“Revolução da ternura”: a necessidade de uma comunicação encarnada

Share Embed


Descrição do Produto

a necessidade de uma comunicação encarnada

M

uitos comentam que São João Paulo II (1920-2005) era um papa para ser visto, enquanto o papa emérito Bento XVI (1927-) é para ser ouvido. Seguindo nessa linha, o papa Francisco (1936-) é para ser “sentido”, porque sua comunicação, que admirou o mundo, é marcada pelo contato, pelo toque, pela proximidade. E não são gestos aleatórios ou meramente simbólicos. Nascem de uma experiência e de uma vivência profundas do que há de mais central no cristianismo: a encarnação de Deus, o “Verbo que se faz carne”, festa que celebramos neste período natalino. Para o pontífice, a encarnação não é apenas um conceito teológico. É também uma realidade histórica que não nos deixa inertes. “Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura”, afirma ele na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG n. 88).1 Assim, o O Mensageiro de Santo Antônio

58

Dezembro de 2014

papa Francisco sintetiza não somente o que somos chamados a viver na festa do Natal, mas também o desafio comunicacional que essa celebração lança a cada cristão e cristã: encarnar, mediante gestos e palavras, a ternura de Deus. Uma verdadeira revolução, que passa pela “carne”, em seu sentido mais profundo, pela realidade concreta de cada irmão e irmã, que devemos “tocar” e pela qual devemos nos deixar tocar, como fez o próprio Jesus, Deus feito homem. A revolução da ternura iniciada por Jesus pressupõe uma comunicação que se encarna no gesto de “sair de si mesmo para se unir aos outros” (EG n. 87). E hoje, “neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a ‘mística’ de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré

um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada” (EG n. 87). Mas, reconhece o papa Francisco, “muitos tentam escapar dos outros fechando-se na sua privacidade confortável ou no círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social do Evangelho. Porque, assim como alguns gostariam de um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade” (EG n. 88). O que ele denuncia é uma grande tentação comunicacional. Ou seja, tentar se fechar e se afastar da “carne” do outro, escapar do contato com ele, converter a comunicação em mera transmissão, a distância, muitas vezes recorrendo a mediações tecnológicas.

Essa tentação também existe dentro da Igreja: imaginar que é possível evangelizar sem o “cheiro das ovelhas”, sem o pó das estradas, sem o barro da humanidade. A presença cristã nos meios de comunicação social, assim, pode se tornar, muitas vezes, apenas um álibi para evitar o contato direto com o povo de Deus, para se manter relações puramente “higiênicas” e “esterilizadas”, sem as lágrimas, o sangue e o suor de pessoas, famílias e comunidades concretas. Isso não significa que a mediação tecnológica, realmente, apague a presença do corpo do outro e impeça o contato. Ao contrário: cada vez mais, o corpo, o contato, o toque, quase paradoxalmente, tornam-se indispensáveis até para o próprio funcionamento das tecnologias. Basta pensar nos videogames que não possuem controle externo, mas funcionam a partir dos movimentos corporais do usuário. Ou os celulares e tablets que, para executar qualquer funcionalidade, solicitam que um dedo os toque. Portanto, as mediações (sejam quais forem) não anulam os corpos que se põem em contato. Como o próprio papa afirma em sua mensagem para o 48o Dia Mundial das Comunicações, celebrado em 2014, “a rede digital pode ser um lugar rico de humanidade”, e particularmente a internet “pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus”. O problema é quando se recorre a tais mediações tecnológicas deliberadamente com a intenção de escapar do outro e evitar o contato. O fechamento na própria “privacidade confortável” e a renúncia ao “realismo da dimensão social do Evangelho”, como diz o papa Francisco, são empecilhos também dentro da própria Igreja. No recente Sínodo dos Bispos sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, por exemplo, surgiu com força a questão dos casais separados e dos divorciados em segunda união. Mas, muitas vezes, há “separações” e “divórcios eclesiais” que são tão dolorosos quanto os matrimoniais. Há dioceses em que os jovens veem seu bispo apenas na celebração da Confirmação e não conseguem nem trocar uma palavra com seu pastor. Há paróquias em que as crianças só terão um momento de proximidade com seu pároco no dia da Primeira Eucaristia. Há comunidades em que os leigos sentem que existem e são valorizados na comunidade cristã só quando decidem deixar

de pagar o dízimo. Há leigos tão clericalizados “risco do encontro”? A nos deixar interpelar e espiritualmente imaturos que menosprezam pelo rosto, pela presença, pelo sofrimento do a ação pastoral perto do povo de Deus por ser outro? A nos deixar “contagiar” por ele? Que “humana” ou “social” demais, preferindo um oportunidades de encontro (presenciais ou refúgio seguro nas sacristias e nas capelas não) existem em nossas comunidades entre com “odor de santidade”. Nesses casos, como clero, religiosos e leigos? Como podemos amfalar de “revolução da ternura”? pliar ainda mais os momentos de proximidade, Se a Igreja está diante de tantas crises, de criação de vínculo entre irmãos e irmãs? O como a queda nas vocações sacerdotais e que podemos fazer para que o amor fraterno religiosas e os problemas internos à vida seja uma realidade “encarnada” na nossa matrimonial e familiar, experiência comunitária? isso também se deve à Diante desses desafalta de proximidade entre fios, é preciso inventar, Como diz o papa irmãos e irmãs no interior com criatividade humilde Francisco, “a Paladessa instituição e a essas e artesanal, modos, espavra de Deus ensina “separações eclesiais”, que ços e momentos em nossas que, no irmão, está o vão em sentido contrário comunidades, paróquias e à encarnação que celebradioceses para promover o prolongamento permos no Natal. A beleza de encontro, a proximidade, manente da Encaruma vocação sacerdotal e o contato entre irmãos e nação para cada um religiosa e o “Evangelho irmãs, também (mas não de nós: ‘Sempre que da família” só podem ser só) graças às mediações conhecidos e comunicados tecnológicas. Pois “quem fizestes isto a um quando encarnados em não ama o seu irmão, a destes meus irmãos contatos e relações conquem vê, não poderá amar mais pequeninos, a cretos, pessoais, humanos. a Deus, a quem não vê” Mim mesmo o fizesNa Mensagem final do (1Jo 4,20). Sínodo2, os padres sinodais Como diz o papa Frantes (Mt 25,40)’” afirmam que “Cristo quis cisco, “a Palavra de Deus que a sua Igreja fosse uma ensina que, no irmão, casa com a porta sempre aberta na acolhida, está o prolongamento permanente da sem excluir ninguém”. Mas isso ainda não é Encarnação para cada um de nós: ‘Sempre realidade. E apenas manter a “porta aberta” que fizestes isto a um destes meus irmãos também não é suficiente: na Evangelii mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes Gaudium, o papa pede principalmente uma (Mt 25,40)’” (EG n. 179). Essa é a grande “Igreja ‘em saída’”, não apenas “em acolhida”. experiência que o Natal, festa da encarna“Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a ção divina na carne humana de Jesus, nos Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, proporciona. Uma verdadeira revolução, que em todos os lugares, em todas as ocasiões, também nos desafia. sem demora, sem repugnâncias e sem medo” Um feliz e abençoado Natal e boas (EG n. 23). No discurso de encerramento do Sífestas a todos! nodo, o papa Francisco até se corrigiu ao usar a expressão “acolher as ovelhas perdidas”: “Eu NOTAS errei aqui. Disse ‘acolher’: ‘ir encontrá-las’!” 1 Disponível em português em: Este é o desafio maior. E o próprio Evangelho, http://goo.gl/CzzChP. 2 continua o pontífice, “convida-nos sempre a Disponível em espanhol em: http://goo.gl/VV6N4m. abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimento e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo Moisés Sbardelotto lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, Jornalista, autor do livro E o verbo se fez bit: a comunicação da pertença à comunidade, do serviço, da e a experiência religiosas na reconciliação com a carne dos outros” (EG n. internet (Santuário) 88). Por isso, estamos dispostos a abraçar o O Mensageiro de Santo Antônio Dezembro d e 2 0 1 4

59

Arquivo pessoal

“Revolução da ternura”

Papa Francisco na Praça de São Pedro, Vaticano, dezembro 2013, L’Osservatore Romano

I G R E J A & C O MU N IC AÇ ÃO

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.