ROUX, Lucas. Um guia para o fim das utopias - a arquitetura pós-crítica como instrumento a serviço do capitalismo contemporâneo.
Descrição do Produto
Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Engenharia Departamento de Arquitetura e Urbanismo
Lucas Oliveira Roux
UM GUIA PARA O FIM DAS UTOPIAS
Monografia apresentada ao curso de Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade de Engenharia, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho Final de Graduação I. Orientador: Prof. Dr. Fabio Jose Martins de Lima
Juiz de Fora Julho de 2014
A minha mãe, Adriana.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor Fabio, pela confiança e liberdade depositados em mim e no meu trabalho. Ao professor Antônio Agenor e sua gentil disponibilidade, indicações e observações preciosas que foram fundamentais para a construção desse trabalho. À professora Raquel Braga pelos ensinamentos sobre arquitetura contemporânea, por sempre ter sido uma inspiração e por ter implantado em mim o vírus da teoria. Aos professores Gustavo Abdalla e Antônio Colchete pelos anos de ensinamento como monitor na disciplina de Projeto. Ao Otávio, parceiro de projeto desde o primeiro período, pelo suporte, pelas noites em claro as vésperas de apresentações e pelas risadas sem fim. À Marina pela amizade, apoio e companheirismo ao longo de todos esses anos de faculdade. À Isabella e Nina pela paciência, pelo drama, pelas cervejas e pelo amor sem fim. Ao Rodrigo e Felipe, com seus gostos apurados por coisas belas. Ao Tiago, Cassio e Fil pelas experiências, hospedagens, pela música e conversas de máxima relevância. E a minha família por todo o suporte e acompanhamento ao longo desses anos.
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Não é necessário que o público saiba se estou brincando ou sendo sério, assim como não é necessário que eu mesmo saiba. Salvador Dalí (1964) IV
RESUMO
Este trabalho se propõe a apresentar os principais conceitos e paradigmas que conduziram o debate da pós-criticalidade na teoria da arquitetura no início do século XXI e a identificação das principais correntes dessa prática arquitetônica. Através de uma reflexão baseada em alguns dos principais textos publicados sobre o assunto, se constata que o absorvimento das vanguardas pela máquina capitalista contemporânea acaba gerando, na arquitetura, o afloramento de uma prática alinhada as regras da economia global e, consequentemente, impulsionadora de um status quo destrutivo e opressor.
PALAVRAS-CHAVE Teoria da Arquitetura. Arquitetura contemporânea. Crítica.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................. 01 1. DA CRITICALIDADE A PROJETIVIDADE............................................................................. 04 1.1. Das mudanças de paradigmas................................................................................................................. 05 1.2. Do indicial ao diagramático..................................................................................................................... 07 1.3. Da dialética ao doppler............................................................................................................................. 18 1.4. Do quente ao frio.......................................................................................................................................22 2. ACABARAM-SE OS SONHOS....................................................................................................... 25 2.1. Autonomia Projetiva..................................................................................................................................30 2.2. Mise-en-scène Projetiva............................................................................................................................ 33 2.3. Naturalização Projetiva............................................................................................................................. 36 3. RUMO A QUE?......................................................................................................................................... 40 CONCLUSÃO................................................................................................................................................ 46 REFERÊNCIAS............................................................................................................................................... 47
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INTRODUÇÃO
Durante o período pós-moderno a arquitetura viveu uma vigorosa efervescência teórica em um esforço intenso de ampliação do campo disciplinar arquitetônico através de um processo de aproximações e relações interdisciplinares. Teóricos da nova geração identificaram que uma prática arquitetônica crítica e de resistência ao status quo começou a ser difundida e se transformou no arquétipo dominante da disciplina nos anos 1980 e 1990. Fundamentada no materialismo dialético marxista e em linha com a escola de Frankfurt, situaram a arquitetura em uma posição crítica de significação cultural, social e política de estar entre diferentes posturas, ideologias e forças de poder. Com a virada do milênio, e principalmente após os eventos de 11 de Setembro de 2001, começa a ser percebido um cenário de resfriamento da agitação teórica que, até então, definia a disciplina. Arquitetos, críticos e teóricos da nova geração começam a debater sobre a saturação de uma prática arquitetônica crítica; Michael Speaks, diretor da Faculdade de Projeto da Universidade de Kentucky, chega a anunciar o fim da teoria e a perspectiva de um futuro dominado por uma Inteligência de Projeto, que teria se tornado o processo intelectual revitalizante das vanguardas no final do século XX. Dentro desse contexto de angústia teórica, Robert Somol, diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Illinois, e Sarah Whiting, diretora da Faculdade de Arquitetura de Rice, propõe uma alternativa conceitual à criticalidade através de uma prática arquitetônica que eles denominam de projetiva. O debate em torno da prática arquitetônica projetiva como operação conceitual substitutiva à prática arquitetônica crítica é o elemento estruturador desse trabalho. Essa monografia surge da inquietação provocada pela pouca participação dos profissionais brasileiros no cenário de discussão teórica internacional. Em um momento em que a sobrevivência da teoria da arquitetura chega a ser colocada em cheque, julgo de fundamental importância refletir sobre os rumos dos fundamentos da nossa disciplina.
Por se tratar de um debate muito recente, pouco difundido no meio acadêmico brasileiro, esse trabalho se propõe a apresentar os principais conceitos que conduzem a discussão teórica nesse período de transição do início do século XXI, através de uma revisão bibliográfica feita a partir de alguns dos principais artigos publicados sobre o tema. O primeiro capítulo é organizado de acordo com o ensaio Notas sobre o efeito Doppler e outros estados de espírito do modernismo, onde Robert Somol e Sarah Whiting apresentam sua proposição de uma prática arquitetônica projetiva, como alternativa ao projeto crítico. Dessa forma, o primeiro capítulo da monografia se inicia com uma breve explanação sobre a construção do projeto crítico, baseado no trabalho de Peter Eisenman e K. Michael Hays. As seções seguintes são dedicadas a conceituar os paradigmas que regem a prática arquitetônica projetiva, proposta pelos autores, a partir de diversas apropriações e aproximações filosóficas e interdisciplinares. Numa curiosa construção de metáforas para a prática arquitetônica, os autores buscam nas artes, na comunicação, na física e na semiótica aproximações conceituais para ilustrar as principais ideias por trás da prática arquitetônica projetiva. No segundo capítulo a discussão sobre as práticas projetivas é aprofundada. O professor da Universidade de Tecnologia de Delft e do Instituto Berlage, Roemer van Toorn, analisa as práticas projetivas e identifica três correntes distintas que são, então, apresentadas ao longo das seções do capítulo. Fica claro nesse capítulo que Roemer van Toorn considera as práticas projetivas como uma tentativa do sistema capitalista contemporâneo de absorver o discurso de resistência ao status quo das práticas críticas; fazendo com que a arquitetura produzida tenha pouco impacto para a construção de uma sociedade menos opressora. Roemer van Toorn considera que a paixão pela realidade cotidiana, demonstrada pelas práticas projetivas, dificulta a idealização de mundos utópicos. O terceiro capítulo é dedicado a indagar sobre que tipo de mundo essas práticas pós-críticas pretendem construir, com sua postura de projeto em serviço da manutenção de um sistema opressor. O arquiteto e pesquisar Reinhold Martin, professor da Universidade de Columbia, faz sua contribuição ao debate de maneira bastante severa, invocando a imagem de “um yuppie lendo Deleuze”, arquétipo 2
concebido pelo filósofo Slavoj Žižek, para analisar alguns projetos que participaram do concurso de propostas para o terreno do antigo World Trade Center, em Nova York. Reinhold Martin se preocupa com a guinada reacionária dada pela arquitetura e defende, assim como Roemer van Toorn, um retorno ao pensamento utópico enquanto paradigma conceitual para que se possa repensar a noção de democracia na construção do espaço. Esse trabalho não tem qualquer pretensão de dar alguma resposta para as questões discutidas, muito pelo contrário. O principal objetivo desse trabalho é justamente iniciar um processo de discussão, levantar indagações e refletir sobre as fronteiras do campo disciplinar da arquitetura. Como o escopo dessa monografia é a reflexão sobre a prática arquitetônica, motivado por inquietações fundamentalmente teóricas, não há compilado, neste trabalho, qualquer proposta de diretriz projetual a ser desenvolvida no TFGII. Entende-se, através dessa monografia, fundamentalmente teórica e de forte cunho filosófico-político, que o projeto de arquitetura se encontra em seu próprio processo, e não no objeto em si. Dessa forma, será parte fundamental do trabalho a ser desenvolvido no TFGII a elaboração das definições projetuais a serem exploradas ao longo do trabalho. Mesmo após a morte anunciada da teoria; em épocas de Porto Maravilha e Ocupe Estelita, a reflexão teórica nunca me pareceu tão necessária.
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1. DA CRITICALIDADE A PROJETIVIDADE
Em 1984, quando K. Michael Hays, professor de teoria da arquitetura na Universidde de Harvard, publica seu artigo Arquitetura crítica: Entre cultura e forma, no número 21 da revista Perspecta1, o campo acadêmico da arquitetura discutia os limites e paradigmas que cercavam a disciplina no contexto do pósmodernismo. Os editores da revista, Carol Burns e Robert Taylor, não definiam a arquitetura como uma disciplina autônoma – como se pode notar pelo texto do programa da edição da revista – por conta de estar engajada na cultura social, intelectual e visual de maneira ativa; questões essas que são, a princípio, externas à disciplina arquitetônica. O canônico artigo de Hays oferece uma retificação da posição dos editores do número 21 da Perspecta ao entender com maior precisão a dialética entre engajamento e autonomia; para Hays, uma das condições prévias para o engajamento é justamente a autonomia. Assim, ao fazer uma análise de obras de Mies van der Rohe no artigo, especialmente do Pavilhão da Alemanha para a Feira Mundial de Barcelona de 1930, Hays defende uma prática arquitetônica crítica, que “operaria entre os extremos da comodidade conciliatória e do comentário crítico” (apud SOMOL, WHITING. 2013, p. 145). A partir de sua publicação, o ensaio de Hays assume então papel de grande destaque e influência nas discussões arquitetônicas nos anos que se seguiram, culminando no lançamento da edição de número 33 da Perspecta, em 2002. Os editores da revista organizam o programa da edição a partir da noção de que a arquitetura está na posição crítica entre ser um produto da cultura e uma disciplina autônoma em si. K. Michael Hays afirmava que somente a arquitetura crítica ocupava a posição do estar entre várias oposições discursivas, no que tange o regime da textualidade. Perspecta: The Yale Architectural Journal. Periódico ligado a Universidade de Yale, fundado em 1952.
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Mas, segundo o editorial da Perspecta 33, toda arquitetura assume automaticamente essa posição de estar entre; de forma que toda a prática arquitetônica possuísse um caráter de prática crítica, transformando o que antes era uma excepcionalidade da prática arquitetônica em um fato cotidiano. Dessa forma, segundo Robert Somol e Sarah Whiting, podemos identificar, no evento dessas publicações, um fenômeno que acometeu, talvez inconscientemente, com a arquitetura nas décadas de 1980 e 1990: “que a disciplinaridade foi absorvida e esgotada pelo projeto da criticalidade” (2013. p. 146). A partir dessa perspectiva, Somol e Whiting elaboram uma teoria para “oferecer uma alternativa ao paradigma da criticalidade”; alternativa que os autores denominam como prática projetiva.
1.1. DAS MUDANÇAS DE PARADIGMAS Para explicar as mudanças de paradigmas da prática arquitetônica crítica para a prática projetiva, Somol e Whiting tomam como referência os trabalhos de K. Michael Hays e Peter Eisenman que, segundo os autores, são fundamentados nas ideias desenvolvidas por Colin Rowe e Manfredo Tafuri. A noção de cultura e forma é uma contradição dialética intrínseca a condição da arquitetura em assumir uma posição crítica do estar entre; Colin Rowe e Manfredo Tafuri enxergam essa dialética de maneiras diferentes. Apesar de ambos partirem do pressuposto da contradição e ambiguidade, Rowe possui uma visão baseada no formalismo liberal, enquanto que Tafuri baseia suas ideias no materialismo dialético. Dessa maneira, Tafuri apresenta a ideia dialética de cultura e forma como sendo uma expressão da relação entre desenvolvimento capitalista e projeto, enquanto que Rowe sugere uma representação dialética entre o literal e fenomênico. Assim, de acordo com as análises de Somol e Whiting, são as ideias de Colin Rowe e Manfredo Tafuri que melhor preenchem a posição do projeto arquitetônico crítico de estar entre diferentes discursos.
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Robert Somol e Sarah Whiting avançam nessa análise (2013): O projeto ostensivamente formal de Rowe tem profundas ligações com uma política liberal determinada, e a prática de uma crítica dialética visivelmente engajada de Tafuri acarreta uma série definida de a prioris formais, além de um prognóstico pessimista em relação à produção arquitetônica. Visto dessa maneira, não existe autor mais político do que Rowe nem mais formalista do que Tafuri.
A partir das análises feitas por Robert Somol e Sara Whiting, foi desenvolvido para este trabalho o diagrama abaixo sobre as principais posturas de Rowe e Tafuri:
Figura 1 – Diagrama das análises de Somol e Whiting sobre Colin Rowe e Manfredo Tafuri.
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O projeto da criticalidade na arquitetura foi desenvolvido baseado no material genético conceitual de Rowe e Tafuri, quer seja através de K. Michael Hays no campo da história e teoria quer seja no campo do projeto através das análises e experimentações projetuais de Peter Eisenman. Peter Eisenman e K. Michael Hays se baseiam na dialética e na contradição de Rowe e Tafuri para construírem o projeto da criticalidade, conservando a sua estrutura ao mesmo tempo em que procura anular e destruir seus paradigmas. Hays e Eisenman temem o literalismo e entendem a disciplinaridade arquitetônica como uma autonomia – o que permitiria uma crítica ao status quo e a ideologia social vigente através da representação e da significação – e não como uma instrumentalidade – que levaria apenas a uma projeção da capacidade de desempenho de maneira pragmática. Assim sendo, a conceituação de Hays e Eisenman quanto à disciplinaridade se volta contra a reificação2, no entendimento de que esta seria mais uma forma de apropriação da diferença pelo capitalismo tardio, reduzindo a experiência qualitativa em favorecimento da quantificação. Analisando essas questões, Somol e Whiting por fim caracterizam o projeto crítico como estando em diálogo com o índice, a dialética e a uma representação quente; enquanto que a prática projetiva proposta estaria vinculada ao pensamento diagramático, às relações atmosféricas e a um desempenho frio3.
1.2. DO INDICIAL AO DIAGRAMÁTICO A produção de Hays e Eisenman encontra correspondência nos conceitos de mediação e reprodução desenvolvidos por Marshall McLuhan; a partir da sua teoria da reprodutibilidade traduzível dos meios de comunicação de massa; e Fredric Jameson; com sua ideia de mediação ativa, que parte do princípio de uma interação
Conceito desenvolvido pelo filósofo George Lukács, definido como o “processo através do qual os produtos da atividade e do trabalho humanos se expressam como um modelo estrutural que é coisificado, independente e estranho aos homens, passando a dominá-los por leis que adquirem uma existência externa ao sujeito. O mundo toma a aparência de um mundo de coisas, e os homens também se coisificam” (CAMARGO, Silvio; SOUZA, Luiz, 2012). 3 Para caracterizar o desempenho “frio” no ensaio original, em inglês, é usada a palavra “cool”. Somol e Whiting se aproveitam da dupla acepção da palavra, que pode significar tanto frio como descolado, para lançar uma crítica em seu texto. As traduções brasileiras optaram pelo uso da palavra “frio”. 2
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engajada entre dois sujeitos ou entre um sujeito e um objeto, e não uma relação passiva, que funcionaria apenas como uma conciliação entre sujeitos e objetos. Observamos a existência de uma obsessão pela reprodução no desenvolvimento do projeto da criticalidade, manifestada nas interpretações feitas por Michael Hays sobre o Pavilhão de Barcelona, de Mies van der Rohe, e por Peter Eisenman sobre a Maison Dom-ino, de Le Corbusier. Nesses dois projetos o objeto formal atua como elemento mediador crítico da posição de estar “entre” ao combinar materialismo e significação, surgindo, assim, como um índice. O índice, nesse caso, é definido por Gilles Deleuze e Félix Guattari como “estados de coisas territoriais que constituem o designável”, se diferenciando, assim, do ícone – que é caracterizado pelas “operações de reterritorialização que constituem, por sua vez, o significável” – e do símbolo – que são signos de “desterritorialização relativa ou negativa” (DELEUZE, GUATTARI, 1995). O índice não se apresenta como uma reificação, mas sim como um signo físico que não é determinado culturalmente nem visualmente, como acontece com os símbolos e os ícones. No ensaio “Arquitetura crítica: Entre cultura e forma”, K. Michael Hays analisa a obra de Mies van der Rohe e coloca sua arquitetura como estando entre uma a representação eficiente dos valores culturais preexistentes e uma autonomia totalmente separada de um sistema formal abstrato. Hays utiliza de fotografias históricas do Pavilhão de Barcelona para fazer uma reinterpretação dos sistemas técnicos construtivos e materiais, identificando que não existe uma relação hierárquica na composição, mas sim um conjunto de partes de diferentes matérias que se relacionam em um fluxo constante através do edifício, sem a existência de um centro conceitual de organização das partes (HAYS, 1984). Assim, Hays define o Pavilhão de Barcelona como “um evento com duração temporal, cuja existência concreta está sendo continuamente produzida” e o significado continuamente decidido. E completa: Ainda que [o Pavilhão] exista em grande extensão em virtude de suas próprias estruturas formais, não pode ser apreendida apenas
formalmente.
Nem
representa
meramente
uma
realidade preexistente. A realidade arquitetônica se dá junto com o mundo real, explicitamente compartilhando condições
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temporais e espaciais com este mundo, mas obstruindo suas autoridades absolutas com uma alternativa de material, técnica e precisão teórica. Um participante do mundo e ainda disjuntivo a ele, o Pavilhão de Barcelona secciona uma lasca da superfície contínua da realidade (1984, p. 24).4
Figura 2 - Pavilhão de Barcelona: interior (Mies van der Rohe - 1929).5
Tradução nossa. Do original, em inglês: “Though it exists to a considerable extent by virtue of its own formal structures, it cannot be apprehended only formally. Nor does it simply represent a preexisting reality. The architectural reality takes its place alongside the real world, explicitly sharing temporal and spatial conditions of that world, but obstructing their absolute authority with an alternative of material, technical, and theoretical precision. A participant in the world and yet disjunctive with it, the Barcelona Pavilion tears a cleft in the continuous surface of reality” (HAYS, 1984, p. 25). 5 Fonte: HAYS, 1984. 4
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Segundo Somol e Whiting, esse ato de decisão contínua do significado é o gesto crítico por excelência. Hays acredita que a “repetição demonstra como a arquitetura pode resistir, mais do que refletir, a uma realidade cultural externa”. Somol e Whiting chegam, então, a conclusão de que: Alcança-se essa situação de estar no mundo, mas resistindo a ele, pela maneira como o objeto
arquitetônico reflete
materialmente seu contexto temporal e espacial específico, e também pela maneira como ele serve como vestígio de seus sistemas de produção (2013, p. 147).
Figura 3 - Pavilhão de Barcelona: Planta Baixa (Mies van der Rohe - 1929).6
Quando se debruça sobre o projeto da Maison Dom-ino, de Le Corbusier, Peter Eisenman registra e analisa o próprio processo de projeto; e não os sistemas e materiais construtivos e os contextos específicos discutidos por Michael Hays na sua reinterpretação do Pavilhão de Barcelona. Fica evidente na análise de Eisenman que a condição de existência da Maison Dom-ino se deve a sua capacidade de funcionar como um signo autorreferencial; tornando-se, assim, um dos primeiros gestos críticos em arquitetura. Eisenman faz uma profunda recuperação do processo projetual da Maison Dom-ino a partir de uma série de desenhos axonométricos variados, redesenhando os croquis iniciais de Le Corbusier. Peter Eisenman reconstrói os processos de tomada de decisões que Le 6
Fonte: HAYS, 1984.
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Corbusier fez até que chegasse ao desenho final da Maison Dom-ino, identificando possíveis desenhos não satisfatórios que foram abandonados ou modificados ao longo do processo. A partir dessa reconstrução, Eisenman pode afirmar que a Maison Dom-ino é um artefato autoconsciente; nas palavras de Somol, “um sistema notacional de seu próprio processo de projeto” (apud EISENMAN. 2013).
Figura 4 - Maison Dom-ino (Le Corbusier - 1914)7
O processo de reprodução serial em ambas as análises – nas axonometrias de Eisenamn e nas fotografias de Hays – tornam a arquitetura um procedimento autônomo e natural, autotransformador e autorreferencial, onde o objeto está, em certo sentido, projetando a si próprio. Dessa forma, o Pavilhão de Barcelona e a Maison Dom-ino não funcionam como ícones, tampouco símbolos. Os dois artefatos são, na verdade, índices dos próprios processos de projeto que os criou. Segundo Somol e Whiting: o Dom-ino e o Pavilhão de Barcelona são ao mesmo tempo vestígios de um evento, índices de seus procedimentos de
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Fonte: EISENMAN, 1979.
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projeto ou construção, e objetos que apontam potencialmente para um estado de transformação contínua (2013, p.148).
Figura 5 - Axonometrias de análise da Maison Dom-ino8
Em contraponto a essa leitura crítico-indicial adotada por Eisenman para elaborar suas reflexões sobre a estrutura da arquitetura europeia nos anos 1970, o arquiteto holandês Rem Koolhaas se debruça sobre a cultura de massas norteamericana para desenvolver seu arcabouço analítico. A reinterpretação indicial que Eisenman faz da Maison Dom-ino, apesar de ser desenvolvida através de diagramas, continua ainda ligada a uma repetição serial, com uma pretensão semiológica e representacional. Ou seja, embora as análises de Peter Eisenman operem através da elaboração de diagramas, a conceituação desenvolvida não possui um caráter diagramático; como as análises feitas por Rem Koolhas em seu livro Nova York Delirante, de 1978. 8
Fonte: EISENMAN, 1979.
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Em seu livro, Koolhaas faz uma interpretação do Downtown Athletic Club de Nova York através de um corte transversal, onde começa a elaborar uma outra visão de arquitetura, onde esta coloca na posição de projetar e produzir novas formas de coletividade em universos virtuais. De acordo com Somol e Whiting, o Downtown Athletic Club é mais uma das estruturas de Nova York à qual não se presta atenção; sendo visto da cidade, é apenas mais um edifício imerso no mar de arranha-céus. Nas palavras de Koolhaas, o Downtown Athletic Club possui: um exterior inescrutável e quase indiscernível entre os arranha-céus convencionais que o cercam. Essa serenidade oculta a apoteose do arranha céu como instrumento da cultura da congestão. [...] com o Downtown Athletic Club, o modo de vida, a técnica e a iniciativa americana superam definitivamente as modificações teóricas no estilo de vida que as diversas vanguardas europeias do século XX vêm propondo insistentemente, sem nunca conseguir impô-las (2008, p. 180).
O Downtown Athletic Club não é um edifício destinado à leitura, mas sim um espaço concebido para “seduzir, criar e instigar novos eventos e comportamentos” (SOMOL, WHITING. 2013, p. 148). Rem Koolhaas analisa, então, o curioso programa do edifício, voltado basicamente para atividades de restauro do corpo humano e ligadas ao atletismo; exclusivamente destinado a usuários do gênero masculino que desfrutam das atividades distribuídas ao longo das 38 plataformas retangulares empilhadas, que praticamente reproduzem as pequenas dimensões do seu terreno de implantação. Cada andar é um evento, um território nunca antes explorado. Quadras de tênis, piscinas, salas para irrigação do cólon, campos de golfe e jardins se empilham em territórios virtuais. O edifício transforma “a natureza em sobrenatural”. Rem descreve o Downtown Athletic Club como um lugar onde homens, atletas hedonistas puritanos, podem “comer ostras com luvas de boxe, nus, no enésimo andar – tal é o enredo do 9º andar, ou o século XX em ação” (KOOLHAAS. 2008).
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Figura 6 - Downtown Club Planta Baixa 9º andar.9
Figura 8 - Downtown Club Corte transversal.9
Figura 7 - Downtown Club Atividades no 9º andar. 9 9
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Fonte: KOOLHAAS, 2008.
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Para Koolhaas, essa arquitetura é uma maneira de colocar a própria vida em planta, em uma disposição aleatória. A planta exerce um papel fundamental no projeto do Downtown Club, com uma composição abstrata, que determina atuações numa sobreposição fantástica de atividades, onde cada pavimento do clube é um universo independente em uma trama absolutamente imprevisível que exalta a rendição à completa instabilidade definitiva da vida na metrópole. Koolhaas entende o Downtown Athletic Club como uma máquina-arranha-céu que permite uma projeção vertical ascendente infinita de universos e territórios virtuais dentro desse mundo. Essa ideia maquínica encontra paralelo no conceito filosófico de máquina abstrata, desenvolvido nos Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari, juntamente com as definições de pensamento diagramático, que tem como uma de suas bases a interpretação que Foucault faz sobre o projeto do Panopticon. Foucault analisa o Panopticon de Jeremy Benthan, um presídio composto de uma torre de vigia central e um anel externo onde se localizam as celas que atravessam toda a espessura da construção; com janelas que se abrem para o interior da estrutura, voltadas para a torre de vigia, e para o exterior, onde permite que a luz atravesse a cela de lado a lado.
Figura 9 – Estrutura de um Panopticon em Cuba.10
10 Fonte: http://www.unfinishedman.com/presidio-modelo-cubas-abandoned-panopticon-prison/. Acessado em: 05/05/2014.
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Dessa maneira, devido ao efeito da contraluz, pode-se visualizar a partir da torre de vigia a silhueta dos cativos contra a claridade. Segundo Foucault (1987), cada detento se encontra “perfeitamente individualizado e constantemente visível”, invertendo-se, assim, o princípio da masmorra; agora, a “luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha”. Michel Foucault percebe, então, que a arquitetura do Panopticon tem a capacidade de exercer sobre o indivíduo cativo um estado de visibilidade permanente e consciente, assegurando, assim, o perfeito funcionamento do poder. Dessa forma, Foucault nos diz que: Esse aparelho arquitetural [funciona como] uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce. [...] O Panóptico é uma maquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder. [podendo] ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos (1987).
E depois completa: Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico.
A partir dessa interpretação da arquitetura como máquina, Gilles Deleuze faz uma análise das reflexões foucaultianas e afirma que Foucault percebe o Panopticon não como uma simples máquina de vigilância, mas como um diagrama que determina uma maneira específica de comportamento a uma coletividade particular. Nesse momento é importante, então, entendermos como Deleuze define o conceito de diagrama dentro da sua ideia de pensamento diagramático, desenvolvido em
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sintonia com a corrente pós-estruturalista; que se difere da ideia de diagrama dentro do sistema índice-ícone-símbolo da semiótica peirceana11. Deleuze entende o diagrama como um mapa cartográfico co-extensivo a todo campo social, e o conceitua como: Uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não-discursiva. [...] o diagrama é altamente instável ou fluido, não para de misturar matérias e funções de modo a constituir mutações. [...] todo diagrama é intersocial, e em devir. Ele nunca age para representar um mundo preexistente, ele produz um novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade. (2005)
A partir dessas conceituações, podemos entender que Rem Koolhaas examina o arcabouço estrutural e programático em suas análises; não apenas do Downtown Athletic Club aqui comentada, mas em várias outras ao longo de sua carreira; de acordo com a elaboração de um pensamento diagramático. Dessa maneira, segundo Somol e Whiting, conseguimos distinguir duas orientações que guiaram a disciplinaridade arquitetônica a partir dos anos 1970: no caso de Eisenman e sua análise sobre o Maison Dom-ino, identificamos uma disciplinaridade que se comporta como autonomia e processo; no caso de Koolhaas e sua apresentação sobre o Downtown Athletic Club, notamos uma disciplinaridade como força e efeito. Assim sendo, podemos estabelecer uma diferenciação entre o projeto ligado ao indicial, que caracteriza a prática arquitetônica crítica, e o projeto que opera por meio diagramático, característica da prática arquitetônica projetiva. O diagrama é um instrumento que está ligado ao universo virtual e a projeção de realidades ainda não existentes, muitas vezes submetidas a relações de poder externas, especialmente mercadológicas, devido à voracidade do capitalismo contemporâneo, que a tudo absorve; enquanto que o índice se comporta como um vestígio do universo real, como instrumento autorreferencial autônomo, porém ligado à realidade, podendo servir de ferramenta de crítica à própria realidade. 11
Em referência a Charles Peirce, considerado por muitos o fundador da semiótica.
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1.3. DA DIALÉTICA AO DOPPLER Robert Somol e Sarah Whiting afirmam que a prática projetiva não se baseia na estratégia de oposição dialética característica da prática crítica, mas sim em um fenômeno parecido com o efeito Doppler – fenômeno físico que explica a “mudança na frequência aparente de uma onda que ocorre quando a fonte e o receptor da onda estão em movimento relativo” (2013, p. 149). A arquitetura Doppler não se baseia em um isolamento na autonomia para definir os limites disciplinares da arquitetura, como faz a dialética crítica. O Doppler “reconhece a síntese adaptativa das múltiplas contingências da arquitetura” e se concentra nos efeitos e intercâmbios das pluralidades inerentes à disciplina. Enquanto a dialética crítica encara a disciplinaridade arquitetônica como uma autonomia onde o conhecimento e a forma são baseados em “normas, princípios e tradições compartilhados”, a arquitetura Doppler entende a disciplinaridade arquitetônica como “desempenho ou prática”, trabalhando com o conceito de disciplinaridade desenvolvido por Foucault, onde a disciplina não é tratada como um dado ou entidade fixa, mas sim como um organismo ou prática discursiva que atua de forma ativa e ingovernável. Foucault define disciplina como: [...] unidades [que] formam domínios autônomos, embora não independentes; regrados, embora em contínua transformação; anônimos e sem sujeito, ainda que integrem tantas obras individuais (2008).
Dessa maneira, a arquitetura Doppler – que caracteriza a prática arquitetônica projetiva – não se limita ao campo de especialidade e a definição absoluta de arquitetura, ao mesmo tempo em que não reivindica para si um conhecimento especializado que se encontra fora do campo tradicional da arquitetura. Na prática projetiva, o que delimita as fronteiras volúveis da disciplinaridade e especialidade arquitetônicas é o próprio projeto. Somol e Whiting explicam: Quando abordam questões que aparentemente estão fora do escopo historicamente definido da arquitetura – questões de economia ou política institucional, por exemplo –, os arquitetos não tratam esses temas como especialistas em economia ou
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política institucional, mas como especialistas em projeto abordando os possíveis efeitos do projeto na economia ou na política (2013. p. 150).
A prática arquitetônica projetiva entra no campo da multiplicidade disciplinar como uma especialista nas relações entre o projeto arquitetônico e as demais disciplinas, e não como um ator disciplinar crítico. Nas palavras de Robert Somol e Sarah Whiting, “o Doppler não olha para o passado nem critica o status quo; ele projeta ordenamentos ou cenários alternativos (não necessariamente em oposição ao presente)” (2013. p. 150). É notável que o efeito Doppler compartilhe de alguns atributos da Paralaxe; outro fenômeno físico, que consiste na aparente mudança de posição de um objeto em decorrência do deslocamento do observador. O crítico de arte Yve-Alain Bois, ao analisar a obra do escultor Richard Serra, afirma que o artista utiliza de maneira consciente as possibilidades da paralaxe e descreve a obra Sight Point para exemplificar esse recurso, descrevendo a escultura como se ela parecesse “cair da direita para a esquerda, fazer um xis e se endireitar formando uma pirâmide truncada. Isso ocorreria três vezes durante o percurso do observador em torno dela” (BOIS apud SOMOL, WHITING. 2013, p. 151).12
Figura 10 – Sight Point (Richard Serra – 1972) Vista externa.11
Figura 11 – Sight Point (Richard Serra – 1972) Vista interna.11
A paralaxe pressupõe que o contexto e o observador complementam a obra de arte; assim, ela acontece a partir de uma apreensão peripatética, criando um efeito óptico teatral do objeto em relação ao observador. O efeito Doppler se diferencia da 12
Fonte: https://www.flickr.com
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paralaxe no sentido de ir além da apreensão puramente óptica. O Doppler aceita muitas outras sensibilidades ao se basear no movimento das ondas – sonoras, visuais, informacionais etc –, deixando de ser apenas um instrumento de leitura, como a paralaxe, para se tornar uma interação atmosférica de troca de energia e informação entre sujeito e objeto. Na arquitetura Doppler, os ecos de outras experiências, conversas, encontros, estados de espírito, afetam a experimentação do momento arquitetônico, desencadeando uma justaposição entre universos virtuais e reais. O projeto do escritório WW Architecture para o IntraCenter (Lexington, EUA) é um exemplo de arquitetura projetiva que utiliza a estratégia do efeito Doppler, em vez da dialética. O projeto atende a um extenso e heterogêneo programa que contempla salas de ginástica, creche, café, lojas, biblioteca, serviços sociais, salas de computadores, centros de formação etc. O projeto escapa à sobreposição formal entre forma e programa ao evitar representar e identificar formalmente cada um dos múltiplos programas, evitando que o programa definisse o projeto.
Figura 12 – IntraCenter – Diagrama do programa arquitetônico (WW Architects).13
Ao evitar as relações programáticas concêntricas, o projeto impede o alinhamento entre forma e função gerando uma oscilação Doppler contínua entre ambos, que resulta em múltiplas reverberações sobrepostas entre os públicos 13
Fonte: http://www.wwarchitecture.com/projects/intracenter/intracenter.html
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frequentadores e entre as condições materiais e estruturais. Assim, Somol e Whiting completam: “o IntraCenter é mais projetual do que crítico, no sentido de que ativa deliberadamente a possibilidade de múltiplas inter-relações, no lugar de uma única articulação de programa, tecnologia e forma” (2013, p. 150-1).
Figura 13 – IntraCenter – Diagramas (WW Architects).14
Figura 14 - IntraCenter – Diagramas (WW Architects).14
14
Fonte: http://www.wwarchitecture.com/projects/intracenter/intracenter.html
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1.4. DO QUENTE AO FRIO O período de transição entre as práticas arquitetônicas críticas para as práticas projetivas pode ser caracterizado como um resfriamento da disciplina; em uma analogia à teoria dos meios de comunicação quentes e frios, de Marshall McLuhan. Os meios de comunicação são distinguíveis em quentes e frios de acordo dependendo do nível de participação do usuário. Segundo McLuhan, “um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em alta definição” (1974, p. 38). A alta definição faz referência a um estado de saturação de dados transmitidos; assim, os meios quentes, como o cinema, transmitem as informações de maneira muito precisa em apenas uma modalidade, sem a necessidade da intervenção do usuário, sem deixar espaços a serem preenchidos ou completados pela audiência. No entanto, os meios de comunicação frios, como a televisão, possuem uma baixa definição, já que existe uma baixa saturação de dados nas informações transmitidas, comprometendo a comunicação e exigindo uma participação ativa dos usuários. Dessa forma, segundo Robert Somol e Sarah Whiting, as práticas arquitetônicas críticas são quentes porque dão prioridade à definição, ao delineamento e à distinção das especificidades do meio, se preocupando em romper com as condições normativas de produção, subjacentes ou anônimas, e em expressar a diferença; deixando poucas lacunas para uma participação ativa do usuário. Por outro lado, os meios frios não possuem a mesma autossuficiência e autoconsciência, necessitando do contexto e do usuário para complementarem a informação; como observamos no minimalismo, onde a participação é explicitamente requerida. Para Somol e Whiting, esse resfriamento suscita um processo de mistura, de forma que o efeito Doppler seria uma espécie de frio. O frio implica em uma postura relaxada e tranquila, enquanto que o quente “conota o explicitamente difícil, trabalhado, elaborado, complicado” (2013, p. 152). Somol e Whiting expandem as diferenças entre o quente e o frio ao fazer uma análise da interpretação cênica, meio de comunicação não examinado por McLuhan, tomando como exemplo as interpretações de Robert Mitchum e Robert De Niro. Com a morte de Robert Mitchum, em 1997, o crítico de arte Dave Hickey escreve um obituário sobre o ator para a revista Art Issues, onde descreve o trabalho 22
de Mitchum como um tipo de interpretação não expressa ou representada, mas sim apresentada, entregue. Para Dave Hickey, a interpretação de Mitchum é sempre surpreendente e plausível, porque é baseado no saber de que há algo ali por trás, mas sem ter certeza do que é exatamente. Para Robert Somol e Sarah Whiting, é “exatamente esse traço surpreendente de plausibilidade que pode se converter num efeito projetivo, que soma o evento fortuito a um realismo mais amplo” (2013, p.152). Dave Hickey separa os atores em dois grupos distintos. No primeiro grupo, onde está Robert De Niro, os atores constroem seus personagens a partir dos detalhes, construindo um subtexto para o texto original do roteiro, nos fazendo acreditar no personagem a partir da narrativa construída para ele. É a chamada escola do Método, onde os atores entram com os gestos e a motivação. No segundo grupo, onde está Robert Mitchum, os atores criam apenas uma plausibilidade cênica com o corpo; Dave Hickey diz que os atores não estão realmente atuando, mas “interpretando com ímpeto" (idem, p. 152). Para Robert Somol e Sarah Whiting, a arquitetura estabeleceu uma relação com a filosofia, nos anos 1980 e 1990, semelhante com a relação estabelecida entre Robert De Niro e seus personagens. Ou seja, a arquitetura operava em uma espécie de atuação por Método, ou, no caso, projeto por Método; exercendo uma prática arquitetônica ligada à psicanálise, onde o arquiteto expressava um discurso ou a arquitetura representava seus próprios processos de projeto, se transformando em um índice autorreferencial. Esses vestígios do processo de construção estão sempre visíveis na atuação de Robert De Niro; podemos perceber a luta existente entre o ator e o personagem, e não só as lutas internas do personagem. As diferenças de atuação dos dois grupos de atores teorizados por Dave Hickey ficam claras logo nas cenas iniciais das duas versões do filme Cabo do Medo, protagonizadas por Mitchum e De Niro. Na primeira versão, de 1962, dirigida por J. Lee Thompson, Robert Mitchum interpreta o psicopata Max Cady com um ar lascivo e despreocupado; o personagem aparece nas cenas iniciais andando pela rua em direção ao tribunal sem demonstrar nenhuma tensão, fumando seu charuto e admirando as mulheres na rua.
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Segundo Robert Somol e Sarah Whiting, a atuação de Mitchum é leve e fresca, tudo parece fácil; dessa forma, uma arquitetura Mitchum é: [...] fria, tranquila e nunca parece um trabalho: é sobre um estado de espírito ou uma vivência de realidades alternativas (quais, se não as virtuais?). Aqui, o estado de espírito é o corolário aberto do efeito do esfriamento sem alta definição, dando espaço de manobra e promovendo cumplicidade com o(s) objeto(s) (2013, p. 153).
Na refilmagem do filme Cabo do Medo, de 1991, dirigida por Martin Scorsese, Robert De Niro interpreta um Max Cady quente, difícil, que indexa os processos de sua produção; De Niro aparece nas primeiras cenas fazendo exercícios na prisão, com o suor escorrendo. De acordo com Somol e Whiting, a arquitetura De Niro é “claramente elaborada, narrativa ou representacional, ou expressa uma relação da representação com o real (o fornecimento de um subtexto psíquico a partir de um fato real para um texto de ficção)” (2013, p.153). Dessa forma, uma prática arquitetônica projetiva seria ligada a interpretação Mitchum, ao frio, ao tranquilo, a um “projeto de apresentar uma interpretação ou criar uma plausibilidade surpreendente” (idem, p. 153); em contraponto com a prática arquitetônica crítica, que é quente, representacional, reflexiva e narrativa, ligada a escola de atuação pelo Método e interpretação De Niro.1516
Figura 15 – Robert Mitchum Cabo do Medo (1962)15
15 16
Figura 16 – Robert De Niro Cabo do Medo (1991)16
Fonte: http://www.dvdbeaver.com/film/dvdcompare/capefear62.htm Fonte: http://us.cdn281.fansshare.com/photos/robertdeniro/capefear-cape-fear-1202345548.jpg
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2. ACABARAM-SE OS SONHOS
A supremacia do sistema capitalista contemporâneo engloba e absorve toda adversidade, toda prática e manifestação de resistência, de reflexão, de vanguarda; de acordo com a interpretação de Roemer van Toorn (2013), “o capitalismo tardio é o único jogo em curso”. Nos prósperos países desenvolvidos; abarrotados de entretenimento
comercial
e
cultural,
aplicações
tecnológicas
e
produções
computadorizadas; se desenvolve a ideia de que estamos rumo a uma situação social ideal: segundo a política da Terceira Via, de Anthony Giddens, só nos resta nos acomodar ao corporativismo globalizado, apesar de reconhecer que a máquina da economia neoliberal necessita de pequenos ajustes para alcançar alguns direitos sociais e alguma igualdade. O capitalismo tardio possui uma impressionante capacidade adaptativa; importantes instituições culturais que antes repudiavam as práticas transgressoras da vanguarda percebem que podem obter publicidade e lucro com o escândalo, passando, assim, a incentivar e a financiar tais práticas. Nas palavras de van Toorn: “o capitalismo global deu sinais de ser capaz de transformar suas limitações iniciais em desafios que culminam em novos investimentos” (2013). Dessa maneira, as práticas anteriores da crítica e do engajamento social, ao serem absorvidas pela máquina capitalista contemporânea, se tornam rapidamente obsoletas. É nesse contexto pós-crítico, de perda de sentido de um engajamento de resistência ao status quo, que Roberto Somol e Sarah Whiting teorizam uma prática arquitetônica projetiva; em consonância com o pensamento de muitos outros atores dessa cena da nova geração de acadêmicos e arquitetos, como Michael Speaks, Alejandro Zaera-Polo, Jeffrey Kipnis, Sylvia Lavin etc. Em um contundente esforço edípico; inserida no ciclo eterno de tentativa uma geração superar à de seus mestres; essa nova geração de teóricos e críticos defendem uma desvinculação à tradição crítica – exemplificada nos trabalhos de Peter Eisenman, Bernard Tschumi, Daniel Libeskind, Diller + Scofidio etc – que possui um discurso socioarquitetônico interno, 25
que insiste em um confronto, mas se abstém de criar e oferecer alternativas melhores para a realidade; rejeitando, de acordo com van Toorn, uma “arquitetura nascida do sofrimento ou da necessidade de sabotar as normas” (2013). A prática projetiva rompe com a imposição de preconceitos ideológicos derivadas dos sonhos utópicos da criticalidade. O projeto arquitetônico se articula com a realidade encontrada no local, se afastando da teoria crítica e assumindo uma postura de curadoria, pesquisando e analisando sistematicamente os mais variados dados da realidade local, como o programa, uso e infraestrutura, economia, política, arte, moda, tecnologia, tipologia, materiais, que são documentados e analisados diagramaticamente, na tentativa de revelar e trazer à tona as possibilidades latentes, a força e a beleza do projeto. Roemer van Toorn, no entanto, entende que existe alguma ideologia implícita na mensuração e transmissão desses dados, mas que as práticas projetivas ignoram essa dimensão ideológica, ocultando as diversas contradições de implementação do projeto atrás do véu do estilo e da moda, numa pretensão de tornar o projeto ideologicamente liso. A ativação dessas realidades encontradas é, na media do possível, idealizada, assim: se tudo corre bem na realização de um esquema projetivo, a extrapolação inteligente de dados, a utilização da sensibilidade estética, a transformação do programa e a tecnologia correta podem ativar momentos utópicos. Mas trata-se de um utopismo oportunista, que não constitui a principal motivação. (TOORN. 2013, p. 224)
Durante a crise do movimento moderno, Manfredo Tafuri desenvolve a ideia de que a vanguarda modernista contribuiu para estimular uma situação de opressão e manipulação social ao ajudar a acelerar a modernização capitalista através do princípio vanguardista da montagem; ao invés de fomentar uma emancipação social, como pretendia. Assim, van Toorn (2013) afirma que é criada uma postura de “oposição permanente à sociedade capitalista” ao se perceber que “sonhos esperançosos podem terminar em pesadelos”; mas que essa postura crítica, por estar situada à margem social, muitas vezes era reservada à uma elite, forçando-a, assim, a depender do trato “com coisas que lhe são repugnantes”.
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Ao tentar romper com a lógica de exploração e opressão do sistema capitalista, a arquitetura crítica possui uma suposta autonomia, ao mesmo tempo em que é sentenciada a atuar dentro do sistema que a ameaça, por estar constantemente desmascarando as forças a que se opõe. Assim, Roemer van Toorn conclui que a prática arquitetônica crítica possui muito mais um caráter reativo do que proativo; o criticismo se opõe às condições normativas e opera no sentido de desmascarar a verdadeira faceta das forças opressoras dos sistemas de poder, muitas vezes através de uma apropriação linguística e textual que estimularia o soerguimento de uma conscientização política. A arquitetura crítica é destinada à leitura e se empenha em seduzir e chamar a atenção do possível leitor/usuário; mas quando seu conteúdo crítico não se encontra legível no objeto, a arquitetura falha. Essa reatividade faz com que as práticas críticas desenvolvam um discurso vitimizante frente à modernização, não dando margem para interpretações mais razoáveis da realidade a fim de tornar o projeto mais adaptável à vida cotidiana. Roemer van Toorn identifica aí uma das fraquezas da criticalidade ao reconhecer que é “impossível conceber a modernização apenas como algo negativo”, afirmando que críticos e intelectuais muitas vezes se utilizam de instrumentos como a retórica e a autonomia da linguagem para se distanciar da experiência do sistema cotidiano contemporâneo – que acreditam ser fundamentalmente corrupto – como se não fizessem parte dele, mas que isso não passa de uma tentativa de “ignorar a mediocridade de sua própria existência”. Roemer van Toorn sentencia: As práticas críticas rejeitam e reagem sem sutileza alguma contra
as
coisas
positivas
alcançadas
na
sociedade
contemporânea, tais como a vitalidade da cultura popular – inclusive seu hedonismo, luxo e diversão. (2013, p. 227).
As práticas arquitetônicas projetivas evitam resistir contra a realidade cotidiana através de à prioris formais, como as práticas críticas. As práticas projetivas analisam profundamente os dados obtidos e; a partir de microdecisões tomadas em decorrência da manipulação diagramática desses dados; observam cuidadosamente para onde tais informações podem conduzir formalmente o projeto durante o processo de criação, manipulando continuamente os diagramas até que uma forma satisfatória surja, em toda sua estranheza e beleza. 27
Observa-se nesse processo um hiper-racionalismo que leva o pragmatismo projetual a extremos caricatos na tentativa de eliminar do projeto qualquer subjetividade por parte do projetista. Para van Toorn, esse realismo extremo da projetividade não considera qualquer consequência social decorrente do projeto, na pretensão de não possuir qualquer alinhamento teórico ou político. As práticas projetivas lidam apenas com as eminências da realidade do sistema contemporâneo; com o ciborgue, a eficácia, a mídia, o dinheiro, o consumismo, o lazer, a moda. Esse processo, na interpretação de van Toorn, leva a extremos as consequências da mercantilização e da alienação, que são as grandes engrenagens da modernidade contemporânea. Isso nos leva a um extermínio das ideias utópicas, por que: Para as práticas projetivas, sonhar não é mais preciso, pois nem mesmo nossos sonhos mais loucos são capazes de prever como a realidade pode ser caótica, inspiradora, dinâmica e libertadora. (2013, p. 228)
Ao contrário do distanciamento da realidade promovido pela criticalidade, as práticas projetivas defendem um envolvimento, e até uma cumplicidade, com essa realidade existente, numa tentativa de reorganizar as questões econômicas, sociais, informacionais e de convivência impostas pelo sistema de poder atuante; o que seria mais produtivo que sonhar com mundos utópicos que nunca hão de vir. As práticas projetivas promovem um certo retorno às bases disciplinares da arquitetura; através de uma postura de projeto mais pragmática e de uma abordagem mais tectônica das possibilidades projetuais e uma preocupação com as questões técnicas da edificação; sem deixar de levar em conta as ondas de influência de outras disciplinas sobre a concretização do projeto. Para van Toorn, isso permite a realização de uma arquitetura bela, mas sem as preocupações torturantes de se cair nos efeitos colaterais da superficialidade. Esse retorno a uma busca pela beleza arquitetônica, sem necessariamente uma filiação a alguma teoria estética, levou Jeffrey Kipnis (2013) a desenvolver o conceito de cosmético, em substituição ao tradicional conceito de ornamento, ao analisar a obra dos arquitetos Herzog & de Meuron. Enquanto os ornamentos seguem como objetos distintos, independentes, aplicados sobre determinado corpo; os cosméticos agem sobre a pele, alterando dissimuladamente a aparência do corpo. Ou seja, o 28
cosmético não existe enquanto entidade separada, seu resultado só surge quando em relação simbiótica o corpo. Sua ação é superficial; porém, seu efeito é profundo. Kipnis afirma que essa abordagem cosmética oferece uma via alternativa de retorno aos limites da disciplinaridade arquitetônica ao se concentrar em um limite arquitetônico muito bem definido: a fachada. No caso da obra de Herzog & de Meuron, essas intervenções cosméticas criam uma arquitetura estimulante, sofisticada e elegante, com “uma astuciosa inteligência urbana e um poder de atração intoxicante, quase erótico” (2013, p. 120); assim, para Jeffrey Kipnis, a obra de Herzog & de Meuron se trata “simplesmente da arquitetura mais cool que há por aí” (2013, p. 121).17 Com essas questões expostas, nos resta entender melhor quais são e como se articulam as práticas arquitetônicas projetivas que podem exercer maior influência na atualidade. Roemer van Toorn, baseado na recente produção arquitetônica holandesa, identifica três correntes da prática projetiva; autonomia projetiva, naturalização projetiva e mise-en-scène projetiva; que serão melhor conceituadas nas próximas seções, em paralelo com as ideias de van Toorn.
Figura 17 - Laban Dance Centre (Herzog & de Meuron – 2003)18
“Cool” pode ser traduzido como “descolado” ou “frio”, como vimos no capítulo anterior. É uma das características perseguidas pelas práticas arquitetônicas projetivas. 18 Fonte: https://www.flickr.com/photos/gilesmcgarry/7541643312/ 17
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2.1. AUTONOMIA PROJETIVA Focada principalmente em modelos geométricos, em interesses formais e no poder de transmissão de informações através da estética; a autonomia projetiva busca criar uma experiência de contato passiva com o usuário, transformando-o em observador. Em uma estratégia de resgate disciplinar, a autonomia projetiva propõe o retorno à autossuficiência das formas, cuidadosamente esculpidas e minuciosamente polidas, fazendo uma arquitetura suave e de bom gosto; com uma aparência muitas vezes modesta, mas atendendo as preocupações funcionais, econômicas, de eficiência e sustentabilidade. A autonomia projetiva se limita a se preocupar com questões culturais e econômicas estáveis – sem se preocupar com o movimento, com os sonhos, o dinamismo e a complexidade – na tentativa de criar uma arquitetura duradoura; nas palavras de Roemer van Toorn, uma arquitetura “teoricamente capaz de durar séculos” (2013, p. 229). Segundo van Toorn, o escritório Claus & Kaan demonstra essa atitude de autonomia projetiva ao organizar sua arquitetura através de um processo tipográfico, negando uma organização tipológica tradicional. O trabalho é feito seguindo uma organização do ritmo dos espaçamentos entre elementos de diferentes proporções; englobando todas as escalas de projeto, do volume total ao detalhe; concedendo um tratamento artesanal aos elementos que se repetem; como portas, janelas, colunas, painéis; fazendo van Toorn comparar o trabalho dos arquitetos com o de tipógrafos.
Figura 18 – Escritórios Municipais de Breda – Fachadas (Claus & Kaan – 2003)19
Fonte: netherlands
19
http://archinect.com/clausenkaanarchitecten/project/municipal-offices-breda-the-
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Em uma entrevista a revista Hunch, em 2003, os arquitetos do Claus & Kaan declararam não estar interessados em formas e materiais incomuns, em projetar objetos esteticamente complicados; o campo de trabalho dos arquitetos envolve materiais, estruturas e técnicas corriqueiras. Claus & Kaan buscam criar espaços que eliminem a controvérsia e inspirem confiança, valorizando os volumes prismáticos, a luz, a beleza e o estilo; negando a subversão e o radical. O resultado é uma elegância minimalista, derivada da atenção meticulosa aos detalhes e da linguagem abstrata, que, nas palavras de Roemer van Toorn, emprestam aos projetos “um certo brilho autossatisfeito e estiloso” (2013, p. 230); como no edifício de escritórios municipais, em Breda, com sua fachada em um padrão destacado de barras pretas finas, criando um minimalismo chique, que foge da vulgaridade com sua perfeição abstrata.
Figura 19 – Escritórios Municipais de Breda (Claus & Kaan – 2003).20
Fonte: netherlands
20
http://archinect.com/clausenkaanarchitecten/project/municipal-offices-breda-the-
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A busca pela autonomia projetiva também pode ser observada na obra de Neutelings Riedijk, com sua arquitetura bem humorada e dramática; diferente da seriedade, do puritanismo e do decoro da obra de Claus & Kaan; que procura contar uma história para o público através de formas marcantes, como os meios da cultura de massas. Segundo Roemer van Toorn, a arquitetura atinge novos patamares dramáticos com as construções humorísticas, robustas e bizarras do escritório que trazem certo surrealismo cotidiano aos usuários; que, no caso, também são meros observadores. A obra se integra no teatro da vida cotidiana; mas como ator principal, não apenas como suporte cênico. Nas palavras de van Toorn, “Neutelings Riedijk não estão interessados na própria vida, mas na autonomia do cenário contra qual ela se desenrola” (2013, p. 230). Ao contrário da arquitetura crítica, o escritório não subverte a linguagem, as normas e os valores sociais a partir desses fortes elementos conceituais, mas, na verdade, produz uma arte pop inofensiva ao status quo; sem segundas intenções como a obra de Andy Warhol, por exemplo; projetando edifícios autônomos, singulares, divertidos, fáceis de lembrar; um cenário perfeito para os logotipos dos clientes.
Figura 20 – College of Shipping & Transport (Neutelings Riedijk – 2001)21
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Fonte: http://www.neutelings-riedijk.com/index.php?id=13,234,0,0,1,0
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2.2. MISE-EN-SCÈNE PROJETIVA Ao contrário do que acontece na autonomia projetiva, os projetos criados pela lógica da mise-en-scène22 projetiva não são apenas para serem contemplados, mas sim para serem experimentados ativamente pelo usuário como parte do cenário teatral da realidade contemporânea. O contato com a realidade cotidiana continua sendo o principal objetivo dessa prática projetiva e dá-se ao agregar sincronicamente diferentes realidades mundanas em uma espécie de performance teatral através dos interstícios do capitalismo tardio. Mas o grande teatro orquestrado pela mise-en-scène projetiva não nos permite sonhar com realidades alternativas, com mundos utópicos. De acordo com Roemer van Toorn, a mise-en-scène projetiva observa a realidade com uma pretendida neutralidade, o que transforma a cidade em uma grande tabela de dados que são, então, sistematicamente idealizados e superestimados através de métodos de análise que permitem a integração e inter-relação dos mais variados elementos disponíveis. Busca-se, assim, inovadoras soluções formais que resolvam as demandas da realidade cotidiana; como no caso do BasketBar, em Utrecht, do NL Architects.
Figura 21 – BasketBar (NL Architects – 2003)23
Do dicionário Aurélio: Mise-en-scène: s.f. (pal. fr.) Realização cênica ou cinematográfica de uma obra lírica ou dramática, de um cenário. / Fig. Apresentação dramática e arranjada de um acontecimento. / Encenação.
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Fonte: http://www.nlarchitects.nl/project/92/slideshow
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O BasketBar é construído a partir da extensão da laje de uma livraria em um complexo universitário, constituído de um bar no térreo e uma quadra de basquete em sua cobertura. O inteligente uso do espaço, ao dar uma função adicional à cobertura do bar, cria, segundo van Toorn, uma “deliciosa e absurda justaposição de dois mundos bastante diferentes” (2013, p. 231). A mise-en-scène projetiva encara a vida com alegria e otimismo ao solucionar os problemas da realidade cotidiana, que está em constante mudança. Roemer van Toorn define esses projetos como “espaços roteirizados” (idem), capazes de conduzir nossa experiência através de um determinado caminho. Ao contrário da autonomia projetiva, a mise-en-scène projetiva não se interessa pela força da autonomia tipológica, mas sim nos devaneios sociais. Os objetos são encarados do ponto de vista sociológico, como portadores da cultura e do modo de vida cotidianos. Assim, a arquitetura, como produtora de sentido cultural e social, projeta fragmentos da realidade contemporânea na objetualidade, ampliando a expressão da vida cotidiana através dos cenários espetaculares montados pelos arquitetos a partir da reprodução da lógica oculta da sociedade contemporânea. Roemer van Toorn cita o escritório MVRDV como outro grupo de arquitetos com uma ideologia projetual que vai ao encontro da mise-en-scène projetiva. O MVRDV consegue entrelaçar diferentes programas de maneira compacta, criando interiores infindáveis; no que os arquitetos chamam de “caixas famintas” – ou seja, “caixas que têm fome de combinar diferentes programas numa paisagem única” (2013, p. 231). Diferentemente do Neutelings Riedijk; que contam uma história à distância do seu usuário/observador, através de suas formas representativas; o MVRDV agrega o usuário como ator principal da sua narrativa de ficção científica sobre a realidade oculta no cotidiano do capitalismo tardio, através da tradução do programa arquitetônico em uma experiência espacial cuidadosamente coreografada. Essas narrativas ocultas da realidade cotidiana podem ser percebidas em projetos como o Pig City, em Roterdã (não executado). A Holanda é a maior exportadora de carne suína da Europa, com mais de 16 milhões de porcos criados em milhares galpões espalhados pelo interior do país. O MVRDV propõe, então, unificar as criações, confinando os porcos em altos edifícios no porto de Roterdã, acreditando
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ser mais eficaz e humanitário. Roemer van Toorn diz que o efeito de uma encenação tão pragmática e surreal como essa é impactante: De repente – e sem nenhum juízo de valor –, a existência de um número maior de porcos do que de pessoas na Holanda e o fato de que os porcos podem ser felizes em edifícios altos com vista – parece razoável (2013, p. 232).
Dessa forma, as fábulas do capitalismo contemporâneo, ocultas na nossa realidade cotidiana, são reveladas através da imaginação oportunista do MVRDV. Roemer van Toorn levanta a questão sobre se essa representação fantástica da realidade realmente se “interessa por um mundo melhor ou se seu objetivo consiste em expor o nosso Admirável Mundo Novo”, e completa: Sonhar com utopias perdeu seu atrativo. O cotidiano é tão rico em fantasias que sonhar com um mundo diferente, além daquele que existe, não é mais necessário. Assim como Steven Spielberg, os arquitetos precisam criar novas representações que possam ser apreciadas por todos (idem).
Figura 22 – Pig City (MVRDV – 2000)24
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Fonte: http://www.mvrdv.nl/projects/181_pig_city/
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2.3. NATURALIZAÇÃO PROJETIVA Para a naturalização projetiva o que está em jogo é a operacionalidade e o desempenho da materialidade da arquitetura. Segundo Roemer van Toorn, ao contrário da mise-en-scène projetiva; que se concentra em projetar significados sobre as coisas; a naturalização projetiva entende que as coisas possuem um significado inerente, que podem ser sensíveis ou ativos, e exploram a transmissão desse significado na tentativa de desencadear processor no olhar e no corpo do usuário. Enquanto a mise-en-scène projetiva se ocupa em projetar roteiros acerca da sociedade, da política, do poder, da globalização etc. sobre os objetos, criando cenários brutos e inacabados que dependam da atuação do usuário; a naturalização projetiva cria uma arquitetura fluida e polida que possui, segundo van Toorn, uma “superfuncionalidade que gira em torno do movimento da auto-organização e da interatividade” (2013, p. 234). Escritórios de arquitetura que desenvolvem uma prática alinhada à naturalização projetiva, como o NOX Architekten e o FOA, não estão interessados na tecnologia apenas como um instrumento de regulação funcional e de conforto, mas sim como uma força desestabilizadora capaz de proporcionar uma variedade de potencialidade e acontecimentos inesperados. A naturalização projetiva alimenta um envolvimento com os avanços tecnológicos da biologia, da geologia, criando uma arquitetura não convencional que, de acordo com Roemer van Toorn, abrange varias formas e escolas; possuindo como elemento comum a semelhança formal com estruturas, processos e formas biológicas. Em uma apresentação sobre a filosofia de projeto do NOX, o arquiteto Lars Spuybroek explica o trabalho do escritório: Com a fusão fluida da pele e do ambiente, do corpo e do espaço, do objeto e da velocidade, também fundiremos o plano e o volume, o piso e a divisória, a superfície e a interface, abandonando a visão mecanicista do corpo em favor de uma versão mais plástica, líquida e tátil, em que haja uma síntese entre o olhar e a ação.25
Retirado do site: http://www.archilab.org/public/1999/artistes/noxa01en.htm. Acessado em: 01/07/2014. 25
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A naturalização projetiva aprendeu com os processos biológicos, geológicos e históricos que os processos mutáveis criam sistemas muito mais complexos, inteligentes e refinados do que as ideias prontas e estáticas jamais poderiam fazer. Assim como acontece na natureza, as propriedades das edificações concebidas sob essa prática projetiva se alteram de acordo com as condições existentes. Roemer van Toorn explica que uma fachada, por exemplo, não é meramente uma casca, mas sim “uma pele com determinada espessura, que muda em resposta às atividades internas, à luz, à temperatura e às vezes até às emoções” (2013, p. 233). Esses conceitos se tornam claros em projetos como a D-Tower, na cidade de Doetinchem, na Holanda, projetada pelo NOX. O projeto se trata de uma torre de doze metros de altura em formato de bolha que fica conectada a um site na internet onde os habitantes podem responder a um questionário sobre seus sentimentos do dia: felicidade, amor, ódio, medo. Os resultados são transformados graficamente em paisagens no site e determinam as cores das luzes que iluminam a torre; azul, vermelho, verde e amarelo; fazendo com que os cidadãos da cidade saibam qual emoção foi mais intensamente sentida pelos habitantes da cidade naquele dia.
Figura 23 – D-Tower (NOX Architekten – 2003)26
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Fonte: http://openbuildings.com/buildings/d-tower-profile-2269
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Roemer van Toorn explica que os projetos que seguem essa ideia de naturalização projetiva funcionam como corpos sem cabeça, seguindo uma complexa lógica biomecânica. Os dados mensuráveis coletados, aliado com um conjunto tecnológico, concebe um sofisticado mecanismo que encaminha os diversos fluxos de pessoas, informações, carros etc. “como glóbulos vermelhos de sangue através e em torno do organismo do edifício” (2013, p. 234). Ao contrário de projetos como os do MVRDV, na naturalização projetiva o projeto se esquiva de propagar um significado cultural por meio de uma impressão impactante. Essa fluidez operacional e livre de obstáculos pode ser vista em projetos como o Terminal de Yokohama, projetado pelo FOA, no Japão. Durante a Bienal de Veneza, quando o projeto foi apresentado, os arquitetos do FOA exibiram imagens de um escaneamento corporal juntamente com o projeto de um dos terminais, sugerindo que o raciocínio projetual se assemelharia a lógica do corpo. As “manipulações genéticas” de dados e tecnologias feitas pela naturalização projetiva resulta em formas que causam certo estranhamento; o que ajuda a evitar, segundo van Toorn, um julgamento preliminar do projeto como bom ou mau, bonito ou feio. Roemer van Toorn nos diz que esse julgamento é adiado: O edifício rejeita o consumo imediato sob a imagem do símbolo ou mito; antes, convida as pessoas a usarem-no, a interpretá-lo, a travar relações, a penetrar em um fluxo de estímulos organizados pela matéria. Mais do que nunca um edifício é capaz [...] de se comportar como um organismo (2013, p. 234).
A naturalização projetiva não oferece uma representação favorável ou contrária a qualquer coisa, não oferece uma capacidade reflexiva. A inteligência de projeto27 dessa prática está justamente em estimular processos já abertos, de modo que possam funcionar automaticamente, conforme os fluxos impostos pelo status quo. Rem Koolhaas critica esse posicionamento puramente instrumental e estritamente operacional do grupo de arquitetos ligados às práticas da naturalização projetiva, afirmando que esse grupo de arquitetos possui uma pretensiosa postura
Conceito desenvolvido por Michael Speaks, que acredita que a “inteligência de projeto” substituiu a teoria como conceito norteador da arquitetura no início do século XXI. Para Michael Speaks, a teoria perdeu o contato com a prática e não tem mais nenhuma consequência para ela.
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antissemântica em um momento em que a semiótica se encontra mais vitoriosa do que nunca. Para Koolhaas, “a crítica semântica talvez seja mais útil do que jamais foi” (KOOLHAAS apud VAN TOORN. 2013. p. 240). A naturalização projetiva manipula as questões da realidade de forma localizada e precisa, através de uma perspectiva maquínica; fazendo com que, através de avançadas soluções construtivas, os fluxos dos consensos vigentes percorram suas trajetórias estabelecidas, em um sistema auto-organizativo. A naturalização projetiva se concentra em abstrações orgânicas e se esquece de levar em conta que a apropriação de um projeto depende das relações criadas entre determinado comportamento social e as narrativas sobre os usos e as objetividades do projeto. Para Roemer van Toorn: As naturalizações projetivas tendem a deixar de lado o fato de que são nossos atos e comportamento social, e não nossos corpos biológicos, que constituem nossas identidades (2013, p. 235).
Figura 24 – Terminal Internacional de Yokohama (FOA – 2002)28
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Fonte: https://www.flickr.com/search/?tags=yokohamaportterminal&sort=relevance
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3. RUMO A QUE?
É bastante clara a tentativa de superação de uma geração anterior por parte dessa nova geração de arquitetos e críticos; que se esforçam em identificar e combater o que eles chamam de arquitetura crítica – seguido de um ataque à própria teoria. Parte dessa nova geração defende a implementação de uma prática pós-crítica, ou projetiva, que, segundo Reinhold Martin (2013), se compromete com formas de produção arquitetônica de fundo afetivo, sem se envolver com a oposição, com a resistência ou com a crítica; sendo, portanto, uma prática arquitetônica não utópica. No entanto, George Baird, em um artigo para a Harvard Design Magazine (2004), nos diz que, mesmo com toda a diligência, esses arquitetos falham em produzir um projeto afirmativo e efetivo, se contentando com adjetivos rasos como relaxado, tranquilo, cool29. Baird, então, questiona sobre o que esses arquitetos esperam produzir como forma de discurso; a partir de quais critérios a geração dos póscríticos espera ser julgada, além da simples acomodação e aceitação às normas sociais, econômicas e culturais vigentes? Roemer van Toorn entende que a discussão não é se a arquitetura deve ou não participar do capitalismo tardio, afinal isso já é um fato. A questão é a maneira com que as relações com o mercado são desenvolvidas. Ao invés de tentarmos adivinhar o futuro, devemos ficar atentos ao desconhecido à espreita. Roemer van Toorn (2013) defende um rompimento com o criticismo, a paixão pela realidade e um retorno as possibilidade projetivas da arquitetura, enquanto disciplina, para que se possa aproveitar plenamente as possibilidades intrínsecas à modernidade reflexiva. Entretanto, as questões éticas, políticas e culturais não podem ser gerenciadas apenas em termos pragmáticos, técnicos ou estéticos. As práticas projetivas concebem espaços arquitetônicos a partir dos substratos usados pelos sistemas dominantes; estando, dessa maneira, limitada a criar uma arquitetura que atenda, principalmente, as necessidades de conforto de uma classe 29
Frio/Descolado
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média global. Segundo van Toorn, a classe média sofre do medo de enfrentar o desconhecido e está preocupada em manter os processos que asseguram seus privilégios, sua identidade, seus direito de poder, seu individualismo, consumo, luxo, diversão, e toda a infraestrutura que dá o suporte necessário para que essa dinâmica ocorra. Esse despótico sistema da diferença e dos direitos individuais menospreza a noção de que é fundamental levar em conta os interesses coletivos da população mundial. Roemer van Toorn defende que nós devemos recuperar o paradigma da igualdade e da responsabilidade supraindividual, em contraposição à construção desse paradigma da diferença, ingenuamente acatado pelas práticas projetivas. As práticas projetivas partem do princípio de que a arquitetura é uma plataforma aberta e hipoteticamente neutra ao se relacionar com o mercado; correndo o risco de ser vítima da voracidade cega da economia global, da ditadura estética, da tecnologia e do pragmatismo ao criar um subterfúgio projetual sem consciência e ideais políticos, nem consciência sócio-histórica. O arquiteto retrocede e limita sua prática aos elementos específicos à disciplina, sem força para assumir as responsabilidades e guiar as diretrizes projetuais em determinada direção; deixando as consequências políticas e éticas do projeto livres para serem reguladas pelo mercado. De acordo com Roemer van Toorn, sob esse ponto de vista, as práticas arquitetônicas projetivas são formalistas. O poder de testar e desenvolver realidades ao longo do processo de projeto é uma das grandes qualidades das práticas projetivas, mas essas práticas deixam de perceber que a incorporação dos sonhos utópicos no exercício projetual são fundamentais para se criar uma dimensão que vá além do status quo. Segundo Roemer van Toorn (2013, p. 236): É a interação entre o sonho da utopia e a realidade que poderia ajudar a prática projetiva a desenvolver uma nova perspectiva social. A prática projetiva deveria ceder ao fascínio de encontrar um modo de influenciar o capitalismo rumo à democracia.
São os sonhos utópicos que nos oferecem parâmetros de referência para as ações políticas e nos ajudam a realizar diagnósticos isentos sobre a realidade presente. É esse distanciamento da realidade extrema que nos ajuda a perceber que a supressão de diretrizes políticas e sociais cria ela mesma uma diretriz política e social; é o 41
distanciamento provocado pelas utopias que nos faz identificar nossos julgamentos de valor e preconceitos implícitos e inevitáveis. No começo dos anos 2000, parece haver uma linha tênue entre o pós-criticismo, o pragmatismo e certo relativismo acrítico, que direciona os arquitetos a uma aceitação arbitrária das regras da economia global vigente. Em um artigo publicado em 2004, o filósofo Slavoj Žižek, um marxista não ortodoxo, conjura a dramática imagem de um “yuppie lendo Deleuze”; a partir da qual propõe discutir como a máquina capitalista contemporânea absorve rapidamente todo discurso crítico e de vanguarda, disfarçando-o sob um espectro de pluralidade e diferença. Žižek afirma enxergar certas afinidades entre as máquinas desejantes deleuzianas, produtoras de afeto, e os dispositivos de desejos exemplificados pela publicidade. A imagem reducionista de um “yuppie lendo Deleuze” é bastante contundente para ilustrar a abordagem dessa nova geração pós-crítica – ou pós-teórica – justificada na dificuldade operativa de transpor para a prática a complexidade da teoria. Para Reinhold Martin, a demonstração mais clara da eficácia política da arquitetura contemporânea e teoricamente informada foi o debate gerado em torno do futuro do terreno do antigo World Trade Center. Quatro meses após os atentados de 11 de Setembro, em janeiro de 2002, o galerista Max Protetch organiza uma exposição em Nova York para apresentar ao público 56 propostas para o local onde ficava o World Trade Center. Segundo Reinhold Martin, existia ali um esforço bruto de explorar a oportunidade única de realizar uma visão heroica – “pós-Saddam e pós-moderna?” (2013) – mas que estava em paralelismo com “a crescente bazófia com a política externa americana” (2013). O projeto apresentado pelo Foreign Office Architects (FOA), uma torre ondulante, foi acompanho do comentário: Nem pensemos em recordar... Para quê? Temos um excelente terreno em uma excelente cidade, e a oportunidade de voltar a ter o edifício mais alto do mundo em Nova York. Os prédios tinham 1,3 milhão de metros quadrados de espaço de trabalho, e isso é um bom tamanho para recuperar para Nova York o que a cidade merece. (FOA apud MARTIN. 2013. p. 269)
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Para Reinhold Martin, essa amnésia voluntária não se refere apenas a uma rejeição aos imperativos da memorialização, mas também a uma cegueira deliberada em relação às condições históricas das quais o 11 de Setembro faz parte. O argumento de fim da história, em favor da construção de um novo tipo histórico ou um novo tipo de edifício, explora de maneira exemplarmente pós-critica a ideia neoliberal relativa às novas oportunidades oferecidas pela globalização técnicocorporativa. De acordo com Martin, o compromisso dos profissionais que atuam nessa nova ordem mundial se limita em favorecer o surgimento do novo, sem analisar ou considerar as narrativas históricas sobredeterminadas. Uma postura semelhante pode ser vista no projeto de Greg Lynn, um protótipo de arranha-céu defensável. Lynn baseia seu projeto em diretrizes adquiridas empiricamente sobre a eliminação das fronteiras entre o conflito militar global e a vida cotidiana. Contudo, ao invés de rejeitar e resistir a essa realidade, o projeto naturaliza essa situação de guerra total; para Lynn, é inevitável a transferência do pensamento militar para a vida cotidiana. Mas Reinhold Martin considera o coletivo United Architects a “versão oficial da imagem hilária de Žižek sobre um ‘yuppie lendo Deleuze’” (2013. p. 270). Os conceitos norteadores do coletivo começam a ficar visíveis logo no nome adotado, uma arguta fusão entre Estados Unidos e as Nações Unidas; um híbrido que se dissolve e se transforma em uma multinacional. Em cumprimento ao tema proposto de construção de uma unidade na diversidade, o coletivo transforma em retórica o avanço solene – fúnebre? – e apresenta um projeto com “Torres Unidas”, em uma “visão audaciosa do futuro”, empregada a “recuperar o orgulho local”. O projeto é composto por um único edifício contínuo, diferenciado em cinco torres interligadas, se transformando em um monumento à diversidade corporativa, internalizando a concepção, já naturalizada, de expansão do capitalismo global, sob a forma de um inexorável desdobramento evolucionário sobre o terreno, no que Martin chama de “diferença dentro da continuidade” (2013. p. 270), e completa: Ao reagir docilmente ao apelo por uma “visão” arquitetônica, enquanto permanecem inteiramente cegos em relação ao pacote que produzem, esses arquitetos, e outros, se colocam numa
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posição de complacência dócil diante dos imperativos de uma nação em guerra. (2013. p. 271)
Reinhold Martin afirma que o projeto transmite a impressão inconsciente de uma família de arranha-céus dando as mãos diante dos gêmeos ausentes, desencadeando uma dinâmica espontânea paralela à que organizou a militarização subsequente, quando os delírios da política americana transforaram Osama em Saddam. Para Martin: Nessa arquitetura que misturava espiritualidade e marketing, oferecida pelos United Architects, prognosticava-se afetiva e esteticamente a violenta ironia da alegação de que os Estados Unidos estavam agindo moralmente no lugar das Nações Unidas (para se tornarem, de fato, as Nações Unidas), ao invadir o Iraque. (2013. p. 271)
Os arquitetos pós-críticos se revelaram demasiadamente inclinados a promover os desdobramentos políticos de uma guerra virtual que se transformaria em realidade, ao acatarem com tanto ardor as circunstâncias do progresso cultural e arquitetônico pelo seu valor em si. Segundo Reinhold Martin, essa não é apenas uma “reprise sórdida do que Walter Benjamin já denominara estetização da política. Foi a estética como política” (2013. p. 272). Dessa forma, Reinhold Martin defende a retomada das utopias como paradigma conceitual para a prática arquitetônica, mas não como uma invocação de um mundo perfeito, uma totalidade impossível, mas como uma interpretação literal das origens etimológicas do não lugar; que não é nenhum lugar por ser idealizado ou inacessível, mas sim porque, em um modelo simétrico perfeitamente espelhado, também é todo lugar. Jacques Derrida; filósofo criador do pensamento desconstrutivista e grande influenciador da obra de Peter Eisenman; considera a utopia como um espectro, um fantasma que incorpora outros mundos possíveis na realidade cotidiana, e não um sonho de outros mundos. Reinhold Martin acredita que o pós-criticismo – ou realismo – trabalha sistematicamente para exorcizar os fantasmas da utopia, como pode ser percebido nos projetos do concurso para o terreno do antigo World Trade 44
Center. Mas Martin nos diz que, como qualquer outro fantasma, a utopia jamais morre completamente: ela sempre volta para assombrar os projetos arquitetônicos já estabelecidos e os que ainda estão por vir. Martin aspira por um realismo utópico, crítico e mundano, que ocupe a cidade global ao invés da aldeia global, que transgrida os códigos da disciplina ao mesmo tempo em que os defenda; que não seja utópico por ter sonhos impossíveis, mas sim porque “reconhece que a própria realidade é – precisamente – um sonho demasiadamente real inculcado por aqueles que preferem aceitar um status quo destrutivo e opressor” (2013. p. 274). Nas palavras de Roemer van Toorn: Se
sonhássemos
com
novas
formas
de
democracia,
desenvolveríamos perspectivas para nos livrar do atual tédio político, da atividade cega do mercado e da incessante contemplação dos nossos próprios umbigos. (2013. p. 236)
Figura 25 – Novo World Trade Center (United Architects – 2002)30
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Fonte: http://www.moma.org/modernteachers/files/1610244ca3115e997a.jpg
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CONCLUSÃO
Ao longo desse trabalho temos uma visão geral dos conceitos que delineiam as práticas arquitetônicas críticas e projetivas, construídos através de aproximações e digressões interdisciplinares. Podemos perceber que o pragmatismo extremo e a paixão pela realidade, que estão no cerne das práticas projetivas, acabaram por desenvolver uma prática arquitetônica reacionária e conservadora, mimetizado sob o discurso de uma arquitetura visionária. Na tentativa de criar uma arquitetura sem diretrizes políticas, acaba-se por se fazer uma arquitetura alinhada ao mercado e que impulsiona o poder de um status quo destrutivo e opressor. O repúdio aos sonhos utópicos, praticado pelos pós-críticos, deve ser repensado; porque, somente assim, poderemos começar a repensar os conceitos de democracia e a construir uma realidade menos opressiva. Uma recuperação da utopia é fundamental para que possamos fazer um diagnóstico isento do presente e traçar quadros de referência para as ações políticas para, assim, podermos projetar uma realidade que vá além do status quo.
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