Sacramento: história de uma \"Gibraltar\" portuguesa em frente a Buenos Aires

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Sacramento: história de uma «Gibraltar» portuguesa em frente a Buenos Aires MANUEL DE SOUSA

FULVIUSBSAS, CC-BY-3.0

Durante mais de 250 anos, os Portugueses insistiram em manter uma colónia nas margens do rio da Prata, aproveitando o lucrativo comércio dos couros e o contrabando da prata que afluía do interior do continente sul-americano.

Portugal clamara sempre que o rio da Prata era a fronteira meridional do Brasil. Porém, durante muitos anos, pouco ou nada fizera de concreto para efectivar essa pretensão. Com a unificação das coroas portuguesa e espanhola (1580-1640) foi-se desenvolvendo um intenso comércio – quer legal quer ilegal – entre o rio da Prata e os portos do Brasil, Portugal e África portuguesa. Graças a essa corrente comercial, o

Brasil beneficiou de grandes quantidades de prata vinda de Potosí que, somadas ao extraordinário desenvolvimento da cultura sacarina, explicam o período de euforia económica vivido na colónia até cerca de 1630. Porém, as dificuldades levantadas pelos Espanhóis, bem como a própria redução da produção de metais do Peru, prejudicaram o comércio português com Buenos Aires que cessou quase por completo após a restauração da independência nacional (1640). Entretanto, notícias da descoberta de minas de ouro e de prata na região compreendida entre São Vicente (actual estado de São Paulo) e o rio da Prata originaram uma corrente de povoamento do centro do Brasil em direcção ao sul, fundando-se novas povoações, caso de Paranaguá, Curitiba e Santa Catarina. Em 1675, os limites da recém-criada diocese do Rio de Janeiro, por bula pontifícia, foram definidos como alcançando o rio da Prata. Uma expedição de cinco navios, conduzindo 300 a 400 pessoas, sob o comando do governador do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, parte de Santos, fundeando no Prata

junto à ilha de São Gabriel, no dia 20 de Janeiro de 1680. Em frente a Buenos Aires surge então uma povoação fortificada portuguesa, com o nome de Colónia do Santíssimo Sacramento. Sete meses mais tarde, o governador de Buenos Aires, reunindo um exército de 250 espanhóis e três mil índios, toma de assalto a colónia. Imediatamente, o príncipe regente D. Pedro intimou o Governo espanhol a restituir a praça sob ameaça de guerra, acabando por obter a cedência da Colónia do Sacramento. Não sem a relutância do governador de Buenos Aires que, sob apertada vigilância, procurou impedir o comércio da colónia e forçar a pequena guarnição portuguesa a manter-se encenada na fortaleza, reconstruída e fortalecida. As despesas com a sua conservação eram avultadas, tendo todos os abastecimentos de ser enviados propositadamente do Brasil. Ciente da crítica situação do Sacramento, mas recusando os conselhos que recomendavam o seu abandono, D. Pedro II, agora rei, decidiu transformar a cidadela militar em centro de colonização. O novo governador da praça, Francisco Naper de Lencastre, que durante dez anos esteve à frente dos destinos da povoação do Prata, conseguiu elevar a população para mil habitantes, promovendo sementeira e plantações nas terras férteis dos arredores e organizando caçadas para que aos moradores não mais faltassem o pão e a carne. Mantendo dentro do possível o comércio com Buenos Aires, para obter a tão almejada prata do Peru, deu também início à indústria de carnes salgadas e desenvolveu a dos couros, de tal modo que um documento de 1697 refere que anualmente eram enviados para Portugal quatro a cinco mil couros que rendiam nove a dez mil cruzados. A fim de se evitar a superprodução, em 1703 recomendou-se que os habitantes da colónia se dedicassem mais à agricultura e menos à pecuária. No ano seguinte, durante a Guerra de Sucessão de Espanha, Sacramento foi de novo cercada por um exército de espanhóis e índios guaranis. Após terem resistido durante cinco meses, os portugueses decidiram evacuar a fortaleza. Com o tratado luso-espanhol de Utreque (1715), a Espanha

comprometia-se a restituir o «território e colónia do Sacramento» a Portugal. Porém, a solução do problema só foi aparente. Portugal, com o termo território pretendia abranger toda a região norte do rio da Prata e a leste do rio Uruguai; mas a Espanha adoptou uma interpretação muito mais restrita: o território seria limitado pelo alcance de um tiro disparado da praça (!). Apesar de todas as contendas, a povoação portuguesa vivia o período mais próspero da sua história, facilitado pela relativa tolerância das autoridades espanholas da outra margem do rio. A colónia foi reconstruída e repovoada, tendo sido enviadas sessenta famílias transmontanas às quais foram distribuídas terras, alfaias agrícolas, sementes e animais para a lavoura. Em 1718, a praça contava com cerca de mil e quarenta habitantes, vivendo principalmente em casas térreas. A povoação tinha já vários edifícios públicos: igreja, casa do governador, colégio dos Jesuítas e alfândega. De facto, e apesar dos frequentes incidentes com as autoridades espanholas, os portugueses iam-se espalhando pelos campos uruguaios que se cobriam de pomares, searas, quintas e grandes pastos com centenas de manadas de gado vacuum. Sacramento continuou também a ser um activo centro de contrabando de couros e prata, atraindo ao seu porto numerosos navios portugueses e estrangeiros. No intuito de alargar a ocupação portuguesa, uma expedição militar tenta fixar-se em Montevideu (1723), mas sem êxito. Banda Oriental O grande crescimento populacional de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, resultado da prospecção do metal aurífero, vem criar novos mercados para o gado. Faltavam, no entanto, vias terrestres que ligassem estas regiões aos férteis campos da Banda Oriental (nome pelo qual era conhecida a região que hoje constitui o Uruguai). Em 1727 foram abertos os primeiros caminhos para Curitiba e São Paulo, por onde começaram a transitar milhares de cabeças de gado em direcção a Norte, aumentando assim a importância económica da colónia do

Sacramento que, por esta altura, contava com dois mil habitantes. Por outro lado, durante o século XVIII, a utilização dos couros foi tão extensa e diversificada que vários autores falam mesmo de uma civilização do couro nas regiões do Sul. Do género de vida que lhe estava associado resultou um tipo social característico: o gaúcho. A toda esta questão está a colónia do Sacramento intimamente ligada. Porém, em 1735, um incidente diplomático em Madrid serviu de pretexto ao levantamento de um cerco à colónia portuguesa, que resistiu durante vinte e dois meses, graças a reforços recebidos do Brasil. No Inverno de 1736, a situação chegou a tal ponto que a fome — nas palavras de um colono — «nos obrigou, a comer cavalos, cães, gatos e outros imundos animais que procurava a necessidade». Economicamente este cerco foi desastroso para a colónia.

das casas da povoação, ordenando a inutilização do porto pelo afundamento de barcos carregados de pedras. No mesmo ano, pelo tratado de Santo Ildefonso, os portugueses foram obrigados a ceder a sua «Gibraltar» que, com grande persistência, tinham procurado manter durante quase um século. Ainda voltariam a ela pouco antes da independência do Brasil.

O Governo de D. João V, apesar da manutenção do statu quo pelo armistício de Paris do 1737, compreendeu a necessidade de trocar o Sacramento por um equivalente compensador. O célebre tratado de Madrid (1750), anulando o de Tordesilhas, fixava novos limites entre as possessões portuguesas e espanholas na América do Sul. Portugal renunciava às suas pretensões sobre a Banda Oriental em troca do território dos Sete Povos das Missões. No entanto, o Sacramento não chegou a ser entregue. Foi necessária uma grande expedição espanhola, comandada pelo próprio governador de Buenos Aires, Don Pedro de Cevallos, para desalojar os portugueses em 1777. Dispondo de fracos meios de defesa, não tardou que a colónia se rendesse. Cevallos logo mandou arrasar as fortificações e a maioria

nome de Estado Cisplatino (1821). O Sacramento, de novo reconstruído, tinha agora oitocentos habitantes e uma guarnição portuguesa de seiscentos homens. Entretanto, nas margens do pequeno rio Ipiranga, D. Pedro declara: «É tempo! Independência ou morte. Estamos separados de Portugal!», pondo fim à ligação do Brasil com a metrópole. No Estado Cisplatino, Lécor adere à independência do Brasil, mantendo as autoridades civis existentes e fomentando o progresso da região. Um viajante inglês, que visitou o Sacramento em 1821, refere que os oficiais portugueses eram muito estimados pela população, tendo muitos deles, como foi o caso do próprio Carlos Lécor, se ligado à sociedade uruguaia. Não admira, por isso, que mesmo depois da independência do Uruguai (1828) a influência portuguesa se tenha continuado

Estado Cisplatino

ROD WADDINGTON, CC-BY-3.0

Partindo do Rio de janeiro, o tenente-general Carlos Frederico Lécor, comandando uma expedição luso-brasileira, ocupou toda a Banda Oriental, após uma luta de quatro anos (1816-1820), pondo fim à situação confusa provocada pelas lutas de independência sul-americanas. Em Montevideu, o Congresso vota a união do Uruguai ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com o

a sentir no folclore, na toponímia e antroponímia e no bilinguismo de alguns departamentos do Norte do País, onde o portunhol é língua corrente. Actualmente com cem mil habitantes, Colonia del Sacramento é uma pacata cidade provinciana, enquadrada por uma suave paisagem arborizada. As ruínas das fortificações portuguesas têm vindo a ser restauradas, bem como o centro histórico, com

o seu bairro velho onde é visível a influência lusa na traça arquitectónica das casas, na utilização da telha portuguesa e na pavimentação das ruas. Colonia del Sacramento reencontra-se com o seu passado, comemorando agora os 310 anos da sua fundação por Manuel Lobo.

Manuel de Sousa “Sacramento: história de uma «Gibraltar» portuguesa em frente a Buenos Aires” in O Primeiro de Janeiro, separata Domingo, 21-01-1990, p. 13.

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