Roman Jakobson, Luciana Stegagno Picchio, Fernando Pessoa: entre estruturalismo e filologia. Tensão e convergência na definição de um paradigma crítico-literário

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!1 Internacionalização da Ciência e Internacionalismo Científico II Encontro Internacional HetSci | Grupo de Estudos sobre História e Ciência Évora, 21 e 22 de Fevereiro de 2013

Roman Jakobson, Luciana Stegagno Picchio, Fernando Pessoa: entre estruturalismo e filologia. Tensão e convergência na definição de um paradigma crítico-literário.

Pedro Lopes de Almeida Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória – CITCEM Aesthetics, Politics and Art Research Group – Instituto de Filosofia UP ([email protected])

No seu número 12, de 1968, a revista francesa Langages publica um extenso ensaio, ocupando as páginas 9 a 27, assinado por uma eminente filóloga italiana, Luciana Stegagno Picchio, e por aquele que era, à data, provavelmente o nome mais emblemático do universo intelectual ocidental, Roman Jakobson. O artigo tem por título “Les oxymores dialectiques de Fernando Pessoa”, e revelar-se-á um dos contributos mais visíveis para a internacionalização da obra do autor de Mensagem. Em 1968 vivese o auge da vaga cultural estruturalista, já atiçada pelas revisões de críticos e filósofos que reclamam uma flexibilização dos quadros conceptuais, e que viremos a conhecer como “pós-estruturalistas”. Nas principais universidades europeias, o paradigma estruturalista goza de uma formidável hegemonia, sendo na prática, durante esta década, sobreponível ao perfil tipificado do intelectual. Já Fernando Pessoa tinha as suas hostes de consagrados reduzidas a grupos de estudiosos fiéis mas pouco numerosos, dispersos, fora de Portugal, em pequenas comunidades académicas com relações culturais mais estreitas com a cultura de língua portuguesa, mas nunca ultrapassando, todavia, o limiar de um “autor para especialistas”. Neste contexto, é fácil imaginar o impacto que terá produzido, na academia portuguesa, a publicação de “Os oxímoros dialécticos de Fernando Pessoa”. É suficiente notar, a este título, que a frase mais citada do artigo seria, durante muito tempo, uma das declarações de pórtico, logo a abrir o segundo parágrafo:

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“É imperativo incluir o nome de Fernando Pessoa na lista dos grandes artistas mundiais nascidos no curso dos anos 80: Stravinsky, Picasso, Joyce, Braque, Khlebnikov, Le Corbusier. Todos os traços típicos deste grandioso grupo se encontram condensados no poeta português.” (JAKOBSON e PICCHIO 1968: 9)

Como é evidente, esta devolução a uma linhagem não poderia ser mais nobilitante. Por razões também evidentes, o elogio do visado continua com uma chamada de atenção para a condição de Pessoa como um dos “grandes poetas da estruturação” (idem: ibidem), salientando a sua capacidade construtiva arquitectural. A proposta exploratória que gostaria de aqui expor consiste em considerar o ensaio de Jakobson e Stegagno Picchio como um ponto hipotético de (aparente) viragem nos estudos literários no contexto da literatura portuguesa, na medida em que não só inaugura vias de investigação do texto muito próprias – e, em maior ou menor medida, inéditas – como abre possibilidades de leitura da obra pessoana que permitem extrair conclusões que não se encontravam ao alcance dos métodos da crítica literária tradicionalmente entendida. Para compreender melhor a importância paradigmática deste trabalho, e o que ele representará na definição de um modelo crítico-literário, convém, porém, recuar algumas décadas, e, em linhas gerais, traçar uma descrição do quadro de época de onde emerge Roman Jakobson e, com ele, o estruturalismo. Começamos a ouvir falar de Roman Jakobson quando este, ainda estudante de línguas eslavas, participa na criação do Círculo de Moscovo, em 1915 (ano no qual, em Portugal, um grupo de jovens fazia publicar a revista Orpheu), onde desenvolve trabalhos de etnologia linguística, estudando o conto oral das regiões periféricas de Moscovo. Pouco depois, Jakobson estará na origem do Círculo Linguístico de Praga, com o seu mestre, Trubetzkoy (e, entre outros, com Vilém Mathesius, René Wellek, Jan Mukařovský) , onde funda a Escola de Praga. Consegue um lugar na Universidade de Brno na década de 30, mas a sua declarada oposição ao nazismo e a ascendência judaica obrigam-no a fugir do país mediante a invasão alemã da Checoslováquia. Foge para o

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norte da Europa, e estabelece-se durante algum tempo em Copenhaga, onde, associando-se a Louis Hjelmslev, funda o Círculo Linguístico de Copenhaga. Contudo, fugindo sucessivamente das invasões do exército nazi, atravessa a Noruega e dirige-se para a Suécia, onde continua o seu trabalho num hospital infantil, o que lhe permitirá produzir um célebre e influente artigo sobre as afasias e outros distúrbios da fala, onde aplica já o seu sistema teórico sobre a estrutura da linguagem. Com a possibilidade cada vez mais real de uma ocupação da Suécia, Roman Jakobson embarca para os Estados Unidos em Maio de 1941, onde terá lugar o acontecimento decisivo para a fundação daquilo que conhecemos hoje como estruturalismo: o seu encontro, em Nova Iorque, com Claude Lévi- Strauss. Talvez valha a pena, antes de nos debruçarmos sobre esse encontro, tentar uma caracterização a pinceladas largas do campo de trabalhos em crítica literária então dominante. Um pouco por toda a Europa ocidental o modelo vigente de estudos sobre literatura encontrava-se disperso por uma vasta gama de metodologias e campos de análise: do biografismo à crítica impressionista, da interpretação histórica ao psicologismo, da hermenêutica à écdótica, da ‘nota de leitura’ à exegese retórica ou estilística, os académicos encarregues de estudar e ensinar literatura identificavam-se, de uma forma geral, com uma noção vaga e de geometria variável a que se dava o nome, sem grandes contemplações, de filologia. Os mestres aceites internacionalmente eram os autores das grandes histórias da literatura que corriam desde o final do século XIX, como Thierry, Brunetière ou Gustave Llanson, entre outros, e as ideias hegemónicas assentavam no crédito de uma visão diacrónica, cronologicamente motivada, de evolução (com claras reverberações darwinistas) e de “literaturas nacionais”. É a este meio que responde a frente formalista russa, nos primeiros anos do século XX. Inspirados pela poesia futurista, vários teóricos produzem ensaios que à época se consideraram intoleravelmente iconoclastas, defendendo a substituição de um modelo de estudos diacrónico por um modelo sincrónico, reclamando um estudo imanente da evolução artística, não submetido a premissas contextuais, mas, sobretudo, apelando a um estudo dos aspectos formais do literário, mediante a dissolução dos

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“conteúdos” na forma, isto é, na organização da linguagem, e ultrapassando assim a velha dicotomia “forma vs. conteúdo”. É precisamente neste palco que encontramos o primeiro Jakobson, o de Moscovo, altamente empenhado no processo de constituição de um modelo formalista. O formalismo, no entanto, não deixaria jamais de estar refém da circunstância que lhe dá origem: a sua motivação pela poesia futurista russa tornava-o pouco adaptável, dificilmente generalizável, e insuficientemente apto a constituir, de per si, um paradigma de estudos literários genericamente válido. A evolução de Jakobson ao longo dos círculos linguísticos de Praga e de Copenhaga reflecte a tentativa de superação destas restrições. Mas é em Nova Iorque, ao cruzar-se com Lévi-Strauss (numa reunião de docentes da Ecole Libre des Hautes Etudes à New York, uma espécie de escola no exílio para intelectuais franceses) que se processa o salto paradigmático, como o entende Thomas Khun. Lévi-Strauss, antropólogo que havia já então passado vários anos no Brasil a leccionar na Universidade de São Paulo e a estudar as tribos nativas da América do Sul, encontra nos modelos de trabalho do linguista russo o sistema geral de análise que lhe faltava, e Jakobson vê nos registos antropológicos de Lévi-Strauss (nos conhecidos estudos sobre o parentesco, os sistemas de mitos, as hierarquias sociais primitivas, etc) a aplicação prática dos seus modelos abstractos. Em 1942-43 Jakobson e Lévi-Strauss começam a frequentar os seminários um do outro, e pouco depois podemos

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verificar, na sua produção bibliográfica, a cristalização de algumas das ideias mais influentes do século XX.1

Não seria sensato ambicionar, nestas circunstâncias, uma exposição panorâmica do significado do estruturalismo enquanto modelo de trabalho em estudos linguísticos e literários. Podemos, contudo, esboçar algumas das coordenadas orientadoras do paradigma estruturalista. Erigido sobre o legado de Ferdinand de Saussure, e em específico sobre a definição da linguagem como um sistema de oposições binárias, o estruturalismo parte deste binarismo essencial para uma análise dinâmica das correlações de forças que moldam um sistema (seja ele a linguagem, a cultura, um código de regras morais, ou um texto literário), para identificar com essa correlação a emergência de uma dominante (conceito introduzido pelo próprio Jakobson), isto é, o traço que sobredetermina os demais, exercendo uma tensão contínua sobre a forma geral do objecto de estudo, e, deste modo, condicionando a constituição de uma estrutura como hierarquia de significados em conflito, organizados em vista de um esquema de funções que lhe é próprio.2

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“Par-delà le regard que chacun portait sur l’autre, il y a le début d’une aventure scientifique, en premier lieu l’aventure didactique, « durant cette année 1942-1943 où nous commençâmes à fréquenter réciproquement nos cours » (Claude Lévi-Strauss dans sa préface aux Six leçons) et que rappelle Jakobson en ces termes (Cahiers Cistre 5 Roman Jakobson, p. 14). Nous sommes devenus les étudiants l’un de l’autre. (souligné par moi, M. C. – c’est d’une véritableinteraction des prégnances qu’il s’agit). Je venais à ses cours d’anthropologie et il venait à mes cours de linguistique. Je pense qu’il a considéré l’approche linguistique comme enrichissante pour l’anthropologie et, pour ce qui me concerne, j’ai vu beaucoup plus nettement qu’avant la place de la linguistique par rapport à l’anthropologie. Je considère la linguistique comme l’un des domaines principaux de l’anthropologie culturelle. De son côté, Claude Lévi-Strauss a répété, par écrit et par oral, les circonstances de ses premières rencontres avec Roman Jakobson, notamment la présentation par Alexandre Koyré qui, dit-il à Didier Eribon, « avait pressenti qu’il y avait entre Jakobson et moi une certaine communauté d’esprit ». (...) Ce structuralisme-là, emporté dans ses bagages par Jakobson, a fait mouche chez Claude Lévi-Strauss précisément parce qu’il correspondait à une coïncidence conceptuelle entre une aspiration, une intuition et une méthode constituée. L’une des formulations de cette coïncidence et de cette correspondance, qui fut une « illumination », un « émerveillement », apparaît dans la préface que Claude Lévi-Strauss a donnée en 1976 aux Six leçons sur le son et le sens : « (…) Je me promis d’acquérir auprès de Jakobson les rudiments qui me manquaient. En fait, son enseignement m’apporta tout autre chose et, est-il besoin de le souligner, bien davantage : la révélation de la linguistique structurale, grâce à quoi j’allais pouvoir cristalliser en un corps d’idées cohérentes des rêveries inspirées par la contemplation de fleurs sauvages, quelque part du côté de la frontière luxembourgeoise au début de mai 1940 (…). » » 2

Embora esta lógica conceptual nos possa parecer hoje demasiado próxima, ameaçando incorrer no truísmo, podemos afirmar com tranquilidade que a devemos à revolução operada pelo paradigma estruturalista. Uma revolução que está longe de se conter nos domínios das ciências sociais e humanas: de facto, o impacto deste modelo foi tal, que a “semiologia clínica” figura, ainda hoje, entre as cadeiras introdutórias de qualquer curso de medicina (a semiologia ou semiose, cuja designação devemos a Saussure, é uma das disciplinas de base estruturalista.

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As possibilidades de rigor abertas por este quadro de abordagem conduziram de forma mais ou menos natural à procura da definição de um objecto de estudo. E este pode ser, como se revelara já várias vezes, um sério problema, pelo menos quando lidamos com uma produção criativa como a literatura, que tem na sua essência, ou se preferirmos, na sua justa definição, a procura da superação ou da subversão de qualquer cristalização. A mudança em literatura consiste justamente nesse deslocamento contínuo do foco que lhe confere um sentido unitário à arte, e que não podemos ambicionar estancar mais do que transitoriamente – um poema concreto não seria, de maneira nenhuma, considerado literatura aos olhos de um crítico do século XIX, assim como uma cantiga de amigo, hoje, dificilmente seria levada a sério no mundo académico e editorial. Assim, Roman Jakobson irá encontrar no único denominador comum a todas estas manifestações literárias o seu objecto de estudo, excluindo liminarmente tudo o que possa ser acessório, conjuntural ou passageiro (incluindo-se aqui, conforme veremos, a própria história). E esse mínimo denominador comum corresponde à linguagem. Mais concretamente, ao uso especial que dela faz a literatura, em virtude de uma função diferente das outras, que vulgarmente ditam o nosso recurso à linguagem. A essa linguagem, digamos, especial, chamará Jakobson linguagem poética, e irá, desde muito cedo, reduzir a este específico o objecto de estudo da investigação em literatura, agora, e graças a este corte epistemológico, em condições de se autoproclamar “ciência da literatura”, ou, em rigor, da literariedade.

Para tornar claro o que pretende criticar nos estudos literários entendidos na sua prática mais tradicional e disseminada, Jakobson produz uma imagem, algo maliciosa, mas que teve um eco extraordinário. Escreve Jakobson, em “A nova poesia russa” (ensaio que tem uma primeira versão em 1919, e é publicado, com aumentos, em 1921), que a investigação em literatura, até então conotada com a história da literatura, é comparável ao polícia que, chegado ao local do crime, se apressa a deter todos os que se encontram dentro da casa e mesmo os que vão a passar na rua, deixando fugir impune o assassino. A contraproposta avançada por Jakobson encerra em si todo um programa, que viria a ser a palavra de ordem do paradigma estruturalista: “Assim, afirma Jakobson, o objecto

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da ciência da literatura não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que faz de uma dada obra uma obra literária.” 3 Gostaria de sublinhar este particular “...não é a literatura...” que Jakobson faz questão de deixar bem explícito. Trata-se, com efeito, de uma rasura cujo significado excede aplamente o âmbito do circunstancial. Ela é fundadora de uma particular visão disciplinar da investigação em literatura: científica, positiva, e de matriz empírica, ela deve abdicar de todo do valor especulativo ou propriamente crítico, e aspirar a uma condição exclusivista, sincrónica, atomizada, numa palavra, à criação de domínios de especialidade. É Jakobson quem o diz, afirmando que “na obra literária lidamos essencialmente não com o pensamento, mas com factos verbais”. Torna-se desnecessário insistir que é, em rigor, à filologia a que Jakobson se refere ao falar daquele polícia distraído...

Acontece que Luciana Stegagno Picchio, co-autora de “Os oxímoros dialécticos de Fernando Pessoa”, não só é filóloga de formação e ofício, como é, ainda, uma das mais destacadas filólogas de línguas românicas da segunda metade do século XX. Apesar de a sua produção ensaística abarcar toda a extensão cronológica da literatura portuguesa, da época medieval a Fernando Pessoa e Almada Negreiros, passando por importantes estudos sobre Gil Vicente e Camões, talvez o trabalho mais citado de Stegagno Picchio seja justamente aquele que se debruça sobre uma cantiga de D. Dinis, sob o título “O papagaio e a pastora: filtros de hoje para textos medievais”, onde, partindo de intuições de um leitor moderno acerca da célebre cantiga do “papagai muy fremoso”, Stegagno Picchio reconduz o texto ao seu sentido original, à luz de factos e documentos que lhe são contemporâneos e da tradição literária provençal. De resto, é este recorte 3

Continua: “Ainsi les historiens de la littérature se servaient de tout: vie personnelle, psychologie, politique, philosophie. Au lieu d’une science de la littérature, on créait un conglomérat de recherches artisanales, comme si l’on oubliait que ces objets reviennent aux sciences correspondantes: l’histoire de la philosophie, l’histoire de la culture, la psychologie, etc., et que ces dernières peuvent parfaitement utiliser les monuments littéraires comme des documents défectueux, de deuxième ordre.”, Roman Jakobson, “Fragments de «La nouvelle poésie russe», esquisse première: Vélmir Khlebnikov” (1921), in Huit questions de poétique, Paris, Seuil, 1977, pp. 16-17. A este símile haveria a contrapor um outro, de Leo Spitzer, que compara o filólogo ao camareiro da carruagem-hotel a quem, pela manhã, um passageiro se queixa de ter acordado com um sapato preto e outro vermelho, ao que o camareiro responde: “Que extraordinária coincidência! Outro passageiro acaba de fazer a mesma descoberta...”. Segundo Spitzer, o filólogo, mais do que aquele polícia desvairado, é este camareiro, a quem compete reunir o que foi, noutro tempo ou lugar, uma unidade histórica.

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metodológico que iremos encontrar não só na globalidade das investigações de Stegagno Picchio como, em boa verdade, da escola filológica latu sensu.

Regressemos agora a “Oxímoros dialécticos”. No artigo de 1968 não encontraremos qualquer anotação histórica, análise de contexto, enquadramento cultural ou mesmo, pode dizer-se, esforço interpretativo, na acepção que os estudos literários vulgarmente conferem a “interpretação”, enquanto indagação acerca do sentido ou dos sentidos possíveis de um dado texto. Tudo isso é liminarmente preterido, em virtude de um levantamento exaustivo das estruturas gramaticais mobilizadas pela linguagem do texto sob análise. O artigo de Roman Jakobson e Luciana Stegagno Picchio dedica-se à leitura minuciosa de um único poema de Mensagem, “Ulysses”. Cada termo do poema é submetido a um escrutínio linguístico (morfológico, sintáctico, semântico, lexical, pragmático e fonológico) destinado a mapear as relações formais dos elementos entre si, e entre as partes e o todo compositivo, sob o prisma da funcionalidade de cada elemento – entendendo-se “função”, aqui, no sentido estritamente linguístico, o único, de resto, admitido pela ideia de literariedade de Roman Jakobson (ou poeticidade, como dirá mais tarde).

Na primeira parte, os autores procedem à análise fonética dos nomes escolhidos para os heterónimos, relevando os paralelismos fónicos e a repetição de grafemas: a presença do “Ca” de Caeiro na segunda sílaba do nome próprio de “Ricardo Reis” e e na primeira do apelido de “Álvaro de Campos”, “Reis” como anagrama imperfeito de “Caeiro”, a correspondência das duas letras iniciais de “Alberto Caeiro” e “Álvaro de Campos”, “Al- – Al-”, “Ca- – Ca-”, bem como a repetição da sílaba final do apelido do mestre (Caeiro) no final do nome do discípulo (Álvaro).

Na análise do poema “Ulysses”, Roman Jakobson e Stegagno Picchio realizam uma análise microscópica do esquema rimático, com longas exposições sobre o valor e função das vogais em rima final (DIAGRAMA 1),

análise das cadeias de

correspondências fónicas (com detalhes que chegam ao nível da análise de anatomia da fala na pronúncia do texto), da gramática versificatória (DIAGRAMA 2), análises da

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distribuição de declinações verbais e respectivo valor (DIAGRAMA 3), com destaque para a centralidade dos verbos intransitivos, e a noção incoactiva dos escassos verbos transitivos presentes, investigação do valor das remissões anafóricas e deícticas (“Este, que aqui aportou”), da importância da escolha dos substantivos, ou ainda da relação entre estruturas morfológicas e a activação dos oxímoros (DIAGRAMA 4) ou mesmo a distribuição dos oxímoros ao longo do texto e a inquirição da evolução do sentido das negações (do negativo ao positivo, ao longo do poema, e do positivo ao negativo, no final do poema), e ainda análises exaustivas do sistema métrico do texto, com caracterização dos efeitos rítmicos produzidos ao longo dos versos (DIAGRAMA 5).

Este dispositivo retórico, o oxímoro dialéctico que dá título ao artigo, consiste, aqui, na combinação simétrica de palavras de categorias distintas – um termo com valor qualificativo é submetido a um outro, cujas propriedades intrínsecas são negadas pela especificação qualificativa (uma “negação nuclear”, nuns casos, e uma “negação conexional”, noutros, segundo Jakobson). “Dialéctico”, porque emerge da confrontação de conceitos irreconciliáveis entre si.

Trata-se, em suma, de um paradigma de trabalho puramente formalizante, intransigentemente imanentista, e tendencialmente mecanicista. O resultado é um esquematismo bem visível na estrutura argumentativa do ensaio.

Até então, a produção de um estudo deste tipo era vista como ancilar ou perfunctória, mas nunca como o fulcro possível de um trabalho de investigação em torno de um texto.4 A radicalidade de proposta de Jakobson (e aqui o seu perfil paradigmático terá certamente pesado mais do que o de LSP) reside na polarização da linguagem, no seu aspecto mais material, como epicentro do estudo de uma literatura, e na rejeição de qualquer abordagem crítica passível de resvalar no “comentário” (expressão com que designa, aliás pejorativamente, a crítica literária convencional).

4 A expressão

que acabo de usar quase inconscientemente, dá conta do que entendemos, de facto, por esse trabalho investigativo, isto é, correlatar um entorno do artefacto literário, entendendo-o como documento.

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Num contexto académico onde o professor/investigador de literatura correspondia largamente à figura do intelectual erudito, capaz de articular historicamente várias regiões epistemológicas, cuja autoridade académica e prestígio inter pares decorriam de um saber de tipo acumulativo e genericamente transversal, é possível compreender o impacto da proposta jakobsoniana.

Até um momento tardio na década de 60, falar em «estudar Pessoa», aliás, como estudar qualquer outro autor, significava estudar a sua “vida e obra”, de acordo com o binómio bem conhecido da filologia francesa pós Sainte-Beuve. 5 O cerne dos estudos literários radicava precisamente na conjunção copulativa que aproxima os termos do binómio, e investigar literatura significava investigar e explicar a relação entre a vida e obras, ou, mais concretamente, justificar o sentido desta orientação, da “vida” às “obras”. O caso de Fernando Pessoa é absolutamente paradigmático no contexto português, se pensarmos na polémica que nasce nas páginas da revista Presença e que se acentua, no meio académico, a partir de 1950, com a publicação de Vida e obra de Fernando Pessoa – História de uma geração, de João Gaspar Simões (aliás apodado, pelos seus detractores, de “o Sainte-Beuve da Figueira”).

Nas décadas seguintes, essa atitude viria a gradualmente a matizar-se, sobretudo graças à lenta mas frutífera recepção da vaga formalista, por via da leitura da teoria literária francesa. Mas dedicar a atenção a investigativa em exclusivo à dimensão imanente de um texto seria, em todo o caso, tido como incipiente, redutor, ou mesmo ocioso. A pluralidade de métodos (o que hoje designaríamos, com gala, “transdisciplinariedade”), a riqueza e diversidade das fontes, o entrecruzamento de enfoques disciplinares, a composição de uma tessitura textual tributária de narrativas várias, e ela mesma narrativizada, eram tidos como valores essenciais ao trabalho de investigação em literatura.

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“vie et oeuvre de...”, mas também exportada com sucesso para a Alemanha do enciclopedismo de August Wolf, como “Leben und Werke”, ou o romantismo inglês, e o seu “life and works of”.

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Contudo, para Jakobson, isso era a epítome da incapacidade de rigor, decorrente da falta de um objecto preciso. Uma limitação que desperta no estruturalismo linguístico uma espécie de horror vacui, um verdadeiro horror ao amadorismo. A constituição de uma metalinguagem específica para a crítica estruturalista linguística responde a este movimento de blindagem cientificizante, movimento acompanhado de um isolamento epistémico sintomático do desejo de modelização de um espaço disciplinar autónomo. Em “Oxímoros dialécticos” são claramente perceptíveis as prerrogativas científicas e as aspirações ao monopólio de uma disciplina especializada, que só poderia advir aos estudos literários pela aplicação meramente instrumental das técnicas de descrição linguística.

Haveria aqui a explorar as motivações de base social e institucional na origem desta nuance à qual Jakobson dá corpo. Nisto, como de resto observou, irónico, Hans Blumenberg, “aceita-se mais facilmente o trabalhador teórico que se aproxima do fenótipo do burocrata por demais familiar e que assim reivindica a seriedade que sobretudo o manusear de elevadas quantias de dinheiro lhe concede”.

Mas convém assinalar que, pelo menos desde um ponto de vista da evolução dos modelos crítico-literários, a proposta de Roman Jakobson é extremamente pertinente, em particular no contexto português e, muito em concreto, na poesia de Fernando Pessoa, o “poeta da estruturação”, como lhe chamam Jakobson e Stagagno Picchio (esta última, também em trabalhos posteriores). Para sublinhar o carácter prolífico desta abordagem bastará recordar a inflexão que sofrem os estudos pessoanos a partir do final desta década, com uma espécie de linguistic turn, do qual parece ser um excelente exemplo o extenso contributo de José Augusto Seabra e a sua tese acerca da heteronímia como uma consequência da linguagem (e não o inverso). De resto, é bem sabida a preocupação de Pessoa com a dimensão dispositiva da poesia, nas múltiplas dimensões do som, da estrutura de sentido, do recorte frásico, do ritmo, etc.

Todos estes pontos são bem conhecidos, e não é necessário insistir neles. Gostaria contudo de considerar com alguma atenção os efeitos discursivos do paradigma

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estrutural linguístico de Jakobson, localizando os respectivos outputs por referência aos modelos que visa substituir.

Atendo-se de forma quase excessiva a uma análise linguística, Jakobson e Stegagno Picchio acabam, por paradoxal que tal possa parecer, por reincidir num tipo de leitura que não nos era, à data, desconhecido. A preocupação formal quase ascética faz refluir no discurso preocupações de pormenor que não eram, afinal, alheias à filologia, e, em especial, a um ramo desta – a estilística.

A procura do detalhe materialmente significativo – um fragmento de linguagem, uma estrutura implícita, um jogo de sons – reincide no tom detectivesco do filólogo, consagrado à procura da “prova pericial” enquanto produção da evidência. Aproxima-os um mesmo entendimento do lugar da crítica relativamente ao texto literário – sic vos, non vobis. Ambos os quadros paradigmáticos parecem repousar sobre uma profunda convicção na possibilidade de obter um correlato objectivo do texto literário, seja por meio de paráfrases, dados acessórios de tipo histórico, contextual ou biográfico, seja por via da reconstituição de uma estrutura arquetípica do texto literário, num nível linguístico.

De facto, e ao contrário do que sugere o plano das intenções manifestas, o estruturalismo de Jakobson parece ter procedido a uma substituição das bases materiais de trabalho, não chegando, em rigor, a ultrapassar os modelos operacionais tradicionais de tipo filológico. Esta hipótese encontra abono numa expressão utilizada por Stegagno Picchio noutro ensaio sobre Pessoa (“Fernando Pessoa, o poeta gerúndio de Murilo Mendes”, 1981), quando, referindo-se aos filólogos, se auto-designa “Nós, os críticos da quantificação”, expressão que caracteriza com propriedade o estudo que co-assina com Jakobson. Para perceber melhor até que grau esta reincidência paradigmática se manifesta, haveria que confrontar o artigo de Jakobson e Stagagno Picchio com documentos congéneres ou conexos de base filológica, como os ensaios do eminente filólogo Manuel Rodrigues Lapa ou mesmo o Tratado de Versificação Portuguesa, de

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Amorim de Carvalho. É de crer que as semelhanças seriam mais do que poderíamos, à primeira vista, conceder.

Creio que poderemos falar, a partir do artigo de Jakobson e Stegagno Picchio, de materialismo estruturalizado. Analogamente, e tendo em mente a evolução da investigação em literatura nas décadas que se seguiram, poderíamos falar de um biografismo estruturalizado, de um contextualismo imanentificado, ou de um historicismo endogeneizado por via da linguística. Esta conjectura deverá ser suficiente para levantar a hipótese de uma transição paradigmática enquanto “reciclagem de competências”, ou “reconversão dos instrumentos interpretativos”, mais do que uma revolução científica em sentido próprio. E estas hipóteses conduzem-nos a encarar a vaga estruturalista como uma linguagem segunda da crítica literária, mais do que uma reconfiguração do campo.

Estamos talvez perante uma espécie de cavalo de Tróia, que entra na cidade com o ventre cheio de hábitos bem conhecidos. Não sem uma certa ironia, no ensaio de Jakobson e Stegagno Picchio, as práticas de análise estilística do método filológico são recuperadas pela linguística estruturalista, que propunha justamente a extinção do método filológico.6 Ao ponto de não sabermos se tudo não se reduziu, afinal, a uma simples mudança das regras do jogo...

Numa comunicação apresentada ao Congresso Internacional de Filologia Românica de Niterói (ocorrido em Novembro de 1973), e sob o título “O método filológico (comportamentos críticos e atitude filológica na interpretação de textos literários)”, Luciana Stegagno Picchio ilustra de modo esclarecedor a relação de fascínio que lhe inspira o método jakobsoniano:

“Eu tive o privilégio de colaborar com Roman Jakobson na interpretação de textos poéticos portugueses (...) Tive a sorte de observar de perto Roman 6

É algo de profundamente feminino, o que acontece do lado de LSP: ela deixa-se levar pelo impulso de RJ, pela sua entusiasmada frieza analítica, pois sabe que, no fim, levará a melhor sobre ele, e os esforços de RJ só contribuirão para reforçar a sua implícita postura.

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Jakobson enquanto aplicava os seus requintados instrumentos de microscopia crítica, de gramática da poesia, a textos que lhe eram familiares. Vi como nasce, como se veste de palavras o ensaio jakobsoniano, de quanto trabalho é tecida aquela página cintilante: introduzida sempre por uma anedota divertida, mas «funcional», como funcionais são os exemplos, tendentes aparentemente a aliviar a tensão lógica, mas eles próprios colunas da estrutura de sustentação, razão histórica daquela teoria aérea. Mas vi-o sobretudo descrever o poema como objecto poético, como estrutura fechada e, naquela soma organizada de artifícios e naquele resultado de escolhas (conscientes ou inconscientes), que é para ele uma obra de arte, descobrir simetrias, correspondências paralelísticas, pares opositivos, tanto no plano retórico, como no plano fonológico, gramatical e rítmico. Vi-o procurar o «equilíbrio» da obra (hipótese alótropa da harmonia?). E, no fim, recolher os fios em conclusões que eram como a averiguação «in re» de uma poética colhida na fonte e identificada com uma vontade de estrutura. Uma experiência inesquecível: como a do camponês que acolhesse no seu campo um prodigioso geólogo, capaz de fazer brotar tesouros minerais dos terrenos em que ele só via ervas e árvores conhecidas. Nunca mais no futuro o camponês poderá olhar o seu campo com os olhos de antigamente.” (232)

O deslumbramento de Stegagno Picchio (nas causas, provavelmente não muito diferente do de Lévi-Strauss ao conhecer Jakobson) revela um efeito subterrâneo exercido pelo estruturalismo linguístico sobre a filologia tradicional: o carácter preciso e quase laboratorial do estruturalismo surge como uma possibilidade de recuperação da legitimidade perdida do filólogo. Num grau que não nos é fácil hoje avaliar, essa afinidade electiva, mais pressentida pelos agentes do que formulada, funda um regime de complementaridade que só uma análise mais demorada poderia evidenciar.7

No mesmo ensaio, Luciana Stegagno Picchio, reveladoramente, declara: 7

O estruturalismo linguístico não podia fazer capitular o paradigma filológico, porque este último, graças ao sentído holístico em que assenta, contava desde cedo com uma capacidade de integração capaz de absorver sem dificuldades as ameaças que se colocam à sua posição hegemónica.

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“Mas um exercício tão concentrado e vigilante sobre o texto foi para mim sobretudo uma lição de filologia: como tal inteiramente tendente a revelar o poema no seu significado primeiro.” (idem, ibidem)

Exactamente seis décadas após a publicação do ensaio onde expõe a alegoria do polícia distraído, em 1981, o mesmo Jakobson, no prefácio destinado à edição francesa dos ensaios reunidos de Luciana Stegagno Picchio sobre literatura portuguesa, não se eximirá de referir-se a “la belle philologie totale” como aquela que “se revela afinal como a ciência capaz de «ler» os textos em todas as fases da interpretação, começando pela crítica textual e apontando para uma leitura semiótica no sentido mais lato da expressão”.8 Não poderíamos já estar mais longe do polícia distraído...

Por razões que se prenderão, porventura, com “o ponto de vista de Tersites” que Pierre Bourdieu aponta em Homo Academicus, e que nos leva, na procura de explicações satisfatórias para a estrutura do campo, a “afastar o que, na realidade, não se pode separar”, somos naturalmente mais propensos a identificar as rupturas do que as continuidades. Acontece que por vezes, a tentação de inaugurar sincronias e virar páginas nos leva a fazer passar o que são inflexões ou desvios tácticos por rupturas e novos começos.

Creio que o percurso de Roman Jakobson e de Luciana Stagagno Picchio, da qual “Oxímoros dialécticos” fornece uma oportuna plataforma de reflexão, contribui para uma compreensão alargada da trajectória evolutiva dos estudos literários em Portugal, em particular no capítulo respeitante à ambição de constituição de um paradigma científico de investigação em literatura.

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Roman Jakobson, “Préface” a Luciana Stegagno Picchio, La Méthode Philologique. Écrits sur la littérature portugaise, vol. I, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1982, p. vii.

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CULLER, Jonathan. 1975. Structuralist Poetics. Structuralism, linguistics and the study of literature. London and New York: Routledge [2002]. JAKOBSON, Roman & STEGAGNO PICCHIO, Luciana. 1968. «Les oxymores dialectiques de Fernando Pessoa». In: Langages, 3e année, n.o 12, pp. 9-27. STEGAGNO PICCHIO, Luciana. 1982 (1973). “Réflexions sur la méthode philologique”. In: La Méthode Philologique, écrits sur la littérature portugaise (vol. 1). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português.

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