Riocorrente e os estados da alma de São Paulo

July 24, 2017 | Autor: Aline Perrotti | Categoria: Semiotics, Film Analysis, Film Semiotics, Social Semiotics, Semiotica
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Artigo produzido no Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS) e publicado na obra Do sensível ao inteligível: duas décadas de construção do sentido, organizado por Ana Claudia de Oliveira, diretora do CPS.

Aline Perrotti Maria Cecília Ferreira De Nichile

Riocorrente e os estados da alma de São Paulo

Introdução No cenário atual, nota-se um contínuo aumento das grandes metrópoles que se expandem, ano após ano, de forma desordenada e acelerada. Juntamente a esse processo, observa-se a constituição de uma sociedade cada vez mais voltada para o consumo e para a lógica do trabalho, em detrimento das relações interpessoais1. Neste contexto, enquadra-se a cidade de São Paulo, com um número de aproximadamente 19 milhões de habitantes em sua região metropolitana. Cidade de onde partiram os primeiros bandeirantes, que escreveram com sangue indígena os capítulos iniciais do país, 2 a metrópole paulista ainda carrega essa herança de riqueza e força bruta a desbravar, inscrita no entorno citadino não somente sob a forma de prédios comerciais e residenciais, que não param de ser erguidos, mas em especial no excesso de população. Esse aglomerado populacional, visível principalmente nas vias e ruas da metrópole, remete ao constante movimento de ir e vir de trabalhadores em busca de melhores condições de vida para poder usufruir das modernidades da metrópole. O que se depreende é uma trajetória circular, regida pela rotina já programada do serviço e da compra, que acaba por resultar em relações de poder influenciadas pelo valor monetário,

1 DEBORD, G.A sociedade do espetáculo, São Paulo, Contraponto, 1997, p. 47 2 FRANCO, F. A. C. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil, São Paulo, Editora Itatiaia Limitada - Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

que cultivam a manutenção da exclusão, do preconceito regional e racial e das diferenças de classes, igualmente herdados do princípio da história brasileira. A sociabilidade em uma metrópole da grandeza de São Paulo não é da ordem da volição, mas da ordem da necessidade. Os sujeitos tendem ao individualismo, abrindo mão das relações de natureza mais íntima. Nessa configuração metropolitana, torna-se determinante que os modos de vida se esvaziem de sentido. A experiência coletiva dessa vivência urbana traduz-se nas práticas artísticas que emergem desse ambiente; pois, pela definição de Tarkovsky, a arte “é uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si próprios e assimilar a experiência dos outros”3. O fazer artístico, como enunciação, se mostra como possibilidade de questionamento e diálogo com o espectador sobre a realidade na qual o artista está imerso. Posto isso, fazendo uso do percurso gerativo cunhado por Greimas, esse texto busca analisar de que forma o filme Riocorrente4, de Paulo Sacramento, organiza sincreticamente suas virtualidades para criar um discurso sobre os modos de vida metropolitanos na cidade de São Paulo. A semiótica. A figuratividade é a “operação resultante desses modos de tradução determinando a produção do conhecimento sensível e inteligível do mundo que a humanidade edificou e edifica pelas linguagens, fazendo-se ser” 5. Dessa forma, o fazer cinematográfico pode ser visto como uma tradução, em forma de imagens, sons e enquadramentos, da realidade apreendida pelo olhar de um cineasta-enunciador que pensa seu meio pela arte, pois: A experiência visual é uma delimitação do excedente de sentido que se processa, na e pela exploração do sensível, passando das impressões das qualidades sensíveis às diferenças distintivas entre os elementos constitutivos de uma grandeza de sentido6.

3 TARKOVSKY, A. Esculpir o Tempo, São Paulo, Martins Fontes, 2010, p.42. 4 SACRAMENTO, P. Riocorrente, São Paulo, Olhos de Cão, 2014. 5 OLIVEIRA, A. C. M. Fait divers na ressignificação da vida, in: Revista Eletrônica Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 10.n.2, dez. de 2012, p.6. 6 OLIVEIRA, A. C. M. Visualidade, entre significação sensível e inteligível, in: Revista Eletrônica Educação e Realidade Vol. 30.n2 em jul/dez., 2005, p.110 e p.118.

A semiótica estuda a articulação dos elementos dispostos no texto, aqui o fílmico, para a formação do sentido. Sendo assim, a apreensão dos sentidos inerentes ao filme, encontra-se no olhar sobre o arranjo sincrético, pois, é pelo traçar do percurso gerativo do sentido que se dá a compreensão da manifestação estética. Nessa busca de significados, três planos são abordados: o plano fundamental, onde se estruturam as oposições entre os formantes fazendo circular os valores; o plano narrativo, em que são abarcados os papéis e os desempenhos dos sujeitos das ações; e, finalmente, o plano discursivo, em que se verificam os actantes em uma dada temporalidade e espacialidade, as relações de interação entre estes, bem como os temas e figuras que se encontram presentes no plano da expressão e do conteúdo, e que serão investigados e interpretados por meio de suas modalidades matéricas, eidéticas, cromáticas e topológicas. Posto isso, ver uma imagem “não é um ato descomprometido e espontâneo, ao contrário, é um ato de contato e de contrato com várias axiologias que quem vê é levado ou não a partilhar”7. O sentido do filme, então, é criado pelo espectador no processo de leitura e interpretação das virtualidades escolhidas e arranjadas pelo cineasta na formulação da manifestação estética. A manifestação estética. No filme Riocorrente, a figuratividade apresentada na tela enuncia São Paulo como uma cidade massacrante que, cinza e inexpressiva, em seu desempenho intimidador homogeneíza e pasteuriza os habitantes em uma programação que segue a lógica do capital. Se como define Ismail Xavier, fazer cinema é “dar expressão visual a uma representação da consciência que, atentamente, observa o mundo que a rodeia” 8, o longa metragem pode ser encarado como o ponto de vista do cineasta sobre o momento presente em que está inserido, bem como, seu próprio repensar acerca das práticas de vida na cidade. O filme tem início com a dualidade figurativa entre o rio e a luz. Sobre as águas que correm na tela escura, luzes advindas dos postes de lâmpadas refletem nesse movimento líquido e contínuo. A imagem nos remete ao embate natureza versus civilização, em que a eletricidade, símbolo da modernização, invade a natureza e se 7 OLIVEIRA, A. C. M. Visualidade, entre significação sensível e inteligível. In: Revista Eletrônica Educação e Realidade, Vol. 30.n2 em jul/dez., 2005.

8 XAVIER, I. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência, São Paulo, Paz e Terra, 2008, p.53.

sobrepõe a ela. A cena sinaliza a presença da água mal iluminada, correndo nas penumbras, quase imperceptível, mas que está ali, latente. Nessa primeira imagem já é definida a oposição semântica presente no plano fundamental, que irá percorrer todo o longa-metragem: civilização versus natureza. Durante toda sua duração, esses dois contrários serão reiterados por meio de figuras e ações, levando a uma discussão acerca dos resultados advindos do desenvolvimento civilizatório que acarretou no progresso da metrópole, e suas consequências para a cidade e seus habitantes, por meio da comparação entre o rio e os cidadãos. Figura 1- Reflexo da luz dos postes sobre a água em movimento nas sombras.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

O rio, domado pela cidade em seu processo desenvolvimentista, continua a se movimentar. Ainda que emparedadas pelo concreto entre ruas iluminadas, suas águas persistem no seu fluir, estão vivas. Da mesma forma, os conformados habitantes são levados pelos caminhos que a cidade, bem como sua lógica produtiva, delineiam. Contudo, seus sentimentos, ainda disfóricos, anseiam por objetos de valor que os despertem dessas práticas destituídas de sentido. É o que demonstraremos na análise dos níveis narrativo e discursivo dessa obra estética. A narrativa dos sujeitos. No filme, São Paulo é erigida não como um cenário de fundo para o enredo, mas sim como protagonista. As imagens elencadas na enunciação demonstram que a cidade tem papel determinante nas ações de seus moradores. Posta como um sujeito que age sobre os habitantes de forma opressora, São Paulo, faz-fazer, quando leva os habitantes

a viverem no ritmo do trabalho e na lógica das ruas, e faz-sentir, no momento que os isola e cria barreiras para as relações interpessoais. O enredo nos propõe quatro personagens: o menino Exu e o trio amoroso Carlos, Renata e Marcelo, destinatários do destinador cidade. Por meio da manipulação do ambiente urbano e da necessidade que este promove de acumular bens e papéis profissionais, esses protagonistas são levados a viver uma vida voltada para a sobrevivência. No entanto, quando se trata das relações pessoais são todos sujeitos disfóricos, disjuntos de seus objetos de valor, esvaziados de sentido de vida. Carlos é morador da periferia, trabalha e sobrevive com o que lhe é dado. Homem da ação, ele não se expressa por palavras, mas sim pelo ato, ainda que este seja na maior parte das vezes agressivo. Carlos tem um relacionamento com Renata, moça de classe média e, aparentemente, estudada, cujas inquietações a mantém percorrendo movimentos circulares. Apesar de seu constante desejo pelo diferente, ela se apavora com a possibilidade de mudanças, voltando sempre ao mesmo lugar. Renata tem um namorado, o jornalista e professor de artes visuais, Marcelo. Ele detém considerável conhecimento teórico-acadêmico, mas, apesar do domínio da linguagem e da experiência com as artes, não vai além da contemplação, é incapaz de agir conforme o que ensina. E, ainda há Exu, o menino marginalizado socialmente que vaga pela cidade promovendo a destruição e, que em seu percurso vem a se autointitular maldito. Os protagonistas são sujeitos da busca. Carlos almeja encontrar um lugar social, visto que tenta sair da criminalidade, deixando de roubar carros para ter seu próprio negócio com a venda de peças de motocicleta. Por sua vez, Marcelo preenche todo o seu dia com atividades, na tentativa de acumular bens e saberes, que não o completam, visto que o que lhe falta é a competência para aprofundar-se nas relações íntimas. Ao mesmo tempo, Renata é movida pelo impulso da busca, persegue algo incessantemente demonstrando não saber ao certo o que, e aparentando, na verdade, estar à procura de si mesma. Por fim, Exu, o menino enjeitado pela mãe e pela cidade, ambiciona algum tipo de amparo, que ora tenta alcançar no pai, ora nos demais habitantes à margem dessa configuração citadina. Marcelo é jornalista e professor de história da arte. Em seu programa narrativo, Marcelo deixa-se manipular pela sedução do sujeito São Paulo, visto que acredita que mantendo-se ativo e seguindo os códigos sociais irá ganhar prestígio e isso lhe trará realização. No entanto, sua fidúcia no destinador é tão profunda que, em sua vida

alinhada a programação da cidade, não há mais espaço para uma performance que fuja ao regularizado, criando dificuldade em lidar com performances que atuem no imprevisto e no espontâneo, o que ocorre nas relações interpessoais. Em sua atuação, Renata sofre a manipulação da cidade. A moça é tentada a consumir tudo e todos, em uma experimentação insaciável que acredita ser o caminho para a construção de sua personalidade. São Paulo leva essa destinatária disfórica a querer-sentir e sua busca se divide entre a erudição e o conforto que Marcelo representa, e a voracidade e imprevisibilidade que Carlos carrega. Renata corre de um para o outro, em constante procura por algo que lhe proporcione prazer, de um sentimento que parece faltar. Já Carlos, apresenta uma performance que responde à necessidade de sobrevivência que a metrópole lhe impõe. Intimidado pelas negativas da cidade que não lhe permite prosperar sem a criminalidade, nem ter confiança numa relação afetiva, ou mesmo adquirir uma perspectiva de sustento para o filho, ele deve-trabalhar, deveroubar e deve-agredir, para manter-se vivo na capital. Por sua vez, Exu é impulsionado a reagir à todas as provocações da destinadora São Paulo. Abandonado, ignorado e ameaçado, o menino que sente o vazio econômico, social e emocional, atua em resposta ao descaso da metrópole, perpetuando o vandalismo e a violência contra o ambiente que o oprime. Finalmente, o rio também sofre a manipulação da cidade. Emparedado, é intimidado pela intransponibilidade do concreto e pelo ferro dos canos, e deve-seguir os caminhos impostos pela cidade se quiser chegar ao final de seu curso. Os percursos narrativos implicam os protagonistas em papéis temáticos que se adéquam a lógica metropolitana, pois são sujeitos que seguem os preceitos de uma sociedade voltada para o trabalho e para o consumo, e que tende a cristalizar modelos a serem seguidos pelos indivíduos sem questionamento, levando-os a práticas de vida sem sentido, que se transformam em programações repetidas à exaustão. Porém, a troca de experiências dentro da narrativa da metrópole gera uma busca por competências cognitivas que viabilizem a junção dos sujeitos com seus objetos de valor, ainda que no enredo esta união não se concretize. As virtualidades.

Na primeira tomada aérea de São Paulo apresentada pelo filme, a cidade vista de cima expõe um emaranhado de prédios com janelas iluminadas, onde apenas um relógio, no alto, se destaca e mostra uma cidade regida pelas horas que pontuam. Os actantes são dispostos em uma metrópole atual, que se mostra ativa, pulsante e robusta mas, ao mesmo tempo, cinzenta, apática e deserta. Seus habitantes se posicionam de forma disfórica, na cadência do tempo do trabalho, mas desacertados entre si, como o rio que corre calado entre os muros de concreto. Figura 2 - São Paulo vista de cima. Apenas o relógio iluminado acima dos prédios se destaca em meio a escuridão da metrópole, demonstrando que a cidade é regida pela pontuação das horas.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

Podemos relacionar essas figuratividades descritas como um discurso que o diretor pretende expor por meio de sua obra fílmica, dado que “a enunciação é o assumir, pelo sujeito que fala, movimenta-se ou desenha, as virtualidades que lhe oferece o sistema de significação que ele utiliza”9. Por meio das figuratividades que escolhe relacionar Riocorrente apresenta a tese de que há algo pulsando dentro desses habitantes citadinos, esperando para ser acordado. Os formantes e suas relações, expostos no plano da expressão e do conteúdo, ou seja, na mise en scène do filme, realizam um paralelo entre o rio e os cidadãos dessa cidade, ambos constritos dentro

9 FLOCH, J.M. Alguns conceitos fundamentais em semiótica geral, in: Documentos de estudo do centro de pesquisas sociossemióticas 1. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociosemióticas, 2001, p.15.

dessa configuração metropolitana que parece ter-lhes furtado a subjetividade e lhes condenado a um descompasso com seus próprios modos de viver. O filme toma emprestadas imagens retiradas do cotidiano da metrópole, como as ruas do centro, as avenidas e viadutos, os espaços fechados dos apartamentos e os arranha-céus que cercam São Paulo e reitera a ideia da cidade como esse espaço que concreta seus habitantes. Uma das sequências onde isso é claramente exemplificado é na cena em que a protagonista Renata corre pelo Elevado Costa e Silva: enquanto ela se encontra desfocada em primeiro plano, a cidade, ao fundo, está nitidamente focalizada, o que implica que o sujeito da ação, naquele momento, é São Paulo e não a moça. Figura 3 - Personagem Renata corre em primeiro plano desfocada, enquanto o foco está na cidade, que se sobrepõe com seus prédios, no segundo plano.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

Nada é mostrado ao acaso, os locais que Riocorrente escolhe enunciar a vivência dos protagonistas são ruas e vias que antes eram ocupadas por rios. Como a Avenida 13 de maio que, juntamente a 23 de maio, passa por cima do espaço antes ocupado pelo córrego Itororó10, hoje transformado em galeria, correndo envolto em concreto. Ao mesmo tempo, a Santa Efigênia era o local em que o córrego Yacuba 11 passava, indo 10 DOMINGOS, R. Córregos subterrâneos no limite inundam túnel do Anhangabaú. G1:Globo.com, 2010. Disponível em Acesso em 6 out. 2014, 22:00. 11 FELIPETTE, P. et BROCANELI, S. M. Renaturalização de Rios e Córregos do município de São Paulo. São Paulo: Ebah. Disponível em - Acesso em 6 out. 2014, 22:00.

desaguar no rio Anhangabaú, bem como os córregos Saracura e Bexiga, que ainda correm embaixo da Avenida Nove de Julho e pelo bairro da Bela Vista. Por sua vez, entre as ruas 25 de Março, General Carneiro e a ladeira Porto Geral, corria o rio Tamanduateí, antigo Piratininga, que tinha o Parque D. Pedro como margem e cruzava o bairro de Higienópolis, novamente desaguando no riacho do Anhangabaú 12. Hoje, emparedado e seguindo uma trajetória retilínea, o Tamanduateí, corre acompanhando a Avenida do Estado13. Finalmente, o Rio Pinheiros e o Tietê também tiveram suas várzeas asfaltadas pelas respectivas Marginal Pinheiros e Marginal Tietê. Esses rios não deixaram de existir, foram domesticados pelo progresso da metrópole, que tomou o espaço para si e refez os caminhos dos rios, obrigando-os a correr adequando-se a lógica de sua arquitetura, da mesma forma, com que coagiu os sujeitos a se locomoverem conforme a disposição das ruas. Figura 4 - Rio Tamanduateí emparedado pela Avenida do Estado.

Fonte: Site São Paulo Antiga 14

12 História e Memória. Quinto Cartório de Registro de Imóveis. São Paulo. Disponível em Acesso em 6 out. 2014, 22:00. 13 NASCIMENTO, D. Casas – Avenida do Estado 1443 a 1451 In: SPAntiga História, Arquitetura e Fotografia, 2014. Disponível em http://www.saopauloantiga.com.br/avestado1443a1451/ - Acesso em 6 out. 2014, 22:00. 14 NASCIMENTO, Douglas. Casas – Avenida do Estado 1443 a 1451: SPAntiga História, Arquitetura e Fotografia, 2014. Disponível em http://www.saopauloantiga.com.br/avestado1443a1451/ - Acesso em 6 out. 2014, 22:00.

O longa-metragem também faz uso de figuratividades que não necessariamente estão ligadas à realidade da cidade, mas que por suas características simbólicas, produzem impressões no espectador que dialogam com a tese de que a cidade é esse sujeito que faz com que seus habitantes sejam sujeitos disfóricos, vivendo uma rotina privada de sentido. Como protagonista principal, temos o menino Exu. O primeiro a ser apresentado, aparece em um plano fechado onde só se pode ver sua mão fechada em punho, segurando um prego na altura da perna coberta por um calção improvisado de uma calça cortada e de tecido puído. A cor de pele negra, sua roupa desgastada e o não aparecimento de seu rosto diretamente voltado para a câmera, indicam que esse indivíduo é um excluído. Figura 5 - Primeira cena em que o personagem Exu aparece. O plano fechado só deixa entrever a mão de cor de pele negra segurando um prego e as pernas cobertas pelo calção desgastado.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

Além do significado sócio-cultural que depreendemos desse personagem criança pobre, vinda de uma camada desprivilegiada da sociedade, temos a definição simbólica de seu nome: Exu. Considerado nas religiões africanas como o orixá inicial, ele é a entidade que faz ponte para os demais orixás, ou seja, de onde as coisas começam: o filme e o despertar dos sujeitos, remetendo a ideia de que o futuro está nas mãos das crianças. O menino é um dos personagens que mais figurativiza em seu percurso narrativo a opressão da cidade, a própria escolha de seu nome implica por si só uma

figuratividade que traz, dentro da linguagem do filme, uma tradução de seu papel temático na narrativa. O Exu, na tradição iorubá, é o encarregado da comunicação 15 entre o mundo material e o mundo espiritual, e inclusive foi à época da colonização europeia, e possivelmente ainda hoje, seja confundido com o diabo cristão, por possuir uma personalidade provocadora16. Contudo, na mitologia iorubá não existe um orixá encarregado exclusivamente de produzir o mal, mas cada uma das entidades possui um lado positivo e negativo, como os seres humanos, e assim funciona também Exu. No filme ele possui um caráter mutante, dado que quando é bem tratado, responde positivamente, mas é irascível, provocando destruições, em resposta àqueles que o maltratam, no caso, a própria cidade de São Paulo. Exu, vaga pela metrópole, “cumprindo sua sina”, como profere Carlos, seu pai na trama. Sempre descalço, trajando roupas surradas, sustenta uma expressão apática em relação a tudo que vê. Seu semblante não delineia emoções. Em momento algum reconhecemos sentimentos como raiva, espanto, tristeza, ou mesmo alegria, não há em todo o filme uma única cena em que chore ou sorria. No entanto, o menino impotente pela sua condição de excluído, ainda que cercado por carros e edificações que se impõem sobre sua existência, também respira, caminha e tem vontade própria em meio a esse entorno. Como a metáfora do rio que murado ainda corre vivo, os sentimentos desse menino, por mais que pareçam abafados, podem transbordar e se alastrar a qualquer momento. É o que fica implícito na ação que o garoto efetua sobre o carro, símbolo da cidade e objeto de valor dos sujeitos da metrópole: valor tanto monetário, como de possibilidade de deslocamento, e talvez, o mais próximo de uma liberdade dentro dessa construção sincrética que se mostra como cidade. No filme, as figuras que rodeiam os protagonistas são propostas como simulacros de seus contextos sócio-econômicos. A escolha dos elementos em cena deixa entrever os valores da elite, da classe média e da classe baixa. A disposição dos objetos, bem como suas qualidades materiais, denotam em quais universos sociais esses protagonistas se encontram inseridos. A casa de Carlos é marcada pela penumbra, mal iluminada, apresenta paredes de um branco encardido. A quase ausência de móveis denota uma falta de conforto, ao 15 LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, São Paulo, Selo Negro Edições, 2004 16 (idem)

mesmo tempo, que a cozinha de paredes sem azulejos e com armários que não passam de espaços vazios embaixo da pia, recobertos com cortinas de correr, remetem a algo temporário, a um não estabelecimento. Claramente, inexiste qualquer cuidado com a limpeza ou arrumação, os objetos são distribuídos pela casa de maneira desordenada e displicente, como observamos na cena em que Carlos em vez de um copo, faz uso de um pote de vidro para beber água. Nesse espaço as refeições são feitas em uma mesa de ferro, como as que se encontra nos botecos, e ali se come pão com presunto e suco em pó solúvel. Figura 6 - Casa do personagem Carlos. Apresenta pouca iluminação, paredes de branco encardido e objetos de pouco valor econômico.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

Em contrapartida, a casa de Marcelo prima pela organização, ponderação e sobriedade. As paredes e os móveis em tons brancos, beges e cinzas, ou seja, neutros, rodeiam o jornalista com livros e obras de arte perfeitamente dispostos, que dividem o espaço com móveis aparentemente confortáveis. Na cozinha de azulejos e utensílios em sua maioria brancos, Marcelo prepara sua bebida na cafeteira italiana, que depois irá degustar em uma mesa adornada com pães, bolos e cereais. Nesse cenário de “café da manhã colonial” ele começa seu dia se nutrindo apropriadamente, enquanto lê o “Caderno 2” do jornal o Estado de São Paulo, sendo toda a ação planejada para se adequar à rotina diária.

Figura 7 - Apartamento do personagem Marcelo propõe cores brancas e cinzas, com elementos escolhidos com cuidado estético e dispostos de forma regular e organizada.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

Por fim, Renata também ostenta um apartamento de cores sóbrias e organizado. Um pouco menor que o de Marcelo, apresenta um excesso de adereços em sua decoração, o que denota algo de extravagante. Figura 8 - Apartamento da protagonista Renata. Deixa à vista uma ampla quantidade de adereços, as paredes são brancas e os objetos aparentam boa qualidade.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

No filme, as figuratividades relacionadas a um fazer artístico ganham grande relevância, tendo em vista que ao longo do enredo há um discurso da arte como possível destinadora do despertar dos sujeitos na metrópole. E, ao relacionar a arte como

mobilizadora, o próprio filme Riocorrente se coloca como destinador do fazer-pensar dos espectadores. O longa metragem, então, apresenta a tese de que pela pela estesia advinda do contato com a manifestação estética é que se exerce uma conscientização e reflexão acerca do que acontece no entorno do destinatário, como comenta Landowski, a arte possibilita ao espectador, uma busca reflexiva sobre aquilo que lhe acomete sensivelmente em contato com a obra e por meio dela, o autor projeta uma luz “na própria experiência de um observador-participante que conjugará a disponibilidade para sentir e a disposição para compreender”17. Essa intencionalidade fica explícita em uma das primeiras cenas de Riocorrente, quando o músico declama: “Tem que começar em algum lugar. Tem que começar em alguma hora. Que lugar melhor que esse? Que momento melhor que agora?”, ao que se segue a imagem de um palito de fósforo pegando fogo. A manifestação artística, na configuração do enredo como a música, e para o espectador, como o próprio filme, são vistos como a fagulha que pode acender o desejo de reencontrar o sentido que a cidade furtou de seus habitantes. Torna-se recorrente, então, o uso de diferentes referências artísticas dentro da narrativa, com o intuito de enfatizar esse conceito, bem como, de tentar os destinatários, tanto os personagens, como os espectadores, à volição da mudança. É o que ocorre na sequência em que Renata leva Carlos ao cinema para ver Teorema18, do polêmico diretor Pier Paolo Pasolini, em que o personagem profere: “As idéias voltarão a ser perigosas”, após declamar: Fique logo ciente de que ninguém fez a revolução antes de ti. Os poetas e pintores, velhos ou mortos, apesar do ar heróico com que os glorificas são inúteis, não te ensinam nada. Lembra-te que estás aqui só para ser odiado para destruir e matar. 19

Ou ainda na cena seguinte quando Renata lê um trecho do livro “O Homem Que Era Quinta-feira”:

17 LANDOWSKI, E. Para uma semiótica sensível, in: Revista Educação & Realidade. v. 2, n. 30, em jul./ dez, 2005. São Paulo: Hacker Editores, 2004, p.101. 18 PASOLINI, P. P. Teorema, Rio de Janeiro, Cult Classic, 2010, DVD, 105 min.

19 (idem)

A dinamite é nosso melhor símbolo. Expande-se. Só destrói porque se expande, e assim é também o próprio pensamento. O cérebro do homem é uma bomba. Precisa explodir, ainda que arrebente todo o universo20.

Pelo que escolhe enunciar, percebe-se a intenção manipulatória do diretordestinador que busca um contrato com seus destinatários-espectadores, pois, pela tentação lhes oferece a competência para querer-refletir ou mesmo querer-reagir. Intenção, essa, que é reforçada ao referenciar às pinturas de Malevich, artista russo que implementou uma revolução na pintura e que sofreu as consequências por esse ato, tendo sido perseguido, preso e torturado. Por essa alusão, o filme intenta incentivar e sancionar a postura revolucionária do artista. Porém, a metáfora do fazer artístico como um processo de avaliação dos modos de vida, se torna ainda mais evidente quando a trama combina, estrategicamente, ficção e documentário. Isso se dá através de uma entrevista, efetuada pelo personagem Marcelo, com o pintor Marcelo Grassmann, em que ele defende que a arte é um processo de tradução do artista sobre sua própria vivência, uma vez que: É todo um processo consciente e se você observar o mundo, você vai dizer, ele é assim. Evidentemente, como eu não pinto maçãs, eu pinto coisas que são mais alegóricas, e essas alegorias elas existem desde que o mundo é mundo. A arte nada mais é do que a expressão da libido das pessoas, onde existe ternura, a vaidade e a cobiça, existe brutalidade, existe pornografia, existe o mundo como ele é. [...] Daí você refugia em alguma coisa que é o seu interior, não é que você faça isso premeditado ou num processo gigantesco de elaboração mental, não, por melhor ou por pior que seja, é a tua cabeça, é o conjunto de coisas que você está vivendo e explorando21.

Dessa forma, em um processo metalingüístico, o enunciador, mediado pelas obras fílmicas, escritas e visuais, explicita o que deseja imprimir no enunciatário, levando-o a um querer-pensar e querer-mudar.

20 CHESTERTON, G. K. O homem que foi quinta-feira, São Paulo, Editora Germinal, 2004. 21 GRASSMANN, M. Entrevista, in: Riocorrente, São Paulo, Olhos de Cão, 2014.

Algumas fraturas. Como descrito, o percurso dos protagonistas é marcado por uma continuidade, os sujeitos manipulados pela cidade, entram em um processo sem sentido e se tornam disfóricos. Contudo, esses sujeitos em contato uns com os outros, com as artes e novamente com a metrópole, em alguns casos, vêem a ocorrência de uma fratura nesse movimento contínuo. A arte mobiliza Carlos, dando a ele competência para ir ao encontro de seu objeto de valor, como depreendemos na cena logo após o contato com o filme de Pasolini, em que ele se revolta contra a cidade e atira uma garrafa de água, imaginandoa ser um coquetel molotov, contra a banca de jornal. No caso de Marcelo o mesmo não ocorre, ainda que tente, ele não consegue romper o contrato com a lógica pragmática da cidade e se entregar a uma relação afetiva com Renata. Ao mesmo tempo, Renata também sofre a fratura em seu percurso. Ela sai em busca de seu objeto de valor nas artes, no sexo ou mesmo em si mesma, no entanto, não conseguindo encontrá-lo, passa a um estado de insatisfação. Por sua vez, Exu é aquele que encontra nele mesmo um destinador, visto que, provocado pela cidade, o menino de roupas puídas, quebra o contrato com a metrópole e encontra competência para atacar o ambiente que o oprime. O gradual amadurecimento e a perda da inocência, metaforizados pelo dente de lente que amolece e cai, abrem espaço para o novo adulto em que Exu está se transformando. Destinador e destinatário de si mesmo, ele tatua no próprio braço a palavra “maldito” e passa a carregar para sempre as marcas do que a cidade lhe impôs como estímulo para se colocar contra a tirania de São Paulo, nem que seja pela via da violência. Conclusão Em Riocorrente nos é revelado quatro protagonistas disfóricos e seus respectivos impedimentos para a obtenção de seus objetos de valor. Carlos não pode bem suceder porque encontra-se aprisionado por sua incapacidade financeira, enquanto Renata está impedida de viver seus desejos devido ao medo que a domina, ao mesmo tempo que Marcelo é incapaz de se entregar a uma relação visto que seus sentimentos encontramse bloqueados e Exu não consegue receber, nem doar afeto, porque é a todo tempo rejeitado - pela mãe ausente, pelo pai quase não presente e pela própria cidade.

Figura 9 - Quadrado Semiótico.

Fonte: Produção das autoras

Tendo o quadrado semiótico da Figura 9 como base, percebemos que os personagens se movimentam em seus percursos indo ora em direção ao que a sociedade civilizadora lhes impõe, mantendo a prudência do conhecido e seguro, ora ao encontro de seus instintos naturais, aventurando-se pelo novo. Retomam, então, a dualidade que apontamos no início do texto: civilização versus natureza. Concluímos que o filme deixa entrever diversos temas em seu nível discursivo. Entre eles encontramos as consequências do processo civilizatório exemplificado pelos rios canalizados e poluídos; pelo afastamento dos sujeitos que se fecham em apartamentos e encontram dificuldade nas relações interpessoais; e também pela diminuição da qualidade de vida que se torna voltada apenas para o trabalho. Ainda nos deparamos com o aspecto sócio-econômico, em que o longa metragem aponta para um aumento da desigualdade social e para a exclusão de uma camada da população mais desfavorecida, representada por Exu e pelos sujeitos à margem da sociedade com quem interage, como meninos de rua e usuários de drogas. Por fim, Riocorrente nos apresenta o tema da alteridade dos sujeitos frente a uma sociedade recriminadora, traduzido pelo combate entre a São Paulo manipuladora dos sujeitos que vivem para se adequar a sua lógica capitalista e a arte como reação intelectual, juntamente com a violência como reação emocional.

O que o longa-metragem intenta é mostrar a existência de formas para se repensar os modos de vida disfóricos que a cidade faz os sujeitos experimentarem, e o cinema, aqui, é visto como um mediador desse processo. As ideias podem ser perigosas e devem desencadear mudanças necessárias, ainda que estas incorram na violência. O fazer artístico é a fagulha do fósforo, simbolizado no início da história como o instrumento que acende a chama e, que ao final do filme, irá inflamar, em contato com o dente de Exu, e trazer vida às águas que correm emparedadas na Marginal, bem como aos sujeitos murados pela metrópole. Figura 10 - O Rio, entre as ruas e a verticalidade da cidade, vai se inflamando e espalha chamas pelos caminhos que São Paulo concretou.

Fonte: Filme Riocorrente de Paulo Sacramento, São Paulo, Olhos de Cão, 2014

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