Samba, Racismo e Identidade

October 9, 2017 | Autor: Fernanda Correa | Categoria: Racismo y discriminación, Samba, Identidades
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Samba, Racismo e Identidade Análise da letra do samba Preconceito, de Wilson Batista Gravado em 1941

Preconceito Eu nasci num clima quente Você diz a toda gente Que eu sou moreno demais Não maltrate o seu pretinho Que lhe faz tanto carinho E no fundo é um bom rapaz Você vem de um palacete Eu nasci num barracão Sapo namorando a lua Numa noite de verão Eu vou fazer serenata Eu vou matar minha dor Meu samba vai, diz a ela Que o coração não tem cor

Wilson Batista, 1941

ser mulato, quase negro, numa sociedade onde houve escravidão negra, é uma pecha que essa própria sociedade não aceita1 A importância da escolha feita para análise está no fato das letras de samba por muito tempo constituírem o principal, senão o único, documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente. Através delas, vários segmentos da população habitualmente relegados ao silêncio histórico impuseram sua linguagem e sua mensagem a ouvidos freqüentemente cerrados à voz do povo. O samba em si é um movimento social e por isso antes de analisarmos a letra se faz necessário resgatarmos a sua história, que já consiste num identificador de “raça”. Em sua origem, este rítimo musical tão tipicamente brasileiro era, na verdade, uma forma de identidade cultural de mestiços descendentes de escravos, marginalizados da sociedade que começavam a povoar os morros da cidade do Rio de Janeiro e é importante demarcar o que ele representou na constituição dessa identidade. Através do discurso do sambista estava a autoafirmação de toda uma classe. Os sambistas “são como cronistas do Rio de Janeiro de sua época, da sociedade vista pelas classes desfavorecidas, numa multiplicidade de perspectivas. A unidade que se pode encontrar em seus textos é a que se pode encontrar na produção de um grupo social que, embora heterogêneo, está ligado por determinados fatores sociais, étnicos, econômicos e culturais” 2. O samba é urbano e popular, nasceu de uma classe proletariada que se formava e aumentava nas primeiras décadas do século XX. Seu rítimo é um hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses, trata-se “de um sincretismo musical onde, originalmente, estão presentes a polca europeia, que lhe forneceu os movimentos originais, a habanera, influenciando o ritmo, o lundu e o batuque, com o sincopado e a coreografia, e o brasileiro 'jeitinho de cantar e de tocar', como diz Mário de Andrade”3. Na década de 10, começam a acontecer encontros regulares, em zonas pobres da cidade, de compositores que viriam ao final da década serem identificados como sambistas. O mais famoso desses grupos, de onde saíram grandes nomes como Pixinguinha e Donga, era o da Tia Ciata, que se reunia em sua casa no centro do Rio. Dona Hilária de Almeida, popularmente conhecida como Tia Ciata, era babalorixá, e na mesma casa onde se davam as reuniões musicais aconteciam sessões de candomblé, mais um fator que comprova a proximidade entre samba e cultura negra. Na realidade, “os diversos tipos de samba (...) são perpassados por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra. Foi graças a um processo dinâmico de seleção de elementos negros que o samba se 1

CALDAS, Waldenyr, A Cultura Político-Musical Brasileira. São Paulo: Musa Editora, 2005 – p.41 MATOS, Cláudia Neiva de, Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 – p.18. 3 CALDAS, Waldenyr, Iniciação à Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985 – p.28. 2

afirmou como gênero-síntese”4. Dos anos 20 em diante uma temática em particular ganha muitos adeptos nas rodas de samba: o malandro. Foram os sambistas do Estácio (reduto de ex-escravos e seus descendentes) os primeiros a ostentar a designação de “malandros” e a música que eles passaram a fazer foi feita para o bloco andar, para o bloco desfilar; era toda uma cultura negra que entrava pela avenida dos brancos. Quando o bloco andou, ele pisava no asfalto, mas carregava sua bandeira negra, seu rítimo e sua voz. As escolas em desfile surgiram na avenida como formas em trânsito, movimentando-se na fronteira de culturas e classes. O nosso autor, Wilson Batista, nasceu em Campos dos Goitacases (RJ) e mudou-se com a família para a cidade do Rio de Janeiro na década de 20, instalando-se no morro da Mangueira, já em processo de favelização. Ao viver nesse meio, construiu uma base para seu posicionamento favorável à vadiagem, algo explícito em várias de suas letras, a malandragem como uma espécie de alternativa para o povo, pois o trabalho não estava correspondendo às suas expectativas positivas comuns. Se na década de 20 o samba se popularizou no Rio de Janeiro, na de 30 ele ganhou o Brasil. Graças à indústria cultural do rádio e gramofônica, os sambas “deixaram, rapidamente, de ser privilégio dos cariocas para tornar-se instituição de âmbito nacional, quase mesmo uma identidade, uma espécie de cumplicidade entre brasileiros”5. O governo Vargas sabia muito bem como usar as ondas do rádio para difundir a sua propaganda política e tanto o presidente quanto seus assessores tinham consciência da força da música popular brasileira que viria a ser usada, inclusive como instrumento político. Já no final da década de 30, a política de Estado remetia a uma tentativa de higienização da música. A partir de então, houve a pretensão de abolir certas imagens, temas e características antes existentes e difundidas. “Órgão importante da ditadura estadonovense, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) não só controlava a imprensa e as diversões como também procurava interferir na criatividade dos artista, através de 'conselhos' e 'sugestões'. Assim, no início dos anos quarenta, achando que existia muito samba fazendo a apologia da malandragem, o DIP 'aconselhou' os compositores a adotarem temas de exaltação ao trabalho e condenação à boemia” 6. Assim, o malandro orgulhoso e com navalha no bolso de antes começava a morrer e dar lugar a um novo tipo. Mas se “nos anos 40 o malandro está historicamente superado, o mesmo não acontece a seu discurso, pelo contrário, o esforço de sobrevivência desse discurso, identificado à necessidade de Cocitação de Muniz Sodré. Samba: o dono do corpo. Rio de Janeiro, Codecri, 1979 in CALDAS, Waldenyr, Iniciação à Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985 – p.31. 5 CALDAS, Waldenyr, Iniciação à Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985 – p.38 6 SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de, A Canção no Tempo. 85 Anos de Músicas Brasileiras. Vol.1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1997 – p.196 4

preservar uma voz cultural autenticamente negra e proletária, virá enriquecer e sutilizar sua linguagem, que encontra na ironia, na elipse, na ambigüidade, as vias que lhe permitirão continuar exercendo seu espírito crítico e jocoso” 7. Essa linguagem incorpora uma postura crítica mais realista e mais cortante, o samba-malandro dos anos 40 conserva sua ginga libertária de autêntica inspiração popular. Um tema muito abordado nessa época é o da injustiça social e aqui muitas vezes se vê o tom da denúncia de uma situação opressiva e dolorosa, na qual o acusado se transforma em vítima e acusador. Inocência, culpa e injustiça são categorias que permanecem problematizadas no discurso malandro, o qual geralmente evita aderir a verdades estáticas e tranquilizadoras, integrando e pondo à mostra as condições de seu próprio ser e as do sistema social. É justamente aqui que se encaixa o nosso documento. A música Preconceito é, acima de tudo, uma crítica social, mas não podendo cantar claramente contra o racismo por causa da censura, o autor se utiliza de um pretexto amoroso e se enche de ironias. O “eu” da letra é o malandro e, por ser um personagem de fronteira, pode transitar entre os diferentes espaços, o morro e o asfalto, o barracão e o palacete, sem de fato pertencer a nenhum. O seu lugar é a rua, lar da boemia, e a sua voz, o samba. As passagens Eu nasci num clima quente e sou moreno demais exemplificam o jogo irônico. O autor brinca com a ideia de ser moreno demais porque nasceu num clima quente, como se um fosse resultado do outro, e até uma tentativa de justificação da sua cor de pele que o coloca numa posição marginalizada da sociedade. Ele pede para não ser maltratado, justamente porque o negro (o seu pretinho) ainda carrega grilhões no século XX e podemos arriscar dizer que o autor é um descendente direto da escravidão, lembrando que sua cidade natal, Campos, no norte do estado, era uma região canavieira. Ainda na primeira estrofe, o eu-lírico alega ser um pretinho carinhoso que no fundo é um bom rapaz. Apreendemos disso que, de fato, o que a elite vê na cor negra é um malefício social e a despreza por isso, não importando o que possa trazer de positivo e o quanto ela enriqueceu o Brasil, ou seja, por trás de um “raça” estigmatizada (no fundo) há uma cultura rica, que faz parte da formação nacional, ou até a maior parte como diria Gilberto Freyre. Ela está na base da criação de uma identidade brasileira, e com a expansão do samba, mais do que nunca. O interlocutor é a elite, é ela quem guarda o preconceito contra seus ex-escravos e, na lógica do poder, é à ela que o sambista tem que convencer que é um “bom moço” e, assim, ser “permitida” a sua inserção real na sociedade. O seu lugar que pensa ser de direito é o palacete, na Zona Sul do Rio de Janeiro, enquanto que a população excluída, negra e pobre, é empurrada para as encostas dos morros, tendo que subsistir num barracão. 7

MATOS, Cláudia Neiva de, Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 – p.110

Apesar do sambista tentar uma aproximação com essa outra camada da sociedade, o que só é possível porque, lembremos, ele é o malandro, ele sabe muito bem que a distância social é praticamente inalcançável. A população pobre dos morros é separada da elite por um abismo social intransponível, o que se revela na música pelo verso sapo namorando a lua: ao negro (sapo) só lhe resta admirar de longe este mundo que parece brilhar (lua). É importante destacar também que a imagem a que a metáfora alude é de alguém que está “embaixo” admirando algo superior, olha para cima, o que também está presente na ideia de serenata: o cavalheiro, da rua, canta para o seu amor, que escuta da janela de seu sobrado; separação dos mundos, rua onde vive o malandro e sobrado, onde está a burguesia. Neste verso, Eu vou fazer serenata, ainda há outro elemento relevante: a própria questão da serenata e sua origem. A “modinha cantada e tocada nas ruas, nas esquinas, cria a maior instituição da boemia brasileira: a serenata”8, ou seja, é algo que nasceu da boemia, o que nos remete mais uma vez ao malandro. Mas nessa questão há um ponto de interseção, algo que talvez aproxime os dois, qual seja, a noção de modinha. Esse rítimo musical nasceu nos salões do século XIX, ou seja, no meio da elite brasileira, mas rapidamente ganhou as ruas se tornando um gênero popular e, mais do que ser a mãe da serenata, ela é um dos elemento constituidores da nossa cultura musical, aí incluído o próprio samba: “Entre o lundu, de origem fincada nos batuques e nas danças que os negros trouxeram da África e desenvolveram no Brasil, e a modinha, cujo caráter melódico evocava trechos de operetas europeias, um gênero apontado para os terreiros e outro para os salões do século XIX – mas ambos já impregnados de sensualidade híbrida que, muitas vezes, os tornavam indistintos –, configurou-se a canção do século XX”9. Para finalizar, o sambista diz: Meu samba vai, diz a ela / Que o coração não tem cor. Nesse momento ele apela para o único elemento que pode fazê-lo ascender socialmente: o samba. Já no início da década de 40, como vimos, o samba é cultura nacional, aproximando os brasileiros de inúmeros estados, “raças”, estratos sociais, enfim, era contemplado tanto pela população pobre quanto pela burguesia, unindo-os de certa forma através das ondas do rádio, que não pareciam guardar preconceitos contra ninguém. O samba era a voz do povo que, finalmente, chegava aos ouvidos da elite. Ora, o rádio transmite apenas voz, ou seja, aquelas lindas vozes não “tinham cor”, cabia à imaginação de cada um acrescenta-lhes uma imagem, ou seja, a música em si não tem cor, e através dela há a esperança de se superar até mesmo o racismo.

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CALDAS, Waldenyr, Iniciação à Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985 – p.22. TATIT, Luiz, O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 – ps.70,71.

Bibliografia de apoio: CALDAS, Waldenyr, A Cultura Político-Musical Brasileira. São Paulo: Musa Editora, 2005 _________________, Iniciação à Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985 MATOS, Cláudia Neiva de, Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de, A Canção no Tempo. 85 Anos de Músicas Brasileiras. Vol.1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1997 TATIT, Luiz, O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004

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