Rotas de Plantas e Saberes na Terra-Fria Transmontana. Conhecimento tradicional e património biocultural

June 4, 2017 | Autor: Ana Maria Carvalho | Categoria: Ethnobotany, Agroecology, Medicinal Plants, Plant Genetic Resources
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Paisagens, Patr mónios, Turismos

Rui Jacinto e Valentín Cabero Diéguez (coordenação)

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editora

ColecçãoIberografias Volume 28 Título: Paisagens, Patrimónios, Turismos

Coordenação:RuiJacintoe Valentín CaberoDiéguez Autores: Ana MariaCarvalho, Ana Rita Santos,Ana SofiaCarreira Duque, CatarinaPinto FerreiradeMateus Soares, CláudiaJoão, DanÍela PereiraAlves Ribeiro, Diogo Miguel Gil Morgado, Fábio Fernandes, FernandaPacheco,Fílomena Gomes,JoãoGama, LúciaRibeiro, MariaEmília PiresNogueiro, Maria IsabelChaves Carneiro, PauloCelso Lopes Pinto, Paulo Manuel Carvalho, Patrícia Figueiredo,Pedro Gusmão, Rui Jacinto, Susana Santos e José Castro, Teresa Constança Lisboa Sampaio da Nóvoa, Valen-

tÍn Cabero Diéguez,VeraDulceFernandesMartinho. Revisão:Ana.M.argaridaAproença Pré-impressáo: Ancora Editora

Capa:ÂncoraEditora a partir do layoutoriginaldeJoãoPedroCochofel Impressãoe acabamento:Muluupo- Artes Gráficas,Lda. l. * edição: Outubro áe 2014

Depósito legal n. ° 382 391/14 ISBN: 978 972 780 466 5 ISBN: 978 989 8676 05 4

Ediçãon.° 41028 Centro de Estudos Ibéricos

RuaSoeiroViegasn.° 8 6300-758 Guarda cei@cei. pt www.cei.pt

Âncora Editora

Avenida Infante Santo, 52 - 3. ° Esq. 1350-179 Lisboa

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Inmtímoinonulüturo

ROTAS DEPLANTAS E SABERES DA TERRA-FRIA TRANSMONTANA: CONHECIMENTOTRADICIONALE PATRIMÓNIOBIOCULTURAL Ana Maria Carvalho e Lúcia Ribeiro

CENTRODEINVESTIGAÇÃODEMONTANHAICIMOI,ESCOLASUPERIORAGRÁRIA INSTITUTO POLITÉCNICOGEBRAGANÇA

Introdução

Ossabereslocaise aspráticasagroecológicastradicionaisa eles associados (conhecimento ecológico local) sáo uma parte fundamental do património cultural das regiõese devem ser, cadavez mais, encaradoscomo sujeitos de conservação, ao mesmo nível que outros componentes da biodiversidade (UNESCO 2003). Este tipo de conhecimentos incorpora estilos de vida e costumes locais,

manifestaçõesculturais, rituais e experiênciasadquiridasatravésdo contacto direto com a natureza,o meio ambientee asadvidadesagráriase conformam quotidianos particularmente relevantes na gestão dos recursos disponíveis, da natureza, dos habitais e dos ecossistemas agrícolas (Etkin 2002; Coca 2006 Raymondetal. 2010).Correspondema informaçõese redesdeconhecimento aprendidas, partilhadas e transmitidas ao longo de gerações, as quais têm mantido e continuam a manter diferentes atividades e a sobrevivência das

comunidades rurais (Carvalho et al. 2010; Carvalho e Frazáo- Moreira 2011).

Por outro lado, observa-se que esses conhecimentos são dinâmicos e acompanham todas as mudanças temporais, a evolução do homem e das sociedades e as transformações da natureza e do meio ambiente (Frazâo-

Moreira et al. 2009; Reyes-Garcia et al. 2014). As comunidades e as populações em contacto com os fenómenos de globalização e novas formas de comunicação ficam mais expostas ao exterior ë com maior capacidade paradesenvolveroutrascompetências.No entanto, osprocessosevolutivos e adaptativosdependemdediferentesfatoresdepressão,e assim,asmudanças ocorrem a diferentes ritmos. Por exemplo, o avanço dos meios de comunicaçáo,a disponibilidadedasmaisrecentesgeraçõesde utilitáriosde comunicaçâoeletrónica, asnovas redes de transporte rodoviário, particularmente as desenvolvidas durante o século xx, têm precipitado e acelerado este processo adaptativo, em certas regiões da Europa. Em alguns casos, conhecimentos e modos de fazeracumuladosao longo de geraçõestêmsido absorvidosou

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

esmagados pela introdução súbita de conhecimentos e práticas exógenas (Frazâo-Moreiraet al. 2009; Carvalho e Frazâo-Moreira2011; Leonti 2011; Carvalho e Morales 2013).

Durante o processo de adaptação, parte dos conhecimentos e práticas podem tornar-se obsoletos ou transformar-se para satisfazer outras necessidades. Em qualquer caso, Alphandéry e Fortier (2005) consideram que o conhecimento nunca desaparece, mesmo que pareça ter sido desvalorizado durante os períodos de adaptação, especialmente quando se trata de modernizaçâo agrícola e estratégias produtivistas, maneio de áreas naturais ou de projetos importantes para o desenvolvimento rural. Uma análise recente da resiliência dos sistemas agrícolas tradicionais na Península Ibérica (Reyes-Garcia et al. 2014) mostra que a manutenção de al-

gunsdosconhecimentostradicionaisassociadaà incorporaçãodetecnologia modernaé o corpoessencialdoconhecimentoagrícola queestáemconstante evolução e a resposta mais frequente a alterações das condições ambientais e socioeconómicas. Assim, as mudanças no conhecimento tradicional podem

ser consideradas parte do processo geral de auto-organizaçâodos sistemas de conhecimento tradicionais, que são dinâmicos e hibridam com outros sistemas e tecnologias para lidar com as circunstâncias. No entanto, em alguns casos, esta hibridaçâo pode realmente levar à perda dos saber-fazer,

se gradualmente substituídos por práticas de cariz moderno (Reyes-Garcia et al. 2014).

Estudos etnográficos desenvolvidos no Nordeste de Portugal mostram que o inventário dos saberes locais tem ainda muitas referências ao papel

dasplantas navidaquotidiana.Muitas espéciesvegetaissãoutilizadascomo alimentos de subsistência, na medicina e veterinária populares, iluminação,

combustível, fumeiro, na elaboração de utensílios domésticos e agrícolas, jogos, rituais simbólicos e cerimónias religiosas, além de outros usos que determinamo imaginárioe a representaçãodasplantase tecemasmemórias do passado (Carvalho 2010a e b; Carvalho e Morales 2013). Apesar das mudanças sociais e culturais que ocorreram nesta zona rural portuguesa, as relações entre as pessoas e mundo das plantas ainda são muito fortes e acompanham o seu dia-a-dia.

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISWIOS

O Inventáriodos Saberes Etnobotânicosna Terra Fria Transmontana

A etnobotânicaé umadisciplinamultidisciplinarqueempregametodologiasdeváriasciências,massobretudodasciênciassociaise dabotânica,para estudar as interaçôesentre o Homem, o mundo vegetal, o ecossistemae o meio ambiente.

OsestudosdecarizeminentementeetnobotânicorealizadosemPortugalsão relativamente escassos quando se compara com o panorama de outros países europeuse principalmentecom a vizinhaEspanha.Alémdisso, a maiorparte respeita apenas a um aspeto específico da manipulaçãodo universo vegetal, isto é, incidesobreos usose saberesrelacionadoscom asplantas aromáticas e medicinais (PAM) (Carvalho e Frazáo-Moreira 2009, Carvalho 201Ob).

As PAMdaregiãodeTrás-os-Montes,por exemplo, constituem um tema de estudo recorrente ao longo do tempo, abordadoparcialmentepor vários autores segundo as mais diversas perspetivas (Carvalho 201Ob). Por outro lado, nestaregiãoportuguesa, marcadapor contrastes ecológicose edafoclimáticos, as PAM foram e sãoobjeto de estudo de vários projetos de investigaçâo e trabalhos académicos (Carvalho 2005; Frazâo-Moreira e Fernandes

2006; Carvalho2010a). Contudo, a informaçãodisponível encontra-seum tanto fragmentada, restringida a determinadas zonas com características ecológicas particulares, frequentemente centrada na obtenção e utilização

específica de determinado tipo de material vegetal ou na propagação de espéciese variedades. A dinâmicae evoluçãodos usos da flora silvestre e cultivada e o conhecimento tradicional associado a estes recursos não têm sido tratados de forma

sistemática,recorrendoa metodologiasbemdefinidasdodomínio daetnobotânica.Estefacto dificultaa comparaçãodosresultados obtidos pêlosdiversos autores e não permite avaliar a continuidade e vigência desse conhecimento

e as principais mudanças ocorridas relativas aos saberes e práticas sobre o mundo vegetal. Por outro lado, as potencialidades e aplicações de várias espéciessilvestres e cultivadas há longo tempo, nomeadamente das PAM, surgem recentemente com um interesse renovado na revitalizaçâodas zonas

rurais. A par do interesse da comunidade científica por este tipo de recursos vegetais, também as populações e instituições locais tomam consciência da sua importância e potencial para a reabilitação ou criação de atividades em

meio rural. O conhecimento empírico relativo àsPAM revela-seassimuma

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

ferramentabasilarparao seuaproveitamento, nomeadamentenos domínios da nutrição, da fitoterapia e da etnofarmacologia, porque permite compreender as razões do uso e seleçâo de determinadas espécies pelas populações e

inferir novas tendênciase aplicaçõescomo alternativa e/ou complemento à nutrição e medicina convencional.

Aolongodeduasdécadas,foramdesenvolvidosnoNordesteTrasmontano váriosestudosetnobotânicos6de âmbitoalargadoque tiveram por objetivos gerais: (i) elaborar um catálogo daetnoHora do NordesteTransmontano, que compila espécies usos e saberes; (ii) recolher e documentar nomes vulgares, usos, tecnologias,receitase tradiçõesassociadasaomaneioe usodasplantas; (iii) compreender a perceçâodo mundo vegetal, caracterizar o conhecimento sobre plantas e a repartiçãodos saberes e práticaspor faixaetáriae género; (iv) determinara vigênciadosusose a transmissãodosconhecimentossobre plantas, usos e práticas.

Contexto da Área de Estudo

A áreade estudo, inseridana regiãovulgarmente designadapor Nordeste Trasmontano, correspondeaoslimites territoriaisdos concelhosde Bragança, Mirandado Douro, Mogadouro,Vimiosoe Vinhaispertencentes à zonaclimadcamente homogénea conhecida porTerra-FriaTransmontana (Gonçalves 2004), cujas características climáticas condicionam a natureza dos solos, a vegetaçãodominante,os sistemasagráriose a estruturasocialde todo o territórioe emespecialdasáreasprotegidasneleincluídas, como o ParqueNatural de Montesinho (PNM) e o ParqueNaturaldo Douro Internacional(PNDI). Trata-se de uma zona rural, na fronteira com a Comunidade Autónoma de

Castílha-Leâo, província de Zamora, Espanha. Todo o território se caracteriza

pelapresençadeflorae vegetaçãobastantevariadae bemadaptadaàscondições edafoclimáticas, onde ressalta a paisagem moldada pela atividade humana des-

te épocasancestraise ossistemasdeagriculturafamiliarbaseadosnaprodução diversificadaquegarantema suasustentabilidade. Atualmente sofre um gravedeclínio demográficoe um acentuadoêxodo e envelhecimento dapopulaçãocom o consequenteabandonodas aldeiase de muitasdasatividadesagropecuárias,alteraçõespercetíveis nossistemasagrários 6 Ver Lista de Projetos desenvolvidos no final.

PAISAGENS.PATRIMÓNIOS,TURISMOS

e na paisagem (Frazâo-Moreira e Carvalho 2009; Carvalho e Frazâo-Moreira

2011). Este contexto é também marcado pela maior abertura ao exterior e permeabilidadea novasideiase quotidianos.Assiste-seassim,a umamudança das perceções e valores do mundo rural que afetam também as práticas e os saberesrelacionadoscomo universovegetal (Frazáo-Moreiraetal. 2009). As Metodologias

A metodologia empregue segue as recomendações de vários autores (Alexiades 1996; Albuquerque et al. 2010) para os estudos etnobotânicos e consiste na combinação de técnicas de inquirição e observação das ciências

sociais com métodos de inventariação e herborizaçâo da flora e vegetação (Carvalho 2010).

Deacordo com osobjetivos específicos dosváriosprojetos implementados foram entrevistadosdiferentesgruposde habitantesselecionadosnasaldeias pertencentes aos concelhos de Bragança, Miranda do Douro, Mogadouro, Vimioso e Vinhais. A escolha dos informantes teve em atenção os objetivos definidose as técnicasde inquiriçãoaplicadas:entrevistas nãoestruturadas, semiestruturadas e estruturadas, trilhos de plantas, observação participante, grupos dediscussão, listagem e categorizaçâo livre, registo áudio e deimagem (Carvalho 2010b; Carvalho e Ramos 2012). Em todos os projetos e estudos de caso foram intencionalmente escolhidos um conjunto de informantes-chave, os quais são indivíduos consensualmente aceites pelas comunidades como sendo muito conhecedores domundo vegetal e detentores decapacidadêsespecíficas paraa manipulação dasespécies e dos seus habitais (Alexiades 1996; Albuquerque et al. 2010). Estas pessoas foram fundamentais para a compreensão do contexto local, colaboraram ativamente emváriasetapas da investigação e facilitaram a identificação de potenciais informantes que foram selecionados pelo método bola-de-neve (snowball sampling technique). Em fases específicas dos diferentes projetos foram empregues métodos probabilísticos de seleçáo de informantes baseados em amostragens sistemáticas do tipo aleatório e estratificadas segundo género e faka etária. A informação etnobotânica recolhida procede de um total de 325 informantes selecionados de forma sistemática de entre a população rural de 60 aldeias da área de estudo, incluídas nas áreas protegidas do PNM e do 57

PAISAGEfllS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

PNDI, (Carvalho 1993, 2005, 2010a e 2010b; Frazáo-Moreira et al. 2009; Carvalho e Ramos 2012; Ribeiro 2013) e 250 indivíduos escolhidos ao acaso

em feiras e centros comerciais da cidade de Bragança (Castro et al. 2010; Ribeiro 2013; Carvalho et al. 2014). No primeiro caso a maioria são mulherés (61%) e a idade média ronda os 64 anos. Nos inquéritos formais (250) realizados na área urbana, os indivíduos foram escolhidos tendo em conta

quatro faixas etárias (menos de 25 anos, entre 26-50, entre 51-69 e mais de 70) e a maioriados respondentessãotambémdo sexofeminino (66%), visto

quesãoasmulheres quemmaisfacilmentesedisponibilizaparaparticipar. Os saberes e os saber-fazerrelativos à espéciese aos modos de utilizar as plantas foram agrupadosartificialmente em dez categorias de uso (medicinal, alimentar, industrial, artesanal, folclore, por exemplo) para sistematizar,

ordenar e melhor comparar a informação. Considerou-se categoria de uso principal aquela que reúne simultaneamente maior número de citações e

maior consenso entre os informantes. No entanto, cadaplantapode ser referida paradiferentes finalidades e por isso serincluída em mais do que uma categoria de uso de acordo com o seu grau de versatilidade. Toda a informacão compilada foi introduzida em bases de dados relacionais elaboradas com

o programaFileMakerPróe com o ProgramaExcel,que alémdefacilitarem a pesquisa e consulta permitem fazer cálculos simples e tratar os resultados estatisticamente (Carvalho 201Ob; Carvalho e Ramos 2012). O material herborizado, que se encontra depositado no Herbário da

EscolaSuperiorAgráriadeBragança(BRESA),foi identificadoe classificado com basenos critériosdas seguintes obras de referência,citadaspor ordem de prioridade: Flora Ibérica (Castroviejo et al. 1986-2013), The plant List (2013), Flora de Portugal Interatíva (2012).

Os Principais Resultados

Dos inventários realizados resultaram dados qualitativos e quantitativos relativos ao cultivo tradicional de cereais (Carvalho 1993), ao conhecimento

local sobre espécies e habitats, às práticas, tecnologias e aplicações comuns da flora regional, àsperceçôes e rituais associados à manipulação do universo vegetal, à gestão tradicional de espaços e ecossistemas, à capacidade de adaptacãoà mudançae inovaçãodaspopulações,à distribuiçãodo conhecimento e

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

vigência dos saberes e saber-fazer (Carvalho 2005, 2010a; Carvalho e Frazâo-Moreira 2011; Carvalho e Ramos 2012; Ribeiro 2013; Carvalho et al. 2014).

No total inventariaram-se 421 espécies diferentes de plantas vasculares, pertencentes a 92 famílias botânicas, sendo que 55% sáo plantas silvestres presentes nosváriosecossistemasdaáreade estudo. Salienta-seque no valor acima mencionado não se incluem as diferentes variedades das espécies cultivadas, o que faria aumentar o número de taxa? registados. Dos resultados ressalta uma categoria de uso, que corresponde ao maior número de plantas e usos mencionados sendo a que melhor repercute a manutençâo e transferência do conhecimento etnobotânico nestaregião:a categoriamedicinalondesesistematizam53%dototal deespéciesinventariadas. Outros grupos de espéciesdas mais referidas e melhor reconhecidas pêlos informantes estão incluídos na categoria alimentação humana e na categoria que abarca as utilizações do domínio sociocultural (costumes, rituais, festi-

vidades locais e manifestações religiosas). Nos vários estudos a importância relativa dasrestantes categorias, como por exemplo o maneio agrosilvopastoril, a industrial, tecnológica e artesanal, variabastante. Em geral o baixonúmero de plantas mencionadas para as categorias veterinária, agrosilvopastoril e alimentação animal é um indício do declínio das atividades agropecuárias e do abandono de práticas ancestrais.

Espaços, Agroecossistemas, Usos e Valorização das Pam da Flora Local

De acordo com asreferências dos informantes, os locais mais interessantes,

tendo em atençãoa ocorrência e o uso espéciesúteis, em particular de PAM, correspondem maioritariamentea agroecossistemascaracterísticos daTerraFriaTransmontana, isto é, a espaços naturais intervencionados e modificados desde hámuito tempo pelas populações locais de modo a satisfazerem assuas necessidades básicas e normas culturais das comunidades.

Os bosques de carvalho, os matos de urze e giestae os lameiros sãoexempios de locais preferenciais de colheita de espécies silvestres, apesar de muitas das PAM citadas e usadas se encontrarem também nas hortas e cortinhas

e em meios disturbados, como os que se formam nos arredores das áreas habitadas,ondeprosperambem. 7 Níveis da taxonomia botânica.

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

Bosques e Matos

Os bosques de carvalho-negral {Quercus pyrenaica Willd. ) são um dos principais tipos de vegetação arbórea autóctone que ocorre na áreade estudo e que ocupa uma importante extensão contínua na área do PNM prolon-

gando-separa Sul até à Serrada Nogueira. Os carvalhais têm uma notável importância na conservação da flora, abrigando uma grande diversidade de espécies, tanto no seu interior como nas orlas e clareiras dependendo da altitude. Nos carvalhais, principalmente nas margens das florestas ou em

clareiras, estãopresentes espéciesque aolongo do tempo foram usadaspelas populaçõesparadiversosfinse quecontribuíram paraa satisfaçãodasprincipais necessidades quotidianas de pessoas e animais domésticos.

Osmatos, quepodemserurzais,estevaise giestais,ocupamgrandesáreas, colonizando solos abandonados pela agricultura ou margens de caminhos

rurais.Naszonasdemaioraltitudee solosdegradadospredominamosurzais com carqueja {Pterospartum tridenta. tum (L. ) Willk. ). Nas cotas mais baixas surgem os estevais, constituídos por esteva (Cistus ladanifer L.) e pela arçâou

rosmaninho{RosmarinusofficinalisL.). Nossolosmenosafetadospelaerosão e mais profundos podem encontrar-se giestas de flor amarela (sobretudo Cytisusscoparius(L.) Link, C. striatus (Hill) Rothm., e Genistaflorida(L.)) e deflor branca(Cytisusmultiflorus (L'Hér.) Sweet). Na área do PNDI destacam-se na pais^em os matagais arborescentes de

zimbro (Juniperus oxycedrwL.), os montados de quercíneas de folha perene (azinheira e sobreiro, respetivamente Quercus rotundifolia Lam. e Q. suber L.), os bosquesde folhosascom predomínio do carvalho-cerquinho{Quercus faginea Lam. ) e do enguelgue (Acer monspessulanum L.). Estes espaços eram outrora bastante aproveitados, já que estas espécies arbóreas além de serem consideradas interessantes do ponto de vista da medicinapopular, também proporcionavam materiais vegetais para a manutenção dos gados e para diversãsatívidades do dia-a-diae dasfestividadeslocais (Carvalho e Ramos2012).

Assimsendo,a gestãotradicionaldesteshabitaisincluía o pastoreio,a recolha de folhada para estrume, o corte de madeira e matos, recolha de materiais

paralenha e camasdo gado, extraçáode matérias-primaspara construção e elaboração de mobiliário, equipamentos e utensílios domésticos e agrícolas, instrumentos musicais atividadesa que correspondem usos abrangidosnas categoriasmaneioagrosilvopastoril, industrial, tecnológicae artesanal. 60

PAISAGENS,PATRIMÓNIOS,TURISMOS

Poroutro lado, certas espéciesde PAM muito valorizadas,como a bretónica {M. elittis melissophyllum L.), têm uma distribuição restringida ao carvaIhal ou aos bosques de folhosas, por exemplo a gilbardeira {Ruscus aculeatus L.); outras como a alçaria (Tuberaria lignosa (Sweet) Samp. ) e a carqueja (Pterospartum tridenta. tum (L. ) Willk. ) estão associadas aos matos dos cabe-

cos. As formas tradicionais de gerir estes espaços favorecem a presença destas espécies,que sãodas maiscitadase usadasem todaa áreade estudo. Nafalta

deste tipo de maneio, estas espécies de PAM tendem a ser «abafadas» pela flora arbustiva de maior dimensão que prolifera sem controlo, tal como foi mencionadopor algunsdosinformantes (Carvalho 201Ob;Ribeiro2013). De acordo com os informantes-chave do PNM, no carvalhal háoutras PAM

comelevadointeressenamedicinapopular. Sãoelas8a seixinha,o abrunheiro, o escarambunheiro, o morangueiro-bravo, a edra e a erva-das-sete-sangrias (Carvalho201Ob).Estasespéciessãotambémmuito citadasnaáreadoPNDI, a que sejuntam por exemplo, a junciana, asouropesas, a erva-sanguinária e o agriáo-real(Frazâo-Moreiraet al. 2009; Carvalho e Ramos2012).

Lameiros

Ospradosnaturais,tambémdesignadosporlameiros, encontram-semuitas vezes associados a zonas ribeirinhas e linhas de água temporárias que percorrem grande parte da área de estudo. Estes lameiros eram, e sáo ainda

emalgunscasos, explorados paraproduçãodefeno e pastoreio dogadoe são tambémterritóriosdegranderiquezaflorística. Certas espécies aromáticas e com aplicação medicinal e condimentar, por exemplo da família botânica das Labiadas, surgem principalmente neste tipo de ambiente, beneficiando da matéria orgânica disponível, do pisoteio dos animais e das clareiras resultantes do corte do feno, que facilitam o aparecimento de camomilas, tomilhos e mentas. Nas orlas dos lameiros estão também

presentes espécies arbóreas e arbustívas que os limitam. Essas espécies9 sãopor exemplo freixos, nogueiras, roseirasbravas,silvas e o escarambunheiro,todas 8 Respetivamente, Arenaria montana L., Prunus spinosa L., Crataegits monogyna Jacq., FragariavescaL., Hedera helix L., Potentilla rept ans L:

9 Respetivamente, Fraxinus angustifóliaVahl., JuglansregiaL., Aoítí sp. pi., Rubussp. PI., Crataegus monogynaJacq.

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

citadas pêlos informantes pelo seu interesse medicinal, pelo papel que desempenham no maneio agrosilvopastoril ou na produção de matérias-primas empregues no fabrico de diferentes artefactos artesanais.

Na ausênciade pastoreio e de corte do feno a composiçãoflorística dos lameiros altera-se bastante e mais uma vez as espécies úteis do ponto de vista medicinal e alimentar são também «abafadas» por vegetação arbustíva proveniente dos matos das encostas circundantes.

Vegetação Ripícola

Muitas das PAM ocorrem em diferentes micro-habitat definidos por uma linha de águae fazem parte da vegetaçãoribeirinha, também denominada ripícola. Nos rios, regatos ou ribeiras, a vegetação que mais se destaca na paisagemé o bosque-galeriaconstituído por duasfilasparalelasde árvores e

arbustos inseridos em cadaumadasmargens. Estasespéciesestãoadaptadas a viver emsolos muito húmidose mesmo a suportar encharcamentos temporários em épocas de maiores cheias, sãocaracterísticas destes habitais algumas das seguintes espécies: os amieiros {Alnus glutinosa (L.) Gaertn. ), os freixos {FraxinusaugustifoliaVï\A), os salgueiros{SalixatrocinereaBrot., Salixsalvi-

foliaBrot. ) ossabugueiros (SambucusnigraL.) e oschoupos {Populussp.pi.), (Aguiar, 2001). Além do interesse medicinal, algumas são importantes na categoria tecnologia, visto que delas se extraem matérias-primas usadas em cestaria, nas construçõese equipamentos rurais, na elaboraçãode utensílios agrícolas e como combustível.

Por outro lado e ainda de acordo com Aguiar (2001), estas galerias ribeiri-

nhas,quandobemestruturadas e nomáximodasuabiodiversidade, abrigam tambémvegetaçãoherbácea,ondesedestacamasespéciestaiscomoo lúpulo bravio (Humulus lupulus L.), a norça-branca {Bryonia dioica]acq. ) e a norça-preta (Tamus communis L.) e vegetação lenhosa do tipo das madressilvas, a hera, as roseiras bravas e as silvas.

Vegetação Circundante das Aldeias e Flora Ruderal

O espaço em tomo das aldeias é também deveras importante devido ao

zonamento das terras agrícolas. Estes espaços conformam uma paisagem

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

característica onde seobservam, paraalémdavegetação natural, florestas decas-

tanheiros (soutos), alguns pomares com árvores defruto (nogueiras, cerejeiras, macieiras), muitas espéciesvegetaisalimentares, espéciesforrageiras (beterrabas e nabos),e algunscereaiscomoo milho, aveia,cevada,trigoe centeio.Naszonas planálticasdoPNDIhátambémolivaise amendoais, e algumavinha. As espéciesdeárvores cultivadas dominantes sãoo castanheiro (no PNM)

e a oliveira (no PNDI), a nogueira, a cerejeira, entre outras espécies que circundam as povoações, formando auréolas concêntricas em relação ao povoado. Q^uando se percorre as calçadas das aldeias podem ver-se algumas plantas ornamentais nos espaços públicos, nos jardins, hortas e cortinhas,

a que os informantes também atribuem valor medicinal, para além do seu interesseornamental, como o eucalipto, a tília e o azevinho. Muitas plantas daflora ruderal, ou sejapresentes nasmargens decaminhos rurais e junto àshabitações, sáo apontadas como plantas usadas na medicina

popular. Estascomunidadesvegetaisestãodominadasporherbáceasanuais e

bienais(urtiga, ceruda,malvas) e outrasdemaiorporte (porexemplo, sabugueiroe giestas) queseadaptamàszonaspisoteadas, àsfissurasdaspedras,ou estãodispostasaolongo de encostas,taludese bermasdeestradas. Algumas espéciesorigináriasdafloresta, dos matos ou de outros habitais têm sido trazidas para as aldeias e cultivadas nos jardins, hortas e cordnhas.

Sãoexemplos deboaadaptação a seixinha, alguns tomilhos e a arçâ.Algumas espécies acabam por fugir dos espaços confinados e estãoassilvesrradas junto às casas e bermas dos caminhos.

Noutros estudos etnobotânicos (Carvalho, 201Ob e Carvalho &c Ramos,

2012) sobressaem certos locais ondehabitualmente serecolhiam plantas para fins medicinais. Por exemplo, em terras das faceiras (terras de lavoura em

declives perto daaldeia) e outros campos cultivados (cortinhas) apanhavam-se espécies para tratar feridas, golpes e contusões ou para preparar decocções

com poder desinfetante e anti-inRamatório, sobretudo quando as tarefas agrícolas eram manuais. Em alguns dos estudos de caso, ninguém fez referência a esses locais de ocorrência e muito pouco foi dito acerca dessas espécies de uso tópico. De facto, hoje em dia o cultivo extensivo de cereais e forragens diminuiu e estas culturas estão mecanizadas, tal como outras

tarefas agrícolas, o que fazpensar que esse tipo de usos e plantas deixou de ser tão necessário, tornou-se obsoleto e por isso ficaesquecido.

PAISAGENS, PATRIMÓNIOS,TURISMOS

Plantasque Condimentame Curam:O Conhecimentoe Uso de Pam Os diferentes estudos realizados naTerra Fria destacam a importância que as PAM tiveram outrora e continuam a ter em toda a região. Silvestres ou

cultivadasem qualquercantinhodahorta, dojardimouemvasos,frescasou secas,deproduçãoartesanaloucomercial,asPAMsãomuito utilizadastanto na gastronomia regional, onde condimentam as receitas do dia-a-dia e das festas, como na medicinal popular.

Muitas destas espéciesapresentam atividade antioxidanre que contribui paraa conservaçãodos alimentos e trazbenefícios paraa saúde.Outrastêm propriedades antisséticas e anti-inflamatórias pelo que se preparam em infusoes e decocções e sáo aplicadas tanto por via interna e externa. A maioria das PAM inventariadas é usada, sobretudo, para prevenir e curar problemas

do foro respiratório, digestivo e dermatológico. Mas há também espécies que aliviam dores musculares e articulares, tratam infeções do aparelho geniturinário, dores de dentes e problemas dos olhos, cicatrizam feridas e mordeduras de insetos e animais, entre outros sintomas e patologias.

Napreparaçãotradicionaldemedicamentoscaseirosà basedestasplantas empregam-se todas as partes, desde os órgãossubterrâneos, como no caso das ouropesas {Simethismattiazzii (Vand.) Sacc.), às folhas e caules, como nasmalvas, apenasasfolhascomonostomilhos e mentas, asflores, os frutos e as galhas10como em muitas das rosáceas,por exemplo nas roseiras bravas {Rosasp. pi.) ou no escarambunheiro{Çra.taegu.s monogyna}íc
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