. Essas experiências são compreendidas então em termos de objetos e substâncias, o que nos permite “selecionar partes de nossa experiência e tratá-las como entidades discretas ou substâncias de uma espécie uniforme.” (LAKOFF E JOHNSON, 2002[1980], p. 75). A possibilidade de identificarmos as nossas experiências como entidades discretas ou substâncias permite-nos fazer referência a elas, separá-las em categorias e grupos, e também quantificá-las. Tudo isso, por sua vez, também permite-nos raciocinar sobre as mesmas. Assim, de acordo com Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 76), semelhantemente ao que ocorre com as experiências básicas das orientações espaciais que originam as metáforas orientacionais, as nossas experiências com objetos físicos, notadamente com os nossos corpos, são a base para uma diversidade bastante abrangente de metáforas ontológicas, fornecendo formas de se conceber eventos, atividades, emoções, ideias, etc. como entidades e substâncias. No caso da metáfora ontológica INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE, a experiência de aumento de preços é entendida metaforicamente por intermédio do substantivo inflação. A atualização dessa metáfora conceptual pode ser observada, conforme exemplificam Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 76-77), em expressões linguísticas como “A inflação está abaixando o nosso padrão de vida”, “Se houver muito mais inflação, nós nunca sobreviveremos” e “Comprar terra é a melhor maneira de se lidar com a inflação”. Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 87) destacam ainda um tipo específico dentre as metáforas ontológicas, em que uma grande diversidade de experiências relacionadas a entidades não-humanas são concebidas em termos de motivações, características e atividades humanas. Nesses casos, ocorre uma metáfora ontológica específica, talvez a mais óbvia dentre as metáforas dessa natureza, classificada pelos dois autores como personificação. Expressões linguísticas como “A inflação ludibriou as melhores mentes econômicas de nosso país”, “A inflação roubou as minhas economias”, “A inflação atacou o alicerce de nossa economia” e “O nosso maior inimigo agora é a inflação” são, para Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 88), atualizações da personificação INFLAÇÃO É UM ADVERSÁRIO, pois aqui a inflação é pensada como um adversário que pode atacar, roubar, ferir e mesmo destruir qualquer um de nós. Espíndola (2007, p. 50), por sua vez, afirma que parece ser possível observar dois tipos de metáforas ontológicas. Em um primeiro grupo, encontram-se aquelas metáforas em que um conceito abstrato apresenta-se concretizado em um objeto, espaço etc. Já o segundo grupo é formado pelas metáforas em que se observa especificamente a personificação, a qual pode ser atualizada de duas formas. A primeira é aquela em que uma experiência ou objeto físico é concebido como uma entidade animada (uso de características ou ações próprias de um ser vivo). Ou seja, tomamos características do domínio origem (um determinado ser animado) e as projetamos para o domínio alvo (a experiência sobre a qual estamos fazendo referência). Nesse caso, vamos observar uma animação (dotar uma experiência de traços de um ser vivo). (...) A segunda forma de personificação é a que personifica experiências – ou seja, essas experiências são concebidas como pessoas ou àquelas são atribuídas características destas. Nesse caso, constatamos, de fato, a humanização, como é o caso do exemplo apresentado pelos autores citados, para concretizar também a metáfora A INFLAÇÃO É UM ADVERSÁRIO. (ESPÍNDOLA, 2007, p. 50, grifos da autora).

Para Espíndola (2007, p. 50), a ideia existente em nossa cultura da INFLAÇÃO COMO DOENÇA que necessita ser combatida e dizimada, atualizada, por exemplo, pela 55

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expressão linguística “A inflação precisa ser combatida com a vacina certa” e encontrada no discurso do então Ministro da Economia do governo Lula, Antônio Palocci, não representa um processo de humanização, mas sim de animação, pois aqui a entidade, não obstante manifeste vida, mostra-se desprovida de atributos humanos. Ainda segundo Espíndola (2007, p. 51), a humanização pode ser encontrada, por exemplo, na expressão linguística “A inflação ludibriou as melhores mentes econômicas de nosso país”, atualizadora da metáfora ontológica A INFLAÇÃO É UM ADVERSÁRIO, pois aqui o verbo „ludibriar‟ relaciona-se a uma ação que é propriamente executada por humanos. Em posfácio à edição de 2003 da obra Metaphors we live by, Lakoff e Johnson (2003, p. 264) afirmam ter abandonado a classificação das metáforas conceptuais em estruturais, orientacionais e ontológicas por considerar artificial a divisão anteriormente estabelecida nas sucessivas edições da referida obra. A divisão das metáforas em três tipos – orientacionais, ontológicas e estruturais – era artificial. Todas as metáforas são estruturais (no sentido de que elas mapeiam as estruturas para outras estruturas); todas são ontológicas (no sentido de que elas criam domínios-alvo como entidades); e muitas são orientacionais (no sentido de que elas mapeiam esquemas-imagem orientacionais).3 (LAKOFF E JOHNSON, 2003, p. 264, tradução nossa).

Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 92) estabelecem ainda diferença entre metáfora e metonímia conceptuais. No caso das metáforas, o que ocorre principalmente é uma forma de conceber uma coisa em termos de outra, tendo por função principal a compreensão. As metonímias, por outro lado, tem eminentemente função referencial, ou seja, de usar uma entidade para representar outra, apresentando também a função de favorecer o entendimento. A metonímia tem, pelo menos em parte, o mesmo uso que a metáfora, mas ela permite-nos focalizar mais especificamente certos aspectos da entidade a que estamos nos referindo. Assemelha-se também à metáfora no sentido de que não é somente um recurso poético ou retórico, nem é somente uma questão de linguagem. Conceitos metonímicos (como PARTE PELO TODO) fazem parte da maneira como agimos, pensamos e falamos no dia-a-dia. (LAKOFF E JOHNSON, 2002[1980], p. 93).

Assim, no caso da expressão linguística “Precisamos de boas cabeças no projeto”, atualizadora da metonímia PARTE PELO TODO, o termo “boas cabeças” é usado para se fazer referência a “pessoas inteligentes”. Aqui não se trata apenas de usar a parte (a cabeça) para representar o todo (a pessoa), mas sim de escolher um aspecto da pessoa (a inteligência) que é relacionada à cabeça. Lakoff e Johnson (2002[1980], p. 93) ainda comentam que, no caso da expressão linguística “O Times ainda não chegou para a coletiva”, o termo “O Times” não é usado apenas no sentido de se fazer referência a um ou outro repórter, mas igualmente com a finalidade de sugerir a relevância da instituição que o repórter representa. Nesse sentido, enfatizam ainda os autores, “O Times ainda não chegou para a coletiva” apresenta um significado diferente da expressão linguística “Steve Roberts ainda não chegou para a coletiva”, ainda que Steve Roberts seja o repórter dessa empresa jornalística. Veremos mais adiante, na seção referente à análise e discussão dos resultados obtidos com a investigação dos dois corpora escolhidos como objeto de estudo do presente trabalho, como a metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e seu cruzamento com a metáfora INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS são utilizados pelo locutor dos textos analisados, de forma consciente ou não, como estratégia para se alcançar determinada função semânticodiscursiva. 3

The division of metaphors into three types – orientational, ontological, and structural – was artificial. All metaphors are structural (in that they map structures to structures); all are ontological (in that they create target domain entities); and many are orientational (in that they map orientational image-schemas). (LAKOFF E JOHNSON, 2003, p. 264). 56

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Barcelona (2003, p. 06) afirma que, para a linguística cognitiva, metáfora e metonímia são explicadas como mecanismos mentais convencionais que não se confundem com as expressões linguísticas responsáveis pela atualização de ambas. Desse modo, metáfora e metonímia são tipos fundamentais de modelos cognitivos, cuja motivação é encontrada na experiência e que podem ter sua utilização voltada a um propósito pragmático individual. O mesmo autor destaca que existem casos em que se pode identificar uma interação entre metáfora e metonímia, a qual é agrupada em dois tipos: interação no nível puramente conceptual; interação no nível puramente textual, com coinstanciação de metáfora e metonímia na mesma expressão linguística. Para Barcelona (2003, p. 10), a mais importante dessas duas interações entre metáfora e metonímia é a que se verifica no nível puramente conceptual, a qual pode ser dividida em dois subtipos: a motivação conceptual metonímica da metáfora e a motivação conceptual metafórica da metonímia. O primeiro subtipo é o mais problemático e representa um sério desafio para a teoria da metáfora. Seu fundamento reside na constatação de que muitas metáforas são conceptualmente motivadas por uma metonímia, a qual se encontra mais próxima das experiências humanas básicas. Exemplo desse subtipo pode ser encontrado na expressão linguística “Ele andava de ombros caídos. Ele perdeu sua esposa”4, que atualiza a metáfora TRISTEZA É PARA BAIXO / FELICIDADE É PARA CIMA e é motivada pela metonímia EFEITO PELA CAUSA, pois aqui o efeito comportamental da tristeza (os ombros caídos) ocupa o lugar da emoção correspondente. O segundo subtipo, a motivação conceptual metafórica da metonímia, pode ser observado em interpretações metonímicas de uma expressão linguística que somente parece ser possível em uma coocorrência de mapeamento metafórico. O exemplo apresentado por Barcelona (2003, p. 11) nesse sentido é a expressão linguística “Ela alugou o ouvido do Ministro e o persuadiu a aceitar seu plano”5, a qual atualiza a metáfora ATENÇÃO É UMA ENTIDADE FÍSICA. Simultaneamente, pode-se verificar aqui a metonímia PARTE DO CORPO PELA FUNÇÃO, pois uma parte do corpo (o ouvido) assume o lugar de sua função (ouvir) e/ou da forma pela qual essa função é exercida (a atenção). O segundo tipo geral de interação ocorre com a coinstanciação puramente textual de uma metáfora e uma metonímia na mesma expressão linguística. Nas palavras de Barcelona (2003, p. 12), “isso acontece, a propósito, quando uma metonímia ocorre simultaneamente em uma mesma expressão linguística com um certo mapeamento metafórico, do qual aquela é conceptualmente independente.”6 (BARCELONA, 2003, p. 12, tradução nossa). A coocorrência não se relaciona ao fato de que a metáfora e a metonímia motivem uma a outra, mas sim ao fato de que elas são compatíveis. No exemplo dado por esse autor, “O sanduíche de presunto começou a rosnar”7, a metonímia que essa expressão linguística atualiza é MERCADORIA CONSUMIDA PELO CONSUMIDOR, pois o sanduíche é usado como referência a quem o consumiu. Simultaneamente, encontra-se nessa expressão a metáfora PESSOAS SÃO ANIMAIS, atualizada pelo verbo rosnar, o qual qualifica uma pessoa atribuindo-lhe característica de animais. A expressão sob análise pode ser proferida em um contexto no qual um cliente que comprou o sanduíche esteja apresentando um comportamento hostil ou agressivo. Como se pode observar, essa é uma forma desumanizadora de se fazer referência a alguém, uma vez que o que importa aqui é a venda de um produto. 4

Tradução nossa do original: “He walked with drooping shoulders. He had lost his wife”. Tradução nossa do original: “She caught the Minister´s ear and persuaded him to accept her plan”. 6 (...) This happens, for instance, when a metonymy co-occurs in the same linguistic expression with a certain metaphorical mapping, from which it is conceptually independent. (BARCELONA, 2003, p. 12). 7 Tradução nossa do original: “The ham sandwich started snarling”. 5

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Barcelona (2003, p. 06-07) enfatiza que o mapeamento metafórico é sempre unidirecional, pois apenas o domínio-fonte é projetado no domínio-alvo, sendo impraticável ocorrer o contrário. A metáfora PESSOAS SÃO ANIMAIS, atualizada pela expressão linguística “O ninho de amor deles foi descoberto”, é constituída pela projeção de um aspecto (comportamento agressivo, lugar que habitam) de alguns animais (cachorros, gatos ou pássaros) em alguns aspectos de uma pessoa (raiva, lugar de encontro amoroso), e não o contrário. Isso não significa, contudo, que não seja possível a existência de uma expressão como “Leões são corajosos”, atualizadora da metáfora ANIMAIS SÃO PESSOAS, em que se observa a projeção de um atributo humano, a coragem, em um instinto animal; mas o que está em jogo aqui é outra metáfora conceptual. Ao investigar as expressões linguísticas metonímicas e metafóricas na notícia policial, Lima (2008) concluiu, a partir dos pressupostos teóricos postulados pela Teoria da Modalização, que os cruzamentos de metáforas e metonímias encontrados nos textos analisados atuam como estratégias discursivas utilizadas pelo locutor para conferir uma determinada função semântico-discursiva às proposições por ele enunciadas. A modalização teve seus estudos iniciados na Lógica Clássica e, antes de ser incorporada à Linguística, passou também pela Gramática Tradicional. Os gregos antigos já se preocupavam com a modalidade das proposições, mas as suas conclusões eram circunscritas à perspectiva da Lógica. A Linguística posteriormente adota os estudos da modalidade, porém direcionando seus conceitos para além do recorte epistemológico estabelecido pela Lógica. Nesse contexto, um contingente significativo de linguistas investiga na linguagem as noções, raciocínios e fórmulas da lógica que podem servir para descrever as línguas. Não obstante Castilho e Castilho (1993, p. 217) afirmem que o termo modalização exprima um julgamento do falante frente a uma proposição, os termos modalidade e modalização são empregados indistintamente com esse sentido. De acordo com a divisão tradicional, a modalidade ocorre nos casos em que o falante expõe o conteúdo proposicional nas formas assertiva (afirmativa ou negativa), interrogativa (polar ou não-polar) e jussiva (imperativa ou optativa), enquanto a modalização é observada quando o falante exprime a sua relação com o conteúdo proposicional. Tal relacionamento diz respeito tanto ao julgamento do teor de verdade da proposição quanto ao ato de expressar uma avaliação a respeito da forma escolhida para manifestar o conteúdo de uma proposição. Adotamos aqui a posição dos referidos autores, os quais empregam os termos sem distinção por considerarem que sempre existe uma avaliação prévia do falante sobre o conteúdo da proposição a ser enunciada. Cervoni (1989, p. 63) construiu uma classificação por meio da qual reconhece a existência da modalização impura, a qual se diferencia do padrão formulaico da modalização tradicional, denominado de núcleo duro. No núcleo duro estão incluídas as modalidades proposicionais e os auxiliares de modo, pois ambos apresentam uma significação essencialmente modal perfeitamente explícita. As modalidades proposicionais podem ser observadas em frases do tipo “(unipessoal) + é + Adjetivo + que P ou infinitivo”, conforme ilustra o exemplo “É possível que as aulas comecem em julho”. Aqui a modalidade manifesta pela estrutura “é possível” incide em toda a proposição “que as aulas comecem em julho”. Os auxiliares de modo, por sua vez, são evidenciados por meio de verbos como poder, dever, querer e saber, tal como se observa em frases como “Ele deve chegar cedo”. Nesse exemplo, a modalidade evidenciada pelo verbo dever, o qual denota probabilidade, incide também sobre todo o conteúdo proposicional, a saber, “Ele chegar cedo”. Quanto à modalidade impura, Cervoni (1989, p. 68) considera que aqui estão incluídos aqueles casos nos quais a modalidade mostra-se implícita ou mesclada em um lexema, em um mesmo morfema, em uma mesma expressão a outros integrantes da significação. Alguns

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adjetivos avaliativos, tais como útil, agradável, interessante, grave etc., e os modos verbais pertencem a esse grupo. Castilho e Castilho (1993, p. 222) agrupam os elementos linguísticos que tornam concreta a modalização, os modalizadores, em três tipos de modalização, os quais revelam as diversas posições que o falante assume frente à proposição, ao conteúdo da proposição ou ao enunciado. Desse modo, temos a Modalização Epistêmica, a Deôntica e a Afetiva. Em razão do corpus que analisou, Nascimento (2009, p. 42) denomina esse último tipo de modalização de modalização avaliativa. A Modalização Epistêmica é encontrada naqueles casos em que o locutor manifesta uma avaliação sobre o valor de verdade da proposição. Essa modalização, por sua vez, dividese em três: a asseverativa, quando o falante considera verdadeiro o conteúdo da proposição, o qual é apresentado como uma afirmação ou negação a respeito da qual não existe dúvida, configurando-se assim uma necessidade epistêmica. No exemplo “Com certeza Carlos assistiu ao filme”, o locutor sabe que Carlos assistiu ao filme e, em razão disso, vale-se do predicativo com certeza para apresentar o conteúdo de P como um conhecimento; a quase-asseverativa, quando o locutor considera o conteúdo da proposição como uma possibilidade, hipótese ou crença. Isso pode ser observado no exemplo “Provavelmente Carlos assistiu ao filme”, pois aqui a possibilidade epistêmica é linguisticamente concretizada pelo modalizador provavelmente; e a delimitadora, a qual circunscreve o limite de leitura do conteúdo da proposição. Exemplo desse último caso é o enunciado “Profissionalmente Carlos é muito responsável”, uma vez que o advérbio profissionalmente fixa os limites dentro dos quais a interpretação do conteúdo deve ser feita. A Modalização Deôntica caracteriza-se pela circunstância do falante considerar o conteúdo da proposição como algo que necessita acontecer obrigatoriamente. No enunciado “Carlos deve assistir ao filme”, o conteúdo da proposição (assistir ao filme) aparece como algo obrigatório, que precisa necessariamente acontecer. Para Koch (2002, p. 84), na modalização deôntica a força ilocucionária é revelada, pois quem ordena cria obrigações para outro. Na Modalização Afetiva, terceiro e último tipo classificado por Castilho e Castilho (1993), o locutor manifesta suas reações subjetivas ou emotivas em relação ao conteúdo da proposição, não havendo aqui nenhuma consideração de natureza epistêmica ou deôntica. Para Castilho e Castilho (1993, p. 223), essa modalização está relacionada à função emotiva da linguagem e é subdividida em dois tipos: subjetiva, por apresentar uma predicação dupla, a do falante frente a P e à própria proposição. Exemplo desse caso é o enunciado “Infelizmente, Carlos não assistiu ao filme”, uma vez que o modalizador infelizmente tanto exprime uma avaliação do locutor sobre o conteúdo de P (para mim é uma infelicidade que Carlos não tenha assistido ao filme) quanto qualifica esse mesmo conteúdo (Carlos não assistir ao filme é um infelicidade); e intersubjetiva, por exprimir uma predicação simples, assumida pelo falante, a propósito da proposição, frente a seu interlocutor. No enunciado “Sinceramente Carlos é muito educado”, o modalizador sinceramente expressa a modalização dirigida apenas ao locutor. Nascimento (2009, p. 46) prefere denominar esse último tipo de modalização de modalização avaliativa, pois, mais do que evidenciar um sentimento ou uma emoção do falante frente à proposição ou ao enunciado, essa modalização evidencia uma avaliação da proposição realizada pelo falante por meio da emissão de um juízo de valor e de uma indicação simultânea de como o falante deseja que essa proposição seja entendida. Após a apresentação dos pressupostos teóricos referentes à metáfora e metonímia conceptuais, apresentados a seguir os resultados relativos à presença de expressões linguísticas metafóricas e/ou metonímicas atualizadoras de metáforas e/ou mentonímias conceptuais em notícias de divulgação científica de dois jornais de circulação nacional, 59

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considerando também a estratégia utilizada pelo locutor desses textos, de forma consciente ou não, para conferir determinada função semântico-discursiva às expressões linguísticas evidenciadas segundo a Teoria da Modalização. 2. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Apresentaremos aqui a análise dos resultados referentes à investigação da ocorrência de expressões linguísticas atualizadoras de metáforas e metonímias conceptuais, bem como da função semântico-discursiva exercida por essas mesmas expressões, em dois jornais de circulação nacional, O Globo e Folha de São Paulo, os quais constituíram os corpora desse estudo. Para alcançarmos nossos objetivos de identificar a presença de expressões linguísticas atualizadoras de metáforas e metonímias conceptuais na notícia de divulgação científica, analisar a função semântico-discursiva daí decorrente, verificar se há recorrência das metáforas e metonímias conceptuais nos corpora do gênero estudado e predomínio de um determinado tipo de metáfora e metonímia conceptuais, recorremos a 102 notícias de divulgação científica recolhidas em cada um dos corpora que constituem este estudo, em um total de 204 notícias capturadas nos respectivos sites dos jornais entre os meses de agosto a outubro de 2009. Nossa pesquisa apresenta natureza descritivo-qualitativa e exploratório-explicativa, uma vez que nosso objetivo não é trabalhar estritamente com as quantidades de expressões linguísticas metafóricas e metonímicas encontradas nos dois corpora investigados, mas sim buscar explicar a função semântico-discursiva relacionada às expressões linguísticas metafóricas e metonímicas ali levantadas. No tocante ao gênero analisado, consideramos a notícia de divulgação científica segundo a concepção de um gênero do discurso, conforme assevera Bakhtin (2000[1979]), e não como sinônimo de veiculação ou publicação de fatos. Consideramos ainda a definição de Nascimento (2009), para quem a notícia encontra-se incluída no gênero informativo, cuja fundamental característica é relatar ou descrever, de forma objetiva e imparcial, um fato. Logo, de acordo com esse último critério, notícia é o relato de um fato. Para fins deste estudo, apenas consideraremos a análise de expressões linguísticas atualizadoras do cruzamento da metonímia e metáfora conceptuais predominante nos dois corpora investigados, a saber, INSTITUIÇÕES PELOS RESPONSÁVEIS/INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS, não obstante tenha se verificado também nas notícias de divulgação científica coletadas nos dois jornais de circulação nacional expressões que atualizam outros cruzamentos de metonímias e metáforas menos recorrentes. No sentido de facilitar a identificação dos dados relacionados aos excertos que serão transcritos a seguir, convencionamos utilizar as siglas GLB e FSP para nos referirmos, respectivamente, aos jornais O Globo e Folha de São Paulo, além de outras três informações, dispostas na seguinte ordem: o número da notícia capturada, a data de recolhimento desta e o(s) número(s) da(s) linha(s) em que a(s) expressão(ões) linguísticas atualizadora(s) do cruzamento da metáfora/metonímia conceptuais se encontra(m). A quantidade de expressões linguísticas atualizadoras do cruzamento da metonímia e da metáfora conceptuais encontradas nos dois corpora obedece à seguinte proporção: nas 102 notícias coletadas no caderno de Ciência e Saúde da versão online do jornal O Globo, encontramos 378 expressões linguísticas que atualizam a metonímia/metáfora conceptuais INSTITUIÇÕES PELOS RESPONSÁVEIS/INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS, enquanto que nas 102 notícias capturadas do caderno de Ciência da versão online do jornal Folha de São Paulo, encontramos 259 expressões linguísticas que atualizam esse mesmo cruzamento de

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metonímia/metáfora conceptuais. O gráfico abaixo ilustra melhor os dados aqui descritos: 400 350 300 250

NOTÍCIAS INVESTIGADAS

200 CRUZAMENTO METONÍMIA/METÁFORA

150 100 50 0 CORPUS I

CORPUS II

Apresentaremos agora alguns excertos referentes a expressões linguísticas encontradas em notícias de divulgação científica capturadas nos dois corpora investigados que atualizam o cruzamento da metonímia/metáfora conceptuais INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS/INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS. EXEMPLOS DE EXCERTOS ENCONTRADOS NO PRIMEIRO CORPUS INVESTIGADO, O JORNAL O GLOBO Depressão será a doença mais comum do mundo em 2030, diz OMS (GLB. 10. 02/09/2009. 02). O governo também pretende tornar obrigatória a eficiência energética nos carros a partir de 2011. (GLB. 13. 03/09/2009. 26-27). Luta contra aquecimento global deve ir além do CO2, diz ONU (GLB. 15. 04/09/2009. 01). O jovem ainda não pode andar, mas já consegue comer sozinho, mexer os braços e ajudar a se vestir, informou a instituição. (GLB. 40. 18/09/2009. 17). Segundo a agência, isso abriria uma "oportunidade única" para uma guinada rumo a uma economia de baixas emissões. (GLB. 43. 21/09/2009. 12). O Ministério de Saúde Pública da Tailândia dirigiu o estudo (GLB. 49. 24/09/2009. 27). "Isso revolucionou a fotografia, já que a luz pode ser capturada eletronicamente em vez de sobre um filme", disse o comitê. (GLB. 68. 06/10/2009. 43). Segundo a agência meteorológica australiana, esta foi a pior tempestade de areia na região desde os anos 1940. (GLB. 48. 23/09/2009. 15). Itamaraty diz que acordo de clima esbarra em metas e financiamento (GLB. 89. 16/10/2009. 01). Mesmo que o projeto Ares 1 seja cancelado, esse voo é crucial, segundo a Nasa. (GLB. 92. 20/10/2009. 21). EXEMPLOS DE EXCERTOS ENCONTRADOS NO SEGUNDO CORPUS INVESTIGADO, O JORNAL FOLHA DE SP Criacionista, zoo britânico refuta teoria de Charles Darwin e irrita associação (FSP. 03. 27/08/2009. 02-03). Uma nova pílula que contém benefícios antioxidantes típicos da dieta mediterrânea, baseada no tomate, pode ser uma solução sem efeitos secundários para fortalecer o coração, segundo anunciou um laboratório de biotecnologia de Cambridge (Grã-Bretanha) nesta terçafeira (1º). (FSP. 08. 01/09/2009. 07). A nova técnica, desenvolvida pelos departamentos de Ciência da Computação e Ciência 61

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da Comunicação Humana, permite que aparelhos sejam programados com a própria voz do usuário. (FSP. 13. 04/09/2009. 10-11). Mas em razão de sua novidade, o novo contraceptivo de urgência deve ainda receber aprovação da Emea (Agência Europeia de Medicamento) para seu plano de vigilância após comercialização. (FSP. 23. 08/09/2009. 15). Exemplo disso é uma pesquisa feita em uma escola pelo Centro de Transferência de Neurobiologia e Aprendizagem, com sede em Ulm, na Alemanha. (FSP. 39. 17/09/2009. 54-55). UFRJ explica "telepatia" entre partículas (FSP. 41. 15/05/2009. 02). Durante esse tempo, a agência produzirá um mapa completo e detalhado da superfície da Lua, além de buscar recursos e locais seguros para o pouso de naves tripuladas. (FSP. 43. 18/09/2009. 16-17). "Como os ribossomos são cruciais para a vida, eles também são um grande alvo para os novos antibióticos", disse o Comitê do Nobel para a Química da Real Academia Sueca de Ciências em comunicado. (FSP. 79. 07/10/2009. 19-20). O debate sobre como diferenciar a depressão "patológica" de uma reação normal de tristeza, diz Alves Brasil, pode levar a uma revisão desse ponto no DSM e na ICD (Classificação Internacional de Doenças), produzida pela Organização Mundial da Saúde. (FSP. 90. 12/10/2009. 80-81). "A indústria havia realizado pesquisas que demonstraram que o cigarro é tóxico, que provoca câncer", e ao mesmo tempo disse em público que não havia qualquer prova neste sentido, destaca um dos autores do artigo, o professor David Hammond, da Universidade de Waterloo (Ontário). (FSP. 98. 16/10/2009. 15-17). Nas expressões linguísticas aqui transcritas, observamos que um conceito é utilizado para se referir a outro, pois a OMS aparece no lugar dos membros dessa organização, o governo surge no lugar dos governantes, a ONU ocupa o lugar dos países-membros e demais integrantes, a NASA assume o lugar de seus cientistas e técnicos, a UFRJ e outras instituições de pesquisa são apresentadas no lugar de seus pesquisadores, a Folha de São Paulo, a BBC e a Reuters, por sua vez, surgem em lugar de seus jornalistas, proprietários, dirigentes e demais funcionários. Desse modo, podemos perceber que tais expressões atualizam a metonímia INSTITUIÇÕES PELOS RESPONSÁVEIS. Podemos perceber também que características humanas são atribuídas a essas instituições por meio da utilização de verbos como afirmar, dizer, pretender, informar, dirigir, refutar, irritar, anunciar, explicar, aprovar, produzir etc., os quais atualizam a Metáfora Conceptual Ontológica de Personificação INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS, conforme preceituam Lakoff e Johnson (2002[1980]). Para esses autores, as metáforas ontológicas são motivadas por nossas experiências com os objetos físicos. Assim, um conceito abstrato é entendido como uma entidade, um objeto ou uma substância que atuam como formas de se conceber eventos, atividades, emoções, ideias, processos etc. Desse modo, demonstra-se a ocorrência simultânea entre metonímia e metáfora conceptuais em cada uma das expressões linguísticas transcritas acima. Essas expressões evidenciam o que Barcelona (2003) apresenta como a coexistência de metáfora e metonímia conceptuais em uma mesma expressão linguística. Ainda segundo a classificação dos tipos de interação estabelecida por esse autor, os excertos transcritos nessa seção representam uma interação no nível puramente textual, com coinstanciação de metáfora e metonímia na mesma expressão linguística. O uso da metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e de seu processo de metaforização INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS revelam, segundo a Teoria da Modalização, uma estratégia discursiva do locutor de, posicionando-se com distanciamento frente ao que é dito, conferir credibilidade à hipótese, afirmação, constatação ou teoria enunciadas. Assim, o 62

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locutor busca, por meio desse recurso discursivo, não permitir que a proposição evidencie qualquer marca de subjetividade que possa comprometer a legitimidade do conteúdo enunciado. De acordo com a classificação de Castilho e Castilho (1993) relativa aos três tipos principais de modalização, podemos afirmar que as expressões linguísticas que atualizam a coinstanciação da metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e da metáfora INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS são exemplos de modalização epistêmica quaseasseverativa, pois aqui o locutor considera o conteúdo da proposição quase certo ou uma hipótese que precisa ser confirmada, mantendo, em razão disso, um alto grau de distanciamento frente ao que é dito e não se responsabilizando, por conseguinte, pelo valor de verdade dessa proposição. Esse distanciamento do locutor, conforme comentado logo acima, também revela uma estratégia do locutor de não imprimir marcas de subjetividade ao enunciado, evitando com isso que a legitimidade do conteúdo veiculado seja comprometida. Por outro lado, o uso das expressões linguísticas sob análise evidencia que a modalização não incide sobre toda a proposição, conforme preceitua o tipo de modalização denominado de núcleo duro, mas incide sobre parte do discurso, a saber, a notícia, porém não é linguísticamente marcada conforme postula Cervoni (1989). Desse modo, valendo-nos da classificação estabelecida por esse autor, observamos que as expressões linguísticas metonímicas e metafóricas em questão podem ser classificadas como exemplos de modalidade impura, pois apresentam uma forma implícita de modalização que incide sobre parte do discurso, e não apenas sobre parte de uma proposição. Assim, podemos afirmar que encontramos um tipo especial de modalização impura nesses casos. Concluindo, podemos afirmar que o uso de expressões linguísticas atualizadoras do cruzamento da metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e da metáfora INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS são recursos frequentemente utilizados em notícias de divulgação científica, uma vez que o locutor encarregado de redigi-las necessita recorrer a determinadas estratégias para melhor fundamentar seu discurso e, com isso, não permitir que o conteúdo veiculado acabe por se mostrar duvidoso em sua credibilidade em razão de alguma marca de subjetividade ali deixada pelo redator do gênero em questão. 2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Apresentamos neste artigo um estudo referente à análise da função semânticodiscursiva das expressões linguísticas metafóricas e metonímicas encontradas no gênero notícia de divulgação científica em dois jornais de circulação nacional. Para esse fim, recorremos a Teoria da Metáfora e da Metonímia Conceptuais postulada por Lakoff e Johnson (2002[1980]), segundo a qual tanto a metáfora quanto a metonímia não são mais entendidas como meros ornamentos linguísticos. As contribuições de Barcelona (2003) também se mostraram importantes para analisarmos a coinstanciação das metáforas e das metonímias conceptuais nas expressões linguísticas analisadas. Por outro lado, a Teoria da Modalização contribuiu no sentido de compreendermos qual a estratégia argumentativa utilizada pelo locutor ao redigir essas notícias. O nosso corpora foi constituído de 204 notícias de divulgação científica capturadas, em igual proporção, em dois jornais de circulação nacional, O Globo e Folha de São Paulo. Por meio da análise, observamos que as expressões linguísticas atualizadoras de metonímias e metáforas conceptuais são recorrentes na notícia de divulgação científica, com predominância do cruzamento da metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e da metáfora INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS em ambos os corpora analisados na seguinte proporção: 378 e 259 expressões linguísticas que atualizam as referidas metonímia e metáfora conceptuais nas notícias de divulgação científica capturadas dos jornais O Globo e Folha de São Paulo, respectivamente. 63

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Observamos ainda que as expressões linguísticas metonímicas e metafóricas encontradas atuam como recursos modalizadores, ou seja, representam uma estratégia argumentativa utilizada pelo locutor que elabora as notícias de divulgação científica analisadas, conforme demonstramos. Desse modo, essas expressões linguísticas podem ser classificadas como modalizadores discursivos pertencentes à categoria da modalização epistêmica quase-asseverativa, segundo a tipologia preconizada por Castilho e Castilho (1993). Por outro lado, segundo a classificação de Cervoni (1989), esses mesmos recursos modalizadores constituem exemplos de um tipo especial de modalização impura, o qual incide sobre parte do discurso, e não apenas sobre parte de uma proposição. Assim, segundo a Teoria da Modalização, as expressões linguísticas metonímicas e metafóricas na notícia de divulgação científica funcionam como uma estratégia discursiva utilizada pelo locutor para, mantendo um distanciamento frente à proposição, não imprimir marcas de subjetividade ao que é dito e, com isso, conferir credibilidade ao conteúdo veiculado. Nesse sentido, podemos afirmar que, tal como no estudo realizado por Lima (2008), verificamos em nossa pesquisa a prevalência de expressões linguísticas que atualizam a coinstanciação da metonímia INSTITUIÇÃO PELOS RESPONSÁVEIS e da metáfora INSTITUIÇÕES SÃO PESSOAS, mas com uma função semântico-discursiva diferente daquela encontrada por essa autora em sua investigação sobre o gênero notícia policial, pois, se neste caso o locutor afasta-se da proposição com o objetivo de preservar a identidade e integridade física dos agentes policiais e demais profissionais envolvidos em investigações dessa natureza, nas notícias de divulgação científica evidenciou-se que o locutor, ao manter um distanciamento frente à proposição, objetiva não imprimir marcas de subjetividade ao conteúdo desta, conferindo assim, por meio desse recurso modalizador, credibilidade àquilo que é dito. 3. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARCELONA, Antônio. Metaphor and Metonymy at the crossroads: a cognitive perspective. Berlin/Nova Iorque: Mouton de Gruyter, 2003. CASTILHO, A.T.; CASTILHO, C. M. M. de. Advérbios modalizadores. In: ILARI, Rodolfo (Org.). Gramática do Português Falado. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. Vol. II. CERVONI, Jean. A enunciação. São Paulo: Editora Ática, 1989. ESPÍNDOLA, Lucienne C. A. Metáfora ontológica, publicidade e leitura. In: ______ e SOUSA, Maria Ester Vieira de. (Orgs.). O texto: vários olhares, múltiplos sentidos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação da tradução: Mara Sophia Zanotto. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002. ______. Afterword, 2003. In: ______. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 7. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2002. LIMA, Josilane Márcia Justiniano de. Expressões linguísticas metonímicas e metafóricas na notícia policial: um recurso discursivo. 2008. 82 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008. Disponível em: < http://sites.google.com/site/lasprat/Home/dissertacoes/orientacoes-profa-lucienne >. Acesso em: jan. 2010. NASCIMENTO, Erivaldo Pereira do. Jogando com as vozes do outro: argumentação na notícia jornalística. João Pessoa: Editora Universitária, 2009. 64

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A INDEXICALIDADE NA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE IDENTIDADES SOCIAIS

Herimatéia Pontes*

RESUMO: Este artigo analisa a relação entre o fenômeno da indexicalidade e o processo de construção identitária. A partir dos estudos de Silverstein (1976), Lyons (1977), Levinson (1983), Goffman (1988), Gumperz (1998) e Ochs (1996) sobre diferentes aspectos da indexicalidade, observamos que os atores sociais podem indexar identidades através de categorias linguístico-discursivas não convencionalizadas tal como a alocação de papéis (van Leeuwen 1997, 2008; Fairclough 2003). Para ilustrarmos como isso ocorre discursivamente e o que significa, analisamos brevemente trechos do discurso de um político brasileiro envolvido num escândalo de corrupção conhecido por mensalinho (2005). A análise dos dados evidencia que os atores sociais constroem identidades positivas de si e do seu grupo de aliados para inocentarem-se, e identidades negativas dos seus oponentes para acusá-los/culpálos. Palavras-chave: indexicalidade, discurso, identidades sociais e corrupção política. ABSTRACT: This paper analyses the relation between the indexical phenomenon and the process of identity construction. Among many studies regarding different aspects of the indexical phenomena we focus on the studies of Silverstein (1976), Lyons (1977), Levinson (1983), Goffman (1988), Gumperz (1998) and Ochs (1996). These different aspects point out to the fact that many non-conventionalized linguistic-discursive categories can be used to index social identities such as the role allocation. To illustrate how this can possibly happen discursively and what it means we analyze parts of the discourse of a Brazilian politician who got involved in a corruption scandal named mensalinho (2005). Data analysis shows that social actors built positive identities of them and their allies as innocent ones whereas built negative identities to their opponents in order to make them guilty or responsible for certain actions. Key words: indexicality, discourse, social identities and political corruption.

Considerações Iniciais “Todo político é corrupto!”, “Você sabe com quem está falando?”, “Quem você pensa que é?”, “Filho de peixe, peixinho é!”. Enunciados como estes, comuns em nosso cotidiano, podem assumir significados diversos, dependendo da situação discursiva e dos elementos envolvidos, tais como, os participantes em si, os enquadres interacionais e as atividades desenvolvidas/compartilhadas coletivamente por estes participantes. Porém, o mais interessante a se notar, é o fato de que estes enunciados reivindicam a atribuição de uma identidade social para os interlocutores. Atribuir identidade talvez seja o

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Doutora em Letras/Linguística – UFPI - [email protected] 27

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processo mais intrigante na vida humana, pois, através dele, procuramos compreender quem somos nós e quem são os outros. Analisar a construção das identidades sociais como um dos efeitos ideológicos e hegemônicos do discurso constitui uma importante ferramenta para estudar a mudança social, porém, defini-la não é tarefa fácil. Isso se dá pelo fato de que há uma multiplicidade de questões a ela relacionadas, principalmente, de natureza epistemológica e teóricometodológica. Signorini (1998), por exemplo, reúne uma série de trabalhos sob diferentes perspectivas com o objetivo de gerar mais reflexão sobre essas questões ainda não fechadas. Contudo, podemos tomar como vetor principal na reflexão sobre este tema, a compreensão de que somos sujeitos históricos, sociais e culturais e por esta razão, nossa identidade não e individual ou cristalizada, mas processual e está em relação dialética com a estrutura social, ou seja, ao passo que são formadas por processos sociais determinados pela estrutura social, e mantidas, modeladas e remodeladas pelas relações sociais, também podem reagir a esta estrutura, mantendo-a ou modificando-a. O interessante nesta relação é observar, que “as estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade” que são observáveis, verificáveis e necessárias ao comportamento e conduta dos sujeitos sociais na vida cotidiana, sendo, portanto, “elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva” (BERGER e LUKHMAN, 1985, p. 229-230). Por sermos sujeitos históricos, sociais e culturais, nossa identidade não é estática, mas é construída no processo das atividades sócio-discursivas das quais fazemos parte, e dessas atividades provêm uma multiplicidade de papéis sociais que se articulam. Entendemos como Ochs (1996, p. 410) que identidade social engloba todas as dimensões da persona social incluindo propriedades como papéis (o político, a professora, o estudante, a mãe, etc.), relações (políticas, profissionais, de parentesco, etc.), identidade de grupo (partido político, gênero, idade, etnia, religião, etc.), posição (titulação, status profissional, classe social etc.), dentre outros. Identidade social é uma das dimensões sociais ativadas pelos participantes para fazer parte de uma dada situação comunicativa e está diretamente relacionada aos papéis e ações sociais atribuídas e desempenhadas por estes, bem como às suas posturas afetivas e epistêmicas. Como construtos sócio-discursivos, identidade é uma das dimensões sócio-culturais ativadas pelos participantes ou atores sociais nas situações comunicativas. Contudo, o processo de auto e hetero-atribuição de identidades, em que identificamos a nós mesmos e ao(s) outro(s) passa pela atribuição de significados indexicais. O modo como usamos a linguagem, enquanto conjunto de recursos simbólicos que entra na constituição do sistema social e a representação individual de mundos reais ou possíveis, e como atribuímos determinado valor aos objetos, aos quais nos referimos existencialmente em determinadas situações comunicativas, evidencia a capacidade humana de indexicar significados através da linguagem. Entender como ocorre esse processo e quais são seus efeitos não é só interesse de linguistas ou analistas do discurso propriamente, mas de outros teóricos como antropólogos linguistas ou semanticistas que colocam o fenômeno da indexicalidade como central em suas pesquisas, por afetar diretamente a interação social ou socialização humana. Como conjunto ou sistema de recursos simbólicos, a linguagem produz e interpreta as práticas sociais, o conhecimento e a experiência. Através dela ordenamos o mundo e interagimos enquanto membros de uma sociedade. Isso nos faz pensar que o início e fim último da linguagem é promover a socialização humana continuamente, num processo dialético (constituímos a linguagem e somos constituídos por ela) e ininterrupto, tão complexo quanto o é a própria linguagem. Nesta perspectiva, usar a linguagem e participar de uma sociedade são atividades indissociáveis. Ochs (1996, p.407-437) chama atenção para um campo de estudos na Antropologia 28

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Linguística (AL) denominado “socialização linguística”, em que a aquisição de linguagem e a socialização são estudadas. Tal processo consiste em perceber como os indivíduos desenvolvem sua competência linguística na socialização das atividades comunicativas, social e culturalmente organizadas. Uma premissa fundamental neste campo é a de que a linguagem socializa não só pelo seu conteúdo simbólico, mas também pela praxis linguística situada. Deste modo, os atores sociais se tornam membros efetivos de uma sociedade quando compreendem as ações sociais, os eventos comunicativos, os relacionamentos e outros elementos no fenômeno sócio-cultural pela interação verbal. Um dos problemas cruciais apontados pela socialização linguística é entender como a linguagem “codifica” práticas e socializa informações sobre sociedade e cultura. Essas informações, que nem sempre são explícitas, dizem respeito, por exemplo, a construção de identidades sociais. Deste modo, o processo da socialização linguística aponta para a capacidade que a linguagem tem de indexar informações sócio-culturais num determinado contexto. Preocupada com o que o falante faz com a linguagem, a AL tem procurado compreender como se dá o processo pelo qual relacionamos enunciados a momentos, lugares e pessoas em determinadas circunstâncias, ou seja, o processo de indexicalidade. Daí “indexicalidade” constituir-se um dos principais temas no escopo da AL contemporânea, bem como objeto de estudos no campo da Pragmática, a partir da preocupação de como as pessoas usam a linguagem para construir o mundo social. A seguir, discutiremos algumas abordagens e usos deste fenômeno, grosso modo, denominado indexicalidade, bem como, apontaremos/identificaremos outras categorias indexicais não gramaticalizadas tradicionalmente que contribuem para a construção discursiva de identidades sociais. Com isso, destacamos a relevância da indexicalidade, em suas várias manifestações linguístico-discursivas, no processo de construção de identidades sociais dos participantes envolvidos em situações comunicativas; em nosso caso, particularmente, dos políticos envolvidos em esquemas de corrupção no cenário político brasileiro. Alguns Olhares Sobre o Fenômeno da Indexicalidade A capacidade das práticas linguísticas de indexar informações sócio-culturais pode ser facilmente identificada em expressões linguísticas tradicionalmente gramaticalizadas, tais como os pronomes pessoais (eu, tu, você etc.) e demonstrativos (este/a, aquele/a etc.), as expressões de tempo (agora, amanhã etc.), as expressões espaciais (acima, abaixo etc.), os verbos, dentre outras; contudo, não se restringe a essas categorias de dêiticos. Duranti (1997, p.18) aponta para o fato de que até a escolha de uma língua em vez de outra em uma comunidade bilíngue pode indexar a etnicidade ou escolha política na relação – etnicidade. Por outro lado, os índices também podem englobar desde perguntas aparentemente inócuas a posições políticas. Daí a importância da distinção entre diferentes tipos e graus de indexicalidade. A abordagem indexical e metapragmática de Silverstein (1976, p.11-55), que procura descrever a relação entre linguagem e cultura, bem como compreender o significado, tem alimentado perspectivas mais recentes de cultura como comunicação. Isto se dá pelo fato de chamar a atenção para o papel que a força comunicativa da cultura desempenha, não só para representar a realidade através de símbolos próprios de cada cultura, mas também para apontar, relacionar aspectos dessa realidade, tais como indivíduos, grupos, identidades, crenças, eventos etc. a contextos. É interessante notar que o valor indexical dos signos não é intrínseco à natureza do próprio signo, mas este é baseado em pressupostos culturais. Este tipo de índice referencial foi denominado por Silverstein (1976, p.25) de shifters. Segundo o autor, o aspecto indexical do significado dos shifters envolve a pressuposição da existência de algo ou o foco cognitivo em 29

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algo de valor específico no domínio das variáveis na situação de fala. Estas variáveis contextuais e os sinais indexicais dos shifters dependem, por sua vez, da “regra de uso” ou “regra de indexicalidade” que consiste na descrição da relação contexto de fala e enunciado. De outro modo, sem o conhecimento de algum aspecto da situação, a interpretação referencial destes sinais não seria possível. Nesse modelo podemos perceber que o valor indexical está não somente em certas categorias linguísticas tradicionalmente eleitas com este valor como os chamados termos dêiticos (eu, você, aqui, lá, agora, ontem etc.). Outras formas comunicativas tais como expressões linguísticas ideologizadas, signos gráficos, gestos etc. também se constituem veículos para práticas culturais. Segundo Duranti (1997, p.38), estas formas comunicativas têm esse valor quando pressupõem ou estabelecem alguns traços contextuais (por exemplo, quem é o interlocutor quando se diz algo ou a relação social relativa entre falante e ouvinte) que não são necessariamente “descritos” pela mensagem (ou em seu significado denotacional), mas são mesmo assim entendidos pelos participantes. Através dos usos indexicais de seus elementos, toda língua forneceria uma teoria de ação humana, ou seja, uma metapragmática, em que o importante seria identificar como a linguagem se torna uma ferramenta pela qual nosso mundo social e cultural é constantemente descrito, avaliado e reproduzido – aspecto criativo e performativo da indexicalidade (DURANTI, 1997, p.19). Isto quer dizer que os falantes, em sua consciência metapragmática, teriam a capacidade de interpretar a força pragmática das formas linguísticas usadas. Essa abordagem expande, portanto, a noção da relatividade linguística. Por outro lado, Lyons (1977, 1995) restringe a indexicalidade como sendo um tipo particular de dêixis. Na verdade, ele é partidário da concepção de que não há uma distinção clara entre os dois termos pelo uso que outras áreas como a Filosofia, a Psicologia e a Linguística têm feito. Segundo ele, ambos podem ser explicados etimologicamente, com base em uma noção de “referência gestual”. Na noção de referência gestual, dêixis e indexicalidade teriam a mesma origem, pois indicariam o referente através de algum gesto corporal do falante. Deste modo, qualquer expressão que apresente propriedades de indicação pela gesticulação corporal, a princípio, seria um dêitico. Logo, os pronomes seriam essa classe de expressões de referência por excelência ao determinar o significado proposicional dos enunciados. Daí o trabalho do autor em classificar diferentes tipos ou subclasses de dêiticos. O que é interessante notar é que Lyons enfatiza que a maioria dos enunciados em quaisquer línguas são indexicais ou dêiticos e que o valor-verdade das proposições é determinado pelas dimensões espaço-temporais estabelecidas no contexto pelos próprios dêiticos. Contudo, ele reconhece a limitação dos estudos para compreender a enormidade das informações dêiticas ou indexicais codificadas nas diferentes línguas naturais. Como semanticista, Lyons está preocupado em captar o significado dos enunciados pelas pistas que os dêiticos dão, restringindo-se ao enunciado, e não se refere ao fato de que estas pistas são negociadas na interação pelos participantes. Além do que, as práticas linguísticas utilizam-se de outros elementos, além dos dêiticos, para indexar. Outra referência clássica importante no estudo da dêixis é Levinson (1983). Ele define este fenômeno como o modo mais óbvio pelo qual podemos perceber/identificar a relação entre língua e o seu contexto, e essa relação se reflete ou se materializa nas estruturas linguísticas de cada língua, codificando características do contexto de enunciação ou evento de fala. Desse modo, a análise do contexto de enunciação seria condição sine qua non para a interpretação dos enunciados (LEVINSON, 1983, p.54). Apesar de basicamente retomar as considerações de Lyons (1977) e Fillmore (1975) sobre a constituição da dêixis de pessoa, tempo, lugar e dêixis discursiva, o que nos chama atenção em Levinson (1983) em sua reflexão sobre dêixis, é o fato deste autor apontar para a 30

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“dêixis social”. Segundo ele (LEVINSON, 1983, p.89), este tipo de dêixis está relacionada a todos os aspectos da estrutura que codifica as identidades sociais dos participantes e os papéis que desempenham, bem como as relações sociais entre eles ou entre um deles e as pessoas e entidades a que se referem através das estruturas linguísticas. Exemplos dessas estruturas ou categorias gramaticalizadas seriam os pronomes de polidez, os títulos de endereçamento e os vários tipos de honoríficos a que o autor dedica sua reflexão (cf. LEVINSON, 1983, p. 9094). Apesar de não se aprofundar no tema da dêixis social, Levinson chama a atenção para a possibilidade da existência de muitos outros tipos de dêixis, possivelmente não gramaticalizadas convencionalmente, dependendo da cultura. A dêixis não se restringiria, portanto, às categorias de pessoa, tempo e lugar (cf. LEVINSON, 1983). Percebemos também no trabalho de Gumperz (1998) outra forma de referência ao fenômeno da indexicalidade. Ele propõe um modelo teórico para tratar do que denominou “pistas” ou “convenções” de contextualização em sua análise da inferência conversacional. Essas pistas dizem respeito aos traços linguísticos presentes na superfície das mensagens sinalizadas pelos falantes e interpretadas pelos ouvintes de modo que se compreenda a atividade comunicativa, o conteúdo semântico e a referência ou ligação do discurso com o que o precede ou segue. Estas pistas são condicionadas ao processo e ao contexto onde o discurso ocorreu (ou está ocorrendo). Por serem convenções sociais, tais pistas têm valor sinalizador quando organizadas, negociadas na interação entre participantes que manifestam seu conhecimento de mundo ou conhecimento pressuposto, construído e partilhado social e culturalmente. Na tentativa de identificar tais pistas, Gumperz reconhece que elas podem aparecer sob várias formas linguísticas e isto dependerá do repertório linguístico de cada participante, historicamente situado e determinado. Ele não privilegia, portanto, uma categoria linguística como o faz Lyons, mas além de expressões formulaicas, fenômenos de alternância de código e sinais prosódicos, engloba também sinais rítmicos e fonéticos, bem como reconhece a contribuição de outros estudos (cf., por exemplo, HALL, 1959, 1966; BIRDWHISTELL, 1970, etc.) que analisam sinais não-verbais como movimentos faciais e gestuais. Todos estes sinais entram, portanto, no processo de contextualização. Este processo tem um papel importante, pois possibilita identificar os rumos de uma interação. Em Gumperz, a diversidade das pistas de contextualização tem como tarefa a promoção do trabalho interacional. Elas têm valor indexical uma vez que permitem aos participantes da situação comunicativa saberem o que está acontecendo. Na tentativa de compreender como se organiza o discurso (oral) e como este se orienta em relação à situação interacional, Goffman (1998) desenvolveu o conceito de enquadre. “O enquadre situa a metamensagem contida em todo enunciado indicando como sinalizamos o que dizemos ou fazemos e sobre como interpretamos o que é dito ou feito” (GOFFMAN, 1998, p.70). Através destes enquadres, os participantes organizam o discurso e se orientam na situação interacional. Ao desenvolver sua concepção de enquadre, Goffman formulou o conceito de footing. Os footings caracterizariam o aspecto dinâmico da natureza discursiva dos enquadres, pois são introduzidos, negociados, modificados e apontam para o modo como os participantes organizam a produção e a recepção dos enunciados. São uma forma de discurso metapragmático, nos termos de Silverstein (1976). O interesse de Goffman está em investigar como ocorrem as mudanças de footing partindo da decomposição da sua base estrutural, a saber, o paradigma conversacional tradicional falante - ouvinte, em partes mais diferenciadas para dar conta da complexidade das relações discursivas presentes na estrutura de produção (referente ao falante) e na estrutura de participação (referente ao ouvinte). Haveria, portanto, tipos de ouvinte (participante ratificado 31

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ou oficial, participante não-ratificado ou circundante, por exemplo) e tipos de falante (animador, autor e principal ou responsável) na situação social. Nesta perspectiva, os participantes competentes podem ou manter o mesmo footing ou alternar entre uma postura ou alinhamento para outro na situação social dinamicamente. E como nos lembra a metáfora dramatúrgica de Goffman para a interação humana, os falantes ou participantes são atores (sociais) num palco que podem desempenhar uma multiplicidade de papéis, sempre em função dos seus interlocutores, na tarefa de compartilhar um foco cognitivo ou tema. Finalmente, vejamos como Ochs (1996) percebe a indexicalidade. Segundo ela, a indexicalidade está no centro da socialização linguística e possui três princípios constitutivos: (i) o princípio da indexicalidade em si; (ii) o princípio da cultura universal e (iii) o princípio da cultura local. A teoria da indexicalidade é uma teoria de socialização que se dá nas práticas linguísticas. Isto ocorre porque para interagir numa dada situação social, os participantes fazem uso de formas, concepções, valores etc. modelados culturalmente, incluindo o seu repertório linguístico. Em outras palavras, os participantes ativam dimensões sócio-culturais como tempo, espaço, identidades sociais, atos sociais (ex: uma pergunta, uma oferta etc.), atividades (ex: narrar uma estória, dar um aviso etc.), posturas afetivas (humor, sentimentos etc.) e posturas epistêmicas para interagir. Essas dimensões sócio-culturais ativadas na interação são imbuídas de significados que se materializam em formas particulares (ex: perguntas, afixos de diminutivo, pronomes, entonação etc.). Portanto, na linguagem, a indexação é realizada por formas linguísticas cuja função seria apontar a presença de alguma “entidade” na situação imediata. Essas formas variam de acordo com a situação e são convencionalmente associadas às dimensões sócioculturais que foram ativadas. Com o princípio da cultura universal, Ochs se refere ao fato de que a cultura é parte constituinte de nossa humanidade e por isso assume algumas características mais universais ou “comuns”. Estas características estariam presentes nos significados linguísticos usados para formar determinados significados situacionais nas sociedades. Esse princípio sugere que os interlocutores utilizam-se de certos significados semelhantes para atingir determinados fins sociais. Contudo, é limitado por não se aplicar para a caracterização de todas as práticas indexicais situadas. As bases para este princípio seriam as seguintes: a) as formas linguísticas usadas pelas sociedades indexam as dimensões situacionais de tempo e de espaço, as posturas afetivas e epistêmicas, as identidades sociais, os atos e as atividades; b) nas sociedades, algumas categorias nas dimensões de postura (ex: categorias epistêmicas tais como certeza/incerteza, categorias afetivas como intensidade/mitigação, surpresa, etc. são indexadas universalmente) e significado de atos sociais podem ser comparados (ex: saudação, agradecimento, aceitação, discordância, etc. aparecem nas mais variadas culturas); e c) certas formas linguísticas são usadas nas sociedades para indexar posturas e significados de atos sociais comparáveis (ex: na postura epistêmica, a incerteza geralmente é indexada através do uso de verbos modais como poder, dever, etc.). Com o princípio da cultura local, Ochs considera que a cultura local é formada, em parte, por uma série de valências situacionais que relacionam tempo, espaço, posturas, atos, atividades e identidades. As relações entre essas dimensões se dão nas expectativas culturais de cada sociedade no que diz respeito ao escopo das posturas que são associadas a determinadas atividades e identidades, às preferências por certas posturas e atos em determinadas atividades e identidades sociais, e à extensão/duração de determinadas posturas e atos realizados em determinadas atividades e identidades. Segundo Ochs, escopo, preferência e duração caracterizam como os participantes, 32

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situados num contexto sócio-cultural, usam a linguagem distintivamente para indexar sentimentos, conhecimentos e atitudes de outras pessoas, seus interlocutores, bem como para construir identidades sociais no processo da interação. Na interação é que é possível compreender os significados indexicais das formas linguísticas utilizadas. Diante das considerações expostas, percebemos que através das práticas linguísticas e sociais, a linguagem se constitui um instrumento poderoso pelo qual pensamos, descrevemos, avaliamos e reproduzimos nosso mundo social e cultural. Essa capacidade aponta para o aspecto criativo e performativo da indexicalidade, usada pelos falantes para construir, dentre outras coisas, as identidades sociais. A construção de identidades sociais é um fenômeno ideológico e processual que se dá socialmente pela linguagem no jogo da interação social e leva em conta a postura afetiva e epistêmica dos participantes numa sociedade. Por isso, constitui-se uma dimensão sóciocultural ativada na situação comunicativa. Como se dá então, a indexação de identidades sociais? A indexação de identidades sociais é desempenhada por estruturas e categorias linguísticas e discursivas que exercem esse papel, e nem sempre são gramaticalizadas. É importante perceber que essas estruturas e categorias não têm valor em si mesmas a não ser que sejam interpretadas em uma situação comunicativa maior, que envolve papéis e relações sociais. Compreender e atribuir o significado indexical dessas estruturas faz parte da habilidade humana de indexar. Desse modo, a indexação está no centro de nossa competência linguística e cultural e é o “lugar” onde a aquisição da linguagem e a socialização se encontram, se conectam. (OCHS, 1996, p.414). Um dos modos relevantes e ideologicamente significativos utilizados pelos atores sociais para indexar identidades é através da alocação de papéis sociais nas situações discursivas. Este aspecto é destacado por autores como Ochs (1996), Goffman (1998) Van Leeuwen (1997, 2008) e Fairclough (2003) como pista para compreender a construção de identidades sociais. Na verdade, papéis sociais sinalizam, dentre outras coisas, para o tipo de relação social entre os participantes, num nível micro, e para todas as normas, preferências e expectativas sócio-culturais, num nível macro, em cada sociedade. A relevância desta categoria está no fato de que pode haver discrepância ou incongruência entre papéis gramaticais desempenhados/atribuídos textualmente e os papéis sociais desempenhados de fato nas práticas sociais em que os atores se situam. A alocação de papéis entre os atores sociais em dada representação linguística de um evento social aponta para o fato de que estes são, geralmente, participantes nas sentenças. A Indexação de Identidades Sociais de Políticos Indiciados por Corrupção Investigar a construção das identidades sociais dos políticos envolvidos em situações de corrupção é um caso interessante de construção identitária pela sua complexidade, ou seja, nesses atores se mesclam várias identidades: o político que pertence a um partido, o político que ocupa um cargo institucional, o cidadão, o réu, o criminoso, a vítima, dentre outros; além do que, os casos de corrupção no cenário político nacional abalam as principais instituições representativas da política brasileira, tais como o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, comprometidas em termos de credibilidade e imagem diante da opinião pública.

Para exemplificamos a indexação de identidades sociais neste cenário de corrupção política, analisaremos brevemente, à luz de Fairclough (2003) e van Leeuwen (1997, 2008), a categoria da alocação de papéis que funciona como índice ou indexador de identidades sociais. O caso de corrupção que ilustra esta análise é o chamado “mensalinho”, que envolveu o deputado Severino Cavalcante, doravante, SC, então presidente da Câmara dos Deputados em Brasília. SC foi acusado de cobrar propina a um empresário em troca de favorecimentos.

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Para esta análise, selecionamos trechos do discurso de SC ao deixar o cargo de presidente da Câmara devido a este escândalo1. A1- “E diante do que estou vivendo no momento, diante das circunstâncias que me cercam de ameaças, de escárnios, de contestação, de processos sem causa, eu me recordo de que o sertanejo é antes de tudo um forte.” (A eleição) A2 – “Presidente depois de uma eleição disputadíssima, limpa, democrática, presidente com 300 votos.” (Os donos do Congresso) A3 – “Eleito para mudar uma casa cheia de donos, os donos do Congresso, onde pontificava uma elite distanciada da maioria dos deputados, chamada desdenhosamente de baixo clero.” (A MP 232) A4 – “Quando o Governo tentou impor o aumento de impostos por meio da Medida Provisória 232, mobilizamos o País, ouvimos o povo, ampliamos o debate e rejeitamos a medida que era injusta”. (As denúncias) A5 – “A elitizinha, essa que não quer jamais largar o osso, insuflou contra mim seus cães de guerra, arregimentou forças na academia e na mídia e alimentou na opinião pública, a versão caluniosa de um empresário que precisava da mentira para encobrir as dívidas crescentes de seus restaurantes, que necessitava da extorsão para equilibrar a desastrosa administração de suas empresas.” (Imprensa livre) A6 – “Eu sempre defendi a liberdade de imprensa. Mas, em nosso País, liberdade de imprensa tem sido a porta aberta para suspeitas sem comprovação, para acusações sem provas, para destruição de reputações.” (A herança) A7 – “Não permitam que um deputado possa ir seis, oito vezes no ano para representar o Brasil fora, e os outros ficarem à margem. Isso não pode mais acontecer nessa casa. Vocês serão os responsáveis do amanhã. Não permitam que qualquer presidente que ocupe esta casa faça o que faziam anteriormente, que os deputados do baixo clero não tinham vez nem oportunidade.” (As dívidas) A8 – “Vou repetir ainda que deixo a Câmara como entrei, não apenas como deputado pobre, mas político endividado. Vou viver de minha aposentadoria no Estado de Pernambuco, onde fui deputado por sete mandatos porque para pagar as dívidas de campanha, saquei o saldo de minha contribuição para aposentadoria na Câmara dos Deputados, portanto, eu não tenho aposentadoria da Câmara dos Deputados.” (Presidente Lula) A9 – “Pedi minha audiência com o com o Presidente da República para comunicar-lhe como chefe de um dos poderes, minha saída como Presidente da Câmara, apenas isso. Para me antecipar às eventuais acusações de fisiologia, já pedi a meu filho, José Maurício, que deixe imediatamente seu posto no Ministério da Agricultura em Pernambuco.” (A renúncia) A10 – “Optei, sim, pela renúncia porque já me fazia condenado de antemão. Minha culpabilidade foi declarada sem apelação antes das provas e mesmo do processo, e minha condenação vem antes de qualquer sentença, veio pela imprensa, veio pela voz de alguns poucos, veio por aqueles interessados em tomar esta vaga o mais rapidamente possível, a cadeira de Presidente da Câmara.” (A volta) A11 – “Voltarei. O povo pernambucano, mais uma vez, não me faltará. Minha querida João Alfredo e outros municípios de minha base não me faltarão. O povo me absolverá. Não tenho a menor dúvida. E saio daqui com o semblante de um homem feliz que sacrificou a sua posição para que esta Câmara volte a funcionar.” 1

Este discurso foi editado e disponibilizado on line pela TV Câmara, no endereço www.camara.gov.br/internet/tvcamara, o qual transcrevemos para o presente texto. A TV Câmara cobre os principais acontecimentos da política nacional e sua programação está disponível tanto na TV aberta quanto via internet para todo Brasil. Optei por enumerar a seqüência das falas do referido político como A1, A2, A3 etc. para facilitar a referência no decorrer da análise. A voz da repórter, colocada entre parênteses, topicaliza os temas sobre os quais SC vai falar a respeito. 34

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Tanto Fairclough (2003) quanto van Leeuwen (1997, 2008) reconhecem que podemos fazer várias escolhas codificadas e disponibilizadas na língua para representar os atores sociais e os processos nos quais estão inseridos como participantes2. Essas escolhas revelam uma percepção do mundo social, inclusive em termos de identidades sociais enquanto efeito das práticas discursivas. Por isso, vamos nos limitar aos processos verbais e aos participantes (agente e paciente), uma vez que estão em maior evidência no texto, como nos mostram os exemplos a seguir: Ex 1: Quando o Governo tentou impor o aumento de impostos por meio da Medida Provisória 232, [nós] mobilizamos o País, ouvimos o povo, ampliamos o debate e rejeitamos a medida que era injusta”. [A4] Ex 2: Não permitam que um deputado possa ir seis, oito vezes no ano para representar o Brasil fora, e os outros ficarem à margem. (...) Não permitam que qualquer presidente que ocupe esta casa faça o que faziam anteriormente, que os deputados do baixo clero não tinham vez nem oportunidade. [A7] Ex: 3: [Eu] Optei, sim, pela renúncia porque já me fazia condenado de antemão. Minha culpabilidade foi declarada sem apelação (...), e minha condenação (...) veio pela imprensa, veio pela voz de alguns poucos, veio por aqueles interessados em tomar esta vaga o mais rapidamente possível, a cadeira de Presidente da Câmara.” [A10] Portanto, “tentou impor”, “mobilizamos”, “foi declarada”, dentre outros, são exemplos de processos verbais. Já “Governo”, “os deputados do baixo clero”, “[Eu]” em “Optei, sim pela renúncia (...)” são exemplos de participantes, atores sociais. Fairclough (2003, p.150) afirma que o significado da ativação e da passivação é bastante transparente, isto é, o que se acentua quando atores sociais são ativados em uma circunstância ou processo é a sua capacidade de exercer uma ação agentiva, como também fazer com que as coisas aconteçam ou até mesmo poder de controlar pessoas ou, no caso de SC, convencê-las da inocência dele. Por outro lado, quando apassivados, o que se acentua nos atores sociais é a sua sujeição aos processos, sendo, portanto, afetados ou sofrendo os resultados das ações dos outros. Na circunstância da saída da Presidência da Câmara pela acusação de corrupção, SC se coloca como agente em processos que acentuam seu heroísmo, hombridade, inocência e não culpabilidade por um crime. Sendo assim, ele exerce na maioria das ocorrências, papéis sociais ativos na representação de si mesmo em seu próprio discurso. Os outros atores, por outro lado, parecem ser aqueles que, na verdade, exercem ou ocupam uma posição de poder e controle neste tipo de interação, poder este que teria resultado na derrocada supostamente injusta deste político. Logo, haveria uma assimetria total de poder entre SC e os outros que o acusaram e “tomaram” dele o cargo de presidente da Câmara, como ele mesmo acentua em A5 e A10. O ator social é representado como ator, de fato, nos processos em que este faz coisas ou faz as coisas acontecerem, ou é afetado ou beneficiário desses processos. Quem é representado como “agente” e como “paciente” em uma dada ação ou atividade? Há clareza ou encobrimento da agência? Há o uso de nominalizações e no que isto implica? Como o ator principal, ou seja, o próprio autor do discurso acusado de corrupção política indexa sua 2

Fairclough (2003, p.145) esclarece que os atores sociais podem ser participantes (ou não!) nas sentenças que representam processos ou circunstâncias. Contudo, nem todos os participantes são atores sociais – eles podem ser objetos físicos, por exemplo. Em O carro bateu em Mary e em O carro bateu em uma rocha, ambos, Mary e a rocha, são objetos do verbo, ou seja, participantes, mas apenas Mary é um ator social. 35

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identidade social e a dos outros nesta situação? São questões dessa natureza que tentamos responder nesta análise sobre a alocação de papéis no texto e qual a implicação disto no processo de construção identitária. É importante salientar que, em primeiro lugar, questões dessa natureza ratificam a importância da investigação da alocação dos papéis nos textos e discursos pelo fato de que pode não haver congruência entre papéis desempenhados de fato pelos atores sociais nas práticas sociais e os papéis gramaticais que eles desempenham ou lhe são atribuídos nos textos, como dissemos anteriormente. Como lembra van Leeuwen (1997, p.186), “as representações podem redistribuir papéis e organizar as relações sociais entre os participantes”. Deste modo, a alocação de papéis é ideologicamente significativa. Em segundo lugar, essas questões apontam para o processo de auto e hetero-atribuição de identidades, nos termos de Ochs (1996). Nas práticas sociais e nos discursos produzidos nestas mesmas práticas, atribuímos determinado valor aos índices que usamos para construir discursivamente a nós mesmos e ao(s) outro(s) em nossa realidade social, dentro do processo de socialização linguística pelo qual somos inseridos em sociedade. Observamos que os principais atores sociais incluídos no discurso de SC são: (i) o próprio SC, autor do discurso, como em A1, “eu” e em A2, “presidente eleito com 300 votos”; (ii) os outros políticos que lhe fazem oposição, como em A3, “os donos do Congresso” e em A5, “elitizinha”; (iii) os políticos que são seus possíveis aliados, como em A3, em que SC se refere a esta “classe” de políticos como “baixo clero”; (iv) algumas instituições de poder como em A5, “a academia” e “a mídia”; (v) o empresário que denunciou o político em questão - em A5, SC se refere a este empresário como “um empresário que precisava da mentira para encobrir as dívidas crescentes de seus restaurantes, que necessitava da extorsão para equilibrar a desastrosa administração de suas empresas”; e (vi) outras pessoas que não atuam como políticos no Congresso, mas que são importantes neste caso, genericamente referidas como “o povo” em A4 e “opinião pública” em A5. Mantenhamos o foco em SC, principal ator social, e vejamos como ele posiciona a si mesmo e aos outros atores sociais, construindo assim, sua identidade social e a dos outros envolvidos em seu discurso. Isso é possível porque, como nos lembra Fairclough (2003, p.160), os atores sociais são agentes que não estão pré-posicionados ou pré-condicionados no modo como participam nos eventos sociais e nos textos. Como agentes sociais, eles pensam, criam e mudam as coisas. É por isso que o processo de identificação ou construção de identidades é um processo bastante complexo e instigante e se constitui um dos temas mais relevantes na teoria pós-estruturalista. Notamos que o principal propósito de SC neste discurso é defender sua imagem, como um político honesto, herói sertanejo que bravamente lutou contra as “injustiças” do Governo contra a população e até mesmo agiu em favor dos deputados “do baixo clero” no Congresso, deputados estes que supostamente eram oprimidos e desdenhados por uma elite de outros deputados, a quem nomeia “os donos do Congresso” ou “elitizinha”. A forma como SC vai manipular os processos verbais e os participantes concretiza a tentativa que ele faz de manter uma imagem limpa, incorruptível, apesar das provas de corrupção apresentadas contra ele. Os exemplos abaixo mostram que SC representa a si mesmo com força agentiva, dinâmica, fazendo coisas, ou fazendo com que coisas acontecessem.

Ex 4: E diante do que estou vivendo no momento (...). [A1]

Ex 5: Quando o Governo tentou impor o aumento de impostos por meio da Medida Provisória 232, mobilizamos o País, ouvimos o povo, ampliamos o debate e rejeitamos a medida que era injusta”. [A4] Ex 6: Eu sempre defendi a liberdade de imprensa (...). [A6] Ex 7: Vou repetir ainda que deixo a Câmara como entrei, (...). Vou viver de minha aposentadoria no Estado de Pernambuco (...) porque para pagar as dívidas de campanha, saquei o saldo de minha contribuição para aposentadoria na Câmara dos Deputados, portanto, eu não tenho aposentadoria da Câmara dos Deputados. [A8]

Como nos mostram os exemplos acima, SC se identifica, basicamente, através dos pronomes dêiticos pessoais “eu” e “nós”, assumindo a agência das ações representadas. O “eu” aparece em duas circunstâncias: ou ele está implícito na desinência dos verbos tais como, “estou vivendo”, “vou repetir”, “deixo” e “sacrificou” (cf. os exemplos 4, 7) ou aparece de forma enfática, diante de formas verbais como “defendi” (cf. o exemplo 6). O uso de “nós” é mais genérico e está também implícito na desinência de formas verbais como “mobilizamos” e “rejeitamos” (cf. o exemplo 5). Este uso parece valorizar uma postura mais humilde de SC diante de sua tentativa de luta contra possíveis ações injustas do ator “Governo”.

SC ativa a si mesmo como ator participante em relação a certas ações introduzidas por formas verbais como “estou vivendo”, “defendi” e “mobilizamos”. Este papel ativo é 36

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claramente destacado para se fazer notar pela sua audiência. Portanto, a ativação é uma estratégia argumentativa que este ator se apropria para “limpar” sua imagem, inocentar a si mesmo e acusar seus acusadores. Já em outras circunstâncias, SC atribui o papel de ator agente a outros participantes com o mesmo objetivo, ou seja, inocentar-se e tirar o foco de si mesmo acusando outros atores. É o caso dos exemplos abaixo:

Ex 8: A elitizinha, essa que não quer jamais largar o osso, insuflou contra mim seus cães de guerra, arregimentou forças na academia e na mídia e alimentou na opinião pública, a versão caluniosa de um empresário que precisava da mentira para encobrir as dívidas crescentes de seus restaurantes, que necessitava da extorsão para equilibrar a desastrosa administração de suas empresas. [A5] Ex 9: – (...) O povo pernambucano, mais uma vez, não me faltará (...). [A11] No exemplo 8, ao acionar os atores “elitizinha” e “empresário” como agentes introduzindo formas verbais como “não quer largar o osso”, “insuflou”, “arregimentou”, “precisava” e “necessitava”, ele se coloca como objeto e não como sujeito desses processos. Essa escolha também é intencional. SC se vitima sofrendo os efeitos das ações dos outros atores sociais para se inocentar do crime de corrupção. De todo modo, ele se torna beneficiário da ação agentiva praticada por estes outros atores no texto. Já no exemplo 9, SC aciona “o povo pernambucano” em relação à forma verbal “não me faltará” para não apenas relembrar sua origem nordestina, mas para também assegurar e relembrar à sua audiência, a continuidade de sua vida política. Algo interessante a se notar é o fato de que SC se apropria marcadamente da intertextualidade em dois momentos ideologicamente significativos de seu discurso, como também argumento para sua defesa, projetando uma imagem de vítima e de perseguido político. O primeiro momento está em A1 quando ele se vale da sua origem nordestina e cita literalmente um enunciado da célebre obra do autor Euclides da Cunha, Os Sertões3. O referido autor caracterizou o nordestino como “forte” em outras circunstâncias que não dizem respeito às práticas de corrupção pelos atores políticos. SC ao dizer que “o sertanejo é antes de tudo um forte!” quis se colocar como um bravo guerreiro, sobrevivente diante das acusações de corrupção, que em sua interpretação, só queriam destruir sua imagem e reputação por ser nordestino e “sertanejo”. Outro momento em que faz uso da intertextualidade é quando ele adapta a citação bíblica “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”4 para “o povo pernambucano (...) não me faltará” e para “Minha querida João Alfredo e outros municípios de minha base não me faltarão” (cf. A11). Com isso, ele dá um tom religioso ao seu discurso. Daí, podemos inferir que ele quer projetar uma imagem de homem religioso e crente, características tão marcantes do sertanejo sofrido. Vale salientar que esse mesmo tom religioso está presente em outros momentos do seu discurso ao usar palavras do tipo “pontificava” e “baixo clero” (cf. A3), desta feita, apresentando uma conotação negativa sobre os que exercem poder.

No exemplo abaixo, apesar de menos frequentes no texto, a ativação se dá por meio de nominalizações. Ex 10: Eu sempre defendi a liberdade de imprensa. Mas, em nosso País, liberdade de imprensa tem sido a porta aberta para suspeitas sem comprovação, para acusações sem provas, para destruição de reputações. [A6] Nominalização é a conversão de um processo em um nome ou grupo nominal. É o caso do exemplo acima, em que SC preferiu nominalizar as ações “suspeitar”, “acusar” e “destruir”. Segundo Fairclough (1989, p.124), os processos podem ocorrer na forma reduzida de uma nominalização; forma reduzida no sentido de que alguma coisa do significado na sentença é perdida ou omitida, como por exemplo, o tempo da ação, a modalidade ou até mesmo o agente ou paciente. No exemplo acima, a nominalização se torna justificativa ou explicação para que o político inocente a si mesmo do crime de corrupção e para não deixar dúvidas na compreensão da audiência idealizada de sua inocência. É o caso de “suspeitas sem comprovação”, “acusações sem provas” e “destruição de reputações”. Esta clareza dos fatos, permitida pela nominalização, talvez tenha uma motivação ideológica ao responsabilizar outros atores, como a imprensa, uma vez que encobre não só o processo como também a causalidade ou responsabilidade pelo crime do ator social em questão. Indiretamente, SC aciona a si mesmo como paciente dos processos que foram nominalizados. Também, pouco comum no texto, é a representação dos processos através de formas verbais passivas.

Ex 11: (...) Minha culpabilidade foi declarada sem apelação antes das provas e mesmo do processo e minha condenação vem antes de qualquer sentença (...) [A10]

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Cf. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Obra Completa (v 2). Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 1995, p 179. Cf. Salmo 23, versículo 1 . Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida, 1975, p. 576. 37

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O exemplo acima, em que a nominalização “minha culpabilidade” introduz a forma verbal passiva “foi declarada”, configura uma ação sem um agente, ator social de fato do processo representado. SC aciona uma causalidade como responsável pela ação. Com essa escolha representacional, o ator busca vitimar e inocentar a si mesmo do crime de corrupção. Diante dessas considerações depreendidas da análise de um discurso de um político acusado por corrupção, fica claro que ele atua como ator agente na maior parte dos processos acionados por formas verbais ativas para construir sua identidade social como político honesto e acusado injustamente por seus opositores. Quando os outros atores sociais são ativados como agentes em outras circunstâncias, a representação também reforça a inocência do político diante da acusação de corrupção. Do mesmo modo, quando ocorrem outras representações com o uso de nominalizações ou da voz passiva nos verbos, estas também beneficiam o político em seu próprio discurso. É possível que além da categoria da alocação de papéis possa haver outras categorias linguístico-discursivas para representar os atores sociais envolvidos na situação de corrupção política, indexando deste modo suas identidades sociais e legitimando um estado de coisas específico. Neste propósito continuamos investigando.

Considerações Finais Como observamos nesta reflexão, o que está no escopo da indexicalidade são preocupações concernentes a questões do tipo co omo atribuímos determinado valor aos objetos, entidades etc. aos quais nos referimos existencialmente nas situações comunicativas? Como se dá o processo pelo qual relacionamos enunciados a momentos, lugares e pessoas em determinadas circunstâncias? Como indexamos significados através da linguagem nas práticas sociais e comunicativas humanas que se desenrolam em nosso cotidiano? O modo como ordenamos social e culturalmente as atividades linguístico-discursivas no mundo e como fazemos escolhas ao referirmos existencialmente formas linguísticas, com um valor, a objetos em determinadas situações comunicativas, evidencia a capacidade humana de indexar significados através da linguagem. Essa capacidade é legitimada na interação social e chama a atenção para dois elementos fundamentais para que se realize: a alteridade e o contexto sócio-cultural. Vários estudiosos têm examinado diferentes aspectos do processo pelo qual indexamos linguisticamente nosso mundo, dependendo da situação discursiva. Os shifters em Silverstein, a equivalência dêixis = indexicalidade em Lyons e sua tentativa de inventariar os dêiticos, o destaque para a dêixis social em Levinson, os footings em Goffman, as pistas de contextualização em Gumperz, a indexicalidade como recurso linguístico para socialização humana em Ochs, dentre outros, representam nada mais que diferentes dimensões de análise sobre o mesmo fenômeno, grosso modo, denominado indexicalidade. Várias estruturas ou categorias linguístico-discursivas podem fazer o papel de índice para sinalizar, apontar, representar um objeto no mundo externo a que se refere. Por outro lado, essa relação é estabelecida de forma dinâmica por pressuposição e criatividade dos participantes em uma interação; por outro, é situada na cultura e sociedade em que se processa. Um dos resultados do processo indexical é o modo como se dá a indexação de identidades sociais. Trabalhos de natureza sociológica como os de Goffman (1998) e Ochs (1996), por exemplo, contribuem, dentre outras coisas, para a percepção de como são construídas as identidades sociais dos participantes na interação que se desenvolve e como esta indexação pode afetar os rumos desta mesma interação. Pensar nos atores sociais como aqueles que geralmente assumem papéis sociais nos faz considerar que assumir uma identidade social é uma questão de ser capaz de assumir e desempenhar papéis sociais e personificá-los, investindo-os da própria personalidade do ator que atua de modo distintivo (Fairclough 2003, p.11). Como observamos no discurso analisado neste trabalho, o modo como papéis sociais são alocados nos textos indexa identidades sociais. Logo, a categoria “alocação de papéis” teria uma função indexical importantíssima na investigação do modo como se dá a construção 38

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de identidades sociais de políticos envolvidos em escândalos de corrupção no cenário político nacional. Além dos papéis, as identidades sociais estão relacionadas dialética e dialogicamente a outros elementos da estrutura social, tais como as relações sociais, os sistemas de conhecimento e crença, os valores culturais, dentre outros. Falar em construção de identidade social é falar sobretudo de diferença, marca da nossa humanidade, sob o foco da interação social, “arena” onde a vida social é (re)produzida e os sujeitos, atores sociais, participantes das práticas sociais constroem/indexam suas próprias identidades e a dos outros, em um confronto identitário constante que se dá através do discurso. Isso nos lembra a afirmação de Chouliakari e Fairclough (1999, p.96) de que a luta para definir identidades é um dos temas mais pervasivos da modernidade tardia pelo fato de que as lutas para definir/construir identidades são antes de tudo, lutas sobre “diferença”. Quem somos nós e quem são os outros em nosso mundo social? Tão urgente quanto este questionamento, é a criação de caminhos para dialogar e atuar com estes “outros”, diferentes de nós, na sociedade contemporânea. A indexicalidade está no centro da socialização humana e por isso é um importante recurso para refletirmos sobre o processo de construção de identidades sociais e quem sabe, se constitua uma via de diálogo para reflexão de como lidarmos com a diferença. REFERÊNCIAS BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. CHOULIAKARI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discouse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. BIRDWHISTELL, R. Kinesics and context. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1970. DURANTI, A. Units of Participation . In Linguistic Antropology. Cambridge: Cambrigde University Press, 1997. p. 280-330. FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989. ______. Discurso e mudança social. Brasília, UNB, 2001. ______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routlegde, 2003. GOFFMAN, E. Footing. In B. Ribeiro e P. Garcez (Orgs.). Sociolinguística interacional. Porto Alegre: AGE Editora, 1998. p. 70-97. GUMPERZ, J, (Ed.) Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. GUMPERZ, J. Pistas de Contextualização. In B. Ribeiro e P. Garcez (Orgs.) Sociolinguística interacional. Porto Alegre: AGE Editora, 1998. p. 70-97. HALL, E. T. The silent language. New York: Doubleday, 1959. ______. The hidden dimension. New York: Boubleday, 1966. LEVINSON, S. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 55-96. LYONS, J. Semantics. V 2. Cambridge University Press, 1977. p. 636-724. LYONS, J. Linguistic semantics: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. OCHS, E. Constructing Social Identity: a language socialization perspective. Research on language and social interaction, 26(3):287-306, 1993. ______. Linguistic resources for socializing humanity. In J. Gumperz e S. Levinson (Eds.). Rethinking linguistic relativity. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 406- 437. (Studies in the social foundations of language 17) SIGNORINI, I. (Org.). Linguagem e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. São Paulo: Mercado de Letras, 1998. 39

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Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 A CONSTITUIÇÃO DO LÉXICO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO Maria Auxiliadora Bezerra*

Resumo O léxico desperta o interesse dos estudiosos desde a Antiguidade, visto que nele se cruzam informações fonético-fonológicas, morfossintáticas, semântico-pragmáticas, sócio-históricas, culturais e outras. Assim sendo, nosso objetivo é fazer um levantamento (não-exaustivo) sobre a constituição do objeto de estudo „léxico‟, como parte da história das ideias linguísticas. É um estudo bibliográfico, pautado em três grandes eixos: 1) “palavra-signo” (a palavra como sinal de outra coisa, a tentativa de entender-se a relação entre palavra, ideias e coisas); 2) “palavra-forma” (a palavra estudada em seus aspectos fonéticos e morfológicos, com fins comparativos, para se estabelecer a história das línguas); e 3) “palavra-relação” (a palavra analisada em relação a outras, formando sub-conjuntos, os quais constituem o sistema linguístico; e a palavra em relação aos usos sociais da língua e seus aspectos sócio-históricos). Palavras-chave: Léxico; signos; formas; relações. Abstract The lexicon of a language has called researchers‟ attention, due to the fact that, in the lexicon, phonetic-phonological, as well as morphosyntactic, semantic-pragmatic, sociohistorical, cultural and other types of information are crossed. Thus, the objective of this paper is to carry out an investigation of lexicon formation as a part of the history of linguistic ideas. This is a bibliographic study based on three lines: 1) word as “representation” (the word representing something, as an attempt to understand the relationship between word, ideas and things); 2) word as “form” (the word being studied in its phonetic and morphological aspects, as an attempt to make comparisons to establish the history of languages); and 3) word as “relation” (the word being analyzed in relation to other words, forming sub-groups that form the linguistic systems, as well as the word in relation to social uses of language and its socio-historical aspects). Keywords: Lexicon; signs; forms; relations.

Introdução Muitos são os estudos e pesquisas que se dedicam ao léxico, desde a Antiguidade, partindo de pontos de vista variados – filosófico, gramatical, filológico, linguístico, cognitivo, discursivo, entre outros – com o objetivo de depreender-lhe a natureza, etimologia, forma, usos, funções, significados, efeitos de sentido... Isso, porque o léxico, conforme Lorente (1998), está situado em uma interseção linguística, onde se cruzam informações provenientes de caminhos diversos (que, ao longo do tempo, foram se constituindo áreas específicas do saber): dos sons/fonemas (fonética e fonologia), dos significados (semântica), dos morfemas (morfologia), do arranjo sintagmático (sintaxe), do uso linguístico e das situações comunicativas (pragmática), dos efeitos de sentido (análise de discurso) e tantos outros caminhos. Essa variedade *

Doutora em Linguística – UFCG - [email protected] 1

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 demonstra filiações teóricas, filosóficas e ideológicas diversas e indica que fazer um percurso dos estudos lexicais exige, necessariamente, um recorte, que inclui silêncios e esquecimentos. Nesse contexto, este artigo se propõe fazer um levantamento sobre a constituição do objeto de estudo „léxico‟, como parte da história das ideias linguísticas, que se foram constituindo ao longo dos séculos. Por ideia linguística entendemos, conforme Auroux (1989), os saberes construídos sobre uma língua, em um certo espaço de tempo, como produto tanto de uma reflexão metalinguística, quanto de uma atividade metalinguística não explícita. Este texto inclui contribuições teóricas clássicas, medievais, modernas e contemporâneas, advindas de consultas a documentos variados. Sabendo-se que nem sempre esses documentos são contemporâneos ao pesquisador, duas dificuldades se lhe apresentam (FÁVERO e MOLINA, 2004, p.143): a) a distância espácio-temporal entre o cenário onde viveram os autores cujas obras são o objeto de estudo e o contexto em que o pesquisador produziu a investigação; b) a seleção e interpretação dos dados – o pesquisador não pode se esquecer de que nem sempre é possível encontrar as obras. Essas dificuldades podem favorecer interpretações variadas e lacunas, mas certamente propiciam a certeza de que o trabalho é árduo e os caminhos tortuosos. A organização deste texto pautou-se em três grandes eixos dos estudos lexicais. O primeiro corresponde à “palavra-signo”: a palavra como sinal de outra coisa, a tentativa de entender-se a relação entre palavra, ideias e coisas; por isso a presença de incursões (rápidas, respeitando os limites deste capítulo) em estudos de filosofia e de gramática (principalmente os que relacionam gramática e lógica). O segundo remete à “palavra-forma”: a palavra estudada em seus aspectos fonéticos e morfológicos, com fins comparativos, para se estabelecer a história das línguas. E o terceiro eixo refere-se à “palavra-relação”, vista sob dois ângulos: no primeiro, a palavra é analisada em relação a outras, formando sub-conjuntos, que se ligam a outros por meio de relações diversas, formando o sistema linguístico; e no segundo, a palavra em relação aos usos sociais da língua e seus aspectos sócio-históricos. No Princípio, a Palavra, as Ideias e as Coisas: a “Palavra-signo” Os primeiros estudos (entre os conhecidos pelo mundo ocidental) considerados como linguísticos, vistos seu rigor e descrição sistemática, podem ser os realizados por Pãnini (s. IV a.C.), na Índia. As reflexões sobre a língua sânscrita levadas a efeito, por esse estudioso, partem da palavra como forma, distinguindo as palavras “verdadeiras” das “fictícias” (mots “vrais” et mots “ficitifs”) (REY, 1980, p.6), o que corresponderia, aproximando-as dos estudos atuais, às unidades lexicais e aos morfemas, respectivamente. Embora não tenha se dedicado exclusivamente à relação palavraconceito, Pãnini deixou algumas reflexões a esse respeito, pois seu objetivo de estudo era distinguir as palavras dos elementos não-lexicais, as palavras simples das compostas, a palavra como forma da palavra como portadora de sentido. Com isso ele contribuiu com a distinção entre forma e conteúdo, com a língua-objeto e a metalíngua, preocupando-se em classificar as unidades linguísticas. Na Grécia antiga, diferentemente da Índia, as primeiras reflexões partem da palavra como instrumento conceitual (Aristóteles) ou como reflexo possível do mundo das ideias (Platão). Assim, construiu-se uma teoria do nome, instrumento para pensar as coisas.

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Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 Aristóteles procurou relacionar as partes do discurso aos conceitos, defendendo a ideia de que o nome é um som vocal que possui uma significação convencional, por isso ele considerava apenas o que podia ser analisado em termos de conteúdo, não reconhecendo a possibilidade de que elementos menores de uma palavra apresentassem significação, se tomados separadamente (ROBINS, 1979; REY, op.cit.). Em outras palavras, Aristóteles propôs como fundamental a significação, rejeitando a ideia de que elementos morfológicos tivessem existência própria como parte integrante do léxico. Percebemos aqui fundamentos da semântica, principalmente quando Aristóteles propõe que, para saber-se se um termo tem um ou vários sentidos, deve-se examinar se seu contrário apresenta mais de uma significação, em caso afirmativo, o primeiro termo terá vários sentidos. Platão, por sua vez, propunha como essencial a relação entre palavras e coisas. Algumas de suas reflexões sobre a linguagem encontram-se na obra O Crátilo (diálogo entre esse filósofo, Hermógenes e Sócrates), onde se discute a natureza da linguagem: a relação entre palavra e coisa é natural ou convencional? Platão parece defender a posição de que a língua é imposta aos homens por uma necessidade da natureza. Explicando os elementos que compõem os seres, ele afirma que o primeiro é o nome, o segundo elemento é a definição, o terceiro é a imagem e o quarto é a ciência (isto é, estar ciente de, conhecer). Todos esses elementos exprimem tanto a “qualidade” quanto o “ser” de cada coisa, por meio das palavras, que ele considera como instrumento frágil para assumir tal função, visto que nenhuma palavra tem valor significativo fixo. Ou seja, nada impede que chamemos A de B ou vice-versa (PLATÃO, Œuvres Complètes, apud REY, 1980, p.11). Outro filósofo que considerou a palavra como um reflexo natural e necessário do mundo das ideias foi Plotino (neoplatoniano), para quem a linguagem, analisável em elementos lexicais, é a “tradução” imperfeita do Uno1 (unidade do Verbo Divino), por intermédio da linguagem interior do ser humano. Para Plotino, a linguagem funciona e pode transcrever as realidades espirituais porque é descontínua e feita de palavras. Sendo o pensamento indivisível e não podendo ser expresso, ele nos escapa, mas a linguagem, que se fragmenta em palavras, desenvolve-o e reflete-o. O estudo etimológico, proposto por esse filósofo, também contribuiu para a análise do léxico: esse estudo, entendido como a procura do sentido primitivo ou “verdadeiro”, supõe uma teoria do sentido “natural”, que se deveria buscar (proposta adequada ao princípio de que a relação entre palavra e ideias é natural, não convencional). Nesse sentido, os estudos filosóficos, pelo menos no Ocidente, demonstram uma atitude lexicológica, visto que foi uma preocupação constante a relação da palavra com as coisas e o pensamento. O estudo lexical toma outro encaminhamento, quando os gramáticos romanos – sobretudo Varrão – abordam a palavra em oposição linguística: de um lado, a irregularidade (a chamada anomalia, as relações inexplicáveis que as formas lexicais mantêm entre si e entre elas mesmas e os significados) e de outro a regularidade (a chamada analogia, as regras da gramática, que explicam, por exemplo, a derivação, os paradigmas). Abordando o vocabulário, esse gramático propôs dois planos distintos de estudo: a etimologia histórica e a formação sincrônica por meio da derivação e flexão. A etimologia histórica refere-se ao estudo da formação de palavras, partindo de suas origens, sobretudo do grego. As explicações etimológicas dadas por Varrão em seus escritos foram, posteriormente, identificadas como indevidas, assim como foi 1

Ser transcendente, pois está acima e fora de todos os demais seres, e imanente, pois todos dependem dele em sua existência e em suas atividades. 3

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 também observado seu desconhecimento da história linguística, no que se refere ao grego (ROBINS, 1979, p.38). A derivação é de natureza facultativa, menos ordenada e dá à linguagem muito de sua flexibilidade. O uso e a aceitabilidade de formas derivadas variam de pessoa para pessoa e em decorrência da forma primitiva. A flexão propõe a fixação e generalidade (uma das suas marcas características), ou seja, os paradigmas flexionais quase não apresentam omissões e são, em geral, os mesmos para todos os falantes do mesmo dialeto, ou da norma considerada padrão (ROBINS, op.cit., p.39). O trabalho marcante dos estudiosos latinos em prol da constituição da gramática fez com que o estudo do léxico se realizasse de forma indireta, já que, procurando estabelecer as classes e categorias gramaticais da língua latina, os gramáticos tinham como objeto de estudo as palavras. Assim, a ênfase no estudo do léxico recaiu sobre sua classificação e formação, em um estudo prioritariamente morfológico. Um fato histórico que teve repercussões nos estudos da língua, provocando-lhes reorientações, foi a divisão do Império Romano em ocidental e oriental (fins do século IV), como consequência de um século de tumultos e pressões dos povos submetidos ao governo romano. Conforme Robins (1979, p.43), tendo Roma deixado de ser a capital administrativa do Império e o governo tendo sido, posteriormente, transferido para a cidade construída no local onde era Bizâncio, mais tarde chamada Constantinopla, isso resultou, em linhas gerais, uma configuração que punha do lado oriental a região helenizada que, mesmo tendo sido dominada pelos romanos, não deixou de preservar a língua e a cultura gregas, e do lado ocidental as províncias ditas bárbaras em que prevaleceram a política e a cultura de Roma. Nesse contexto, os estudos se voltaram para o passado, para a linguagem da literatura clássica, sendo a gramática a base para os estudos literários. Prevalecia a produção de comentários e dicionários sobre essa literatura. Não havia muito interesse pelas alterações que ocorriam tanto no latim falado quanto no uso escrito não-literário. Após a queda do Império Romano, no período que se convencionou chamar Idade Média, e com o surgimento das línguas vernáculas nas várias nações que constituíram esse Império no passado, ampliou-se o esforço para conservar o latim “puro” como língua universal da cultura “superior” àquelas vernáculas (CAMARA JR, 1979). Daí o destaque, nessa época, da imposição do “certo” e “errado” (atitude claramente político-ideológica da cultura hegemônica sobre as estigmatizadas) e um relativo abandono dos estudos lexicais. No entanto o interesse da Igreja (grupo de forte poder político) em difundir a doutrina cristã entre os povos que falavam as línguas vernáculas propiciou seu estudo, havendo, como consequência, uma preocupação com o léxico na confecção de glossários e dicionários bilíngues, embora essa prática de elaborar glossários já tivesse vindo desde a Antiguidade2. Os estudos do léxico têm maior impulso a partir do século XVI (nos períodos conhecidos por Renascimento e Modernismo), seguindo três vertentes: de um lado, os dicionários e glossários; de outro, as relações entre palavras, ideias e coisas, numa perspectiva filosófica, fundamentada em parte nas ideias de Aristóteles, e por último o estudo das palavras, considerando seus elementos conceituais, funcionais, morfossintáticos, históricos e sócio-culturais. O interesse pela elaboração de glossários e dicionários já não é mais a doutrinação religiosa, mas uma preocupação linguística: registrar o uso de algumas 2

Listas de sinais gráficos (na China), listas lexicais na Índia (de cunho religioso), listas de palavras de várias línguas em comunicação (entre os Sumérios), listas bilíngues resultantes das transações comerciais entre povos ocidentais e orientais são alguns exemplos da atividade de confecção de glossários. 4

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 línguas em extinção e facilitar a aprendizagem de línguas estrangeiras. Daí, inicialmente, os dicionários serem bilíngues. Os dicionários monolíngues (enfatizados no século XVII) tinham interesse explícito na conservação e imposição da variedade de língua dita “culta” (CAMARA Jr, 1979). São claros os objetivos de preservar o tesouro do passado e fazer prevalecer o “bom” uso linguístico, como pode ser visto no prefácio do Dicionário da Academia Francesa, publicado em 1694: Le Dictionnaire de l‟Academie ne sera pas moins utile tant à l‟esgard des Etrangers qui aiment nostre Langue, qui à l‟esgard des François mesmes qui sont quelquefois en peine de la veritable signification des mots, ou qui n‟en connoissent pas le bel usage (grifo nosso), et qui seront bien aise d‟y trouver des esclaircissements à leurs doutes3 (grifo nosso). Os dicionários seguem regras convencionais para organizar seus verbetes, incluindo formas de entrada, definições, abonações, informações gramaticais e outras. A outra vertente dos estudos do léxico (entre os séculos VVII e XVIII), citada acima, compreende as gramáticas gerais e os filósofos que se dedicaram ao estudo das palavras e sua relação no discurso (uso da língua) (REY, 1980). As gramáticas gerais que, seguindo os modelos do passado, pretendiam alicerçar-se numa base puramente lógica, comumente não se preocupavam com a estrutura própria de cada língua, mas com as ideias concebidas pela lógica aristotélica sobre a essência da linguagem. Daí serem gerais e racionais. Dentre elas, a que teve mais destaque foi a Grammaire de Port-Royal (s.XVII), que define as classes de palavras, segundo a relação palavra e pensamento: as palavras são sons distintos e articulados que os homens transformaram em signos para marcar o que se passa em seu espírito. Como o que ocorre no espírito se reduz a conceber, julgar, raciocinar e ordenar, as palavras servem para marcar todas essas operações. Por isso foram criados os nomes (para significar as coisas e as maneiras das coisas – que são os objetos de nossos pensamentos), os pronomes (para substituir os nomes, evitando a sua repetição) e os verbos (palavra que significa a afirmação com designação da pessoa, do número e do tempo – é o caso do verbo “ser” – ou palavra que designa a afirmação de algum atributo com designação da pessoa, do número e do tempo) (MALMBERG, 1971; ROBINS, 1979; REY, 1980). Locke (1729), considerando as palavras, o pensamento e a comunicação, afirmava que as palavras, no plano psicológico (no discurso individual), remetem a conteúdos variáveis, às vezes quase nulos, dependendo das ideias que cada ser humano tem no espírito e que quer exprimir com essas palavras. Ou seja, os significados das palavras têm relação direta com as experiências do sujeito com o mundo (empirismo). No plano linguístico, por outro lado, as palavras devem ser estáveis para que ocorra a comunicação entre os seres humanos: os homens supõem que as palavras que utilizam são sinais das ideias que se encontram no pensamento do outro com quem se comunica. Pois se assim não fosse, eles não chegariam a se entender, visto que cada palavra estaria remetendo para objetos diferentes (LOCKE, 1729). Descartes (apud ADAM e TANNERY, 1897) fez algumas reflexões sobre o léxico, apontando para a arbitrariedade das palavras, já referida desde Aristóteles, e para seu caráter social, apesar de seu uso individual variado. Refletindo sobre o primeiro ponto, esse filósofo afirmou que sons vocais emitidos como reação a estados emotivos 3

“O Dicionário da Academia será útil tanto para os Estrangeiros que amam nossa Língua, quanto para os próprios Franceses, que às vezes têm dificuldade de saber a verdadeira significação das palavras, ou que não conhecem o seu belo uso e que ficarão satisfeitos de encontrar esclarecimentos para suas dúvidas.” 5

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 (as onomatopeias) são universais, semelhantes em todas as línguas, já os nomes que se atribuem às coisas variam, não havendo nada que obrigue a ser de um jeito ou de outro. Em relação a seu caráter social, o autor observou que a aquisição da linguagem não ocorre se as crianças forem criadas isoladamente, sem a experiência social. Portanto, para Descartes, as palavras não têm relação intrínseca com as coisas e, por isso, devem ser aprendidas pelos falantes em seus grupos sociais. Condillac, influenciado pelo empirismo de Locke, concebeu a palavra como meio de analisar o pensamento, visto que as ideias, que compõem um pensamento, estão nele de forma simultânea, mas quando passam para o discurso se apresentam de forma sucessiva (ideia encontrada em Saussure, quando descreve a linearidade do significante, em sua teoria do signo), pois se materializam em palavras. Afirmou também terem as línguas origem psicológica universal. Se, em todos, o sistema de ideias tem os mesmos fundamentos, é preciso que o sistema das línguas seja igualmente o mesmo para todos, diferenciando-se, no entanto, na escolha das palavras para referirem as ideias ou para marcar as mesmas relações (REY, 1980). Além disso, ele atribuiu às línguas as características de analisarem seu conteúdo, classificando-o, (aspecto taxionômico, peculiar à lexicologia) e de produzirem discurso combinando seus elementos de inúmeras maneiras (aspecto de produtividade, que é encontrado nas ideias de Chomsky, no século XX). Por fim, a terceira vertente, que se voltou para o estudo propriamente linguístico das palavras, buscou analisá-las em seus aspectos prosódicos, morfossintáticos, semânticos, históricos (que são subordinados ao estudo semântico). Trata-se da lexicologia propriamente dita (lexicologia clássica), com estudos que se voltaram para o sentido próprio e figurado das palavras, figuras e tropos (DU MARSAIS, 1775), partindo-se da ideia de que os signos (palavras) evoluem do nome próprio (que designa), ao nome comum (que significa uma ideia), depois da ideia da coisa para a de um elemento da coisa (sinédoque), ou para a de uma coisa que está ligada à primeira por uma relação de contiguidade (metonímia) ou essencial (metáfora, catacrese) (DOUCHET e BEAUZÉE, no verbete Grammaire da Encyclopédie de Diderot e d‟Alembert). Em seguida, a Palavra e sua Natureza Fonética e Morfológica: a “Palavra-forma” É do conhecimento de todos que se dedicam ao estudo da língua que, no século XIX, a ênfase das pesquisas linguísticas se centrou na comparação e história das línguas indo-europeias e que o acesso aos escritos de Pãnini, sobre o sânscrito (abordado rapidamente neste artigo) deu uma contribuição decisiva para a linguística comparativa e histórica4. Nesses estudos, as palavras são abordadas em sua forma fonética e morfológica, com o intuito de, comparando-as, reconstituírem indutivamente as famílias das línguas, em busca de uma provável língua-mãe (o indo-europeu). Levando em conta a frequência dos contatos entre os diferentes povos, o que favorece os múltiplos empréstimos de palavras, os comparatistas, em grande parte de origem alemã, reconheceram que, para a construção da história das línguas, basear-se na correspondência gramatical é mais seguro do que no léxico, visto que raramente, ou nunca, as línguas tomam emprestado (ou emprestam) suas características fonéticas e morfológicas. Rask (dinamarquês), Humboldt, Bopp, os irmãos Grimm, Schleicher 4

Antes do século XIX, muitos trabalhos sobre história e comparação linguísticas foram realizados (Dante, com De Vulgari Eloquentia, J.J. Scaliger, com seus estudos sobre famílias de línguas e outros), mas é nesse século XIX que se desenvolveram conceitos teóricos e metodológicos mais precisos e sistemáticos e que a maioria dos estudiosos se dedicou aos estudos histórico-comparativos. 6

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 (alemães), entre outros, realizaram seus estudos comparativos observando os sons, os sufixos, as flexões das palavras e, assim, foram reconstituindo os fios que tecem as línguas e suas interrelações, chegando a propor os grupos linguísticos que conhecemos como contribuição dos estudos histórico-comparatistas (o das línguas latinas, o das línguas eslavas, das línguas germânicas e outros). A abordagem do léxico, propriamente dita, nos estudos históricos, pode ser verificada na lexicografia (estudo do dicionário e sua elaboração), principalmente no dicionário francês de Émile Littré que, atendendo a uma postura purista e normativa em relação à língua (comum na Europa e, sobretudo, na França), tentou basear o “bom uso da língua” em estudos sobre usos antigos. Ou seja, para atender às necessidades pedagógicas do público em geral, Littré construiu um conceito de “uso contemporâneo”, apoiado nos estudos históricos. Para ele, as palavras se fundamentavam em sua evolução formal e semântica. Apesar desta visão contraditória (uso contemporâneo baseado nos usos antigos), esse dicionário teve grande importância na lexicografia em geral. A obra de Arsène Darmesteter, La vie des mots, também contribuiu com os estudos lexicais no século XIX. Após ter estudado as palavras do ponto de vista fonético, esse autor dedicou-se ao estudo morfológico (seus processos de formação), às mudanças de significado que ocorrem com elas e a seu processo de arcaízação. Influenciado pela História natural, Darmesteter conduziu seu estudo, apresentando nascimento, vida e norte das palavras. Bréal, em seus estudos semânticos, abordou também as palavras isoladas, como Darmesteter, tradição que durou até o século XX, e restringiu a lexicologia ao estudo de um “vasto catálogo” (lista de palavras). Procurou verificar a evolução dos valores lexicais, mas se contrapondo à concepção biológica para o estudo das palavras. Seu grande mérito se encontra no fato de ter feito o estudo das palavras mostrando a importância do seu contexto extralinguístico. Hoje, a Palavra e suas Relações: a “Palavra-relação” Mesmo que as unidades lexicais tenham sido objeto de estudo desde tempos mais remotos, é no século vinte e neste atual que abordagens variadas se realizaram. No entanto elas parecem constituir, de modo geral, dois blocos: o estudo das relações (paradigmáticas) entre unidades lexicais agrupadas em função de critérios de ordem semântico-formal; e o estudo das relações (sintagmáticas) entre unidades em um texto. Segundo Delesalle (1976, p.5), o primeiro bloco de estudos é determinado pelo surgimento de uma esfera de atividade que impõe uma nova organização de um domínio lexical (por exemplo, o estudo dos campos lexicais). O segundo estuda as palavras em relação ao enunciado, sob duas perspectivas: as palavras selecionadas são tomadas em relação ao texto, tratando-se então de um trabalho sobre performances discursivas, podendo incluir elementos enunciativos e sociolinguísticos; ou as palavras são tomadas em textos para serem estudadas em relação às práticas sociais, ideológicas, técnicas, científicas, etc., centrando-se então no extralinguístico. O que se pode perceber é que o objeto de estudo, nos dois blocos, não está bem definido: o estudo das palavras em um texto pode, por um lado, tender para a análise dos enunciados (e dos fenômenos de enunciação), para a análise do discurso; e, por outro, para o estudo da organização dos termos em um domínio, ou esfera comunicativa, particular. A abordagem das palavras em relação às outras tem origem na visão saussuriana de língua como um sistema cujas partes são consideradas em sua solidariedade 7

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 sincrônica (un système où tout se tient). Saussure ([1916] 1976, p. 185), ao afirmar que a gramática estuda a língua como um sistema de meios de expressão, revê a posição de que “gramática” se refere à sintaxe e morfologia, excluindo-se a lexicologia, que se ocupa do estudo das palavras. Afirmando que as funções que as palavras exercem e as formas que elas assumem (flexões e declinações) resultam de uma interrelação (uma declinação, por exemplo, não é uma lista de formas nem uma série de abstrações lógicas, mas o conjunto das duas), não se pode separar morfologia de sintaxe. Além disso, considerando que essas relações tanto podem ser expressas por meio de palavras quanto por meio de elementos gramaticais (por exemplo, “muito forte” e “fortíssimo”), o fato lexicológico se confunde com o sintático. Logo, essas divisões (morfologia, sintaxe, lexicologia) podem ter uma utilidade prática, mas não correspondem a distinções naturais (SAUSSURE, op.cit., p.187). Segundo ele, uma classificação possível para o sistema gramatical se fundamenta nas relações sintagmáticas e associativas (dicotomia sintagma e paradigma). Assim, qualquer elemento linguístico a ser estudado sê-lo-ia sob esses dois pontos de vista. A noção de palavra, nessa perspectiva, oferece dois problemas distintos: no eixo sintagmático pode remeter a duas formas (por exemplo, “mesas pretas” [mezas pretas] o fone [s]; e “mesas azuis” [mezaz azujs] o fone [z]) e, no eixo paradigmático, a duas noções (singular “mesa” e plural “mesas”) (trata-se, então, de uma só palavra ou de duas?). As realizações fonéticas estariam no plano sintagmático e a flexão, no plano associativo, pois remete para uma associação de formas no espírito dos falantes. Com essa posição teórica, Saussure reintegra a lexicologia ao estudo do sistema funcional da língua e demonstra que a significação não está na unidade palavra, mas nas suas relações. Essas contribuições saussurianas influenciaram o estudo do léxico do ponto de vista estrutural, favorecendo uma intensa produção de textos que procuravam explicar como as palavras se articulam, de acordo com as regras da língua. Passou-se a considerar que o sistema lexical é formado por um conjunto de unidades significativas que se interligam, que se delimitam reciprocamente e que estabelecem seu valor de acordo com a posição que ocupam nesse conjunto, que foi chamado de “campo”, teoria proposta por Trier (1931, apud DUBOIS, 1962), baseando-se na noção de sistema (Saussure) e de articulação (Humboldt). Para Trier (1931, apud VILELA, 1979), as palavras de uma língua constituem uma globalidade articulada, uma estrutura composta de domínios parciais (campos), que se subordinam ao todo (o léxico total de uma língua). Com enfoques idênticos ou diferentes, os estudos sobre “campos” progrediram até a década de 80 do século XX, aproximadamente. Com base nas relações sintagmáticas e paradigmáticas, Bally (1950) propõe as categorias lexicais: as classes de signos (semantemas), que exprimem as ideias destinadas a combinar-se no discurso por meio de ligações gramaticais; e os campos associativos – conjunto de palavras que se relacionam do ponto de vista semântico. Coseriu (1964) denominou o campo de conceitual, defendendo a ideia de que todo conjunto de palavras relacionadas entre si tem um conteúdo (um valor) unitário, subdividido por oposições entre os termos (palavras) em um mesmo campo, para estabelecer os traços distintivos que os caracterizam. Ou seja, as palavras se unem em um campo conceitual, por meio de um determinado traço comum, embora conservem traços diferentes que as distinguem entre si. Guiraud (1967) classificou os campos como sendo morfossemânticos, agrupando uma dada palavra e todos os seus derivados e compostos (inclusive os derivados semânticos, isto é, os sinônimos), vistos em sua expressão e conteúdo, por isso “morfossemânticos”. 8

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 Dubois (1962) chamou de campo lexical, descrevendo-o como um conjunto estruturado de unidades significativas – palavras – consideradas em seus aspectos semânticos e morfológicos, pois, para esse autor, o campo lexical não separa o valor de uso (ou o conteúdo) da expressão, nem isola o significado do significante. Picoche (1977) denominou de campos léxico-semânticos: lexical, porque só considera as palavras que fazem parte de séries abertas da língua; semântico, porque as considera em sua relação significante/significado. Além desses, muitos outros estudos foram realizados e o que podemos observar é que a diversidade de abordagens sobre campos constitui, grosso modo, dois grupos: um que parte do significante para o significado (um significante em busca de seu ou seus significados, ou um conjunto de significantes remontando a um mesmo étimo, ou um conjunto de significantes formados pela junção de afixos a um mesmo lexema); e outro grupo que parte do significado em busca do significante (um conjunto de palavras frequentemente associadas a um mesmo assunto, ou um conjunto de palavras cujos significados têm traços próximos, ou um conjunto de palavras em mesma distribuição). Ao primeiro grupo, podemos chamar de estudos semasiológicos e ao segundo, estudos onomasiológicos, conforme os termos semasiologia e onomasiologia propostos por Baldinger (apud PICOCHE, 1979). Assim, vemos que os estudos de Bally, Coseriu e Dubois são predominantemente onomasiológicos e os de Guiraud e Picoche, semasiológicos. Quanto aos estudos das relações (sintagmáticas) entre unidades em um texto (mencionados no primeiro parágrafo deste subitem), remetendo, assim, aos usos efetivos da língua, vemos que a concepção de que a palavra representa o pensamento ou as coisas é posta em dúvida pelas tendências teóricas que impulsionam os estudos linguísticos. Predominantes a partir da segunda metade do século XX, essas tendências consideram a língua e seus usuários em relação dialética. Nesse sentido, defende-se a ideia de que as teorias não se desenvolvem no interior de uma autonomia intelectual, mas são ancoradas na história e na organização da sociedade. Assim, não é possível analisar o léxico fora de sua enunciação, nem desconsiderando a dimensão transfrástica dos enunciados. Vamos observar, então, que teorias enunciativas, teorias discursivas e teorias pragmáticas, embora não incluam o léxico como objeto principal de seus estudos, exploram-no, indiretamente. As teorias enunciativas abordam as palavras como marcas linguísticas que explicitam a relação forma-sentido; esse último proveniente de uma produção social (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929] 1986); como marcas linguísticas que indicam a subjetividade dos locutores, as formas espaço-temporais da enunciação (BENVENISTE, 1978); e como marcas linguísticas que exprimem a atitude do locutor em relação ao conteúdo do enunciado, ou seja, as modalidades. Kerbrat-Orecchioni (1980), estudando as modalidades apreciativas (aquelas que permitem ao locutor exprimir sua subjetividade de maneira não-dêitica), analisa como determinados nomes, adjetivos, verbos e advérbios expressam apreciação enquanto outros são marcados pela objetividade (por exemplo, “alegre”, “desinteressado” e “divorciado”, “preto”, respectivamente). As teorias discursivas, aqui incluindo a linguística textual e a análise de discurso, abordam texto e discurso, respectivamente, como unidades de estudo. A linguística textual lança mão do léxico como unidades linguísticas que podem garantir a coesão textual, funcionar como operadores argumentativos, como morfemas de ligação entre as frases (HALLIDAY & HASAN, 1976). Já a análise de discurso não considera a palavra em si mesma como uma unidade de análise, pois de fato não há vocabulário que 9

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 pertença a um discurso; o que há é exploração semântica variada das mesmas unidades lexicais por diferentes discursos. Ou seja, essas unidades são utilizadas em razão de suas virtualidades de sentido na língua em congruência com as restrições de um discurso. Assim, elas tendem a adquirir o estatuto de signos de pertencimento, levando-se em conta seus efeitos de sentido (MAINGUENEAU, 2005). As teorias pragmáticas, originalmente vindas da filosofia da linguagem e depois integradas aos estudos linguísticos, interessadas em atos de fala (AUSTIN, 1970), na conversação, na nova retórica (PERELMAN & OLBRECHT-TYTECA, 2005), entre outros pontos, têm em comum os sistemas culturais enquanto sistemas integrantes de comunicação. Sendo assim, as unidades lexicais são abordadas, ao explorarem-se os atos de fala, que são regidos por regras precisas e necessárias, partilhadas pelos membros de um mesmo grupo social – logo, certos termos ou expressões lexicais (e não outros) são esperados em determinados atos de fala; ao estudar-se a conversação, quando se observam, por exemplo, intenções, transgressões, marcas de regras conversacionais; e ao analisar-se a argumentação, quando se enfocam os recursos lexicais que entram na composição dos argumentos, objetivando, não um raciocínio lógico-matemático, mas a persuasão. Os estudos que têm o léxico como foco principal são conduzidos no âmbito da lexicologia, da lexicografia e da terminologia, investigando-se suas relações com a cultura, a sociedade, o discurso e o texto. Com o processo de globalização, que incrementa as transações comerciais e uma série de intercâmbios científicos, tecnológicos e culturais, a preocupação com o estudo se amplia, atingindo não só os linguistas, mas também outros profissionais envolvidos com a linguagem: tradutores, intérpretes, documentalistas, redatores técnicos, lexicógrafos e terminógrafos (KRIEGER & FINATTO, 2004). Os estudos das unidades lexicais que integram os usos linguísticos em geral, quer na modalidade falada quer na modalidade escrita da língua, são realizados pela lexicologia: seus processos de formação, sua distribuição, seu funcionamento nos discursos e textos, sua força argumentativa... Em relação à terminologia, o avanço que se dá nesses estudos advém do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que requer novas denominações para as novas descobertas e invenções. É o chamado léxico dos saberes técnicos e científicos, ou léxico temático ou especializado, composto por „termos‟, isto é, por unidades lexicais que funcionam em uma determinada área técnica ou científica. De acordo com a teoria comunicativa da terminologia, proposta por Cabré5 (apud KRIEGER & FINATTO, 2004, p. 35), ao se considerar os aspectos comunicativos das linguagens especializadas, uma unidade lexical pode caracterizar-se como „termo‟ em função de seu uso em um contexto e situação determinados. Sendo assim, o conteúdo de um termo não é fixo, mas relativo, variando conforme o cenário comunicativo em que se insere. Considerando-se o estudo da lexicologia e o da terminologia, estabelece-se, assim, um tênue limite entre si. Dizemos “tênue”, tendo em vista que não se pode, a rigor, afirmar-se que os termos técnicos e científicos circunscrevem-se no âmbito das linguagens especializadas em que se encontram. Com a divulgação científica e técnica proporcionada pela mídia em geral e pela escola, o que antes era restrito a um determinado domínio técnico ou científico passa a fazer parte das situações 5

A teoria comunicativa da terminologia foi proposta por Maria Teresa Cabré e o grupo de pesquisadores do Instituto de Linguística Aplicada da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona (Espanha), em oposição à teoria geral da terminologia, proposta, nos anos 70 do século XX, pelos pesquisadores das Escolas de Terminologia de Viena, Praga e Rússia, que preconizavam a padronização dos termos, desconsiderando o funcionamento efetivo das linguagens. 10

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009 comunicativas cotidianas, tendo como base um registro linguístico informal. É o caso, por exemplo, dos termos que denominam os medicamentos destinados a curar males mais comuns: paracetamol, AAS podem ser considerados apenas como termos científicos? O fato de fazerem parte do nosso conhecimento cotidiano indica que constituem palavras do vocabulário comum, embora tenham se originado em uma área científica. Esse movimento das unidades lexicais é ocasionado pelas relações estabelecidas entre os falantes de uma língua, para atender às suas necessidades comunicativas. Com isso, reforça-se a perspectiva de estudo do léxico, em seus usos e funções, intrisecamente relacionado ao contexto sócio-histórico da sociedade. O interesse em registrar, de forma sistematizada, as palavras que compõem o léxico, compilando-se, o mais detalhado que se possa, as informações fonéticofonológicas, morfossintáticas, semântico-pragmáticas, discursivas, sociais, culturais e outras, cabe à lexicografia, ao confeccionar glossários e dicionários (trabalho em desenvolvimento desde tempos anteriores à antiguidade clássica, como já foi citado, na nota 2). Esse trabalho, fruto de estudos e levantamentos de unidades lexicais, também se fundamenta no uso efetivo das palavras pelos falantes de uma língua. É assim que os exemplos, as abonações presentes nos verbetes são originárias de contextos sociais diversos. Se antes eram predominantemente retirados de obras literárias consagradas pela crítica, hoje provêm de variados domínios, tais como o jornalístico, o artístico, o técnico, o científico, o folclórico, o regional, além do literário. São reflexos de que o lexicógrafo procura construir seus conhecimentos integrados ao mundo da forma como o vê: sob a lente de seus valores, crenças e ideias. Considerações finais A constituição do léxico como objeto do conhecimento tem relação direta com o desenvolvimento da humanidade e com o ponto de vista sob o qual os seres humanos se veem e veem o mundo. É assim que ora as unidades lexicais são tomadas como a representação do pensamento ou das coisas (palavras como etiquetas, denominando as coisas de forma autônoma), ora como objeto de reconstituição das línguas (também uma visão autônoma da história das línguas), ora como marcas construídas pelos sujeitos em interação social, considerando-se o conjunto de ideias que move os grupos sociais em suas sucessivas épocas. Mesmo resenhada de forma rápida neste artigo, podemos perceber a constituição do saber sobre o léxico, construído a partir de reflexões metalinguísticas, o que se configura como uma ideia linguística, no dizer de Auroux (1989). Não desconhecemos a importância dos estudos autônomos do léxico, pois contribuíram com classificações e categorias ainda hoje utilizadas, mas concordamos com aqueles que o abordam em suas relações históricas, visto que vão interpretando o mundo que a humanidade aos poucos constroi e modifica todos os dias.

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Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.1, 2009

INTERAÇÃO DOCENTE EM FÓRUM DE UM AVA Nadja Paulino Pessoa Prata*

Resumo: Este trabalho analisa os tipos de atos de fala produzidos por tutores em um Ambiente Virtual de Aprendizagem, a partir de fóruns de uma disciplina ofertada a um curso de Graduação. Para a análise, recorremos ao Interacionismo Sociodiscursivo e à Análise da Conversação. Ao descrever a interação docente (tutor) em um AVA, caracterizamos o fórum como um discurso de tipo misto interativo-teórico, cuja sequência é a dialogal. A análise de cada fórum deu-se a partir da quantidade de turnos e da quantidade de atos de fala de cada turno, e em seguida, pela determinação do assunto tratado em cada ato. Após a análise, contabilizamos 186 atos de fala, divididos em três temas: social, contabilizando 48% do total; conteúdo, com 42%; e técnico, com 10%, o que não era esperado, uma vez que esse tipo de fóruns serve como a uma ferramenta de ensino-aprendizagem. Palavras-chave: Ambiente virtual de aprendizagem (AVA); Fórum; Atos de Fala. Abstract: This work analyzes the kinds of speech acts produced by tutors in a Virtual Learning Environment from forums of a course offered to an Undergraduate course. For the analysis, we recurred to the Sociodicoursive Interactionism and to the Conversation Analysis. When describing the teaching interaction (tutor) in an AVA, we characterize the forum as a discourse of interactive-theoretical mixed type, whose sequence is dialogic. The analysis of each forum was accomplished from the quantity of turns and also from the quantity of speech acts on each turn and, next, from the determination of the subject on each act. After the analysis, we counted 186 speech acts, divided into three themes: social, counting 48% of the total; content, with 42%; and technical, with 10%, which was not expected, since this kind of forum serves as a teaching-learning tool. Keywords: Virtual Learning Environment (AVA); Forum; Speech Acts.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A Educação a Distância (EaD) mediada por computador e internet é relativamente recente. Essas novas ferramentas tecnológicas propiciaram a criação de vários ambientes virtuais de aprendizagem, entre eles o SOLAR, criado pelo Instituto UFC-Virtual, que disponibiliza diversos cursos de formação, inclusive, em nível de Graduação. O SOLAR foi criado para potencializar a aprendizagem e facilitar as interações entre os participantes. Essas interações desempenham várias funções no processo ensinoaprendizagem, entre elas a construção do conhecimento específico de uma determinada área. Tendo em vista que essa interação constitui uma atividade de linguagem, procuramos analisar a interação docente nos fóruns em uma disciplina, do Curso de Graduação Semipresencial. O artigo está dividido em quatro seções. Na primeira parte, versaremos sobre o suporte teórico do interacionismo sociodiscursivo. Na segunda parte, versaremos sobre ambiente virtual de aprendizagem, mais especificamente o SOLAR, e sobre fórum, caracterizando-o como um tipo de discurso misto interativo-teórico, cuja sequência é *

Departamento de Letras Estrangeiras (Centro de Humanidades/UFC); Doutoranda em Linguística no PPGL/UFC; E-mail: [email protected]

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dialogal. Na terceira parte, tratamos da metodologia adotada e dos procedimentos de análise para a identificação e classificação dos atos de fala docentes. Na última parte, procedemos à análise e discussão dos dados obtidos do corpus. INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO O interacionismo sociodiscursivo constitui uma perspectiva de análise linguística, cujas “proposições teóricas derivam de uma psicologia da linguagem orientada pelos princípios epistemológicos do interacionismo social” (BRONCKART, 2007, p. 13). Segundo essa perspectiva, as condutas verbais são vistas como formas de ação, o que nos fornece a noção de atividade de linguagem. Essa atividade de linguagem está organizada em discursos/textos, que, por sua vez, estão organizados em gêneros. Em sendo assim, a análise de discursos e de textos deve levar em consideração suas condições de produção e sua arquitetura interna, conforme nos esclarece Bronckart (2007).

A ARQUITETURA DOS TEXTOS A arquitetura interna de um dado texto é bastante complexa, uma vez que é formada por níveis superpostos, a saber: a infra-estrutura geral, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. Dentre esses níveis do “folhado textual”, interessa-nos o nível mais profundo: o da infra-estrutura textual, uma vez que podemos analisar e descrever a interação docente. A infra-estrutura geral é constituída pelo plano geral do texto, tipo de discurso e tipo de sequência. O plano geral diz respeito à organização do conteúdo temático. A noção de tipo de discurso está relacionada aos diversos segmentos que formam o texto (discurso teórico, interativo, etc). O tipo de sequência nos remete aos modos de planificação da linguagem (sequências narrativa, explicativa, descritiva, etc). Com base nessas noções, nos deteremos no discurso misto interativo-teórico e na sequência dialogal a fim de compreender o “fórum”.

O DISCURSO MISTO INTERATIVO-TEÓRICO E A SEQUÊNCIA DIALOGAL O discurso misto interativo-teórico constitui uma fusão do discurso interativo e do discurso teórico. Segundo Bronckart (2007), ele se caracteriza pela presença de subconjuntos de unidades próprias de cada um dos discursos em questão. Nesse caso de fusão, o autor do texto deve apresentar informações que são, a seu ver, verdades autônomas, independentes das circunstâncias particulares da situação material de produção e que se inscrevem, consequentemente, nas coordenadas de um mundo teórico; mas, ao mesmo tempo, e na ausência de contato direto com o receptor-destinatário, deve levar esse destinatário em conta, solicitar sua atenção, procurar sua aprovação, ou ainda, antecipar objeções, inscrevendo-se, assim, nas coordenadas de um mundo interativo. (p. 193-194)

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O discurso interativo nas formas dialogadas tem a interação marcada pelos turnos de fala, como é o caso dos fóruns educacionais do SOLAR. Vale salientar que, no fórum, esses diálogos são escritos, o que lhe confere um caráter híbrido das modalidades escrita e oral, já que apresentam características dessas duas modalidades concomitantemente. O protótipo da sequência dialogal, que constitui um discurso desse tipo, está organizado em três níveis: (i) nível super-ordenado, (ii) nível das trocas e (iii) nível dos atos. No primeiro nível, temos a fase de abertura, fase transacional e fase de encerramento. Na fase de abertura, os participantes entram em contato. Na fase transacional, o conteúdo é co-construído. Na fase de encerramento, os participantes põem fim à interação. Como podemos perceber, a primeira e a última fase possuem um caráter mais fático, enquanto que a fase transacional constitui o ponto central da interação. No segundo nível, cada fase pode ser decomposta em trocas, que, segundo KerbratOrecchioni (2006, p. 57), constituem a “menor unidade dialogal (ou seja, construída por, pelo menos, dois participantes)”. Cada troca é composta por turnos de fala ou intervenções. No terceiro nível, temos que cada intervenção pode ser decomposta em atos discursivos, ou seja, atos de fala. Eles são, portanto, a base da interação verbal. Daí nossa análise se centrar nesse ponto.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTEXTO DE PRODUÇÃO O contexto de produção “pode ser definido como o conjunto dos parâmetros que podem exercer uma influência sobre a forma como o texto é organizado.” (BRONCKART, 2007, p. 93). Para esse autor, os fatores que influenciam a organização textual são de dois tipos: (i) contexto “físico” (lugar e momento de produção, emissor e receptor) e (ii) contexto “sociosubjetivo” (lugar social, posição social do emissor e do receptor e o objetivo). Desse modo, o contexto “físico” para participação nos fóruns é o seguinte: tor: todos os participantes da disciplina. No que tange ao contexto “sociosubjetivo”, temos: -Line de Aprendizagem - SOLAR > fórum ceptor: professor-tutor e alun@s ou vice-versa. disponíveis no SOLAR.

SOLAR: UM AMBIENTE VIRTUAL DE APRENDIZAGEM Segundo Araújo Jr. (2008), os ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) são ambientes que simulam os ambientes reais de aprendizagem por meio da utilização de tecnologias de informação e comunicação (TICs). Esses ambientes geralmente disponibilizam conteúdos, materiais de apoio, informações gerais sobre professores, fóruns, chats, e-mails e outros. No que tange ao papel dos AVAs, o autor salienta que eles são fundamentais no novo paradigma de educação cuja base é o uso de recursos digitais, uma vez que “proporcionam

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o redimensionamento do ensinar e do aprender, antes, atividades restritas principalmente ao espaço físico escolar” (ARAÚJO JR., 2008, p. 21). Dentre os AVAs disponíveis no Brasil, temos o SOLAR, Sistema On-Line de Aprendizagem, que foi desenvolvido pelo Instituto UFC-Virtual. Esse ambiente possibilita a interação entre professores (tutores) e alunos e a publicação de diversos cursos, conforme podemos verificar: O SOLAR foi desenvolvido potencializando o aprendizado a partir da relação com a própria interface gráfica do ambiente, sendo desenvolvido para que o usuário tenha rapidez no acesso às páginas e ao conteúdo, fácil navegabilidade e compatibilidade com Navegadores. (...) Aqui, o interagente se sente seguro a explorar os espaços disponibilizados. O ambiente é apoiado numa filosofia de interação e não de controle. *

Percebemos que “rapidez”, “fácil navegabilidade”, “segurança” e “interação” são as palavras-chave por meio das quais o SOLAR é caracterizado. Segundo Casal (2005), tais elementos são considerados como um dos critérios para a qualidade técnica de cursos virtuais, que apoiam o processo de ensino-aprendizagem. Vale salientar ainda que ele demanda diferentes níveis de letramento digital, uma vez que é multimidiático. No que diz respeito às ferramentas de comunicação, a estrutura do Solar dispõe das seguintes ferramentas: fórum, chat e mensagens. Em “fórum”, o usuário tem acesso a cada fórum, com datas pré-estabelecidas para início e término de discussão. Para a disciplina, há quatro fóruns, com a duração de uma semana em média. Em “chat”, os participantes podem interagir em “tempo real”, pois é uma ferramenta síncrona. Em “Mensagens”, há a possibilidade de que os participantes se comuniquem de modo assíncrono, pois funciona de modo semelhante ao e-mail. Essa ferramenta possui os seguintes menus: “escrever”, “caixa de entrada” e “enviadas”. Destas três ferramentas de comunicação, trataremos mais especificamente do fórum.

FÓRUM: UMA FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM Nas abordagens de EaD mediado pelo computador e pela internet, observa-se o uso de ferramentas adequadas ou adaptadas à utilização dessas novas tecnologias, a saber: correio eletrônico, chats, lista de discussão, fóruns, download, videoconferência e world wide web (www), conforme esclarecem Amaral & Amaral (2008). De acordo com Campos (2008), o fórum educacional consiste em um ambiente para que os participantes possam discutir temas específicos, por meio de comunicação assíncrona. Para isso, é preciso que, na aula ou no próprio fórum, haja a indicação do assunto a ser tratado. A configuração do fórum educacional no SOLAR nos leva a dizer que esse gênero é um tipo de discurso misto interativo-teórico, uma vez que se apresenta geralmente sob a forma de diálogos e apresenta uma densidade sintagmática elevada, já que os participantes versam sobre assuntos teóricos relacionados à disciplina da Graduação, como podemos observar na figura 1:

*Informações retiradas do site www.solar.virtual.ufc.br

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FIGURA 1: INTERAÇÃO ENTRE OS PARTICIPANTES* Alun@1

04/04/2008 Gente, seguindo o raciocínio das conjugações no Imperativo presente, fiz assim o 4 portfólio: 3. Femina Romae, custodi aram et serua reuerentiam dis. 4. Feminae Romae, custodite aram et seruate reuerentiam dis. 5. Filia poetae, pare dis et magistris. 6. Filiae poetae, parete dis et magistris. Quero saber se vocês fizeram assim também, ou então entendi tudo errado. Alun@ 2

04/04/2008 Alun@ 1, estive comparando suas respostas com as minhas, e fico feliz pois estão parecidas. Apenas deusas,não havia colocado para o dativo plural,e altar não estava no acusativo. Mas tu tens razão. E em relação aos verbos estão iguais aos meus.

Alun@ 3

04/04/2008 Ei Alun@ 1, sobre a 1ª frase: É reuerentiam, pq é o obj. dir, sendo assim o acusativo sing?? Alun@ 1

05/04/2008 Sim, você acertou! É assim mesmo, Alun@ 3.

Alun2 1

05/04/2008 É sim Alun@ 3!

Nossa concepção de “diálogo” não se refere somente às interações face-a-face, mas pode ser compreendido como um protótipo, já que, “para que haja diálogo, é preciso que sejam postos em presença ao menos dois interlocutores que falem “alternadamente”” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 44). No caso do fórum educacional no SOLAR, percebemos que a interação é marcada pelos turnos de fala, o que nos faz dizer que há uma sequência dialogal. Segundo Bronckart (2007), essa sequência se concretiza apenas nos segmentos de discursos interativos dialogados, o que nos parece parcialmente inadequado, uma vez que num discurso misto interativo-teórico, como é o caso do fórum educacional, a sequência dialogal é a que predomina. Feitas essas considerações, passaremos à metodologia utilizada para constituição do corpus e análise dos dados. METODOLOGIA * Por questões ét icas da pesquisa, as fotos dos participantes foram substituídas pelo desenho disponível no SOLAR e os nomes foram substituídos por “Alun@”, em que @ foi usado para não fazer referência ao sexo do participante. As palavras “alun@” ou “tutor@” vão seguidas por uma codificação alfanumérica para ident ificar os diferentes part icipantes.

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- SELEÇÃO, DELIMITAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO CORPUS Para o interacionismo sociodiscursivo, a atividade humana está intimamente relacionada à língua(gem), pois é por meio dela que os nós interagimos socialmente. Partindo desta concepção, a análise se faz por meio de produções verbais efetivas em situações reais, o que implica em analisar um corpus de textos empíricos. Desse modo, nossa análise se centra nos fóruns da disciplina, oferecida para três turmas distribuídas em dois municípios do Ceará, o que totaliza 12 fóruns. Na tabela 1, temos a quantidade de mensagens por cada grupo de participante em cada um dos fóruns: TABELA 1: QUANTIDADE DE MENSAGENS DE CADA PARTICIPANTE POR FÓRUM Turma A Turma B Turma C Tutor@ Alunos Tutor@ Aluno Tutor@ Aluno Fórum 1 1 23 3 32 1 20 Fórum 2 5 18 14 58 16 28 Fórum 3 2 13 11 26 2 21 Fórum 4 0 10 0 14 3 9 Total 8 64 28 130 22 78 Os dados parecem mostrar que @ tutor@ B participou mais, entretanto se observarmos a proporção entre a quantidade de mensagens dos alunos e quantidade de mensagens d@s tutor@s, veremos que @ tutor@ C produziu mais turnos. Esse dado é revelante quando comparamos a quantidade de turnos e a quantidade de atos de fala produzidos por cada tutor@.

PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE Vimos que o plano mais profundo do texto é o da infra-estrutura que é constituída pelo plano geral, tipos de discurso e pelas sequências. Sendo assim, classificamos o fórum educacional como um discurso misto interativo-teórico, cuja sequência predominante é a dialogal. Dos três níveis de análise dessa sequência, detemo-nos no nível do ato de fala. Assim, para a análise desses atos de fala, procedemos da seguinte forma: a) Identificação do turno de cada tutor@ em cada um dos fóruns, o que pode ser verificado na tabela 1 b) Elaboração de uma ficha de ocorrências de turnos d@s tutor@s c) Identificação e classificação dos atos de fala de cada turno, segundo Geraldini (2003) Na figura abaixo, temos um exemplo de classificação retirada da ficha de ocorrências: Figura 2: Ocorrência de intervenção e classificação dos atos de fala

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Turor@ A tutor(a)

25/03/2008

Olá turma, (Cumprimenta) estou aguardando a pesquisa de vocês! (Estimula a participação) Como se percebe, temos nesse caso 2 atos de fala distintos: um de cumprimento e outro de estímulo à participação.

RESULTADOS: ANÁLISE E DISCUSSÃO - ANÁLISE DA INTERAÇÃO DOCENTE: CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS TURNOS EM CADA TURMA Ao investigarmos as interações d@ tutor A, percebemos que os alunos produzem mais turnos, o que corresponde a 89% do total de mensagens enviadas. Cada mensagem enviada ao fórum foi considerada como um turno de um dado participante. Assim, @ Tutor@ A produziu oito turnos, ou seja, 11% do total, conforme gráfico a seguir: GRÁFICO 1: DISTRIBUIÇÃO DOS TURNOS DE "FALA" DA TURMA A

11% Tutora A Alunos

89%

Essa configuração já era esperada, uma vez que o fórum, além de funcionar como um lugar de interação para discutir os assuntos relativos à língua latina, serve ainda para marcar a frequência do aluno à disciplina. Um aspecto que nos chamou a atenção diz respeito ao fato de que @ Tutor@ A não interagiu de modo algum no fórum 4. Nesse fórum, excepcionalmente, não há nenhuma troca, pois as mensagens, que estavam direcionados a tutor@, não foram respondidas, o que provocou a “quebra do princípio de alternância”, como vemos em [1]: [1] Alun@ 2

23/04/2008 Oi professor@,adjunto adverbial nao ocorre so no caso ablativo?

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Segundo Kerbrat-Orecchioni (2006), há casos de “falhas” no sistema de turnos, quando, por exemplo, os parceiros não estão dispostos a se submeter aos sinais indicativos de alternância de turno. A autora explica ainda que o silêncio entre turnos significa que os sinais de fim de turno foram mal percebidos ou os potenciais sucessores não têm o desejo ou meios de assegurar o encadeamento sucessivo. No caso das interações em fórum, parece-nos que a primeira explicação não se adequa a esse contexto, uma vez que o texto está à disposição dos participantes durante uma semana em média. Assim, resta-nos a segunda alternativa, o que é problemático, uma vez que o professor-tutor, enquanto mediador, deveria interagir com os alunos, principalmente, com aqueles cuja mensagem está direcionada diretamente ao tutor. Em não sendo assim, o aluno pode sentir-se ignorado ou sozinho, o que pode ser um dos fatores que o levam a desistir dos cursos à distância. Com relação à turma B, temos o seguinte: GRÁFICO 2: DISTRIBUIÇÃO DOS TURNOS DE "FALA" DA TURMA B

18%

Tutora B Alunos

82%

Os dados nos mostram que 2 tutor@ B se fez mais presente que @ tutor@ A no fórum ao longo da disciplina. Do total das mensagens enviadas, 28 foram d@ tutor@. No fórum 4 da turma B, diferentemente do que ocorreu na turma A, os alunos não direcionaram a passagem de turno, apenas expuseram suas dificuldades, o que possivelmente contribui para que @ tutor@ não enviasse nenhuma mensagem. Vejamos:

[2] Alun@ 4 26/04/2008 Tive muitas dificuldades nas traduções das frases, mas fiz. Nos textos procurei ajuda, pois não cosegui traduzir sozinha. Esse tipo de comentário d@ alun@ deve estar relacionado ao fato de que o tópico do fórum versa sobre as dúvidas que o aluno teve durante a aula. Parece-nos, entretanto, que seria mais adequado estabelecer um tópico específico da aula para discussão nesse espaço, uma vez que os participantes dispõem de outras ferramentas de comunicação que poderiam ser usadas para tirar dúvidas pontuais. Com relação à turma C, temos o seguinte:

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22% das mensagens foram enviadas pel@ Tutor@ C, o que demonstra que houve mais turnos d@ tutor@ C em relação às demais. Além disso, ela participou de todos os fóruns, o que nos parece adequado, uma vez que o tutor é “alguém que possui duas características essenciais: domínio do conteúdo técnico-científico e, ao mesmo tempo, habilidade para estimular a busca de respostas pelo participante” (EMERECIANO et al., 2001). Vale salientar que, ao se fazer presente, o tutor pode diminuir a sensação de “solidão” dos alunos, o que é importante num curso à distância.

- TIPOS DE ATOS DE FALA PRODUZIDOS NAS INTERAÇÕES DOCENTES Após a análise dos turnos produzidos pel@s tutor@s, passamos à identificação e classificação dos atos de fala que constituem um turno. Com relação aos tipos de atos produzidos, parece-nos cabível dividi-los em grupos, conforme as esferas que privilegiavam, a saber: esfera social, esfera de conteúdo e esfera técnica, conforme quadro a seguir: QUADRO 1: ATOS DE FALAPRODUZIDOS PEL@S TUTOR@S Atos de fala Tutor@ A Tutor@ B Tutor@ C Esfera social Cumprimenta o (a) aluno (a)/ todos 5/1 8/1 2/ Elogia 1 5 1 Despede-se 1 11 16 Solicita esclarecimento sobre 1 1 progresso do aluno e/ ou compreensão da matéria Mostra-se compreensiva 1 1 Estimula participação e/ ou aluno (a) 1 7 Expressa satisfação 2 2 Tranquiliza 5 Felicita 4 3 Reconhece participação do (a) aluno (a) 1 Mantém contato (função fática) 4 1 Repreende 2 Esfera de conteúdo

1 0 Concorda com o(a) aluno (a) sobre o 1 conteúdo exposto Expande tópico 1 Resume tópico 1 Informa sobre o conteúdo ou parte 6 dele Exemplifica 2 Sugere 1 Solicita esclarecimento sobre as 1 dúvidas Solicita esclarecimento sobre informação do (a) aluno (a) Chama a atenção para ler o material 1 Questiona o conteúdo apresentado pelo (a) aluno (a) Solicita comentário do aluno sobre o conteúdo Reformula parte do tópico do (a) aluno (a) Expressa opinião sobre o conteúdo Esfera técnica Informa sobre procedimentos de aprendizagem Informa sobre atividade de portfólio 1 Orienta sobre participação no fórum Promete “resolver” questões técnicas Informa sobre questões técnicas Total 25

4

2

17

8

2 3 1

10

1

-

4

2 -

1

-

2

-

5

3

1

-

1 1 8 103

2 5 58

Ao relacionarmos a quantidade de atos de fala de cada tutor@ ao número de turnos produzidos, verificamos o seguinte: @ tutor@ A produziu em média 3,1 atos de fala por turno @ tutor@ B produziu em média 3,7 atos de fala por turno @ tutor@ C produziu em média 2,6 atos por turno Desse modo, @ tutor@ B foi a que mais produziu atos de fala diversificados. Surpreendeu-nos que @ tutor@ A, que produziu apenas oito turnos, tenha realizado em média mais atos que @ tutor@ C, que havia produzido vinte e dois turnos, conforme tabela 1, o que parece indicar que a quantidade de turnos (ou mensagens) no fórum não pode ser o único critério para dizer que há interação efetiva, cujo objetivo é efetuar mudanças na informação pragmática do ouvinte*, como nos esclarece Dik (1997).

* Segundo o autor, a informação pragmática inclui todo tipo de conhecimento, crenças, sentimentos, opiniões que o usuário da língua possui. O termo “ouvinte” é um termo usado para designar tanto o ouvinte quanto o leitor.

1 1 Com relação aos tipos de atos de fala produzidos na disciplina nos 12 fóruns, podemos visualizar a porcentagem de cada esfera no gráfico 3: GRÁFICO 3: TIPOS DE ATOS DE FALA

10% Atos de fala "sociais"

47% 43%

Atos de fala "conteudísticos" Atos de fala "técnicos"

Em relação ao total de atos de fala produzidos, que é de 186, percebemos que houve um predomínio dos atos relacionados à esfera social e à esfera técnica, que totalizam juntos 58%. Os atos de fala da esfera do conteúdo correspondem a 42%, o que nos surpreendeu, já que a disciplina faz parte da grade curricular de um curso superior voltado à formação de professores. Diante disso, parece-nos que o fórum poderia ter uma questão central que norteasse a discussão de cada aula. Além disso, faz-se necessário um ambiente em que os alunos, professores-tutores e coordenadores possam encontrar-se para interagir socialmente, de modo a estreitar mais os laços que os une, o que possivelmente diminuiria a sensação de solidão. É certo que os atos da esfera social e técnica são importantes, mas o foco deveria ser os atos da esfera do conteúdo, pois eles fornecem a base teórica para o graduando nessa área. Dentre as docentes, @ tutor@ A foi a que mais produziu, proporcionalmente, atos relacionados à esfera de conteúdo, o que contabiliza 56% dos seus atos. Ainda, no que se refere a essa esfera, @s tutor@s B e C produziram, respectivamente, 39% e 43% de atos de fala da esfera de conteúdo, fato que nos surpreendeu, pois era esperado que @ tutor@ B, por ter produzido mais turnos, produzisse maior quantidade de atos de fala voltados à esfera de conteúdo. Isso parece sugerir que o tipo de interação docente não está diretamente relacionado à quantidade de turnos ou atos de fala produzidos, mas ao conteúdo produzido em cada ato, o que corrobora a ideia de que o fórum deve ter uma questão (ou mais questões, se for o caso) relacionada ao conteúdo disposto em cada aula. No que tange aos atos da esfera de conteúdo, @s tutor@s A e B se voltaram mais à produção de atos relacionados à informação de conteúdo ou parte do conteúdo solicitado pelo aluno, como em [1]: [1] O nominativo corresponde ao sujeito ou ao predicativo do sujeito na função sintática. Ex. no nominativo singular “rosa” traduzimos como “a rosa”. No nominativo plural “rosae” traduzimos “as rosas”. (Tutor@ A/ Fórum 2)

1 2 @ tutor@ C privilegiou a produção de atos em que solicitava o esclarecimento de dúvidas mencionadas pelos alunos, como em [2]: [2] Você poderia apontar suas dúvidas, com base nas orações, i.é., mostrando-me qual(ais) sentença(s) você tem dúvidas? (Tutor@ C/ Fórum 2) Esse tipo de ato pode ter sido condicionado pelos turnos dos alunos que não especificavam a dúvida. Vejamos: [3] Por favor alguém me dê uma luz sobre declinação,´tô perdida!! Queria saber sobre as terminações das palavras, essas coisas....ok?. (Alun@ 1C/ Fórum 2) Como vemos em [3], @ alun@ tem dúvida, mas não esclarece @ tutor@ ou aos demais participantes o que não entende sobre as terminações em latim. Por fim, os dados nos levam a dizer que a quantidade de turnos, para este corpus, não é um fator determinante para a produção de atos de fala relacionados ao conteúdo, que deveria ser o foco dos fóruns educacionais. Estamos cientes de que a quantidade de turnos é uma parte importante nas interações entre docentes e discentes, pois eles dão aos participantes o sentimento de “presença”, mas parece-nos que o mais importante é o tipo de interação. É provável que um dos modos de mensurar a interação docente (e/ou discente) no processo de ensino-aprendizagem seja por meio da identificação dos tipos de atos de fala que predominam nas mensagens d@s tutor@s durante as discussões nos fóruns.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, com base no interacionismo sociodiscursivo, analisamos a interação docente em uma disciplina, do Curso de Graduação Semipresencial, do Instituto UFCVirtual, que tem o SOLAR como Ambiente Virtual de Aprendizagem. A fim de que pudéssemos identificar e classificar cada ato de fala, recorremos à noção de discurso misto interativo-teórico, sob a forma dialogada e à noção de sequência dialogal e seus níveis, dentre os quais se destaca o ato de fala, objeto da nossa investigação. Verificamos que, dos 186 atos de fala produzidos em 12 fóruns, @s tutor@s se detiveram mais nas esferas sociais e técnicas do que nas esferas de conteúdo, que eram as esperadas por nós, já que o objetivo da disciplina é “capacitar @ alun@ à compreensão das estruturas morfossintáticas do latim”. Por fim, acreditamos que a análise dos atos de fala nos forneceu subsídios para compreensão do tipo de interação que predomina nos fóruns educacionais, o que pode ser útil na formação dos tutores em EAD mediada por computador e internet.

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