Rompendo com a heterossociabilidade: a existência lésbica e a potência da alegria em tempos sombrios

May 31, 2017 | Autor: Érica Sarmet | Categoria: Gay And Lesbian Studies, Lesbian Studies, Cinema, New Queer Cinema, Queer Cinema
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AIMÉE & JAGUAR Aimée & Jaguar | 1999 | 125min Elenco: Maria Schrader, Juliane Köhler, Johanna Wokalek, Heike Makatsch, Elisabeth Degen, Detlev Buck, Inge Keller Sinopse: Na Berlim sitiada pela Guerra Mundial surge a inesperada história de amor entre Lilly Wust, a esposa de um militar nazista e Felice Schragenheim, uma judia integrante da resistência alemã. Lilly é a ariana perfeita, que se dedica a um lar decorado com bustos de Hitler e cuida dos quatro filhos enquanto o marido luta no front. A despeito dos amantes ocasionais e das bombas que arruínam a cidade, Lilly cai de amores pela auto-confiante Felice Schragenheim, que lhe envia cartas apaixonadas sob o codinome de ´Jaguar´. O filme é baseado na história verídica relatada por Lilly Wust, aos 80 anos, à escritora Erica Fischer, que a transformou em best-seller no ano de 1994. Direção: Max Färberböck Roteiro: Max Färberböck e Rona Munro Produção executiva: Lew Rywin Produção: Hanno Huth, Günter Rohrbach Diretor de Produção: Feliks Pastusiak, Stefaan Schieder Direção de fotografia: Tony Imi Montagem: Barbara Hennings Música: Jan A.P. Kaczmarek Casting: Risa Kes Direção de arte: Uli Hanisch Designer de som: Hubert Bartholomae, Friedrich M. Dosch Editor de som: Jörn Poetzl, Sylvana Zafosnik-Jakob Festivais: Festival de Berlim (1999), Festival Gay e Lésbico de Los Angeles (1999), Festival do Filme Gay e Lésbico da Carolina do Norte (2000) etc. Prêmios: Indicado a melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro 2000. Vencedor do prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim (Maria Schrader e Juliane Köhler)

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ROMPENDO COM A

HETEROSSOCIABILIDADE

– A EXISTÊNCIA LÉSBICA E A POTÊNCIA DA ALEGRIA EM TEMPOS SOMBRIOS Érica Sarmet

Na cena final de Aimée & Jaguar (1999), temos Lilly Wust e Felice Schragenheim, o casal protagonista, a jogar cartas com um grupo de amigas. Todas fumam, cantam e se divertem enquanto debatem a existência ou não do “amor único e verdadeiro”. “- O que você procura, Felice?” pergunta uma delas. “- Eu? Procuro vocês, todas, todos. Tudo! Mas me contentaria com um só momento, tão perfeito que duraria uma vida.” “- Onde você encontra isso?” “- Aqui mesmo”, responde Felice. “- Não quero um sempre. Quero o agora”. Apesar da inegável força da trama principal que conduz o filme – a história de amor entre uma lésbica judia e uma dona de casa ariana, casada com um soldado nazista e mãe de quatro filhos –, podemos dizer que um dos aspectos mais marcantes da obra do diretor alemão Max Färberböck é a existência lésbica fora da heterossociabilidade, a potencialização dos encontros entre corpos de mulheres e os afetos plurais gerados neles e a partir deles. A voz over que narra o filme já é um indicativo da dimensão da importância que a amizade e o modo de vida lésbico terão: acompanhamos a narrativa não pelos relatos de uma das personagens principais, mas sim a partir do olhar atento de Ilse, ex-amante de Felice e ex-babá dos filhos da Sra. Wust. Ao se esbarrarem na apresentação de uma orquestra sinfônica, Ilse percebe de imediato o encantamento da namorada por sua patroa. A energia erótica advinda desse encontro é inebriante, e Felice começa a escrever cartas de amor para a chefe da namorada assinadas como “Jaguar”. Na Alemanha de 1943, em plena Batalha de Berlim, vemos como sobrevive em meio aos bombardeios e à perseguição da polícia nazista uma comunidade de mulheres, em sua maioria judias, que circulam disfarçadas pela alta sociedade nazista berlinense. Juntas, elas formam uma rede de proteção sustentada por identidades e passaportes falsos, mas também festas e encontros sexuais. A alegria e a reunião de corpos dançantes, vibrantes e múltiplos são a um só tempo 54

estratégias de sobrevivência e respiros de liberdade em uma cidade esfumaçada pelo terror. É nessa brecha, nessa fenda da dor causada pela guerra e o genocídio, que o continuum lésbico se fortalece e possibilita a existência fora da norma social. Mais do que a sexualidade, elas vivem um modo de vida gerido por uma ética própria. Segundo Michel Foucault, Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida (FOUCAULT, 1981, p. 3). Como judias na Alemanha nazista, elas não são consideradas humanas; como sapatões, tão pouco. O que fazem, então, é aproveitar intensamente os momentos do “agora”, como diz Felice, para perfurarem ainda mais as camadas da vida heterossocialmente comportada e orientada: vestem-se com roupas masculinas à la Marlene Dietrich, engajam-se em relacionamentos não monogâmicos, festejam e celebram a vida dentro de casa, pois, do lado de fora, é certo, a morte está à espreita. São relações femininas que, permeadas pelo poder do erótico, carregam consigo uma carga eletrizante de energia que provém, justamente, do “compartilhamento de alegria, seja física, seja emocional, seja psíquica” (LORDE, 1984). Essa estratégia permanece com Felice e Lilly mesmo após tudo “dar errado” – o marido descobre a traição de Lilly e a expulsa de casa; as amigas de Felice fogem de Berlim, e esta escolhe permanecer na cidade, mesmo correndo o risco de ser presa e morta. As duas vão morar em uma casa mais afastada, com os pais de Lilly. Passam dias de completa felicidade, nadando no lago, brincando ao sol com as crianças, recitando poemas e declarações de amor uma a outra. O jogo, a alegria, o entrelaçar dos corpos e até a natureza em torno substancializam um momento de suspensão para quem vivia, a todo momento, sendo lembrada da vulnerabilidade e precariedade de suas vidas. Nesse breve espaço-tempo em que as duas escolhem ficar em Berlim, não há mais marido, não há Hitler, não há guerra, não há amigas mortas, não há dor. Existe apenas o desejo, o toque, o gozo de estar viva e de estar junto. Em seu famoso texto sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich escreve que a existência lésbica tem sido vivida sem acesso a qualquer 55

conhecimento de tradição, continuidade e esteio social. Segundo a autora, a destruição de registros, memória e cartas documentando as realidades da existência lésbica é uma estratégia histórica de manutenção da heterossexualidade compulsória para as mulheres, que coloca “à parte de nosso conhecimento a alegria, a sensualidade, a coragem e a comunidade, bem como a culpa, a autonegação e a dor” (RICH, 2010, p. 36). Aimee & Jaguar trabalha justamente com a memória e a história fancha/sapatão, esforçando-se para eternizar o presente vivido pelas personagens. Primeiramente, trata-se de uma obra baseada em uma história real (quando o filme foi lançado no Festival de Berlim, a verdadeira Lilly Wust, já com 85 anos, estava presente na sessão); em segundo lugar, é um filme permeado por trocas de cartas, declarações, poemas e registros fotográficos, sejam eles feitos pelas próprias amantes ou por outrem – a exemplo do momento em que as amigas “pagam” seus novos passaportes com uma série de fotografias eróticas ou quando a Gestapo encontra a foto de Felice no bolso de Lotte, logo após a assassinarem. Há também a referência a uma cultura lésbica pré-existente que a espectadora, mesmo não tendo vivido, sabe identificar e pode em algum nível relacionar-se, como o já mencionado figurino dietrichiano, símbolo clássico da estética da existência lésbica no cinema. Ainda que a história de amor possua um final trágico – infelizmente, um padrão a ser seguido pela maioria dos filmes lésbicos, mas sobretudo por aqueles rodados nos anos 1990 e 2000, Aimée & Jaguar não se encerra com a tristeza: ao final do filme, voltamos para uma das primeiras sequências, quando, em 1997, Lilly, já idosa, reencontra Ilse em um asilo. As duas conversam sobre o passado, os sentimentos que ambas nutriam por Felice e como ficou a vida depois que ela se foi. Ilse teve várias amantes. Lilly nunca mais se relacionou com ninguém; foram cinquenta anos sem estabelecer nenhum laço, dominada pela culpa de se considerar responsável pela execução da amada.

O Anjo Azul (Der blaue Engel, 1930, Josef von Sternberg). Trata-se de uma canção que versa sobre uma paixão inesperada, arrebatadora, que não pode ser evitada e precisa ser vivida, precisa do agora. Lá, ela sempre estará; lá, elas sempre estarão, pois é onde o agora nunca morre. “Apaixonar-me novamente/ Nunca quis/ O que posso fazer?/ Não posso evitar”. Referências bibliográficas FOUCAULT, Michel. Da Amizade como Modo de Vida. Entrevista de Michel Foucault a R. De Ceccaty, J. Danet e J. Le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp 38-39 (W. F. Nascimento, tradução disponível online). _______________. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilsomn. Verve, 5, pp. 260-277, 2004/1984. LORDE, Audre. Uses of the Erotic: the Erotic as Power. In: Sister Outsider. Trumansburg: Crossing Press, 1984. RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 05, p. 17–44, 2010.

De acordo com Foucault (2004), a liberdade é algo que nós mesmos criamos e que não se refere à descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo, de uma verdade sobre a nossa sexualidade. Adaptando o argumento do autor, podemos dizer que ser lésbica não é ser livre. A sexualidade faz parte da forma de estarmos no mundo, ela faz parte da liberdade, mas reside em compreender como, por meio da sexualidade, podemos criar novas formas de relações, novas formas de amor, novas formas de criar. É nisso que reside a experiência política da amizade e da alegria na existência lésbica. De modo sensato, o filme não termina na sequência em que as idosas conversam entre si; assim, ficaríamos com a imagem de uma Lilly que, no fim, não conseguiu ser livre. Vamos, ao invés disso, para as mulheres na mesa, o jogo de cartas, o riso, o flerte. Elas cantam a versão original em alemão de Falling In Love Again, música interpretada por Marlene Dietrich em 56

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