Revista História e Economia v. 13

June 14, 2017 | Autor: B. Economia | Categoria: Economic History, Historia, Economia
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HISTÓRIA E ECONOMIA - revista interdisciplinar. Brazilian Business School. - v.13, n. 2, (2014). - São Paulo Semestral ISSN 1808-5318 1. História - Periódicos 2. Economia - Periódicos 3. Finanças Periódicos 4. Brasil - Periódicos I. BBS Business School. CCD 330.981

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Expediente História e Economia Revista Interdisciplinar BBS Business School Editor: John Schulz Vice editor: Adalton Francioso Diniz Secretária geral: Roberta Barros Meira Conselho editorial: Adalton Franciozo Diniz (Faculdade Cásper Líbero;PUC/SP) • André Villela (EPGE/FGV) • Antônio Penalves Rocha (USP) • Carlos Eduardo Carvalho (PUC/SP) • Carlos Gabriel Guimarães (UFF) • Felipe Pereira Loureiro (USP) • Flavio Saes (USP) • Gail Triner (Rutgers University) • Jaime Reis (ICS - Universidade de Lisboa) • John Schulz (BBS) • John K. Thornton (Boston University) • Jonathan B. Wight (University of Richmond) • José Luis Cardoso (ICS - Universidade de Lisboa) • Luiz Felipe de Alencastro (FGV;Sorbonne) • Marcos Cintra (Unicamp) • Pedro Carvalho de Mello (ESALQ) • Renato Leite Marcondes (USP/Ribeirão Preto) • Ricardo Feijó (USP/Ribeirão Preto) • Steven Topik (University of California Irvine) • Vitoria Saddi (INSPER) Agradecimento aos pareceristas externos: Eduardo F. Bastian – UFRJ; Renato Luís do Couto Neto e Lemos – UFRJ;Maria Marta Lobo de Araújo – Universidade do Minho; Luciana Gandelman – UFRRJ; Wilson Vieira – UFRJ; Maurício Coutinho – Unicamp; Rosa Maria Vieira Berriel – PUC/SP; Gimar Masiero - USP; Alexandre Ratsuo Uehara – Faculdades Integradas Rio Branco; Thiago Gambi – UNIFAL; Beatriz Ana Loner – UFPel; Petrônio Domingues – USP; Maria Lúcia Lamounier – USP; Shu Changsheng - UFRJ; Domingos Savio da Cunha Garcia – UNEMAT; Evangelia Aravanis – ULBRA; Marilluci Neis Carelli – UNIVILLE; Marina Monteiro Machado – UERJ; Pedro Cezar Dutra Fonseca- UFRGS; Danilo Enrico Martuscelli – UFFS; Adone Agnolin – USP; Delmo Mattos da Silva- Associação Latino Americana de Ciência Política; José Felipe Araújo de Almeida – UFPR; Brena Paula Magno Fernandez- UFSC; Ester Judite Bendjouya Gutierrez – Ufpel; Ronaldo Bernardino Colvero – UNIPAMPA; Aldair Carlos Rodrigues – UNICAMP; Antônio Carlos Jucá- UFRJ; Vanessa Bivar- UFMS; Lená Medeiros de Menezes – UERJ; Rodrigo Delpupo Monfardini – UFF; Leandro Ribeiro da Silva – UFJF; José Carlos Nayme Novelli – UFSCAR; Projeto gráfico e arte: Meca Comunicação Estratégica Diagramação: Valter Luiz de Freitas Tiragem: 500 exemplares Impressão: Neoband BBS Business School Al. Santos, 745 – 1º andar – São Paulo – SP – Brasil Tel. 55 11 3266-2586 – Fax 55 11 3289-3345 [email protected] – www.bbs.edu.br

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Sumário Apresentação O momento de História e Economia The moment of História e Economia Conselho editorial....................................................................................................................................9 Nota do Editor Editor’s note John Schulz.............................................................................................................................................11 Artigos Empreiteiros e políticas públicas na Ditadura Civil-Militar, 1964-1988 Pedro Henrique Pedreira Campos...........................................................................................................15 A Confederação Nacional da Indústria e o plano de estabilização monetária de 1958 Fausto Saretta ........................................................................................................................................43 Price Indicator for Live Cattle Contracts in Futures Trading Pedro Carvalho de Mello ......................................................................................................................61 A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777) Augusto Fagundes da Silva dos Santos...................................................................................................77 A Sociedade de Mineração de Mato Grosso e os trabalhadores africanos livres. 1851-1865 Zilda Alves de Moura..............................................................................................................................97 Imigração francesa e redes de comércio na Fronteira Brasil-Argentina (Segunda metade do século XIX) Márcia Solange Volkmer.......................................................................................................................125 Resenha de Saes, Flávio Azevedo Marques e Alexandre Macchione Saes, História Econômica Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2013 André Villela........................................................................................................................................141 Roteiro para submissão de artigos.........................................................................................159 História e Economia Revista Interdisciplinar

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O momento de História e Economia The moment of História e Economia

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O País e as Disciplinas

e proporções continentais, o Brasil se fechou em si mesmo ao longo da segunda metade do século 20. A industrialização tardia do País materializada sob a forma de substituição de importações foi o tema dominante nesse período. Durante as últimas duas décadas, entretanto, a visão do Brasil mudou de forma significativa. Tal episódio teve também repercussão na academia, observando um movimento no qual tanto a “esquerda” quanto a “direita” passaram a buscar novas idéias de fora do País. Os historiadores e economistas procuraram entender o mundo inclusive em áreas nas quais o Brasil possuía pouco contato prévio. Atualmente, a Coréa do Sul e a Índia podem ser modelos para o Brasil. Neste ínterim, o Brasil, que liderou o mundo em termos de crescimento econômico por diversas décadas e, recentemente, superou um processo de pré-hiperinflação, tem muito a contar para o mundo. Ao nosso ver, História e Economia é um fórum multilinguístico para estudiosos brasileiros e de outros países. Também entendemos que esta revista é uma forma na qual os pesquisadores do Brasil podem expressar suas experiências a acadêmicos e demais interessados no exterior. Os estudos interdisciplinares estiverem em voga, no mínimo a partir da publicação dos Annalles em 1929. Os historiadores, em sua grande maioria, apesar de serem influenciados

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The Country and the Disciplines

f continental proportions Brazil looked predominantly inwards throughout most of the second half of the twentieth century. Import substitution and autarky dominated thinking accross the political spectrum. Over the past two decades, the outlook changed dramatically with both the “left” and the “right” searching outside for new ideas and for material fulfillment. Historians and economists seek to understand the world including areas with which Brazil had little previous contact. Today South Korea and India may be role models and are at least “benchmarks” for Brazil. Meanwhile Brazil, which led the world in economic growth for a number of decades, and which recently overcame near hyperinflation, has something to tell the rest of the world. We view História e Economia as a multilingual forum for both Brazilian and international scholars. We also see our journal as a means by which Brazilian researchers communicate the Brazilian experience to academics and other interested parties abroad. Interdisciplinary studies have been in vogue at least since the appearance of the Annales in 1929. In practice, historians, although influenced by ideas from many fields, rarely undertake research in conjunction with scholars trained in other disciplines. Collective studies tend to be by groups of historians. Brazil

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por idéias de áreas distintas, raramente produziram trabalhos em co-autoria com acadêmicos de outras disciplinas. Esforços coletivos tendem a incluir apenas historiadores. Esta revista pretende ser um fórum de propagação de idéias inovadoras de historiadores e economistas. De fato, o Brasil tem um grande número de economistas cujos trabalhos de história econômica possuem reconhecimento internacional e contribuíram para o avanço da história. Tal tradição teve início nos anos 50 com Celso Furtado, senão antes. Assim, usando da credibilidade desses acadêmicos brasileiros, o intuito da revista é o de estimular a pesquisa e a comunicação por acadêmicos das duas disciplinas. A revista abarca três áreas: história econômica geral, história financeira e história das idéias econômicas. Em história financeira incluímos moeda, instituições e instrumentos financeiros e finanças públicas. A história das idéias econômicas abrange as adaptações que economias, como as do Brasil e de Portugal, terminaram por implementar no pensamento econômico tradicional. Será por meio do encontro entre história e economia e do Brasil com o mundo que esta revista deverá fazer sua contribuição. Conselho editorial

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has a large number of outstanding economists whose work on economic history is recognized around the world. This tradition started with Celso Furtado in the fifties if not earlier. We intend to take advantage of this existing situation to encourage research and communication by scholars of both disciplines. História e Economia dedicates itself to three areas: General Economic History, Financial History and the History of Economic Ideas. Within Financial History we include money, financial institutions and instruments, and public finance. The History of Economic Ideas encompasses the adaptations that relatively backward economies, such as Brazil and Portugal, have made of economic thought from the “advanced” countries. It is on the intersections of history and economics and of Brazil and the world where we wish to make our contribution. Editorial board

Nota do editor Editor’s note

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ostaríamos de cumprimentar os nossos colegas da Universidade Federal de Minas Gerais em seu último número (setembro-dezembro de 2014) da Revista Varia História pela inclusão de uma importante e internacional seleção de artigos sobre a África. Em todo o país, vemos um aumento do nível de consciência em relação ao mundo exterior.

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e would like to complement our colleagues at the Federal University of Minas Gerais on their latest number (September-December 2014) of Varia História for including a large and worldclass selection of articles on Africa. All over this country, we see an increased level of awareness regarding the world outside.

Três dos artigos desta edição de História e Economia lidam com eventos do século XX, colocando nossa situação atual dentro de sua perspectiva histórica. Pedro Henrique Pedreira Campos em “Empreiteiros e Políticas Públicas na Ditadura Civil-Militar, 1964-1988” mostra que a proximidade entre empreiteiros e o Governo que existiu durante o Regime Militar difere pouco do relacionamento que continua até hoje. O que mudou, pelo menos aparentemente, é a independência do poder judicial em processar abusos.

Three of the articles in this edition of Historia e Economia deal with events of the twentieth century that place our current situation within its historical perspective. Pedro Henrique Pedreira Campos’ Empreiteiros e políticas públicas na ditadura civil-militar, 1964-1988 illustrates that the proximity between contractors and the government that existed during the military regime differs little from the relationship that continues today. What has changed, at least apparently, is the independence of the judiciary in prosecuting abuses.

A necessidade de prudência nas finanças públicas é recorrente não só dentro da História financeira brasileira, mas também em todos os países. Em seu “Confederação Nacional da Indústria e o Plano de Estabilização Monetária de 1958”, Fausto Saretta descreve a luta contra a inflação durante a presidência de Juscelino Kubitschek mostrando como os industriais incentivavam políticas que conduziram a aumentos de preços. Em 2015, estamos vendo uma nova rodada deste conflito interminável e a gangorra

The need for prudence in public finances recurs not only within Brazilian financial history but also within that of all states. In his Confederação Nacional da Indústria e o Plano de Estabilização Monetária de 1958, Fausto Saretta describes the struggle against inflation during the presidency of Juscelino Kubitschek showing how industrialists encouraged policies that lead to increases in prices. In 2015, we are seeing another round of this interminable and see-sawing conflict in which, once again, many

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Nota do editor

em que, mais uma vez, muitos industriais estão do lado da inflação. Nosso membrodo Conselho Editorial, Pedro Carvalho Mello, ex-diretor da Bolsa Mercantil & Futuros do Brasil, discute como um país como o Brasil busca manter um intercâmbio autônomo em um mundo consolidado. Embora o período analisado abrange o século passado, a questão da independência financeira continua tão importante como sempre.

Our editorial board member, Pedro Carvalho Mello, a former director of the Bolsa Mercantil & Futuros, Brazil´s futures exchange, discusses how a country like Brazil seeks to maintain an autonomous exchange in a consolidating world. Although the period analyzed covers the past century, the issue of financial independence continues as important as ever.

Os três artigos finais neste número lidam com aspectos do passado mais remoto do Brasil. Augusto Fagundes da Silva dos Santos em “A Misericórdia da Bahia e o Sistema de Concessão de Crédito (1701-1777)” mostra como as instituições religiosas provinham o crédito necessário para a economia local na ausência de instituições seculares. Fora a Grã-Bretanha e Holanda, esta situação era comum durante o século XVIII.

The three final articles in this number deal with aspects of Brazil´s more remote past. Augusto Fagundes da Silva dos Santos´ A Misericórdia da Bahia e o sistema de concessão de crédito (1701-1777) shows how religious institutions provided the credit need by the local economy in the absense of secular institutions. Outside Britain and Holland, this situation was common during the eighteenth century.

Zilda Alves de Moura na “A Sociedade de Mineração de Mato Grosso e os Trabalhadores Africanos livres, 1851-1865” faz uma contribuição significativa em duas questões: ela demonstra como os governos brasileiro da década de 1850 e 1860 promoveram o “progresso” ao descrever como esses ministérios tratavam com os africanos ilegalmente enviados ao Brasil por comerciantes de escravos. Assim, como na defesa de que a abolição do tráfico de escravos gerou uma onda de otimismo que teve reflexo na criação de novas empresas, mudando profundamente a economia daquele tempo, incluindo as empresas de mineração, bem como ferrovias, serviços públicos e bancos.

Zilda Alves de Moura´s A sociedade de Mineração de Mato Grosso e os trabalhadores africanos livres, 1851-1865 ia a significant contribution on two scores: it demonstrates how the Brazilian governments of the 1850s and 1860s promoted “progress” while describing how these ministries dealt with the Africans illegally shipped to Brazil by slave traders. The abolition of the slave trade generated a wave of optimism reflected in the establishment of new enterprises that profoundly changed the economy of the time, including mining companies as well as railroads, utilities, and banks.

Maria Solange Volkmer em “Imigração Francesa e Redes de Comércio na Fronteira Brasil-Argentina” utiliza as experiências individuais de imigrantes franceses para nos iluminar sobre a expansão da economia brasileira do século XIX.

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industrialists are on the side of inflation.

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Maria Solange Volkmer´s Imigração Francesa e redes de comércio na Fronteira BrasilArgentina utilizes the individual experiences of French immigrants to enlighten us regarding the xpansion of the nineteenth century Brazilian economy. This study represents a combination of micro-economics and history.

Este estudo representa uma combinação de Micro-Economia e História. Finalmente, temos o prazer de apresentar uma revisão do livro de Flavio Saes e Alexandre Saes “História Econômica Geral” pelo nosso membro do Conselho Editorial André Villela. Flávio Saes aposentou-se recentemente como membro do nosso Conselho, onde atuou desde o início. Vamos sentir falta dele. Em seu lugar, estamos orgulhosos de anunciar que Luiz Felipe de Alencastro, que lecionou por muitos anos na Sorbonne, juntou-se o nosso Conselho.

Finally, we are happy to present a review of Flavio Saes and Alexandre Saes´ História Econômico Geral by our editorial board member André Villela. Flavio Saes has recently retired as a member of our board where he has served since the beginning. We shall miss him. In Flavio´s place, we are proud to announce that Luiz Felipe de Alencastro, who taught for many years at the Sorbonne, has joined our board. 

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Empreiteiros e políticas públicas na Ditadura Civil-Militar, 1964-19881 Pedro Henrique Pedreira Campos2 Professor da Universidade Rural do Rio de Janeiro [email protected]

Resumo Este ensaio pretende analisar as políticas estatais implantadas durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1988) para o setor da indústria de construção pesada. Oriundo de uma pesquisa maior acerca da relação dos empresários da construção pesada com a ditadura, tentamos indicar como os empreiteiros - a partir de sua organização e posicionamento nas agências estatais - foram beneficiados pelas políticas públicas postas em prática a partir do golpe de Estado de 1964. Apesar de perceber nuances de momento a momento e de governo a governo dentro da ditadura, concluímos que esses empresários foram amplamente favorecidos pelas medidas e políticas postas em prática pelo aparelho de Estado, o que foi um fator decisivo para que algumas empreiteiras crescessem, se ramificassem e se internacionalizassem ao final da ditadura, tomando então um porte de capital monopolista, além de terem se tornado importantes agentes econômicos e políticos da transição e do novo regime estatal inaugurado em 1988. Palavras-chave: empreiteiras; indústria de construção pesada; ditadura civil-militar brasileira (1964-1988)

Abstract This essay aims to examine the state policies of the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1988) for the heavy construction industry. Deriving from a larger study on the relationship of the heavy construction business with the dictatorship, we try to indicate how contractors - from their organization and positioning in state agencies – were benefited by public policies implemented beginning with the coup of 1964. Despite noticing differences from time to time and from government to government within the dictatorship, we conclude that these entrepreneurs were widely favored by the measures and policies implemented by the state apparatus. These measures were a decisive factor for several contractors that grew, diversified, and internationalized by the end of the dictatorship, assuming a position of monopoly capital, and becoming important agents of economic and political transition within the new state regime inaugurated in 1988. Keywords: contractors; heavy construction industry; Brazilian civil-military dictatorship (1964-1988)

1 Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Faperj e do CNPq. Este ensaio corresponde, com alterações e adaptações, a trecho do quarto capítulo de nossa tese de doutorado, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação de História da UFF sob o título A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. 2 Professor do Departamento de História e Relações Internacionais da UFRRJ.

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Empreiteiros e políticas públicas na Ditadura Civil-Militar, 1964-1988

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s conglomerados econômicos brasileiros que tiveram origem na indústria de construção pesada3 se apresentam na atualidade como ativos beneficiários das ações do Estado brasileiro. Políticas de obras, empréstimos facilitados dos bancos públicos, injeções de capitais pelas agências estatais e as privatizações de ativos do Estado fazem com que grupos como os Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez solidifiquem suas ramificações e sua ampla presença na economia brasileira, afora a atuação internacional desses grupos, em obras, concessões e projetos que recebem o apoio direto do aparelho de Estado brasileiro. Leilões recentes, como os dos aeroportos das maiores cidades brasileiras, transferidos justamente para esses grupos (que foram antes responsáveis pela sua própria construção4), só reforçam esse processo. Essas políticas favoráveis são a própria expressão da força política desses empresários e da intensa presença de representantes de seus interesses em organismos e agências estratégicas do aparelho de Estado. No entanto, esse processo não é novo e tem como um dos momentos históricos mais significativos o período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1988).5 O objetivo deste artigo é analisar em linhas gerais as políticas estatais desde 1964 até o final da ditadura, aferindo em que medida os empreiteiros foram ou não contemplados em seus interesses pelas medidas e diretrizes postas em prática. Abordaremos tanto as políticas de caráter mais lato, que tiveram efeitos sobre amplos segmentos da sociedade, como medidas de caráter mais voltadas para o setor em questão. Não pretendemos um tratamento minucioso da polí3 A indústria da construção pesada é o setor econômico que abrange as empresas dedicadas às obras de infra-estrutura, comumente conhecidas como empreiteiras. 4 O que inclusive ocorreu em boa parte dos casos durante a própria ditadura, como com os aeroportos de Guarulhos, do Galeão e de Confins. Ver: CAMPOS (no prelo). 5 Para a periodização do regime, partimos das elaborações de LEMOS (2010, 1-21)

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tica econômica e demais políticas para os mais de 20 anos de ditadura civil-militar no Brasil, mas assinalar decisões que tocaram os interesses das empreiteiras, referindo-se em nota às fontes que trazem um detalhamento profundo das medidas, bem como leituras da historiografia sobre o assunto. Octavio Ianni (1986, 229-259) vê uma linha geral de continuidade na política econômica dos governos da ditadura, entendendo, por exemplo, as políticas do período Costa e Silva como continuação do Paeg. Apesar de concordarmos que há elementos que aproximam as orientações das políticas dos mandatos presidenciais do regime, entendemos haver nuances entre os diferentes governos e momentos que remetem a um posicionamento e combinações diferenciadas de grupos e frações de classe dentro do grupo dirigente. As alterações no panorama da economia internacional e os diferentes momentos políticos do cenário interno condicionaram essas alterações da correlação de forças na sociedade política e, por conseguinte, nas políticas públicas postas em prática. Assim, para efeito de compreensão do bloco de poder vigente, da correlação de forças entre grupos empresariais dentro do aparelho de Estado e políticas públicas priorizadas, podemos proceder a uma divisão do regime civil-militar, que, com as peculiaridades em seus governos e momentos, pode ser separada nos seguintes períodos: 1964-1967/1968, de implantação do regime, predomínio do capital estrangeiro e associado e políticas públicas de corte monetarista; 1967/1968-1974, período de alteração na composição das forças empresariais no aparelho de Estado, com liderança do capital industrial, sobretudo paulista, e orientação expansionista na produção econômica, incluindo funções mais seletivas para o capital estrangeiro e associado; 1974-1977/1979, período de nova recomposição das forças político-empresariais,

com emergência de novos grupos e relativo alijamento de certo capital industrial paulista, apesar da manutenção de uma política de crescimento econômico, porém assentada em novas bases; e, finalmente, o período 1977/1979-1985/1988, de crise de hegemonia, com esfacelamento do pacto político de sustentação da ditadura e confronto entre diferentes frações do capital e grupos empresariais, correspondendo a uma incerteza e inconstância das diretrizes governamentais. Essas modificações no bloco de poder e nas políticas públicas praticadas nos mais de 20 anos de ditadura correspondem a diferentes posicionamentos dos empreiteiros e de suas frações no grupo dirigente e também a políticas que atendiam mais ou menos aos seus interesses. Levando em conta essas peculiaridades dos diferentes momentos do regime, compreenderemos como algumas empresas saíram de uma posição privilegiada em determinado período para decair e ir à falência em outra situação. Grupos de empreiteiros foram compostos em certas circunstâncias políticas e recompostos em outras, conforme a configuração política vigente. Portanto, para melhor compreender a inscrição dos empreiteiros no pacto político da ditadura, temos que analisar cada período em sua especificidade.

O Ipes no poder – capital associado e políticas restricionistas (19641967/1968): Logo após o golpe de Estado de abril de 1964, a maior parte dos postos de comando no apare­lho de Estado foram preenchidos por quadros do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e da Consultec (Companhia Sul-Americana de Administração e Estudos Técnicos), representando os interesses dos capitais privados internacionais e seus associados.6 Essa nova composição do bloco de poder incorreu em políticas favoráveis às multinacionais instaladas 6 Ver DREIFUSS (1981, 423-425).

no país e a empresas associadas a grupos inter­ nacionais. Sob a direção de Octávio de Gouveia Bulhões e Roberto Campos, foram postas em prática reformulações de ordem institucional e políticas econômicas restricionistas previstas no Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg). Os artífices do novo regime afirmavam que pretendiam liquidar o “populismo distributivista” (IANNI, 1986, 280) e, para Roberto Campos, era necessário acabar com o “populismo econômico” nas áreas fiscal (gastos excessivos), creditícia (crédito sem respaldo de poupança interna) e salarial (salários muito elevados). O Paeg foi um plano eminentemente anti-inflacionário orientado para acentuar a recessão econômica que já vinha ocorrendo desde 1962. Os instrumentos para tal foram a contenção dos salários, o aumento da carga tributária, o corte nos gastos públicos e a contração na oferta de moeda e de crédito. (PRADO, 2003, 209-241) A política de austeridade fiscal teve efeito negativo para a indústria de construção pesada e houve insatisfação no setor diante da interrupção das obras que vinham se desenvolvendo no período Goulart. A força do setor multinacional e associado se fez mostrar com as medidas de garantia à integridade dos investimentos estrangeiros, o cancelamento da lei de restrição de remessa de lucros e a revisão das formas como as empresas foram encampadas no período anterior. O Acordo de Garantia de Investimentos, de 1965, (IANNI, 1986, 259-276) estabelecido entre o governo brasileiro e o norte-americano, era expressão do poder do grupo e indicava que o modelo de desenvolvimento não iria diferir do que vinha sendo implantado desde 1955, ou melhor, com centralidade do Departamento III, produtor de bens de con­sumo duráveis, na liderança do desenvolvimento industrial e econômico doméstico, sendo esse setor dominado por empresas multinacionais. (MENDONÇA, 1985, 69-100) História e Economia Revista Interdisciplinar

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Nesse caso, a prioridade das políticas governamentais não estava voltada para o setor de construção, o que foi mais um elemento de insatisfação dos empreitei­ros com o governo, sobretudo quando construtoras estrangeiras passaram a ser usadas para realizar empreendimentos cuja tecnologia era controlada pelas empresas nacionais. (ROTSTEIN, 1966, 1-102) A paralisação das obras foi medida específica que teve ressonância negativa no setor, e o presidente da República não foi uma pessoa estimada pelos empreiteiros. A esse respeito, Wilson Quintella, diretor da empreiteira Camargo Corrêa, assim comenta a alteração do nome da rodovia do Oeste para estrada Castello Branco no final dos anos 60: “Cá entre nós, o nome original da rodovia era muito mais simpático”. (QUINTELLA, 2008, 239-262) Para implementar o plano anti-inflacionário, os principais instrumentos utilizados pelo governo atingiam os trabalhadores. Medidas como o congelamento do salário mínimo, a proibição de aumentos de salários em períodos menores que um ano e, diretamente associado a isso, a intervenção em sindi­catos e a repressão às centrais mostravam qual classe social pagaria mais para os esforços de contenção econômica do governo. A proibição do direito de greve na maior parte dos casos e o fim da estabilidade depois de dez anos de emprego nas firmas privadas ajudaram a tirar combatividade das organizações de trabalhadores, e muitos deles passaram a buscar ganhos extras.(SINGER, 1978, 50-60; OLIVEIRA,2003, 107-119) A repercussão dessas medidas para as empresas foi positiva, diminuindo o custo primário com a força de trabalho, o que foi especialmente benéfico para setores que empregavam muito capital variável, como era o caso da indústria de construção. Outras medidas, no entanto, lesariam as companhias intensivas em mão de obra. Uma das inovações do Paeg foi ser, 18

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ao mesmo tempo, um plano de restrição da atividade econômica, que usou mecanismos ortodoxos, e também um plano que incluía uma reforma institucio­nal. (GREMAUD, 1997) Isso se expressou na reforma do sistema tributário, que teve a criação de novos impostos – como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) –, mais eficientes na captação de recursos que os anteriores, mas que sufocou pequenas empresas, levando várias à falência. A criação dessas e outras contribuições elevou a carga tributária de 18% em 1963 para 26,7% do PIB em 1968 e veio associada à criação dos recursos das poupanças compulsórias, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que substituía a estabilidade no emprego, além do PIS (Programa de Integração Social) e do Pasep (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público). (MARTINS,1972, 1-48; OLIVEIRA, 1977, 76113) As construtoras e outras firmas que empregavam muitos trabalhadores elevaram seus custos com esses novos tributos e contribuições, visto que eles incidiam sobre a folha de pagamento. Novamente, os empreiteiros ficavam insatisfeitos com o Paeg. Outra inovação institucional foi a reformulação no Sistema Financeiro Nacional (SFN), com a criação do Banco Central do Brasil (BC) e do sistema de habitação, dentre outras medidas. Com o forta­lecimento do mercado de capitais, oriundo das mudanças no sistema, houve incentivo à conglomeração e concentração econômica, com a possibilidade de abertura do capital social das empresas, marco a partir do qual várias empreiteiras deixaram de ser companhias limitadas e se tornaram sociedades anônimas. Guido Mantega destaca que as modificações realizadas no SFN visavam à melhor captação e canalização da poupança em proveito dos grandes grupos econômicos, o que favore-

ceu posteriormente a indústria de construção. (MANTEGA, 1991, 51-82) Assim, um dos novos mecanismos de financiamento criados foi o Fundo de Financiamento para Aquisição de Máquinas e Equipamentos Industriais, depois renomeado para Fundo Especial de Financiamento Industrial (Finame). O setor de construção rodoviária era o que mais obtinha empréstimos do programa a partir de 1967, tomando recursos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e da Usaid (United States Agency for International Development) – nos quadros da Aliança para o Progresso – para compra de máquinas nacionais ou norte-americanas em condições favoráveis.(Revista O Empreiteiro 03/1968) Esse e outros instrumentos financeiros criados nas reformas do período 1964-1967 foram de fato postos em prática a partir da liberação do crédito, já no governo Costa e Silva, e a postura geral da maior parte dos empreiteiros em relação a essas restrições nos financiamentos era negativa. Houve mudança de postura também em relação às estatais, reorientadas para gerar lucro. Seus preços foram liberados, e as consideradas ineficientes ou deslocadas em relação às suas funções foram privatizadas, caso da Lóide Brasil e da Fábrica Nacional de Motores. (STEPAN, 1957, 166-183) A liberação dos preços de artigos como o aço não foi bem recebida por setores de alto consumo do insumo, como as empreiteiras, já que era o interesse do setor a sua produção subsidiada, de modo a dar suporte à indústria de construção. No setor de transportes, o que vimos no período foi uma política inserida na lógica do Paeg, com incentivo ao capital internacional e que, mesmo contrariando as empresas do setor, deu as bases para os amplos investimentos posteriores. Em linhas gerais, a política de transportes acentuou o que fora implantado no Plano de Me-

tas, com orientação para o transporte rodoviário e desmantelamento do sistema ferroviário nacional. Foi criado o Grupo Executivo para Integração da Política de Transporte (Geipot), sob a direção do engenheiro Lafayette Prado, que reformulou administrativamente o Ministério de Viação e Obras Públicas e estabeleceu acordo com o Banco Mundial e empresas estrangeiras para reformular o sistema nacional de transportes. O acordo com o Bird redesenhou a estrutura do ministério, propondo sua substituição pelo Ministério dos Transportes, implantado em 1967. No bojo de suas sugestões foi criado o Conselho Nacional do Transporte (CNT), que desenvolvia as diretrizes para a política nacional do setor, e foi reformulado o DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem), também dirigido por Prado. Em convênio com instituições internacionais, foram contratadas empresas estrangeiras para projetar rodovias nos estados do Sul e em Minas, portos, o sistema ferroviário nacional e a política de transportes. O uso de firmas estrangeiras em detrimento de nacionais, que tinham experiências nessas funções, causou reação indignada de empresários do setor, reunidos no Clube de Engenharia, em movimento que levou à revisão dessas políticas após 1967. (PAULA, 2000, 120-188; PRADO, 1977, 33-44; CLUBE DE ENGENHARIA, 1967, 31-70) Apesar da interrupção da maior parte das obras rodoviárias no período, em dezembro de 1964 foi aprovada a Lei nº 4.592, prevendo o Plano Nacional de Viação, com projeto de várias estradas que seriam realizadas nos governos Costa e Silva e Médici. Novos impostos criados no período deram suporte à expansão rodoviária ulterior, como o Imposto sobre Serviços de Transporte Rodoviário Interestadual e Intermunicipal de Passageiros e Cargas (ISTR), pelo Decreto-lei nº 284, de fevereiro de 1967, que alimentava o Fundo Especial de Conservação e Se-

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gurança do Tráfego, depois substituído pelo IST, e que seria complementado pela Taxa Rodoviária Única (TRU). (ALMEIDA; DAIN; ZONINSEIN, 1982, 1-145) No entanto, esses recursos, naquele momento, ficaram contingenciados para efeito de redução do déficit público, o que gerava críticas dos empresários do setor. (PRADO, 1997, 235-261) A prioridade às rodovias incluiu a intensificação da extinção dos ramais ferroviários ditos deficitários, política liderada por Eliseu Resende. Até 1974, foram 4.881 km de ferrovias inutilizados, prejudicando algumas empresas industriais, como a Cimento Mauá, Votorantim e Companhia Nacional de Álcalis, sendo apenas em Minas Gerais 1.200 km de estradas de ferro extintos na década de 1960. Essa política incluía a dispensa de trabalhadores, o que fez com que do quadro de 154 mil funcionários da Rede Ferroviária Federal S. A. em 1964, restassem apenas 112 mil em 1972. É importante destacar que no ramo estava um dos movimentos sindicais mais combativos do país, em área de atuação do Partido Comunista. (PAULA, 2000,189-247; SICEPOT-MG, 2005,31,163; Revista O Empreiteiro, 06/1973) No setor de energia, a política levada a cabo por Mauro Thibau também beneficiou as empresas estrangeiras. A nacionalização da American Foreign Power Company (Amforp) foi reformulada em relação aos termos previstos no governo Jango, postas em uma equação que satisfazia a controladora estrangeira. Mesmo com a presença de defensores do capital internacional, como Octávio Marcondes Ferraz, a atuação estatal no setor acabou aumentando no período, com a incorporação da Amforp e a centralização de companhias na Eletrobrás. (CORRÊA, 2006, 147-165) Mais que energia e transportes, as maio-

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res inovações do governo Castello, no que diz respeito às áreas de atuação das construtoras, ocorreram no setor de habitação. A partir de proposta de Sandra Cavalcanti, houve ampla reformulação do setor com o Plano Nacional de Habitação e a criação de novas agências, como o SFH (Sistema Financeiro de Habitação), o Serfhau (Serviço Federal de Habitação e Urbanização) e o BNH (Banco Nacional de Habitação). Cavalcanti afirmava que o projeto era construir moradias populares para as classes de baixa renda urbanas, de modo a atenuar a questão social. (FONTES, 1986,111-147) Carlos Ernesto Ferreira afirma que o déficit habitacional brasileiro em 1964 era avaliado em 8 milhões de moradias (FERREIRA, 1976, 1-37) e, apesar dos elogios populares às últimas construções da FCP (Fundação Casa Popular) e dos IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões), esses organismos foram extintos, levando a função de financiamento público habitacional para o BNH, que incoroporou também antigas incumbências das caixas econômicas. O setor de previdência foi centralizado no INPS (LOBO, 1992, 393-438) e na área do saneamento, o DNOS fez convênio com a Usaid, mas as políticas para o setor tomariam vigor apenas com o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), de 1971. (JORGE,1987, 112-208) Apesar de o projeto atender aos interesses das empresas de construção imobiliária urbana, o BNH só passou a contar com mais verbas para a implementação de suas políticas com a incorporação dos recursos do FGTS e da poupança voluntária, após 1967. Ao longo do governo Castello, as atividades do banco estiveram focadas no financiamento de habitações para as classes populares, seguindo o modelo implantado por Sandra Cavalcanti no governo da Guanabara, e que, desde seu princípio, não ad­mitia a possibilidade de subsídio à compra da moradia. Tendo em vista a política salarial do regime, os em-

préstimos do BNH se direcionaram à produção e aquisição de imóveis para os estratos intermediários e superiores da sociedade, principalmente após 1968. (FONTES, 1986, 111-147) O próprio banco passou também a ser instrumento preferencial de geração de empregos, como indicaram Celso Furtado, Vaz da Costa e Carlos Ferreira, em detrimento do enfrentamento do problema do déficit habitacional. (FERREIRA, 1976, 1-37) Se não solucionava o problema social, o banco foi boa fonte de ganhos para o capital construtor, imobiliário e financeiro relacionado à habitação, prin­cipalmente após a majoração de seus recursos, no período Costa e Silva. Posteriormente, o BNH atendeu aos interesses das empresas de construção pesada, ao financiar projetos de infraestrutura urbana. Atendendo prioritariamente ao capital estrangeiro e associado e às maiores empresas, as políticas do governo Castello não tiveram em geral uma recepção de todo positiva no empresariado e foram criticadas pelas associações de classe e pelos representantes do setor no Congresso. O Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) denunciou o governo em 1965, afirmando que, “com sua política financeira, acabará atirando a indústria nacional no abismo”, (Correio da Manhã, 14/05/1965;) e a CPI da Desnacionalização da Economia denunciou a Instrução nº 289 da Sumoc, afirmando ser esta “um mecanismo pelo qual as empresas estrangeiras passaram a usufruir de uma faixa privilegiada de crédito, o que é mais importante, a juros extremamente baixos”. (VIZENTINI, 1998,30) Na mesma linha, o empresário José Ermírio de Morais acusou a equipe econômica de ter o “deliberado propósito de esmagar a empresa nacional”. (VIZENTINI, 1998,78) O volume de críticas levou à atenuação das medidas de austeridade em 1966, mas as linhas principais da política econômica foram mantidas até março de 1967. A resistência

às medidas da dupla Campos-Bulhões também se mostrava dentro do aparelho de Estado, sendo um exemplo a estatização da telefonia, realizada por insistência de agentes como o general Ernesto Geisel, contra a posição de Roberto Campos de manutenção do setor sob a alçada privada. (GASPARI, 2004, 45-66) No âmbito das empreiteiras, houve reação ao uso de firmas estrangeiras em atividades domina­das pelos capitais nacionais. O Clube de Engenharia (CE) organizou a campanha “em defesa da engenharia nacional”, que teve adesão da Abemi (Associação Brasileira de Engenharia Industrial) e aproximou-se de oficiais da chamada ala dos nacionalistas autoritários. A oposição às medidas governamentais criou um bloco de ação que reunia empresários cujas atividades eram voltadas para o mercado interno, construtores e militares descontentes com os rumos do governo Castello. (CHAVES,1985, 78-137) Tal composição assumiu posições políticas centrais no aparelho de Estado durante os períodos Costa e Silva e Médici, aproveitando-se das inovações institucionais forjadas no período 1964-1967. Como um dos últimos atos de seu governo, Castello Branco promulgou uma nova Constituição e uma de suas medidas era desobrigar o governo a investir coeficientes mínimos em Educação e Saúde. A decisão resultou na contínua redução do orçamento do MEC, que saiu dos 10,6% dos gastos totais da União em 1965 para 4,3% em 1975, e dos gastos com Saúde, que foram de 4,29% em 1966 para 0,99% do orçamento da União em 1974. (FONSECA, 1993,17-48; JORGE, 1987, 72-111) Os recursos subtraídos da Educação e da Saúde permitiram o reforço dos gastos com investimentos em infraestrutura, como a construção de estradas e de hidrelétricas, que se intensificaram nos anos posteriores ao governo Castello. História e Economia Revista Interdisciplinar

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O delfinato – A ditadura da burguesia industrial paulista (19671974): Se o período de institucionalização da ditadura correspondeu a uma certa insatisfação de frações da burguesia brasileira, o período mais duro, autoritário e repressivo do regime foi o de maior contentamento das classes dominantes residentes. Já no período Castello, grupos empresariais organi­zados em entidades como Ciesp, CE, Abemi e outras, sobretudo industriais, exigiram a reorientação da política econômica e se aliaram a militares autoritários defensores de limites para a atuação do capital estrangeiro no país. O grupo empresarial se uniu em torno de figuras como Arthur da Costa e Silva, Mário Andreazza e Afonso Augusto de Albuquerque Lima, criticando o monetarismo das políticas do Paeg e o excesso de benefícios às companhias internacionais, em detrimento das brasileiras. O grupo chegou ao poder em 1967 e, apesar das pressões estrangeiras para manutenção da equipe econômica,7 os ministros foram renovados, dando maior poder e presença para a burguesia industrial nacional. O endurecimento e fechamento maior da ditadura a partir de 1968 e 1969 foi apoiado pelo grupo e acabou lhe trazendo benefícios, como a maior repressão aos movimentos de trabalhadores e medidas de política econômica implantadas com o Congresso fechado, que garantiam espaço às empresas nacionais e mais verbas para investimentos. Nessa nova composição do bloco de poder, uma figura ganhou projeção especial. Oriundo das associações industriais e comerciais de São Paulo, tendo passado antes pela Secretaria Estadual de Fazenda paulista, o economista Antonio Delfim Netto foi indicado para o Ministério da Fazenda, realizando uma escalada em seu poder pessoal nos anos seguintes, até ter vasto 7 Assinalado por VIZENTINI (2001, 301-319)

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controle sobre a economia e a política econômica. Delfim representava a resposta à pressão dos aparelhos privados de hegemonia da classe dominante e atendeu amplamente aos empresários brasileiros, sobretudo os do setor industrial e, em especial, o paulista. As injunções políticas ocorridas até 1974, sobretudo em 1968 com o AI-5 e em 1969 com a doença de Costa e Silva e escolha de Médici para a presidência,8 só fizeram aumentar o poder do ministro, que usava para isso a projeção que ele detinha no Conselho Monetário Nacional (CMN). (VIANNA,1987, 149-180)9 Essa ampla autoridade de Delfim fez com que ele conseguisse afastar ministros que não confluíam com suas ideias e propostas, como o ministro da Agricultura, defensor da orientação prioritária da produção nacional para o abastecimento do mercado interno, mais do que para exportação; e do ministro do Interior, que protestou contra a centralização de recursos na União, afirmando que isso seria danoso aos estados e municípios mais pobres. (GASPARI, 2003,257-275) O poder e a guinada da política econômica no período Delfim ficou evidente já desde a posse do novo governo, quando foi lançado o “Programa Estratégico de Desenvolvimento”, elaborado pelo ministro da Fazenda e o do Planejamento, Hélio Beltrão. O documento criticava o Paeg pelo excessivo foco no combate à inflação e pela elevação da carga tributária para as empresas, propondo o desenvolvimento como meta primordial. Os posteriores “Metas e Bases da Ação do Governo”, de setembro de 1970, e “I Plano Nacional de Desenvolvimento”, de dezembro de 1971, reforçavam essa tendência, sugerindo metas macroeconômicas mais ousadas, voltadas para o crescimento da produção e o desenvolvimento da tecnologia de ponta. A reorientação na política ficou clara já no primeiro ano do governo Costa e Silva com a liberação do crédito 8 Para a sucessão de Costa e Silva, ver MARTINS Filho (1995). 9 Sobre Delfim e a defesa de certos grupos e o apoio à concentração econômica, ver também TAVARES; ASSIS (1985).

e de verbas para investimentos e obras. (RIBEIRO, 2006,221-357; PRADO, 2003,209-241) Não à toa os empresários da construção pesada se referem ao ano de 1967 como a “retomada”. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO,1984)10 O efeito da nova política foi um ciclo inédito de expansão econômica, evidenciada em taxas de dois dígitos de crescimento anual do produto interno nos seis anos posteriores ao início do governo Costa e Silva. O chamado “milagre” foi um período de expansão produtiva cujo modelo trazia certa continuidade com o implantado desde 1955, sob liderança do setor de bens de consumo duráveis, controlado pelo capital multinacional, e dependente da liquidez internacional. A economia brasileira se aproveitava da última fase do ciclo de expansão da economia capitalista internacional, em vigor desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que se apresentava ao país com crédito abundante a taxas de juros módicas. A elevação da produção foi generalizada na economia, mas pilotada pela indústria, setor mais beneficiado pelas políticas estatais – incluindo aí a indústria da construção civil –, sendo que o crescimento da produção no Departamento III não foi acompanhado pelo Departamento I, levando a uma “dessubstituição de importações”,11 com a volta da importação de aço, máquinas, cimento e outros insumos. Os resultados macroeconômicos, que incluíam uma redução do desemprego e do emprego informal, deram força e legitimidade a Delfim e ao presidente da República, garantindo uma popularidade a partir da qual se iniciaria o processo de transição política.12 Apesar do sucesso dos números da produção e da acumulação de capitais, o crescimento do período 1967-1973 foi acompanhado 10 Os autores do estudo fizeram entrevistas com empreiteiros. 11 O termo é de Francisco de Oliveira (1985, 93-106). 12 Para o “milagre”, ver, dentre outros, PRADO; EARP (2003, 209241).

do aumento da desigualdade econômica, da dependência tecnológica e dos preços. A produção se elevou sobretudo em bens de consumo acessíveis a estratos intermediários e elevados da sociedade, não atendendo na mesma medida às classes subalternas, que em geral não possuíam rendimento suficiente para comprar automóveis e eletrodomésticos, sendo que o próprio “milagre” era fruto em boa medida de uma repartição disciplinada da renda, como destaca Paul Singer. (SINGER, 1978,9-12) Além disso, as inversões em rodovias e hidrelétricas não eram acompanhadas de investimentos em Saúde e Educação. Dados indicam que o número de desnutridos no país se elevou de 27 milhões em 1961-1963 (38% da população) para 71 milhões de pessoas (67% da população) em 1968-1975.13 No final do ciclo expansivo, o nível de produção industrial e o desabastecimento da economia, que praticamente anulou a capacidade ociosa, levaram à alta dos preços, que, parcialmente falseada pelo governo, foi um dos motivos para o fracasso eleitoral da Arena em 1974. A dependência de liquidez internacional se evidenciou com a crise na economia capitalista mundial, que afetou a continuidade do modelo, visto que as condições de crédito e juros no mercado externo foram depreciadas a partir de 1973 e, sobretudo, após 1979. (OLIVEIRA, 1977, 76-113) Mesmo com o caráter relativamente curto do ciclo de expansão da produção e da atividade econômica, que iria se desacelerar a partir de 1974, o período 1967-1973 se apresentou como um momento especial para a acumulação capitalista no Brasil, sendo o setor industrial o mais beneficiado. Dentro desse quadro, a construção civil detinha uma posição fundamental, revelando-se líder do processo de crescimento ao lado da indústria automobilística. (PRADO, 2003,209-241) Na composição política de então, os empreiteiros tinham forte presença no apare13 Informação de SILVA (2000, 351-384).

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lho de Estado, com boa representação na pasta dos Transportes e, em alguns casos, canal direto com o ministro da Fazenda. Essa posição central dos construtores no bloco de poder, ao lado de outros industriais, resultou em políticas altamente favoráveis às suas atividades. A liberação do crédito logo beneficiou os empreiteiros ao serem disponibilizados amplos recur­sos do Finame, via BNDE. Nesse caso, a importância da liquidez dos empréstimos internacionais ficava evidente, visto que o crédito era proveniente das verbas da Usaid, além das novas fontes de poupança interna do BNDE, oriundas da previdência unificada e das contribuições compulsórias. (Revista O Empreiteiro, 06/1968) Afora a liberação dos empréstimos e recursos federais para investimento, a gestão de Delfim na Fazenda proporcionou subsídios diretos específicos à construção pesada. No primeiro semestre de 1971, o ministério baixou norma concedendo benefício fiscal às empreiteiras, como noticiou a revista O Empreiteiro: A alíquota do imposto de renda incidente sobre os valores brutos recebidos por pessoas jurídicas empreiteiras de estradas, de obras e semelhantes foi reduzida para 1,5%. Segundo Delfim Netto, a medida objetiva proporcionar às empreiteiras maior capital de giro. (Revista O Empreiteiro, 05/1971)

A determinação, que não passou pelo Congresso, alterava decreto-lei de 1968 e deliberava: Art. 9º: Ficam sujeitos ao desconto do imposto de renda na fonte, a alíquota de 1,5 por cento (um e meio por cento), como antecipação do imposto devido na declaração, os valores brutos pagos aos empreiteiros de estradas, de obras e semelhantes, pessoas jurídicas, pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Territórios, e respectivas entidades paraestatais, sociedades de economia mista, empresas públicas e concessionários de serviços públi-

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cos. (Revista O Empreiteiro, 05/1971)

O benefício direcionado para as empreiteiras foi acompanhado de medidas como ampliação do prazo para recolhimento do imposto de renda em 1972 e outras medidas similares.14 Para além de isenções e favorecimentos fiscais pontuais, o maior benefício determinado por Delfim para as empreiteiras veio em 1969, com alterações nas normas para obras públicas e nas verbas do orçamento federal. Em virtude das mobilizações dos empresários e associações de engenharia no governo Castello, uma medida do governo Costa e Silva foi instituir, através do Decreto nº 61.795, de 29 de novembro de 1967, um “grupo de trabalho para tomar medidas de política tecnológica que promovessem o desenvolvimento da engenharia brasileira”. (Apud. PAULA, 2000, 189-247) Apesar da participação de expoentes do setor e das propostas levantadas, as decisões que deram resposta aos anseios dos empreiteiros só vieram depois. Na reunião de 13 de dezembro de 1968 do Conselho de Segurança Nacional, o ministro Delfim fez proposta de usar o Ato Institucional nº 5 para que o presidente da República legislasse em matéria econômica e tributária: “Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que esse país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez.”15

A proposta foi elogiada pelo presidente Costa e Silva, e o ministro aproveitou o Con14 Um exemplo está na revista O Empreiteiro (08/1972). 15 DELFIM Netto, Antonio. “Fala na Ata da Quadragésima Terceira Reunião do Conselho de Segurança Nacional” apud GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 336.

gresso fechado no início de 1969 para determinar medidas como o Decreto nº 64.345, de 10 de abril de 1969, que instituiu a reserva de mercado para todas as obras públicas realizadas no país. O decreto criava uma restrição institucional do mercado, no qual as obras públicas contratadas pela União, estados e municípios só poderiam ser realizadas por pessoas jurídicas, regularmente constituídas no país, [que] tenham aqui sua sede e foro, esteja sob controle acionário de brasileiros natos ou naturalizados, residentes no País, e tenham pelo menos metade de seu corpo técnico integrado por brasileiros natos ou naturalizados. (Decreto nº 64.345, 10/04/ 1969)

O decreto proibia empresas estrangeiras de participar de obras públicas no país, reservando-as às firmas domésticas. A medida era uma grande vitória para o setor de empresas nacionais deengenharia, que contou com uma intensa concorrência de firmas internacionais no período Castello. A revista O Empreiteiro assim se referiu ao decreto: Decreto defende: conforme ficou estabelecido em decreto presidencial, os órgãos de administração federal, inclusive entidades de administração indireta, só poderão contratar serviços de consultoria técnica e de engenharia de firmas estrangeiras quando não houver empresa nacional devidamente capacitada para sua execução. Nos casos em que se admitir contratação, procurar-se-á promover consórcio com empresas nacionais, de forma a garantir a transmissão satisfatória de tecnologia. (Revista O Empreiteiro, 06/1969)

Apesar da importância da medida, o periódico não lhe deu grande publicidade, visto que tinha ligações com empresas estrangeiras, que não parecem ter recebido muito bem a notícia. A medida teve efeito direto sobre as obras no país durante a década de 1970. Se, em

ramos como a construção rodoviária, a consequência foi menor, visto que esse mercado já era controlado por empresas domésticas, em áreas como a construção de barragens e hidrelétricas, engenharia industrial, consultoria em engenharia e os metrôs, o decreto teve grande impacto, por assegurar ao capital nacional setores de desenvolvimento nos quais ele rivalizava com firmas es­trangeiras. O resultado foi que esses setores continham consórcios de empresas nacionais e estrangeiras no início da ditadura e acabaram reservados a grupos nacionais no período final do regime. Medidas posteriores, expedidas entre 1970 e 1974, reforçavam o decreto-lei, com exigências como a de que o capital nacional correspondesse a mais de 50% da composição acionária da firma. O delfinato mostrava assim uma seletividade e restrição ao capital estrangeiro que não vigorou no período Castello.16 A medida se relacionou a outra, anterior, que também beneficiou os empreiteiros. Usando o AI-5, Delfim reorganizou a distribuição dos recursos dos impostos, reduzindo a fatia do Fundo de Par­ticipação dos Estados e Municípios (FPE e FPM) de 20% para 10% das receitas da União, alegando para isso a necessidade de diminuir os déficits orçamentários federais. A medida prejudicou os estados menos ricos, que dependiam mais das verbas federais, levando Mário Maestri a identificar a decisão como uma “expropriação-centralização federal das rendas dos estados e municípios”. (MAESTRI, 1985, 99-134) Além disso, foram cortados 10% nos gastos com pessoal e, de modo similar à reserva de mercado na construção civil, houve elevação nas tarifas de importação para alguns produtos, assegurando mercado para a indústria doméstica. Com outras medidas como a unificação da escrita do IPI e o combate ao contrabando, houve favorecimento da indústria nacional e da constru16 Sobre a aliança entre capital estatal, multinacional e privado nacional no Brasil dos anos 70, ver EVANS (1980).

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ção civil em particular. O rearranjo fiscal proveu mais recursos federais para investimentos, ou melhor, mais verbas para obras públicas. Diante disso, em 1969, o governo bateu recorde de gastos, correspondentes a 23,4% do PIB, e Delfim estimou que em 1970 devia dispor do dobro dos recursos que tinha sob seu controle em 1967. Ficava determinado ainda que todas as grandes obras estaduais e municipais deveriam ter o acompanhamento e a aprovação da União, o que permitia ao Executivo federal certo controle sobre os principais projetos locais e regionais. Nas palavras de Delfim: “Com o AI-5, eu aproveitei para fazer tudo o que precisava fazer”. (GASPARI, 2002,225-241; VIANNA, 1987, 89-147) A combinação de ambas as medidas principais – o aumento das verbas federais para investimen­tos e a reserva de mercado – potencializou em duas frentes a indústria nacional da construção pesada, provendo-lhe mais recursos para obras e, ao mesmo tempo, resguardando-lhe essas verbas. Apesar dos ganhos generalizados no setor com tais decisões, o alvo principal dos benefícios da Fazenda eram os grandes empreiteiros. Delfim, ligado a Sebastião Camargo (Camargo Corrêa - CC) e com relações e elogios públicos a outros empresários da construção pesada (Mendes Júnior, Constran e Cetenco), intercedia nas concorrências em favor dessas grandes companhias, sobretudo a CC. Outras medidas tomadas pelo governo no período beneficiavam diretamente os grandes grupos da construção. Assim, o Decreto-lei nº 73.140, de novembro de 1973, trazia o novo Código de Licitações, no qual ficava formalizada a su­bempreitada, normatizando as formas de subordinação e dependência direta das pequenas às grandes empreiteiras. A lei determinava ainda o capital social mínimo para que as empresas pudessem concorrer a determinadas obras (CAMARGOS, 1993, 137-158), principal empecilho imposto a pequenas e médias compa-

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nhias para participar de certas licitações, o que favoreceu as barrageiras, ou melhor, as grandes empreiteiras. A política de incentivo aos grandes grupos e à centralização de capitais no delfinato não se limi­tou à construção, sendo visível também no setor bancário. Bancos em dificuldades sofreram intervenção da União e foram repassados em condições vantajosas a grandes grupos privados, como Bradesco e Itaú. A concentração bancária ficou expressa em números, sendo que os 313 bancos comerciais existentes no país em 1967 foram reduzidos, em 1970, a apenas 195. (PRADO, 2003, 209-241) Enfim, a política conduzida por Delfim ajudou a semear os grandes grupos industriais e bancários que teriam amplos poderes nos governos seguintes e na transição política. Nas políticas setoriais, esses benefícios ficaram expressos em números grandiosos. Concentrando os maiores recursos e a prioridade das políticas estatais, os transportes tiveram investimentos inéditos. Além de contar com as verbas redirecionadas para a União, o Ministério dos Transportes estabeleceu novas fontes de recursos. Criada em 1968 pelo Decreto-lei nº 397, a Taxa Rodoviária Única (TRU) incidia sobre os proprietários de veículos e provia recursos para implantação e conservação de rodovias federais, sendo 60% da sua arrecadação encaminhada para estados e 40% para o DNER. (PRADO, 1997, 250) O contingente do imposto sobre combustíveis transferido para o DNER foi elevado, e as rodovias de grande circulação, como a Rio-São Paulo, passaram a contar com pedágios, como forma de financiar a expansão do sistema viário nacional. (Revista O Empreiteiro, 14/04/1971 ) De posse desses recursos, o ministro Mário David Andreazza redirecionou a política nacional de transportes, centralizando na União sua implementação e focando-a quase exclusivamente nas

rodovias. A previsão de arrecadação das agências do ministério assegurava os seguidos pedidos de financiamentos a entidades estrangeiras, como o Bird, o BID, o Eximbank, a Usaid e bancos privados norte-americanos e europeus. Conjugando fontes externas e internas de financiamento, os investimentos na construção de estradas chegaram a um pico equivalente a 3% do PNB, e o modelo rodoviário suplantou em larga medida outras modalidades de circulação, contabilizando mais de 80% do transporte de mercadorias e 90% do de passageiros nos anos 70. Entre 1970 e 1975, os gastos despendidos com estradas chegaram a superar o gasto com barragens, o que se inverteu em seguida. (DREIFUSS, 1981, 444445; JOBIM; PROCHNIK, 1984, 1-57) Os números da construção rodoviária no período Médici atingiram uma proporção inédita e superavam os índices alcançados no governo JK. A quantidade de rodovias pavimentadas praticamente dobrou entre 1964 e 1971, passando de 12.157 km para 23.551 km. Apenas para o ano de 1973, foram previstos 11 mil quilômetros de rodovias a serem pavimentadas, o que equivalia a todo o volume obtido na implementação do Plano de Metas. (Revista O Empreiteiro, 05/1971; 06/1975)17 A rede pavimentada federal na década de 1970 passou dos 23 mil para 47.500 km, e a rede total de estradas federais foi de 53,2 mil quilômetros para 88,5 mil quilômetros.(CAMARGOS, 1993, 65-136 ) A construção de rodovias estava distribuída em programas especiais e regionais, que visavam prover um amplo sistema de estradas no território nacional. No início da gestão Andreazza nos Transportes, foi criado o Programa das Rodovias Internacionais, com ligação rodoviária do território do país aos vizinhos através de estradas; em 1970, veio o Programa de Integração Nacional (PIN), com atuação na região da Amazônia legal; em 1971, o Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Prodoeste); 17 Para os números do Plano de Metas, LESSA (1983, 40).

no mesmo ano, o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste (Proterra), que, apesar do nome, tinha a maior parte de seus recursos orientada para a construção rodoviária; em 1972, foi lançado o Programa dos Corredores de Exportação, que criava autoestradas para escoamento da produção do interior do país e se relacionava à reforma e moderni­zação dos portos; nesse mesmo ano, veio o Programa do Entorno da Baía de Guanabara, relacionado à construção da ponte Rio-Niterói; e em 1973, foi criado o Programa Especial do Vale do São Francisco (Provale). (Revista O Empreiteiro, 06/1973) Esses programas de construção rodoviária tinham desenho em parte oriundo de projetos geopolíticos dos militares previsto na Doutrina de Segurança Nacional, que no caso servia aos interesses do capital privado. (MENDONÇA, 1985, 94-100) Para dar suporte ao programa rodoviário e atender à modernização técnica da agricultura, foi estabelecido o Plano Nacional de Tratores, com projeto de nacionalização da produção de máquinas e equipamentos usados no país. Quanto às ferrovias, algumas poucas foram implantadas, e tinha con­tinuidade a política de extinção dos ramais “deficitários”. Os portos também receberam investimentos, atendendo à política de construção naval e incentivo às exportações, que tiveram significativa expansão durante o “milagre”. (Revista O Empreiteiro, 11/1969) Na área de energia, o engenheiro Antônio Dias Leite foi nomeado para o Ministério de Minas e Energia e seu nome correspondia aos interesses de organizações como o Clube de Engenharia, des­contentes com as políticas do período Castello. Leite acusou o Paeg de monetarista, fazendo críticas também à política de energia do governo anterior. (VIZENTINI, 2001, 77-129) Retomou os investimentos estatais, com aplicaHistória e Economia Revista Interdisciplinar

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ções do FFE (Fundo Federal de Eletrificação) em obras de grandes usinas de Furnas, Chesf, Cemig, Cesp e outras. A capacidade instalada nacional cresceu anualmente a taxas médias de 11,9% entre 1967 e 1973 (CACHAPUZ, 2006, 344) e essa nova geração de energia veio sobretudo de usinas hidrelétricas, que viraram prioridade na política governamental. Os beneficiários imediatos desses empreendimentos foram os empreiteiros, já que boa parte do custo da construção das usinas nos rios era proveniente das obras civis. Além deles, ganhavam os produtores de equipamentos elé­tricos, dominantemente estrangeiros, como Voith, Alstom, General Eletric e Brown Boveri, e também os consumidores eletrointensivos, grandes industriais dos ramos de ferro, aço, celulose e alumínio, favorecidos pelo custo rebaixado da energia produzida nessas centrais. Com um parque gerador constituído predominantemente de hidrelétricas, o sistema elétrico brasileiro continha com um custo por kilowatt bastante reduzido, o que, reforçado pelas políticas de subsídio no preço da energia elétrica, beneficiava os consumidores industriais. (ALMEIDA, 1980, 151-332)18 Já no Ministério do Interior, com as gestões de Albuquerque Lima e de Costa Cavalcanti, houve uma ampliação das políticas setoriais e a incorporação dos interesses das empreiteiras. O BNH, inicialmente voltado para o financiamento de moradias populares, foi reorientado no período para estratos mais elevados da sociedade, e a construção de habitações para a “classe média” passou a absorver a maior parte dos recursos de empréstimos do banco, o que agradava as construtoras imobiliárias, que viam maior possibilidade de ganhos nesse nicho. Em 1971, o ministério lançou o Plano Nacional de Sanea18Almeida (1980, 1-145) analisando especificamente a Cesp, mostrou como a energia gerada pela companhia era vendida em valores subsidiados, principalmente para consumidores industriais, o que depois gerou problemas fiscais para o estado. Mais sobre energia subsidiada em ROSA; SIGAUD; MIELNIK( 1988, 9-14).

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mento (Pla­nasa), contando com recursos da pasta e do BNH, que teve suas funções alargadas para o financiamento de projetos de infraestrutura urbanos. Com incentivos para construção de sistemas de saneamento, os recursos do BNH eram desviados de área habitacional para atender um locus de atuação típico dos empreiteiros de obras públicas. O Sistema Financeiro do Saneamento (SFS) centralizava os recursos para o setor, que cresceram a partir de então, superando as dotações para transportes nos anos 80. (Revista O Empreiteiro, 10/1973; JORGE, 1987, 112-208) O período do delfinato representa o auge do poder dos empreiteiros na ditadura. Contentes com o volume de obras públicas no período e sem maiores conflitos entre si, já que os empreendimentos previam serviços a todos, os empreiteiros viram nesse momento a possibilidade de crescimento de suas em­presas e de obtenção de altas taxas de lucro. O que era o predomínio do capital industrial guardava um lugar especial aos empresários da construção, em função do papel do aparelho de Estado na implementação da infraestrutura industrial previsto naquele modelo. As novas condições internacionais pós-1973 e a modificação na correlação de forças políticas na sucessão de 1974 levaram a uma reconfiguração nas relações de poder entre esses empresários, que assumiram novo posicionamento no bloco de poder, e a uma reorientação das políticas públicas para as áreas sob atuação dos empreiteiros.

Último ciclo de industrialização na ditadura e fratura do pacto político (1974-1977/79): A partir de 1973, as condições da economia capitalista internacional se deterioraram rapidamen­te. A alta dos preços do petróleo e de outras matérias-primas sinalizava uma crise de superacumulação de capitais em escala mundial,

após 25 anos de crescimento das economias capitalistas. A liquidez do crédito logo se retraiu e pioraram as condições de financiamento, o que sofreu novo e maior revés em 1979, quando um novo choque no preço do petróleo se combinou com a alta das taxas básicas de juros oficiais nos Estados Unidos. O novo cenário internacional levou o governo a buscar fontes de financiamento alternativas, na Europa e no Japão, dentro da estratégia de manutenção de altos índices de crescimento. (SINGER, 1978, 163-167; MANTEGA; MORAES, 1991, 51-82) A repercussão da crise de 1973 foi imediata na economia brasileira, por sua profunda de­pendência externa. O modelo de desenvolvimento liderado pelo Departamento III com financiamento estrangeiro entrou em crise, e a balança comercial, já deficitária no período do “milagre”, passou a ter elevados saldos negativos, em função dos gastos com importação de combustíveis e matérias-primas. As novas circunstâncias levaram à modificação da estratégia de desenvolvimento, com uma ênfase na expansão do setor produtor de bens de capital (Departamento I) e, diante da limitada liquidez interna­cional, com amplo aporte financeiro estatal para a produção doméstica de itens até então importados, como produtos siderúrgicos, metais não ferrosos (sobretudo alumínio), papel e celulose, químicos, petroquímicos e fertilizantes. O plano visava preencher as lacunas da pirâmide industrial brasileira e substituir os combustíveis fósseis por outras fontes de energia – como álcool, energia hidrelétrica e nuclear –, além de investir na busca e exploração de petróleo em alto-mar. (OLIVEIRA, 1977, 76-113; CASTRO, 1985, 13-95) Antes de abordar a política do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), é necessário analisar a nova composição do bloco de poder. No período 1974-1977, houve uma reconfi-

guração do grupo dirigente em relação ao período logo anterior, com ascensão de novas frações de classe e relativo afastamento de outras. Para a implementação desse projeto, os empresários do setor de bens de produ­ção foram politicamente reposicionados e passaram a ter incentivos estatais, gozando de farto crédito no BNDE e apoio ao crescimento da produção. Houve também uma ascensão de novos empresários de áreas mais periféricas da indústria brasileira, em detrimento da burguesia industrial paulista. Assim, o ministério de Geisel contou com poucos representantes da indústria de São Paulo, enquanto tiveram mais poder grupos alternativos da classe dominante. A retirada de funções do Ministério da Fazenda indicava um recuo em relação à centralização havida na pasta no período Delfim, e a nova posição obtida pelo Ministério do Planejamento era representativa do poder desses grupos empresariais não paulistas. (GASPARI, 2003, 27-305)19 No que concerne aos empreiteiros, houve certo contentamento com o plano,20 cuja implemen­tação, no entanto, levou a um rearranjo de forças regionais no mercado de obras públicas. As firmas paulistas tiveram um ambiente menos positivo do que o experimentado no período Médici e, ao final do governo Geisel, a Camargo Corrêa deixou pela primeira vez de constar como a empreiteira com maior faturamento do país. (Revista O Empreiteiro, 08/1974) Por outro lado, a baiana Odebrecht - empresa próxima de Geisel desde que esse presidiu a Petrobras - ganhou espaço, assim como as mineiras Andrade Gutierrez e Mendes Júnior, sendo que essa última integraria o esforço governamental de substituição de importações ao implantar a Siderúrgica Mendes Júnior em Juiz de Fora. Esse quadro começou a se desenhar no início do governo e ganhou força em 1977, quando o representante do empresaria19 Segundo o próprio presidente, “Veloso , entretanto, tinha uma posição preponderante [...]”. In: D’ARAÚJO; CASTRO, (1997, 298). 20 Representativo disso é a visão positiva feita pelo empreiteiro Murillo Mendes em MENDES;ATTUCH, (2004. 74-95).

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do industrial paulista Severo Gomes deu lugar ao banqueiro baiano e ex-diretor da Odebrecht, Ângelo Calmon de Sá, no Ministério de Indústria e Comércio (MIC). Havia certo descontentamento de setores do empresariado, em particular o paulista, com algumas políticas do período, sendo sintoma dessa insatisfação a frase do presidente da Light, Antonio Gallotti: “O governo passado torturava pessoas físicas, o atual tortura pessoas jurídicas”. (GASPARI, 2004, 45-66) A estratégia de 74, o II PND, propunha manter altas taxas de crescimento econômico através de investimentos estatais na economia, com epicentro na expansão da produção de bens de capital, cuja capacidade instalada deveria substituir a importação de insumos industriais. (MENDONÇA, 1985, 69-100) Amplos projetos foram formulados para cada área específica do plano, que previa obras como plantas siderúrgicas, plataformas de petróleo, oleodutos, pólos petroquímicos, obras de telecomunicações, mais usinas hidrelétricas e termonucleares e projetos de mineração. O propósito de equilibrar o balanço de pagamentos passava também por medidas de incentivo à exportação de produtos manufaturados e de serviços, incluindo os de engenharia. Essas novas obras – usinas siderúrgicas, nucleares, hidrelétricas e projetos de petróleo – não eram área de atuação de pequenas e médias empresas, e a realização de projetos fora do país tampouco era uma franca possibilidade para pequenas companhias. Por essa razão, a política geral do governo Geisel se voltava para as atividades das grandes empreiteiras de obras públicas, que em função de seu potencial de capital, técnico e político, ganharam a possibilidade de tocar os projetos do II PND, em detrimento das pequenas e médias empresas. Nesse sentido, o diretor-presidente da mediana empresa carioca Esusa, Hermano Cezar Jordão Freire, afirmou que o governo Geisel privilegiava sistematica-

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mente as grandes empresas. (FERRAZ Filho, 1981, 31-109) As políticas setoriais tiveram reorientação de suas prioridades, em conformidade com as metas do II PND. No setor de transportes, houve mudança da prioridade à construção rodoviária para a imple­mentação de ferrovias. Recursos do imposto sobre combustíveis foram retirados do DNER e repassados para o Departamento Nacional de Estradas de Ferro (DNEF), para a Rede Ferroviária Federal (RFF) e sua subsidiária específica responsável por obras, a Engefer. Atendendo ao projeto siderúrgico, foi formulado um ambicioso projeto, a Ferrovia do Aço, e proposta a ligação entre Rio e São Paulo por trem de alta velocidade. A política para rodovias foi esvaziada, e projetos do governo anterior, como a Perimetral Norte, foram interrompidos e outros retidos em sua expansão, como a Transamazônica, sendo que o foco no setor passou a ser a conservação de estradas existentes. (Revista O Empreiteiro, 10/1974) Na área de energia, amplas possibilidades se abriram para as construtoras nacionais, com o incentivo à construção de mais usinas hidrelétricas, em uma área restrita às grandes empreiteiras. Os gastos com barragens nesse momento superaram o que era investido em rodovias, sendo que Itaipu passou a ser prioridade e as obras das usinas do Acordo Brasil-Alemanha deram força à Odebrecht. A Petrobras (BR) intensificou suas ações e, após a descoberta das jazidas na bacia de Campos, a estatal foi elevada à condição de prioridade intocável nos recursos e cortes orçamentários. As encomendas às empreiteiras nacionais pela BR se avolumaram, fortalecendo o setor de engenharia industrial e as poucas construtoras que se gabaritavam a realizar plataformas de petróleo, oleodutos, refinarias e pólos petroquímicos. Os projetos de alumínio e ferro da Vale do Rio Doce também trouxeram

demanda às empresas de engenharia, com obras como a preparação de regiões mineradoras, ferrovias de escoamento, plantas industriais de processamento do minério, dentre outros empreendimentos. (Revista O Empreiteiro, 10/1974; JOBIM; PROCHNIK, 1984; 1-57) No setor de aço, as empreiteiras tinham obras a realizar com a expansão prevista no plano siderúrgico montado pelo MIC (Ministério da Indústria e Comércio), com a CSN-2 e a construção das novas usinas de Itaqui, Tubarão, Açominas e Siderúrgica Mendes Júnior. (Revista O Empreiteiro, 11/1977) Por fim, houve reorientação nas políticas do Ministério do Interior, com o Planasa-II, que previa metas mais ambiciosas de abastecimento e tratamento de água e esgoto nas grandes cidades, incluindo projetos de engenharia de grande porte e aumento dos gastos. Já o BNH voltava a assinalar a construção de casas populares como foco, elevando a quantidade de habitações financiadas de 97 mil em 1974 para 339 mil em 1978, bem como implementando infraestrutura urbana, o que incluía saneamento e transporte público de massa. (JORGE, 1987, 72-111) Como se vê, a política do II PND respondia adequadamente aos anseios e à nova capacidade de uma estreita porção de empreiteiros, que concentravam os principais serviços do plano. Desde seu princípio, o projeto governamental causou reação negativa entre pequenas e médias empresas e certa desconfiança dos principais construtores paulistas, descontentes com a emergência de empresários da periferia para a fina nata da construção pesada nacional. Porém, com os seguidos cortes e o abandono parcial do projeto, o descontentamento entre os empreiteiros ganhou força. Os anos de 1976, 1977 e 1978 foram marcados por cortes cumulativos nas verbas endereçadas às estatais e às obras públicas, o

que vinha acompanhado de alta nos preços, gerando reclamações dos empreiteiros em relação às tabelas de valores a serem pagos pelos serviços prestados. Diante das queixas, foi criado em 1976 pelo IBGE o Índice de Construção Civil (ICC), novo instrumento para cálculo dos preços que media as variações nos custos de materiais, equipamentos e mão de obra específicas para a indústria da construção e que servia para reajustar os valores pagos aos empreiteiros. (Revista O Empreiteiro, 11/1976) Um momento de fratura no governo Geisel foi a queda de Severo Gomes, em 1977. Justificada pelo presidente em função de suas manifestações em uma festa reservada, a demissão do minis­tro – independentemente dos motivos que a desencadearam – levou à organização de uma oposição empresarial ao governo, reunida em torno de Severo e outras figuras da burguesia paulista. Esses empresários já demonstravam antes sua insatisfação em função de certas medidas governamentais, como a ampliação das atividades das estatais em detrimento das companhias privadas. Porém, com a queda do ministro de Indústria e Comércio e com a decisão de Severo de fazer oposição ao governo e ao regime, conformou-se um grupo não só crítico, mas também oposto à ditadura. Começava ali o rompimento do pacto que dava o suporte empresarial ao regime civil-militar e que foi desfeito amplamente na passagem da década de 1970 para a década de 1980, o que, condicionada pela crise econômica vigente, pôs o país em uma ampla crise de hegemonia. Em meio a essa crise, em um quadro de desentendimento entre os empresários das diferentes regiões e setores, foi formulado um novo projeto hegemônico, que só viria a ser claramente implementado nos anos 90. Diante do avanço das estatais na economia, o presidente do BNDE, Marcos Vianna, montou sigilosamente um projeto de privatização das empresas pú-

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blicas, com sua transferência para os principais grupos nacionais do ramo bancário (Bradesco, Itaú, Unibanco e Bozzano), minerador (Antunes e Ermírio Moraes), industrial (Ultra, Klabin, Villares e Matarazzo) e as principais empreiteiras do país (Camargo Corrêa, Odebrecht e Mendes Júnior). (GASPARI, 2004,333-351) Entre os empreiteiros, começaram a ficar visíveis no período Geisel não só as críticas das entidades de pequenos e médios empresários, mas também de grandes construtores, como Sebastião Camargo, que reclamou do aperto financeiro a Reis Velloso em 1975. (GASPARI, 2004, 53) Vieram conflitos mesmo no seio das barrageiras, como na ação na justiça entre Odebrecht e Mendes Júnior pelas obras da barragem de Pedra do Cavalo, na Bahia. Apesar do clima belicoso, a manutenção das maiores obras do regime – como Itaipu, as da Petrobras e as usinas de Angra – garantiu as atividades e o poder para as maiores empreiteiras do país. Se os conflitos intercapitalistas cresceram durante o período Geisel e as políticas públicas sofreram revés, o quadro de crise foi ainda mais agudo no governo Figueiredo.

Quebra no pacto político e crise aberta de hegemonia (19791985/1988): O ano de 1979, mais do que o de 1973, marcou um momento agudo da crise econômica brasileira e o caráter insustentável daquele modelo de desenvolvimento. Com a nova elevação dos preços do petróleo no mercado internacional e o aumento das taxas básicas de juros norte-americanas, as condições das contas públicas brasileiras se deterioraram profundamente. O que Maria da Conceição Tavares chamou de retomada ou reafirmação da hegemonia internacional norte-americana foi, para o Brasil e outras economias latino-americanas, igualmente 32

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endividadas e dependentes, um enquadra­mento do seu modelo de desenvolvimento, com forte pressão para implantação de políticas recessivas. Enquanto as condições de rolamento da dívida pública se tornavam mais desfavoráveis, a recessão internacional resultante da medida do titular do Federal Reserve rebaixou os preços das mercadorias primárias brasileiras no mercado internacional, dificultando a formação de divisas para pagamento dos débitos externos. (TAVARES, 1997, 27-53;55-86) Essas novas condições do sistema internacional reforçaram a crise econômica e política no Brasil, tornando a transição política um processo de crise aberta de hegemonia e falta de consenso entre as frações burguesas, com decomposição do pacto político e inexistência de um projeto capaz de se fazer prevalecer claramente sobre os outros. Apesar da ascensão dos capitais bancários e financeiros desde 1974-1977 e uma certa manutenção do poder dos grandes grupos industriais fortalecidos na ditadura, não ocorreu nesse período a composição de um novo pacto político, sendo que a crise teve como ex­ pressão uma instabilidade nos principais cargos no aparelho de Estado e redundou em idas e vindas na política econômica, apesar da manutenção das linhas gerais do processo de transição política para o regime democrático representativo. Uma das maiores expressões dessa instabilidade foi a sucessão de planos econômicos, sendo que o exato período de crise de hegemonia corresponde à chamada “era dos planos”. Assim, entre 1979 e 1993, houve um total de oito planos de estabilização, quatro moedas, 11 diferentes índices de inflação, cinco congelamentos de preços, 14 políticas salariais, 18 mudanças de regras cambiais, 54 modificações nas regras de controle de preços, 21 propostas de negociação da dívida externa e 19 decretos de austeridade fiscal (ANDRADE, 1999, 5-29). Somente com o Pla-

no Real e o consenso criado entre as diferentes frações burguesas em torno da pauta neoliberal, um projeto passou a prevalecer e pode-se falar de dominação hegemônica no Brasil, a partir de 1994-1995. (OLIVEIRA, 1998, 9-16)21 Apesar de os mais visíveis elementos de crise estarem no governo Sarney, o período Figueiredo também foi profícuo em mudanças ministeriais, planos econômicos, além de avanços e recuos nas políticas públicas. Em um primeiro momento, o banqueiro Mário Henrique Simonsen propôs o III PND, baseado na austeridade fiscal e na “verdade orçamentária”, com foco no combate à inflação. Sua queda correspondeu à retomada das políticas de desenvolvimento capitaneadas por Delfim.22 Com o acordo com o FMI, no fim de 1982, foram estipuladas políticas recessivas, seguidas por atenuantes, a partir de 1984. Apesar dessas idas e vindas nas políticas estatais, é notável no período uma certa tendência de ascensão dos grupos ligados à atividade bancária e creditícia, com a política que a eles correspondia. Medidas como a liberação dos juros e a elevação das taxas pagas aos banqueiros deram o tom da sua emergência social. Acerca do quadro de então, o ministro Marcus Vinícius Pratini de Morais afirmou em 1984: “Estamos transferindo renda da indústria para os bancos”. (Informe Sinicon, 29/05/1984) As políticas do período tiveram em geral efeito negativo sobre as atividades das empreiteiras, com redução dos recursos disponíveis para obras e concentração dos esforços estatais no cumprimento dos compromissos internacionais. As estatais tiveram seus orçamentos limitados e sua expansão es­tancada, reduzindo as demandas para as empresas que lhes prestavam serviços. A elevação dos depósitos bancários compulsórios, 21Para uma análise do posicionamento do empresariado na abertura política, ver: CRUZ (1995,205-279). 22 Geisel afirma que Delfim na Seplan “tomou conta”.( D’ARAÚJO; CASTRO,1997, 434).

em decorrência do acordo com o FMI, implicou críticas dos construtores da Ademi (Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário), que viam na medida uma diminuição do crédito para obras e encarecimento dos empréstimos. (Revista O Empreiteiro, 10/1982) Além disso, Wilson Quintella relata “chás de cadeira” de até 10 horas na antessala de ministros nesse período, o que é representativo do recuo do poder de tais empresários. (QUINTELLA, 2008, 15-24) Desde o início do governo, foi anunciado que o foco das políticas estaria na agricultura, visando à exportação de alimentos e matérias-primas, de modo a recuperar as contas externas do país. Os corredores de exportação tiveram seus orçamentos mantidos, ao contrário de outros empreendimentos. Algumas obras eram apresentadas aos empreiteiros como necessárias para implantação dessas medidas, como silos, rodovias e ferrovias de escoamento, portos e sistemas de irrigação, mas o conjunto de trabalhos demandados não atendia ao capital fixo acumulado pelos construtores nos anos 70. O que muitos empreiteiros fizeram foi investir no ramo agropecuário, de modo a absorver os benefícios governamentais concedidos para o setor. (Revista O empreiteiro, 01 e 07/ 1979) Os grandes projetos de engenharia da ditadura passaram a ser criticados até mesmo por ministros e agentes do aparelho de Estado. Editorial da revista O Empreiteiro afirmava: “O povo está na rua exigindo os seus direitos. Se tivermos dinheiro, devemos aplicar em transporte de massa, saneamento básico e habitação popular. Não em elefantes brancos”. (Revista O Empreiteiro, 04/1980) Nessa mesma linha, o último ministro dos Transportes do governo Figueiredo criticava o que chamava de obras faraônicas de períodos anteriores. (Informe Sinicon, 20/08/1984)

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No novo arranjo dos ministérios, a pasta do Interior ganhava força e a dos Transportes ficava esvaziada pelo direcionamento de seus recursos para outras áreas. Segundo o ministro Eliseu Resende, a prioridade continuava sendo as ferrovias, apesar de ele ser um notório defensor das rodovias. A ferrovia do Aço teve suas obras ora in­terrompidas, ora retomadas, sem continuidade dos serviços e com conclusão parcial apenas no final do governo Sarney.23 Um marco evidente da perda de poder dos empreiteiros rodoviários diante da ascensão de outras frações da classe dominante e da emergência de novas prioridades nas políticas estatais foi o desvio de recursos da área de transportes, conforme vemos na Tabela 1: Tabela 1 – Recursos do Imposto sobre Combustíveis (IULCLG) destinados ao DNER:

O imposto sobre combustíveis foi criado em 1945, com a Lei Joppert, e sua arrecadação era depositada no Fundo Rodoviário Nacional (FRN) e usada pelo DNER para a construção e manutenção de rodovias. Parte dos recursos do imposto historicamente foi desviada para os projetos estatais da Petrobras, do Plano Aeroviário Nacional (PAN), da Rede Ferroviária Federal (RFF), do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Conselho Nacional de Energia Nuclear (Cnen). No período do “milagre”, o DNER retomou fôlego nos recursos auferidos com o imposto, impulsionando a construção rodoviária. Já no governo Geisel, os recursos direcionados ao DNER caíram paulatinamente, indo dos 37,92% indexados para a autarquia no início de 1974 até 18,96%, no fim desse governo. No governo Figueiredo, o DNER perdeu todos os recursos vinculados na arrecadação tributária a que tinha direito, sendo esses desviados também de outros órgãos e direcionados para o Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND). O Fundo geria receitas a serem alocadas em qualquer área governamental, conforme decisão tomada pelo Executivo. No caso, boa parte desses recursos foi direcionada para pagamento da dívida pública, em detrimento dos investimentos. (Informe Sinicon, 21/05/1984) Assim, as receitas não vinculadas do imposto se elevaram no compasso das perdas do DNER, conforme se vê na tabela 2:

Norma estatal:

Porcentagem reservada ao DNER:

Decreto-lei 8463, de 27/12/1945

40%

Lei 302, de 13/07/1948

40%

Lei 2004, de 03/10/1953

30%

Lei 2975, de 27/11/1956

30%

Lei 4452, de 05/11/1964

34,176%

Decreto-lei 61, de 21/11/1966

29,2608%

Decreto-lei 208, de 27/02/1967

43,8912%

Decreto-lei 343, de 25/04/1967

37,92%

Decreto-lei 555, de 25/04/1969

37,92%

Decreto-lei 1091, de 12/03/1970

37,92%

Decreto-lei 1279, de 05/07/1973

37,92%

Lei 6093, de 29/08/1974

34,128%

Norma estatal:

Porcentagem não-vinculada:

Decreto-lei 1420, de 09/10/1975

22,752%

Decreto-lei 1691, de 02/08/1979

0%

Decreto-lei 1511, de 28/12/1976

18,96%

Decreto-lei 1754, de 31/12/1979

26%

Decreto-lei 1691, de 02/08/1979

15,168%

Decreto-lei 1859, de 17/02/1981

55%

Decreto-lei 1754, de 31/12/1979

11,376%

Decreto-lei 1859, de 17/02/1981

0%

Fonte: Informe Sinicon. Edição de 21 de maio de 1984, no 13, ano I.

23 Ver números da Revista O Empreiteiro. Edições 108, 110, 115, 118, 129, 136, 137, 139, 140, 141, 145, 156, 179, 190 e 192.

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Tabela 2 – Recursos do Imposto sobre Combustíveis (IULCLG) não-vinculados:

Fonte: Informe Sinicon. Edição de 21 de maio de 1984, no 13, ano I.

Trajetória semelhante ao do IULCLG se deu com a TRU:

Tabela 3 – Recursos da Taxa Rodoviária Única (TRU) destinados ao DNER: Norma estatal:

Porcentagem reservada ao DNER:

Decreto-lei 8463, de 27/12/1945

40%

Lei 6261, de 14/11/1975

26%

Decreto-lei 1754, de 31/12/1979

8,5%

Decreto-lei 1859, de 17/02/1981

0%

Fonte: Informe Sinicon. Edição de 21 de maio de 1984, no 13, ano I.

Os recursos eram direcionados para as receitas não vinculadas, que atendiam ao pagamento dos débitos governamentais e também aos projetos prioritários do governo, como a construção da usina de Itaipu e as obras da Petrobras. Enfim, recursos eram drenados do DNER – que empregava pequenas, médias e grandes empreiteiras – para atender os débitos públicos e grandes projetos de engenharia, ou melhor, atendendo aos credores estrangeiros e nacionais, além dos grandes empreiteiros, que to­cavam as poucas obras que mantinham razoavelmente seu cronograma. A derrubada da centralização dos recursos no FND foi uma das principais demandas do Sinicon (Sindicato Nacional da Construção Pesada) nos períodos Figueiredo e Sarney. (Informe Sinicon, 14/05/1984) Na área de energia, o MME congelou projetos e manteve outros. Enquanto não se iniciavam novas usinas, os recursos eram encaminhados praticamente sem cortes para a construção das usinas de Itaipu, Tucuruí e Angra, atendendo às grandes empreiteiras envolvidas nesses projetos. Na transição para o período Sarney, regiões do país tiveram racionamento de energia e “apagões”, não em virtude apenas da falta de fontes geradoras de eletricidade, mas em função de os investimentos na ditadura terem se dado primordialmente na geração de energia, em detrimento da transmissão e distribuição. (Revista O Empreiteiro, 10/1985; MENDES; ATTUCH, 2004, 298) Tratava-se de outra distorção criada pelo poder das empreiteiras, e de outros interes-

ses, junto às estatais de energia elétrica, já que as grandes construtoras viam maiores possibilidades de serviços e lucros na montagem de grandes centrais geradoras de energia do que nas linhas de transmissão.

Na área de energia, a Petrobras tinha um regime especial dentro da Secretaria Especial de Con­trole das Estatais (Sest), novo órgão criado pelo governo Figueiredo que previa a interrupção da expansão das companhias estatais e o controle de seus gastos. Os amplos investimentos da empresa pública de petróleo nesse momento ativavam firmas de engenharia de alta capacidade técnica que lhe prestavam serviços e que consolidaram um reduzido grupo de construtoras capacitadas para serviços no setor. (Revista O Empreiteiro, 10/1983) Consoante o processo de abertura e confronto eleitoral com as forças de oposição, o governo federal reforçou os gastos em obras de saneamento e habitação reunidos no Ministério do Interior. Para essa função, Figueiredo nomeou Andreazza, que conduziu um extenso programa de obras, principal­mente no Nordeste e em algumas favelas de grandes cidades, como foi o caso do Promorar (Programa para Erradicação da Sub-Habitação) na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, e na de Alagados, em Salvador. Na construção habitacional, a proposta de construção de 6 milhões de unidades habitacionais, um milhão por ano, no governo não foi alcançada, mas levou a uma extensa criação de moradias po­pulares. Posteriormente, o presidente Luís Inácio da Silva afirmou: “A história a gente não pode negar. Foi no governo (João) Figueiredo o ano em que se construíram mais casas no Brasil”. (Jornal O Globo, 30/12/2009) Apesar do alto número de casas construídas, a priorização da quantidade em detrimento da qualidade resulHistória e Economia Revista Interdisciplinar

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tou em unidades habitacionais precárias. O projeto de construção industrializada, voltado para o barateamento da obra, levou muitos empreiteiros para o empreendimento. Já no final do governo Figueiredo, o novo presidente do BNH foi acusado de defender mais os agentes financeiros do que os construtores. (Revista O Empreiteiro, 03/1984)

Conclusão - o poder dos empreiteiros sobre as políticas públicas, ontem e hoje: O que vimos durante a ditadura foi um regime que, sem perder o seu caráter empresarial­ -militar, teve rearranjos no bloco de poder de período a período e de governo a governo, apesar da manutenção de certos elementos básicos inerentes ao pacto político, como a repressão aos movimentos dos trabalhadores e suporte ao processo de acumulação capitalista. Condicionadas pelas modificações na economia capitalista internacional e na capacidade interna das contas públicas, essas nuances no arranjo de forças levaram a modificações nas políticas públicas durante o regime. Os empreiteiros não estiveram à margem desse processo e suas frações e grupos participaram de diferentes formas e em distintas medidas nos grupos dirigentes em cada momento. De modo geral, no entanto, os empreitei­ros de obras públicas conseguiram desenvolver amplamente suas formas de organização ao longo do regime, o que, associado à limitação imposta às formas de participação popular, potencializou a força desses empresários junto ao aparelho estatal e às políticas estatais. Com esse poder junto à sociedade política, os empreiteiros obtiveram políticas altamente favoráveis ao longo do regime, fazendo com que tais empresários chegassem ao final da ditadura ainda maiores e mais poderosos do que antes de 1964, legando a eles um papel fundamental no arranjo de forças durante a transição política e no novo regime inaugurado

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em 1988. Representativa disso é a frase do ministro da Saúde Adib Jatene, proferida em 1992, a respeito de questões políticas então presentes: “Quem faz o Orçamento da República são as empreiteiras.” (JATENE, 2010)

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A Confederação Nacional da Indústria e o plano de estabilização monetária de 1958

Fausto Saretta Professor da Universidade Estadual Paulista-UNESP [email protected]

Resumo O texto analisa as reações do empresariado industrial brasileiro às medidas do Plano de Estabilização Monetária (1958) que objetivava controlar o desequilíbrio externo e a inflação. Estas reações se manifestaram no importante mensário Desenvolvimento e Conjuntura, editado Confederação Nacional da Indústria (CNI). O texto argumenta que os empresários brasileiros preferiam a inflação com crescimento à estabilização com controle creditício e aperto fiscal. Palavras-chave: Confederação Nacional da Indústria; Plano de Estabilização Monetária; Estabilidade Econômica; Crescimento Industrial

Abstract The paper analysis the reactions of the Brazilian industrial entrepreneurs against the measures of the Plano de Estabilização Monetária (Monetary Stabilization Plan, 1958) that aimed to control external disequilibrium and inflation. These reactions appeared in Desenvolvimento e Conjuntura, an important monthly review edited by the Confederação Nacional da Indústria (National Industrial Confederation) The paper argues that the Brazilian entrepreneurs preferred inflation with growth to stabilization with credit and budget constraints. Keywords: Confederação Nacional da Indústria; Plano de Estabilização Monetária; Economic Stability; Industrial Growth

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A Confederação Nacional da Indústria e o plano de estabilização monetária de 1958

Introdução

D

e 1920 a 1970 a economia brasileira apresentou um marcante processo de crescimento econômico baseado na substituição de importações e no papel propulsor do Estado. Fruto das dificuldades oriundas do setor externo, a substituição de importações legou ao País uma indústria complexa e diversificada. Para tanto foi decisiva a atuação dos diferentes governos ao longo destes cinquenta anos, que criaram mecanismos de política econômica e intervieram em formas e intensidades variadas sobre o sistema produtivo. Dispondo de um mercado interno cativo fruto das políticas comerciais e, não menos importante, da conhecida divisão de papéis entre empresas estatais, empresas estrangeiras e empresas nacionais, em que as primeiras se responsabilizariam pela infraestrutura, as segundas pelos setores de ponta e as últimas pelos setores tradicionais, a economia brasileira apresentou, entre 1947 e 1979, uma taxa anual média de crescimento do PIB de 7,4%, com destaque para a indústria que passou a ser o principal gerador da renda nacional. Este texto centra sua análise no período da administração de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), de notável crescimento econômico e industrial e marcado pela crise de substituição de importações que avançou admiravelmente no quinquênio, e que legou à economia nacional um quadro de graves problemas macroeconômicos consubstanciado no aumento da inflação e do desequilíbrio do setor externo. A par de um crescimento de 3% em 1956, nos anos subsequentes até 1960 a renda interna bruta cresceu 7,7%, 10,8%, 9,8% e 9,4%. O Plano de Metas (1957-1960) impulsionou a indústria, que cresceu 63% no período, mas no

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início de 1961, quando do término da administração JK, a inflação que em 1956 fora de 24,5% havia mudado de patamar. Ainda que em 1957 os preços tivessem subido menos (7%), nos anos subsequentes o índice geral de preços foi bastante elevado: 39,5% em 1959 e 30,5% em 1960. Portanto, os “cinquenta anos em cinco” propugnados por JK e consubstanciados no cumprimento das “Metas” mais importantes do seu ambicioso plano de crescimento econômico, deixaram uma herança problemática para a economia brasileira no alvorecer da década de 1960. O crescimento com inflação do final dos anos cinquenta permite considerações relevantes sobre a concepção e a execução da política econômica, notadamente quando se busca a estabilização de preços. O relativo insucesso dos planos de estabilização que seguem a II Guerra Mundial, até pelo menos meados de 1960, a virtual incapacidade de coordenar crescimento acelerado e taxas de inflação baixas, apresenta quando da administração de JK algumas singularidades que tornam atraente o estudo deste período. No que segue pretende-se fazer uma análise das críticas do setor industrial ao Plano de Estabilização Monetária, formulado por Lucas Lopes e Roberto Campos em 1958 que, como se observou, foi lançado em um quadro de crescente deterioração dos indicadores macroeconômicos. Na próxima seção descreve-se o ambiente macroeconômico que antecede o lançamento do PEM e na seguinte destacam-se suas principais características e a recepção geral que recebeu. A seção seguinte desenvolve o tema central deste trabalho, que não é o da análise do Plano de Estabilização em si, e sim das reações às propostas constantes do PEM, por parte do setor industrial – representado pela Confederação Nacional da Indústria, cujo porta-voz era o mensário Desenvolvimento e Conjuntura. A sessão final, como de praxe, conclui o texto.

Antecedentes Como brevemente anotado acima, o bem sucedido surto industrializante do final da década de 1950, resultado do reconhecido sucesso das “Metas” de JK levou a um quadro de desequilíbrios macroeconômicos. Um breve histórico da política econômica efetivada naqueles anos é importante para o esclarecimento das questões que introduzem e justificam o lançamento do PEM. O aumento do PIB no período, da ordem de 50%, com a indústria atuando como setor dinâmico como se observa pela taxa de crescimento acima citada, se fez com o comprometimento do setor público e do setor privado, o primeiro financiado pelos gastos públicos via expansão monetária, e o segundo pelo crédito público. Dadas as características do sistema financeiro brasileiro daqueles anos, centrado basicamente na cessão de crédito de curto prazo e, portanto, não afeito às operações de prazo mais longo, e não menos importante, um sistema tributário regressivo e ultrapassado, parece claro considerar e aceitar a historiografia econômica que postula que o principal instrumento de financiamento foi a inflação. Melhor qualificando, dir-se-ia no último lustro dos cinquenta, o crescimento com inflação deveu-se ao mecanismo de “poupança forçada”, ou seja, o aumento dos preços transferindo renda para os setores que deveriam executar os investimentos. Registre-se que no período há clara e total aceitação da necessidade desta forma de transferência explícita de renda, dos salários para o lucro e daí para o investimento, por parte dos setores que deveriam e efetivamente estavam fazendo o maior esforço de poupança, ou seja, os empresários industriais. Voltar-se-á ao tema ao longo deste trabalho, mas é forçoso observar que a inflação e o crédito público, como responsáveis pelo notável empuxe do crescimento daqueles

anos, também refletem a fragilidade e a inoperância dos instrumentos de política econômica disponíveis. Assim, é consistente a consideração da inflação como central para o financiamento do crescimento daqueles anos. A inflação portanto jogou um papel decisivo na expansão econômica do período, mas teve seu inerente custo social relativizado pelo acentuado crescimento do emprego e da renda. Os dados relativos à emissão monetária, o financiamento do déficit do Tesouro e o permanente desequilíbrio das contas públicas refletem a escalada inflacionária. Deve-se considerar que não seu viveu, frente à inflação e ao crescimento, um dilema - no caso, um falso dilema. Aceita-se a inflação mas não seu aumento descontrolado, como mostram os registros da história da política econômica daquele período. Apenas como exemplo, quando se observam as razões do declínio de preços entre 1956 e 1958, verifica-se que entre elas estão as políticas cambial e monetária. A primeira proporcionou uma suplementação importante à oferta interna de produtos e a segunda restringiu a liquidez através de operações de “open market” praticadas pelas autoridades econômicas ao vender PVC (Promessa de Venda de Câmbio) com prazos diferidos no tempo.1 Uma avaliação rápida da conjuntura daqueles anos aponta para o recrudescimento da inflação a partir de 1958, quando chega a 24,4% ao ano, contra 7% no ano anterior. Adicionalmente à forma como se financiava o acelerado 1 Cf. MESQUITA (1992, 25). Quanto à questão do dilema estabilidade versus desenvolvimento, Carlos Lessa aponta para uma certa conscientização do problema econômico brasileiro, tanto do ponto de vista das empresas quanto do ponto de vista governamental, que apelava a setores mais organizados da opinião pública, mobilizados sob a bandeira do “nacionalismo”. Nas palavras do próprio autor: “Outrossim, o esquema de financiamento expansionista, proposto implicitamente pelo Plano, não afetaria interesses desse setor [empresarial] como poderia haver feito um esquema de coleta de poupanças, via tributação ou emissão de títulos de crédito público. Muito pelo contrário, o financiamento expansionista proposto abria possibilidades financeiras atraentes às empresas privadas nacionais e estrangeiras.” (LESSA, 1983, 30). Ademais, lembra Carlos Lessa, já havia um certo grau de desenvolvimento da economia brasileira, que tornava possível esta eleição de expansão monetária e crescimento, “mormente quando se contava com o seguro reforço, estratégico nesta conjuntura, do exterior.” (LESSA, 1983, 30).

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crescimento, os gastos decorrentes da construção de Brasília, e mais importante, em termos de recursos, as despesas referentes à defesa do café – entre 3 a 4 vezes superiores à construção da nova capital – potencializaram a mudança do patamar inflacionário. Aqui há que se considerar que a questão cafeeira desempenha um papel decisivo, pois apresentava em 1958 os resultados das safras de 1956-57, excessivas frente ao mercado e decorrentes, como tantas vezes, da aceleração dos preços do produto no início da década de 1950, bem como da desvalorização do cruzeiro quando da Instrução 70, que instituiu a reforma cambial de 1953. Assim, havia que se fixar política de compra para os excedentes, com as inevitáveis pressões sobre as finanças públicas. 2 A queda nas receitas das exportações de café, da ordem de 19%, significou uma redução da capacidade de importar em torno de 23% enquanto caiam os aportes de capitais forâneos e aumentavam as necessidades de câmbio para pagamento dos juros e amortizações. 3 Há que se considerar nesta conjuntura, que há uma crescente complexidade na gestão da política econômica e que o conflito de interesses se reflete na própria fragilidade dos instrumentos e mesmo na forma de gestioná-la. Assim, a manutenção e compra de estoques de café implicava no uso dos recursos provenientes dos ágios cobrados nos leilões de câmbio, o que piorava o gerenciamento da política fiscal para além das dificuldades decorrentes do pagamento de bônus de exportação não apenas do café mas também do cacau. Desta maneira, em um quadro de crescentes dificuldades externas, e de vários proble2 Entre 1956-1960 o valor do estoque de café em Cr$ milhões saiu de 1,2 para 11,4; 26,9; 49,6 e 49,0 - representando 0,14%; 1,07%; 2,05%; 2, 97% e 2,05% do PIB. 3 A dívida externa brasileira passou de US$ 2.694 milhões em 1956 para US$ 3.907 milhões em 1960. A chamada dívida de curto prazo (atrasados comerciais + swaps + acordos bilaterais expirados + desembolso de créditos permanentes) passou de US$ 1.114 milhões para US$ 1.535 milhões no mesmo período. Em 1958 o valor da dívida era de US$ 1.025 milhões. A relação serviço da dívida/exportações passou de 17,1% para 41,9% entre 1956 e 1960 Cf. o Anexo I de Mesquita (1992).

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mas políticos que estariam relacionados à política cafeeira, Juscelino Kubitscheck substituiu o Ministro da Fazenda José Maria Alkmin por Lucas Lopes em junho de 1958. As informações disponíveis apontam que as razões para a saída de Alkmin estariam predominantemente relacionadas à forma como teria procedido para sustentar os preços do café, o que teria significado um prejuízo da ordem de US$ 2,4 milhões para o governo brasileiro. Ainda que haja diferentes razões para a saída de José Maria Alkmin do Ministério da Fazenda, merece destaque a interpretação que justifica sua substituição pelo acordo que teria firmado com o FMI, que condicionava a obtenção de créditos do fundo ao cumprimento de medidas contencionistas bastante restritivas e que necessariamente implicariam em constrangimentos à consecução do Plano de Metas.4

O Programa de Estabilização Monetária e sua recepção Lucas Lopes, então presidente do BNDE, assumiu o Ministério da Fazenda e Roberto Campos passou a ser o presidente do Banco. Segundo testemunho do próprio Lopes, ao Ministério caberia a parte das questões monetárias, SUMOC, CACEX e Banco do Brasil e a Roberto Campos as questões atinentes ao Plano de Metas. Lucas Lopes e Roberto Campos seriam os responsáveis pelo Plano de Estabilização Monetária lançado em outubro de 1958 e que, em linhas gerais, buscava conciliar o crescimento proposto pelo Plano 4 Para um quadro mais completo da conjuntura política veja Sola (1998), para quem “é difícil dizer que esses compromissos (junto ao FMI) por parte de um político tradicional, conhecido por sua astúcia mas tecnicamente despreparado para negociar com a equipe do FMI, foram ditados pelo desespero diante do estrangulamento externo, ou se refletiam um baixo nível de compreensão dos problemas técnicos e econômicos envolvidos. Ambos os fatores, provavelmente, podem explicar a desatenção de Alkmin à ameaça que as condições draconianas do FMI representariam para a continuidade do Plano de Metas tão prezado por Kubitscheck. É a partir disto que se torna inteligível o apelo de Kubitscheck aos técnicos Lucas Lopes e Roberto Campos – cujo prestígio junto às agências financeiras internacionais era amplamente reconhecido – para que formulassem uma estratégia de estabilização alternativa, e, ao mesmo tempo, aceitável pelo FMI.” (SOLA, 1998, 187-188).

de Metas com uma gradual diminuição do ritmo de inflação. Adicionalmente, buscava o crescimento das exportações para que se pudesse, juntamente com o crédito de fornecedores, fazer frente às necessidades de importação. Cumpre registrar que antes do começo da administração JK já havia um esboço de um programa de estabilização que fora coordenado por Roberto Campos e que contara com a participação de economistas importantes que se utilizaram de dados de um relatório sobre a economia brasileira elaborado por Reynold Carlson, do Banco Mundial. Segundo Lucas Lopes, este “... foi o primeiro balanço de tendências gerais de crescimento da inflação, de aumento dos custos, com uma análise da taxa de câmbio. Este primeiro documento já esboçava uma programa de estabilização.” (LOPES, 1991, 220). O PEM tinha por finalidade, de acordo com o “Resumo do Programa de Estabilização Monetária” publicado em O Observador Econômico e Financeiro, novembro de 1958, ano XXIII, nº. 273, “permitir, através de um esforço de estabilização monetária, que o desenvolvimento do País possa prosseguir em condições de equilíbrio econômico e estabilidade social, não obstante as condições desfavoráveis do balanço de pagamentos.” E segue: “A inflação a partir de certo nível é altamente prejudicial ao desenvolvimento econômico pois desencoraja os investimentos nos setores básicos da economia nacional e incentiva as aplicações nos setores mobiliários e em atividades especulativas; dificulta os cálculos e previsões dos homens de negócios, incentiva os gastos em consumo e a redução da poupança privada voluntária; gera o desequilíbrio cambial e cria perigoso clima de tensões sociais.” Previam-se duas fases, uma primeira de transição e reajustamento, seguida de outra chamada de fase de estabilização. O Plano envolvia providências governamentais nas áreas (a) Moe-

da e Crédito; (b) Finanças Públicas; (c) Salários e (d) Balanço de Pagamentos Internacionais. Na área da política monetária o PEM previa a fixação de tetos ou limites máximos quantitativos para a expansão monetária, a limitação de operações de redesconto, a regularização da Caixa de Mobilização Bancária e a proposição, ao Congresso, de lei que permitisse, de acordo com eventuais necessidades, que o governo federal elevasse os depósitos obrigatórios dos bancos comerciais à ordem da SUMOC. No que se refere ao desequilíbrio financeiro do setor público, propunha a elevação da arrecadação tributária através do aumento do imposto de renda, do consumo e do selo e a colocação de Letras do Tesouro junto a bancos e outras instituições financeiras como forma de evitar a emissão monetária para fazer frente aos gastos públicos e ao déficit total do caixa do governo. Para a questão dos salários do funcionalismo, o PEM estabelecia que os reajustes ficassem sujeitos à rentabilidade das empresas e autarquias públicas, e quanto aos reajustamentos dos salários mínimos, que não excedessem ao necessário para recompor o poder de compra do nível fixado em 1956. Finalmente, no que diz respeito ao desequilíbrio externo, o Plano previa que a contração nos setores monetário e fiscal reduziria a expansão da importação de bens e serviços, além de propor a limitação da concessão de novas autorizações de importação de modo a não pressionar o saldo da dívida brasileira. O lançamento do PEM em outubro de 1958 foi saudado pelos diferentes setores e pela imprensa em geral como uma medida que chegava em boa hora, dadas as dificuldades da economia brasileira. Assim, o Observador Econômico e Financeiro de novembro de 1958, sob o título “Plano Lucas Lopes em debate”, destacava que “o Plano compreende dois grossos volumes que reclama certo aparelhamento especializado; as História e Economia Revista Interdisciplinar

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primeiras reações foram de aplauso, quanto mais não seja pelo trabalho de levantamento que lhe serve de base, concluído num prazo exíguo, pois data de pouco a atual administração fazendária. Elogios desta natureza têm sido expedidos, entre outros, pelos Srs. Eugênio Gudin e Aliomar Baleeiro, ambos financistas vinculados ao setores de oposição.” O comentário segue informando que para círculos importantes a causa da problemática situação econômica estaria na dispensável construção da nova capital. Mais significativas seriam as opiniões das nomeadas “classes conservadoras”: os presidentes da Confederação Rural Brasileira e da Sociedade Rural Brasileira reclamavam do aumento da tributação sobre o produtor de café, enquanto que, com o mesmo teor, o presidente da Confederação Nacional do Comércio discordava do Plano quando este propunha alguns projetos que “apresentam dispositivos com os quais não pode concordar o comércio, pois representam sob certos aspectos grave excesso de fiscalismo, além de constituírem maior intromissão do Poder Público na vida da livre empresa.”5 Já o setor industrial, através do mensário Desenvolvimento e Conjuntura editado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), saudava em outubro de 1958, sob o título “O Programa de Estabilização Monetária”, a preocupação das autoridades econômicas com a urgência de se combater a inflação, e desde logo, lembrava que a escalada dos preços teria ocorrido por responsabilidade do poder central, uma vez que o aumento dos salários do funcionalismo público teria pressionado indevidamente as receitas públicas e as “revisões do salário mínimo que desde 1954 têm superado, por ampla margem, as indicações do custo de vida.” Assim, a pressão dos salários aumentaria o consumo em detrimento da poupança e, portanto, do investimento, o 5 Cf O Observador Econômico e Financeiro, novembro de 1958, ano XXIII, nº. 273.

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que segundo a opinião dos industriais estaria em profundo desacordo com uma administração que objetiva atingir “Metas” numericamente determinadas. O editorial da revista é bastante interessante ao expor com clareza os interesses do empresariado industrial naquele quadro de acentuado crescimento de renda do setor secundário. O material é muito expressivo. Com uma argumentação econômica consistente, buscava analisar os problemas da economia em geral e da política econômica em particular, e como esta afetaria o desenvolvimento industrial que o mensário, citando recorrentemente Roberto Simonsen, considerava ser a base para a elevação do padrão de vida do povo brasileiro. Voltar-se-á ao longo destas notas a este e a outros números de Desenvolvimento e Conjuntura, para descrever com mais detalhe a reação do setor industrial à tentativa de estabilização. Por ora, importa considerar que as primeiras reações do patronato industrial ao PEM perfilam-se com seus pares da agricultura e do comércio ao revelar sua preocupação com o aumento progressivo do Imposto de Renda que substituiria as emissões monetárias, mas gravaria pesadamente os investimentos privados, ou seja, reduzir-se-ia a inflação às suas expensas, posto que os investimentos públicos seriam conservados. Defendem-se explicitamente as emissões que, “como os impostos regressivos, incidem sobre o consumo” e pergunta-se se a emissão “não constituiria, do ponto de vista do desenvolvimento, uma melhor alternativa”. Aproveita o editorial para criticar uma linha de pensamento que advogaria a estabilização, isto é, o combate à inflação, às custas de deter provisoriamente o desenvolvimento.6 6 Cf. Desenvolvimento e Conjuntura, ano II, nº. 1, outubro de 1958. Outro apoio importante ao Programa de Estabilização Monetária está no jornal O Estado de São Paulo, que reconhece tanto as dificuldades de sua implantação quanto a complexidade do diagnóstico da situação econômica. Veja O Estado de São Paulo, “Coordenação do combate à inflação”, 24.10.1958.

A situação econômica brasileira daquela segunda metade do ano de 1958 de certa forma exemplifica a complexidade que estava adquirindo a economia nacional e, portanto, as dificuldades inerentes à condução da política econômica que pragmaticamente visasse, como propugnava o PEM, conciliar o crescimento com estabilidade, ainda que se buscasse esta de forma gradual, justamente para tentar diminuir os óbices e minimizar as perdas inerentes a este processo. Como se observou acima, as opiniões foram unanimemente contrárias aos instrumentos que o Plano elegera como necessários para combater a inflação – ou seja, a diminuição das emissões monetárias e o aumento da carga fiscal, desde logo um recurso não inflacionário, mas julgado pernicioso pelos principais interesses envolvidos. Neste sentido, Lucas Lopes é enfático e ao mesmo tempo objetivo quando afirmou que “o Plano era uma reforma fiscal. Eu disse ao Juscelino: ‘o plano não existe. Existe uma reforma fiscal.” (LOPES, 1991, 253). Porém, mais relevante e significativa do que esta observação do então Ministro da Fazenda de que o plano era uma reforma fiscal e que de fato continha, como ele próprio observou, uma série de alterações sobre tributos específicos (renda, consumo, selo), estas são “meras adaptações fiscais, não são um plano de estabilização completo, porque sem uma política cambial definida não teremos uma política fiscal.” (LOPES, 1991, 253). Ocioso tratar da importância do câmbio e do quão central era a definição do valor da moeda nacional para a política econômica, notadamente no lado fiscal (em decorrência do ágio cobrado nas operações cambiais), e mais ainda, naquela conjuntura de rápido crescimento, onde o uso das cambiais, perenemente insuficientes, tinham um papel decisivo no esforço industrializante.

Grosso modo, na segunda metade da década de 1950, vigia a política cambial originária da já citada Instrução 70 que prescrevia cinco taxas de câmbio, que variavam de acordo com o critério de essencialidade das importações. Convém recordar que já no breve governo Café Filho houve uma proposta de reforma cambial que previa a unificação do valor da taxa de câmbio, mas que não logrou avançar.7 Pode-se afirmar que a problemática reforma cambial tida e havida como impostergável era ao mesmo tempo relegada ao segundo plano quando se intuíam as dificuldades que decorreriam de sua aplicação. Na verdade, em 1957, houve uma reforma cambial parcial, na qual foram reduzidas de cinco para duas as taxas de câmbio, sendo uma “geral” e a outra “especial” para produtos de menor essencialidade e que recebia um aporte menor de cambiais. Mantiveram-se, como prática da Instrução 70, os leilões para compra de moeda estrangeira. É importante lembrar que esta pequena reforma fazia parte da Lei 3.246 de agosto de 1947, a Lei de Tarifas que instituiu um sistema de taxas ad valorem que chegavam a até 150% para uma gama de 6.500 produtos e que criou o Conselho de Política Aduaneira (CPA), que determinava quais produtos seriam essenciais e teriam permissão de importação e/ ou quais seriam adquiridos ao câmbio de custo.8 Desta forma, ganham relevância as declarações de Lucas Lopes, que remetem à importância do Plano e o já percebido limitado alcance que teria, por não alterar o câmbio, questão tão essencial quanto problemática pelos temores que causava nos empresários e mesmo no governo. Kubitscheck teria levado às ultimas consequências, portanto, o conselho que teria sido dado por Antônio Salazar nos seguintes termos: “Presidente, se o senhor quiser governar até o fim do 7 Ver a respeito Pinho Neto (1989). 8 Para maiores detalhes ver Leopoldi (2000).

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seu mandato, não faça a reforma cambial”.9 Uma rápida observação do resumo do texto do PEM atinente às questões externas demonstra como não se enfrentou o problema, seja porque se temia que Salazar tivesse razão – isto é, pela enorme sensibilidade que teria o sistema econômico à variação do preço mais importante da economia, - seja pelo perigo de encarecimento das tão necessárias importações de equipamentos e matérias primas para o crescimento industrial e sua consequente pressão sobre a inflação. Como se viu, o item do resumo do PEM que trata da área externa tinha uma proposta bastante tímida que protelava mais uma vez a candente questão da reforma cambial. Sob o título “Correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos”, intentando o equilíbrio e posteriores superávits, o Plano apenas previa que o contingenciamento monetário e fiscal impediria “a expansão imoderada da procura de bens e serviços estrangeiros”. Além disso, propunha simplesmente a desburocratização crescente do setor exportador para torná-lo tão atraente para as empresas como era o mercado interno, a gradual eliminação dos subsídios cambiais que evitaria o excessivo consumo de bens importados e desestimularia a procura de financiamentos externos. Os subsídios que eventualmente fossem considerados necessários deveriam, de acordo com o PEM, ser concedidos via orçamento para que seu custo recaísse sobre toda a economia e não apenas sobre o setor exportador. Ademais, propugnava-se também, para o agente do setor externo, que se limitassem novas autorizações para importações amparadas em “supplier´s credit” em dólares ou moedas de conversibilidade limitada, ao montante das amortizações que fossem pagas para que não se pressionasse ainda mais o saldo da dívida externa.Coerentemente ao 9 Hélio Fernandes, Diário de Noticias, 15/03/1961, apud Leopoldi (2000, 276)

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conjunto de providências para a difícil situação da área externa, há também a sugestão de que os projetos de investimento de mais longo prazo de maturação fossem condicionados à obtenção de empréstimos de igual longo prazo (O Observador Econômico e Financeiro, nº. 273, p. 8). Observa-se portanto que não se enfrentou a questão da reforma cambial. As providências propostas, dada a gravidade da situação econômica geral, não se coadunavam com as pressões que sofria a área externa. Há que considerar que naquela conjuntura o País também negociava com o Fundo Monetário Internacional, que pressionava tanto pela alteração da política de câmbio que na sua interpretação estaria subsidiando o consumo, quanto pelo irrealismo das tarifas públicas, que considerava estarem defasadas. Não menos importantes eram as pressões contrárias à compra do superestoque de café pelo governo federal, pois elas repercutiam negativamente sobre o orçamento, o que era mais um fator de desequilíbrio das problemáticas finanças públicas. As relações do governo Kubitscheck com o FMI foram problemáticas, como não poderia deixar de ser, dadas as concepções opostas entre a política econômica efetivada e as prescrições do Fundo. As sugestões, e porque não dizer, as exigências do organismo internacional para a concessão de empréstimos, no mais das vezes, colidiam com a gestão francamente desenvolvimentista daqueles anos em que cresciam não apenas a renda da indústria, como também suas necessidades de importação. A problemática relação do governo JK com o Fundo Monetário culminou com o rompimento oficial do Brasil com aquela instituição, embora tal rompimento tenha sido mais formal do que efetivo.10 Questões de natureza econômi10 Sobre o rompimento com o FMI veja-se Lopes (1991, 249-251) Para uma crônica mais completa veja Campos (1995, 356-366).

ca à parte, o episódio da “crise” do governo brasileiro com o FMI demonstra o crescente grau de politização que passaram a ter os assuntos econômicos naquela quadra histórica. De fato, refletindo a conjuntura política, pode-se dizer que os temas econômicos passaram a ser vazados pelo conflito entre diferentes concepções. Registre-se que os embates acontecem tanto no Executivo quanto no Congresso Nacional, e entre correntes de pensamento econômico, que partem de embasamentos teóricos distintos quanto ao chamado nacionalismo.11 Cumpre detalhar com mais precisão que, quanto à cafeicultura, as pressões exercidas por este decisivo e importante setor da economia nacional eram por demais fortes. Para Lucas Lopes, o “lobby” que mais dificultou a implantação do Plano de Estabilização Monetária foi justamente o dos cafeicultores. Analisando a questão do café naquela quadra do final dos anos de 1950, Lucas Lopes observava que atuação do setor não diferia muito do célebre “Convênio de Taubaté” de 1906, e que o que de fato os cafeicultores queriam era que o governo comprasse os excedentes das safras, e, segurando a oferta, não deixasse com que os que os preços do café fossem reduzidos e então buscasse vender quando os preços fossem mais atrativos. A despeito do papel decisivo da cafeicultura, sobretudo como gerador de capacidade de importar, pode-se afirmar que o setor repassava à sociedade e à economia com um todo, os custos da sua reiterada política de manter a rentabilidade, o que era garantido pelo tratamento favorecido, fruto do pagamento de bônus sobre as exportações, que em boa medida minimizava a valorização da moeda nacional.12 11 Para uma análise completa das concepções dos economistas veja-se Bielschowsky (1988, parte II, cap. III). 12 Certamente a política econômica e suas relações com a cafeicultura mereceria um estudo mais aprofundado que escapa ao alcance deste trabalho. Importa aqui considerar que no caso específico do Plano de Estabilização Monetária, havia um conflito entre as propostas do PEM e o setor cafeeiro. Lopes (1991, p. 244) é enfático neste sentido: “A cafeicultura nunca esteve feliz no Brasil enquanto não ganhasse rios de dinheiro”. Em outro trecho: “Não queriam que eu fizesse a reforma cambial, porque isto significava caminhar para uma política de câmbio

Lourdes Sola anota que a cafeicultura, “um dos setores deixados para trás no processo de desenvolvimento acelerado – e que continuava parcialmente penalizado pela política cambial – revelava enorme dificuldade em mudar suas expectativas com relação à intervenção do Estado em defesa dos seus interesses.” (Sola, 1998, 206). A Autora ainda aponta que haveria nas expectativas do setor cafeeiro notável inconsistência posto que a busca da instauração da taxa de câmbio única corresponderia aos anseios liberais - do ponto de vista econômico, é claro – que embasaria o ideário da cafeicultura.. Obviamente esta é uma observação que suscitaria, pelo seu caráter francamente assertivo, discussões que buscariam relativizar o liberalismo econômico que orientaria a cafeicultura quando na defesa de seus interesses. Porém, mais significativo é observar que as exigências da cafeicultura repercutem mal mesmo entre setores que tradicionalmente se alinharam na sua defesa. Desta maneira, o jornal O Estado de São Paulo, historicamente ligado à cafeicultura, ataca como descabidos os seus anseios e apoia o Ministro da Fazenda na busca de conciliar o atendimento à lavoura com seus esforços anti inflacionários.13 Os analistas e historiadores do período, ao tratarem das dificuldades de aprovação do Plano de Estabilização Monetária e do confronto entre diferentes interesses constituídos, destacam a pouca aceitação do Plano também pelo principal setor econômico que se beneficiava do Plano de Metas, ou seja, a indústria. Nas linhas que se seguirão, pretende-se analisar com mais único e eliminar os câmbios excepcionais que davam ao café um tratamento favorecido.” Lopes (1991, p. 259). O desagrado da cafeicultura frente às medidas preconizadas pelo PEM levou ao acirramento do quadro político, com os cafeicultores propondo uma vez mais a chamada “Marcha da Produção” – a quinta desde 1953 - para protestar contra as medidas constantes do PEM, que depreciou o câmbio do café de 43 para 54 cruzeiros por dólar e que propunha comprar 40% da safra a preço abaixo do mercado, sendo que os restantes 60% seriam exportados sem a intermediação do Estado e que, adicionalmente, estabelecia que os exportadores não teriam mais a opção de vender café ao governo antes do fim da safra de 1958/1959. 13 Veja “A exposição do Sr. Ministro da Fazenda”, O Estado de São Paulo, 09/09/1958.

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detalhe a repercussão do PEM sobre o setor industrial, quando este manifestou suas opiniões através da publicação mensal Desenvolvimento e Conjuntura, editado pela Confederação Nacional da Indústria.

O PEM e a indústria – a reação da CNI Roberto Campos afirmou nas suas memórias que se o Plano de Metas já foi por demais debatido e estudado, o mesmo não aconteceu em relação ao Plano de Estabilização Monetária. Campos argumenta que o PEM seria tecnicamente superior e que foi precursor de três planos subsequentes: o Plano de Ação do Governo Parlamentarista (1961), o Plano Trienal (1963) e o Programa de Ação Econômica do Governo (1964). De fato, na história da política econômica brasileira quase não se faz menção ao PEM. No geral, ele é considerado mais uma tentativa (frustrada) de estabilização, a exemplo dos planos que o antecederam, principalmente no pós Segunda Guerra Mundial. As poucas análises mais elaboradas sobre o PEM, no entanto, consideram no uma tentativa de estabilização diferente das antecedentes, pois buscava conciliar a estabilização com desvalorização cambial, com a manutenção das Metas, embora freasse a velocidade do crescimento. Lourdes Sola, que segundo Campos, fez o melhor estudo conhecido do PEM, adverte que boa parte do caráter gradual que o plano propunha para a estabilização atendia à coalizão política do momento. Destaca também que os formuladores do Plano estariam influenciados pelos resultados dos planos de estabilização recém efetivado no Chile e na Argentina Desta forma, na busca de compatibilizar crescimento com certo equilíbrio macroeconômico havia implícita uma certa crítica à ideia corrente do FMI de esperar que os preços se esta-

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bilizassem para então voltar a investir.14 A reação da indústria ao Plano de Estabilização Monetária – já se observou acima – não foi das mais entusiasmadas, assim como a dos outros setores econômicos. Acontece que a discussão que o lançamento do plano suscitou dentro dos órgãos representantes da indústria fez com que se lançasse, em dezembro de 1958, um número do mensário Desenvolvimento e Conjuntura totalmente dedicado à análise e à crítica ao Plano.15 O documento apresenta uma defesa das Metas e do desenvolvimento industrial e o faz destacando as condições de subdesenvolvimento da economia brasileira. No caso da proposta de estabilização estar-se-ia aplicando um conjunto de propostas de política econômica baseado em “esquemas teóricos válidos apenas para regiões de capitalismo avançado” (p. 1). Assim, as autoridades econômicas estariam escudadas no equívoco de que no Brasil haveria pleno emprego e que, portanto, o investimento resultaria necessariamente em elevação dos preços, o que segundo o editorial comprometeria o seguimento das “Metas”. O editorial criticava o “distributivismo”, o aumento do salário acima do custo de vida, que teria como efeito pernicioso a diminuição dos investimentos, cuja taxa teria caído de 20.6% entre 1952 e 1955 para 17.6% entre 1955 e 1957. Desta maneira, para que se neutralizassem estas duas tendências (a elevação dos preços e a redu-

14 Veja Sola (1998,191). A aplicação do receituário do FMI para a estabilização da inflação no Chile teria levado, entre 1956 e 1957, a uma redução de 8,8% no produto interno per capita, de 19,8% na renda real do assalariado e queda de 105% nos gastos de consumo. Veja Pinto Santa Cruz (1959), que ao longo do texto faz uma crítica bastante consistente às propostas de estabilização do FMI. A suposta ortodoxia ou rigidez desta instituição, quando da feitura dos planos de estabilização não escapou a Roberto Campos, que observa que havia críticas válidas que poderiam ser feitas à rigidez conceitual do Fundo que podem ser resumidas em (a) desatenção à deterioração dos termos de troca; (b) a irrealidade da simultaneidade de medidas monetárias, fiscais e desvalorização cambial; (c) desconsideração às resistências políticas a programas rígidos de estabilização; e (d) a “falácia da agregação”, ou seja, a subestimação da importância dos cortes fiscais para o investimento. Para maiores detalhes, ver Campos (1995, nota 130, 358). 15 Todas as informações e análises que se passa a comentar estão no número 12 de Desenvolvimento e Conjuntura, publicado em dezembro de 1958.

ção dos investimentos), haveria que se entender adequadamente as características dos países subdesenvolvidos, nos quais não haveria um limite superior rígido aos investimentos e em que, portanto bastaria haver poupança para que a economia crescesse. Entretanto, aqui o investimento estaria sendo limitado justamente pelo supracitado distributivismo, que estaria comprometendo as margens de lucro, e consequentemente a capacidade de poupar. Esta primeira apreciação dá mostras dos problemas que estariam ocorrendo, e segundo a análise, ameaçando o processo de desenvolvimento econômico. Reconhece o editorial que “o PEM estaria além da simples colocação do problema inflacionário” (p. 3) e que pretendia equacionar o desenvolvimento brasileiro em termos macroeconômicos, mas que apenas funcionaria ou teria os efeitos propostos se confrontasse a questão da queda do investimento produtivo e do distributivismo. O texto é longo e qualificado. Divide-se em três grandes tópicos: (i) Síntese do Programa (em que analisam os seus fundamentos teóricos e as propostas concretas em torno das quatro áreas citadas anteriormente: Moeda e Crédito; Finanças Públicas; Salários; Balanço de Pagamentos Internacionais); (ii) Crítica do Programa e (iii) Sugestões para uma Política de Estabilização. Uma avaliação detalhada do texto de Desenvolvimento e Conjuntura exigiria um espaço que suplantaria o disponível para este trabalho. No entanto, buscando dar a devida atenção aos temas que se poderia considerar mais relevantes é possível obter uma visão tão abrangente quanto categorizada das observações que a CNI faz do PEM. Logo na abertura da Síntese do Programa já se anota a qualidade técnica dos seus elaboradores, cujos fundamentos teóricos, no entanto,

caracterizam-se pela “adesão a pressupostos sobre os quais o pensamento econômico está longe de ser unânime” (p. 6). Assim, o documento da CNI aponta que o texto do PEM informa que a disponibilidade de bens e serviços nos onze anos anteriores a 1957 crescera à média anual de 5%, que a taxa anual de expansão dos meios de pagamento fora de 20%, resultando em preços crescentes à média de 14% ao ano, o que desde logo sugeriria que a liquidez deveria se expandir à mesma taxa que o incremento médio do produto real. Como não poderia deixar de ser, reconhece-se uma certa funcionalidade da inflação na transferência de renda para os setores que poupam e portanto investem, o conhecido argumento da “poupança forçada”. Esta, no entanto, teria vida curta em decorrência da tentativa, por parte dos setores que perdem renda, em recompor o seu valor real Outro ponto importante que é destacado na Síntese do Programa, refere-se à diferenciação entre a “inflação de investimento” e a “inflação de custo”, sendo que a primeira teria um aspecto benigno sobre o crescimento mas que após 1954 teria crescentemente se transformado em inflação de custos “caracterizada pela espiral salários-preços e sem contribuição líquida para o aumento da taxa de inversão” (p. 10). Entre os pontos para os quais os críticos do setor industrial chamam a atenção e que não constam no texto do PEM, está a questão não menos polêmica, e que é destacada pelo articulista de Desenvolvimento e Conjuntura, qual seja, a tese de plena ocupação de fatores. Esta justificaria as drásticas medidas do PEM, pois se de fato o Brasil estivesse em situação de pleno emprego, de pouco adiantaria a formação de poupança uma vez que não haveria disponibilidade de fatores de produção e sem dúvida haveria crescimento continuado dos preços.

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O levantamento dos pontos constantes do PEM por parte de Desenvolvimento e Conjuntura remete às dificuldades e problemas que a escalada inflacionária traria para os investimentos e para o planejamento, assim como para o balanço de pagamentos, os salários e as consequentes tensões sociais. Assim, na primeira parte da Síntese do Programa, o texto toca nas questões que o PEM destaca para sua própria justificação: controle da expansão monetária; correção do desequilíbrio financeiro do setor público; política de salários; e correção do desequilíbrio do balanço de pagamentos. O levantamento dos pontos do Programa é minudente e o mesmo pode-se dizer do debate a que se propõe quando passa a criticá-lo. Na seção Crítica ao Programa, o texto lembra que não existe um consenso sobre a relação entre inflação e desenvolvimento e antes, que no Brasil e na América Latina há duas concepções sobre esta relação, sendo que o programa se afiliaria a uma que, como se verá, não é aquela professada pelos industriais. De fato, a argumentação que emerge da leitura do documento da CNI é feita para justificar a funcionalidade da inflação para o desenvolvimento de países como o Brasil, pois o movimento ascensional dos preços levaria à concentração de recursos “nas mãos da classe de maior tendência à poupança, restringindo, pois, a propensão a consumir” (p. 28). A despeito dos aspectos técnicos de que se cerca a argumentação, o documento da CNI afirma que não defende da inflação em si, mas sua capacidade de transferir renda para a poupança e investimento, essencial ao processo de desenvolvimento. Neste ponto explicita-se “o chamado mecanismo de poupança forçada” que seria, pelo acima argumentado, a contribuição da inflação para o crescimento. Desta maneira, um surto inflacionário levaria a que os salários subissem de forma defasada em relação aos pre54

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ços, com uma redistribuição de renda favorável à classe empresarial, que de fato investe. Os analistas da CNI buscam respaldo em Raul Prebisch, que em “Notas sobre el desarrollo económico, la inflación y la política monetária y fiscal”, diferencia as inflações de custo e de investimento, ambas originadas de uma expansão do crédito, mas com finalidades diferentes: uma para cobrir aumentos de custos e outra para intensificação dos investimentos.16 Na exposição que busca validar a importância da inflação para o caso específico de países subdesenvolvidos como o Brasil, os articulistas percorrem outros autores, até mesmo de quadros pertencentes ao FMI como E. M. Bernstein e I. G. Patel,”adversários decididos da inflação” (p. 30) mas que não obstante reconhecem o papel da inflação como financiador do investimento.17 A argumentação na defesa da poupança forçada segue com base na autoridade de Nicholas Kaldor, que teria defendido esta forma de redistribuição de renda a partir da experiência chilena, que seria válida para a maioria dos países da América Latina, onde a elevação dos preços e a consequente queda da renda real dos assalariados, não pressionaria pelo reajuste dos salários, com a mesma frequência que ocorria em países com sindicatos que reivindicam escala móvel para correção do poder aquisitivo e onde, portanto, não haveria modificações significativas na distribuição da renda. Aqui, mais uma vez, vale a especificidade subdesenvolvida; os reajustes não são tão frequentes e há um limite elástico para a aceitação da queda da renda real. Ou seja, haveria menor rigidez à queda do salário real. A conclusão é taxativa e merece ser transcrita: “... dado o comportamento do proletariado brasilei16 O artigo de Prebisch encontra-se publicado no segundo volume, às páginas 377-393 do documento publicado em 1952 pelo Banco Nacional de Cuba, em Havana, intitulado Memoria de la Tercera Reunión de Técnicos de los Bancos Centrales del Continente Americano. 17 O texto a que se faz referência é “Inflation in Relation to Economic Development” Staff Papers – International Monetary Fund , v. 2, n.3, 1952, 363 398.

ro, a inflação crônica pode obter, mesmo a longo prazo, um aumento das poupanças. O que não é válido nas condições vigentes na Europa, deve ser aceito para o Brasil, e provavelmente para toda a América Latina”. (p. 31)18 A crítica de Roberto Campos à CNI é implacável e de certa forma, mordaz: “A oposição de grupos empresariais ao PEM, notadamente da CNI, assumiu aspectos bizarros. Alguns técnicos de linha estruturalista e nacionalista, ligados aos grupos industriais, passaram a defender a expansão inflacionária de crédito como um mecanismo permanente, e ainda válido no caso brasileiro, de transferência de recursos do consumo para investimentos. Era a velha tese da ‘poupança forçada’ a que o Professor Nicholas Kaldor, então em visita ao Brasil, havia dado novo glamour. Enquanto persistissem as condições de subdesenvolvimento, em que o fator escasso era o capital e não o trabalho, e dado o baixo poder de barganha dos assalariados, políticas expansionistas de crédito constituíam a principal opção para o aumento da taxa de investimento da economia. Esta tese contrariava frontalmente as premissas do PEM, de que a pressão salarial já se havia traduzido em inflação de custos, sendo necessário recorrer à política fiscal para o financiamento não inflacionário do Plano de Metas. E a política fiscal teria que contemplar moderada progressividade no imposto de renda e não apenas tributação do consumo.” (Campos, 1995, 354)19 A argumentação da CNI na verdade defendia a inflação como mecanismo fundamental para a expansão da economia, e a justificava pelas características estruturais das economias latino-americanas. E se há tais características, não há porque se basear em políticas econômicas 18 O texto se refere à conferência “Inflation and Economic Development” pronunciada no Brasil por Nicholas Kaldor em 1956, e publicada na Revista Brasileira de Economia em março de 1957. 19 Para uma revisão crítica da importância da poupança forçada para o crescimento da economia brasileira no período considerado ver Pereira (2006).

que consideram a economia brasileira como em situação de pleno emprego, o que desde logo inviabilizaria o argumento tão caro aos articulistas de Desenvolvimento e Conjuntura, de “poupança forçada”. A tese do pleno emprego era desenvolvida pelo mais arguto dos críticos do ritmo do desenvolvimento daqueles anos, qual seja, o Professor Eugênio Gudin, que tinha suas teses contrapostas às de Raul Prebisch, que como já se observou acima, justificava e aceitava a inflação para o desenvolvimento, ao contrário do Professor que, segundo o próprio Prebisch “estaria mais preocupado com o equilíbrio do que com o crescimento.”20 Quanto à questão fiscal, o moderado aumento do imposto direto, como não poderia deixar de ser segundo o pensamento dos industriais, gravaria justamente o setor que tem capacidade de investir, comprometendo, portanto, o crescimento econômico. A reforma dos tributos que propunha o PEM, ao buscar a cessação radical e rápida do processo inflacionário poderia trazer para a economia brasileira a chamada “crise de estabilização” que prejudicaria a economia e o cálculo econômico dos homens de negócios. Tais ideias constantes do Plano não são claras quando se lê as propostas que aparentemente coadunam estabilidade e desenvolvimento. Entretanto, aqui fica exposto o conflito de opinião entre os representantes da indústria e Eugênio Gudin: o PEM repetiria o plano de estabilização de 1954 quando o Professor foi Ministro da Fazenda, cuja proposta era de corte indiscriminado dos investimentos, ao passo que agora, o ônus recairia mais sobre o setor privado. 21 Na tentativa de demonstrar o equívoco 20 Para um síntese da incorporação das idéias da CEPAL pelos industriais de São Paulo no período, veja Colistete (2006). A discordância da indústria de Eugênio Gudin pode ser vista no editorial “A tese da ‘industrialização artificial’” de Desenvolvimento e Conjuntura, ano IV, nº 1, janeiro de 1960. 21 Esta observação encontra-se no final da seção Crítica do Programa, p. 73.

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do pressuposto do pleno emprego como base para a justificativa do PEM, destaca-se que no caso brasileiro a economia não estaria em pleno emprego, mas sim em plena capacidade. Os industriais, com dados constantes do documento mostram que haveria um crescente descompasso entre os empréstimos do Banco do Brasil ao Tesouro Nacional e à indústria, em detrimento desta. Ou seja, as majorações tributárias seriam resultado da má administração dos gastos públicos, o que geraria um déficit orçamentário crescente, daí a necessidade de aumentar os tributos, em prejuízo, mais uma vez, da capitalização das empresas. É interessante observar que, por mais elaborado que seja o texto da CNI - como mostra a recorrência a Prebisch e Kaldor entre outros e a utilização de dados que demonstram que o Tesouro Nacional era o maior receptor dos empréstimos do Banco do Brasil, - o que os interesses industriais expressavam na verdade é, em poucas palavras, o desejo mesmo de inflação.22 Assim, o que de fato percorre todo o texto de crítica ao PEM é a questão da diminuição do crédito que seria consequência do combate à inflação, resultado advindo da restrição às emissões monetárias. Como já se observou nas linhas acima, o déficit governamental seria coberto com um adicional de imposto de renda, que significava “uma séria drenagem à capitalização particular” (p. 51). Em outro trecho o documento é ainda mais explícito na defesa da inflação: “... a emissão, a despeito de todos os seus males, agia como imposto regressivo, sem afetar, portanto as poupanças” (p. 71). Talvez mais significativa seja a observação feita à página 49 que, sem meias palavras defende o crédito, ainda que isto signifique infla22 Para dados sobre os empréstimos do Banco do Brasil ver CNI, p. 71

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ção: “o crédito à produção favorece o desenvolvimento, embora inflacionário”,ou, “diríamos que ‘o sistema de crédito ilimitado à produção’, constitui até agora, apesar de seus inconvenientes (que são os da inflação), a mola básica do nosso desenvolvimento” (p. 49). E continua grifado: “não é pois prudente sua rejeição ... antes que se tenha alcançado um mecanismo substituto de igual eficiência” (p. 49).23

Conclusão A crítica de Octávio Gouvêa de Bulhões ao slogan dos anos da administração de Juscelino Kubitscheck, era a de que “50 anos em 5 daria 500% de inflação”. A política econômica daquela segunda metade da década de 1950 esteve voltada prioritariamente para o desenvolvimento econômico e industrial. Não se fez 50 anos em 5 nem se chegou a 500% de inflação, mas legou-se à economia brasileira graves desequilíbrios macroeconômicos que explicam parte do problemático quadro político do início dos anos 60, a despeito do formidável crescimento tanto quantitativo quanto qualitativo do setor industrial. A “cordialidade macroeconômica” de JK ou seu propalado populismo econômico – já se disse – só dava certo no curto prazo, mas encontrou eco em poderosos e importantes setores que defenderam a prodigalidade dos gastos em meio à crescente politização dos temas econômicos. E mais, argumentavam com vezos cientificistas a validade da transferência e da concentração da renda, como necessárias para financiar a superação do nosso subdesenvolvimento com o inexorável avanço do setor industrial, sinônimo mesmo do desenvolvimento. Seja por força do “lobby” industrial, seja 23 A FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) tampouco aceitou o PEM, com argumentos semelhantes. Trevisan (1986) informa que em 6 de janeiro de 1959, quando da visita de Kubitscheck à FIESP, o presidente da entidade Antônio Devisate discursou: “Refrear o crédito é condenar milhares de empresas ao aniquilamento”. (p. 149).

pela pertinência ou mesmo impertinência da defesa da emissão inflacionária como mecanismo fundamental de financiamento, na verdade a nenhum setor econômico interessava a estabilização na forma em que foi proposta, ainda que esta visasse em última instância a própria manutenção do crescimento e do desenvolvimento econômicos. Pode-se afirmar que a argumentação central ao longo do documento aqui analisado, com o risco de ser reducionista, é a defesa da “poupança forçada” como essencial para a transferência de renda, e de seu corolário, a concentração de renda, para viabilizar a realização dos investimentos. As críticas à filiação do Programa às orientações que com certo risco de poderia cunhar de antidesenvolvimentistas levam à classificação do PEM como “puramente monetarista” o que poderia ser interpretado como um sinônimo de contrário ao desenvolvimento. Desta maneira, os industriais perceberam que a proposta de reforma fiscal, como afirmou Lucas Lopes, era a essência do Plano. Não havia Plano, mas apenas uma reforma que, aumentando a arrecadação tributária, traria o benefício de se diminuir as emissões e consequentemente as pressões inflacionárias. O problema central do PEM – segundo os industriais - residia no fato de que os tributos recairiam sobre seus lucros.

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Referências Bibliográficas Fontes Primárias Desenvolvimento e Conjuntura, ano II, nº. 10, outubro de 1958 Desenvolvimento e Conjuntura, ano II, nº. 12, dezembro de 1958 Desenvolvimento e Conjuntura, ano IV, nº. 1, janeiro de 1960: “A tese da ‘industrialização artificial’”. O Estado de São Paulo, “A exposição do Sr. Ministro da Fazenda”, 09 de setembro de 1958. O Estado de São Paulo, “Coordenação do combate à inflação”, 24 de outubro de 1958. O Observador Econômico e Financeiro, ano XXIII, nº. 273, novembro de 1958

Fontes Secundárias

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de Paiva (Org.) (1989) A Ordem do Progresso – cem anos de política econômica Republicana 18891989. R. de Janeiro: Campus, pp. 151-169. PINTO SANTA CRUZ, Anibal (1959). Estabilidade e desenvolvimento. Revista Econômica Brasileira, julho-dezembro, pp. 3-30. SOLA, Lourdes (1998) Idéias econômicas, decisões políticas. São Paulo: EDUSP/FAPESP. TREVISAN, Maria José (1986) 50 anos em 5: a FIESP e o desenvolvimentismo. Petrópolis: Vozes.

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Price Indicator for Live Cattle Contracts in Futures Trading

Pedro Carvalho de Mello Professor of ESAGS [email protected]

Resumo Discute-se questões teóricas sobre a liquidação financeira pura de contratos futuros na agricultura, apresentando a inovação financeira de criação de um indicador de preços (20 anos de trajetória) para bovinos vivos utilizados para liquidação de contratos negociados na BM & F de derivativos de câmbio do Brasil, e realizar testes empíricos.

Abstract Discuss theoretical issues about pure financial settlement of future contracts in agriculture, presenting the financial innovation of creating a price indicator (20 years track record) for live cattle used for settlement of contracts traded in Brazil’s BM&F Derivative Exchange, and perform empirical tests.

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Introduction

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e intend in this paper to present the Brazilian experience with the use of price indicators for financial settlement of live cattle future contracts, as well as to discuss the theoretical issues about pure financial settlement of agricultural contracts (and the possible problems faced regarding convergence of futures and spot prices as the settlement day approaches)1. We will describe the concept and creation of the Price Indicator and show the methodology used (daily survey with representative buyers and sellers in several regions of the country)2. Finally, we will perform the econometric/statistical tests (like co integration and others) to check the consistency and adequacy of the Price Indicator intending to be representative of cattle prices for the whole of Brazil3.

The main contribution of the paper is to highlight the difficulties for a developing country to obtain sustainable business on a futures contract traded in the exchange, and how, sometimes, it is necessary to be innovative in the design of the contract in order to overcome the infrastructure bottlenecks and the institutional constraints of the market place.

Background The Federative Republic of Brazil is the largest country in South America. It has 26 states, a population of almost 200 million and 1 A standard Livestock futures contract used by the derivatives exchanges is a legally binding agreement for a buyer to accept delivery and a seller to make delivery of: • a standardized quantity and quality of a specified livestock product, like live cattle, • during a standardized time period, • to a standardized delivery point, • for a price negotiated at the Derivative Exchange (BM&F), on either the electronic trading platform or via open outcry on the trading floor. 2 The innovation of BM&F was to avoid the need for physical delivery, to develop an appropriate price indicator and to introduce a purely financial settlement for the contract. 3 I would like to thank the important collaboration of Geraldo Barros, Sergio de Zen, Thiago Carvalho and Shirley Menezes of CEPEA/ ESALQ.

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GDP (2013) of USD2.4 trillion. The Brazilian economy has grown consistently in recent years, with inflation kept under control. The country adopted an inflation target system in 1999 and has implemented, since that time, monetary and fiscal policies that support growth (without putting excessive pressure on prices). Brazil was one of the first countries to recover from the 2008 crisis; consumption and investment were already back to normal in the following years, and GDP growth has been modest but positive since then. A noteworthy aspect of the Brazilian economy is that the country is a leading producer and exporter of agricultural and mineral commodities4. Brazil is the country with the largest herd of cattle in the world, more than 200 million heads. It is also the world’s largest exporter of cattle meat. The cattle meat business became today a modern and competitive industry in Brazil, and supplies both for the domestic and the foreign markets. The location of cattle ranching is widely spread in the country, which has a territorial extension of 3.27 million square miles5. An important aspect of market trends is that livestock buyers and sellers are facing an ever increasing level of price risk, for which futures contracts are a good hedging instrument. Brazil has a highly developed capital market with the largest Exchange in Latin America, whose main players are major multinational financial institutions and robust local institutions. It also has the most diversified and advanced derivatives exchange among the developing countries, BM&F Bovespa, which offers a complete organization for market players to manage 4 The world producer and exporter rankings, according to USDA, place Brazil in the following positions: Beef 1st, 1st; Coffee 1st, 1st; Cotton 2nd, 1st; Ethanol 2nd, 1st; Iron ore 2nd, 1st; Live cattle 1st, 1st; Orange juice 3rd, 1st; Poultry 2nd, 1st; Soybean 5th, 4th; Sugar 1st, 1st; Source: USDA. 5 Brazil’s territory makes it the fifth-largest country of the world, surpassed only by Russia, Canada, China and the United States. Its territory covers 47 percent of South America.

the risk of price volatility in the cattle market6. There has been constant evolution in trading volumes and liquidity in the equities and derivatives segments, with heavy participation from foreign investors.

The Role of the Exchange The derivatives markets (forward, futures, options, and swaps) are gaining a growing importance in the Brazilian economy, repeating a phenomenon that happened in some of the most important market economies of the world. A commodities exchange dealing with a whole set of financial instruments – that is, going beyond the spot and physical markets and becoming apt for trading derivatives - may be regarded as an organization based on management models and norms of conduct and performance, which offers services for trading, hedging and price discovery. Most mature economies, like the United States, evolved from the trading of forward contracts to the trading of derivatives contracts. Developing countries like Brazil are jumping from cash markets to futures markets in commodities. They face several problems, most of them deriving from the weak institutional basis of laws, customs, organization, and reputation. We have to consider that, in addition to all relevant factors applyed to advanced countries, developing countries have to organize the production chain of the business, and engage efforts in the areas of learning, innovation, technology, and institutional development. Thus, it is necessary, in order to launch a new futures contract, to organize some of the downstream segments of the production chain of the business. It is also important to understand that an exchange has an important, but limited, role for developing markets. An exchange, like BM&F 6 The BM&F Bovespa ranks among the top eight derivative exchanges of the world, measured by the number of contracts traded in 2013.

Bovespa, creates the organization facilities for transactions. The prices, however, are not set by the exchange, but by the sellers and buyers themselves. The Exchange uses people, capital and other resources to provide the marketplace, futures products, technology, rules and regulations for the buyers and sellers to come together. Before the Exchange offers the contract in the market, it is necessary “to create the market”. In other words, derivative exchanges in developing countries, like BM&F Bovespa, have to offer services and organize sections of the production chain of the commodity; otherwise, the contract will not attract liquidity. The exchange specialized in futures is a marketplace to trade contracts. A futures contract is a legally binding agreement, enforceable as a written contract, and protected by the law. A standard futures contract for live cattle, in general, contains specifications to match cash market commodities and industry standards. The specifications help to ensure that there is a two-way relationship between the benchmark livestock futures market and the numerous livestock cash markets in all regions of the country7. The live cattle futures contract of BM&F Bovespa presents the following major items: Title: Live Cattle Futures Ticker symbol: BGI Tick size: BRL0.01 per net arroba (15 kilograms) Underlying asset: Up to 42 month-old, male, castrated live cattle finished-weight 7 BM&F constantly monitors industry standards and cash market practices. If there are significant changes, the Exchange will consult with market participants to determine if modifications to the futures contract specifications are necessary. BM&F Bovespa has a permanent consultancy house organ, called the “The Chamber of Cattle”, to monitor the specifications of the contract with regard to changes in the market.

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(convex carcass) for slaughter, well finished in pasture or under confinement, ranging from the minimum of 450 kilograms to the maximum of 550 kilograms8 Price quotation: BRL per net arroba Contract size: 330 net arrobas (1 net arroba = 15 kilograms) Last trading day: Last business day of the delivery month Delivery months: All months Price Indicator of Live Cattle: IBOIGORDOt (shown in Reais per net arroba, calculated by a recognized price collection and calculation institution, defined by Exchange norms, and published through the electronic address of the Exchange)9 Financial Settlement: uses the Price Indicator Price is the only negotiable element of a futures contract. Price discovery and transparency are the major contributions for the market made by the Exchange. The trade of futures contracts depends on the interaction between the buyer and the seller, representing demand and supply, respectively. A futures market price is determined through the interaction of the buyers’ bids (demand) and the sellers’ offers (supply)10. The price discovered in a futures market results from this interaction. There is also an interaction between cash markets and futures markets. The cash market in the cattle industry in 8 “Bovinos machos, com 16 (dezesseis) arrobas líquidas ou mais de carcaça e idade máxima de 42 (quarenta e dois) meses”. 9 “Indicador de Preço Disponível do Boi Gordo BM&FBOVESPA, expresso em reais por arroba líquida, apurado por instituição renomada em coleta de preços, definida em Ofício Circular, e divulgado no endereço eletrônico da Bolsa” 10 For example, supposing hedging is the motivation behind the trade, a livestock producer using futures could obtain downside price protection, and, conversely, a livestock buyer could obtain upside price protection.

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Brazil is quite large and broad11. There are several specific market locations spread over the country in which the exchange of a physical product, for payment, takes place. Cash markets are the locations where the hedger regularly buys or sells the physical livestock products. The hedger only needs to be concerned with its local cash market and has just one basis to monitor12. Cash market prices may differ depending on where they are formed and the local circumstances, since cattle ranches operate in all states and regions of Brazil, transportation costs are high, and cattle heads are mainly raised in open pastures (and very sensitive to the rainfall and regional weather changes)13. In addition, we have both European cattle (bos Taurus) and Asian cattle (bos Indicus), that command different unit prices since quality of meat varies14. A futures market is a centralized market place, organized by BM&F15. It is important to notice that in this market the price set in the Exchange is the same for buyers and sellers, regardless of the type of trader – hedger or speculator - they are or where they are located16. The basis for distinction is that futures markets participants act either managing price risk, or assuming price risk. 11 The cash market sometimes receive the names “physical” or “underlying” markets. 12 If the hedgers have more than one local cash market that they regularly buy livestock from or sell to, then they will have more than one basis to monitor. Note that basis is the relationship between a cash market price and a futures contract price, and it reflects the correlation of the hedger’s local cash market to the futures market. The better the correlation between the two markets, the more effective the hedge strategy will be. 13 Brazil is a sub-continent, and we have equatorial climate in the North, tropical climate in the Center, and sub-tropical and temperate climate in the South. 14 The most common type of cattle in Brazil is the “Nelore”, which originally was imported from India, but suffered an extraordinary change in Brazil due to introduction of genetic experiments. The modifications were made through time in Brazil, prompted by the drive to adapt the cattle to changes in consumer preferences and commercial forces in the domestic and export markets demanding certain types of meat. 15 The futures market, sometimes, is described as being a “benchmark” market. 16 In truth, there is an element of speculation in the hedger behavior, and an element of investment in the speculator behavior.

A hedger is an individual or firm that uses the futures market to manage or reduce the price risk associated with their cash market position. The speculator is an individual or firm that assumes price risk by buying or selling livestock futures in an attempt to profit from a potential change in price or price relationship17. The futures industry uses some terms to describe the interplay of participants in the market. A bid is an expression to buy and represents the demand for a product. An offer is an expression to sell and represents the supply of a product. Many of these bids and offers come from cash market participants18. Another terminology commonly used in futures markets is “short” and “long”. By short it is meant the seller, and by long the buyer. In the live cattle future market, the “potential short hedgers” usually are cattle ranchers, packers, processing industries, veterinary inputs, factories of machines and specialized tools, exporters and food related businesses holding inventory. The “potential long hedgers” include packers, importers, restaurants and food processors.

Theoretical issues about pure financial settlement of agricultural contracts (and the possible problems faced) A futures contract is a standard agreement between two parties, that obliges one party to sell and the other to buy a certain quantity and quality of live cattle at a given price, at or before a certain date in the future. Exchanges, in gene17 The futures market speculator usually does not hold or plan to acquire the cash product. Speculators are a key figure in the futures market. They provide a major benefit to hedgers and the market as a whole, since they make possible the match between supply and demand. As a result, the market benefits by having market liquidity. In accordance with CME, “Market liquidity is a measure of the market’s efficiency, and it is this efficiency that results in better bids and offers for all market participants, including the hedger. Liquidity is also key to the ability to initiate and offset futures positions”. See CME, Life Stock Self Study Guide, 2013. 18 Cash market participants often use the futures contract price as a reference mark to transact in the spot (current) market.

ral, follow basic rules about margins of guarantee and daily adjustments of payment settlements for the contracts, due to daily changes in prices from the starting day of negotiation to the expiration date of the contract. The key word for a contract is standardization. All the conditions under which the live cattle are transferred from seller to buyer are established by the exchange before the transaction begins. The only thing left for the parties to trade and fix is the future price. Everything else is organized and set by the exchange under certain standards. It is very important that no ambiguity exists, and that all the items and conditions are understood and are agreed by the parties involved in the negotiation of the contract. Contracts, in general, have several pages and long lists of details. In the actual operation of the agricultural markets, most futures contracts traded will never result in actual delivery of the physical commodity. The great majority of futures contracts will be “offset” or “closed out” prior to delivery by taking an opposite position in the same contract and delivery month19. Therefore, the primary purpose of a futures contract is price risk management and not delivery of the actual or physical commodity on the futures contract. As such, it is usually more feasible in economic terms to deliver or accept delivery in a local cash market. Physical delivery on a Live Cattle futures contract is normally less than 1% of the total futures volume. Then, why is there a physical delivery requirement on a futures contract? There are 19 As mentioned by CME, “In other words, if someone initially buys a futures contract for a specific product and delivery month, and later sells a futures contract for the same product and delivery month, their position and market obligation is closed out. Conversely, if someone initially sells a futures contract and later buys back the same contract, the market obligation is closed out”.

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many possible answers. The most common says that there is a belief that it is the possibility of physical delivery that causes the cash and the futures markets to converge at contract expiration. According to this view, it also contributes to the necessary and vital market economic function known as price correlation, which keeps the cash and futures markets’ prices moving in the same direction throughout the life of the futures contract. There is a common belief that for live cattle futures contracts, as seen in CME rules, a physical delivery is needed. Using the CME as the benchmark, we can notice that, in the actual operation of the livestock market in the United States, CME makes a distinction between live cattle and feeder lot cattle. According with the CME, the Live Cattle futures contract requires settlement by means of physical delivery20. The Feeder Cattle and Lean Hog futures contracts traded at CME are cash (or “financially”) settled contracts. In that Exchange, all outstanding future contracts of feeder cattle and lean hog that remain open after the last trading day are automatically closed out at a price set equal to the CME Feeder Cattle Index or the CME Lean Hog Index of the last trading day. This final cash settlement cancels the obligation of the buyer and the seller21. The CME Rulebook dictates the specific standards in terms of the quantity and quality (USDA Grades) of cattle that can be delivered. The seller of the Live Cattle futures contract makes the final decision regarding the actual quality and quantity that will ultimately be delivered, but it must be within the standards authorized by the Exchange. Any variations to the standardized quantity or quality may be subject 20 The CME’s Live Cattle futures contract requires delivery of live cattle during the contract month for all market participants who still have an open long position (obligations to accept physical delivery) or short position (obligation to make physical delivery) based on the latest Exchange rules and regulations. 21 The specific details of the cash-settlement process are presented on CME Rulebook at cmegroup.com/rulebook.

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to premiums or discounts to the futures price22. As previously mentioned, the CME’s Feeder Cattle and Lean Hog futures contracts have a cash settlement requirement. Although it is a different type of delivery system than Live Cattle, the objectives are the same: cash/futures convergence and correlation. In the cash-settlement procedures, all long contracts still open after the last trading day are automatically offset against all remaining open short contracts. They are settled to a price equal to the CME Feeder Cattle Index or to the CME Lean Hog Index on that day. Thus, there are two possible types of settlement for futures contracts: physical delivery and cash-settlement. At the bottom line, and if we adopt a more theoretical approach, we can conclude that it is the difficulty of the storage of the live cattle commodity – as compared, for instance, with the storage of grains – which supports the view that rules out pure financial settlement. Thomas A. Hieronymus (1971) is one of the early and most important authors on the subject of economics of futures trading. In several passages of his work on the economics of futures markets he makes the point that, since it cannot be stored and suffers the risk of becoming a perishable commodity (in the commercial sense), live cattle futures contracts need physical delivery in order to have convergence of cash and futures prices. The following remarks he made can illustrate the point: Cattle has a high degree of perishability (p.21); Some commodities, like cattle…are not storable (p.41); 22 The specific details of the physical delivery requirements specified in the CME Rulebook can be found at cmegroup.com/rulebook.

The delivery provision and the fact that deliveries are made and taken forces the trade in, and the prices of futures contracts to conform to the real world of cash commodity transactions (p. 41/42); It was generally accepted that only those commodities with a high degree of storability were eligible for trading in futures markets. But this changed with the advent of trading in live cattle… (p.145); The pricing of an yet unproduced product [such as live cattle] has an added dimension…futures prices become supply determining as well as supply rationing (p. 145); The essential characteristic of price relationships in futures markets for non-storable commodities is that there is no functional relationship. The price of each delivery period is a true forecast of the equilibrium price that will prevail at that future time (p. 166); The first of the strictly non-storable commodities traded was live cattle. At the outset traders were confused about the price relationships that should exist. Bound by tradition, they looked for a crop year and a carrying charge structure (p. 167); Who would hedge in a non-carry market? It became quickly apparent that to buy the more distant months because a proper futures market should have a carrying charge was a nearly certain way to lose money (p.167); Being artists at survival, the traders quickly modified this notion and started looking at potential changes in market supplies and consumer demand that might result in change in the current market price by the time of contract maturity (p. 167).

In another part of his work, Hieronymus states what, in my view, summarizes the challenges any exchange faces when trying to consolidate a new futures contract in the market: “… futures markets are fragile things; many are started and fail, many more fail to grow to viable size, and even the best are small in comparison to the jobs that need to be done” (HIERONYMUS, 1973, 339).

The author then continues: One of the most difficult tasks in starting and operating a futures market is establishing the terms for delivery. A futures contract is a temporary substitute for an eventual cash transaction. In markets that work, delivery is rarely made and taken; futures contracts are entered into for reasons other than exchange of title. Markets where there is a large amount of delivery fail and go out of existence because extensive delivery is an indication of an out of balance contract, one that favors either the longs or the shorts. When a contract is out of balance the disadvantaged side ceases trading and the contract disappears. (HIERONYMUS, 1973, 340).

Finally, Hieronymus states a lesson of wisdom, coming from someone possessed with both economic analytical and practical job skills, that goes to the heart of the subject, and inspired BM&F Bovespa to design the live cattle futures contract: The objective in writing a futures contract is to obtain such even balance that only an amount to test the price – to keep it honest – is delivered; to make the contract so readily deliverable and receivable that there is no incentive to make or take delivery. The terms of the contract must be precisely representative of the commercial trading practices of the commodity. When contracts are written their terms are as closely descriptive of existing practices as a committee of knowledgeable people can make them. The commercial circumstances surrounding a commodity change as the production,

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marketing, processing, and consumption change. The delivery terms appropriate at one time are not appropriate at another so that changes, sometimes frequent ones, are necessary. (HIERONYMUS, 1973, 340).

When attempting, in Brazil, to develop the futures and option contracts for live cattle in the 1990s, settlement through physical delivery became a real issue. At that time, there was a belief that it would be very challenging to organize purely financial settlement for live cattle future contracts. The theoretical issues behind this assessment were the ones outlined by Hieronymus: the equilibrium futures price for a non-storable commodity. Brazil’s derivative exchange, however, was able to do that, using a Price Indicator, that has been used for the last twenty years, calculated by ESALQ/USP (the leading University in Latin America), under contract with BM&F Bovespa23. As will be shown in the following section, the task was to calculate a price indicator that would obtain an even balance that did not favors either the longs or the shorts.

Concept and creation of the Price Indicator During the first years of the 1990s, Brazil was facing economic stagnation and high and accelerating inflation24. Although the economic scenario was not appropriate for the creation of exchanges offering price futures mechanisms, the stockbrokers decided to organize the first derivatives exchange, based in the state of São Paulo. Since the beginning, the BM&F Bovespa showed innovation with the development of the 23 At the time of the creation of the price indicator, I was a part time professor of Economics at Esalq/USP and the Director for Agricultural Futures Markets of the BM&F Exchange. I acted in both capacities as member of the team designing the Price Indicator. 24 Annual inflation rates were 1476.7% in 1990, 480.2% in 1991, 1157.8% in 1992, 2708.2% in 1993, and 1093.9% in 1994. In the following years, after the successful stabilization Plan (Plan Real), inflation rates became less than one-digit per year. GDP growth rates were (-4.45%) in 1990, 1.03% in 1991, 0.54% in 1992, 4.92% in 1993, 5.95% in 1994 and 4.22% in 1995.

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futures and options markets. Agricultural markets became an early target for the BM&F Bovespa business portfolio. The cattle market was an obvious target, but geographical distances and a small number of sellers and buyers created difficulties for delivery and physical settlement of futures contracts. Several attempts were made to organize a live cattle futures market for trade in the exchange, based on specific delivery points, but all failed to provide sufficient trade and liquidity. This negative scenario created a dilemma for the exchange administrators. On one hand, all prevailing theory pointed to the need for physical delivery of live cattle. On the other, the delivery system was not working. Since the market was small, sellers and buyers employed opportunistic behavior to turn the conditions to their favor (even approaching situations of “black-mail”). For instance, a seller, unhappy with outcome of prices in the futures market, would chose, instead of financial offsetting, to use the delivery rules of the contract in order to oblige the buyer to receive live cattle in several different (and distant) locations (BM&F Bovespa had five delivery points). The purpose was to force the buyer into negotiation and increase the prices received by the seller. Market participants, as a result, were afraid of entering the market, and the “live cattle” market failed to enter into take-off for sustainable growth. In the derivatives markets, the successful futures markets are liquid, since liquidity is essential to success. In that context, trading tends to be in large volume. Thus, the challenge for BM&F Bovespa was to turn the live cattle contract into a liquid and high volume trading mechanism in the market.

In order to develop the live cattle future contract, the exchange administration decided to innovate, by resorting to the use of pure financial settlement for futures contracts25. For this purpose, the exchange would need a price indicator, which would be fair and reliable. BM&F hired the University of São Paulo (EASLQ/Cepea) to calculate a daily index of price (based on buyers and sellers) for use in the clearing and settlement of the contracts. In addition, the price indicator should be capable, through negative or positive premia, to be representative of live cattle prices in the whole country. CEPEA was created in 1982, as part of the Department of Economy, Administration and Rural Sociology of ESALQ/USP. The mission of CEPEA is to identify the demands arising from society and the economy, and to create a channel between business and the academic activities and research of ESALQ. Given its reputation as a strong educational unit, BM&F Bovespa chose CEPEA to be responsible for the Live Cattle Price Indicator. The first agreement was signed in 1993, and the “Indicador de Preço do Boi Gordo” has been in place for the last 20 years. It shows an impressive track record, and, very uncommon in developing countries, without episodes of scandal or corruption that could tarnish the reliability of financial settlement of futures contracts using the price indicator. Since its creation, it has published 5,000 daily price reports containing the price indicator. There are 14 people working full time in the team responsible for the price indicator. On ave25 For precaution, however, BM&F decided in the beginning months to keep a possibility for physical delivery. Although discouraging this modality of settlement, BM&F acquired and managed a cattle corral facility, located in Araçatuba, a strong cattle and ranch market in the state of São Paulo (Southeast region of Brazil), for sellers to deliver the trucks with cattle, if they desired to do so. After a few months, with the consolidation of financial settlement of future contracts, the corral facility was closed.

rage, each member of the team gets into personal contact with 70 respondents daily, representing the major forces of supply and demand in the market. In addition, there are 1,500 electronic calls per day, for both buyers and sellers. Every business day Cepea inquires the price the buyer paid, and the price the seller sold the “arroba” of meat. After so many years of daily interaction between the Cepea team and the respondents, there is already a strong element of trust involved, which helps the governance of the price indicator. The purpose is to obtain a balanced indicator for live cattle prices, making it possible to weigh fairly demand and supply intentions and behaviors, replicating the shifting supply and demand curves of the market for this commodity. The price Indicator is used for financial settlement of all future contracts of live cattle traded in the Exchange. In addition, the financial support obtained in the process made possible the creation of a whole research area in the field of economics of the meat industry in Brazil.

Methodology used for the price indicator Cepea used the following methodology and criteria in order to develop the ESALQ/ BM&FBovespa Index for Live Cattle: 1) Fed cattle prices are collected in four regions of São Paulo state: Presidente Prudente, Araçatuba, Bauru/Marília and São José do Rio Preto; 2) The importance of each region in the composition of the Index is defined according to the slaughter volume of the contacted slaughterhouses – updated monthly. The participation of each region is defined by summing up the slaughter volumes in the units that are registered

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by the Federal Inspection Service – SIF; 3) When any unit is excluded from the sample, due to the lack of price information or for statistical criteria, the related importance of that unit is distributed among the others. Given that, the weighted system can be different every day, according to the share of each slaughterhouse in the sample. From January/2012 onwards, the ESALQ/BM&Fbovespa Index is ceased including Funrural tax (2.3%). With respect to traceability, the prices composing the sample should respect an interval of two standard deviations. For tracked animals, prices that are out of that interval are excluded from the Index calculation. Prices which are within that interval are considered for tracked or non-tracked animals, since there is no official premiums for the tracked animal. It is impossible to exclude or include information by other criterion that is not a statistical one, defined in the methodology. For the other regions, prices are also collected in the states of Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Rio Grande do Sul, regions of Triângulo Mineiro and the northwest of Paraná, besides the wholesale market of São Paulo. With respect to animals for replacement, Cepea also collects, since March 1994, prices of calf, feeder cattle, heifer and cows, classifying these animals by race and age. Meeting the main demand of the market, Cepea publishes every day, from 6:00 p.m. onwards (Brasilia time), prices of nelores calves, from 8 to 12 months.

Elasticity of Transmission of ESALQ/BM&F Price Indicator from São Paulo to other cattle regions in Brazil The purpose of this analysis is to 70

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identify the intensity of price transmission of the Financial Indicator of Live Cattle BovespaBMF to the main locations and regions of cattle ranches/meat producers in Brazil. We analyzed six locations/regions26 and the Live Cattle Price Indicator. The locations/ regions studied were Três Lagoas (MS), Campo Grande (MS), Triângulo Mineiro (MG), Goiânia (GO), Rio Verde (GO) and Cuiabá (MT). We used the daily prices of the State of São Paulo Live Cattle Indicator – Cepea/BovespaBMF during the period January 2005 to February 2014. In order to analyze the relationship among the economic variables, we will use the concept of price transmission elasticity. This concept is similar to any other concept of elasticity. The traditional concept of price elasticity of demand shows how variation of prices of a given product can cause changes in the respective quantity demanded. The concept of elasticity of transmission of prices shoes how changes of prices of a product in a specific market are transmitted to the prices of the same product within the same market, although, in another level or, then, how variation of prices of a specific product are transmitted for the prices of the same product in another market. According to Barros and Burnquist (1987), the definition of the elasticity of vertical transmission of prices “deals with the relative variation in the price at a Market level with respect to the variation in the price at another level, keeping in equilibrium these two levels of market after the initial shock in one of them. The elasticity of price transmission between two markets vertically integrated may be defined as the percentage change of prices of a given good in a Market, resulting from a 1% change 26 Called in Portuguese language praças/regions.

in the price of this good in the other Market. In algebraic terms, it could be represented in the following way:

In which: Prit: price of live cattle during period “t” in region “i”;

In which: Ƞpv = elasticity of transmission of prices between the Indicator/region;

Prjt: price of live cattle during period “t” in region “j”; β0 , β1: parameters; vt: random error (White noise)

δPv = change of the price in the region; δPp = change of the price in the Indicator; Pv = price of the good in the region; Pp = price of the good in the Indicator. If Ƞpv is greater than one, it means that the percentage changes in the prices of the region will be greater than the percentage changes of the Indicator Bovespa/BM&F. If Ƞpv is smaller than one, the percentage changes of prices will be smaller for the region and if Ƞpv is equal to one, the percentage changes will be equal in the two levels. The analysis of the elasticity of price transmission involves, basically, the daily time series of the Live Cattle Indicator Bovespa/ BM&F, and the daily prices obtained from the main producing regions, and can be shown using the equation below. The equation is obtained from the co-integration model, based on the coefficients b1, which give the value of the price elasticity of transmission between BM&F and all the other locations pertaining to the Indicator:

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We show in Table 1 the results obtained with the use of the co-integration model. We can see the elasticity coefficients of the indicator with respect to each region, in a three days period, as well as the significance level of each variable. The prices included in the Bovespa/BMF Price Indicator are the independent variables and the prices earned by the cattle ranchers from the different market locations are the dependent variables. We can see that the results were significant for all regions, showing that there is a positive transmission of prices of the Cepea/BovespaBMF towards the most important live cattle producing regions in Brazil, with high coefficients.

Evaluation of the usefulness of the price indicator as a tool for futures markets All the markets/regions under study show good regression coefficients (β1), principally the regions of the states of Goiás, Goiânia and Rio Verde, showing the highest coefficients with greater intensity in the transmission of prices in the same day of the Indicator (Lind). Since the price transmission at the same day is difficult to be verified, we analyze the intensity of elasticity in the next day or in the sum of three days. If we analyze the price in Campo Grande, we can see higher intensity in the following day, with an elasticity of 1.11 (Lind + Lind(1)). In other words, for a variation of 1% of the Live Cattle “arroba” in the Bovespa/BM&F Indicator, the price in this particular region will vary in 1.11%. We can notice that for Campo Grande the coefficients were significant in all days. In the other five regions (Três Lagoas, Goiânia, Rio Verde, Cuiabá and Triângulo Mineiro) the higher intensity takes place from the second to the third day, and the highest

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coefficient was shown in Goiânia, 1.12 and the smallest in the Triângulo Mineiro, 0.83, showing an Increase of 0.83% when the indicator rose, two days earlier. Finally, the results of price transmission for live cattle (indicator for all regions), taken as a whole, point to a strong transmission between Bovespa BMF and the Market locations/regions that were examined. We can also notice that the intensity is very near one in all regions, and in some cases even surpassing one. Based on that, we conclude that the more organized are the market locations and their regional localizations, the higher is the intensity of price transmission. Another important factor is the signaling that the live cattle market in Brazil has assimilated the idea that a financial indicator is a reliable price that can reduce uncertainty and information costs for the participants of this market in places other than the designated delivery points.

Importance of the Price Indicator: First, it is a very important financial innovation. At the time we designed the price indicator, it was considered impossible to settle agricultural futures contracts only financially, since it was common sense to include the need for physical delivery during the days approaching the settlement day. After 20 years, the pure price indicator for financial settlement works properly. Second, Brazil, like the US, has continental dimensions, the climate (from North to South) is equatorial in the north, tropical in the middle, temperate in the South. Our cattle is both from genetic India and Europe, so it is a challenge to organize a price indicator for different varieties of meat, and to find prices representative of the several producing regions. Third, it is an institutional innovation too, since the price indicator was conceived

and begun to operate during the time of hyper inflation in the country, followed, in the last 19 years, by a one digit annual inflation in the country27. The price indicator is also a good example (rare in Brazil) of University/Private Sector cooperation.

meet business objectives and achieve financial goals. The live cattle futures market, traded on the exchange, assures that the cattle businesses can substantially mitigate counterparty credit risk, by offering liquidity, transparent pricing, and equal access for all participants.

Fourth, the price indicator contributed to the development of a modern cattle/beef activity in Brazil. Thus, is a very good example of an innovation in the financial sector, which can contribute for the advancement of the real sector of the economy.

Beef cattle is one of the important business areas. We attempted in this paper to make an evaluation of the usefulness of the price indicator as a tool for futures markets, and to evaluate the role played by it in the active trade of live cattle contracts in the country. Finally, we discuss the importance of modern futures markets for a country like Brazil, possessing strong comparative advantages in natural resources/agriculture/mining, but needing to develop competitive advantages in commerce and the production of commodities. 

Conclusions/Importance of modern futures markets for Brazil In a world of increasing volatility, the Brazilian economy, highly dependent on export of agricultural and mineral commodities, needs to manage risk across several major asset classes – mainly agricultural commodities, interest rates, and foreign exchange. The derivatives exchange, BM&F Bovespa, is providing the tools customers need to 27 There was another innovation about the live cattle contract, dealing more with regulatory issues. It happened when I was director of BM&F Bovespa, trying to organize a live cattle future market. Brazil was experiencing, in the beginning 1990s, a continuation of the hyperinflation of the 1980s. The country had had several plans to end inflation, but without success. Inflation, by the time I was trying to organize the market, was reaching from 30 to 50% a month! Imagine how complicated it was to organize a hedging market against price volatility in a scenario of hyperinflation! Strange as we may think, there was demand for that instrument. Live cattle, raised in pasture, has short and long cycles of prices, depending on rain and real meat and milk prices (that affect the size of the herd). Brazil is the largest cattle country of the world, with more than 200 million animals. Both buyers and sellers of the meat chain business needed such hedging instrument. We decided to create the market…using the US dollar. Cattle ranchers were already using the dollar as the reference, but settling the purchase and sale using the Brazilian currency. The problem was that the Brazilian law prohibits the use of a foreign currency in domestic contracts. We had in our team a “brilliant” idea: to have the contracts referred in “base points”. The future prices would be set in “base points”!. The existing Civil Law did not have any provision prohibiting the use of “base points”. In addition, there was a conversion procedure regulating that prices would be translated from “base points” to the Brazilian currency, in accordance with the closing quotation of the official exchange rate with the dollar. It worked, and the live cattle market was able to flourish. The interesting point in the story was that the Central Bank of course knew what we were doing, but pretended nothing was happening. It is an example of “don’t ask, don’t tell”. If BM&F Bovespa would ask for permission, the Central Bank would have to deny it. Since there was no formal request, ordinary business followed.

The world experience shows that several commodities and financial instruments are possible to be negotiated through the futures market. There are no precise formulas to indicate ex ante which commodities or financial instruments will succeed. The exchanges, after undergoing the huge investments for the building, trading pits, advertisement, organization, clearing houses, and other areas, have considerable economies of scope for launching new contracts. The big problem, however, is not how to design a new contract. The real problem is how to acquire liquidity, how to have a substantial number of hedgers and speculators engaged in daily negotiations. The development of live cattle futures market is a case study on how to create a trade environment. To conclude, this paper is part of my field of research, which studies the external macroeconomic and institutional factors, and the internal factors of the architectural organization and

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the decision making process of the derivatives exchange in Brazil, with the focus on the causes of the growth and decay of trading in futures and options contracts across the different markets.

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

Augusto Fagundes da Silva dos Santos1 Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana- UEFS [email protected]

Resumo O objetivo deste trabalho foi analisar as principais características do fornecimento de crédito a juros pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia entre os anos de 1701 e 1777. A ausência de instituições financeiras e a escassez monetária bastante acentuada no período colonial fizeram do crédito um elemento fundamental para a produção e a circulação de mercadorias. A Misericórdia baiana funcionou como importante instrumento para financiar diversos tipos de atividades econômicas, tais como: produção açucareira e demais culturas como o fumo e a mandioca, criação de gado vacum, comércio varejista ou de “portas abertas”, o tráfico atlântico de escravos e a produção de subsistência. Seu papel na economia baiana setecentista pode ser atestado pela diversidade de seus devedores. A irmandade emprestou a juros a indivíduos de diferentes camadas sociais. Seu numerário não era restrito aos seus confrades nem aos grupos mais abastados da sociedade baiana. Emprestava a todos que comprovassem meios de honrar suas dívidas. Palavras-chave: Santa Casa de Misericórdia, Crédito, Bahia colonial.

Abstract The objective of this study is to analyze the lending with interest of the Santa Casa de Misericordia da Bahia between the years 1701 and 1777. The absence of financial institutions combined with monetary shortages during the colonial period made this credit a key element for the production and circulation of goods. The Bahian Santa Casa worked as an important tool to finance various types of economic activities, such as sugar, tobacco, and cassava production, cattle breeding, retailing, the Atlantic slave trade, and subsistence agriculture. Its role in the eighteenth-century Bahian economy can be attested by the diversity of its debtors. The brotherhood loaned at interest to individuals from different social classes. Its credits were not restricted to its brethren or to more affluent groups of Bahian society. It lent to all credit-worthy borrowers. Keywords: Santa Casa de Misericordia. Credit. Colonial Bahia.

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Professor Substituto da Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS. E-mail: [email protected]

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

O fornecimento oficial de crédito antes e durante o período pombalino

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s Santas Casas de Misericórdia e demais irmandades religiosas existentes no Brasil colonial, assim como suas congêneres metropolitanas realizavam a atividade de concessão de empréstimos a juros. A rigor, as ordenações do reino e a lei canônica condenavam este tipo de atividade, sendo passíveis de julgamentos tanto pelos tribunais eclesiásticos quanto pelos tribunais seculares. Na prática, entretanto, a atividade creditícia estava em plena expansão ao longo do século XVIII em grande parte do Império português devido ao desenvolvimento das atividades mercantis e à escassez pecuniária.2 A própria legislação portuguesa protegia cada vez mais as atividades relacionadas ao comércio e ao crédito.3 Isabel Sá considera que o dinheiro dessas instituições possuía um estatuto diferenciado: Os estudos feitos para o século XVII demonstram sem margem para dúvidas que era prática corrente. Embora não estritamente lícito, o dinheiro das Misericórdias possuía um estatuto especial: pertencia aos mortos, era aplicado em benefício das suas almas, e, ainda que em menor grau, na cura das almas e corpos dos pobres, ainda sacralizados. (SÁ, 2001, 347)

As irmandades tanto emprestavam como tomavam dinheiro a juros entre si. Os juros oficiais eram de 6,25% ao ano, a Misericórdia da Bahia seguiu a risca a legislação, não emprestando a valores diferentes do permitido. Apenas 2 Cf. AMORIM (2006, 693-729). 3 Carta Régia de 29 de Setembro de 1756 que autoriza o empréstimo de dinheiro a juros dos cofres da Misericórdia e de outros lugares pios da cidade do Porto às pessoas que quisessem entrar na Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro; Alvará de 17 de Janeiro de 1757, que proíbe o empréstimo de dinheiro a juros superior a 5% ao ano, exceto para a atividade comercial.

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as irmandades gozavam do privilégio de contrair dinheiro a juros mais baixos. Estas conseguiam empréstimos a juros de 5% ao ano mesmo antes do decreto de D. José I em 17 de janeiro de 1757 diminuindo a taxa de juros oficial de 6,25% para 5% anuais. (RUSSEL-WOOD, 1981, 151) Não encontramos relatos de nenhum decreto régio obrigando o empréstimo a juros menores às irmandades e confrarias. O que havia, era uma prática comum das irmandades religiosas no período colonial de emprestarem mutuamente a juros diferenciados. Em uma passagem da Conta dos Patrimônios e Rendimentos, José da Affonseca Lemos, chefe da investigação contábil nos cofres da Misericórdia baiana entre os anos de 1754 e 1755, ao apresentar os rendimentos anuais da irmandade decorrente de juros, arrendamentos, aforamentos e alugueis, chama atenção para possíveis inexatidões dos valores apresentados, pelo fato de alguns imóveis e terras estarem desocupados e das irmandades terem o privilégio na aquisição de dinheiro a juros de 5% ao ano. Este rendimento não infalivelmente certo, assim porque se costuma dar o drº as Religioens e irmandades, a razão de 5 por 100, as cazas nunca estão completas de alugadores, e alguas terras desertas, como porq´ toda esta cobrança (...), e falível de que se perde parte e se execitão litígios sobre sua Recadação, com que cresce a despeza.4

Além de menor taxa, as irmandades tomadoras de dinheiro, não precisavam apresentar fiadores, nem hipotecar seus bens como garantia de pagamento, enquanto que os demais tomadores, para obter êxito na solicitação de crédito apresentavam no mínimo dois fiadores, um para o valor principal e um para os juros, além de oferecer bens como garantia. Vejamos um contrato 4 Conta dos patrimônios e rendimentos que administra a Santa Casa, calculada no ano de 1754. Rendimento annual que deve ter esta consignação. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. (1754-1755), livro nº 210.

de empréstimo que exemplifica essas exigências: Deve o Cappitam Mor João Teles Machado Soares 600$000, alias a Vª, sua mulher D. Tereza Eugenia Maria de Menezes a fl. 37 por escritura de 23 de Dezembro de 1736, com hipoteca em seus bens, e fiadores, Jerônimo Sodré Pereira e Antonio Frz´ da Silva, executa por esta quantia a dita Vª.5

Esse contrato de empréstimo é típico do século XVIII, ou seja, o devedor, neste caso o Capitão Mor João Teles Machado Soares, foi obrigado além de apresentar dois fiadores, um para o valor principal, Jerônimo Sodré Pereira e outro como fiador dos juros, Antonio Freitas da Silva, necessitou hipotecar seus bens. Além disso, completa o padrão de contrato de empréstimo da Santa Casa baiana no século XVIII, o fato da instituição ter recorrido à justiça para recebimento da dívida, isto foi extremamente comum, principalmente na segunda metade dos setecentos. Em geral o valor dos bens hipotecados eram maiores do que a quantia emprestada, sendo muito comum, o mesmo devedor tomar mais de uma vez dinheiro emprestado, dando como garantia o mesmo bem. Não foi este o caso de João Teles que só aparece uma vez nos registros contábeis, talvez ele até almejasse solicitar um novo empréstimo, mas não possuía mais nenhum bem valioso para hipotecar. Verificamos quando se tratava de devedores mais ricos, o bem a ser hipotecado aparecia indicado no contrato, como no exemplo a seguir: Deve o Cappm. Antonio Alvarez Pinto pelo principal a que se obrigou por Caetano Machado de Almeida como consta deste livro para cuja segurança hypothecou o Engenho do Tanque de que procede esta divida por Escriptura otorgada na Nota do Tabeliam Manoel 5 Conta dos patrimônios e rendimentos que administra a Santa Casa, calculada no ano de 1754. (1754-1755), livro nº 210. Relação dos patrimônios bem e mal passados que existem por obrigações feitas até o ano de 1744 no livro de principais. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

Antº Camppelo em 11 de Mayo de 1757........... ..........2:000$000.6

Pode-se observar que neste contrato aparece explicitado o bem hipotecado por ocasião posterior a aquisição do empréstimo. Foi tomado à Santa Casa em data anterior a 11 de Maio de 1757 o valor de 2:000$000 réis, por Caetano Machado de Almeida, por algum motivo que não aparece exposto no documento, o devedor originário não havia honrado os compromissos anuais referentes aos juros e a Santa Casa recorreu ao fiador, o capitão Antônio Álvares Pinto que se comprometeu a pagar a dívida e deu como garantia um de seus bens, no caso, o Engenho do Tanque. Esse contrato difere dos demais contratos cujo devedor ou fiador são provavelmente mais pobres, como no caso do capitão mor João Teles Machado Soares, cuja hipoteca ocorre referente a todos os seus bens, não havendo necessidade de detalhamento, aparecendo apenas a seguinte frase: com hipoteca em seus bens. Segundo Russel-Wood essas precauções por parte da Santa Casa da Bahia no empréstimo de dinheiro não era uma prática comum pelo menos até meados do século XVII. Ao que tudo indica, começou a ser realizada justamente no momento em que a irmandade passava por grandes dificuldades para pagar suas despesas. A irmandade estipulou que os tomadores em potencial deveriam apresentar fiadores adequados a dar como garantia imóveis situados dentro dos limites da cidade. Embora mais tarde esses serviços de agência bancária primitiva, prestados pela Misericórdia, viessem a ser objeto de abusos pelos tomadores e até pelos próprios membros do corpo de guardiães, parece que na metade do século XVII as condições foram preenchidas. (RUSSEL-WOOD, 1981, 73) 6 Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511, p. 454. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

Apesar da maior facilidade de acesso ao crédito por parte das irmandades, a Santa Casa da Bahia provavelmente não foi devedora de dinheiro a juros a nenhuma delas. Pelo menos é o que podemos constatar a partir de seus registros contábeis. Neles, encontramos a instituição apenas como credora de várias instituições religiosas, mostrando a imponência e importância econômica de uma das mais ricas irmandades religiosas do Brasil colonial.

A Misericórdia e seus aforamentos A Santa Casa não dependia financeiramente do capital das outras irmandades, mas dependia de imóveis de confrarias, de particulares e até mesmo do Senado da Câmara para a realização de suas atividades. Encontramos seis pagamentos anuais à aforamentos de imóveis dentro dos limites da cidade de Salvador. Paga aos religiosos de S. Bento das casas da rua larga o foro de 402$400. Paga aos religiosos do Carmo cada anno q importa por isso mais ou menos 36$000. Que paga de foro aos Conegos da Sé 1$140. Paga ao Senado da Câmara das casas do guindaste da Praça o foro de 50$000. Paga a Manoel Carneiro de Sá o foro de casas da saúde 8$500. Paga de foro a Cappela de Diogo Frz´o cego, pelas casas que lhe tomou em q´ se fes o Recolhimento cada hum anno 68$750.7

Como podemos perceber, três referiam-se respectivamente a imóveis pertencentes aos religiosos de São Bento, do Carmo e da Sé. A relação dessas três instituições religiosas baianas com a Misericórdia ultrapassou os contratos de aforamento. Todas eram devedoras de dinheiro a juros à Santa Casa. Acreditamos que os vínculos fortalecidos pela frequente relação decorrente da utilização de imóveis dessas instituições por parte da Misericórdia, facilitaram o acesso dessas 7 Conta dos patrimônios e rendimentos que administra a Santa Casa, calculada no ano de 1754. (1754-1755), livro nº 210. Despesa anual que tem esta consignação. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Documento não Paginado.

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ao crédito. Como dissemos, além dessas, a Misericórdia da Bahia aforou casas do Senado da Câmara no valor de 50$000 réis, aforou também imóveis de indivíduos, Manoel Carneiro de Sá e Diogo Freitaz. Este último determinou em testamento que o pagamento do foro após a sua morte se destinasse às despesas com celebrações de missas. Esse aforamento teve origem com a construção do Recolhimento para moças com o legado deixado por João de Mattos de Aguiar em 1700. A Santa Casa aforou as casas do referido Diogo com o objetivo de utilizar apenas o terreno. Com o provável consentimento do proprietário e do bem sucedido acordo entre as partes sobre o valor do foro, a instituição ampliou a área para a construção do Recolhimento. A documentação possibilitou algumas constatações. A primeira delas é que no geral, salvo exceção8, as irmandades baianas tiveram boas relações entre si ao longo do século XVIII. A segunda é que a Misericórdia aforou muitas terras e casas para outrem, porém, não foi uma grande foreira. Os poucos aforamentos solicitados a terceiros, provavelmente decorreram da ausência de imóveis ociosos, ou até mesmo, por opção da mesa dirigente, na busca por melhor localização, terrenos planos ou maiores. Uma das várias medidas administrativas ocorridas no período pombalino foi a já mencionada redução da taxa de juros oficial em 1757. Essa iniciativa se deve a anos de pressão de vários segmentos sociais que tinham uma extrema dependência do crédito para a realização de seus negócios, tais como: comerciantes, senhores de engenho e lavradores. Isso não significa que indivíduos vinculados a outras atividades econômicas não fossem dependentes do crédito. A 8 A Misericórdia acionou a justiça uma única vez contra irmandades. Foi contra a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé por causa de 1:600$000 que esta devia a juros.

sociedade brasileira do período colonial tinha em maior ou menor grau uma dependência crônica do crédito, fomentada ainda mais pela grave escassez pecuniária. A redução da taxa de juros beneficiou os devedores, mas prejudicou as credoras oficiais9, dentre elas a Misericórdia que viu seu lucro sobre a concessão de crédito a juros diminuir, sacrificando de alguma maneira parte de suas atividades de cunho social. Segundo Stuart Schwartz a redução dos juros de 6,25% para 5% teve como objetivo, além de atender aos pedidos de alguns segmentos sociais, estimular o principal setor da economia colonial. “As restrições da Igreja à usura estabeleciam o máximo de 6,25% para a taxa legal de juros; esta permaneceu neste nível até 1757, quando, em uma tentativa de estimular a economia açucareira e atender as queixas dos senhores de engenho, foi baixada para 5%.” (SCHWARTZ, 1988, 179) Os juros venciam anualmente, isso pode ser explicado pelo ritmo mais lento da economia colonial em relação à economia capitalista atual, e eram cobrados na modalidade juros simples, sem a incidência de juros sobre juros. O trecho abaixo demonstra essas características da concessão de crédito por uma instituição autorizada no século XVIII. O Coronel Garcia d’Avila Pereira deve de Principal como consta deste Livro Nº 257, cujos juros se achão pagos até 28 de 7bro de 1749..................................800$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro de 1750................................................50$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro 9 Denominei credoras oficiais as instituições que respeitavam o teto estabelecido pela Coroa. Pois sabe-se que havia um outro circuito de acesso ao crédito fornecido principalmente por Negociantes a juros muito mais elevados.

de 1751................................................50$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro de 1752................................................50$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro de 1753................................................50$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro de 1754................................................50$000 De juros de anno venc. Em 28 de 7bro de 1755................................................50$000 De juros de 3 annos venc. Em 28 de 7bro de 1758..........................................150$0 00 De juros de 2 annos venc. Em 28 de 7bro de 1760............................................50$00 0 De juros de 3 annos venc. Em 28 de 7bro de 1763.......................................150$00010

Trata-se do empréstimo de 800$000 réis contraído pelo Coronel Garcia d’Avila Pereira à Misericórdia da Bahia em data que não conseguimos identificar no documento. Porém, fica explícito, que o pagamento era realizado anualmente e que o referido devedor estava com a quitação dos juros atualizada até 28 de setembro de 1749. Houve atrasos de três anos em duas ocasiões, entre 1755 e 1758 e novamente entre anos de 1760 e 1763. Como se pode observar, nos dois períodos em que houve atraso de pagamento dos juros, não incidiu juros sobre juros, apenas acumulou o pagamento dos juros atrasados, ao invés de 50$000 réis correspondentes a 6,25% ao ano, se pagaria 150$000 réis dos três anos. É importante ressaltar que o empréstimo de dinheiro, apesar de cada vez mais necessário diante da tendência de dinamização econômica, ainda não era algo plenamente aceito no contexto do século XVIII. 10 Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511, p. 439. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

O volume de dinheiro emprestado A Santa Casa de Misericórdia da Bahia concedeu crédito entre os anos de 1701 e 1777 a um universo de setecentos e trinta e sete pessoas, totalizando a quantia de 887:894$372 contos de réis.11 Este montante deveria produzir um retorno de quase 54 contos de réis ao longo dos setenta e sete anos analisados. Contudo, o rendimento esperado não retornava por inteiro, o atraso e a insolvência diluíram parte dos ganhos que se poderia auferir. A taxa de inadimplência no período estudado segundo nossos cálculos foi em torno de 15,2%, incluindo nesse percentual os devedores com dívida total ou parcial. Portanto, apesar dos atrasos, a instituição recebeu o pagamento em 84,8% do universo mencionado acima. Em muitos casos a irmandade recorreu à justiça para tentar obter êxito nos processos de cobrança, computamos 101 casos de execução na justiça para pagamentos de dívidas entre os anos de 1701 a 1777. A soma da dívida desses indivíduos chegou a 107:459$238 réis, ou seja, 12,1% do total emprestado no período. Portanto, podemos considerar como maus pagadores da irmandade, apenas 13,7% do universo de 737 tomadores. Vejamos um documento que representa uma execução judicial da irmandade. Em 27 de Fevereiro de 1768, carrego | em receita viva ao nosso | Irmão Thesoureiro Manuel José | de Carvalho quatro contos de réis, | que recebeo por mão de Procurador | desta Santa Casa | Francisco Rodrigues Cavalleiro , | que tantos cobrou do cofre da | Alfandega, por mandado do | Dezor. Torres, de que é Escrivão Antonio | Barbosa de Oliveira, por | virtude da sentença que esta | Santa Casa alcançou contra | Caetano Antunes de Carvalho e | o Padre Faustino Antunes de Carvalho, | annuladores do testamento | com que havia fallecido | seo [Pai] José Antunes Carvalho, | cuja 11 Montante equivalente à soma de todos os valores encontrados nas diversas fontes compulsadas.

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quantia se havia depositado no referido cofre | da Alfandega, por mandado | dito [ilegível] na obrigação | que fez a Francisco Gomes | Loures, como testamenteiro do | referido defunto, a qual quantia | se recebeo por conta da | quarta parte do remanecente do dito defunto, que | em verba do seo testamento | deixou para se pôr a | juros, para o Hospital desta.12

Nesse caso a origem da dívida com a irmandade não foi por empréstimo, mas por doação. Os filhos do doador falecido, o negociante José Antunes de Carvalho se negaram a pagar a benfeitoria do pai prevista em seu testamento que era uma considerável doação para ser aplicada no hospital da irmandade. A Misericórdia então recorreu à justiça para receber esse legado que lhe era de direito. A dívida foi paga em quatro parcelas, sendo o valor da última parcela 4:000$000 réis. Disputas como esta eram cada vez mais comuns na segunda metade do século XVIII. Acreditamos que a ação da justiça não conseguiu fazer cumprir todas as execuções de dívidas da Misericórdia baiana. Podemos observar que a taxa de inadimplência que figurou em torno dos 15,2% foi muito próxima dos 13,7% de devedores acionados na justiça, o que nos remete a pensar que quem de fato objetivava pagar a dívida assim o fez, mesmo com atrasos, sem precisar do intermédio judicial. Na sociedade baiana do século XVIII os atrasos de pagamentos eram muito frequentes. A falta de liquidez da economia era um dos principais motivos desses atrasos, e muitas vezes a moeda era substituída por mercadorias ou bens imóveis como forma de pagamento. O produto mais cobiçado era o açúcar, pois era facilmente aceito como moeda de troca. O problema ocasionado pela escassez monetária e o consequente pagamento em mercadorias é que muitas vezes, por questões climáticas ou problemas financeiros 12 Livro de Receita dos Principais que vem a este cofre- ASCMB (17571777), nº 1015, p. 37.

do devedor, a quitação da dívida passava para a safra seguinte e, evidentemente, a depender do tamanho da dívida, trazia prejuízo para a irmandade. O fato é que esses fatores econômicos e climáticos fizeram com que tomadores de “boa índole”, representando 1,5% puxassem a taxa de inadimplência para cima. Alguns desses devedores que atrasavam o pagamento, não tinham o histórico de maus pagadores, por isso outro fato comum era a quitação de vários anos de juros atrasados de uma só vez. Vejamos os números: Dos 101 devedores acionados judicialmente, apenas 38 pagaram as dívidas. Os demais 63 devedores esvaziaram o cofre da irmandade em 61:295$642 réis, este foi o montante considerado perdido entre 1701 e 1777. Portanto, a Misericórdia recuperou 46:163$596 réis, ou seja, 43% do valor recorrido na justiça. Em termos percentuais o valor perdido que seria de 12,1% em relação ao total de empréstimos, após as ações em juízo foi reduzido para 6,9%. Considerando a morosidade dos processos, o desgaste sofrido pela instituição para enfrentá-los e os seus altos custos13, constatamos que os 5,2% de capital recuperado no período não foi um grande negócio. O tempo médio estipulado para pagamento da dívida variava muito conforme a negociação entre as partes e o grau de intimidade entre o devedor e a Santa Casa. A instituição se preocupava muito com o recebimento dos juros, mas havia certo descuido quanto à cobrança do capital principal. Relações muito próximas com confrades e com outras irmandades prejudicavam, por vezes, o desempenho econômico dessas confrarias. Na maioria dos casos, o recebimento dos juros se dava após o primeiro ano, porém, encontramos casos em que a instituição esperou calmamente, cerca de sessenta anos sem sequer 13 Os custos de um processo não se resumiam aos 10% do valor cobrado em juízo, incluía também despesas com profissionais da área jurídica.

acionar a justiça. Nesses processos pagos com bastante atraso, em geral quem pagava o débito eram viúvas, filhos ou netos do devedor. Apesar desses atrasos, o prazo médio concedido pela irmandade para o início do pagamento da dívida não era pequeno, cerca de 12 anos. Mesmo com este prazo, os devedores iniciavam o pagamento em média 7 anos e 4 meses após o vencimento. Como já mencionado, uma característica importante que permeia as relações econômicas da Bahia colonial eram os pagamentos com mercadorias, sendo o açúcar um dos principais meios de troca. Acreditamos que a Santa Casa baiana aceitava o pagamento da dívida em produtos, porém com valor depreciado, lucrando assim duplamente, além dos juros pelo dinheiro emprestado, recebia a diferença entre o valor depreciado e o valor de mercado. Vejamos este exemplo. “Dona Maria de Aragão, viúva do capitam José de Brito, em 11 de Junho de 1741 pagou os juros vencidos em 24 de Julho de 1740 com uma caixa de açúcar 35$120.14 Os dados encontrados nos documentos contábeis da confraria nos permitiu calcular a média de uma caixa de açúcar na década de 1740 em torno de 48$000 reis. Utilizando este valor como base e comparando com o valor aceito como pagamento pela Misericórdia no caso de Maria de Aragão, percebe-se que a irmandade depreciou a caixa de açúcar em 27%. Russel-Wood menciona uma carta resposta do Conde de Sabugosa ao rei referindo-se à pressão que os credores faziam aos devedores para a venda rápida de mercadorias, que chegavam a ser vendidas por um valor três a quatro vezes menor. Em 1729 o Conde de Sabugosa, em resposta a uma carta que D. João se queixava do colapso da economia baiana, informou ao rei que as vendas compulsórias de propriedades para satisfazer a credores faziam com que mui14 Livro borrador de conta corrente de juros, foros e consignação da Santa Casa (1726-1777) livro n º 511.

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

tas fazendas fossem vendidas por três ou quatro vezes menos do que seu valor de mercado. A falta de liquidez era tão grande que as vezes não havia nem mesmo interessados na compra de boas fazendas. (RUSSEL-WOOD, 1981, 79)

Movimentação financeira nos cofres da confraria A Santa Casa de Misericórdia da Bahia viveu oscilações do ponto de vista financeiro ao longo do século XVIII. As três primeiras décadas, apesar de apresentar uma leve curva de declínio, foram marcadas pela estabilidade, ou seja, pela manutenção do volume de empréstimos nos padrões do século anterior. No final da terceira década, impulsionada pelos rendimentos da fortuna do testador João de Mattos de Aguiar15, começaram fortes investimentos no setor social, em obras de infraestrutura e na ampliação de oferta de crédito a juros. A década seguinte foi marcada pela consolidação dessa página positiva da história da irmandade. Elementos internos como a boa provedoria do padre Francisco Martins Pereira, juntamente com fatores externos como a queda da produção açucareira, tendências inflacionárias tanto nos preços dos alimentos como no preço dos escravos decorrentes da corrida para as Minas, fizeram com que os cofres da confraria fossem cada vez mais procurados por indivíduos de diversas categorias sócio-profissionais. A demanda das Minas por escravos “baianos”, o preço destes, e medidas adotadas para evitar a falta de escravos foram bem tratadas por Cândido Domingues: Havia, no entanto, outra questão que fazia intensificar os laços comerciais com a Mina e atraia também a atenção dos cariocas, como vimos na carta acima. Corria entre, um traficante e outro, a fama de “que os negros da Costa da Mina, para as minas são os mais procurados”. Uma propaganda dos comerciantes 15 Maior doador da história da Santa Casa da Bahia. Deixou em 1700 uma fortuna avaliada em 217 contos de réis.

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que fazia tanto impacto entre os senhores de escravos sobre as aptidões dos africanos que rendeu proibições de se enviar por ano mais de duzentos escravos de Salvador para a região das minas gerais. O objetivo era evitar a “falta de escravos para as fábricas dos açúcares e [dos] tabacos” que já vinham sentindo “os preços exorbitantes porque se vendem”, pois o esplendor dourado que brotava das minas tornavam-nas ávidas por braços escravos – de preferência daqueles que tinham o feitiço para descobri-lo: os minas. (SOUZA, 2011)

Esses diversos fatores deram estabilidade econômica à irmandade durante toda a década de 1730 e em grande parte da seguinte, quando muitas das dívidas adquiridas no decênio anterior começaram a serem pagas. Os anos de 1750 são os divisores de águas para a irmandade, momento de redução nos ingressos de novos confrades. Essa redução refletiu-se negativamente no volume de doações. Não bastasse a perda de receitas, começou a brotar no seio da sociedade baiana setecentista, uma série de denúncias contra alguns dirigentes da Mesa, dentre as queixas mais comuns estavam à facilitação de acesso ao crédito para indivíduos mais próximos e os gastos desnecessários.(RUSSEL-WOOD, 1981,91 ) As polêmicas que rodeavam os muros da Santa Casa culminaram na investigação contábil, já mencionada ao longo deste trabalho, em 1754. Essa auditoria foi o ápice da perda de credibilidade da confraria no século XVIII. A baixa procura de novos confrades dividiu de uma vez por todas, espaço com a crise financeira, completamente estabelecida após a redução da taxa de juros oficial, que certamente veio beneficiar futuros devedores, e por outro lado, baixar os investimentos de credoras como a Santa Casa. Com a redução da taxa de juros oficial de 6,25% para 5%, começou a ser cada vez mais praticado pela confraria o aluguel de imóveis ao invés do empréstimo de dinheiro a juros. A falta de numerário e o desestímulo resultante da queda de

rentabilidade da atividade creditícia fizeram com que a partir de 1757 raramente o volume de empréstimos ultrapassasse os dez contos de réis ao ano. O Gráfico 1 facilita a visualização do volume total de empréstimos em termos percentuais, divididos por décadas. Gráfico 1: Volume de empréstimos por décadas (1701-1777) % 30,0%

46,5% do valor total emprestado para o período estudado, ocorreram nessas duas décadas. De fato, mais precisamente de 1730 a 1747, foi o melhor momento financeiro da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no século XVIII. Após esse momento, exceto um ano ou outro, o desempenho financeiro da irmandade não foi mais o mesmo até 1777. A crescente redução na quantidade de crédito concedido a partir da década de 1750 deu fortes sinais de que o declínio que ainda estava por vir no final do século seria ainda mais agudo.

A década de 1740, a de maior volume de empréstimos for20,0% necido nos setenta e sete anos em 15,0% análise, com 28,2% do total, contrasta fortemente com a década se10,0% guinte, apresentando 11,9% de con5,0% cessão de crédito. Este percentual da década de 1750 foi muito mais 0,0% 1711-1720 1731-1740 1741-1750 1701-1710 1721-1730 1751-1760 1761-1770 1771-1777 próximo aos padrões de empréstimos das três primeiras décadas, que Fontes: Borrador do Livro de Conta Corrente de tiveram respectivamente, peso no total de emJuros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511; Livro de razão (dever e haver) de todo o dinheiro que préstimos de 11,2%, 8,3% e 7,6%. Isso pode inestá a juros por consignação da casa (1688-1756), livro nº duzir alguns a pensar que o pico de crescimento 307; Livro da conta corrente da consignação da casa (1726na oferta de crédito, foi apenas um surto positivo 1969), livros nº 746 e 747; Livro de juros da consignação da de menos de duas décadas, e que depois desse casa (1700) livros nº 308, 309, 310; Livro de contas de juros período, as cifras tenderiam ao retorno dos pade diversos devedores antigos (1701-1772) livro nº 1360; Lidrões anteriores. Acreditamos que não, a queda vro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1723-1757), livro nº 1014; Livro de receita dos principais da da década 1750 não foi um retorno aos padrões casa (1757-1777), livro nº 1015; Livro de toda a despesa e de “normais”, foi de fato o começo do fim da histótodo o dinheiro que vier a esta Santa Casa (1723-1770), livro ria bem sucedida da Misericórdia no que concernº 1017; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem ne a atividade de concessão de crédito a juros. a este cofre (1770-1777), 1018; Livro de dever e haver dos 25,0%

juros que a Santa Casa tem como legatária de vários defuntos (1704-1724), livro nº 556; Livro de razão do cofre (17191732), livro nº 310; Livro de juros da consignação do cofre. Juros do dinheiro principal ao defunto de João de Matos de Aguiar (1702-1834), livros nº 311, 312, 313.

Verificamos claramente pelo Gráfico 1 que as colunas que evidenciam maior volume de crédito situam-se nos decênios de 1730 e 1740,

O que nos faz pensar não em um retorno aos padrões de empréstimo do início do século XVIII, mas em um acentuado declínio a partir do ano de 1750, são os números percentuais do montante total de empréstimos e o número de contratos, que como mostraremos no Gráfico 2. Apesar da diminuição da oferta de crédito, a quantidade de tomadores se manterá no mesmo História e Economia Revista Interdisciplinar

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A Misericórdia da Bahia e o seu sistema de concessão de crédito (1701 – 1777)

nível ou em alguns casos, até mesmo aumentará, mostrando que após a crise, a irmandade começou a racionar o seu capital. Retomando a participação do volume de crédito em cada década na soma total de empréstimos, perceberemos a queda brusca na oferta de crédito após a crise financeira da confraria nos anos de 1750. Como já mencionado, esta década representou apenas 11,9% do total de empréstimos para o período, uma redução de 57,8% em relação ao período anterior. Não bastasse esta grande diminuição, a década de 1760 continuou contribuindo para a queda e representou 10,3%. O último período estudado, apesar de compreender 7 anos, teve de fato um péssimo desempenho, ínfimos 4,2%. A queda acumulada no volume de empréstimos após 1750 foi de exorbitantes 85,1%. Os números inteiros ou relativos dos empréstimos por decênios não dão conta isoladamente da afirmação que fizemos acima do profundo declínio financeiro da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no século XVIII. Acreditamos por isso ser necessário analisar os dados referentes a quantidade de contratos no mesmo período. Vejamos o gráfico a seguir. Gráfico 2: Contratos de empréstimo por décadas (1701-1777) 160 140 120 100 80 60 40 20 0

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1751-1760

Fontes: Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511; Livro de razão (dever e haver) de todo o dinheiro que está a juros por consignação da casa (1688-1756), livro nº 307; Livro da conta corrente da consignação da casa (17261969), livros nº 746 e 747; Livro de juros da consignação da casa (1700) livros nº 308, 309, 310; Livro de contas de juros de diversos devedores antigos (1701-1772) livro nº 1360; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1723-1757), livro nº 1014; Livro de receita dos principais da casa (1757-1777), livro nº 1015; Livro de toda a despesa e de todo o dinheiro que vier a esta Santa Casa (1723-1770), livro nº 1017; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1770-1777), 1018; Livro de dever e haver dos juros que a Santa Casa tem como legatária de vários defuntos (1704-1724), livro nº 556; Livro de razão do cofre (17191732), livro nº 310; Livro de juros da consignação do cofre. Juros do dinheiro principal ao defunto de João de Matos de Aguiar (1702-1834), livros nº 311, 312, 313.

O número de contratos acompanhou de perto o volume de dinheiro emprestado pelo menos até o final da década de 1720. Dessa forma o aumento do número de contratos significou a ampliação do crédito para mais pessoas, assim como, a diminuição do crédito era sinônimo de redução no número de tomadores. Portanto, uma eventual ampliação na quantidade de dinheiro emprestado, não significava aumento no valor médio dos empréstimos, que permaneceu muito parecido entre 1701 a 1730. Na primeira torre do gráfico, por exemplo, representando os anos de 1701 a 1710, encontramos 90 contratos de empréstimos. Somando-se as dívidas desses tomadores chega-se a cifra de 99:444$169 réis, o que resulta em uma média um pouco superior a 1 conto e cem mil réis. Média muito parecida com os resultados das próximas duas torres do gráfico. Entre 1711 e 1720, por exemplo, a Misericórdia emprestou um valor menor, cerca de 73:695$232 réis,

1761-1770

1771-1777

mas o número de contratos tendeu a diminuir quase que na mesma proporção, mantendo assim a média em padrões muito similares à primeira torre. Foram 65 contratos de empréstimos o que deu uma média de 1:133$772 réis. Entre 1721 e 1730 a regra por ora apresentada se manteve. Desta vez a confraria forneceu a quantia a juros de 67:479$972 réis. Esta cifra foi divida entre 62 devedores/contratos16, gerando uma média muito próxima aos períodos anteriores. Foram exatos 1:088$386 réis de média por devedor/contrato. O mesmo não se pode afirmar para o melhor período financeiro da irmandade, as décadas de 1730 e 1740. Nesses anos o otimismo decorrente de boas provedorias e da grande entrada de capitais, fizeram com que aumentasse o número de empréstimos, esse crescimento por sua vez não diminuiu a média por contrato que pelo contrário, cresceu consideravelmente devido ao grande volume de crédito concedido. Na década de 1730, por exemplo, o número de contratos aumentou cerca de 58%, saindo de 62 contratos na década anterior para 98 contratos, enquanto que o volume de empréstimos cresceu 140,7%, saindo de 67:479$972 réis para 162:484$670 réis. Estes números elevaram a média por contrato de empréstimo na década de 1730 para 1:658$006 réis. Essa ainda não seria a melhor média de empréstimo por devedor para o século XVIII, o melhor ainda estava por vir na década seguinte. A partir de 1741 houve um salto no valor dos empréstimos, ultrapassando os já altos números do período anterior. O número de tomadores teve um crescimento importante de quase 30%, saindo de 98 para 127 contratos. E a cifra concedida a juros cresceu vertiginosamente, ultrapassando os 250 contos de réis, um crescimento de quase 54,1%. A média por empréstimo 16 Houve alguns remotos casos de uma mesma pessoa aparecer em mais de um contrato de empréstimo.

foi a maior para todo o período analisado, chegando a quase dois contos de réis por devedor. O que estava por vir, no entanto, não era nada parecido com um “boom” econômico vivido pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia nos anos 30 e 40, através do que já foi exposto com base no Gráfico 1, constatamos que a tendência foi de queda contínua da riqueza da confraria e por consequência queda no volume de empréstimos. A redução na média de empréstimos nos anos de 1750 não foi, no entanto tão perceptível como nas décadas seguintes. A irmandade ao perceber o pouco capital disponível, reduziu a concessão de crédito. Entre 1751 e 1760 a confraria emprestou em números inteiros 105:659$430 réis, uma redução de 57,8% em relação ao período anterior, sendo 76 contratos firmados a partir deste valor, o que configura numa redução de contratos no mesmo período de 59,8%. Essa proporção entre quantidade de dinheiro concedido e número de contratos fez com que a média da década de 1750 mantivesse elevada, superior a 1 conto de réis. A partir de 1761, a relação entre volume de dinheiro emprestado e número de contratos demonstra que a procura por crédito continuava elevada, mas a Misericórdia não tinha mais o fôlego financeiro necessário para dar conta dessa demanda. Por isso, uma análise apenas do número de empréstimos passaria a falsa impressão de que o momento era positivo, pois a quantidade de contratos aumentara em relação ao período anterior, na verdade, deve ter ocorrido uma pressão por parte da sociedade baiana, nomeadamente dos senhores de engenho e da elite camarária para que os empréstimos continuassem ocorrendo em ritmos parecidos a épocas anteriores. A medida empreendida pela confraria não foi mais diminuir o número de tomadores, mas, reduzir o

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valor por contrato, o que fez a média do crédito por tomador declinar, principalmente na última década estudada. O volume de empréstimos entre 1761-1770 havia caído para 91:453$120 réis, uma redução de 13,5% na comparação com o período anterior, mas o número de contratos, pelo contrário, subiu de 76 para 139, aumento de praticamente 83%, isso fez a média por contrato descer de 1:390$255 réis na década de 1750 para 657$936 réis. Quadro 1: Valor médio dos empréstimos por década 1701-1710

1:104$935

1711-1720

1:133$772

1721-1730

1:088$386

1731-1740

1:658$006

1741-1750

1:971$545

1751-1760

1:390$255

1761-1770

657$936

1771-1777

466$144

Média por contrato (1701-1777)

1:204$741

Fontes: Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511; Livro de razão (dever e haver) de todo o dinheiro que está a juros por consignação da casa (1688-1756), livro nº 307; Livro da conta corrente da consignação da casa (1726-1969), livros nº 746 e 747; Livro de juros da consignação da casa (1700) livros nº 308, 309, 310; Livro de contas de juros de diversos devedores antigos (1701-1772) livro nº 1360; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1723-1757), livro nº 1014; Livro de receita dos principais da casa (1757-1777), livro nº 1015; Livro de toda a despesa e de todo o dinheiro que vier a esta Santa Casa (1723-1770), livro nº 1017; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1770-1777), 1018; Livro de dever e haver dos juros que a Santa Casa tem como legatária de vários defuntos (1704-1724), livro nº 556; Livro de razão do cofre (1719-1732), livro nº 310; Livro de juros da consignação do cofre. Juros do dinheiro principal ao defunto de João de Matos de Aguiar (1702-1834), livros nº 311, 312, 313.

A mesma relação entre volume de empréstimos e número de tomadores de dinheiro a juros se mantém na década de 1770. A pouca oferta de crédito não significou poucos devedores. O montante emprestado nesse período reduziu-se ainda mais, fechou em 37:291$563 réis, mas o número de tomadores continuou elevado, 80 contratos. Essa relação propiciou uma média muito pequena, a menor em todo o período estu-

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dado de apenas 466$144 reis. O Quadro 1 sintetiza as informações abordadas quanto a média emprestada pela Santa Casa de Misericórdia por contrato. O quadro ao lado e as informações apresentadas ao longo do trabalho evidenciam que na maior parte do tempo a média dos empréstimos figurou acima de 1 conto de réis. O fato de quase 75% dos tomadores pertencerem aos grupos mais abastados da sociedade baiana setecentista contribuiu para essa média permanecer alta na maior parte do tempo. Entretanto, após 1760 foi impossível para a Misericórdia manter a média dos empréstimos a níveis elevados devido a escassez de numerário e a baixa entrada de doações. Como o número de contratos não acompanhou a queda de rendimentos e continuou alto, percebemos que a instituição preservou a boa relação com diversos grupos da sociedade baiana setecentista, mantendo as “portas abertas” para tomadores de camadas sociais mais baixas. Indivíduos que via de regra, contraíam empréstimos entre 50 e 100 mil réis.17

Os maiores tomadores de dinheiro a juros da Santa Casa Consideramos como grandes tomadores aqueles cujos contratos remontaram a cifras acima dos 5 contos de réis. Selecionamos os 10 maiores contratos de empréstimos para o período estudado, enunciados no Quadro 2. A maior dívida anotada nos registros contábeis de 1701 a 1777 da Santa Casa pertenceu ao Capitão-mor Cristovão da Rocha Pita no valor, incluindo os juros, de 9:493$172 réis. O capitão teve uma vida pública ativa na segunda metade do século XVIII, ao todo ocupou oito mandatos como Vereador da Câmara de Salvador entre os anos de 1752 e 1791. 17 A análise de todas as fontes utilizadas para a realização deste trabalho permite esta constatação.

Quadro 2: Os dez maiores contratos de empréstimo da Misericórdia NOME DO DEVEDOR

VALOR DA DÍVIDA

CRISTOVÃO DA ROCHA PITA

9:493$172

PAULO PACHECO

8:435$012

BALTAZAR DE VASCONCELOS

8:000$000

ANA MARIA DA FRANÇA CORTE REAL

7: 293$277

ANTONIO BORGES R.

6:877$340

ANDRÉ DE BRITO DE CASTRO

5:514$240

LUIZ DA ROCHA PITA

5:300$000

FLORINDA DE ARAÚJO DE ARAGÃO

5:300$000

JOÃO MASCARENHAS

5:200$000

ANTONIO JOSÉ DOS REIS PINTO

5:000$000

Fontes: Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511; Livro de razão (dever e haver) de todo o dinheiro que está a juros por consignação da casa (1688-1756), livro nº 307; Livro da conta corrente da consignação da casa (1726-1969), livros nº 746 e 747; Livro de juros da consignação da casa (1700) livros nº 308, 309, 310; Livro de contas de juros de diversos devedores antigos (1701-1772) livro nº 1360; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1723-1757), livro nº 1014; Livro de receita dos principais da casa (17571777), livro nº 1015; Livro de toda a despesa e de todo o dinheiro que vier a esta Santa Casa (1723-1770), livro nº 1017; Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1770-1777), 1018; Livro de dever e haver dos juros que a Santa Casa tem como legatária de vários defuntos (17041724), livro nº 556; Livro de razão do cofre (1719-1732), livro nº 310; Livro de juros da consignação do cofre. Juros do dinheiro principal ao defunto de João de Matos de Aguiar (1702-1834), livros nº 311, 312, 313; Arquivo Histórico Ultramarino- Documentos manuscritos avulsos da capitania da Bahia: Projeto Resgate: Ministério da Cultura; Atas do Senado da Câmara: 17001718/ 1718-1731/ 1731-1750/ 1751-1765/ 1765-1775; Cartas do Senado da Câmara: 1710-1730.

A segunda maior dívida foi de Paulo Pacheco, herdada pela sua viúva Joanna de Araújo e Azevedo, com a quantia de 8:435$012 réis. Não encontramos informações complementares, apenas seus nomes e o valor da dívida. O terceiro maior devedor foi Baltazar de Vasconcelos Cavalcante, contraiu sua dívida em agosto de 1735 no valor de 8:000$000 réis. Foi figura proeminente da Bahia no século XVIII do ponto de vista econômico, social e político. Foi senhor de engenho no partido de Santo Amaro, proprietário do ofício de escrivão da Provedoria da Alfândega, vereador em três oportunidades, nos anos de 1708, 1724 e 1751. Em 1723 elegeu-se Provedor da Misericórdia. Quanto ao quarto maior, não encontramos o nome do tomador originário, apenas da

herdeira da dívida, a viúva Ana Maria da França Corte Real e do seu fiador Manoel Coelho. A dívida atingiu a quantia de 7:293$277 réis. O Sargento-mor Antônio Borges R. que teve como fiador Pedro Correa Soares e dívida de 6:877$340 réis, também fez parte do seleto grupo dos 10 maiores tomadores. Outro importante devedor foi o senhor de engenho, proprietário de alambique e Vereador da Câmara de Salvador em 1750, André de Brito de Castro. Sua dívida por ocasião de sua morte, estava no valor de 5:514$240 réis. Além dele, entra na lista dos maiores devedores, o Coronel Luiz da Rocha Pita, dono da sétima maior dívida no valor de 5:3000$000 réis, contraída em 25 de janeiro de 1746. O Coronel foi proprietário de engenho no partido de Santo Amaro e de alambique em São Brás. Mesmo valor herdou de dívida a viúva Florinda de Araújo de Aragão em 1º de julho e 1750. Completam o elenco dos maiores devedores da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no século XVIII, João Mascarenhas que contraiu empréstimo no valor de 5:200$000 réis em 13 de maio de 1725 e teve como seus fiadores, Francisco de Oliveira Porto e Joseph da Costa Terra, e o 7º Juíz de Fora dos Orfãos, o Doutor Antônio José dos Reis Pinto, no valor de 5 contos de réis. Podemos afirmar que esses maiores devedores aos cofres da Santa Casa de Misericórdia, também eram os melhores pagadores. A irmandade não precisou recorrer a justiça contra nenhum desses 10 contratos acima dos 5 contos de réis. Mesmo as viúvas citadas honraram os nomes de seus maridos e cumpriram com a obrigação junto à irmandade. Os estatutos sociais dos tomadores revelavam-se principalmente no valor e não na obtenção do crédito. O dinheiro da Santa Casa

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estava à disposição de todos os indivíduos não escravos que comprovassem possuir cabedal proporcional ao valor da dívida. Em outras palavras, obter crédito nas mãos da Misericórdia da Bahia não era sinônimo de pertencer aos grupos mais abastados da sociedade baiana setecentista. As maiores dívidas com a Misericórdia da Bahia pertenceram a Senhores de Engenho, ocupantes de cargos públicos da Câmara de Salvador e funcionários régios. Na análise que fizemos das dívidas acima de 1 conto de réis, a única diferença em relação aos 10 maiores tomadores foi a presença de homens de negócio, o que não significa que não tenha ocorrido, pois só obtivemos informações quanto a atividade dos indivíduos em 50% dos casos.

Considerações Finais Diante do que foi mencionado ao longo deste trabalho pode-se concluir que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia foi uma importante instituição financeira do período colonial. Emprestou entre 1701 e 1777 a fortuna de quase 900 contos de reis a mais de 700 tomadores. Realizava sua atividade creditícia sempre respeitando a taxa oficial de juros. Vimos também que as irmandades eram tomadoras e que tinham alguns privilégios, dentre os quais, contrair empréstimos a taxas menores, não necessitar apresentar fiadores e hipotecar seus bens. Diferentemente das irmandades, os particulares deveriam apresentar fiadores e hipotecar seus bens, mas nem sempre essas exigências eram cumpridas. Essas regras não amedrontaram muitos devedores, que mesmo acionados na justiça não honraram seus compromissos. Menos da metade dos acionados judicialmente pagaram a dívida. A justiça, portanto, não resolveu inteiramente os problemas financeiros da Misericórdia. Os atrasos eram extremamente comuns, a falta de numerário no Brasil colonial forçava

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muitas vezes o atraso nos pagamentos. Essa escassez pecuniária fez também com que muitos pagamentos fossem realizados em mercadorias, a mais aceita como moeda de troca era o açúcar. Podemos dividir a história financeira da irmandade no século XVIII em três momentos. O primeiro refere-se as três primeiras décadas que foram marcadas pela estabilidade financeira nos padrões do século anterior. As décadas de 1730 e 1740 referem-se ao apogeu vivido pela irmandade nos setecentos, momento em que houve uma maior ampliação da oferta de crédito. A partir de 1750, a perda de prestígio social já era sentida nos cofres da confraria. Na década de 1760 até o fim do período em análise, a crise foi solidificada, o valor médio por contrato caiu vertiginosamente. A demanda por empréstimos, no entanto, permaneceu alta, mas a confraria não possuía mais o fôlego financeiro necessário para manter o nível dos empréstimos nos padrões anteriores.

Fontes Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia- ASCMB Borrador do Livro de Conta Corrente de Juros e Foros da Consignação da Casa (1726-1790), livro nº 511. Livro de razão (dever e haver) de todo o dinheiro que está a juros por consignação da casa (1688-1756), livro nº 307. Livro da conta corrente da consignação da casa (1726-1969), livros nº 746 e 747. Livro de juros da consignação da casa (1700) livros nº 308, 309, 310. Livro de contas de juros de diversos devedores antigos (1701-1772) livro nº 1360. Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1723-1757), livro nº 1014. Livro de receita dos principais da casa (1757-1777), livro nº 1015. Livro de toda a despesa e de todo o dinheiro que vier a esta Santa Casa (1723-1770), livro nº 1017. Livro de receita de dinheiro dos principais que vem a este cofre (1770-1777), 1018. Livro de dever e haver dos juros que a Santa Casa tem como legatária de vários defuntos (17041724), livro nº 556. Livro de razão do cofre (1719-1732), livro nº 310. Livro de juros da consignação do cofre. Juros do dinheiro principal ao defunto de João de Matos de Aguiar (1702-1834), livros nº 311, 312, 313. Conta dos patrimônios e rendimentos que administra a Santa Casa, calculada no ano de 1754 (1754-1755), livro nº 210. Livro de apontamento dos devedores de juros (1745-1749), livro nº 778. Livro das terras foreiras à Misericórdia com a conta dos respectivos foreiros (1717-1819), livro nº 772. Livro Mestre das contas antigas das instituições (1701-1772) livro nº 1336. Livro das instituições (1701-1772) livro nº 211.

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A Sociedade de Mineração de Mato Grosso e os trabalhadores africanos livres. 1851-1865. Zilda Alves de Moura1∗ Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS [email protected]

Resumo No Brasil do século XIX, “africano livre” era o termo que designava os africanos resgatados de navios negreiros apreendidos durante a campanha de repressão ao comércio de cativos. Apesar de estabelecida com base nas leis de 1831 e de 1850 de proibição do tráfico, a reexportação desses africanos para África nunca aconteceu e eles foram mantidos no Império brasileiro. Todo africano apreendido no tráfico ilegal era juridicamente livre, mas ficava submetido à tutela do Estado que o disponibilizava tanto para executar trabalhos públicos quanto para atividades a serviço de particulares. Após 1850, houve uma mudança na política de distribuição dos africanos livres para o serviço compulsório, e eles não poderiam mais ser distribuídos entre particulares. A maioria foi, assim, distribuída entre instituições públicas e governos provinciais. Houve, no entanto, concessões a companhias privadas de interesse público como a Companhia de Navegação a Vapor do Amazonas, do barão de Mauá, e a Sociedade de Mineração de Mato Grosso. Este artigo analisa a criação da Sociedade de Mineração de Mato Grosso, os termos para a concessão dos terrenos mineratórios, os principais diretores e a contrapartida da empresa que deveria promover a construção de uma estrada entre o Mato Grosso e o Pará e ainda a assimilação dos indígenas nos locais a serem explorados. A empresa utilizou os africanos livres para desenvolvimento dos trabalhos, ou seja, na exploração dos aluviões auríferos, de diamante, na produção e colheita de alimentos, em abertura de caminhos em mata fechada, extração da poaia (planta medicinal), entre outros. Com o propósito de promover o desenvolvimento e progresso pelo país, o governo imperial brasileiro apoiou e incentivou as nascentes companhias e sociedades privadas mantendo conjuntamente atividades comerciais, algumas relacionadas com a agricultura, mineração, navegação, ferrovia, melhoramentos urbanos, etc. No caso da Sociedade de Mineração de Mato Grosso, ele concedeu a mão de obra de cem africanos livres. Assim como outros trabalhadores compulsórios, tais como os indígenas, mestiços e pobres livres, o governo imperial disponibilizou a força de trabalho dos africanos livres para empreendimentos de desenvolvimento capitalista no Império. Palavras-chave: Desenvolvimento econômico. Sociedades e companhias. Africanos livres. Trabalho livre e compulsório. Brasil Imperial.

Abstract In nineteenth-century Brazil, the term “Free African” was used to designate the Africans rescued from slave ships during the repression of the slave trade. Despite being foreseen in both the 1831 and the 1850 abolition laws, the transportation of these persons back to Africa never happened, and they were kept in Brazil. All the Africans seized from the slave trade were legally free but remained under the guardianship of the State, and were to serve private individuals or public institutions. After 1850, the policy for the assignment of Free Africans for service changed, and they would no longer serve private individuals. The vast majority of them were assigned to public institutions and public service in the provinces. However, there were concessions to private companies of public interest, such as the Amazon Steam Navigation Company led the Baron of Maua and the Mining Corporation of Mato Grosso. This article analyses the research on the creation of the Mining Corporation of Mato Grosso examining details of its foundation, the agreements for the concession of lots for mining, the background of the main directors of the company, and the counterpart of the company to the state, which was basically the construction of a road from the province of Mato Grosso to the province of Para, and the domestication of the Native Indians in the places to be explored. The company used the Free Africans in its core activity, that is, the exploration of gold and diamonds in alluvial deposits, the production of food, the clearing of paths in the dense forest, the extraction of the medicinal herbs (“poaia”), and other activities. The Brazilian Imperial Government, in order to promote development and progress throughout the country, gave support to private companies engaging in commercial activities related to agriculture, mining, navigation, railroads, and urban development. To the Mining Corporation of Mato Grosso, the government granted one hundred Free Africans. The same way as other compulsory workers such as Indians, mestizos, and poor people, the government made available the labor force of the Free Africans to the capitalist development of the Empire. Key-words: Economic development. Corporations and companies. Free Africans. Free labor and compulsory. Empire of Brazil 1∗Texto inédito elaborado a partir da tese de Doutorado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina – 2014. Profª substituta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus Naviraí-MS

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A Sociedade de Mineração de Mato Grosso e os trabalhadores africanos livres. 1851-1865

Mão de obra disponível: os africanos livres

E

m 1851, um grupo de trabalhadores africanos livres foi concedido para uma das sociedades por ações que se formavam no Império brasileiro daquele momento. No mesmo ano, o Ministério dos Negócios do Império autorizou a formação da Sociedade de Mineração de Mato Grosso, companhia sediada no Rio de Janeiro, que foi arquitetada por investidores capitalistas, que ambicionavam expandir seus negócios para além daquela região. A direção da Sociedade era composta de homens distintos da “boa sociedade” econômica e socialmente conhecidos. Para essa empresa, o governo imperial cedeu cem africanos livres que, como sua principal mão de obra, foram levados para trabalhar no Mato Grosso, área de fronteira, que de acordo com os presidentes da província, era uma região muito carente de força de trabalho e de estímulos que favorecessem o crescimento econômico. Aquele era um período em que os dirigentes do governo brasileiro intensificavam os debates sobre reformas que visavam impulsionar o desenvolvimento tanto social quanto econômico em todo o Império. Dessa maneira, na esfera do processo de formação e consolidação do Estado nacional, as províncias do país que permaneciam praticamente inexploradas passaram a receber atenção. Os discursos pautavam-se em temas como ordem, desenvolvimento, civilização e modernidade e expunham projetos para promover esse reordenamento e crescimento do Império. A elite política, com o apoio e respaldo de intelectuais debatia a constituição de um ideal de progresso no qual os princípios de ordem e civilização fossem o caminho para a organização da sociedade. Com acumulação de capital disponível,

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fundação de instituições e políticas adotadas para acelerar os projetos de expansão capitalista, o governo estava pronto para fomentar o desenvolvimento econômico do país. O Império brasileiro passava por várias mudanças, muitas delas realizadas pelo poder central e tantas outras incentivadas e apoiadas por ele. Essas ações eram facilitadas pela promulgação do Código Comercial, que regulamentou a atividade bancária e tornou possível a organização das sociedades anônimas e sociedades comerciais (GUIMARÃES, 2013). A partir de 1850, os capitais que eram investidos no lucrativo comércio de africanos cativos, foram disponibilizados para outras atividades econômicas. No mesmo ano, a Lei de Terras, ao estabelecer o acesso à terra por compra, afastou pequenos proprietários e posseiros delas e dos meios de subsistência. Tal movimento disponibilizou ainda mais essa massa de mão de obra aos grandes proprietários rurais. Igualmente, a assimilação das comunidades indígenas e a apropriação de suas terras, foram estabelecidas com base na exploração de sua mão de obra, bem antes desse período. Por consequência, o Rio de Janeiro, como núcleo de comando e de poder, destacava-se como centro mais desenvolvido do Império. Simultaneamente, em outras cidades, também ocorriam transformações importantes, como o alto crescimento demográfico, acompanhado de um processo de urbanização que caminhava de acordo com as condições provinciais. No período, sobressaiam-se cidades como São Paulo, que, devido ao crescimento da economia cafeeira do oeste paulista promovia o desenvolvimento e garantia o aumento e a concentração de trabalhadores livres e escravizados na província. Salvador e Recife funcionavam como ponto importante de escoamento e circulação da cana-de-açúcar e do algodão. Já as províncias da Bahia e de Pernambuco, e Ouro Preto, respectivamente,

destacavam-se por sua economia de produção de alimentos, pecuária e mineira (MORAES, 1994). Introduzidos nesse contexto, os trabalhadores africanos livres foram incorporados em muitos desses projetos. A denominação “africano livre” surgiu a partir da lei anti-tráfico, de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os cativos africanos trazidos para o país e impunha penas para todos os que participassem do tráfico, linguagem reiterada pela lei conhecida como Eusébio de Queirós de setembro de 1850, que voltou a proibir a importação de cativos e estabeleceu novas formas de repressão. Desse modo, os navios traficantes que fossem apreendidos eram julgados por tráfico ilegal por juízes instalados no Rio de Janeiro, e os africanos resgatados desse comércio, pelas autoridades judiciais, recebiam a condição de “africanos livres”. Esse tempo foi muitas vezes estendido para além dos catorze e acima dos limites de vida deles, pois muitos não viveram para conhecerem a liberdade definitiva. A partir de 1850, esses trabalhadores foram empregados de forma compulsória e direcionados para projetos de desenvolvimento econômico, como os promovidos por companhias e sociedades nascentes, enviados para abertura de estradas, em áreas isoladas de fronteira ou engajados em atividades extrativas nos sertões do país. Partindo da ideia de investigar como se deram a formação das sociedades de capital aberto e a exploração da força de trabalho nessas empresas do Império brasileiro de meados do século XIX, os esforços da presente pesquisa descortina que, para os projetos de desenvolvimentos pensados, a mão de obra “disponível” desses africanos livres foi utilizada em vários empreendimentos pelo país. Para discutir o tema, a autora realizou pesquisa documental, que foi

realizada no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso em Cuiabá. Foi analisada a massa documental manuscrita produzida pela Sociedade de Mineração de Mato Grosso sobre os africanos livres: correspondências expedidas e recebidas entre os representantes do Ministério dos Negócios da Justiça do Império e os presidentes da província de Mato Grosso, correspondências entre os presidentes de Mato Grosso e os guardas dos africanos livres da Sociedade de Mineração, representantes da Câmara Municipal da vila de Alto Paraguai Diamantino-MT, padres, delegados, juízes de paz e representantes da elite política da província. Esses documentos constituíram a principal base empírica deste trabalho. Essa documentação, que trata especificamente sobre os trabalhos e ações dos africanos livres dentro da Sociedade de Mineração, foi entregue para o presidente da província de Mato Grosso, em 1865, quando o último “guarda dos africanos livres” deixou a Sociedade. As ações dos africanos livres eram registradas por esses guardas em livros, e, muitas vezes, essas informações eram encaminhadas aos presidentes da província e demais autoridades ao longo dos anos. Como o progresso e investimentos também tinham que chegar às fronteiras, ou seja, às regiões do país que permaneciam praticamente inexploradas, a direção política do governo imperial promoveu incentivos, investimentos e parcerias com Companhias e Sociedades. Dentre outros investimentos, incentivaram-se aqueles que promovessem o crescimento econômico, o cultivo e o aproveitamento da terra, como a extração de seus recursos minerais, construção e aperfeiçoamento de estradas e realização de obras públicas que beneficiassem tanto os centros mais desenvolvidos como as províncias mais longínquas do Império. Após 1850, com a proibição definitiva do tráfico internacional de africanos cativos para História e Economia Revista Interdisciplinar

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o Brasil − tanto por força da lei de 1831, como a de 1850 −, a sociedade brasileira ajustou-se rapidamente a essa nova realidade relativa à mão de obra. Por conseguinte, formou-se uma organização interna de tráfico que possibilitou a compra e venda de cativos e o deslocamento desses trabalhadores de regiões como as do Norte-Nordeste, Oeste e do extremo Sul do país para as áreas cafeicultoras do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Outra alternativa projetada foi a imigração de outro grupo de trabalhadores estrangeiros, só que agora, não mais de africanos, pois os tempos eram outros, e os princípios de progresso, civilização e moralidade em voga, exigiam imigrantes brancos europeus. Ademais, os arranjos de trabalho do período contou com o aumento da força de trabalho brasileiro livre e pobre, que, segundo, Lamounier, grupo esse importante na composição da população, seja no período colonial ou imperial, que, com sua mão de obra, apareceu nos altos e baixos da produção açucareira, cafeeira, algodoeira e outras (LAMOUNIER, 2007). Nesse cenário, aqueles que deveriam ser protegidos da reescravização por força da campanha contra o tráfico foram empregados não de “forma nova”, mas de modo já bem conhecido dos donos do poder, ou seja, sem remuneração. Assim, além de centenas de africanos livres não conhecerem a emancipação definitiva, eles não receberam o fruto da modernização e crescimento, também construídos por eles, fruto esse reservado apenas para os detentores do poder econômico e político do Império. Sendo assim, cabe uma pergunta principal: como foi organizada a parceria entre Governo e uma Sociedade privada que recebeu essa mão de obra compulsória? Para responder essa questão, o texto discute o tratamento institucio-

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nal dado pelo governo aos africanos livres sob sua tutela e quais mecanismos ou parcerias que foram pactuados visando à exploração da mão de obra desses trabalhadores.

A Sociedade de Mineração de Mato Grosso José Maria da Silva Paranhos apresentou ao público do Jornal do Comércio em agosto de 1851, a criação da Sociedade de Mineração de Mato Grosso. Além de relacionar os membros da diretoria, valores e vendas de ações, ele apresentou a Sociedade como uma nova indústria que seria útil tanto para o Império como para seus sócios. Conforme a informação publicada anonimamente na seção “Cartas ao Amigo Ausente” no Jornal do Comércio, ricos capitalistas do Rio de Janeiro organizaram a Sociedade de Mineração de Mato Grosso, e, antes mesmo de sua implementação, a empresa estaria equipada com maquinário moderno, de tecnologia avançada na prospecção de minerais que poderiam até substituir o uso de um grande número de trabalhadores. Todo esse maquinário, os gerentes e mão de obra escravizada tinham como destino a província de Mato Grosso. Nas páginas posteriores à carta que abre este artigo, Paranhos descreveu geograficamente a região mato-grossense, suas riquezas minerais pouco exploradas, a presença de grupos de “índios bravios” e de um forte e antigo quilombo de pretos próximo dos lugares a serem explorados (PARANHOS, 2008, 311). As cartas eram publicadas na segunda página do jornal com o título Comunicado, na qual Paranhos comentava os acontecimentos da vida na Corte e emitia pareceres sobre as principais transformações no Império brasileiro. Paranhos abordava os mais variados assuntos, demonstrando estar atento, sobretudo, aos problemas materiais mais discutidos na imprensa e tratados na tribuna do Parlamento: economia,

política interna e externa, modernização, progresso material, industrialização, vida social, literatura, etc. Dessa forma, suas cartas frequentemente expunham projetos adotados para se promover o reordenamento e o progresso do país (FONSECA, 2007). O contexto político-econômico discutido por Paranhos tivera início a partir de 1850, quando os dirigentes do Império brasileiro intensificaram os debates sobre reformas que visavam alcançar a estabilidade econômica e a reordenação econômico-social do Império. Na esfera do processo de formação e consolidação do Estado nacional, as regiões do país que permaneciam praticamente inexploradas passaram a receber atenção. Nessa perspectiva, uma das condições impostas à empresa no momento de sua criação, em junho de 1851, foi a abertura de uma estrada para a província do Pará. Essa também era uma das principais solicitações dos administradores da província de Mato Grosso. Tal medida visava possibilitar o melhoramento das comunicações no interior da província de Mato Grosso e sua efetiva incorporação ao conjunto econômico do Império e, quiçá, do comércio internacional. Além disso, o mesmo decreto previa a civilização dos povos indígenas da região a ser explorada. Era projeto do governo imperial civilizar o indígena para o trabalho e promover sua nacionalização. Por meio da assimilação, buscava-se fazer dos indígenas indivíduos semelhantes aos colonos europeus, e, objetivamente, assegurar povoadores para o Mato Grosso e outras áreas de fronteira, como o Amazonas, o que garantiria a defesa dessas regiões e a apropriação das terras indígenas (MOTA, 1997). Dessa maneira, os dirigentes imperiais, auxiliados pela Sociedade de Mineração de Mato Grosso, pretendiam induzir o desenvolvimento

interno por meio da ocupação e incentivos que fizessem os sertões se tornarem produtivos e ampliar o sistema de comunicações internas que favorecessem política e economicamente a direção da Corte, criando assim condições para que os ideais de ordem e civilização vigentes atingissem as regiões mais afastadas do Império. A Sociedade de Mineração de Mato Grosso, a exemplo das empresas encabeçadas por Irineu Evangelista de Souza, poderia auxiliar o alto comando imperial nessa empreitada. Dessa forma, cem africanos livres que se encontravam alojados na Casa de Correção, no Rio de Janeiro, recém-resgatados do tráfico, foram o incentivo inicial para a referida Sociedade.

Formação de companhias mineradoras no Brasil No início do século XIX, os veios auríferos tanto da região central de Minas Gerais como os de Mato Grosso já não rendiam os mesmos lucros dos séculos anteriores. Em geral, as técnicas rudimentares utilizadas nas lavras, a diminuição da mão de obra e os parcos investimentos utilizados na exploração foram as queixas apontadas pelos dirigentes desses locais como as principais causas do não aproveitamento sistemático dos depósitos auríferos ainda não explorados. Segundo Andrade, o engenheiro alemão, barão de Eschwege após realizar estudos em Minas Gerais, concluiu que somente a organização de companhias de mineração bem administradas e capitalizadas reuniria condições de exploração lucrativas desses depósitos. A partir de 1817, a Coroa autorizou a formação de companhias por ações para atuar na mineração de ouro. Nesse mesmo ano, Eschwege foi consultor na elaboração de uma carta régia que estabelecia as condições para formar sociedades de mineração. Eschwege criou, ele mesmo, a “Sociedade Mineralógica da Passagem de Mariana”, em 1819,

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a primeira sociedade mineradora do Brasil (ANDRADE, 2012). Logo depois da Independência, companhias inglesas instalaram-se em Minas Gerais, como Imperial Brazilian Mining Company (1826), General Mining Association (1828), Brazilian Company (1832) e a Saint John del Rey (1834). Esta última era responsável pela exploração da mina de Morro Velho. De acordo com Lobato, o contexto internacional de ascensão da ideologia liberal e o avanço da hegemonia inglesa sobre o mundo, particularmente na América do Sul, produziram considerável mudança na legislação mineradora: era a vez do regime de livre exploração, franqueado inclusive aos estrangeiros (MARTINS, 2009). Mas não há notícia de que o Mato Grosso tenha sido alvo desses investimentos.

Assim, os representantes públicos e privados da sociedade mato-grossense animaram-se ao tomarem conhecimento da formação da bem equipada e moderna empresa, Sociedade de Mineração de Mato Grosso. Como veremos ao longo do texto, em vários relatórios lê-se o quanto as autoridades desejavam que investimentos fossem realizados para o efetivo aproveitamento dos recursos minerais da região.

Ao longo de todo século XIX, os dirigentes de Mato Grosso apontavam o declínio da produção mineral. No entanto, a partir de seus longos relatórios sobre a mineração mato-grossense, foi observado que essa redução não diminuiu a importância dos minerais para a economia da região, pois permaneceram constantes o interesse e a expectativa de que esse setor fosse reanimado por investidores capazes de superar as dificuldades já apontadas.

Para essa empresa tão aguardada na comunidade mato-grossense foram impostas condições. Elas foram formalizadas através do Decreto 794, de 7 de junho de 1851. Ali consta que a concessão para exploração do ouro em solo mato-grossense –“no Rio Paraguai, desde a foz do Cabaçal até suas cabeceiras e confluentes e igualmente em localidade denominada, os Martyrios, ao norte da Província” – teria duração de trinta anos e, na medida em que os resultados fossem positivos, a empresa, “achando nelas ouro, requererá a concessão das datas minerais que julgar convenientes até o número de cem”. Para tanto, a Sociedade deveria pagar o valor de dois mil réis por terreno a título de imposto; e o ouro encontrado deveria ser encaminhado à Casa da Moeda da Corte, onde seria pesado, e deduzida a parte da Fazenda Nacional no valor de cinco por cento do total do minério apresentado (Coleção das Leis do Império, 1851, 134).

Nesse sentido, em 1846, a carência de cativos africanos e o necessário capital para mineração mais profunda foram apontados pelo presidente Ricardo José Gomes Jardim, como explicação de muitas minas ainda não terem sido exploradas: “as minas não estejam exauridas, pois além de tornar-se a exploração cada vez mais difícil e dependente de meios dispendiosos, começam a faltar os braços africanos, sem cujos serviços obrigado, semelhante trabalho não é

Nesse primeiro decreto, não havia referência a exploração de diamantes ou poaia. O decreto estabelecia ainda que, na Região dos Martírios, o governo imperial mandaria pôr à disposição da Sociedade o número de policiais de que ela precisasse a fim de conter os indígenas e “facilitar a abertura de uma estrada com direção à Província do Pará”. Além disso, em contrapartida, a Sociedade de Mineração deveria ainda “promover a civilização dos indígenas que

Decreto nº 794 de 7, de junho de 1851

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praticável entre nós” (JARDIM, 1846, 25).

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em grandes tribos habitam aqueles sertões” (Coleção das Leis do Império, 1851, 134). Desse modo, confirmava-se o que fora anunciado pelo senador Paranhos: “O governo, que já reconheceu a utilidade desta empresa, animou-se e favoreceu-a com a concessão de um privilégio, não lhe recusará o auxílio de alguma força que lhe será necessária para combater as numerosas tribos de índios bravios […]”(PARANHOS, 2008, 313). Ou seja, em troca, a empresa deveria abrir uma estrada e civilizar os indígenas da localidade, função que normalmente era normatizada pela política indígena no Regulamento das Missões de 1845, que com frequência, era assumida por particulares missionários e autoridades, pois sua mão de obra era requerida aos mais diversos tipos de trabalho.

Sobre os indígenas que “habitavam aqueles sertões” Os dirigentes imperiais e aqueles que compunham a “boa sociedade” utilizaram vários mecanismos para tentar civilizar os indígenas. Tal ideia fazia parte do projeto de construção da nação brasileira, pois, sobretudo, a partir de 1840, buscou-se a afirmação de uma história, língua e literatura nacionais (SENA, 2008, 7). Civilizar uma população que se encontrava dispersa por todo o território e vinculá-la à ordem imperial era parte do projeto de desenvolvimento e modernização dos representantes do governo imperial. O Império planejava atingir o esplendor da civilização, e os indígenas, negros e mestiços “emperravam” a implementação dessas metas, atrapalhando a “formação de uma verdadeira identidade nacional” (SENA, 2008; LIMA, 1998, 114-115; SCHWARCZ, 1993). Francisco Adolfo Varnhagen deu a receita de como fazer esse projeto de nação e desenvolvimento progressista funcionar. Ele que era historiador, diplomata, súdito fiel de d. Pedro II

e um dos principais expoentes membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Como tal, escreveu um projeto civilizador que refletia o propósito dessa classe dirigente do Império brasileiro. Varnhagen recomendava que o meio mais eficaz para que o Império tivesse “daqui a um ou dois séculos uma população homogênea”, e, assim livrar-se de “contínuas guerras civis”, seria organizar cada um dos segmentos que deveriam compor a sociedade de acordo com sua possibilidade de ser útil à nação (VARNHAGEN, 1849; 1850). Assim “equilibrar as raças” e organizar economicamente a população era fundamental tanto para fortalecer o Estado, como também para criar novos mecanismos de controle e regulação sobre os habitantes do Império, sobretudo a população escravizada, indígena e livres pobres que deveriam estar prontos e aptos para trabalharem onde o Império mais necessitasse de sua mão de obra. Desde o início do povoamento da região mato-grossense, os nativos de várias etnias foram considerados como uma barreira para o desenvolvimento local. No início do povoamento, foram feitas várias tentativas no sentido de utilizá-los no trabalho compulsório nas Minas de Cuiabá (SÁ, 1975, 21). Porém, eles fugiam para os vales isolados próximos aos vários rios da região. Essas estratégias indígenas foram registradas em vários momentos da história de Mato Grosso pelos viajantes tanto nacionais como estrangeiros. Em 1817, por exemplo, uma expedição foi enviada para as cabeceiras do Rio São Lourenço com a finalidade de subjugar os indígenas, mas não obteve êxito (BOSSI, 2008, 23). Em outra oportunidade, aproximadamente quatrocentos e cinquenta nativos foram assassinados e outros tantos feitos prisioneiros na localidade denominada de Chapada dos Guimarães (FLORENCE, 1941, 229-231). Em contrapartida, os História e Economia Revista Interdisciplinar

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indígenas matavam seus opositores, seus animais de criação e incendiavam seus sítios.

no norte do Estado, devido às suas constantes investidas agressivas (ALMEIDA, 2003).

Como explica Ernesto Sena, no Mato Grosso, os indígenas eram objeto de pesquisa e atenção do governo imperial. Frequentemente levantavam-se dados estatísticos sobre eles. Em 1849, por exemplo, foram identificados cinquenta e três grupos indígenas. Os levantamentos estatísticos tinham como objetivo principal calcular a densidade demográfica daquelas populações, localizações e comportamentos desses grupos em relação à população branca. Quanto ao comportamento, classificavam as populações em três categorias: na primeira classificavam-se os “Aldeados perto de nossas povoações”, isto é, os nativos que viviam aldeados e vigiados pelo diretor da aldeia, que por sua vez, era indicado pelo diretor geral dos índios da província; na segunda, incluía-se aqueles “no primitivo estado de independência, mas [que] têm algumas relações conosco”; e, em terceiro, aqueles que “hostilizam-nos e não se mostram dispostos a nossa amizade”, entre os quais se contavam os Bororo Coroado (SENA 2008, 6; SILVA, 2001, 16). Desse modo, somava-se a vivência aos estudos estatísticos para planejar o contato com os nativos com o objetivo de dominá-los e incluí-los no país que se construía (SENA, 2008).

Com a intenção de transformar o nativo em nacional, elaborou-se o primeiro projeto imperial para os indígenas, o decreto n.º 426, de 24/07/1845, denominado de “Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios” (CUNHA, 1992, 191-199), que vigorou até 1889. O Regulamento tendo como meta “civilizar os índios” significava incorporá-lo ao Estado, sujeitando-os a leis e costumes regulares da população branca. Civilizados, os grupos formariam um corpo civil, pronto para serem inseridos no trabalho. Dessa forma, os missionários e fazendeiros locais exploravam a mão de obra desses trabalhadores. Trabalho compulsório e baixos salários criavam insatisfações entre os indígenas; e os confinamentos faziam com que eles esquecessem os ritos e costumes tradicionais; muitos fugiam desses locais (SOUZA, 2010, 86-92).

No local onde foi instalada a Sociedade de Mineração de Mato Grosso, existiam entre outras populações, os Bororo, que habitavam tanto o território do alto como do baixo rio São Lourenço. A história de contatos entre os Bororo e os agentes colonizadores iniciou-se com a chegada dos bandeirantes ao território mato-grossense (ALMEIDA 2003, 1). Sobretudo no setecentos, os paulistas utilizaram os Bororo como guerreiros nas lutas contra outros grupos indígenas para ocuparem seus territórios, resultando na dispersão e divisão da população Bororo. O grupo dos Bororo considerado “hostil” foi o dos Coroado, 104

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Segundo Dreico de Souza, durante os séculos XVIII e XIX, os europeus utilizaram os indígenas de Mato Grosso em trabalhos que identificassem rotas terrestres e fluviais; esses nativos conheciam a área e tinham prática como remadores. Dessa maneira, em 1840, atendendo demandas imperiais, “provincianas e pessoais, vinculadas novamente à posse territorial portuguesa e a ameaça eminente dos países vizinhos”, o barão de Antonina realizou explorações de uma rota fluvial, da bacia hidrográfica do rio Tibagi até a província de Mato Grosso. Além de investigar qual seria o melhor traçado, o barão ou seus encarregados deveriam estabelecer alianças com os povos indígenas. Por consequência, muitos foram recrutados para participarem de inúmeros combates intertribais. Esses conflitos enfraqueceram inúmeras populações. Souza escreveu que os embates entre grupos indígenas tornavam-os mais desprotegidos frente aos conquistadores

europeus, ficavam “suscetíveis às determinações de um barão, às ordens de um presidente de província, aguardavam as ajudas e armas provenientes desses que apenas visavam o território como uma conquista para encontrar as riquezas minerais e extrair os recursos naturais” (SOUZA, 2010, 86-92). Muitos indígenas foram empregados na economia extrativista – extração da poaia – e na criação de gado (OLIVEIRA, 2010, 3847). Para Marta Amoroso, “em todos estes casos, os aldeamentos serviam de infra-estrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão-de-obra” (AMOROSO, 1998, 144).

1854: Estatuto da Sociedade de Mineração de Mato Grosso A Sociedade de Mineração de Mato Grosso seguindo as orientações do Código Comercial ao qual estava submetida, após mais de três anos de sua fundação, em 10 de junho de 1854, teve aprovado o seu estatuto através do Decreto 1399. Tendo como objetivo a exploração e extração de ouro no Mato Grosso, o estatuto registrava a estrutura normativa que se atribuiu no ato de fundação da Sociedade em 1851, acrescentando agora a autorização para exploração de diamantes e Ipecacuanha, nomeada também de poaia. Além disso, discorria sobre sua organização interna, administrativa e obrigações dos membros da diretoria como também os direitos dos sócios. A partir dali, a Sociedade poderia empreender não só trabalhos de mineração como também extrair a poaia, raiz utilizada para fazer chá e remédios, às margens dos rios Santana e Paraguai ao norte da província, em Diamantino, Vila Maria e na pequena povoação de poaeiros e garimpeiros na foz do rio dos Bugres. Cephaeles ipecacuanha Conhecida cientificamente como Ce-

phaeles ipecacuanha, ipeca ou poaia é uma raiz de um pequeno arbusto rica em emetina, substância que compõe os ingredientes de diversos medicamentos fabricados para cura da coqueluche, bronquite e até mesmo disenterias. Por volta de 1830, iniciou-se, em Mato Grosso, a extração da ipecacuanha ou poaia. De acordo com Ayala & Simon, nessa época, José Marcelino da Silva Prado, explorando garimpos de diamantes nas imediações do Rio Paraguai, observou que os garimpeiros doentes tomavam um chá preparado com raiz de um arbusto facilmente encontrado na mata da região. Tratava-se da poaia, que era antiga conhecida dos povos indígenas, que tinham repassado seu conhecimento medicinal aos colonizadores. Segundo Ayala e Simon, constatado oficialmente seu valor medicinal, iniciou-se o comércio da poaia, que teve longa duração e proporcionou “grandes benefícios para os cofres do Tesouro do Estado”(AYALA; SIMON, 1914, 259). De acordo com Siqueira, estrangeiros, especialmente ingleses e holandeses, tentaram plantar a poaia em suas colônias asiáticas, porém o clima não era propício, sendo o Brasil, especialmente Mato Grosso, Bahia, Espírito Santo, Pará e Amazonas, territórios onde essa planta nascia naturalmente sem necessidade de ser plantada (SIQUEIRA, 2002, 107). Os trabalhadores responsáveis pela coleta eram conhecidos como poaieiros. Dessa forma, a intensa procura da poaia transformou, em pouco tempo os vilarejos onde havia abundância da planta nativa. Um desses lugares foi Vila Maria. O pequeno povoado logo se encheu de homens que se embrenhavam nas matas em busca do pequeno arbusto de alto potencial econômico. Isso motivou interesse e preocupação tanto do governo provincial, como imperial desde o início da sua exploração. Em 1837, a Assembleia Legislativa Provincial publicou o Regulamento e demais ordens a respeito

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do imposto sobre a poaia em rama. Nesse, estipulava o pagamento anual em dinheiro, na razão de 5% (SOUZA, 2013, 34). Muitos Guaná, assim como outros grupos indígenas da província, também realizavam a extração de poaia. Por vezes, eles eram contratados a serviço de particulares ou a serviço público, a partir de contratos legalmente assinados entre ambas as partes e encaminhados para Cuiabá, onde se efetuava o pagamento (SILVA, 2001, 67). Marcel Jules Thieblot, ao produzir um estudo sobre a mata da poaia e os poaieiros de Mato Grosso, caracterizou o arbusto da poaia como sendo uma planta que não passa de trinta centímetros de altura. As folhas são opostas, simétricas e verdes. As flores são brancas arroxeadas, de um centímetro e dão nascença a um cartucho de sementes vermelhas, mas é a raiz que interessa ao poaieiro. É uma raiz preta por fora e branca por dentro, formada de anéis. O trabalho consistia em descobrir e arrancar essa raiz de, no máximo, trinta centímetros de comprimento que corre horizontalmente debaixo da terra. Extraída a raiz, qualquer pedaço dela que fique no chão volta a dar um novo pé. Segundo o autor, por ser muito mais fácil mexer com a planta quando a terra está molhada, é costume extraí-la no tempo da chuva (THIEBLOT, 1980, 16).

O capital, os acionistas e a administração da Sociedade Além do ouro e diamante, a possibilidade de comercialização da poaia mato-grossense, vista com grande potencial econômico, pode ter atraído os investidores diretores da Sociedade, como também seduzido outros ambiciosos empreendedores que a ela se juntaram como sócios. Dessa maneira, o pequeno ou grande investidor, ao manifestarem interesse na Sociedade, tomavam conhecimento que o capital social da Sociedade era dividido em 106

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duzentas ações, com valor de 500$000 (quinhentos mil réis) cada uma. O fundo totalizado era, portanto, no valor de 100.000$000 (cem contos de réis). Embora as ações representassem uma parcela do capital que o acionista tinha na Sociedade, elas não correspondiam à quantidade de votos que o seu respectivo titular tinha direito na assembleia geral, pois, conforme o artigo 11º, o “Supremo Poder da Sociedade, a assembléia geral, na qual têm voto somente os acionistas de quatro ações para mais: os que possuírem oito e mais ações terão dois votos, sempre que concorram em Assembléia Geral” (Coleção de Leis do Império do Brasil, 1854, 244). Na prática, havia três classes de sócios: de uma a três ações, sem direito a voto; de quatro a sete, com direito a um voto; e de oito ou mais ações, com direito a dois votos. Embora o voto não fosse proporcional ao número de ações, diante do artigo 11º do Estatuto, podemos considerar que ao mesmo tempo em que parecia impedir o controle pelo voto, por grandes accionistas; os pequenos acionistas, além dos lucros menores, também pareciam não ter “voz” nos destinos da Sociedade. Conforme determinava o artigo 4º, os acionistas poderiam ser brasileiros ou estrangeiros, sendo a única exigência possuir e pagar a apólice, cujo pagamento poderia ser realizado em duas prestações: uma no ato da compra da ação e a outra oito dias após a segunda chamada de fundos. Diante do não pagamento da segunda parcela, o acionista perdia – em favor da Sociedade – o valor já investido. O acionista também poderia vender ou “dispor como lhes convier, das ações que forem possuidores, com a única obrigação de apresentarem-se pessoalmente ou por seus procuradores ao Diretório, a quem incumbe fazer as competentes notas a respeito”. Nesse sentido, esse tipo de aglutinação, na qual o principal objetivo de diversas pessoas era vol-

tado apenas para os lucros que uma atividade prometia propiciar certamente criava as mais variadas expectativas. Ao mesmo tempo, sugeria que a união do grupo fosse baseada na confiança, tendo em vista a dificuldade no controle dos resultados dos lucros arrecadados. No estatuto estava estipulado que a Sociedade seria dirigida na Corte por uma diretoria composta por um presidente, um secretário e um tesoureiro, eleitos a cada dois anos em assembleia geral. Cada membro teria um suplente eleito da mesma maneira. Essa diretoria, além de “velar e guardar” os estatutos e regulamentos da Sociedade tinha a responsabilidade de contratar os empregados necessários para o serviço da empresa, observando a divisão social do trabalho, pois assim recomendava o parágrafo 2º Da Administração da Sociedade: “Nomear os empregados necessários para o serviço da Sociedade, marcando-lhes suas atribuições e as vantagens que deverão perceber, na razão do trabalho que forem incumbidos” (Coleção de Leis do Império do Brasil, 1854, 244). Com base nas fontes pesquisadas, além dos cem africanos livres, os outros trabalhadores eram ligados à administração da Sociedade, como o cargo de “agente”, que, ao longo dos catorze anos, foi ocupado primeiro por um dos diretores e depois por sócios indicados pelo diretório, que tinha a incunbência de administrar a empresa. Desse modo, o primeiro agente/administrador da Sociedade foi o médico Medardo Rivani que dirigiu a Sociedade por seis anos. Após pedir demissão, Rivani foi substituído por outro diretor residente no Mato Grosso, José Joaquim de Carvalho, que por fim, foi substituído pelo italiano Bartolomé Bossi, que suponho tenha sido um dos sócios da Sociedade e, posteriormente, foi eleito membro da diretoria, já que o seu nome não consta como um dos diretores no Decreto 794 de 1851.

Outro cargo era o de “guardados africanos livres”, responsável pelo controle direto de seus trabalhos, inclusive com a função de registrar todos os acontecimentos relativos a esses trabalhadores. O cargo de feitor também foi observado na empresa. Seu trabalho exercia ações diretas sobre os trabalhadores escravizados e também sobre os africanos livres. Cabe ressaltar que a documentação interna da empresa, como atas, relação de sócios acionários, documentos sobre os planejamentos, resultados econômicos e lista de trabalhadores, não foi localizada. Ainda relativo à administração da Sociedade, o estatuto expunha outras responsabilidades dos diretores, que se figuravam com maior autoridade e autonomia em relação aos demais sócios, porque conferia em suas funções a liberdade de buscar novas fontes de exploração dos minérios e seu consequente estudo e aperfeiçoamento de novas técnicas. Os diretores tinham o poder de convocar os acionistas sempre que entendessem conveniente e necessário. Anualmente, os diretores deveriam apresentar à assembleia um relatório dos trabalhos da Sociedade, dando informações de seu andamento, do ouro encontrado, sugestões para o seu desenvolvimento e apresentar balanço da receita e despesas. A cada ano, os diretores tinham que repartir entre os acionistas o resultado líquido produzido pela Sociedade conforme o número de apólices que cada acionista possuísse, destinando a terça parte do total para um fundo de reserva da Sociedade. Eles deveriam organizar um Regulamento para os trabalhos da Sociedade e um Regimento Interno. Os diretores tinham “plenos e ilimitados poderes administrativos em referência a todos os negócios da Sociedade, podendo demandar e ser demandado, nomear e demitir livremente todos os empregados” (Coleção de Leis do Império do Brasil, 1854, 244). Diante desse quadro, a responsabilidade conferida aos diretores da Socie-

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dade poderia constituir uma forma de controle e poder sobre os destinos de tal empresa e, por consequência, dos acionistas não tão opulentos. Nas Disposições Gerais, o estatuto recomendava ainda que, se algum membro da diretoria se ausentasse ou desistisse de sua função, deveria comunicar ao presidente do diretório para que fizesse sua substituição. O seu artigo 16º previa que se os diretores entendessem conveniente, futuras explorações poderiam ser realizadas, contanto que solicitassem ao Império novas concessões de datas mineradoras. Para tanto, as operações não poderiam ultrapassar o valor de dez por cento do fundo da Sociedade. No seu artigo 18º, estava expresso que qualquer benefício cedido para um membro da Companhia teria de favorecer a todos os acionistas: “Todo e qualquer privilégio, concedido pelo Governo a algum ou alguns acionistas da Sociedade, tendente a favorecê-la, torna-se extensivo a toda a Sociedade, como que se a ela fora feita a concessão”.

Os diretores da Sociedade Como veremos a seguir, alguns diretores da Sociedade de Mineração de Mato Grosso – ricos capitalistas – conforme anunciado por Paranhos, eram homens da “boa sociedade” que buscavam lucrar ao investir no progresso e crescimento da Nação. Muitos eram homens de negócios que, embora possuíssem riquezas semelhantes, tiveram origens e posições diferentes dentro do cenário imperial. Alguns faziam parte da elite mercantil e agrária, outros estavam ligados mais diretamente ao aparato do governo imperial, como políticos, juízes de paz e médicos. As relações sociais, econômicas e familiares que mantinham direta ou indiretamente, forneceram elementos para que esse grupo desenvolvesse e redirecionasse seus interesses econômicos e particulares para novos empreendimentos em várias regiões do Império.

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Além dos nomes dos diretores citados na carta de Paranhos (Custódio Teixeira Leite, Joaquim Leite Ribeiro, Luis Bompani, José Joaquim de Carvalho e Medardo Rivani), o Decreto 794, de 7 de junho de 1851, também incluía outro médico, Cesar Persiani, entre os responsáveis pela empresa de mineração. Diferente do que foi registrado pelo senador Paranhos em sua Carta relatada, no Decreto nº 794, de 7 de junho de 1851, que autorizou a Sociedade de Mineração de Mato Grosso a utilizar os terrenos mineratórios em Diamantino, no Mato Grosso, não consta o nome do médico Luis Bompani como um de seus diretores. Provavelmente, o senador o tenha incluído por ter conhecimento que ele fosse um dos sócios dessa Sociedade. Embora não seja possível qualificá-lo como será feito com relação aos demais – tendo em vista a dificuldade de encontrar suas referências em várias fontes consultadas –, sua presença será registrada, sobretudo nos momentos nos quais ele manteve relação com os outros membros da Sociedade. A seguir, serão expostas informações sobre os “capitalistas”, diretores da Sociedade. Luiz Bompani era um dentre tantos outros médicos estrangeiros que atuaram no Império brasileiro. Ele era formado em Modena. Entre os anos de 1847 e 1851, seu nome foi registrado como integrante do quadro de médicos do Hospício de Pedro II, juntamente com outro médico bem conhecido no período, Luiz Vicente de Simoni (PERES, 2009). Cesar Persiani consta no livro de registro de estrangeiros do Arquivo Nacional referente aos anos de 1840-1842. Em 1841, embarcou na fragata “Príncipe Imperial” com destino ao Rio de Janeiro. Naquela oportunidade, ele tinha 37 anos e já era casado. Embora no livro também esteja registrado o nome da rua onde residia, não

foi possível comprovar se o endereço referido era da Bahia, do Rio de Janeiro ou, ainda, se ele era recém-chegado da Itália. Por outro lado, em 1851, data da concessão dos terrenos mineratórios em Mato Grosso, tanto ele como Luiz Bompani já eram membros da elite médica da Corte. Dessa maneira, Persiani atendia e tinha acesso aos que então eram considerados como membros do “mundo civilizado”, ou seja, a alta sociedade do Rio de Janeiro. A exemplo, em 10 de março de 1852, Cesar Persiani, juntamente com Luiz Bompani, realizou a cirurgia de um tumor em Álvares de Azevedo (SATTAMINI-DUARTE,1956, 44). Em 1855, Persiani foi naturalizado cidadão brasileiro (Coleção de Leis do Império do Brasil, 1855, 10). Dentro desse universo, encontramos os médicos Cesar Persiani e Luiz Bompani com posição social e profissional bem marcadas, tendo em vista que em 1859, juntamente com José Martins da Cruz Jobim, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ambos compunham o quadro de médicos que atendiam a Casa Imperial (Cartas da Condessa de Barral,1859). Isso significava que essa função lhes permitia uma articulação de variadas relações sociais, pois conviviam com o mais alto escalão da elite política e casa imperial, logo que tal cargo previa o atendimento de todos que serviam a Casa Imperial, como gentis-homens da imperial câmara; ajudantes de campo de sua majestade o imperador; veadores honorários; oficiais-mores; capelão-mor; condecorados com as honras de oficiais-mores; confessor de SS. MM. II, etc (LAEMMERT, 1852, 48-51). Muitos dos membros da elite do Império e os que ocupavam cargos na Câmara Imperial possuíam condecorações com imperiais ordens honoríficas. Em geral, essa honra era atribuída em reconhecimento a serviços relevantes presta-

dos à nação. Havia honrarias concedidas especificamente a determinadas áreas, como a agrícola, a militar, a aeronáutica, a naval, a médica, a jurídica, etc (MOURA, 2002, 319).Tanto Persiani como Bompani receberam a ordem honorífica de cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, tendo o primeiro o título de barão (LAEMMERT, 1852, 35;VASCONCELLOS, 1917). Os títulos nobiliárquicos, como o de barão, eram reservados basicamente aos proprietários de terra, que se distinguiam pelo seu poder e sua riqueza. Como sabemos, o baronato virou sinônimo e marca distinta dos grandes cafeicultores do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais. De acordo com Lília Moritz Schwarcz e José Murilo de Carvalho, esse título era uma forma de cooptação e também de compensação por ocasião das leis abolicionistas de 1871, 1885 e 1888 (CARVALHO, 2007, 258; SCHWARCZ, 1998,193). O prestígio que o médico Cesar Persiani acumulou era tanto que, de 1860 a 1888, foi nomeado cônsul do Império do Brasil na Itália, residindo em Genova e, nessa função, autorizava a entrada de trabalhadores imigrantes no Império brasileiro.2 Tais informações permitem visualizar o desempenho desses médicos enquanto homens de vários negócios. Tanto na função de médico, como em outros cargos que ocupararam depois, 2 No relatório da repartição dos negócios estrangeiros do Império do Brasil existe o registro do nome do médico Cesar Persiani, em 1860, como membro do corpo consular estrangeiro. Relatório da repartição dos Negócios Estrangeiros apresentados à Assembleia Geral Legislativa na segunda sessão da décima primeira legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Augusto Magalhães Taques. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, 1862, p. 28. O último registro encontrado sobre Cesar Persiani, na mesma função, consta a data de 1888, declarando nada constar sobre pedido de naturalização italiana por parte do maestro Antônio Carlos Gomes. Museu Imperial. Coleção Carlos Gomes. DIG-1888/1889-Gom.do 1-3 ver I-DIG-1888/1889-Gom.d1-6. 17/10, 12/11, 15/11, 19/10/1888. Cabe observar que, em 1877, embora estivesse exercendo a função de cônsul na Itália, também continuava como médico da Imperial Câmara. LAEMMERT. Almanaque [...]. Ob. cit., ano de 1877, p. 43.

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Bompani e Persiani tiveram oportunidade de articulação entre as elites locais e até internacionais, e essa pode ter sido uma via de acesso à riqueza, ao poder e ao prestígio. Assim, enquanto num primeiro momento, aproveitaram-se de mão de obra compulsória dos africanos livres da Sociedade de Mineração de Mato Grosso, mais adiante, na segunda metade do século, proporcionaram a introdução do migrante estrangeiro na economia agrária brasileira, apoiando, assim, o sistema de trabalho de colonato. Medardo Rivani era outro médico italiano, o único membro da diretoria que de fato trabalhou in loco na empresa no Alto Paraguai-Diamantino, Mato Grosso. Sua presença foi registrada nos documentos da Sociedade desde o início de seu funcionamento, em agosto de 1851 até 1857, quando ele pediu demissão da diretoria. Ainda assim, na condição de médico continuou a atender os africanos enfermos após sua saída da Sociedade. Na primeira metade do século XIX, têm início as teorias da origem social das doenças, relacionando-as à miséria e às precárias condições de vida dos empobrecidos (KURY, 1990, 81). Os médicos conferiam legitimidade científica às ações governamentais. Conforme Alessandra Schueler, as políticas de controle e limpeza das moradias coletivas e dos espaços públicos das cidades foram alvos dos poderes públicos, (SCHUELER, 1999, 3; CHALHOUB, 1996, 35). Desse modo, no Mato Grosso, Medardo Rivani era consultado pelas autoridades locais sobre quais medidas deveria tomar frente às enfermidades sofridas pela população, tendo em vista a ausência de autoridades sanitárias na cidade (SAMPAIO, 1856). Assim, em fevereiro de 1856, João Baptista Prudêncio, delegado de Polícia de Diamantino, escreveu solicitando quais providências deveriam ser tomadas para evitar a

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contaminação de doenças contagiosas procedentes de alguma embarcação do Pará para a província de Mato Grosso, onde talvez pudesse se espalhar o cólera morbus (VILELA, 2001, 31). Em resposta à solicitação feita pelo delegado, Medardo Rivani escreveu expondo sua opinião sobre as medidas que deveriam ser tomadas na iminência de uma epidemia de cólera morbus. Ele recomendou a necessidade de desinfecção das embarcações, pessoas e coisas que entrassem na província de Mato Grosso oriundos do norte. Receitou e detalhou os produtos que deveriam ser utilizados e colocados à disposição das pessoas para tal fim. As medidas foram executadas (VILELA, 2001, 31). Medardo Rivani trabalhou como administrador e médico dentro da Sociedade. Fora dela, possuía ambulatório, onde atendia a população, e, como visto, dava pareceres sobre possíveis doenças coletivas na região (MESQUITA, 1925, 11). No ano de 1862, consta seu nome como vice-cônsul da Itália no quadro do corpo consular estrangeiro residente no Império (SARAIVA, 1866, 55). Medardo Rivani morava no Rio de Janeiro e passou a residir em Diamantino durante e após sua administração na Sociedade. É possível que Medardo Rivani fizesse parte da rede de relações de outros médicos da Sociedade, porém ele não pareceu ser tão bem sucedido como os demais. Já José Joaquim de Carvalho era o único diretor da Sociedade que residia no Mato Grosso. Desde 1840, sua presença foi registrada naquela província. De acordo com Ernesto de Sena, ele era um proprietário sem muita tradição na política mato-grossense. No entanto, ao ser apoiado pelo fazendeiro e membro do partido liberal, Manuel Alves Ribeiro, sua eleição foi garantida

para deputado geral em 1840 e, entre 1842-1847, permaneceu como deputado pela província de Mato Grosso (SENA, 2006, 78). Em 1850, conforme aponta Divino de Sena, Carvalho já aparecia como capitão do Estado Maior de 1ª classe na região do Baixo Paraguai, próxima a Vila Maria (SENA, 2010, 89). É possível que Carvalho tenha sido o elo entre Mato Grosso e a Sociedade de Mineração, dando inclusive, informações sobre os possíveis terrenos preciosos. Ainda que, por ocasião da implementação dos trabalhos da empresa, ele já não fosse mais parlamentar, é possível considerar que José Joaquim de Carvalho tenha aceitado ser um dos diretores e sócios da Sociedade, independentemente de seu partido, pois assim como outros membros da população mato-grossense, ele tivesse especial interesse que a Sociedade dinamizasse a economia local, algo que favoreceria, sobretudo, os mandantes locais. Joaquim Leite Ribeiro e Custódio Teixeira Leite também eram membros diretores da Sociedade e descendiam de portentosas famílias, cujos membros, quando não estavam envolvidos no lucrativo tráfico de africanos, foram homens de negócios que atuavam em atividade comercial, em casas bancárias, companhias de seguro, bancos, na política e demais ramos da economia urbana e agrária. Custódio Teixeira Leite era sobrinho de Joaquim Leite Ribeiro, que, em 1832, fundou Barra Mansa junto com seu irmão Custódio Ferreira Leite, futuro barão de Aiuruoca (FERNANDES; MESQUITA 2007, 287). Joaquim Leite Ribeiro foi juiz de paz em Conservatória, hoje distrito do município de Valença (FIGUEIRA, 2007, 51). Segundo Mônica Ribeiro Oliveira, algumas famílias com prestígio social de Minas Gerais, como os Teixeira Leite, mantiveram-se ativas em suas posições econômicas mesmo após

a diminuição das atividades mineradoras. Isso porque muitas delas dedicavam-se à produção de alimentos e de vários outros bens em paralelo à mineração e, sobretudo, em decorrência exatamente de capital acumulado pela utilização intensiva de mão de obra escravizada, empregada nas várias atividades sob seus domínios (OLIVEIRA, 2005, 33-67). De acordo com Patrício Carneiro, em Juiz de Fora, além da grande cultura do café, a leste e a nordeste ocorria a produção de gêneros de abastecimento voltados tanto para o consumo local, como para os municípios vizinhos e para o Rio de Janeiro. Esse autor registrou que em 1841, entre os grandes proprietários e cafeicultores no sul da Mata, estava o futuro barão de Aiuruoca, Custódio Ferreira Leite, que atingiu dez mil arrobas de café por ano; e na fazenda de seu irmão, o capitão e comendador Francisco Leite Ribeiro, onze mil, além de considerável produção de queijo, açúcar e aguardente vendidos principalmente ao mercado do Rio de Janeiro; Francisco Ribeiro, além de milhares de pés de café, possuía ainda muitos trabalhadores escravizados e diversos animais, além de apólices da dívida pública e de estradas na província fluminense e várias dívidas ativas distribuídas entre devedores da Mata, dos termos de Barbacena e de São João del Rey (CARNEIRO, 2008, 222-226). Custódio Teixeira Leite era filho do barão de Itambé, Francisco José Teixeira Leite, que era dono de plantações de café e outros negócios. Ele era nascido em São João del Rei e o pai do futuro barão de Vassouras, com nome homônimo ao seu, além de outros filhos (ALMEIDA, 1965, 32). O barão de Itambé era cunhado de Custódio Ferreira Leite e Francisco Leite Ribeiro. No início do século XIX, Custódio Teixeira Leite, juntamente com seus irmãos e os tios Joaquim Leite Ribeiro e Custódio Ferreira Leite saíram da região mineira e partiram em busca de noHistória e Economia Revista Interdisciplinar

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vos investimentos políticos e econômicos em Vassouras, no Vale do Paraíba (FERNANDES; MESQUITA 2007, 287). Na região do Vale do Paraíba, próxima a São Paulo, os primeiros povoamentos foram concessões de sesmarias feitas nos anos sessenta do século XVIII. Nos anos de 1820, muitas dessas terras já pertenciam ao coronel Custódio Ferreira Leite (MUAZE, 2010, 311). Custódio Ferreira Leite foi contratado por d. João VI, em 1816, para comandar a abertura da estrada da Polícia.3 Os Teixeira Leite possuíam uma estreita relação com a elite política vassourense. Além dos muitos parentes, tinham amigos provenientes de poderosas famílias estabelecidas na região. Essas eram relações familiares e sociais importantes, algo que constituiu uma enorme teia de parentela e poder (FALCI, 2005, 205). Além dessas relações, a atividade usurária da família Teixeira Leite aumentava ainda mais o seu poder no Vale do Paraíba. Segundo Muaze, a atividade usurária auxiliava no aumento de patrimônio desses grandes senhores, já que aqueles que pediam empréstimos, na maioria das vezes, hipotecavam suas fazendas e seus cativos na negociação. Ricardo Salles demonstrou que, na região de Vassouras, os mega e grandes proprietá3 Custódio Ferreira Leite foi bacharel em Direito, fazendeiro, capitão-mor, coronel da Guarda Nacional; foi o primeiro presidente da Câmara Municipal de Mar da Espanha, deputado pela província de Minas Gerais e por Decreto de 14 de maio de 1855, recebeu de d. Pedro II o título de “barão de Aiuruoca”. Ele também foi comendador da Ordem de Cristo em 14 de março de 1855. Cf. VASCONCELLO, Rodolfo & Jaime. ArchivoNobiliarchico Brasileiro. Toronto: Universityof Toronto, 1917. p. 67. Alguns anos antes, em 1816, dom João VI ordenara a Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro, na figura do Intendente Geral Paulo Fernandes Vianna, a abertura de uma nova estrada para as Minas Gerais, que se denominaria “Estrada da Polícia”. Aberta a concorrência para a sua construção, ganhou a obra o mineiro Custódio Ferreira Leite, que colocou seus sobrinhos, sete irmãos da família Teixeira Leite, para assessorá-lo. Essa família, bem como outras, estabeleceram-se num arraial na beira da estrada no lugar denominado “Vassouras” e passaram a ali residir depois da inauguração do novo caminho em 1820. Cf. RIBEIRO, Armando V. Leite. Família Vidal Leite Ribeiro. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1955, p.39-42.

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rios ampliaram sua participação na posse de cativos de 34,5% para 74,23% entre 1836 e 1850; para 72,2% entre 1851 e 1865; e para 70,24% entre 1866 e 1880. Ao longo do século XIX, muitos pequenos e médios proprietários que dependiam dos grandes cafeicultores acabaram em dificuldades e perderam ou se desfizeram de suas posses (SALLES, 2007, 292-296). Como demonstrou João Fragoso, em Paraíba do Sul, ocorreu o mesmo. Como consequência disso, os grandes senhores tiveram facilidade de ampliar suas posses sobre a terra e os cativos necessários para atender a demanda crescente do mercado internacional (FRAGOSO, 1998, 362-369). Tal situação era oportuna para os homens de negócios da família Teixeira Leite, pois tanto obtinham como ofereciam crédito para esses proprietários. A família emprestava dinheiro até para a Câmara municipal (ANTONIO, 2012, 96). Conforme Stein, durante o apogeu da produção de café em Vassouras, na década de 1850 e início de 1860, os comissários do Rio de Janeiro, voluntariamente, adiantavam créditos aos seus clientes na garantia de colheitas futuras e taxas de juros variando entre 12% e 18% ao ano (STEIN, 1990, 45). A participação na Sociedade de Mineração de Mato Grosso era, portanto, apenas um dos investimentos dos Teixeira Leite no começo da década de 1850. Por fim, Irineu Evangelista de Souza também fazia parte da direção da Sociedade. O único documento localizado sobre sua participação na empresa registra que, em 1857, ele figurava como presidente do diretório. Naquela oportunidade, o então barão de Mauá encaminhou ofício ao presidente da província comunicando que recebera o pedido de demissão do médico Medardo Rivani (LEVERGER, 1857).

Como sabemos, Irineu Evangelista de Souza teve participação destacada no estabelecimento de inúmeros negócios no Império brasileiro e fora dele ao longo do século XIX. Evangelista possuía vários outros empreendimentos que seriam importantes para o crescimento econômico, social e territorial brasileiro, como o estabelecimento de inúmeras ferrovias no país: primeiras linhas regulares de vapores do rio Amazonas em janeiro de 1853, mantidas pela Companhia de Navegação e Comércio do Rio Amazonas (SOUZA, 2007, 41-41; GREGÓRIO, 2009, 10).

portanto, fragmentadas e foram reunidas a partir da documentação acerca dos africanos livres principalmente.

Desse modo, no afã de promover novas atividades econômicas por todo o país, observa-se o Estado Imperial atrelar-se às nascentes companhias e sociedades privadas, mantendo conjuntamente atividades comerciais, algumas relacionadas à agricultura, mineração, navegação, ferroviária, melhoramentos urbanos, etc.

Tendo nesta data mandado entregar ao presidente do Diretório da Sociedade de Mineração do Mato Grosso, o cidadão Custódio Teixeira Leite, cem Africanos boçaes dos ultimamente apreendidos, que a mesma Sociedade pediu para serem empregados nos trabalhos daquela mineração; manda o Governo Imperial recomendar a V. Exª que tenha os referidos Africanos sempre debaixo da vigilância e tutela de algum empregado de sua confiança, para que se estipulou, como condição, que o encarregado de vigiar e tratar deles seja escolha de V. Exª e paga pela Sociedade (LEVERGER, 1851).

Concretamente, o Estado oferecia várias vantagens como garantia de juros e isenção de impostos baixos na construção de ferrovias e exclusividade para realização das atividades durante determinados prazos às companhias de ferrovia e navegação, como nos casos da Sociedade de Mineração de Mato Grosso e da Companhia de Navegação a Vapor do Amazonas, para as quais houve a disponibilização de mão de obra dos africanos livres.

A concessão dos africanos livres para a Sociedade de Mineração de Mato Grosso Os citados “Regulamento para os trabalhos da Sociedade e o “Regimento Interno” da Sociedade, de acordo com os quais a Sociedade operava e que, certamente, deviam pormenorizar as atividades de prospecção, relacionar os trabalhadores e suas respectivas atribuições, etc., não foram localizados durante a pesquisa nos arquivos. As informações dispostas são,

O primeiro presidente do diretório da Sociedade foi Custódio Teixeira Leite, pois em 16 de agosto de 1851, o ministro da justiça, Eusébio de Queirós Coutinho Mattozo da Câmara, encaminhou correspondência ao presidente da província de Mato Grosso, informando que os cem africanos livres haviam sido entregues ao referido diretor nos seguintes termos:

A partir dessa comunicação do ministro Eusébio de Queirós, percebe-se que as autoridades de Mato Grosso planejaram um conjunto de ações que foram sendo instrumentalizadas cotidianamente. Dentre elas, o meio de manter os africanos sob constante vigilância e cuidados. Logo, iniciou-se uma troca de correspondências entre os gabinetes do presidente da província de Mato Grosso e do ministro dos Negócios da Justiça do Império. A partir da Lei de 1850 − a Lei Eusébio de Queirós, que voltou a proibir a importação de africanos e estabeleceu novas formas de repressão −, proibiu-se que os africanos livres fossem concedidos para particulares, mas, como visto, esse fato não impediu que o ministro Eusébio cedesse esses trabalhadores para uma empresa particular.

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Essa concessão foi criticada em sessão da Câmara dos Deputados em 15 de julho de 1852. Eusébio de Queirós foi acusado pela oposição, representada pelo deputado de Minas Gerais, Mello Franco, de favorecer os membros da Sociedade com cem africanos, isso porque esses particulares “seriam do círculo dos protegidos” do ministro: “E entendo que o procedimento do governo, fazendo somente concessão, não se fundou senão no desejo de fazer um favor a três ou quatro particulares […]”, (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 227). O deputado mineiro em seu confronto com Eusébio de Queirós acusou-o de beneficiar e favorecer a valorização das ações da Sociedade por causa da concessão feita e ainda disse que a cedência de um número tão grande, do que ele chamou propositadamente de escravos, seria um favor cedido para poucos, pois quando a Companhia foi organizada: ninguém sabia nem podia prever quais seriam os seus lucros; entretanto apenas se soube que o governo lhe fez presente de 100 escravos (é o nome que lhes dou), imediatamente as suas ações tiveram prêmio. Ora, dar-se assim 100 escravos é para me autorizar a dizer que os tais senhores que receberam semelhante favor são do número dos poucos felizes que existem entre nós (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 227).

Eusébio de Queirós defendeu-se dizendo que a Sociedade de Mineração de Mato Grosso havia recebido os africanos em um período em que as apreensões se sucediam, pois devido à superlotação da Casa de Correção, aquela instituição não teria como acomodá-los, alimentá-los e nem tratar de suas várias doenças. Segundo o ministro, esse teria sido o momento em que o governo desejou que aparecessem interessados em afastá-los daquele ambiente contagioso. No entanto, o governo tinha conhecimento que não

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devia cedê-los aos particulares, e os representantes das obras públicas do governo só queriam os africanos saudáveis, próprios para o trabalho e que governo desejava “ardentemente achar quem recebesse esses africanos, quem os separasse daquele núcleo que tão prejudicial era à saúde pública”(Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 255). Em sua defesa, Eusébio de Queirós falou que essa situação sobre os africanos livres “embaraçava” o governo, pois devido à tenra idade dos africanos apreendidos, “poucos eram os que queriam recebê-los e isto embaraçava de tal maneira o governo que, em vez de ser um favor dá-los, era um favor achar quem os recebesse” (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 255). O ministro, em sua longa justificativa na Câmara dos Deputados, explicou que não cedeu os cem africanos para a Sociedade de Mineração, mas sim para Custódio Teixeira Leite. Porém, ao mesmo tempo em que declarava não conhecê-lo muito, informava também que Custódio Teixeira Leite era de confiança do governo: “cidadão com quem eu mal tenho relações, mas que conheço principalmente pela reputação de fazendeiro importante e conceituado; vê-se que não se entregaram os africanos à companhia, entregaram-se a um homem de confiança do governo” (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 255-256). Eusébio de Queirós acrescentou ainda que foi nomeado um administrador − certamente o guarda dos africanos livres −, para manter os trabalhadores africanos sempre reunidos e trabalhando sob sua inspeção. O salário desse encarregado e as despesas com sustento e vestimenta dos africanos livres ficariam por conta da Sociedade que em troca “aproveita o serviço que eles prestarem. Ora, não sei que nisso haja objeto para censura, não sei como o nobre deputado pôde enxergar nisso um ato de favoritismo”, (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977).

Como visto, os africanos livres foram entregues para o diretor presidente da Sociedade de Mineração de Mato Grosso em agosto de 1851, e na empresa, trabalhariam exercendo atividades não apenas na área de mineração, como também em outros serviços. Os membros da diretoria da Sociedade, e talvez outros sócios, eram homens influentes com estreitos relacionamentos de negócios e sociabilidades com políticos e a elite da Corte. Essas características, aliadas à disposição desses homens em buscarem novos empreendimentos para investirem seus capitais, certamente favoreceram o recebimento da concessão dos africanos livres. Desse modo, essas questões podem indicar que os representantes do governo imperial uniram os interesses do Estado aos do grupo da Sociedade, mesmo contra o que determinava a lei e ainda sem se preocupar com as críticas. Todas essas razões devem ter sido consideradas no ato do acordo entre o governo imperial e a direção da Sociedade, pois assim Eusébio de Queirós deixou entrever, no ato final de seu inflamado e ovacionado discurso, destacando que a concessão dos africanos livres era um desses “atos de favor que os governos devem fazer às companhias”, porque elas poderiam ser de grande utilidade para o desenvolvimento do país. No caso específico da Sociedade, Eusébio de Queirós informou que, além das novas descobertas no campo da mineração, a empresa iria construir uma estrada de Cuiabá ao Pará, por isso merecia o mérito do recebimento da mão de obra gratuita: “Ora, uma empresa desta qualidade julgo que bem merecia ser animada com a concessão de simples serviços de cem africanos, que aliás, o governo pode retirar quando achar conveniente, pois não se concedeu com prazo e, sim, ad nutum” (Anaes do Parlamento Brasileiro, 1977, 256). Pelo que se sabe, no Brasil, nenhuma ou-

tra empresa privada recebeu a concessão de tantos africanos livres. Como é sabido, no período, somente os grandes e mega proprietários possuíam tantos cativos, no entanto, eles pagavam para adquirí-los.Vê-se, nesse discurso, por um lado, o destaque e importância dada à Companhia – tendo em vista sua utilidade naquele momento –. Por outro lado, a tentativa de minimizar o privilégio concedido, ou seja, a força de trabalho de cem africanos, entre homens e mulheres jovens, em troca de vestimenta e pão. O período estava aberto as novas possibilidades econômicas, logo, os capitalistas da empresa se uniram ao governo imperial e, a partir da Sociedade, investiram em uma região que era estratégica. O interesse do governo, conforme a fala de Eusébio de Queirós parece que estava voltado para o desenvolvimento daquela área de fronteira de tão vasta extensão; já para os membros da Sociedade, aquele mesmo espaço seria vantajoso porque poderia guardar fabulosas riquezas em ouro e diamantes e, por consequência, gerar lucros. A eles uniram-se os presidentes da província que tinham particular interesse no crescimento da região, compondo-se, assim, uma aliança de interesses entre o governo imperial, a empresa e representantes locais. Assim, essa não foi prática experimentada apenas pela Sociedade de Mineração de Mato Grosso. O estabelecimento das relações de trabalho dessa empresa intercalava trabalho escravizado e compulsório com trabalho assalariado. Desse modo, ela não apresentou distinção em relação a outras empresas do período, que também propalavam desenvolvimento e progresso para a Nação. Muitas das companhias de navegação a vapor, ferrovias e companhias de mineração inglesas instaladas em Minas Gerais apresentavam as mesmas relações de trabalho: assalariadas,

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escravizadas e compulsórias. No caso das companhias de mineração inglesas de Minas Gerais, uma delas, a Anglo-Brazilian Gold Company, em Morro Velho, recebeu a concessão de trinta e cinco africanos livres, “fora alguns menores e alguns poucos ao serviço das companhias do Morro de Santana, em Mariana”.4 Conforme constatado por Rafael Souza, além desses trabalhadores, essa companhia também empregava mulheres e crianças que, assim como muitos outros trabalhadores da empresa, estavam submetidos a regime de vida e trabalho degradantes e mal remunerados. Dessa maneira, muitos trabalhadores foram inseridos em tantos outros projetos espalhados pelo país. Como os africanos livres empregados em companhias de reforma e construção de estradas terrestres e ferroviárias; companhias de navegação e colônias. Assim como um grupo de africanos livres foi cedido para a Sociedade de Mineração de Mato Grosso, outro foi enviado a serviço da citada Companhia, idealizada pelo barão do Mauá. Nessa última, assim como na Sociedade de Mineração de Mato Grosso, os africanos livres foram inseridos no bojo do trabalho compulsório.

4 Relatório que a Assembleia Legislativa da província de Minas Gerais apresentou no ato da abertura da sessão ordinária de 1865, o desembargador Pedro de Alcântara Cerqueira Luiz, presidente da mesma província. Ouro Preto. Typ. de Minas Geraes. In: SOUZA, Rafael de Freitas e. “Trabalho e cotidiano na mineração aurífera inglesa em Minas Gerais: A Mina da Passagem de Mariana (1863-1927). Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009, p.98.

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Imigração francesa e redes de comércio na Fronteira Brasil-Argentina (Segunda metade do século XIX)

Márcia Solange Volkmer1 Professora do Centro Universitário Univates [email protected]

Resumo: A presente pesquisa mapeia a presença e analisa a inserção econômica e social dos imigrantes franceses na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Trata-se de indivíduos que cruzam o Oceano Atlântico atraídos pelas políticas de imigração dos Estados platinos e acabam se estabelecendo nas cidades de Itaqui, Uruguaiana e São Borja em meados do século XIX. Nesse período, quando acontece a abertura dos rios da Bacia Platina para a navegação internacional, essas pequenas vilas fronteiriças desenvolvem-se comercialmente, habilitando uma rede de fornecedores, transportadores e comerciantes ao longo de toda a região integrada pelo rio Uruguai. O trabalho analisa essa dinâmica econômica e evidencia as formas de atuação dos imigrantes franceses, que estabeleciam relações de amparo com os seus compatriotas, e teciam vínculos com outros grupos sociais, garantindo a sua inserção num espaço regional de negócios transfronteiriços. Palavras-chave: Imigração francesa. Comércio. Fronteira. Século XIX.

Abstract: This survey maps the presence and analyses the economic and social insertion of the French immigrants on the Western Border of Rio Grande do Sul State. These are individuals who crossed the Atlantic Ocean attracted by the immigration policies of the Plate countries and who settled in the towns of Itaqui, Uruguaiana and São Borja during the mid-nineteenth century. During this period, when the Plate basin rivers were opened to international navigation, these small border villages developed commercially, enabling a network of suppliers, transporters, and traders throughout the region integrated by the Uruguai River. The present work analyses the economic dynamics and highlights the actions of the French immigrants, who established relationships of support with their compatriots, and forged links to other social groups, ensuring their integration in a regional cross-border business space. Keywords: French immigration. Trade. Frontier. Nineteenth century

1 Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ UFRGS. Bolsista Capes. Professora do Centro Universitário Univates, Lajeado/RS.

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Imigração francesa e redes de comércio na Fronteira Brasil-Argentina (Segunda metade do século XIX)

Introdução

C

om a abertura dos rios da Bacia Platina à navegação internacional, no ano de 1852, a fronteira oeste do sul do Brasil receberia um grande incremento populacional e comercial. A partir desse momento, as cidades de Uruguaiana, Itaqui e São Borja despontam como importantes praças mercantis, situadas na rota dos produtos que partiam de Buenos Aires e Montevidéu e seguiam até o Paraguai. O mesmo caminho seria percorrido pelos imigrantes europeus, atraídos pelas possibilidades de negociar nessa fronteira. Essas cidades, localizadas por sobre o limite geopolítico entre o Brasil e a Argentina, eram pequenos núcleos populacionais urbanos que foram aparecendo em locais de acampamento ou fortificações militares no projeto de expansão português. No entanto, rapidamente veem-se transformadas a partir de meados do século XIX. A “viva atividade comercial que se manifestava em todos os recantos”(AVÉ-LALLEMANT, 1953), e que tanto impressionou ao viajante europeu, acabava de adquirir importância significativa num âmbito estadual. Através da alfândega de Uruguaiana, dos portos e coletorias de Itaqui e São Borja, eram introduzidas mercadorias importadas de ultramar que abasteciam grande parte da metade oeste do estado do Rio Grande do Sul. Por esta via fluvial, a região vinculava-se ao comércio internacional (MEDRANO, 1989): embarcações transportavam manufaturados europeus, e ao retornar traziam erva-mate, couros e produtos da lavoura local. Importante é salientar o papel central da exportação da erva-mate (produto de maior geração de riquezas para a Província depois dos produtos bovinos) que, durante a maior parte da segunda metade do século XIX, teve pelo menos a metade de toda a sua produção estadual exportada pelo porto de Itaqui. Esses portos da fronteira gaúcha

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estavam ligados também ao Paraguai, de cuja rota tornaram-se portos centrais no movimento de reexportação de mercadorias. A abertura dos rios platinos à livre navegação e comércio possibilitou tal incremento aos negócios na região, que o comércio de exportação e importação pelas praças da fronteira, ligadas aos Portos de Buenos Aires e Montevidéu, passou a abastecer várias cidades gaúchas e habilitou ao exercício um importante grupo de comerciantes e transportadores de mercadorias. Dentro desse grupo de indivíduos vinculados ao comércio, predominam aqueles imigrantes de origem europeia, sobretudo os franceses, que começam a se estabelecer na região justamente em função das possibilidades de negócios que a fronteira passa a lhes oferecer. A condição do comércio realizado na fronteira, e a sua vinculação com a região do Prata, permitiram a esses indivíduos uma inserção econômica bastante diversificada, que será analisada no texto.2 Os imigrantes europeus que viveram nas cidades estudadas na segunda metade do século XIX, chegaram até a região da fronteira partindo dos portos de Montevidéu e Buenos Aires. Atraídos pelas políticas imigratórias dos vizinhos platinos, muitos permanecem morando por alguns anos nas províncias argentinas ou uruguaias antes de realizaram uma nova migração até a fronteira brasileira. Esse movimento imigratório na região oeste do Rio Grande do Sul não aparecia nas estatísticas oficiais do Império Brasileiro e também não tinha ainda recebido atenção da historiografia. Portanto, para iniciar a pesquisa (VOLKMER, 2013), foi necessário rastrear esses imigrantes. Numa aproximação aos 2 O estudo baseia-se no conceito de redes sociais. Trata-se de um recurso metodológico que permitirá a abordagem adequada para o estudo aqui proposto, no que se refere à circulação de informações, à diversidade e complexidade das relações entre os indivíduos e à mobilização de recursos diversos por parte dos negociantes franceses de Uruguaiana, Itaqui e São Borja. A delimitação do espaço de análise respeita igualmente a existência dessas relações. Portanto, considera-se a região em estudo como um espaço integrado, no qual as relações sociais pautam as especificidades e características analisadas.

métodos da Demografia Histórica, pretendeu-se a localização dos imigrantes e a reconstituição das famílias a partir dos registros eclesiásticos, nos quais foram mapeados 1.524 imigrantes europeus, dos quais 264 eram franceses. Para agregar dados àquela população, como, por exemplo, a ocupação, foram mapeados os registros civis de casamentos, os inventários e testamentos e os processos criminais dos respectivos municípios. Ao mapear a presença dos imigrantes europeus, constata-se que o grupo dos franceses foi o primeiro a se estabelecer na região3, lhe conferindo maiores possibilidades de integração com a sociedade local. As cidades de Itaqui, Uruguaiana e São Borja, espaço de análise deste estudo, não eram grandes centros urbanos em 1850. No entanto, as possibilidades de comércio nesta fronteira foram fundamentais para a atração dos imigrantes franceses. Dos indivíduos para os quais conhecemos a ocupação, 38,7% dos franceses da fronteira dedicavam-se ao comércio e transporte das mercadorias. Com o aumento da população e chegada dos imigrantes europeus, essas vilas convertem-se em espaços menos vinculados ao entorno rural, e os imigrantes franceses se inseriram nestas atividades diversas que os núcleos urbanos exigiam. A documentação consular e principalmente os dossiês nominativos encontrados nos Archives Diplomatiques, em Nantes, associados às informações de inventários, ações ordinárias e processos criminais revelam a atuação dos comerciantes franceses no espaço fronteiriço. Ao 3 O fluxo de franceses para a região aumentou durante a década de 1840 e se manteve alto a partir de então. A Província de Entre Ríos teria uma presença de franceses muito significativa, interferindo nesse processo os projetos de colonização do Governador Justo José de Urquiza, que atraiu famílias francesas para a fundação de colônias agrícolas. Os franceses que chegam à fronteira brasileira, depois de percorrer o interior da Argentina ou do Uruguai, eram, na sua maioria, homens solteiros, provenientes do Sudoeste Francês que se estabelecem no espaço urbano das pequenas cidades fronteiriças e se dedicam às atividades mercantis e serviços urbanos. Nesse sentido, para os franceses que emigravam para a América do Sul em meados do século XIX, comércio e serviços lhes possibilitaram boas oportunidades de negócios e inserção social na cidade que lhes acolhia.

mapear os interesses comerciais franceses no mercado dos países sul-americanos, confirma-se a atuação dos cônsules como importantes intermediadores dos agentes mercantis. Ao percorrer algumas trajetórias individuais, apoiando a análise no conceito de rede social, procurou-se conhecer algumas possibilidades de inserção social dos comerciantes franceses, bem como o ordenamento desta dinâmica comercial da região da fronteira gaúcha.

1.Os interesses comerciais franceses Na América do Sul, a vinculação comercial da França com a Argentina foi bastante intensa ao longo da segunda metade do século XIX. O país sul-americano convertia-se num grande importador de bebidas, roupas e objetos franceses, enquanto que para os portos daquele país, a Argentina enviava toneladas de lã. Para a efetivação dessas trocas, tornava-se importante a colocação de comerciantes franceses nos principais portos platinos. Denise Takeya nos sugere que os comerciantes franceses do século XIX tinham acesso a uma rede coletora de informações que dava conta de evidenciar espaços propícios para sua atuação. Esta rede, baseada no trabalho dos cônsules, recrutados entre os próprios comerciantes, garantia a produção de um conhecimento bastante amplo, regular e abrangente sobre os países americanos (TAKEYA, 1998,61). Nesse sentido, a presença da representação consular francesa representava justamente a importância dos mercados regionais nos quais se estabeleciam, e o interesse em expandir as relações comerciais com essas regiões. Na Argentina, antes mesmo do estabelecimento dos consulados, as missões diplomáticas francesas já “tinham por finalidade proteger os interesses dos comerciantes instalados e desenvolver os intercâmbios comerciais entre ambos os países.” (OTERO, 2012, 90)4 4 As missões enviadas pela França para a Argentina começaram em

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No período rosista, 1829-1852, a situação não foi muito favorável aos franceses e comercialmente a Inglaterra conseguiu assinar acordos mais vantajosos. No entanto, esses interesses não foram abandonados e estão em todos os discursos dos agentes consulares franceses – o objetivo era o de incrementar o comércio da França na América do Sul. “A incipiente presença de franceses a partir das décadas de 1820 e 1830 mostra já alguns dos traços que caracterizariam esse grupo, entre os quais se destaca a sua inserção preferencial na cidade de Buenos Aires e a existência de um setor comercial significativo e muito diversificado” (OTERO, 2012,179) que será auxiliado pelas autoridades consulares.

prios imigrantes começariam a produzir o vinho, competindo em preço com aqueles trazidos da Europa. Até 1890, as relações comerciais entre a França e a Argentina tiveram importância tão grande quanto aquelas que a Argentina tinha com a Inglaterra. “O comércio entre ambos os países cresceu, sobretudo a partir de 1860, momento em que a França importava quase metade da lã produzida na Argentina. Desde 1876 até o final do século, a França foi o principal receptor das exportações argentinas, com valores que chegavam aos 30%” (OTERO, 2012, 129) Durante toda a segunda metade do século XIX, a França foi a segunda provedora de artigos manufaturados para a Argentina.

Na perspectiva que objetivava o desenvolvimento das relações comerciais, passa-se a entender o incentivo à imigração como fator que poderia alavancar o consumo e o comércio de produtos franceses pelo mundo. No discurso que passa a ser veiculado em algumas câmaras de comércio, haveria uma possível vinculação da emigração de franceses com o estreitamento de relações comerciais decorrentes disso. Defendia-se a correlação entre imigração francesa e importação de produtos dessa origem. Vários teóricos da imigração passam a incentivar as saídas enfatizando os ganhos econômicos que os imigrantes representariam para a França desde o país de destino. “O argumento assegurava que os imigrantes tendiam a manter os seus hábitos de consumo pré- imigratórios, provocando assim um aumento das importações dos países respectivos.” (OTERO, 2012,128)

O mesmo grau de importância nas relações comerciais da França se deu com o Uruguai. Em 1865, o maior volume de exportação e importação de mercadorias com o porto de Montevidéu era feito com aquele de Havre. Mas as trocas com Marselha e Bordeaux também eram significativas. De Montevidéu eram trazidos couros secos e salgados, peles, carne e lã. Dos portos franceses partiam com destino ao Prata: vinhos, frutas confeitadas, óleo de oliva, vinagre, açúcar refinado, porcelanas, chapéus, sapatos, gesso e vidro.5 Além de aumentar as possibilidades de comércio com o país de destino dos imigrantes, a emigração também era entendida como fonte de lucros, principalmente para os portos. O decreto de emigração assinado na França em 1855 tinha a preocupação de regular as viagens e garantir condições adequadas de travessia aos emigrantes, mas também garantir a ordem e cobrança de tributos dos emigrantes vindos de outros países europeus que emigravam através dos portos franceses. Subjacente a esses decretos estava o objetivo de atrair aos portos franceses – sobretudo Havre – o maior número de emigrantes possível. Os ganhos econômicos através da emigração de indivíduos vindos de todos os países europeus

Efetivamente, a importação do vinho francês para a Argentina teve um grande incremento quando da chegada dos imigrantes franceses a partir da década de 1840, mas logo os pró1817 e foram permanentes até o final do século. O primeiro cônsul geral francês foi nomeado na Argentina em abril de 1827. Tratou-se de Jean Baptiste de Mendeville, agente de comércio em Buenos Aires desde 1825, sendo que a Mendeville, Loreilhe y Cía era uma das mais importantes firmas francesas na década de 1820.

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5 Archivo General de la Nacion – Uruguay (AGNU), legajo 426.

garantiriam bons recursos e o desenvolvimento dos portos franceses. Hernán Otero destaca que a proibição da emigração de franceses para determinados países na segunda metade do século possivelmente tivesse relação com os interesses, propósitos ou resultados comerciais. O Estado Francês “em 1875 proibiu a emigração para a Venezuela e Brasil, medida que durou até 1883, e que originou o protesto da Câmara de Comércio de Bordeaux, porto especializado nestes destinos. A Argentina nunca foi alcançada por medidas desse tipo, provavelmente porque as relações comerciais, financeiras e culturais entre ambos os países representavam um sólido vínculo.” (OTERO, 2012, 72)

2.Comerciantes franceses na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul Ao analisar a documentação da Câmara de Comércio Francesa em Montevidéu e da representação consular francesa no país,6 deparamo-nos com um aparato burocrático que tinha como objetivo facilitar as trocas comerciais entre os portos franceses e Montevidéu. Fica claro na documentação que uma das funções do Consulado e de seus agentes era a de cooperar para o fomento das relações comerciais entre os dois países. O cônsul uruguaio em Marselha, no ano de 1887, revelava que ainda era grande a quantidade de mercadorias que saíam da França rumo aos portos platinos. De Marselha, eram exportados azeite de oliva, sabão, vinho, remédios e móveis com destino a Montevidéu.7 Mas o mais interessante que essa documentação nos permite aceder é à rede de agentes envolvidos na compra e transporte dessas mercadorias. O contato direto do agente consular, que despachava as mercadorias e vistoriava os barcos, se dava com os chamados carregadores. São estes indivíduos (geralmente donos do barco ou 6 AGNU – legajo 426. 7 AGNU – legajo 426.

empregados deste) que vão até a França buscar as mercadorias que serão trazidas para o Prata. Chegando em Montevidéu ou Buenos Aires, essas mercadorias seriam entregues para os consignatários – os proprietários das casas comerciais que revendem essas mercadorias para outros comerciantes. Em razão do dispendioso da viagem, geralmente, pelo que indicam os despachos, um mesmo carregador trazia mercadorias para vários consignatários. Esse carregador poderia ser um agente marítimo ou mesmo uma companhia de navegação. Já o consignatário era o destinatário da mercadoria em terras platinas. Mas entre o carregador e o consignatário poderia existir um intermediário – o recebedor. Este agente recebe as mercadorias francesas em Montevidéu para redistribuí-las entre diversos consignatários. Esses despachos, feitos “à ordem” do recebedor, pagavam um único imposto de selo. O relato vindo da Direção de Aduanas, nos permite perceber que as relações que se estabeleciam entre o carregador e os consignatários das mercadorias revestiam-se com um caráter de solenidade, ou seja, um contrato entre as partes que garantia o sucesso das compras feitas. Diante desse comprometimento, afirmam as autoridades, não seria compensador para esses agentes tentar burlar o pagamento de pequenas somas, sendo que o que estava em jogo era justamente a manutenção dessa rede de compromissos e fidelidades. Da mesma forma, pode-se supor que os favorecimentos estavam na relação estabelecida entre as duas partes mencionadas, ou seja, o agente exportador, aquele indivíduo que carregava e despachava as mercadorias nos portos franceses e aqueles comerciantes para quem as mercadorias tinham sido compradas e remetidas até os portos uruguaios. Qualquer indivíduo que fosse intermediar essa relação tiraria proveito financeiro disso e consequentemente seriam menores os lucros do carregador.

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Para chegar até a Fronteira gaúcha, em um movimento de subida do rio Uruguai, outros tantos agentes se apresentam para o negócio. Há alguns indícios de que os grandes comerciantes da fronteira compravam as mercadorias diretamente dos consignatários estabelecidos em Montevidéu ou Buenos Aires. Esses chamados atacadistas acabam se tornando os segundos consignatários das mercadorias, uma vez que revendiam a sua compra para comerciantes menores da Província de São Pedro. Outra possibilidade era a venda realizada através dos agentes de comércio das casas consignatárias de Montevidéu8 ou Buenos Aires, que enviavam seus vendedores até a Fronteira para fazer os pedidos, sendo a mercadoria enviada através de barqueiros.

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transportador garantia a eficiência e lucratividade das transações. A chegada e saída de uma embarcação precisava estar muito bem “arranjada” para se aproveitar o trajeto do retorno igualmente levando mercadorias. Para tanto, o embarque do que seria levado deveria ser organizado antes mesmo da embarcação chegar ao porto. Nesse sentido, o estabelecimento de relações – estáveis e de confiança – entre os agentes de ambas as margens do rio Uruguai era fundamental para o sucesso das transações comerciais.

Para esses indivíduos, as relações comerciais exigem tempo, energia e apresentam riscos. “Os negociantes implicados devem estruturar redes que permitam a circulação eficaz das informações e dos pagamentos; organizar o transporte das mercadorias; distinguir os gêneros e produtos rentáveis; encontrar parceiros de negócio confiáveis.” (MARZAGALLI, 2010, 92) Ao estudar as vinculações entre os agentes mercantis da fronteira, percebe-se o quão importante era a participação dos mestres das embarcações para a estruturação das rotas mercantis. Encontramos indicadores de relações de fidelidade e/ou confiança, uma vez que os vínculos entre esses mestres de embarcação e os comerciantes que recebem as mercadorias são importantes para diminuir os riscos do percurso e fortalecer a segurança das trocas comerciais. Para o comerciante, era importante não receber as mercadorias danificadas ou mesmo faltando parte do volume comprado. Para o mestre da embarcação, fundamental era ter a certeza de que receberia o valor do frete. Essa cumplicidade entre comerciante e

Eugénio Danrée foi um negociante francês estabelecido com uma casa importadora na Montevidéu da década de 1880.9 Em outubro de 1888, Danrée recebia 700 caixas de cerveja, vindas de Hamburgo e retiradas na aduana montevideana. A exemplo desta cerveja, que Danrée dizia “sempre teria sido bem aceita no Prata e que ela era recebida na República Argentina, no Brasil e no Paraguai”, esses comerciantes revendedores das mercadorias europeias sabiam quais produtos seriam facilmente vendidos no Prata. Tanto o Brasil como o Paraguai eram mercados consumidores dos produtos saídos dos portos europeus, chegados no Prata e enviados para os seus destinos de consumo. Assim sendo, bebidas e produtos alimentícios de toda espécie eram transportados ao longo dos rios Paraná e Uruguai até as cidades consumidoras. Em relação aos comerciantes estabelecidos nos portos dispostos ao longo desses rios, percebe-se uma hierarquia e diversidade bastante grande. Há desde aqueles com negócios em Buenos Aires, Montevidéu e vilas da fronteira, agregando diversos caixeiros e diversificando seus investimentos, até aqueles que vendem suas mercadorias, em baús, pela campanha dos municípios. Há ainda muitos estabelecidos com casa de negócio – geralmente de secos e molhados – na área central das vilas.

8 Em Montevidéu, para meados do século XIX, são nomeadas algumas casas de consignação e venda de mercadorias vindas da França: Juan Shauv, Máximo Carrera Cia, Dufrechou y hijos, Petit, Seré, T. Vilaró, R. Cazam Hermano, Hufnagel e ainda Plottier Cia, de Paysandú.

9 AGNU, legajo 452.

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2.1 A inserção na rede mercantil Marcelino Domingos Lacroix, francês, estabelecido com “casa de negócio com fazendas e molhados por grosso e miúdo” em Itaqui, chegará à fronteira, ainda solteiro, no início da década de 1850. No ano de 1856, casa-se com Cândida Marques Barboza, com quem terá doze filhos. Antes ainda de seu casamento, no entanto, Lacroix consegue se inserir no mundo dos negócios fronteiriços vinculando-se com um comerciante já estabelecido na região. O comerciante Manoel Diamico faleceu em Itaqui no dia 15 de outubro de 1855,10 deixando como bens uma casa, mercadorias, um bote no porto de Uruguaiana, e “uma letra de cinco mil patacões prata, passada por Marcelino D. Lacroix, assim como mais em créditos da importância de oito mil patacões passado pelo mesmo Marcelino D. Lacroix, a prazo de seis meses”.11 Proprietário de um bote registrado no porto de Uruguaiana, e vinculado ainda a outros mestres de embarcações, Diamico trazia as mercadorias de diferentes portos do Prata até Itaqui, onde as revendia. No seu inventário, consta ele ter em estoque na sua casa comercial uma grande quantidade de farinha de trigo, aguardente, vinho, cerveja e mais produtos. As dívidas passivas de Diamico evidenciam as suas relações comerciais com Santiago Gandolpho, da Vila de Cruz Alta, Andres Falle & Cia, de Montevidéu, Jacinto Cabrera, da Restauração, além de alguns credores em Uruguaiana. Além dos bens declarados em Itaqui, consta no inventário que Manoel Diamico possuía uma morada de casas na povoação do Salto Oriental, e outra casa na Constituição, departamento do Salto Oriental. Declara-se ainda que “existiam em poder de Fernando, morador no Salto, nove carretas e oitenta e dois bois mansos”. Ou seja, além do transporte de mercadorias 10 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), Inventários Itaqui. Cível e crime, maço 03, autos n.65. 11 Idem.

trazidas através do rio Uruguai com o seu bote, Diamico era proprietário de nove carretas que faziam o transporte de mercadorias por via terrestre, desde Salto até a fronteira gaúcha. Em Salto, Diamico tinha uma segunda base de atuação comercial – com casa, empregados e carretas – que permitia a redistribuição das mercadorias vindas de distintos pontos, em embarcações ou carretas, e o seu envio para as cidades da fronteira gaúcha. Essa estrutura comercial montada por Diamico permitia a ele um rápido e rentável deslocamento de mercadorias vindas de Constituição ou Salto até Uruguaiana e Itaqui. Para tanto, ele dispunha de um bote, para o transporte via rio Uruguai e ainda contava com carretas e bois que permitiam o transporte de tais mercadorias por terra. Dessa maneira, comprando mercadorias em Montevidéu ou então dos distribuidores em Salto, ele tinha todas as vantagens ao trazer tais mercadorias até Uruguaiana e Itaqui, onde as revendia para os comerciantes locais. É a este comerciante, importador de mercadorias, que Marcelino D. Lacroix vai se vincular logo da sua chegada em Itaqui. No inventário de Diamico, “declarou a inventariante ser devedor ao monte Marcelino D. Lacroix, por uma letra contra João Manoel Fernandez, do Salto, a quantia de 10:000$000.” Lacroix devia mais 16:000$000 por um crédito e 1:092$500 por acerto de diversas contas. Nesse sentido, Lacroix vai se tornar devedor da quantia de mais de 27 contos de réis em empréstimos e créditos cedidos por Diamico. No entanto, o que se percebe é que esse valor será a base de seus investimentos e da sua inserção nessa rede comercial que interligava o litoral argentino, o nordeste uruguaio e a região da fronteira do Rio Grande do Sul via rio Uruguai. Em janeiro de 1854, nos registros de importação da Alfândega de Uruguaiana, Diamico & Lacroix aparecem despachando para consumo mercadorias vindas de Salto. No mesmo mês, História e Economia Revista Interdisciplinar

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Marcelino Lacroix despacha um carregamento de erva-mate e madeiras vindas de Itaqui, sendo que também enviava deste porto para o de Uruguaiana couros e cabelos. Nos registros da Alfândega, Diamico & Lacroix aparecem colocando em funcionamento aquela rede de transporte que fica indicada no inventário – as mercadorias eram transportadas de Salto nas carretas e também chegavam em Uruguaiana ou Itaqui através do rio Uruguai. Pelo rio Uruguai, também, Diamico e Lacroix exportavam a erva-mate. Ou seja, aproveitavam aquela estrutura de embarcações e carretas também para o transporte e exportação do produto cuja comercialização gerava mais lucros nesta fronteira – a erva-mate. Os registros indicam que a venda da erva se dava diretamente na praça de Montevidéu, evitando os intermediadores, e lhes conferindo maiores lucros. Diamico comprava a erva-mate do comerciante Gandolpho, de Cruz Alta e a enviava para Montevidéu, além de ser revendida em Itaqui e Uruguaiana. Diamico, portanto, comprava e revendia a erva-mate, exportando-a para os países vizinhos, de onde trazia para a fronteira os produtos estrangeiros que seriam consumidos nas cidades de Uruguaiana, Itaqui e São Borja. Quando da morte de Diamico, Marcelino Lacroix torna-se o herdeiro dessa rede de contatos, vínculos e da estrutura comercial. Até o ano de 1855, percebe-se Lacroix vinculado, mas ainda dependente do sócio Diamico, inclusive pagando aluguel pela ocupação de uma casa de propriedade do sócio. Depois da morte do sócio, Lacroix assume integralmente os negócios. Na década de 1860, Vicente Lopes, casado com a filha de Diamico, transfere-se para Montevidéu e vai passar a receber as remessas de erva-mate enviadas de Itaqui, fornecendo constantemente informações sobre preços e a situação do mercado para o produto. Lopes tinha boas relações com vários comerciantes de Itaqui e era o intermediá-

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rio direto com os compradores da erva-mate em Montevidéu. A partir da década de 1860, pode-se afirmar que vários comerciantes de Itaqui abasteciam as suas lojas com produtos comprados de Marcelino D. Lacroix. Ou seja, Lacroix torna-se um dos maiores fornecedores de mercadorias e credores da praça de Itaqui. Nesse momento, constitui-se uma segunda rede de apoios, agora pautada nos vínculos com os compatriotas franceses que chegavam à fronteira. Marcelino Domingos Lacroix torna-se sócio do francês João Gustavo Mongardey, que em 1862 casava-se com a irmã da esposa de Lacroix. Sócios, cunhados e compadres tornar-se-iam referência para a comunidade mercantil da fronteira, sendo constantemente referidos como credores, testemunhas e avaliadores em processos diversos. Em novembro de 1860, Marcelino Lacroix assumirá os negócios de outro seu compatriota, que transferira seus interesses para Montevidéu. Nas palavras do encarregado da Alfândega de Uruguaiana12 a casa de Carlos Kasten & Cia era uma das “de comércio de maior importação para consumo” da fronteira. Estabelecidos em Uruguaiana, tinham, no entanto, um representante em Itaqui. Tratava-se do comerciante francês Pierre Marcel Prieu que, naquele ano, “fesant des affaires sur la frontière de Rio Grande et Montevideu, a Itaqui e à Uruguayana, fut soupsoune de fraude.”13 Pierre Marcel Prieu foi encarregado pela casa comercial de Karsten e Cia de Uruguaiana da venda de uma avultada fatura de fazendas e da compra de erva-mate recebendo para esse fim uma soma avultada. Foram essas fazendas expedidas para Itaqui, parte pela referida casa e parte pela Alfândega, depois de pagos os direitos na importância de 12:271$505. Chegadas a Itaqui, a respectiva Mesa de Ren12 APERS, São Borja, Cível e Crime, maço 45, autos n.1316 13 Archives Diplomatiques – Nantes (ADN), caixa 201.

das confrontando o número de volumes com o mencionado nas guias cobrou os direitos de expediente de 5%, mas a instâncias do escrivão tratou-se de conferir e verificar as ditas guias com os gêneros que deviam conter os volumes, os quais foram achados intactos como se tivessem saído da fábrica.14

Esse fato deu lugar a suspeita de fraude, e como os gêneros divergiam das guias em quantidade e qualidade, o administrador embargou-os e pediu explicação à Alfândega de Uruguaiana, que imediatamente respondeu que tais gêneros deviam ser despachados para consumo, e entregues depois ao dono ou consignatários. As mercadorias foram despachadas, elevando-se os direitos a 5:018$886, a cujo pagamento se opôs Prieu. O escrivão da Mesa de Rendas requereu depois embargo da fatura ao juiz municipal que mandou fechar e lacrar as portas da casa comercial de Prieu. Este recorreu à Alfândega de Uruguaiana para que se lhe entregasse a casa, e o inspetor interino dirigiu-se a Itaqui, solicitou e obteve o levantamento do embargo e foram entregues ao reclamante as mercadorias, a casa e mais tudo que havia sido embargado. Prieu fora encarregado por Kasten & Cia da venda de uma fatura de fazendas e da compra de erva-mate. A apreensão das mercadorias e mandado de prisão aconteceram em janeiro de 1857. As mercadorias foram despachadas em Uruguaiana com destino a Itaqui, onde seriam introduzidas para consumo. Chegando no Porto de Itaqui, o escrivão da Mesa de Rendas, ao analisar a totalidade dos volumes, não lhe pareceu corresponder com as fazendas mencionadas nas guias. Os volumes, além disso, encontravam-se intactos, “como se tivessem saído das fábricas, o que era indício certo de nenhum exame terem sofrido no despacho para pagamento dos direitos de consumo na Uruguaiana”.15 Como evidencia 14 ADN, caixa 201. 15 ADN, caixa 201.

Mariana Thompson Flores (2007) em sua pesquisa sobre o contrabando, a maior parte das mercadorias que entravam sem pagar os direitos devidos à Alfândega, eram liberados pelos próprios funcionários. No caso das mercadorias de Kasten (comerciantes citados pela autora como réus em processos de contrabando), a ideia de que foram liberadas pelos funcionários da Alfândega de Uruguaiana sem pagar a totalidade dos impostos devidos é confirmada pela pronta resposta desses funcionários quando perguntados sobre o despacho pelos empregados da repartição de Itaqui – a mercadoria já teria pago os direitos e deveria ser liberada para consumo. Para as autoridades de Itaqui “não gravam de grande conceito, ante a Repartição, a casa comercial e seu agente”. Em Itaqui, foi constatada uma fraude no despacho que, aparentemente, tinha sido legalizada em Uruguaiana. Nesta análise, obteve-se “a quantia de 5:018$816 réis, importância de direitos de consumo subtraídos fraudulentamente de mercadorias compreendidas nos volumes navegados com carta de guia”. As mercadorias vindas de portos estrangeiros pagavam direitos de consumo e de expediente. A alegação de Prieu de que desconhecia certos trâmites alfandegários brasileiros, por ser estrangeiro, é contestada pelas autoridades de Itaqui.16 As autoridades brasileiras sustentavam que tanto os brasileiros quanto os estrangeiros residentes no Brasil teriam de respeitar os mesmos deveres e estariam amparados por direitos pautados pelas leis do Império do Brasil. Nesse sentido, “ Prieu não usou de um só dos meios que as leis do Império lhe propiciavam”, mas recorreu diretamente ao Vice Cônsul da França em Porto Alegre, e, em 29 de novembro de 1857, este Agente apresentou a sua reclamação à Presi16 “não é presumível, e quando fora, seria em todo o caso inadmissível em direito, que um estrangeiro ou mesmo nacional se emaranhasse em importantes especulações comerciais no país, sem primeiro orientar-se dos ônus, encargos e formalidades a que tinha de sujeitar-se”. ADN, caixa 201.

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dência da Província, que a submeteu à decisão do Ministério da Fazenda por ofício de 26 de março de 1859. Não estando a questão resolvida, interveio a Legação Francesa por nota de 29 de janeiro de 1862, recomendando levá-la à atenção do Governo Imperial. Por ser uma reclamação feita por meios diplomáticos, atingiu a Diretoria Geral de Rendas Públicas, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros manifestou as circunstâncias que teriam levado Prieu a abandonar o país. Após esse episódio, Prieu solicita, por intermédio do vice-consulado francês de Porto Alegre, uma indenização pelos prejuízos e ofensas sofridos durante a sua prisão, por suspeita de contrabando de mercadorias. As autoridades alfandegárias, no entanto, afirmam que: O reclamante não foi preso como alega. Houve um mandado expedido por ordem do Juiz de Paz e a pedido do Administrador da Mesa de Rendas, mas quando se intimava a Prieu apareceu Marcellino Lacroix, que, responsabilizando-se pela importância dos direitos impediu a prisão de seu compatriota. Prieu então sacou uma letra de 5:000$000 sobre Karsten e Cia, que eram os donos das mercadorias, a qual foi aceita e paga, o que não teria lugar se Karsten e Cia se julgassem lesados com a exigência dos direitos.17

Com problemas econômicos no Brasil, Prieu passaria todos seus recursos e valores para Montevidéu, por intermédio de Lacroix. Todas as exportações passariam a ser feitas por Lacroix, não aparecendo nenhuma menção a Prieu nos registros das alfândegas. Assim, Lacroix remeteria erva-mate à Domingos Burzaco, quitando somas que ele devia a Prieu. A isso se segue a acusação de que Prieu teria mascarado uma transferência para Montevidéu, deixando em Itaqui seus representantes, estes, encarregados de transferir todos os negócios para Montevidéu, sem que Prieu tivesse que pagar os credores brasileiros. Ao 17 ADN, caixa 201.

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contrário de Prieu que se retira da fronteira18, Lacroix vai arquitetando sua inserção na sociedade fronteiriça de maneira bastante eficiente. Além dos vínculos e articulações com os comerciantes da fronteira e demais agentes mercantis espalhados pela região integrada pelo rio Uruguai, Lacroix firmará relações também com a elite rural da fronteira. Os filhos mais velhos de Lacroix e Mongardey vão se casar com filhas de importantes coronéis da fronteira: Raul Mongardey casa com a filha do Capitão Firmino Fernandez Lima e Rodolpho Lacroix vai casar com Maria Izabel Fernandez Lima, filha do prestigiado Coronel Antônio Fernandez Lima. Os dois jovens logo receberão suas patentes militares e intensificarão os vínculos com outras famílias tradicionais da região. Na verdade, na década de 1870, Marcelino e Candida Lacroix já constituíam uma família tradicional em Itaqui. Mesmo sendo Lacroix um imigrante que chegara na fronteira há pouco mais de 20 anos, ele e a esposa já faziam parte “do seleto grupo de 46 casais que mais compareceram à pia batismal em Itaqui.” (FOLETTO, 2012,291) Lacroix também foi testamenteiro e tutor em inúmeras situações, o que comprova a sua vinculação com distintos grupos da sociedade fronteiriça e o prestígio que já lhe era devotado na sociedade local. Ao falecer, em 1898, Marcelino Lacroix terá uma fortuna avaliada em 71:910$464. Trata-se de um dos valores mais altos encontrados nos inventários de comerciantes analisados. Na década de 1890, a média das fortunas declaradas nos inventários dos comerciantes da fronteira era de 50:000$000. Comparando estes valores com os demais inventários abertos nas cidades, constata-se que os indivíduos de maior fortuna 18 Prieu faleceu em Paris, em 1899. No entanto, suas reivindicações e luta pela indenização não morreram com ele. Em 1925, os herdeiros de Prieu ainda lutavam na justiça para conseguir a indenização do Governo Brasileiro, e as autoridades afirmavam “l´affaire Prieu est actuellement de nouveau soulevée par plusieurs membres du Parlement”.

em Uruguaiana e Itaqui são aqueles que têm algum bem rural – ou seja, a terra é o elemento que confere maior riqueza aos indivíduos da Fronteira, constituindo a sua elite econômica. (FARINATTI, 2007) Aqueles que não têm campos, ou então apenas imóveis urbanos, até podem apresentar alguma riqueza considerável no seu inventário, mas não alcançam os valores declarados por aqueles que possuem propriedades rurais dentre os bens inventariados.19 Após a morte de Marcelino Lacroix, Rodolfo e Alfredo, os dois filhos mais velhos, assumem a casa comercial do pai. A filha mais velha, Cândida, vai se casar com o filho do comerciante Mousquère, também de família francesa e, possivelmente, ele mesmo comerciante. Os irmãos Lacroix, ao assumirem o ativo e passivo da casa comercial do pai, transformam a antiga casa Lacroix em Bazar Brazileiro. Ou seja, apaga-se completamente a referência à nacionalidade do pai, este francês que logrou se inserir na sociedade fronteiriça e constituir vínculos que permitiram a sua reprodução econômica e prestígio social. Nesse sentido, os fatores culturais e os valores da sociedade na qual estes indivíduos estão inseridos fazem parte da explicação das trajetórias dos imigrantes na fronteira. Esses comerciantes buscavam vários objetivos, econômicos e sociais, “nos quais fortuna e status se aliam, permitindo que se conheça os comportamentos dos homens de negócios do passado”. (MARZAGALLI, 2010, 90) Na casa comercial de Prieu, havia fardos de erva-mate pertencentes a Jean Armand Mousquère, “compatriota do declarante”. Mousquère chegará em Itaqui já casado, possivelmente atraído pelas possibilidades econômicas acenadas pelo seu tio, que já vivia na região há alguns anos. (MOUSQUER, 2008) Diferentemente de Lacroix, Mousquère terá vínculos mais estreitos com o grupo dos franceses, 19 O cunhado de Rodolpho Lacroix (Belisário Fernandes Lima) por exemplo, apresentará um monte-mór de 207:789$731, em 1894. Conforme FOLETTO (2012).

resultando numa inserção social e econômica distinta. Mousquère será o sócio capitalista de uma sociedade com o também súdito francês Eugenio Villanova. Mousquère entregava na vila de Itaqui várias fazendas e gêneros para que Villanova as vendesse em Mercedes, na República vizinha. O produto da venda deveria ser convertido em madeiras e estas enviadas novamente para Itaqui, onde seriam revendidas por Mousquère e os lucros divididos. Por algum tempo, a empresa funcionaria muito bem, empregando outros compatriotas como barqueiros, e trazendo de Mercedes as madeiras que eram usadas para a construção de balsas e revendidas também para outras cidades. O próprio Mousquère construía as balsas utilizadas nos seus negócios no porto de Itaqui. Além da revenda de produtos importados e madeiras, Mousquère dedicava-se também à exportação da erva-mate. No ano de 1863, no entanto, a sociedade de Mousquère e Villanova é desfeita. Villanova acusará o sócio de roubo de uma quantidade de madeiras, empregadas na construção de uma balsa, e a justiça ordenará o confisco de tais madeiras. Mousquère defende-se dizendo que não houve roubo e, se algo tivesse acontecido de maneira irregular não cabia à justiça brasileira a definir, uma vez que as mercadorias tinham sido enviadas de Mercedes para o Povo da Cruz, portanto, em território estrangeiro. Assim, alega ser “ilegal o mandado porquanto não há lei alguma no Brasil que sujeite a carga e navio arribados, em viagem de portos estrangeiros a portos estrangeiros à jurisdição do país. É ilegal o mandado porquanto não se guardou as formalidades do Tratado entre a França e o Brasil, celebrado a 06 de junho de 1826.”20 Ao afirmar que os fatos aconteceram em território estrangeiro, Mousquère pretendia se esquivar da prestação de contas à justiça 20 ADN, caixa 198.

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brasileira, alegando que neste caso não caberia a interferência das autoridades brasileiras. Dois anos depois, em processo no qual tem um carregamento de erva-mate apreendida pelo não pagamento dos impostos21 (que ele justifica ter acontecido porque o barco estava em fuga, junto com a sua família, no momento em que se deu a invasão da cidade de Itaqui pelas tropas paraguaias) Mousquère usaria o mesmo argumento. Nos dois processos, utiliza a existência da linha de fronteira que dividia os dois países para alegar nulidade dos processos que enfrentava, ao dizer que a justiça brasileira não deveria se interferir nos assuntos acontecidos em outro país. Mousquère reclama que a denúncia (de ter roubado as linhas de madeira de construção) teria sido feita com o propósito único de “manchar a sua reputação, e abater o seu crédito comercial, cometendo, portanto, o crime de injúria.”22 Um processo será movido pelo francês contra aqueles que diz lhe acusarem injustamente, em cujas páginas insiste veementemente em afirmar que ele é “reconhecido como de inteiro crédito nestas praças”, numa tentativa de restabelecer alguns vínculos perdidos com os seus compatriotas. O que se percebe é que nesse contexto de trocas econômicas, a confiança tornava-se a moeda de maior valor.

2.2 A circulação de informações e o crédito Damien Coulon (2010, 8) sustenta que para se definir uma rede de comércio e de comerciantes, três componentes devem ser analisados: um conjunto de elementos distintos, constituído de indivíduos, de pontos no espaço (portos, centros de produção e de consumo) e instituições; os vínculos econômicos que repousam sobre mecanismos simples de oferta e demanda e da circulação de informações comerciais; uma or21 Idem. Mousquère vai ser acusado do fato que a embarcação que levava o seu carregamento de erva-mate teria escapado dos fiscais para tentar chegar em Constituição sem fazer a aduana em Uruguaiana, onde deveria pagar os direitos de exportação. 22 ADN, caixa 198.

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ganização, uma hierarquia estruturada, na qual alguns indivíduos, pólos ou instituições assumem a liderança. Para tanto, o mais importante é atentarmos para as relações. Nesses mecanismos e lógicas relacionais destaca-se a importância das noções de confiança e reputação, sendo que a troca de informações entre os negociantes e o estabelecimento de laços de confiança são dois dos mecanismos que sustentam as redes mercantis. Assim como Marcelino Lacroix, Pedro Croharé era outro francês que vivia em Itaqui, constituindo-se como um dos maiores fornecedores de mercadorias para os demais comerciantes da cidade. E os vínculos de Croharé não estavam restritos a Uruguaiana e Itaqui. De São Borja, alguns comerciantes vinham suprir-se de mercadorias na sua “vasta e bem surtida casa”. Dentre esses contatos, destaca-se o forte e consolidado vínculo de Croharé com José Pinto Soares, o único comerciante que registra a sua matrícula no Tribunal de Comércio na década de 1850, e que terá avultados negócios na região. No ano de 1879, uma apelação crime é movida contra João Antônio Martins, acusando-o dos crimes de falsificação e estelionato.23 O denunciado fabricando uma carta em nome do negociante desta praça, José Pinto Soares, com ela se fora apresentar na vila de Itaqui, em princípios do corrente mês, ao negociante de grosso trato, Pedro Croharé; simulando-se por ela recomendado por José Pinto ao dito Croharé, para o fim de haver deste a quantia de dois contos de réis, mais ou menos, em gêneros.24

Ao receber a carta supostamente encaminhada pelo comerciante com quem Croharé tinha um longo histórico de relações e confiança, diz que desconheceu no papel “não só o estilo, como a letra da carta que se atribuía a Pinto”. Croharé não “confia coisa alguma a Martins” e 23 APERS, São Borja, Cível e Crime, maço 45, autos n.1316 24 Idem.

escreve então para Pinto Soares, que lhe confirma a suspeita de que a carta não fora escrita pelo comerciante de São Borja. Martins era conhecedor dos trâmites mercantis, e tinha certeza de que a carta de recomendação enviada por Pinto Soares lhe garantiria a possibilidade de receber, a crédito, mercadorias num valor aproximado ao de dois contos de réis. Na documentação lida, Pedro Croharé é apresentado como “negociante de grosso”, e os vínculos com Pinto Soares já vinham de longa data. Pelas correspondências trocadas, percebe-se que Croharé enviava mercadorias para São Borja com bastante frequência. Muitos destes produtos, que se afirma virem de Uruguaiana, eram solicitados por Pinto Soares. Para prover essas encomendas de Pinto Soares, Croharé, caso não tivesse a mercadoria disponível, a comprava de outros comerciantes em Itaqui, a exemplo de Lacroix, e a enviava para São Borja. Percebe-se que os preços eram conhecidos pelos dois comerciantes, ou até acordados antes da compra, e sempre que alguma mercadoria não era encontrada, ou estava com valor superior, Croharé afirmava “não tenho querido mandar sem lhe consultar”. Em fevereiro de 1879, por exemplo, Croharé informa que a cal solicitada por Pinto Soares “ainda não chegou, por consequente, não temos na praça mais que o que o Lacroix tem em barras de quatro alqueires e que pede 16$000 pela barrica. Na Uruguaiana, por informações que tenho, vendem a 14$000, de modo que vem a dar no mesmo; me diga se quer que lhe mande e quantas barricas”.25 Nesse sentido, Croharé era igualmente o informante das condições de mercado, existência de mercadorias, preços e câmbio cobrados. Justamente, uma das características funcionais das redes comerciais consiste em facilitar a circulação da informação. (ALONSO, 2010, 130) Para

o bom andamento dos negócios e possibilidades de lucro, tornavam-se necessárias informações econômicas, como preços de mercadorias e fretes, condições dos negócios, sistema de medidas, valor das moedas; práticas financeiras, notícias relativas às guerras e aos riscos durante o percurso, conhecimento das disposições legais de cada país. Todas essas informações tornavam-se fundamentais, e circulavam também por intermédio de viajantes, agentes, transportadores, navegadores. Das informações enviadas por Croharé para São Borja, percebe-se que as mercadorias vendidas em Itaqui tinham valor mais alto do que a mesma quantidade e produto vendidos em Uruguaiana. Essa diferença, relacionada ao custo de transporte de uma praça comercial até a outra, pode indicar também a possibilidade de lucro que esses comerciantes de Itaqui poderiam ter se conseguissem diminuir os custos de transporte, agregando mais valor ao produto vendido. Pedro Croharé e José Pinto Soares, eram, portanto, comerciantes que faziam parte do grupo de negociantes mais prestigiados na Fronteira. Lembremos que Pinto Soares foi o único comerciante, junto aos irmãos Balthar, a registrar a sua matrícula no Tribunal de Comércio da Corte na década de 1850. Nas fontes consultadas, não consta outra referência de “negociante de grosso” a nenhum outro comerciante. José Antônio Martins tinha 30 anos e era solteiro quando escreveu a falsa carta. Tinha nascido em Laguna e vivia há menos de quatro anos em São Borja quando o fato aconteceu. As testemunhas dizem que o “denunciado vivia com muita economia e trabalho”, não lhe sendo atribuídos outros fatos que indicassem o comportamento criminal do réu. Isso nos permite conjecturar que, comerciando por três anos na fronteira, Martins se dera conta da vantagem de poder se inserir numa rede mercantil, que lhe asseguraria, num primeiro momento, o acesso ao crédito que é tão funda-

25 APERS, São Borja, Cível e Crime, maço 45, autos n.1316.

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mental para os comerciantes. Da mesma forma, tornava-se importante a inserção em algumas redes específicas, através das quais um sortimento de mercadorias variado e de bom preço poderia ser adquirido, como era possível no estabelecimento de Croharé. No momento em que é movida a ação contra ele, Martins já se encontrava em “lugar não sabido”, evidenciando uma fuga da possível condenação, mas também o destino daqueles comerciantes que não gozavam mais do bem mais importante para as suas atividades – a confiança e o crédito diante de seus pares. Pedro Croharé importava mercadorias de Restauração e de Constituição. Não encontrei despachos feitos por ele em Uruguaiana, mas na Alfândega constam ter sido feitos despachos “por conta de Pedro Croharé”.26 Ou seja, ele tinha no porto de Uruguaiana pessoas incumbidas de fazer os despachos em seu nome. Atuava, portanto, em distintas praças, comprando mercadorias nos portos platinos, despachando as mercadorias em Uruguaiana e as reenviando para Itaqui, de onde as distribuía para os comerciantes da cidade e das cidades vizinhas. Para a efetivação dessas compras e despachos, contava com o apoio de outros indivíduos. “O recurso às procurações ajudava os comerciantes a intervir simultaneamente em distintos teatros de operações comerciais e, portanto, em redes desenvolvidas em distintas escalas.” (COULON, 2010, 29) Croharé importava uma diversidade imensa de produtos. Em 1861, nota-se diferenças nos despachos de consumo e de saída de uma fatura de mercadorias sua. A afirmação é feita pelas autoridades que estão em Uruguaiana em processo de averiguação dos serviços da Alfândega27, levantando-se a suspeita da menor taxação praticada para alguns comerciantes do que o devido. Ou seja, sugere-se que as autoridades alfandegárias de Uruguaiana estariam favorecendo alguns comerciantes, dentre 26 APERS, Itaqui, Cível e Crime, maço 64, autos n.2470 27 APERS, Itaqui, Cível e Crime, maço 64, autos n.2470

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eles Croharé. Este favorecimento se daria pela não conferência dos produtos – sendo que os barcos chegados das províncias argentinas não eram nem descarregados antes de seguir para Itaqui – e menor taxação na Alfândega. Croharé, assim como muitos outros comerciantes, estaria sendo favorecido pelas boas relações que teriam com os guardas e fiscais da Alfândega. Nesse sentido, se para Croharé era importante estar vinculado a outros comerciantes – tanto aqueles que lhe despacham as mercadorias em Uruguaiana quanto aqueles para os quais fornece os produtos – igualmente lhe poderia ser lucrativo estar vinculado com as autoridades fiscais, possibilitando favorecimentos que talvez não fossem atribuídos a todos os comerciantes. Assim, “cada membro da rede é, potencialmente, uma porta aberta para outros vínculos, alargando o leque de possibilidades” (MARZAGALLI, 2010, 106) e ações. Dessa forma, aos vínculos entre Croharé e Pinto Soares, dois dos maiores comerciantes importadores e exportadores da Fronteira, poderiam se somar outros indivíduos, com relações distintas, mas igualmente se favorecendo dos apoios que nessa rede circulavam. Operações mercantis exigem confiança (de que receberá o produto e de que receberá o pagamento). Essa confiança era buscada no estabelecimento de vínculos, na conformação das redes sociais e mercantis. “Para estabelecer relações de confiança com indivíduos que possam fornecer serviços e informações, os negociantes mobilizam a rede de seus correspondentes, assim como pessoas que possam ter conhecimento direto de uma praça distante.” (MARZAGALLI, 2010, 106) Além dos grandes comerciantes, importadores e exportadores, havia um grande número de pequenos comerciantes na Fronteira. Essas casas se abasteciam de produtos com os comerciantes importadores que viviam em Uruguaiana

ou Itaqui. As casas importadoras, nos inventários pesquisados, tinham mercadorias variadas e em grande quantidade, avaliadas em vários contos de réis. Os credores destas casas importadoras estavam em Salto, Montevidéu ou Buenos Aires. Ou seja, a escala dos negócios influenciava na possibilidade de mobilidade e acesso a mercados que pudessem oferecer maior diversidade e melhores preços nas mercadorias. No entanto, para aqueles pequenos comerciantes, o abastecimento tinha de ser feito na própria cidade, evitando despesas com transporte e a incerteza de conseguir o crédito em outras praças. Essas relações de compra se davam por períodos longos, estabelecendo vínculos de confiança que acabavam por relacionar publicamente o comprador e o vendedor. Assim sendo, cada comerciante tinha uma rede de credores que eram conhecidos dos demais comerciantes, mesmo que estes não fizessem parte do mesmo grupo. É certo que essas vinculações poderiam ser rompidas por distintos motivos mas, como indicam as cartas trocadas entre Croharé e Pinto Soares, a longa duração dessas relações caracterizaria a intensidade dos vínculos.

tros produtos, sobretudo a erva-mate, que transformaram os portos citados também em centros exportadores. Essas distintas atividades exigiram uma articulação entre as regiões e vínculos entre os comerciantes que permitiram a dinâmica desse comércio inter-regional. Essas rotas de comércio foram se estabelecendo através do tramado dos rios ou então na poeira das carretas e, nesse contexto, ganha centralidade a presença dos comerciantes franceses.

Assim, pontua-se a relação entre o espaço geográfico e os setores econômicos. As vilas e portos são entendidos como espaços centrais da atuação dos comerciantes, revelando a capacidade de se estabelecer simultaneamente redes em escala local, regional e internacional. A vocação comercial destes portos da fronteira acaba por interligar distintos pontos geográficos, sendo que os comerciantes se movem nesse espaço usufruindo das possibilidades de contatos. As cidades da fronteira, além de centros de consumo das mercadorias importadas, eram também locais de reexpedição dessas mercadorias. A partir de Uruguaiana, Itaqui e São Borja, novas rotas eram traçadas levando essas mercadorias até o Paraguai. Essas mesmas rotas eram utilizadas no sentido inverso, levando até a fronteira ou-

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Resenha de Saes, Flávio Azevedo Marques de e Alexandre MacchioneSaes, História Econômica Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

André Villela [email protected] Professor da FGV/EPGE

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Resenha de Saes, Flávio Azevedo Marques de e Alexandre Macchione Saes, História Econômica Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2013

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disciplina de ‘História Econômica’ é parte integrante do ensino de Economia no Brasil desde, pelo menos, o Decreto n. 7988, de 22 de setembro de 1945, que criou o curso de Economia na Universidade do Brasil e estabeleceu currículo que passaria a ser adotado por outras instituições no país.1 Durante muitos anos, parecem ter predominado, no ensino da disciplina, livros-texto de autores estrangeiros (franceses, sobretudo), a exemplo de Marcel Montels, Charles Morazé, Maurice Niveau, Fernand Braudel e Frédéric Mauro.2 A estes se juntaram algumas obras de autores brasileiros, como a História Econômica Geral e do Brasil, de Raimundo Girão (1ª edição em 1964) e livro homônimo de autoria de Roberto Haddock Lobo, originalmente lançado em 1967 e com reedições posteriores. Em 1980 apareceu a primeira edição de História Econômica Geral e do Brasil, de Hilário Franco Jr. e Paulo P. Chacon, posteriormente publicada, em sucessivas reedições e com a supressão de algumas poucas sessões que tratavam especificamente do Brasil, com o título de História Econômica Geral. 3 O mesmo nome seria adotado por Cyro de B. Rezende Filho em livro lançado em 1992, com sucessivas reedições.4 Passados mais de 20 anos da primeira edição do livro de Cyro Rezende Filho, chega ao mercado editorial brasileiro obra de autoria de dois pesquisadores da FEA/USP, Flávio e 1 Ver Castro (2001), p. 35. 2 A impressão de predomínio de autores estrangeiros de livros-texto de História Econômica Geral não decorre de qualquer pesquisa sistemática das ementas da disciplina em escolas de Economia, e sim de um levantamento do acervo das bibliotecas das três instituições de ensino de Economia mais antigas do Brasil, a saber: Universidade Federal do Rio de Janeiro (antiga Universidade do Brasil), Fundação Getulio Vargas e Universidade de São Paulo. 3 Ver Franco Jr. e Chacon (1985). 4 Ver Rezende Filho (1992). É problema conhecido do mercado editorial brasileiro o emprego do termo ‘edição’ para designar aquilo que, na prática, é mera reimpressão de texto já publicado, sem qualquer alteração do mesmo. O caso do livro de Cyro Rezende Filho é emblemático desta prática confusa: a 10ª edição da obra, lançada em 2013, traz texto idêntico àquele da primeira edição, datada de 1992! Isso explicaria, no cap. 9 (“Alternativa ao Capitalismo”), a manutenção de seção intitulada ‘A Era de Gorbatchev (1985-?)’.

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Alexandre Saes. Voltado ao ensino de História Econômica nos cursos de Graduação em Economia, bem como para as disciplinas de História de cursos como História, Relações Internacionais, Ciências Sociais e Jornalismo (conforme se lê na contracapa), esta nova História Econômica Geral tem plenas condições de se estabelecer como um texto de referência em programas de Graduação no país. Ao longo de mais de 600 páginas, divididas em seis Partes e 24 capítulos, os autores apresentam aquilo que, como eles indicam, é uma história econômica do mundo ocidental desde, aproximadamente, o ano 1.000 D.C. Foi aí que se daria o início da transição da economia/ sociedade ocidental rumo ao sistema econômico que iria se tornar predominante em escala global na Era Moderna – o capitalismo. O livro tem inúmeros méritos, que convém ressaltar desde já. Primeiramente, ele é bem escrito e a narrativa flui bem - atributos nem sempre encontrados em obras desta natureza.5 Um segundo ponto a ser destacado é a inclusão, tanto na Apresentação como na Introdução, de alentada discussão teórico-metodológica, trazendo um bom panorama das principais correntes históricas e prenunciando os enfoques da preferência dos dois autores da obra. A bibliografia citada é medianamente atual (voltarei a este ponto mais à frente) e os autores fazem bom uso, ao longo do livro, de algumas das referências clássicas/consagradas da literatura. Finalmente, empenham-se em apresentar ao leitor, em diversas ocasiões, os múltiplos pontos de vista/ abordagens (frequentemente discordantes entre 5 Os autores e editores devem ser parabenizados por um texto com pouquíssimos erros de português ou de digitação. Uma das raras exceções notadas foi a inclusão indevida de um ‘h’ após o prenome da ex-Primeira Ministra da Grã Bretanha, Margaret Thatcher (às pp. 561, 568 e 618) e a reprodução de erro de tradução em passagem do livro de J. K. Galbraith sobre a Grande Depressão, quando se faz referência a “(...) cidades do condado de Golf (...)”(p. 352). O autor norte-americano, é claro, se referia à especulação imobiliária em cidades da Flórida situadas ao longo da costa do Golfo do México (cities over on the Gulf, no original).

si) sobre determinado fenômeno ou episódio histórico, tomando sempre o cuidado de não indicar uma visão como sendo, necessariamente, a única “correta”. Com isso, expõem de forma clara as naturais divergências encontradas na literatura especializada de História Econômica, divergências estas que servem de prova cabal (se é que exista necessidade de tanto) da vitalidade da disciplina. A Primeira Parte do livro é dedicada a um competente resumo de tema caro à tradição marxista, qual seja, o longo processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo na Europa ocidental. A discussão factual dos três capítulos iniciais é complementada, no cap. 4, pela grande polêmica teórica gerada entre os autores (majoritária, mas não exclusivamente, marxistas) a respeito do tema. A Segunda Parte, por sua vez, discute um dos tópicos centrais na história econômica da humanidade – a Revolução Industrial. Aqui, possivelmente em maior grau do que em qualquer outra parte do livro, os autores recorrem aos ‘clássicos’ da literatura sobre o tema, cobrindo aspectos tais como as inovações técnicas em setores-líderes, as chamadas revoluções agrícola e demográfica e o papel do comércio exterior.6 Uma bem-vinda (e incomum) discussão acerca dos impactos da Revolução Industrial sobre o bem-estar dos trabalhadores – na chamada ‘controvérsia do padrão de vida’ – encerra esta Parte do livro. Na Terceira Parte é coberto o período de c. 1870 até a I Grande Guerra, tanto no tocante à chamada economia ‘real’ (crescimento econômico e industrializações retardatárias) como em seus aspectos financeiros – em particular, o sur6 Em suas próprias palavras: “Por nos aproximarmos das interpretações que situam a Revolução Industrial como um momento de ruptura, fundaremos nossa exposição em textos clássicos sobre o tema, incorporando, quando plausível, dados revelados por pesquisas mais recentes”. Ver Saes & Saes (2013), p. 145.

gimento e consolidação do sistema internacional do padrão-ouro. Como pontos positivos, destacam-se uma boa síntese das contribuições de dois pioneiros na área de desenvolvimento econômico – W. W. Rostow e A. Gerschenkron – e o longo tratamento dado à questão do Imperialismo.7 As Partes restantes do livro seguem uma distribuição temática e cronológica consagrada, a saber: O ‘Entre Guerras e a Segunda Guerra Mundial’ (Quarta Parte), a ‘Era de Ouro’ (Quinta Parte) e o período pós-1973 (Sexta Parte). Uma diferença notável em relação a outras referências no gênero são os três capítulos (16, 20 e 23) dedicados à discussão das economias socialistas e o capítulo 24, intitulado ‘Aonde Vai o Capitalismo’, no qual os autores se valem, sobretudo, da abordagem da Escola da Regulação francesa para especular sobre os rumos do sistema econômico atual em um contexto de importância inaudita do setor financeiro. Conforme assinalado anteriormente, um dos méritos do livro é a clara exposição, por parte dos autores, das escolhas que nortearam a sua abordagem. No tocante ao enfoque, tais escolhas dizem respeito ao marco cronológico (c. 1.000 D.C. até o limiar do séc. XXI); o objeto central do livro (‘o desenvolvimento do capitalismo’); e o seu recorte espacial (‘o mundo ocidental’). Quanto à metodologia, Saes & Saes deixam claro que seu livro não constitui um ensaio interpretativo de História Econômica e, por esta razão, procuram apresentar “(...) um quadro, o mais amplo possível, das diferentes interpretações a respeito de determinados processos históricos a fim de permitir ao leitor uma reflexão própria a respeito de tais processos” (p. VII). 7 Esta Parte do livro teria se beneficiado caso incorporasse alguns dos argumentos presentes em duas contribuições recentes tratando do impacto da chamada globalização ‘clássica’ (em sua dimensão comercial, sobretudo) nas economias ‘centrais’ e ‘periféricas’, via seus efeitos sobre a dotação relativa de fatores de produção – os chamados efeitos Hecksher-Ohlin. Ver, para detalhes, Findlay e O’Rourke (2007) e Williamson (2011).

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Com relação ao marco cronológico, não há muito o que objetar: ao focarem ‘apenas’ nos últimos 1.000 anos de história econômica, os autores já se propuseram um desafio suficientemente complexo e que merece o reconhecimento do leitor. O mesmo pode ser dito com respeito à decisão de se concentrarem no estudo do capitalismo, por si só empreitada das mais demandantes e que, recentemente, envolveu dezenas de estudiosos recrutados entre alguns dos maiores nomes na profissão.8 O recorte geográfico escolhido (o mundo ocidental), porém, traz implicações importantes, que retiram parte da força da história que o livro se propõe a contar. Elaborarei esta crítica nas próximas páginas. Ao se restringirem ao mundo ocidental, os autores escolheram se afastar, como eles próprios reconhecem, de um “(...) tema bastante em voga, a ‘grande divergência’, ou seja, a análise das razões que fizeram a Europa se adiantar economicamente em relação aos antigos impérios orientais no período em foco” (p. VIII). Tal afastamento implicou não incorporar em seu texto uma das correntes interpretativas mais produtivas dos últimos 15 anos na área de História Econômica Geral, a chamada Nova História Econômica Comparativa, cujo maior interesse, como os próprios autores apontam, é o estudo da “(...) divergência dos níveis de desenvolvimento entre regiões e países” (p. 9). Ainda segundo Saes & Saes, a preocupação dos autores que adotam esta perspectiva é o estudo das “(...) tendências de longo prazo e a identificação das fontes de crescimento econômico” (ênfase minha), arrolando como elementos explicativos da riqueza e pobreza das nações a geografia, inovação tecnológica, cultura, política econômica e instituições (Ibid.).

História Econômica Geral optem, deliberadamente, por não incorporar em um texto tratando da história do capitalismo as contribuições de uma corrente historiográfica que busca, essencialmente, identificar os múltiplos fatores por detrás daquele que é, possivelmente, o maior acontecimento na história econômica da humanidade desde o Neolítico, a saber: o advento, há cerca de um século e meio, do chamado crescimento econômico moderno, definido como o crescimento, sustentado no tempo, dos níveis de renda per capita, acompanhado de mudança na estrutura da economia (perda de participação relativa da agricultura, em favor dos serviços e indústria). A esta novidade na história humana – o crescimento econômico sustentado – D. McCloskey deu o sugestivo nome de o “Grande Enriquecimento” (the Great Enrichment), fenômeno que envolveu aumento estimado da renda per capita mundial de aproximadamente 10 vezes nos últimos 150 anos, contrastando com virtual estagnação nos cerca de 10.000 anos anteriores. Repetindo: este é, possivelmente, o fato histórico mais importante da economia desde o advento da agricultura e surgimento das primeiras civilizações humanas. Um leitor do bom livro-texto de Saes & Saes, provavelmente, chegará ao fim da obra sem ter a exata dimensão da mudança operada no progresso material da humanidade em um espaço, relativamente, curto da História. Uma representação visual do Grande Enriquecimento ajuda a reforçar este ponto. O que se tem é aquilo que D. McCloskey batizou de gráfico do stick de hóquei (ou “a história econômica da humanidade em um gráfico”).9

É de se lamentar que os autores desta 8 Ver Neal e Williamson, eds. (2014). O escopo cronológico e geográfico desta coletânea é distinto daquele escolhido por Saes & Saes, começando na Antiguidade e abarcando o mundo todo (e não apenas o ‘mundo ocidental’, como ocorre no livro ora resenhado).

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9 É digna de nota a falta de qualquer referência, no livro ora resenhado, à obra de D. McCloskey, uma das mais prolíficas e respeitadas historiadoras econômicas das últimas décadas.

Figura1 PIB per capita do Mundo, 0-2008 D.C. (em U$$ internacionais de 1990)

8000 7000 6000 5000 4000

PIB per capita

3000 2000 1000 0 0

500

1000

1500

2000

Ao aumento sem precedentes na renda per capita mundial nos últimos 150 anos correspondeu, também, notável expansão populacional (conforme discutido pelos autores no cap. 6), acompanhada de melhoria em uma série de indicadores de desenvolvimento humano.10 Esta é a grande novidade socioeconômica do último século e meio: crescimento demográfico com (enorme) melhoria no padrão de vida médio dos indivíduos, revertendo milênios de experiência histórica nas quais estas duas tendências não eram sustentáveis no tempo.11 O início da inflexão na história universal de crescimento lento e instável da renda per capita (e da população) se deu no Noroeste europeu ao final da Idade Média. Sendo assim, é razoável indagar-se por que ali e não, por exemplo, nas grandes civilizações orientais nas quais se concentrava, até o segundo milênio da Era Cristã, a maior parte da população, atividade econômica e progresso técnico da humanidade.12 Contrastar, 10 A exemplo da expectativa de vida e estatura física dos indivíduos, em processo em grande parte decorrente do progresso técnico. Para uma discussão, ver Fogel (2004) e Floud et al. (2011). Para a ‘convergência’ recente de um conjunto de indicadores sociais em escala global, ver Kenny (2005). 11 Abstrai-se aqui de qualquer consideração em torno da viabilidade (ambiental, por exemplo), no longo prazo, do crescimento econômico nos moldes em que ele vem ocorrendo. Para a questão correlata da distribuição de renda em escala global, recomenda-se Milanovic (2011). 12 Ver, a respeito, Abu-Lughod (1989) e Findlay e O’Rourke (2007), especialmente caps. 2 e 3.

portanto, as experiências históricas de crescimento econômico dos extremos da Eurásia – tarefa que está na base do programa de pesquisa da Nova História Econômica Comparativa – deve oferecer pistas para se compreender melhor as forças que promoveram a chamada ‘ascensão do Ocidente’, graficamente representada pela formação da lâmina do stick de hóquei da Figura 1.

O estudo comparativo da experiência de crescimento econômico do Oriente (China, sobretudo) e do Ocidente recebeu renovado fôlego com a publicação, em 2000, do livro The Great Divergence, de K. Pomeranz.13 Nele, o autor levantou tese ousada, qual seja, a de que, ao final do séc. XVIII, haveria “incríveis semelhanças” entre a economia mais avançada da China (situada na região em torno do estuário do Yangtsé) e as da Europa, e que o descolamento dos padrões de vida/renda per capita destas últimas (e do Ocidente) em relação ao vale do Yangtsé/Oriente só teria começado com a Revolução Industrial. Mais ainda, para Pomeranz, tal Grande Divergência teria resultado de fatores acidentais (mais especificamente, a presença de amplos depósitos de carvão mineral na Inglaterra e a proximidade desta do Novo Mundo), e não de qualquer outro elemento de ‘superioridade’ inglesa/europeia, a exemplo da presença de mercados desenvolvidos, cultura científica, instituições etc.14 Desde a publicação do livro de Pomeranz, o debate em torno de suas teses centrais tem se intensificado e parece apontar para uma 13 Ver Pomeranz (2000). 14 Ibid.. Para uma excelente resenha do livro, ver Vries (2001).

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refutação dos principais postulados do autor.15 Uma coisa, porém, parece ser unânime: ao lançar o seu livro, Pomeranz teve o mérito inequívoco de tirar a historiografia tradicional sobre a Revolução Industrial – ou, de forma mais ampla, a chamada “ascensão do Ocidente” e o início do crescimento econômico moderno – de um certo paroquialismo que caracterizava a maior parte da produção acadêmica até então. Há duas décadas, sequer seria cabível fazerem-se perguntas como: A Revolução Industrial foi inevitável? (dada a liderança técnica da China no início do Segundo Milênio) Por que a China não foi o berço da Revolução Industrial? Será que as origens da Grande Divergência devem ser buscadas bem antes do séc. XVIII? Por que a Revolução Industrial e o crescimento econômico moderno se espalharam mais rapidamente para algumas partes do mundo do que para outras?16 Transcorridos quase 15 anos desde o lançamento do livro de Pomeranz, e após inúmeros artigos e monografias, a literatura sobre o crescimento econômico em perspectiva histórica tem procurado não apenas datar mais precisamente as origens da chamada Grande Divergência como, também, identificar seus fatores determinantes. 15 Mais recentemente, Pomeranz reconheceu um certo exagero em seu argumento original, tendo recuado em um século (para c. 1700), por exemplo, a sua tese de equivalência de renda per capita das regiões mais ricas da China e Europa. Ver Pomeranz (2011). Mesmo esta revisão, porém, parece insuficiente para dar conta das inúmeras diferenças entre as economias das regiões mais dinâmicas da Europa e da China no início da Era Moderna. Para uma discussão pormenorizada dos argumentos de Pomeranz e outros membros da chamada ‘Escola da Califórnia’, ver Vries (2013). Broadberry (2013) traz novas estimativas da trajetória da renda per capita de países europeus e asiáticos no longuíssimo prazo, indicando grandes diferenças entre elas – ao contrário do que afirma Pomeranz. Ver, também, os dados à Tabela A1, ao final desta resenha. 16 Uma lista (um pouco mais extensa) de perguntas semelhantes se encontra na introdução à entrevista concedida por J. Mokyr, uma das maiores autoridades no estudo da Revolução Industrial, a B. Snowdon. Ver Snowdon (2007), pp. 58-9.

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Com relação à primeira questão, trabalho recente de S. Broadberry sustenta a visão tradicional segundo a qual as origens do fenômeno de trajetórias distintas de comportamento da renda per capita entre os países da Europa e do Oriente (China, em particular) remonta ao final da Idade Média – muito antes, portanto, da Revolução Industrial (ver a Tabela A1 ao final desta resenha).17 Mais especificamente, tais origens se encontrariam em fenômeno conhecido como a Pequena Divergência, quando as economias do Noroeste europeu (Holanda e Inglaterra) se diferenciaram das demais economias do continente (em termos de comportamento de sua renda per capita) após a Peste Negra, em meados do séc. XIV.18 Fundamentalmente, enquanto que nas economias da Europa ocidental (exceto Espanha) houve um aumento da renda per capita imediatamente após a Peste Negra e até o início do séc. XV, seguido de queda ou estagnação da mesma à medida que a população recuperava os seus níveis pré-Peste, no Noroeste europeu, observou-se, do séc. XV em diante, crescimento lento (caso da Inglaterra) ou mais acelerado (Holanda), deixando para trás as demais economias do continente (inclusive o norte da Itália, até então a região mais rica da Europa). Estimativas sobre agregados como renda per capita para períodos muito distantes no passado devem ser vistas com a necessária cautela.19 De todo modo, os dados compilados por S. Broadberry parecem corroborar os dois fatos estilizados acima referidos, a saber: i. a existência, 17 Ver, também, Broadberry (2013). 18 Para a Pequena Divergência, ver de Pleijt e van Zanden (2013) e – embora utilizando denominação distinta (a ‘Grande Divergência dentro da Europa’) – Pamuk (2007). 19 Ainda que, no caso da Holanda e Inglaterra, elas tenham sido geradas a partir de ampla informação estatística e dentro de um arcabouço de contabilidade social, e, para a Itália e Espanha, via um método indireto de cálculo do PIB pela ótica do produto. Os resultados, com ambas as metodologias, são mais confiáveis que aqueles constantes, por exemplo, dos trabalhos de Angus Maddison, e já foram incorporados na versão atualizada, por J. Bolt e J. L. van Zanden, da base de dados do Maddison Project (ver Maddison Project Database). As estimativas para a China são, comparativamente, muito menos precisas.

efetivamente, de uma Pequena Divergência dos países do Noroeste europeu após a Peste Negra; e ii. uma Grande Divergência (de parte da Europa) em relação à China que antecede – em muito – a Revolução Industrial. Os fatores que explicam a excepcionalidade dos países do Noroeste europeu ao final da Idade Média/início da Era Moderna – isto é, o fenômeno da Pequena Divergência – não são exatamente os mesmos que deram origem ao Grande Enriquecimento. Isto porque o ritmo e a própria natureza do crescimento que se seguiu à Revolução Industrial – o crescimento econômico moderno – são distintos. Até então, os avanços da renda per capita de países como a Holanda e Inglaterra eram mais modestos e erráticos, sendo decorrentes, fundamentalmente, dos ganhos de especialização (ou smithianos), aos quais se somaram tanto um aumento na taxa de participação no mercado de trabalho como dos dias trabalhados ao longo do ano (a chamada Revolução Industriosa).20 As taxas de crescimento da renda per capita aceleraram-se a partir da Revolução Industrial e ao longo do séc. XIX para ritmos que sequer eram factíveis anteriormente. Em sua origem, os aumentos de produtividade então alcançados, que só foram possíveis com o crescente avanço tecnológico (base do crescimento schumpeteriano), somados a ganhos de comércio/especialização e maior acumulação de capital físico e humano. A partir do momento em que um conjunto de países do Ocidente embarcou nesta trajetória de crescimento econômico ‘moderno’ sem que o mesmo tivesse ocorrido no restante do mundo, intensifica-se o fenômeno da Grande Divergência, subjacente ao Grande Enriquecimento, representado pela Figura 1. 20 Para a Revolução Industriosa, ver de Vries (1994). O significativo aumento das horas trabalhadas ao longo do ano é discutido por Allen e Weisdorf (2011).

Infelizmente, toda a discussão acima está ausente do livro de Saes & Saes, que dialoga pouco com a produção historiográfica recente tratando do principal fato econômico da história da humanidade nos últimos séculos: o Grande Enriquecimento, sua origem e causas. *** No restante desta resenha, irei atender o convite dos autores, que afirmam que “(...) receberão de bom grado comentários sobre erros, omissões e, também, sobre divergências com relação às interpretações propostas no texto” (p. IX). Neste espírito, procurarei deixar claras, em primeiro lugar, as diversas instâncias em que divirjo da interpretação de fatos/processos históricos discutidos pelos autores para, em seguida, indicar o que, a meu ver, são os poucos erros e omissões do texto. Na discussão empreendida na Primeira e Segunda Parte do livro, os autores tomam o cuidado de, em diversos momentos, alertar o leitor para a existência de outros caminhos para a industrialização além daquele sugerido pelo ‘modelo inglês’, por eles discutido nos capítulos 3 a 6. Resumidamente, tal modelo envolveu um processo em que, ao avanço do capitalismo na agricultura inglesa a partir do final da Idade Média, conjugaram-se transformações na forma assumida pela produção industrial. Neste ponto, os autores se valem de modelo um tanto quanto esquemático proposto por autores como K. Marx, P. Mantoux e M. Dobb, segundo o qual haveria uma sequência na forma de organização da produção industrial, partindo da indústria doméstica para a manufatura e, finalmente, a produção industrial capitalista (maquinofatura). Nas palavras de Saes & Saes, “(...) não se pode ignorar o significado da manufatura como uma forma de produção industrial que prepara o caminho para a Revolução Industrial” (p. 103).

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Ora, ocorre que tal avaliação não é apoiada por estudos mais recentes sobre a chamada ‘proto-industrialização’, que indicam, ao contrário, não haver relação necessária entre tais formas de organização fabril pré-industriais e as fábricas capitalistas modernas.21 Aliás, este é apenas um dos muitos casos, nas duas primeiras Partes do livro, em que a discussão de fatos/processos históricos realizada pelos autores – por se fundar, quase que exclusivamente, nos textos clássicos – deixa de incorporar contribuições mais recentes em que determinadas teses anteriormente estabelecidas foram qualificadas ou, mesmo, refutadas.22 O tratamento dispensado, na seção 5.1, à dinâmica da inovação tecnológica durante a Revolução Industrial igualmente sofre com sua dependência exclusiva de textos escritos há cerca de um século (Mantoux) e meio século (Landes). Ainda que original e válida, a ideia de que as inovações verificadas, na Grã Bretanha, nos setores têxtil e metalúrgico, tenham seguido uma lógica do tipo ‘desafio-resposta’ (indicando o sentido da ‘demanda’ por inovações), ela não diz nada sobre a capacidade de resposta (‘oferta’) dos inventores/técnicos britânicos a esta demanda. Aqui, os autores poderiam ter recorrido às contribuições de J. Mokyr a respeito da existência daquilo que o autor denomina um ‘Iluminismo Industrial’ na Inglaterra a partir do séc. XVII ou, em chave semelhante, a da conformação de uma ‘economia do conhecimento’ na Europa, tal como proposta por M. Jacob.23 21 Para o caso inglês, ver Hudson (2004). A experiência do continente europeu tampouco confirma esta sequência ‘artesanato-manufatura-fábrica’. Ver, a respeito, Ogilvie e Cerman (1996). 22 Exemplo adicional pode ser visto na passagem em que Saes & Saes afirmam que as inovações técnicas (da Revolução Industrial) “(...) se concentraram em duas indústrias – a de tecidos de algodão e a do ferro (...)” (p. 151). Ocorre que as inovações da Revolução Industrial atingiram um grupo muito mais amplo de setores, dentre os quais o químico (álcalis e soda cáustica, por exemplo), máquinas e instrumentos, papel, vidro, refino de açúcar, iluminação a gás, entre outros. Para uma discussão, ver Mokyr (2009), especialmente cap. 7. 23 Ver, respectivamente, Mokyr (2009) e Jacob (2014).

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A discussão do caso da Holanda durante o início da Era Moderna também se ressentiu do pouco uso, por parte dos autores, da literatura especializada mais recente. Embora há muito reconhecido como um exemplo de sucesso econômico no período pré-industrial, o interesse pelo estudo mais aprofundado de um país que dava mostras de ser economicamente “moderno” antes mesmo de se industrializar ganhou ímpeto a partir da publicação, em 1997, do influente livro de J. de Vries e Ad van der Woude.24 Pesquisas subsequentes levadas a cabo por historiadores econômicos baseados, majoritariamente, nas universidades de Groningen, Leiden e Utrecht, têm procurado quantificar a extensão do crescimento da renda per capita naquela província/país e concluem que ele foi persistente, instável e, ainda que baixo para os padrões pós-Revolução Industrial (de 0,2% a.a., em média, nos 450 anos que separam a Peste Negra das invasões napoleônicas), sem paralelos no resto do mundo antes do séc. XIX.25 A presente resenha, é claro, não é o espaço para se discutir o importante caso holandês. Nota-se, apenas, que muitos dos argumentos trazidos por Saes & Saes na Primeira e Segunda Partes de seu livro, envolvendo a transição do Feudalismo para o Capitalismo ou a Revolução Industrial, ganhariam enormemente caso os autores incorporassem, em sua discussão, os insights trazidos pela literatura tratando da experiência peculiar da Holanda. Perguntas como “Onde nasceu o capitalismo, na Inglaterra ou na Holanda?”; “Por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra e não na Holanda?” “É possível haver crescimento econômico ‘moderno’ antes 24 Ver de Vries e van der Woude (1997). A propósito, chama atenção a ausência, nesta História Econômica Geral, de qualquer referência à vasta obra de Jan de Vries, um dos mais produtivos e influentes early modernists, com trabalhos seminais tratando, entre outros, da chamada Crise Geral do Século XVII (de Vries, 1976), urbanização (de Vries, 1984) e da Revolução Industriosa (de Vries, 1994). 25 Para as estimativas mais recentes do comportamento de longo prazo da economia da província da Holanda, ver van Zanden e van Leeuwen (2012).

da industrialização?” ajudam-nos a refinar argumentos a respeito da experiência inglesa de industrialização e, de forma mais geral, sobre o fenômeno do crescimento econômico. De novo, não se pretende aqui oferecer respostas a estas importantes indagações, mas apenas sinalizar o quanto esta História Econômica Geral poderia se beneficiar caso alargasse o diálogo para incorporar, também, a produção acadêmica mais recente.26 Exemplo disto, em diversas passagens dos capítulos iniciais da obra, os autores – acertadamente – chamam a atenção para a importância da inovação tecnológica à época da Revolução Industrial. Contudo, afora a já mencionada ausência de discussões em torno da maior capacidade de oferta de tecnologia por parte de técnicos/inventores britânicos no período, há certa confusão no texto com relação ao sentido do progresso técnico vivenciado pela Grã Bretanha no séc. XVIII. Assim, à p. 167 indaga-se “(...) por que inovações poupadoras de mão de obra foram introduzidas num período em que parece haver uma grande disponibilidade de trabalhadores em função do crescimento populacional?”. Trata-se, na realidade, de uma pergunta mal formulada: o ponto a se destacar – conforme enfatizado na literatura recente – é que os salários na Inglaterra eram os mais elevados do mundo27 e 26 Neste sentido, o argumento de Hobsbawm (reproduzido à p. 159), em seu livro clássico sobre a Revolução Industrial (Industry and Empire, originalmente publicado em 1968), segundo quem tal Revolução não teria ocorrido na Holanda já que “(...) os elevados ganhos (nas atividades comerciais e financeiras) teriam limitado as iniciativas na direção da atividade industrial” não parece muito convincente. Além de reduzir, implausivelmente, a ocorrência de uma Revolução Industrial à existência de oportunidades de investimento lucrativo no setor industrial, o argumento desconsidera que (dada a abundância de capitais na Holanda no séc. XVIII) as taxas de juros lá praticadas eram as mais baixas do mundo, levando, inclusive, ao direcionamento de recursos financeiros para a Inglaterra. Para possíveis razões para a Holanda não ter sido o berço da Revolução Industrial, ver Mokyr (2000). 27 Ver Allen et al. (2011). Para ser exato, no séc. XVIII os salários reais (em termos de uma cesta de consumo ‘representativa’) de trabalhadores da construção civil em Londres eram os mais altos do mundo. Caso se considere outras regiões da Inglaterra (Oxford, Leicester e Lancashire), eles seriam inferiores aos de Londres e semelhantes aos que eram pagos a trabalhadores de Amsterdã à época. Para detalhes, ver Allen (2013).

igualmente elevados na comparação com o custo do capital ou da energia (carvão mineral) dentro do país. Daí o aparente paradoxo se desfaz: as inovações da Revolução Industrial foram, sim, poupadoras de mão de obra em um contexto de população crescente porque os salários reais na Inglaterra eram, relativamente, elevados e também crescentes.28 Já o tratamento dado no livro à experiência das industrializações retardatárias (cap. 10) segue um padrão conhecido, ou seja, apresentar os casos de alguns países europeus (França, Alemanha e Rússia) e não-europeus (Japão e EUA), ressaltando as particularidades de cada um. A competente síntese efetuada por Saes & Saes vem acompanhada – tal como anteriormente – da observação de que não havia um padrão único

28 A respeito do sentido (poupador de trabalho) das inovações da Revolução Industrial em um contexto de energia e capital relativamente mais baratos, ver Allen (2009). A discussão, às pp. 171-2, sobre os cercamentos dos campos na Inglaterra também ganharia com a incorporação de resultados mais recentes da pesquisa histórica. À luz da literatura especializada das últimas duas décadas, não procede a afirmação dos autores de que “(...) o sistema de campo aberto...impedia a adoção de novas técnicas e procedimentos que tenderiam a aumentar a produtividade”. Para uma visão contrária, apontando a frequente introdução de técnicas novas nos campos comuns e os poucos efeitos dos cercamentos sobre a produtividade agrícola na Inglaterra, ver Overton (1996) e Allen (2004).

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para a industrialização e o crescimento econômico, moldado pelo caso britânico. Infelizmente, porém, os autores não levam adiante as implicações disto para uma discussão em torno da disseminação do crescimento econômico moderno para países muito diversos, ao longo do séc. XIX. Tal ponto fica mais claro a partir da tabela abaixo, que reúne uma amostra de países que experimentaram, no séc. XIX, crescimento sustentado – e intenso – da renda per capita. São conhecidos os casos de economias ‘de fronteira’, a exemplo da Argentina, Uruguai e Austrália, que cresceram e atingiram níveis elevados de renda per capita ao longo do séc. XIX, sem que a indústria tenha tido um papel de destaque neste processo. O mesmo se aplica à Dinamarca, cuja riqueza derivou da consolidação de um sistema de cooperativas agrícolas com produção destinada, majoritariamente, à exportação.29 O ponto que se deseja ressaltar aqui é que, nesta parte do texto, os autores poderiam ter elaborado mais suas repetidas ressalvas quanto à existência de vários ‘modelos’ de crescimento econômico/industrialização além do pioneiro, inglês. Ao fazê-lo, inevitavelmente se deparariam com questão controversa nos estudos sobre o desenvolvimento econômico – a relação entre o fenômeno de crescimento econômico e a industrialização. Será que o primeiro pressupõe o segundo? Os dados da tabela acima sugerem que não, ao menos para certas economias que se especializaram na produção e exportação de commodities temperadas ou de minerais no ‘longo’ séc. XIX, cujos níveis de renda per capita em 1913 se assemelhavam aos alcançados por países 29 Chama a atenção o caso do Japão. Embora tivesse se tornado, ao final do séc. XX, um dos países mais industrializados e ricos do mundo, nada indicava, às vésperas da I Guerra, que isto ocorreria: sua renda per capita em 1913 era equivalente a ¼ da australiana e 1/3 da argentina (ver Tabela 1).

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em que a indústria teve maior importância.30 Mais ainda: mesmo em se tratando dos países que se tornariam as grandes potências industriais no início do séc. XX – EUA e Alemanha – o setor de serviços também contribuiu decisivamente para seu crescimento e a eventual ultrapassagem em relação à Inglaterra.31 No caso dos EUA, o crescimento médio da renda per capita, estimado em 0,9% a.a. entre 1800-1840, resultou, sobretudo, da intensificação do comércio interno, e das exportações de algodão, mais até que da expansão do setor industrial.32 Fenômeno análogo (de ganhos de especialização), provavelmente, ocorreu na Alemanha a partir do Zollverein e da integração de mercados internos proporcionada pela expansão ferroviária. Em suma, por mais que os autores tenham tido o cuidado de ressaltar a inexistência de um caminho único para o crescimento econômico sustentado após a Revolução Industrial, a discussão empreendida no cap. 10 pode levar o leitor à conclusão de que a industrialização (ainda que assumindo formas próprias em cada país) o seria.33 A experiência histórica, porém, sugere que não. Além da industrialização, também teve papel decisivo para a disseminação, no séc. XIX, do crescimento sustentado da renda per capita para um conjunto de países além do Noroeste europeu a própria extensão do capitalismo em escala global. Tal fenômeno ajudou a criar ou adensar mercados de bens e fatores de produção em todos os setores da economia, inclusive na agricultura (que, na maior parte dos países, ainda constituía, de longe, o principal empregador e 30 O exemplo mais eloquente é o da Austrália, cuja renda per capita entre c. 1860-1890 era a mais alta do mundo e, às vésperas da I Guerra Mundial, inferior apenas à da Suíça e dos Estados Unidos. Para uma discussão dos fatores por detrás da prosperidade australiana, ver McLean (2013). 31 Para o argumento, ver Broadberry (1998). 32 Ver Atack e Passell (1994). 33 Questão análoga se coloca na Primeira e Segunda Parte do livro, quando, não obstante repetidas ressalvas quanto à existência de ‘modelos’ outros de industrialização que não o da Inglaterra, a ênfase do texto repousa em exaustivo tratamento da ‘transição do Feudalismo para o Capitalismo’, fenômeno de pouca aplicabilidade para outros países.

respondia pela maior parte do PIB).34 Com isso, auferiram-se ganhos de produtividade crescentes e, por conseguinte, avanço sustentado da renda per capita, ou seja, o crescimento econômico moderno. Os demais pontos (três no total) em que minha interpretação de fatos/processos históricos difere daquela apresentada em História Econômica Geral são menores e dizem respeito ao séc. XX. Procurarei tratá-los de forma sucinta para, então, concluir com o que julgo serem duas omissões e dois erros do texto. O primeiro foco de discordância é com relação ao tratamento dado, pelos autores, aos fatores que possibilitaram à economia americana começar a se recuperar das profundezas da Grande Depressão. A boa discussão, no capítulo 15, do New Deal de Roosevelt pode deixar a falsa impressão – ainda que involuntária – de que seus programas tiveram papel decisivo para o início da recuperação da economia do país após 1933 (sobretudo quando a experiência do New Deal é tratada antes de uma discussão das políticas praticadas pelos regimes totalitários da Itália, Alemanha e Japão à mesma época, com reconhecidos impactos contra-cíclicos). A literatura sobre a Grande Depressão nos EUA, ao contrário, atribui à política monetária – e não à fiscal (incluindo o New Deal) – o papel de dar início à lenta recuperação da economia americana, a partir da desvalorização do dólar e suspensão de sua conversibilidade, no início do primeiro governo Roosevelt.35 Os outros pontos de discordância em relação à interpretação oferecida por Saes & Saes se inscrevem na discussão do processo de reconstrução da economia europeia após a II Guerra. Assim, ao tratarem do Plano Marshall, os autores fazem duas afirmações questionáveis: “Há 34 Este ponto é feito de forma persuasiva por Harley (2014). 35 Ver Eichengreen (2004).

um razoável consenso sobre os resultados econômicos do Plano Marshall” (p. 440); e “Uma das poucas condições exigidas pelos Estados Unidos para a realização dos investimentos nos países era de que seus governos não fossem governos socialistas ou comunistas” (p. 461). A literatura sobre o Plano é vasta, mas não tem sido capaz de dissipar a visão “popular” segundo a qual os recursos por ele alocados teriam sido essenciais para a reconstrução europeia no pós-Guerra. Milward (1984) deu início a um revisionismo extremo, argumentando que, ao contrário, as taxas de crescimento econômico da Europa no período não teriam sido, fundamentalmente, mais baixas na ausência do Plano Marshall. Este revisionismo, por sua vez, vem sendo, ele próprio, revisto, com autores destacando os efeitos do Plano sobre o sistema de economia política na região. Em particular, para Eichengreen (2007) o Plano não apenas aliviou a crônica escassez de dólares então experimentada pela Europa, como permitiu aos Estados Unidos oferecerem incentivos para a adoção, por parte dos países da região, de sistemas econômicos mais pró-mercado, com impactos positivos – e de longo prazo – sobre o crescimento econômico. Já Berger e Ritschl (1995) enxergam o Plano como um conjunto de instituições que ‘amarravam’ os ex-beligerantes numa rede de cooperação, tendo como objetivo a reconstrução alemã, a ser sustentada pela intensificação do comércio intra-europeu, base última do reerguimento do continente por suas próprias forças. Ao que parece, não há, propriamente, um consenso acadêmico em torno dos resultados do Plano Marshall. Também não procede a ideia de que eram poucas as condicionalidades ligadas à concessão de ajuda americana aos europeus. Conforme notam de Long e Eichengreen (1991), para receber ajuda dentro do Plano, cada país recipiente deveria assinar acordo bilateral com os EUA, conHistória e Economia Revista Interdisciplinar

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cordando em equilibrar o orçamento do governo, restaurar a estabilidade financeira doméstica, estabilizar a sua taxa de câmbio em níveis realistas e apresentar programa prevendo a remoção de quotas e demais controles sobre o comércio internacional.36 Como se vê, são exigências que vão além daquelas de natureza político-ideológicas destacadas por Saes & Saes. A última divergência de interpretação mais significativa envolve a discussão da natureza da política econômica adotada na Alemanha (Ocidental) no pós-Guerra. Não parece precisa a avaliação dos autores de que uma política “mais próxima do mercado” teria sido abandonada, naquele país, em 1960, política esta que, desde a reforma monetária de 1948, teria se pautado na “ortodoxia monetarista”.37 Na realidade, a doutrina econômica que serviu de base para a política econômica do governo democrata-cristão de K. Adenauer nos anos 1950 – a chamada ‘economia social de mercado’ – se caracterizava, justamente, por se posicionar entre o liberalismo clássico e o intervencionismo extremo, sendo questionável retratá-la como sendo “mais próxima do mercado”.38 Se a identificação de pontos de divergência quanto à interpretação dos autores envolve forte grau de idiossincrasia por parte do resenhista, esta está mais presente ainda quando se trata de possíveis omissões no texto do livro. As duas, que serão brevemente discutidas a seguir, envolvem contribuições que, a meu juízo, poderiam ter enriquecido o texto de Saes & Saes. A primeira é de Edward Wrigley, conhecido demógrafo histórico inglês, com contribuição muito original para o entendimento de diversos processos econômicos, demográficos e sociais associados à Revolução Industrial britâ36 Ver de Long e Eichengreen (1991), pp. 48-9. 37 Ver Saes e Saes (2013), p. 449. 38 Para as origens intelectuais da doutrina da ‘economia social de mercado’, no chamado ‘neoliberalismo’ dos anos 30, ver Hartwich (2009).

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nica.39 Seus trabalhos na área foram consolidados em livro de 2010, cujo objetivo, segundo o próprio autor, não é explicar as origens do crescimento rápido, mas as razões pelas quais ele não cessou após a Revolução Industrial (como era a norma até então).40 O trabalho de Wrigley trouxe renovado interesse no papel do carvão mineral na história da industrialização britânica, não apenas como combustível importante para a geração de vapor e fonte de energia térmica em processos industriais diversos, mas, de forma mais geral, como a chave que abriu a passagem daquilo que ele próprio denomina uma ‘economia orgânica avançada’ para uma economia moderna, ‘baseada em minerais’. Com o uso crescente do carvão mineral desde o séc. XVI, argumenta Wrigley, a Inglaterra foi capaz de reservar suas terras para uma agricultura intensiva em animais (ao prescindir de grandes extensões de florestas para a produção de lenha e carvão vegetal), o que permitia uma dieta mais rica aos ingleses e provia força não-humana (bois e cavalos) em uma escala sem igual no mundo. Uma agricultura com níveis de produtividade sem rival, a intensificação do comércio doméstico, as grandes migrações internas, a forte urbanização e o aumento das taxas de fertilidade serviram de pano de fundo para uma economia que, pela primeira vez na história humana, conjugou forte aumento populacional (de 5,9 milhões para 16,7 milhões entre 1750 e 1850) com aumento (estimado em cerca de 50%) na renda per capita. A contribuição de Wrigley, que combina, como já dito, energia, agricultura, demografia, transportes e indústria em um ‘modelo’ integrado 39 Um trabalho de autoria de Wrigley, datado de 1986 (“Urban Growth and Agricultural Change: England and the Continent in the Early Modern Period”), consta das referências ao cap. 8, sem que suas ideias tenham sido explicitamente discutidas pelos autores no corpo do texto. 40 Ver Wrigley (2010).

e bastante original torna-a referência obrigatória nas discussões modernas sobre a Revolução Industrial e o desenvolvimento econômico de forma mais geral, no qual, como é sabido, o papel da energia tem lugar central. Outra omissão que, a meu ver, retira parte do poder do livro de Saes & Saes de dialogar com questões mais contemporâneas na área de crescimento econômico envolve o tratamento dado à chamada Era de Ouro do capitalismo (cap. 17). Ao se concentrarem, exclusivamente, nos fatores de estímulo pelo lado da demanda (políticas de pleno emprego, consolidação do Estado de Bem Estar, gastos militares), os autores desconsideram elementos do lado da oferta que asseguraram crescimento sem precedentes da renda per capita de países da Europa Ocidental e que, uma vez esgotados, levaram suas economias a apresentar taxas mais modestas de crescimento econômico a partir dos anos 1970. Em particular, não foi mencionado o impulso ao crescimento trazido pelos ganhos de produtividade associados à transferência maciça de recursos da agricultura para a indústria e serviços entre 1950-73, em processo análogo ao experimentado pelo Brasil nos anos 1950 e 1960 e, mais recentemente, pela China.41

autor desta resenha, é claro, tem as suas próprias preferências, inclusive quanto a abordagem, recorte temporal/espacial, bibliografia etc. Caso tivesse a coragem (e ele não tem) de, solitariamente, se lançar ao desafio, encarado pelos autores, de contar uma história do capitalismo, o produto final seria bem diferente, e refletiria idiossincrasias, possíveis talentos e reconhecidas limitações pessoais. As muitas divergências de interpretação discutidas acima, bem como as poucas omissões, não devem ser entendidas como argumentos em favor de algo que julgo dever constar de livro como a história “correta” do capitalismo.42 São, isso sim, reflexões de um leitor interessado que, atendendo ao convite feito pelos autores no início da obra, procurou engajar-se genuinamente com seus argumentos e, como sempre ocorrerá nestes casos, encontrou espaço para divergir. Penso não haver melhor tributo aos autores desta boa História Econômica Geral.

*** Em um trabalho de fôlego como é esta História Econômica Geral, de Saes & Saes, cobrindo 1.000 anos de experiência humana, diversos países e inúmeros fatos/processos históricos, é inevitável que se façam escolhas. Os autores as fizeram e as deixaram claras na Apresentação e Introdução ao livro, para benefício do leitor. O 41 Para a relação entre a mudança estrutural nas economias europeias e a Era de Ouro, ver Temin (2002), estendendo argumento originalmente feito por Kindleberger (1967). Somados a estes ganhos – envolvendo, no caso europeu, uma aproximação à fronteira tecnológica determinada pela economia americana –, houve, adicionalmente, os efeitos do deslocamento ‘para fora’ desta fronteira a partir dos aumentos de produtividade associados ao progresso técnico nos EUA nas décadas anteriores. Para este ponto, ver Field (2003).

42 Só identifiquei dois erros mais claros no texto. Primeiramente, não é verdade, como se afirma à p. 158, que o Tratado de Methuen, entre a Inglaterra e Portugal (1703), tenha estabelecido “isenção tarifária para os tecidos ingleses em Portugal”. O Tratado apenas revogou as proibições à importação de artigos manufaturados de lã, que estavam em vigor desde 1654, sem que dispusesse qualquer coisa sobre tarifas de importação. O segundo ponto (ver p. 461) envolve a sugestão de que o Japão fora um dos beneficiários dos US$ 13 bilhões tornados disponíveis pelo European Recovery Program (Plano Marshall), o que, é claro, não foi o caso.

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