Salvando o Jogo: a relação entre os saves e a memória humana

Share Embed


Descrição do Produto

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

Art & Design Track – Full Papers

Salvando o Jogo: a relação entre os saves e a memória humana Giovanna Bueloni

Evellyn Morgado

Sérgio Nesteriuk

Universidade Anhembi Morumbi, Escola de Artes, Arquitetura, Design e Moda, Brasil

Resumo Este artigo aborda as relações epistemológicas existentes entre o recurso de salvar um game (save) e o funcionamento da memória humana. O objetivo geral é o de pensar em possíveis estratégias de game design capazes de evitar o problema levantado nesta pesquisa: o comportamento do sujeito-jogador conhecido como “save-load” [Saunders e Novack 2012], capaz de diminuir seu engajamento e imersão. Para tanto, foi estruturada uma lógica pautada na indissociabilidade e na mútua transformabilidade entre função, forma e conteúdo de um game, colocando assim em risco o próprio save do jogo para o sujeito-jogador. Eventuais desdobramentos desta pesquisa podem ser aplicados em games com novas mecânicas de jogo e experiências do jogar, assim como no campo dos serious games, como no caso de jogos para pacientes em tratamento de patologias relacionadas aos transtornos da memória humana, atuando seja em suas causas quanto em seus sintomas. Palavras-chave: save, memória humana, sujeitojogador, comportamento “save-load”. Contatos dos Autores: [email protected] [email protected]

[email protected]

1. Introdução Com o lançamento da primeira geração do videogame, a experiência do jogar em si resultou em algumas modificações expressivas dentro do estado de espírito da contemporaneidade [Nesteriuk 2007]. Ainda que muitos jogos em arcades disponibilizados em ambientes públicos fossem idênticos àqueles para consoles domésticos, e que o jogador necessitasse ter as mesmas habilidades para manter o jogo em andamento, acarretando quase sempre em um “final por exaustão” [Murray 2003], o próprio modo de jogar começa a se modificar em função do local em que a partida ocorre – dentro ou fora do ambiente doméstico. Com o passar do tempo e as novas tecnologias disponibilizadas, possibilidades como pausar o jogo e

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

salvá-lo tornam-se duas das características mais evidentes desta diferença. O save nos jogos digitais permite salvar o estado de desenvolvimento do jogo ao longo das fases, o que possibilita quase sempre carregar o jogo posteriormente da parte em que parou de ser jogado. Os diferentes tipos de save existentes podem mudar não apenas o modo com que a progressão é gravada, como também o próprio modo com o qual o jogador vê e pensa o modo de jogar. Como, quando, onde e por que o save afeta a visão de um jogador? Pode isso afetar também a jogabilidade e dificuldade do jogo? Existem diferentes tipos de saves? Nesse artigo será discutida a problemática dos saves nos games com ênfase no comportamento do sujeito-jogador. Será explorado também o que pode ser entendido como um dos principais dilemas dos saves: como usá-los a favor da experiência do jogar, de modo a minimizar a quebra da imersão, isto é, manter o flow (figura 1) no game [Chen 2007]; um jogo desafiador, evitando o uso repetitivo de carregamentos (loads) de saves antigos.

2. Save e o comportamento do sujeitojogador A discussão de como o save afeta o modo com o qual o jogador vai encarar um jogo, já é discutida há algum tempo entre os pesquisadores em games, apesar de um consenso ser difícil de ser encontrado. Segundo Novak [2011], de um lado há um recurso que permite ao jogador maior controle sobre seus saves, mas que afeta gravemente a imersão - como no caso do ”save to slot”, em que o jogador tem que parar ou pausar o jogo e escolher o slot1 em que gostaria de salvar aquele trecho jogado. Do outro, o save que não interfere diretamente na imersão, mas que pode quebrar o controle do jogador de poder voltar para o save anterior e jogar aquela parte específica com outro olhar - como é o caso do “auto-save”.

1

No contexto específico deste artigo, slot se refere ao espaço da memória do computador ou de um periférico, como uma pen drive, em que dados referentes ao save do jogo ficam armazenados podendo ser acessados, carregados, sobrepostos ou apagados (deletados) posteriormente.

618

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

Já para Björk e Holopainen [2004], os games em que o jogador pode escolher o momento que deseja salvar e carregar o jogo encorajam o jogador a experimentar e fazer escolhas diferentes daquelas que provavelmente faria caso não tivesse disponível esse recurso. Por exemplo: antes de tomar uma importante decisão em determinado momento do jogo, o jogador tem a opção de salvá-lo e, caso se não se contente com o resultado posteriormente obtido, voltar naquele mesmo ponto salvo e tomar outra decisão. Já os jogos que dão opções limitadas de save, como save points, fazem com que a tensão seja maior em fazer escolhas baseadas em risco e recompensa. Comparando com este mesmo caso hipotético, o jogador não teria a possibilidade de posteriormente voltar naquele mesmo ponto salvo e tomar outra decisão, o que poderia leválo a refletir mais sobre a escolha ou optar por algo considerado mais sensato, por exemplo. Avaliando os prós e contras dos estilos de save, os games com a capacidade de salvar em qualquer lugar e a qualquer momento criam o comportamento chamado de “save-load” [Saunders e Novack 2012], em que antes de pontos importantes ou decisões estratégicas, o jogador assume uma posição de que “se errar agora, é possível voltar depois e consertar”. Essa é uma reação que pode ser considerada indesejada em muitos casos, pois além de encorajar jogadores a passarem tempo demais em telas de save e carregamento, e não no jogo em si propriamente dito, também podem deixar games que foram designados para serem difíceis, relativamente mais fáceis, muitas vezes quebrando o flow do jogo [Chen 2007].

Figura 1: A Teoria do flow adaptada aos games [Chen 2007] discorre sobre um estado mental de êxtase que é alcançado quando há um equilíbrio entre as habilidades de uma pessoa e o nível do desafio que lhe é exigido. Esse equilíbrio garante que haverá menores ocorrências de ansiedade, que é provocada quando um desafio é muito maior do que a competência, e de tédio, que ocorre quando a competência é muito maior que o desafio. Quando o jogador torna uma tarefa difícil em algo fácil, perde essa sensação de superação e bem estar por ter passado por um objetivo com maior complexidade sem que esse possuísse o desafio esperado.

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

Art & Design Track – Full Papers

Por outro lado, é possível entender que este fenômeno também pode, em alguns casos, tornar estes jogos mais interessantes e potencialmente expansíveis ao permitir ao jogador voltar nesses pontos e explorar o jogo de novas maneiras, ampliando suas próprias experiências por meio daquilo que autores como Wolf [2012] chamam de rejogabilidade2. Apesar das diferentes abordagens sobre este tema, uma mesma questão surge. Por um lado existem os jogos que permitem ao jogador escolher o momento e as circunstâncias desejadas para salvar o jogo. Por outro, os jogos que restringem esta opção, seja por uma limitação da quantidade ou momento exato do save, seja ainda por sequer disponibilizar este recurso ao jogador. Seria então possível pensar em uma espécie de “meio termo”? Isto é: o que propor para manter o flow e, ao mesmo tempo, limitar o controle de quando o jogador poderá parar de jogar sem perder o estado do jogo, restringindo o comportamento save-load? Sirlin [2008] afirma que é possível encontrar esse meio termo por meio de uma falsa dicotomia. Para ilustrar sua ideia, o autor exemplifica a partir do jogo Mario 64 [Nintendo 1996]. Neste jogo não é possível salvar em qualquer ponto, mas, mesmo assim, ainda atende a esse requisito em sua essência. O objetivo do jogo é coletar todas as cento e vinte estrelas disponíveis nos finais de cada fase e a cada estrela coletada o jogador tem a opção de “salvar e continuar”.

Figura 2: A imagem ilustra o interior do castelo no jogo Mario 64 [Nintendo 1996], onde cada porta é a entrada para uma nova fase.

2

Apesar de encontrar-se além do escopo deste artigo, vale mencionar que este é um fator buscado por muitos desenvolvedores de jogos por meio de diversos outros recursos além dos saves, como no caso de achievements ou DLCs (Downloadable Contents), por exemplo. Desta forma, busca-se garantir que o jogador passe mais tempo jogando um mesmo jogo, tornando-o mais popular e potencialmente mais lucrativo.

619

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

Art & Design Track – Full Papers

Nesse artigo procura-se explorar justamente o “meio termo” que Sirlin [2008] se refere e conseguiu exemplificar, procurando adicionar uma nova questão estrutural. E se o objetivo principal do jogo fosse justamente salvar o próprio jogo? Como isso afetaria a mecânica de jogo, a jogabilidade, o comportamento, e a própria maneira como o sujeito-jogador considera e vivencia o jogo como um todo?

3. Tipologia dos saves comportamento “save-load”

e

o

O save é essencialmente um recurso de jogo, assim como também o são pause, interfaces, controles e regras. Criado como uma das formas de possibilitar o desenvolvimento de narrativas mais elaboradas e extensas nos games, o save vem evoluindo o seu modo de ser, ampliando sua tipologia e dinâmicas de aplicação. Segundo os autores consultados nesta pesquisa [Novak, Björk e Holopainen, Rabin] é possível pensar em uma tipologia de saves, que podem ser classificados nas seguintes categorias: 1. Password: o jogador consegue guardar a fase/tela em que está e voltar a jogá-la com o uso de uma senha especifica fornecido pelo próprio jogo; 2. Auto-Save: o jogo salva seu estado atual sem que o jogador precise dar um comando específico para tal, independentemente de sua vontade; 3. Save Limitado: o jogo fornece ao jogador um controle sobre quando ele irá salvar o jogo, porém com um número limitado de vezes e, às vezes, lugares em que pode executar esta ação; 4. CheckPoint: o jogo oferece determinados objetos ou áreas específicas em que são efetuados os saves, não permitindo, portanto, salvar o jogo de outra maneira; 5. Save com Custo: o jogador sabe onde e como poderá guardar seu desenvolvimento no jogo, porém é preciso correr alguns riscos, como, por exemplo, passar por um lugar perigoso ou difícil de sobreviver para ter acesso a tal recurso; 6. Sem Save: em que não há possibilidade do jogador guardar o estado do jogo. Neste caso, a rejogabilidade está condicionada a voltar sempre às mesmas condições iniciais preestabelecidas pelo jogo; 7. Save no final de fase: o jogador poderá ter seu jogo salvo apenas ao final de cada fase predeterminada, não podendo guardar seus dados em nenhuma outra parte ou momento do jogo;

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

8. Save and Exit: situação em que o jogador somente poderá guardar o estado do jogo quando parar de jogar uma partida ou sessão; 9. Save Anywhere: o jogador tem a opção de salvar onde e quando quiser, normalmente com uma quantidade ampla de slots para salvar os diferentes momentos e estados do jogo; Ainda de acordo com os autores consultados, vale observar que estes tipos de saves não são necessariamente excludentes um dos outros, isto é, game designers podem combinar estes tipos entre si criando novas maneiras de salvar o estado do jogo de acordo com as demandas e objetivos de seu projeto e/ou resultados de testes com usuários. A hipótese aqui proposta é a de que a maior parte dos tipos acima descritos facilita e estimula o comportamento “save-load”, que, como exposto anteriormente, pode causar a acomodação do jogador em relação a sua motivação e ao seu engajamento com o jogo – comprometendo assim a própria experiência do jogar. A ferramenta que em princípio era usada de maneira limitada e de forma ínfima, como uma necessidade primária de sair do jogo e retomá-lo posteriormente, começou a ter outras aplicações, podendo, em alguns casos, até mesmo ser considerada uma espécie de trapaça ou “apelação” – para utilizar um jargão comum aos gamers. Os jogadores pararam de usar esse recurso somente em último caso, passando a usá-lo com tal frequência que não mais se importavam com o próprio estado do jogo, pois conseguiriam voltar sem custos ou esforços para determinadas partes e/ou momentos desejados – eventualmente limitando seu potencial imersivo. Sabendo que terá a vantagem de tentativas infindáveis, diferentemente daquilo que costuma acontecer com sua própria vida cotidiana além do game, o sujeito-jogador não se importa se irá perder o jogo, se irá perder ou não um item importante, ou se não conseguirá superar um obstáculo mais difícil – já que poderá sempre ter uma nova chance em uma espécie de “bônus sem ônus”. Isso pode limitar o jogador a criar a mesma conexão que ele teria com o jogo se não houvesse o salvamento, se o número de saves possíveis fosse reduzido, ou até mesmo em um game em que esses saves façam parte efetiva da mecânica de jogo. Saunders e Novak [2012] consideram o comportamento “save-load” indesejável, pois encoraja jogadores a passar um bom tempo assistindo a telas de save e load, além de diminuir a dificuldade intencional do jogo, trazendo à tona o argumento de deixar os jogos mais fáceis e menos interessantes para não precisarem do recurso de salvar a qualquer momento.

620

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

Neste sentido, Mattar [2014] chama a atenção para o aspecto “hard fun” atribuído ao fato dos games poderem ser ao mesmo tempo difíceis e divertidos – isto é, a diversão não elimina necessariamente a dificuldade nem vice-versa. Pelo contrário, funciona muitas vezes como um dos principais elementos motivadores para um jogador, favorecendo sua predisposição em jogar e consequentemente sua imersão.

4. Incorporando o save de maneira estratégica à dinâmica do jogo Para se pensar em um modelo de jogo que minimize ou erradique a acomodação que o uso abusivo dos saves pode causar nos jogadores, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio para sua aplicação, possibilitando que o jogador tenha também a liberdade de salvar o seu progresso quando necessário. O jogador deve se manter atento ao seu save, ao invés de ignorálo ou usá-lo em demasia, tornando a experiência do game mais fluida e, ao mesmo tempo, mais desafiante. O princípio geral dos saves atualmente pode ser visto como algo que cumpre a sua função primária permitir que o jogador salve o seu progresso no jogo e pare de jogar quando quiser sem ter que se preocupar com esta questão ao retomar o jogo posteriormente, ainda que esteja em um estado físico e mental diferente daquele quando parou de jogar. O que chama aqui a atenção é a lacuna que os jogadores encontraram nesse recurso de jogo e como começaram a se utilizar dela: salvar o jogo para não perder seu progresso e, ao mesmo tempo, apostar sem quaisquer consequências no desenvolvimento seguinte. Se o jogador não gostar do resultado, diferentemente daquilo que ocorre na vida em sociedade, pode simplesmente voltar para o último local salvo e apagar o resultado indesejado. Enquanto os jogadores normalmente se utilizam de lacunas encontradas em qualquer aspecto do jogo como uma forma de corrupção do mesmo, o designer deve buscar minimizar ou ao menos não deixar estas brechas aparentes, impedindo assim um comportamento considerado indesejável diante das propostas iniciais de um jogo – ou então, em outra atitude, mudar o conceito e a essência do próprio jogo, incorporando tais vicissitudes. Destarte, ao invés de se pensar em uma metodologia iterativa baseada na resolução de problemas a partir da observação do comportamento do jogador e testes com usuários, é possível propor como estratégia de game design a incorporação desta problemática à própria dinâmica do jogo em si. Em outras palavras, uma forma possível para se pensar a indissociabilidade e a mútua transformabilidade entre função, forma e conteúdo de um game.

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

Art & Design Track – Full Papers

Pensando em primeiro lugar na funcionalidade de um game que tivesse como objetivo justamente salvar o próprio jogo, deparamos com um segundo problema ainda no campo conceitual: como fazer com que salvar o jogo seja um objetivo coerente em relação aos seus aspectos formais, retóricos e estéticos? Afinal, os saves foram criados e aperfeiçoados com o propósito de ser apenas um recurso em si, algo que os jogadores algumas vezes sequer percebessem, como no caso dos auto-saves. Transformar um recurso de jogo em um objetivo primário é um desafio para a concepção e a implementação de um game, e para tanto seria necessário por algo em risco para o jogador, deslocando ou ampliando a definição do termo para a própria experiência do sujeito-jogador, isto é, para além de um viés pautado apenas pelos suportes tecnológicos disponíveis. A resposta encontrada para esta questão começou a ser trilhada, portanto, ao buscar relacionar os saves com a memória humana, ou mais especificamente, com os problemas da memória e algumas das patologias a ela associadas.

5. Memória humana: características, patologias e possíveis relações com os games Memória é uma função que permite aos seres vivos de uma maneira geral se beneficiarem de experiências passadas para resolver problemas e entender situações no presente. Ela proporciona diversas habilidades, desde o reflexo condicionado pela memória muscular até lembranças individuais que possibilitam a utilização de regras para a antecipação de eventos. Essa diversidade de funções se baseia no tripé aquisição, armazenamento e emprego das informações [Jaffard 2005]. Segundo Squire [1987], o conceito de armazenamento da memória humana é composto basicamente por três partes, de acordo com o intervalo de tempo entre o evento, a sensação ou algo qualquer ocorrido e sua evocação: a memória imediata (funcional), a memória de curto período (recente), e a memória de longo período (remota). Entretanto, os termos se baseiam muito mais em regras operatórias de cada sistema - partes de um todo - do que na divisão específica de sistemas separados entre si. A memória imediata (funcional) pode ser definida pela memória de tarefas que um sujeito executa quase que automaticamente, isto é, sem precisar parar e pensar mais detalhadamente sobre o que ele está fazendo para executá-las. Ela é a memória utilizada para tarefas funcionais hic et nunc (aqui e agora). Já a memória de curto período pode ser definida pela memória que guarda os fatos recentes, podendo armazenar acontecimentos que ocorreram até no

621

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

máximo algumas horas antes. É a memória utilizada para se lembrar de qual foi sua ultima refeição naquele dia, por exemplo. Por fim, a memória de longo período pode ser definida como aquela que guarda todos os acontecimentos de sua vida, mas mantém somente alguns acontecimentos marcantes conforme o tempo passa. É a memória que permite um sujeito lembrar que ele esteve no parque no fim de semana, algo que o sujeito ainda se recorda, pois a consolidação dessa memória foi recente, e que também permite lembrar o nascimento de seu primeiro filho há mais tempo - um acontecimento marcante, fazendo com que sua consolidação seja duradoura. Não é, nem poderia ser, esgotar todas as abordagens e perspectivas existentes nos estudos da memória humana e suas patologias neste artigo. Sob um olhar integrado é possível pensar que qualquer conhecimento mais elaborado sobre esta questão implicaria em uma abordagem inter e transdisciplinar entre áreas do saber por si só absolutamente amplas e complexas – sem mencionar as futuras descobertas e considerações científicas que venham a ocorrer. De toda forma, serão estabelecidas algumas relações possíveis entre as três partes da memória humana elencadas por Squire [1987] e, em um primeiro momento, a memória de um dispositivo computacional, estabelecendo uma breve analogia entre a memória do sujeito-jogador e a memória responsável pelo estado de jogo. O primeiro tipo de memória humana, a memória imediata, poderia ser comparado às memórias RAM e ROM de um dispositivo computacional, pois assim como a memória imediata se refere às ações no presente do sujeito, essas memórias de um computador são o que permitem que o sistema realize várias tarefas sem travar3. O segundo tipo, a memória de curto prazo, pode ser comparada ao disco rígido (HD) principal, em que estão todos os programas que são utilizados com mais frequência. Nessa analogia, os programas mais utilizados podem ser comparados a acontecimentos recorrentes na vida do sujeito, como uma rotina matinal que muitas vezes pode diferenciar em pequenos detalhes, mas é basicamente a mesma – isto

3 As memórias de acesso aleatório (do inglês Random Acess Memory) e memória somente de leitura (do inglês Read Only Memory) são tipos de memórias utilizadas como memórias primárias em sistemas eletrônicos digitais. Entretanto, enquanto a memória RAM pode ser modificada, a memória ROM é permanente.

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

Art & Design Track – Full Papers

é, ao mesmo tempo em que se renova, o cotidiano também se repete4. Já o terceiro tipo, a memória de longo prazo, pode ser comparado ao HD secundário, o depósito em que o usuário normalmente guarda todos os arquivos que criou, baixou ou copiou. Esses arquivos seriam as memórias que o sujeito carrega consigo e que estão armazenadas em algum lugar do seu cérebro, mas que podem eventualmente ser esquecidas. A diferença aqui é que, enquanto o usuário do computador pode facilmente redescobrir os arquivos guardados, muitas vezes é preciso de tratamentos para recuperação de memórias suprimidas, nem sempre eficazes. Os problemas que assolam a memória humana podem afetar qualquer um dos tipos de memória, como a amnésia que afeta as memórias de curto e longo período, bloqueando a consolidação da memória, e a perda de memória recente que, apesar do nome, atua nas memórias imediata e recente [Squire 1987]. As duas patologias ocorrem por falta ou por falha na consolidação da memória, que pode ser definida pelo processo de transferência dos acontecimentos entre as memórias imediatas e as de longo prazo [Eichenbaum 2002]. Tarassenko, Kenward e Morris [2005] explicam que, em linhas gerais, os amnésicos se esquecem de eventos que ocorreram (afetando as memórias de curto e longo prazo), mas mantém seu entendimento do mundo e da linguagem (conservando neste caso apenas a memória funcional). Os autores citam o caso de um paciente amnésico denominado H.M., que também foi estudado por Squire [1987], que descreve sua condição de ser amnésico como a de estar continuamente “acordando de um sonho”. Procurando estabelecer uma possível relação entre os problemas de memória e o contexto dos saves anteriormente discutido neste artigo, foi pensado em tentar estabelecer uma forma capaz de colocar em risco o próprio save para o jogador. Trabalhando com a hipótese de que uma personagem com amnésia poderia perder o save justamente por não se lembrar pelo que passou durante o período jogado, é possível imaginar em como trabalhar com a memória da personagem simultaneamente com a memória do próprio sujeitojogador. Se a personagem esquece-se de algum lugar, um método para brincar com a memória espacial do

4

Disco rígido (do inglês Hard Drive) é o componente do computador em que são armazenados os dados. No caso de um dispositivo computacional com HD principal e um secundário, o principal é o de HD de fácil acesso, muitas vezes mais rápido que o secundário, mas, em contrapartida, com menos espaço.

622

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

sujeito-jogador seria, por exemplo, fazê-lo controlar a personagem de volta a um lugar específico sem o auxílio de um mapa ou qualquer recurso disponibilizado dentro do jogo, tendo que refazer o caminho a partir de suas próprias lembranças ou então o estimulando a adotar estratégias que extrapolam às dinâmicas originalmente pensadas para o jogo – tal qual o novelo de lã usado por Teseu no labirinto de Creta.

6. Mecânicas de jogo baseadas em saves e a indissociabilidade funçãoforma-conteúdo Retomando a problemática acerca do comportamento save-load, a hipótese de colocar o save como objetivo primário do jogo vem novamente à tona. Se os jogadores abusam do save e o utilizam de maneira indevida, colocando-o como um objetivo primário, haveriam limitações de onde, como e quando salvar um jogo. O problema principal é que isso quebraria a liberdade dos jogadores de parar de jogar no momento em que desejar sem perder sua progressão no jogo. Esta questão poderia ser mais bem resolvida pensando em mecânicas de jogo bem estruturadas e não apenas abordando-a como enredo ou um pano de fundo do jogo. Se o game designer desenvolver uma mecânica em que o objetivo de salvar seja bem distribuído e balanceado, o jogador poderá sair do jogo quando quiser, sem perder a progressão já adquirida nem apelar à corrupção do comportamento save-load. Tal mecânica pode ser pensada em contextos específicos nos quais o jogador precisa e pode salvar o jogo somente em determinados períodos, correndo o risco de perder o progresso conquistado e os saves anteriores se o novo save não ocorrer. Ao salvar o jogo como uma forma ativa de progressão, o jogador não tem como abusar desse recurso, pois além de ser impedido pelo próprio jogo, não faria diferença para o próprio contexto de sua progressão. O jogador tentaria salvar o jogo fora do momento em que lhe é pedido, mas justamente por não estar em um momento em que o save é necessário a ação de salvar o jogo se tornaria inútil, já que o jogo reconhece que ali não há progressão para ser salva e portanto, impediria o save de ocorrer. Além disso, poderia ao mesmo tempo ter a liberdade de sair praticamente a qualquer momento do jogo, pois os períodos de save poderiam se manifestar em intervalos de tempo e espaço relativamente próximos. Com essa mecânica, a relação memória-save ficaria mais clara - principalmente quando relacionada a perda dos saves com a amnésia e a recuperação de memórias. Supondo que cada save seja equivalente a uma memória recuperada e a perda de progressão, e

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

Art & Design Track – Full Papers

consequentemente de saves, à amnesia, esta relação fica ainda mais evidente. Assim como no caso de uma pessoa que sofre com amnesia temporária ou reversível, o jogador perde seus progressos e saves (memórias) gradativamente assim que o jogo começa (como se o início do jogo fosse o episódio em que a amnésia começou a se manifestar) e ganha seus progressos de volta gradativamente (memórias recuperadas). Evidentemente, é preciso considerar um contexto narrativo coerente capaz de favorecer a indissociabilidade entre função, forma e conteúdo proposta. Desdobramentos desta pesquisa também poderiam ser aplicados com propósitos além da inovação no campo majoritário do entretenimento por meio do desenvolvimento de games com novas mecânicas de jogo e experiências do jogar. Um dos campos em que é possível pensar desdobramentos desta pesquisa é o dos chamados serious games, com o desenvolvimento, por exemplo, de games voltados a grupos de risco e pacientes em tratamento de problemas relacionados aos transtornos da memória, podendo atuar tanto em suas causas como em seus sintomas.

7. Considerações Finais Por meio da pesquisa realizada é possível entender que a memória humana é muitas vezes seletiva, imprecisa e não confiável – capaz até mesmo de distorcer ou fabricar realidades paralelas. Cada sujeitojogador, no final das contas, também irá elaborar, em uma relação dicotômica com seu avatar ou personagem controlada na tela, e com suas memórias de curto, médio e longo prazo em relação ao game que está sendo jogado e aos seus referenciais imediatos, seus próprios juízos perceptivos acerca de sua experiência. Com o desenvolvimento da cultura humana surge a vontade, ou provavelmente a necessidade, da criação de técnicas e tecnologias que permitissem o registro de informações por outras maneiras que não se baseassem apenas na memória do homem e na tradição oral. Assim surgiu, provavelmente entre os fenícios, a escrita que permitiu ao homem registrar, armazenar e reproduzir aquilo que estava escrito sem uma interferência mais direta da memória humana. Posteriormente surgiram formas de registro do som e da imagem, como a fotografia, o cinema e as gravações em áudio permitindo a documentação de fatos, obras, enfim, do conhecimento e da cultura humana. No caso dos games, o mesmo ocorre a partir do desenvolvimento, em extensão e profundidade, dos jogos que passaram a envolver, principalmente, mecânicas de jogo e narrativas mais extensas e elaboradas que implicaram em novas formas de relacionamento do sujeito-jogador com o estado do

623

SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

jogo e, consequentemente, novas maneiras de se pensar a relação com a questão da memória neste universo. Segundo Björk e Holopainen [2004], saves são recursos de jogo que devem ser considerados e muito bem pensados para serem implementados, levando em conta, por exemplo, qual tipo de save é mais apropriado ao game em desenvolvimento e, principalmente, porque pode ou deve ser considerado mais apropriado. Bateman [2009] por sua vez entende que uma das partes mais interessantes nos jogos é a aposta – que, neste contexto, não necessariamente envolve dinheiro ou bens materiais como nos chamados jogos de azar. Para o autor, o jogador aposta no destino e em suas decisões, e espera que de alguma forma tenha um resultado desejado. Essa emoção da aposta é perdida quando o jogador começa a utilizar os saves como uma forma de garantia que não mais se relaciona com as vicissitudes do jogo, afinal no mundo ordinário nem sempre dispomos de tais garantias. Por isso, jogos que apostam nas escolhas do jogador sobrepujam os sistemas de save, muitas vezes optando até mesmo por não os utilizar. Mas, segundo Sirlin [2008] é preciso tomar cuidado para não se exagerar ao se desenvolver um jogo, pois game designers muitas vezes se esquecem de que o sujeito-jogador tem uma vida além do domínio do jogo, e que ele precisa parar de jogar quando precisar ou quiser, e não apenas quando o jogo o permitir ou quando outro assim o desejar. Levando em conta esses autores, o problema de como repensar o comportamento save-load e ao mesmo tempo balancear o dilema dos tipos de saves, a pesquisa procurou fazer uma incursão inicial no campo da memória humana, buscando eventuais pistas que permitissem responder às questões levantadas. Apesar de não terem sido encontrados estudos que relacionassem a memória humana com os saves nos games, foi possível pensar em analogias possíveis baseadas em autores das áreas da psicologia e da neurociência que explicam o que é a memória humana, algumas de suas patologias e como elas funcionam, como Larry R. Squire, Howard Eichenbaum, Lionel Tarassenko, Michael Kenward e Richard Morris. A partir deste projeto de pesquisa espera-se ter o subsídio inicial para o desenvolvimento de um game que explore, em extensão e profundidade, de maneira plena e integrada, a problemática aqui desenvolvida. Espera-se também ter contribuindo com a bibliografia sobre o tema e apontado outros desdobramentos potenciais desta pesquisa, como sua ampliação ou possível aplicação no campo dos serious game, por meio, por exemplo, de games pensados e desenvolvidos de maneira intrínseca para atuar tanto nas causas como nos sintomas das patologias associadas à memória.

XIV SBGames – Teresina – PI – Brazil, November 11th - 13th, 2015

Art & Design Track – Full Papers

Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer à Cathia S. S. Bueloni pelo apoio, ideias e referências bibliográficas fornecidas e aos professores e alunos do Curso de Design de Games da Universidade Anhembi Morumbi que, generosamente dividindo seus conhecimentos, fizeram esse artigo possível.

Referências Bibliográficas BATEMAN, C., 2009. Beyond Game Design: Nine Steps Towards Creating Better Videogames. Boston: Cengage Learning. BJÖRK, S., HOLOPAINEN, J., 2004. Patterns in Game Design. Hingham: Charles River Media. CHEN, J., 2007. Flow in Games (and Everything Else) [online] New York: Communications of the ACM., v. 50, n. 4, p. 31-34. Disponível em: www.ccs.neu.edu/home/lieber/courses/cs4500/sp09/resou rces/p31-chen-flow-in-games.pdf [Acessado 05 Maio 2015]. EICHENBAUM, H., 2002. Cognitive Neuroscience of Memory: An Introduction. Cary: Oxford University Press. GRAF, P., OHTA, N., 2002. Lifespan Development of Human Memory. Cambridge: MIT Press. JAFFARD, R., 2005. A diversidade da memória. São Paulo: Revista Viver mente & cérebro. MATTAR, J., 2014. Design educacional: educação a distância na prática. São Paulo: Artesanato Educacional. MURRAY, J., 2003. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: UNESP. NESTERIUK, S., 2007. Jogo como elemento da cultura: aspectos contemporâneos e as modificações na experiência do jogar. Tese de Doutorado. PUC-SP. NOVAK, J., 2011. Game Development Essentials: An Introduction. Boston: Cengage Learning. RABIN, S., 2009. Introduction to Game Development. Herndon: Cengage Learning. SAUNDERS, K., NOVAK, J., 2012. Development Essentials: Game Interface Design. Boston: Cengage Learning. SIRLIN, D., 2008. Saving the Day: Saving Systems in Games. [online] Gamasutra. Disponível em: www.gamasutra.com/view/feature/130352/saving_the_da y_save_systems_in_.php?print=1. [Acessado 12 Março 2015]. SQUIRE, L. R., 1987. Memory and Brain. Cary: Oxford University Press. TARASSENKO, L., KENWARD, M., MORRIS, R., 2005. Cognitive Systems: Information Processing Meets Brain Science. Jordan Hill: GBR Academic Press. WOLF, M. J. P., 2012. Encyclopedia of Video Games: the culture, technology and art of gaming. Santa Barbara: Greenwood.

624

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.