Saudades do Novo Mundo: a aventura de Jean de Léry

June 3, 2017 | Autor: Alexandre Belmonte | Categoria: Colonial Brazil, Brasil Colonial, Jean De Lery, franceses no Brasil
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Para Luca e Cintia

Apresentação

A

presentado, inicialmente, como dissertação de Mestrado, no programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o livro, que agora chega ao leitor com o título de “Saudades do Novo Mundo – A aventura de Jean de Léry”, para além de proporcionar uma nova leitura sobre uma personagem que há séculos vem desafiando os estudiosos, traz importantes aportes sobre os relatos de viagem como fonte histórica. Durante sete anos, desde sua primeira escritura, o texto “repousou”. Nesse tempo pôde ser amadurecido, ganhando densidade para se transformar em obra que, sem dúvida alguma, se tornará referência para todo aquele que, daqui para a frente, se debruçar sobre a obra emblemática e fundante de Léry. Como o leitor poderá facilmente perceber, o texto, amadurecido, firma-se como caminho inovador para a leitura do passado, que pode e deve ser lido a partir de uma perspectiva cultural, instigadora e enriquecedora. Em última instância, Alexandre Belmonte lembra ao leitor a proclamação, há décadas feita por Lucien Febvre e só muito recentemente incorporada às preocupações dos historiadores: a ideia de que todos os textos são, inevitavelmente, “textos humanos”. Dessa forma, “as palavras que os formam estão cheias de substância humana”,1 resultado das circunstâncias que envolvem aquele que o escreve. Essa “substância humana” o leitor vai encontrar a cada passo de sua leitura, deparando-se com imagens e metáforas emblemáticas,

1. Lucien Febvre. Combates pela história, 1 [Trad.]. Lisboa, Presença, 1977, p.31. vii Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

através das quais é demonstrado o processo de descoberta, desconstrução e ressignificação vivido por Léry. Como diz Belmonte: “o mundo pronto e organizado perde-se junto à fala sobre o tupinambá”. O primeiro aspecto a destacar na obra é o fato do autor efetivamente ter ido ao encontro dos escritos de Léry, convicto da essência “humana” que foi perdida nas várias edições e traduções da obra. Dessa forma, mergulhou no francês medieval, trazendo para o diálogo o que de mais puro pudesse ser encontrado do autor quinhentista. A partir do texto de Belmonte, que se reporta a Léry, somos levados a adentrar em um tempo marcado por descobertas e perplexidades – algumas das quais já afetavam o viajante ao se deslocar para o Novo Mundo – para afirmar que o encontro entre o “eu” e um “outro” que se apresenta, inicialmente, como antítese absoluta, representa, efetivamente, o início de novos tempos. Como nos diz o autor do livro: “... os encontros e confrontos entre culturas tornaram possível uma transformação sem par na história cultural, nas formas de conhecer e se relacionar, colocando a alteridade cultural como uma das questões constitutivas do homem moderno”. No contraponto permanente que Belmonte estabelece entre alteridade e identidade, a questão da oposição entre civilizado e selvagem esmaie-se na constatação de que os “europeus trazem seu próprio selvagem com eles”. É essa desconstrução permanente de verdades cristalizadas, apoiada em um contínuo diálogo intertextual, que, a nosso ver, se destaca como uma das maiores contribuições da obra que agora chega ao leitor. Mas há outras contribuições. Dentre elas a proposição de que sempre há a possibilidade de novos olhares sobre textos lidos e relidos através dos séculos; a compreensão de que identidades e

viii Alexandre Belmonte

alteridades, como “imagens de espelho”,2 são processos de contínua ressignificação; a indicação de que a cultura – ou melhor, os encontros e desencontros culturais são importante e gratificante caminho para analisar o passado. Enfim, a convicção de que a ousadia é comportamento que deve sempre afetar o historiador. É esse espírito de ousadia no descobrir que deve orientar, também, a leitura do livro. Afinal, o convite é para que o leitor, a partir de um tempo de muitos encontros e desencontros, estabeleça uma nova compreensão sobre o passado e, a partir dele, sobre o presente. É uma aventura que, como a de Léry, merece ser vivida.

Rio de Janeiro, 21 de outubro de 2013. Lená Medeiros de Menezes Professora Titular de História Contemporânea da UERJ

2. Robert Frank. “Histoire des Relations Internationales et Images“. In: Maria Matilde Benzoni; Robert Frank; Silvia Marie Oizetti (org.). Images des peuples et histoire des relations internationales du XVIe siècle à nos jours. Paris, Publications de la Sorbonne, 2008, p. XIV. ix Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Nota ao Leitor

A

presente obra é originalmen originalmente uma dissertação de Mestrado 2006 no Departamento de História em História, defendida em 20 da Universidade do Estado do Rio R de Janeiro. Gostaria de agraMedeiros de Menezes, e à decer à orientadora, professora Lená L Maria Teresa Toríbio B. Lemos e banca examinadora, professores M Emmanuel Carneiro Leão, que recomendaram a publicação do e questões. Agradeço trabalho e o enriqueceram com comentários c ainda à professora Tânia Bessone, Bessone pelas observações mais que perqualificação. tinentes durante o exame de qual minha gratidão a pessoas que, de diGostaria, ainda, de exprimir m ferentes formas, participaram da execução deste trabalho, em suas diversas fases, dentre elas Cintia Martins Dias, Philippe Ariagno, Carmelo Belmonte, Édima Maria Boldrini, Marco Belmonte, Vera Gomes, Marcio Coutinho, Marcos Miceli e Ribamar Lopes. Agradeço ainda à Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela concessão de uma bolsa de Professor Visitante quando da preparação do manuscrito para publicação.

xi Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Sumário

Introdução , 01 Capítulo 1 – A circularidade das ideias: o impacto do Novo Mundo na consciência europeia do século XVI Imprensa, leitores e leituras no século XVI: possibilidades de recepção, 20 Os selvagens: espelho do europeu, 31 Capítulo 2 – A especificidade do relato de Jean de Léry em relação a outros relatos de viagens Viagens e viajantes, textos e contextos, 46 Os primeiros relatos: a busca do Paraíso terrestre, 53 Identidade e alteridade no relato de Léry: o discurso sobre o outro, 73 Capítulo 3 – Construção da narrativa e métodos da História em Léry Argumentos de autoridade e construção do conhecimento, 90 Gastronomia grotesca: canibalismo no Brasil e na França – o memorável, o notável e o traduzível na escrita de duas Histórias, 104 O regresso à França: fome, tormentas e saudades, 115 xii Alexandre Belmonte

Capítulo 4 – Transes e trânsitos, 122 Glossário do francês quinhentista, 127 Fontes e Bibliografia, 131 Anexos, 149

xiii Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

– Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar o seu futuro? E a resposta de Marco: – Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

xiv Alexandre Belmonte

Introdução

E

le veio para fabricar sapatos, mas acabou escrevendo um verdadeiro best-seller do século XVI. “Com sua Histoire d´un voyage faict en la terre du Brésil”, Jean de Léry (1534c.1611) gozou de admirável sucesso, não somente na França, mas também na Suíça e na Alemanha. Em cem anos, sua obra teve pelo menos sete edições em francês e algumas em latim1. Trata-se, portanto, de um texto que tem uma longa história intrínseca – não somente a história de sua escrita e confecção, mas a de sua recepção e impacto nas culturas eruditas francesa e europeia do século XVI. As viagens do início da era moderna legaram à humanidade um espólio literário, cartográfico e iconográfico constituído principalmente por mapas, ilustrações, relações de viagens e crônicas da conquista colonial. Possuem uma natureza multidisciplinar e têm como temática comum o desvendar da alteridade humana e geográfica, construindo, em seu conjunto, uma representação do outro e a imagem de uma natureza exótica. São diários de navegação, cartas náuticas, relatos de viagens de descobrimento e de expansão, crônicas de conquista que, juntos, formam o que muitos

1. Após a primeira edição de 1578, são conhecidas as de 1580, 1585, 1594, 1599, 1600, 1677. 2 Alexandre Belmonte

autores chamam de “literatura de viagens”2, expressão controversa e que identifica como gênero literário este enorme corpus textual cujas balizas cronológicas se situam entre os séculos XV e XIX3. No século dos Descobrimentos, os relatos de viagens transformaram-se em verdadeiro gênero literário na Europa. Atraíam a curiosidade dos homens letrados e falavam ao seu desejo de viajar rumo ao desconhecido – coisa difícil de concretizar pelo custo elevado. Jean de Léry o conseguiu. Era um jovem de pouco mais de 20 anos quando resolveu juntar-se a outros adeptos do protestantismo numa missão, em 1556, ao Rio de Janeiro, onde havia sido fundada a França Antártica, tentativa de colonização francesa arrasada pelos portugueses. Num terreno repleto de mangues e animais peçonhentos, muitos padeciam de gangrenas nos pés, daí a presença do sapateiro Léry. E era para essa terra cheia de indígenas a catequizar que vinha o missionário Léry. É flagrante a curiosidade que tais relatos suscitaram na Europa, e muitos nativos ameríndios foram levados às cortes europeias, para serem vistos, tocados, entrevistados, e não apenas imaginados. A cultura do livro e a literatura de viagens, à época das navegações e colonizações, marcavam e definiam uma espacialidade para as colônias, transformavam a terra distante e exótica em território transitável pelo leitor. O discurso sobre a alteridade transformava-se, gradualmente, em padrão cultural, uma vez que insistia em marcar as

2. Em Hernani Cidade, aparecem as denominações “Literatura de Expansão” e “Literatura dos Descobrimentos”; Jaime Cortesão utiliza as denominações “Literatura, Narrativas e Relações de Viagens” e “Literatura de Viagens e Descobrimentos”; Antônio José Saraiva e Oscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa, se referem a uma “literatura de viagens ultramarinas” ou “narrativas de viagens”. 3. Ana Paula P. Dias. Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa: A representação do real e os filtros da representação. Letras & Letras, Projeto Vercial, 1997, disponível em http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaio39.htm, acesso em agosto de 2013. 3 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

diferenças em relação a um Outro muitas vezes considerado bizarro, definindo aos poucos as especificidades culturais de quem escrevia, garantindo-lhe uma identidade e um lugar do qual podia apontar as diferenças. Léry é um desses viajantes que, do Novo Mundo, leva um ‘fato’ antropológico novo para a Europa: o Outro. Os relatos de viajantes pareciam satisfazer, para o homem do século XVI, certa necessidade de evasão de sua realidade. Curiosamente, porém, essa mesma realidade, que era o ponto de partida do viajante, era também invariavelmente o ponto de chegada. As longas viagens pareciam sempre reconduzi-lo ao mesmo, à sua proveniência. O relato levanta questões que têm sido discutidas desde praticamente sua publicação, e parece ser um daqueles textos aos quais sempre voltamos. A questão fundamental parece ser a descoberta que o eu faz do outro, em seu sentido mais amplo, não somente cultural, mas também antropológico e filosófico. A propósito das Histórias de Heródoto, Hartog escreve: Uma cultura (a nossa em todo caso) é feita de tal modo que não cessa de retornar aos ‘textos’ que a constituíram, de ruminá-los, como se sua leitura fosse sempre uma releitura. Seja felicitando-se por isso ou lamentando-se, seja embalsamando-os ou recusando-os, ela parece tecida por seus fios – e como que já ‘lida’ por eles.4 Mais adiante, o autor defende a ideia de que a tarefa de um historiador da cultura pode, então, ser a tentativa de “reconstruir a questão que esses textos respondem”5. Estudar o relato de Léry não significa modernizar ou simplesmente

4. François Hartog. O espelho de Heródoto – Ensaio sobre a representação do Outro. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999, pp. 15-16. 5. Idem. Ibidem, p. 16. 4 Alexandre Belmonte

“atualizar” as discussões sobre a aventura do calvinista francês. Trata-se, no dizer de Hartog, de “fazer ver sua inatual atualidade, suas respostas a questões que nós não mais levantamos, não sabemos mais levantar, ou simplesmente ‘esquecemos’”6. As questões que o texto de Léry nos coloca são indispensáveis para a análise não somente da história de um ‘Brasil colonial’, mas do próprio estatuto de indivíduo que se formava na época e do qual são herdeiras as nossas possibilidades de identidades nacional, coletiva, cultural etc. É também um ponto de partida para um estudo mais amplo sobre as relações entre representações da alteridade e processos de formação de identidades culturais no mundo moderno. Várias questões têm sido levantadas a partir de leituras as mais variadas do relato de Léry e dos intuitos de representar a alteridade encontrada no Novo Mundo (levados a cabo a partir do século XVI), e têm sido discutidas das mais variadas formas. Michel de Certeau, em A Escrita da História, dedica um capítulo à análise da escrita de Léry em seu relato. Certeau adverte que “não se pode identificar essas ‘lendas’ científicas com a organização das práticas”7, ou seja, a representação do outro que Léry faz não deve ser confundida com o outro mesmo. Essa representação simboliza “as alterações provocadas numa cultura pelo seu encontro com uma outra”8. Centraliza seu estudo, assim, na análise de novas funções da escrita e da palavra provocadas pela descoberta do Novo Mundo, pelas reformas religiosas e pelas clivagens sociais que acompanham esses processos. Frank Lestringant estudou todas as edições da obra de Léry, detendo sua atenção nos novos adendos a cada reedição. Em

6. Idem. Ibidem, p. 16. 7. Michel de Certeau. A Escrita da História. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982, p. 213. 8. Idem. Ibidem, p. 213. 5 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

1994, reeditou o relato a partir da sua segunda edição, a de 1580, comentando, devidamente, as omissões e inserções de Léry em relação às demais edições. Em seu livro Le Huguenot et le Sauvage9, Lestringant busca analisar a relação dos franceses com o Novo Mundo através do protestantismo e da experiência de Villegagnon na França Antártica, de Roberval no Canadá e de Ribault e Laudonnière na Flórida. Uma das suas ideias centrais é que, ao mesmo tempo em que os franceses criticavam as práticas imperialistas dos espanhóis no Novo Mundo, eles próprios tiveram que lidar com o problema da alteridade dos indígenas, diante dos quais a atitude francesa oscilava entre a exaltação da liberdade dos índios e sua condenação como herdeiros da maldição de Cam10. Todorov, embora não tenha analisado propriamente o relato de Léry, propôs-se a estudar a descoberta que o ‘eu’ faz do ‘outro’. Um tema central em sua obra é o de que, da viagem de Colombo, descende não somente a América – Mundo Novo – mas também a Europa e toda a modernidade de que somos herdeiros em nossas possibilidades de cognição e de relações com os outros e conosco mesmos. O autor parece construir uma arqueologia dos primeiros encontros entre o europeu e seu outro, o ameríndio, enquanto interpreta tanto os modos em que se dá a conquista, como o paradoxo de uma compreensão do outro que se tem no século XVI e que se torna um dos motores para o extermínio desse mesmo outro11. Sobre o tema da alteridade, Maria Teresa Toribio Brittes Lemos analisou o encontro e confronto de duas sociedades

9. Frank Lestrngant. Le Huguenot et le sauvage – l’Amérique et la controverse coloniale, en France, au temps des guerres de Religion (1555-1589). Paris, Klincksieck, 1999. (primeira edição de 1990). 10. Sobre a maldição de Cam, cf. Genesis, 9:20-27. 11. Tzvetan Todorov. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo, Martins Fontes, 2003. (primeira edição de 1982). 6 Alexandre Belmonte

profundamente religiosas, a espanhola e a asteca, cada qual lutando por seus espaços sagrados. Ao invés de pensar a colonização sob a clássica fórmula da ‘conquista’ e ‘dominação colonial’, a autora estuda as formas de hibridismo cultural – particularmente presentes no campo do sagrado – que acabaram por formar o que quer que se entenda hoje por ‘cultura mexicana’. Ela pretende, em última instância, analisar o vigor originário da cultura mexicana, levando em conta os agenciamentos entre a cosmovisão dos que chegavam e a dos nativos12. Klaas Woortmann estuda o impacto do selvagem brasileiro na cosmologia e no pensamento teológico europeus, analisando como foi construída a ideia de selvagem no imaginário da época, e de que forma o autóctone americano passou gradativamente a encarnar um selvagem que já existia no europeu que o representava, desde pelo menos a Antiguidade13. Algumas teses recentes, produzidas em universidades brasileiras, têm procurado tratar da questão da alteridade suscitada a partir da conquista do Novo Mundo. É o caso da tese de doutorado de Carmen Lúcia Palazzo de Almeida, que estuda as transformações no modo como os franceses percebiam a colonização, entre os séculos XVI e XVII14. A tese de Wilton Carlos Lima da Silva busca analisar as permanências e mudanças nas formas de percepção e descrição da diversidade natural do Novo Mundo. Ele trata, porém, o relato de Léry no sentido de evidenciar uma visão de mundo em que se mesclam referências renascentistas, ideais religiosos e

12. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos. Corpo Calado: Imaginários em Confronto. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2001. 13. Klaas Woortmann. O selvagem e o Novo Mundo – ameríndios, humanismo e escatologia. Brasília, Editora da UnB, 2004. 14. Carmen Lúcia Palazzo de Almeida. Entre mitos, utopias e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII) Washington - DF. 01/07/1999. 1v. 362p. Universidade de Brasília – Tese de doutorado em História. 7 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

um acurado ‘relativismo cultural’15. Therezinha B. Baumann Zavataro analisa o Thesaurus de viagem de Theodor de Bry, buscando explicitar a gênese e o significado do Thesaurus como um “percurso em direção à salvação”. A autora analisa, na iconografia de De Bry, como este expressa a construção do sujeito e sua relação com o outro16. Leyla Perrone-Moisés estuda três momentos distintos da presença francesa no Novo Mundo: a relação de Paulmier de Gonneville (1505) e os livros de André Thevet (1557) e Jean de Léry (1578)17. Outros autores, brasileiros e estrangeiros, têm estudado questões inerentes a representações do outro, etnocentrismo, cosmovisões, alteridade e identidades. Laura de Mello e Souza, em Inferno Atlântico, estuda as representações do demônio no Novo Mundo, analisando as relações entre crenças religiosas e colonialismo, e analisa a compreensão e rejeição desse outro pelo colonizador português18. Ronaldo Vainfas, em A Heresia dos Índios, procura mostrar, através da “santidade”, uma forma de idolatria híbrida, que nega ao passo que incorpora elementos e valores da dominação colonial19. Para Gerd Bornheim, o conceito de descobrimento caminha pari passu com a descoberta da alteridade, e este é

15. Wilton Carlos Lima da Silva. As Terras Inventadas: Discurso e Natureza em Viajantes no Brasil (Léry, Antonil e Burton). Marília – SP, 01/09/2000. 1v. 410p.. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Assis – Tese de doutorado em História. 16. Therezinha de Barcellos Baumann Zavataro. Thesaurus de Viagem -Theodore de Bry: Identidade e Alteridade na Iconografia do Século XVI. Rio de Janeiro – RJ, 01/03/2001. 2v. 381p. Universidade Federal Fluminense – Tese de doutorado em História. 17. Leyla Perrone-Moisés. “Alegres Trópicos: Gonneville,Thevet e Léry” In: Revista USP, São Paulo (30): 84-93, junho/agosto de 1996. 18. Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico – demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo, cia. das Letras, 1993. 19. Ronaldo Vainfas. A heresia dos Índios – Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo, Cia. das Letras, 1995. 8 Alexandre Belmonte

todo o projeto da modernidade. O desígnio fundamental de todo descobrimento é sempre o outro. O descobrimento não é simplesmente um fato isolado no passado: “as águas do descobrimento ainda hoje não se aquietam, nem mesmo na mais estável de todas as areias”20. O descobrimento da alteridade não pode ser compreendido nem limitar-se a um acontecimento factual, “bem estabelecido em suas coordenadas históricas e geográficas”21. Pois o conceito de descobrimento só existe em função das fronteiras que teima em devassar, e continua vivendo “da impossibilidade de emparelhar-se com qualquer tipo de completeza”22. O descobrimento traz em seu bojo a descoberta de um mundo novo. E todo esse mundo tem sido construído a partir de uma radical ruptura – nós não tivemos uma Idade Média... Esta ruptura veio com a tarefa de inventar um homem e um mundo novos, e isso não ocorreu sem violência. É assim que o descobrimento cria uma experiência inédita de universalidade, e dele desponta mesmo uma ideia de Humanidade. O outro passa a provocar uma nova cultura da imaginação, e também uma nova atividade científica de perscrutar as diferenças. Também o corpo humano passa a exibir todo um modo de ser inédito a partir do encontro com o selvagem nu. O corpo nu é integrado à Natureza, e os ameríndios pareciam, aos olhos dos europeus, alheios a qualquer convenção. Foi preciso inventá-los segundo paradigmas definidos, e nem sempre o discurso sobre o outro foi único. Não pretendemos pensar os confrontos de culturas em termos de dominação, pois, em que pese a superioridade bélica dos conquistadores, as relações culturais parecem, em alguns

20. Gerd Bornheim. O conceito de descobrimento. Rio de Janeiro: EdUerj, 1998, p. 11. 21. Idem, Ibidem, pp. 11-12. 22. Idem, Ibidem, p. 12. 9 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

níveis, fugir do alcance do poderio bélico. É ingênuo pensar que os europeus encontraram culturas “verdes e incipientes”23 e que as tenham gradativamente substituído por um padrão cristão e civilizado. Há registros de que médicos árabes, na época das Cruzadas, consideravam os europeus em geral como um povo “bárbaro e selvagem”, sobretudo pela forma como lidavam com a higiene e a profilaxia e pelos modos como cuidavam dos ferimentos e das doenças24. Visamos a identificar os vínculos entre representação da alteridade e construção de identidade presentes no relato de Jean de Léry. Para tal, faremos um levantamento e uma análise dos diferentes tipos de relatos, desde as cartas de Colombo e Caminha até o relato de Léry, a fim de compreender a especificidade deste último na história das representações da alteridade no século XVI. O relato de Léry será, pois, estudado dentro do contexto de representações da alteridade realizadas no século XVI. É importante ressaltar que o período histórico ao qual pertence o relato de Léry é profundamente marcado pelo início do surgimento do modo moderno de conhecer, que se expressa na transformação do estatuto de indivíduo ocorrida neste período. Para podermos melhor compreender o relato de Léry, deveremos, portanto, estudar textos referentes à discussão a respeito do surgimento do indivíduo moderno, da transformação do homem medieval no homem moderno, do humanismo renascentista e o que exatamente isto significa

23. Gilberto Freyre caracteriza esse encontro entre uma civilização “ciente de si” e “tribos indígenas desarticuladas” como o encontro entre uma cultura exuberante de maturidade com “bandos de crianças gigantes; uma cultura verde e incipiente, ainda na primeira dentição”. Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. São Paulo. Ed. do Círculo do Livro, 1988, p. 125. 24. Todorov. Op. Cit. A respeito de como os árabes percebiam os europeus na época das cruzadas, ver A. Maalouf. As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo, Brasiliense, 1988. 10 Alexandre Belmonte

em termos de transformação das formas de conhecer e se relacionar com o outro. Nossa fonte de pesquisa fundamental será sempre a História escrita por Jean de Léry, mais precisamente suas duas primeiras edições, a de 1578 e a de 158025. A escolha por tais edições justifica-se pelo próprio propósito de nosso trabalho, qual seja, o de identificar, em última instância, o impacto dos encontros de cultura na forma como Léry pôde representar a si mesmo e uma cultura que emerge em seu texto como sua própria, diversa da cultura dos ameríndios que ele busca descrever e traduzir. Nesse sentido, optamos por utilizar as primeiras edições, a fim de avaliar como se inicia a representação do tupinambá em Léry. Achamos oportuno, entretanto, verificar, nas edições precedentes, as alterações, correções e adendos que Léry faz ao texto original, o que nos permite avaliar o impacto de sua História e a interlocução entre leitores, editores, autor e texto escrito. Uma de nossas ideias centrais é a de que os encontros e confrontos entre culturas tornaram possível uma transformação, sem par na história ocidental, nas formas de conhecer e se relacionar, colocando a alteridade cultural como uma das questões constitutivas do homem moderno. Nossa hipótese principal é que a construção de uma identidade cultural, em Léry, está vinculada à descoberta e representação da alteridade do Novo Mundo enquanto fenômeno histórico. As fronteiras e barreiras entre culturas aparentemente tão distintas parecem desfazer-se à medida que Léry tem a possibilidade, através da experiência presencial com o tupinambá, de revisitar questões fundamentais do homem: nascimento, comunidade, cultura material, morte, rituais, religião, tabus etc.

25. Ambas as edições fazem parte do Acervo de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Trata-se de edições bastante parecidas do ponto de vista formal (ambas publicadas em octavo), e no que se refere ao conteúdo (a segunda edição é aumentada e traz algumas correções). 11 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Alguns problemas surgem quando trabalhamos com um texto escrito no século XVI. No início de seu relato, Léry não parece falar como um viajante desinteressado – não parece haver na sua escrita, ao menos inicialmente, o que Lévi-Strauss chama de “fraîcheur du regard”26. Ao contrário, ele parece chegar ao Novo Mundo provido de uma maneira de olhá-lo e compreendê-lo pré-moldada pelos estereótipos culturais, religiosos e políticos recebidos de sua própria formação cultural. Isso é evidente nos primeiros capítulos de seu relato, onde há uma retórica de citações de autores latinos, de passagens da Bíblia, que não somente dão credibilidade ao que se está lendo, mas indicam também para quem escrevia Jean de Léry. Esses argumentos de autoridade vão dando lugar a comparações entre “Léry e seu mundo” e o “mundo dos tupinambás”. Enquanto Léry vê o Outro munido de um total estranhamento, ele ainda não deixa esse Outro aparecer em sua complexidade. No entanto, com o passar do tempo, ele ganha proximidade com esse Outro, e é capaz de observar e compreender os aspectos humanos mais profundos dos tupinambás, começando a identificar-se com esse Outro nesses aspectos mais humanos. É aí que o Outro pode começar a aparecer, no relato de Léry, em sua complexidade cultural, humana, histórica. O Outro não é mais simplesmente um estranho total, uma aberração humana presa na primitividade. A relação de poder inicial cede espaço a uma relação de sociabilidade, de comunidade, pois é evidente que toda relação de poder acaba, em última instância, pondo em comum o que se encontrava aparentemente isolado. Patrick Charaudeau indica-nos duas noções de linguagem aparentemente antinômicas: 1) a linguagem como

26. “Entrétien avec Lévi-Strauss” In: Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. Paris, Centre National du Livre, 1994, p. 7. 12 Alexandre Belmonte

própria teoria do mundo, como fenômeno que representa, em si mesmo, a organização do mundo, em que o pesquisador busca qual mundo já organizado encontra-se subjacente a essa linguagem; 2) a linguagem como fenômeno que se dá em circunstâncias específicas que orientam sua construção; processo em que se busca saber como a significação é significada27. Para Charaudeau, as duas atitudes diante de um texto escrito são necessárias para uma análise semiolingüística, análise dos signos e da linguagem em si. O fato de a linguagem esconder uma teoria do mundo se expressa, justamente, pelas próprias condições em que a linguagem se estrutura como linguagem; quais sejam, as próprias circunstâncias históricas em que a linguagem se estrutura como discurso de uma língua. Ao desenvolvermos um saber a respeito de como a significação é significada, entramos em contato, necessariamente, com a compreensão de mundo embutida no discurso de toda língua. Nosso trabalho não nos levará, decerto, a fatos históricos, mas sim a condições de possibilidades destes. Léry aparentemente inicia seu relato a partir de um mundo já dado. Ao longo do texto, entretanto, percebemos que aquele mundo e aquela experiência cultural que ele descreve são também construídos através de empenhos de dar significação ao que parece ser estranho àquele mundo pré-dado. O mundo pronto e organizado perde-se junto à fala sobre o tupinambá. Cria-se outro texto, e a questão já não é mais analisar ‘quem escreve o quê para quem’, mas sim quais as circunstâncias comunicacionais e quais a relações de poder e sociabilidade que permeiam a construção desse jogo de identidades e diferenças, de Identidade e Alteridade, do si-mesmo, do outro e de uma comunidade, de um coletivo imaginado, experimentado, sentido e descrito por Jean de Léry.

27. Patrick Charaudeau. Langage et discours. Paris, Hachette, 1983 e Idem,

Grammaire du sens et de l’expression. Paris, Hachette, 1992. 13 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

O texto de Léry dialoga com outros textos contemporâneos, e, através da leitura dessas obras editadas ao longo do século XVI, discutiremos como o encontro com o ameríndio surtiu efeito na transformação dos paradigmas comunicacionais e dos estereótipos culturais, políticos e religiosos que Léry trazia ao Novo Mundo. Discutiremos, assim, o impacto do Novo Mundo e de suas formas culturais na maneira de escrever História no século XVI, analisando a construção, por Léry, de uma identidade cultural através do confronto com a alteridade. Analisaremos o impacto das descobertas na consciência europeia do século XVI, buscando encontrar outros sentidos para o texto de Léry em sua articulação com a rede de discursos sobre religião e de narrativas sobre a alteridade cultural e humana encontrada no Novo Mundo – discursos produzidos e difundidos pelo século XVI europeu, sobretudo em França, Itália, Suíça, Espanha e Bélgica, através do trabalho editorial, político, por vezes religioso, de editores e livreiros das mais variadas origens. Discutiremos também a articulação entre o surgimento da imprensa, a difusão do livro, as práticas e modalidades de leitura e a difusão do conhecimento sobre o Novo Mundo na Europa, bem como a relação entre protestantismo e alfabetização, a alfabetização no século XVI em geral, a função do autor no século XVI etc. Através da iconografia sobre o Novo Mundo em geral, e sobre o selvagem em particular, buscamos compreender de que forma a conquista do Novo Mundo passa, aos poucos, a figurar no imaginário europeu do século XVI, buscando saber quais são as práticas e representações que balizam essa nova relação entre culturas diversas. Além disso, procuraremos mostrar a especificidade do relato de Léry em relação a outros relatos de viajantes escritos e editados ao longo do século XVI, analisando a relação entre texto escrito e mundo, ou seja, de que forma o texto escrito por Léry pode dar conta do mundo que ele descreve. 14 Alexandre Belmonte

Analisaremos a ideia de Paraíso terrestre e os paradigmas interpretativos utilizados por Léry na compreensão do mundo tupinambá: a importância da testemunha presencial em detrimento do conhecimento indireto, o referencial religioso, o referencial das diferenças etc. Apesar de ser constantemente citado como um exemplo do deslumbre europeu em terras virgens, o relato de Léry não é um relato inaugural. O Brasil que ele apresenta já é, de certa forma, historicizado. Discutiremos a ideia de viagem no contexto das descobertas levadas a cabo no decorrer do século XVI, assim como o tema do Paraíso terrestre, e a análise de alguns aspectos discursivos que, na obra de Léry, permitem acessar a construção do outro como objeto de investigação e a construção do ‘eu’ como sujeito cognoscente e testemunha ocular. Por fim, analisaremos o impacto do Novo Mundo na ideia de história de Léry, considerando a historicidade das formas de etnocentrismo possibilitadas pelos encontros e confrontos entre culturas. Buscamos analisar a forma de organização do conhecimento utilizada por Jean de Léry. Que sabia Léry do Novo Mundo antes de sua viagem? Como a experiência presencial de Léry no Novo Mundo transforma o conhecimento prévio que ele tinha sobre essas terras? Buscamos mapear as possíveis leituras de Léry dentro de um contexto de história providencialista, de influência protestante, que se esboça no decorrer do século XVI. Analisaremos, ainda, o confronto de Léry com o canibalismo em dois momentos: no sítio a Sancerre e no Brasil, e o encontro possível entre as duas histórias que Léry escreve, centrado na propagação do protestantismo na França. Abordaremos também a questão da escrita da História para os protestantes franceses no século XVI, a finalidade da história de Léry e a ideia de ‘histoire véritable’ e ‘mémorable’, história verdadeira e memorável. 15 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Nosso trabalho busca contribuir com a historiografia sobre as representações da alteridade no século XVI e os processos de formação de identidades culturais, no sentido de evidenciar as transformações na ideia de cultura possibilitadas pela experiência presencial com o outro. Através da comparação de seu texto com outros textos contemporâneos, o relato de Léry adquire mais sentido religioso, antropológico e histórico. Podemos perceber não somente o impacto das culturas europeias no Novo Mundo – tema já bastante explorado pela historiografia tradicional – mas, sobretudo, o impacto das culturas ameríndias na Europa, através das discussões sobre religiosidade ameríndia, antropofagia, costumes dos nativos, superioridade e inferioridade cultural etc., típicas das relações de viagens quinhentistas.

16 Alexandre Belmonte

– As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. – Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge. Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

18 Alexandre Belmonte

Capítulo

1

A circularidade das ideias: o impacto do Novo Mundo na consciência europeia do século XVI

Imprensa, leitores e leituras no século XVI: possibilidades de recepção

É

comum a referência às consequências do advento da imprensa mecânica em meados do século XV como uma verdadeira revolução cultural, que ocasionaria no século seguinte uma crescente popularização do livro impresso em muitos países europeus, transformando a relação dos homens com o texto escrito, com a figura do auctor e estimulando outros processos cognitivos, mediados pela palavra escrita. Em 1470, é impresso o primeiro livro na França, vinte anos após Gutenberg ter dado a Bíblia à estampa na Alemanha: trata-se de uma edição das Espitolarum liber de Gasparino de Bérgamo, um tratado da arte epistolar, iniciativa de dois professores que tiveram a ideia de possibilitar aos alunos textos corretos e relativamente baratos. Às cartas de Gasparino de Bérgamo, segue-se a publicação de tratados de ortografia e retórica latinas, e de clássicos gregos e romanos, em especial Cícero. É ainda um trabalho bastante rudimentar, com tiragens pequenas (cerca de 200 exemplares). Alguns anos depois, outras oficinas são abertas em Paris e por toda a França, e começa um trabalho vigoroso, em território francês, de publicação de obras clássicas latinas e gregas, romances de cavalaria, teatro, obras técnicas (dicionários, gramáticas, tratados de medicina etc.). Até 1500, estimam-se em 4.000 as edições francesas, testemunhas tanto de uma alfabetização crescente, ainda que bastante restrita a certos setores da população, como também do uso do francês como língua escrita, em detrimento do latim. Roudaut, ao estudar essa dita revolução cultural, sustenta que a imprensa somente proporcionou o estímulo material que 20 Alexandre Belmonte

até então impedia o desenvolvimento rápido de um processo de trocas culturais que já vinha sendo estruturalmente posto em prática há muitos séculos1. De fato, durante grande parte da Idade Média, o livro já se impunha como regulador de certa ideia de civilização. Muitas das atividades monasteriais, por exemplo, eram concentradas ao redor do livro: além do trabalho do copista, havia o trabalho de preparar o couro do carneiro para a confecção do pergaminho. O pergaminho medieval era caro, e muitas vezes reaproveitado pela raspagem ou lavagem do couro (palimpsesto). Havia também a pintura do pergaminho, as iluminuras, a passagem de verniz, a costura e colagem etc. Além dos aspectos materiais, várias outras atividades concentravam-se ao redor do livro: alfabetização, leitura, orações, prática de cantochões e hinários etc. A letra carolina já havia revolucionado a escrita, facilitando a leitura e a cópia2. O códice costurado substituía o antigo rolo de pele de carneiro, facilitando o manuseio, o transporte, e permitindo já na Idade Média a prática da leitura individual e pessoal. Claro que a imprensa mecânica desmonta muita dessa organização ao redor do livro. É importante ressaltar, nesse sentido, alguns aspectos que diferenciam a relação das pessoas com o livro depois do advento da imprensa. Em primeiro lugar, é ao longo de todo o século XVI que o livro adquire uma forma material bastante diferenciada do manuscrito. A variedade de formatos permite leituras diferenciadas e pessoais. Manuzio passa a publicar in-octavo,

1. François Roudaut. Le livre au XVIe siècle: éléments de bibliologie matérielle et d’histoire. Paris, H. Champion, 2003. 2. Sobre o impacto da letra carolina e sua relação com outros tipos de letras, consultar Giorgio Cencetti, Lineamenti di storia della scrittura latina. Dalle lezioni di Paleografia (editado por Gemma Guerrini Ferri). Bolonna, Patron, 1997; Bernard Bischoff. Paleografia latina. Antichità e Medioevo, (org. por Gilda P. Mantovani e Stefano Zamponi) Padova, Antenore, 1992; Armando Petrucci, Breve storia della scrittura latina, Roma, Jouvence, 1992; Leonard Boyle, Paleografia latina medievale. Introduzione bibliografica. Roma, Quasar, 1999. 21 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

formato de livro portátil, permitindo mesmo uma ideia, até então impossível, de “biblioteca sem muros”. O texto, como demonstrou Chartier3, ganhava mais objetividade: a página do título e do autor ganhava destaque, surgia a impressão de gravuras, fotos do autor, marcas de impressores e ilustrações etc.

Fig. 1. – Fac-símile da 1ª. edição da Histoire de Léry. Fundação Biblioteca Nacional 3. Roger Chartier. L’Ordre des livres: Lecteurs, auteurs, bibliothèques en Europe entre XIV e et XVIII e siècle. Aix-en-Provence, Alinéa, 1992. 22 Alexandre Belmonte

François Roudaut também chama atenção para mudanças significativas nos aspectos materiais do livro. O alinhamento da impressão, a supressão dos longos comentários, a construção geométrica das letras no início do século XVI, o uso de citações – todo esse aperfeiçoamento visual certamente ocasionou maior legibilidade e praticidade na relação com o escrito. No lugar de longas glosas, surgem as citações, verdadeiros argumentos de autenticidade e persuasão, sobretudo em meios ainda pouco ou parcialmente letrados. Em Léry, as citações surgem como manchettes às margens do texto, assim como os destaques a algum assunto que ele ou seu editor queiram evidenciar. Através da análise das páginas de títulos de obras quinhentistas, pode-se perceber que a função do autor já é determinante no início do século XVI. O autor era o que detinha autoria e auctoritas sobre o assunto. O título da obra é apresentado em letras grandes, e o nome do autor vem destacado, geralmente em itálico ou em caixa alta. As ilustrações ao longo do texto fazem parte dos argumentos de persuasão e autoridade tão comuns durante todo o período quinhentista, são como provas da autópsia realizada pelo autor, conforme Hartog4. A circulação dos livros é outro aspecto importante no estudo da recepção, não só dos relatos de viagens, mas de obras em geral, publicadas pelo século XVI europeu. Roudaut afirma que a imprensa transformou-se rapidamente em indústria, e as escolhas editoriais passaram a ser ditadas por imperativos econômicos. O temário das obras publicadas ao longo do século XVI é um ponto importante para se compreender a ideia de Renascimento. Através do retorno a autores gregos e latinos, certo cânone medieval vai sendo aos poucos ‘soterrado’, e com ele desaparece todo um painel cultural que imperava nos mosteiros e cidades de grande parte da Europa. Novas

4. François Hartog. Op. Cit. pp. 271 e seguintes. 23 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

ideias e discussões passam a vigorar, novos temas são discutidos e impressos em livros pequenos e acessíveis. Um tipo de pensamento, tipicamente medieval, vai sendo esquecido, deixa de circular pelas cidades. O livro era emprestado, circulava, fazia parte de coleções pessoais, como a de Pontus de Tyard, estudada por Roudaut, ou a modesta coleção de livros do moleiro Menocchio, apresentada por Ginzburg5, para quem havia uma “larga rede de circulação [de livros] que envolve não só padres (como seria previsível), mas até mesmo mulheres”6. A leitura podia ser cada vez mais silenciosa, cada vez mais pessoal, ainda que as taxas de alfabetização fossem baixas7. Estima-se que, nas cidades francesas, cerca de 20% da população masculina era alfabetizada. Nos campos, a taxa descia para 3 ou 4%. Em relação à alfabetização das mulheres, a escritora e poetisa francesa Louïze Labé dizia, em meados do século XVI, que “le temps [est] venue (...) que les severes loix des hommes n’empeschent plus les femmes de s’appliquer aux sciences et disciplines”8. A própria Labé é um exemplo de mulher culta no contexto do Renascimento: filha de um rico artesão, estuda latim, grego,

5. Carlo Ginzbrug. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo, Cia. das Letras, 1987, 3ª. Edição de 2003. 6. Idem, Ibidem, p. 77. 7. Sobre a alfabetização no século XVI, consultar François Furet e Jacques Ozouf, Lire et Écrire, l’alphabétisation des Français, de Calvin à Jules Ferry, Les Éditions de Minuit, Paris, 1977 ; “Alphabétisation et définition du petit peuple à la fin du Moyen Age. Le cas des libraires parisiens” In P. Boglioni, R. Delort e C. Gauvard (org.), Le petit peuple dans l’Occident médiéval. Terminologies, perceptions, réalités. Paris, Publications de la Sorbonne, 2002, p. 647-658 ; De l’alphabétisation aux circuits du livre en Espagne (XVIe-XIXe s.) ouvrage collectif, Paris, C.N.R.S., 1987 e Natalie Zemon Davis. “L’Imprimée et le Peuple” in Les Cultures du Peuple. Rituels, Savoirs et Résistances au 16e Siècle. Paris, Aubier (col. Historique), 1979. 8. Apud Natalie Zemon Davis. “L’Imprimée et le Peuple” in Les Cultures du Peuple. Rituels, Savoirs et Résistances au 16e Siècle. Paris, Aubier (col. Historique), 1979, p. 308. [Trad. nossa: “Chegou o tempo em que as severas leis dos homens não impedem mais que as mulheres se apliquem às ciências e disciplinas.”] 24 Alexandre Belmonte

italiano, música etc., e publica em 1555, após privilégio real. Outras femmes de lettres francesas, no contexto do Renascimento, são Marguerite de Navarre, Anne d’Urfé, Pernette du Guillet, Helisenne de Crenne e Marie de Gournay. Muitas escreviam diretamente para outras mulheres, como o tratado Instruction des jeunes pucelles de Gabrielle de Bourbon. Roudaut estima em 200 milhões o número de exemplares de livros publicados ao longo do século XVI9 – de 150 a 200 mil edições – número surpreendente dada a limitada capacidade de leitura. Em meios ainda bastante iletrados, a leitura em voz alta continuava a ser uma prática comum. Na verdade, muitas vezes procedia-se a tradução do texto em vernáculo para dialetos em uso pelas populações. Conforme alerta Zemon Davis, essas traduções muitas vezes eram acompanhadas de interpretações e comentários sobre as obras. É difícil, portanto, precisar o impacto do livro, e em especial da relação de viagem, em populações que liam e participavam da leitura de formas tão diversas. O impacto da leitura em voz alta em comunidades analfabetas é imprevisível, uma vez que a cultura popular se apropria de textos de formas não previstas na edição do impresso. Em 1572, os impressores de Paris tentavam convencer o Parlamento de que deveriam ser mais bem tratados pelos patrões: A imprensa é uma invenção tão admirável e sua dignidade tão excelente e honrosa, e para todos os franceses proveitosa: mesmo em Paris ou Lyon, uma cidade fornece livros em todas as línguas à toda a cristandade.10.

9. François Roudaut, Op. Cit. 10. Natalie Zemon-Davis, Op. Cit., p. 308. [Trad. Nossa do original: “L’imprimerie est une invention si admirable et sa dignité si excellente et honorable, et par dessus tous autres François prouffitable: mesmement à Paris et Lyon, dont une ville 25 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Estes dados refletem alguns modos pelos quais a vida literária foi afetada, no decorrer do século XVI, pela popularização crescente da imprensa, que, segundo Zemon Davis, oferecia às pessoas a possibilidade de novas escolhas, ao passo que fornecia também novos meios de controlá-las. O campo gozava de uma situação particular. Muitos dos que aprendiam a ler migravam para as cidades. Foi somente a partir de 1530 que o livro provavelmente passou a circular mais pelos campos, pelo menos na França, com a impressão da Bíblia em vernáculo. A primeira edição da Bíblia em francês data de 1530, da editora de Martin Lempereur, na Antuérpia. Nela não consta o nome de seu tradutor, Jacques Lefèvre d’Etaples, já que traduzir a Bíblia para línguas vernáculas era ainda uma atitude perigosa. Durante algum tempo, os doutores em teologia, sustentados pelo direito secular, defenderam seu monopólio de exegese bíblica, recusando aos ignorantes o direito de ler a Bíblia. De fato, os católicos somente podiam ter acesso ao evangelho através da tradução e interpretação do clérigo, durante as missas. O protestantismo, entretanto, foi uma das vias possíveis para a chegada das letras ao campo, e em língua vernácula, embora no século XVI sua influência não tenha provavelmente sido muito ampla. Lutero defendia a necessidade de uma leitura individual da Bíblia, e é evidente que isso causou impacto nas taxas de alfabetização em toda a Europa protestante. Em Genebra, Calvino funda um Colégio e uma Academia, em 1559. O primeiro reitor da Academia será Théodore de Bèze, importante teólogo protestante, e a Reforma propaga, por toda a cidade, a instrução elementar. A circulação da Bíblia era, tanto para Lutero quanto para Calvino, instrumento indispensável para o contato direto entre homem e Deus. Não é à toa que, após o Concílio de Trento (1545-1563), uma das medidas da

fournit toute la Chrestienté de livres en toutes langues”] 26 Alexandre Belmonte

Contrarreforma foi a divulgação da música e das artes em geral (algumas, como a dança, repudiadas pelos protestantes). Através da música, pretendia-se promover uma exaltação da fé dos católicos, pela magnificência das notas e dos cânticos nas capelas e igrejas. O editor calvinista Jean Crespin buscava louvar, assim como Léry, a escrita como um dom. Refugiado em Genebra, funda sua casa editorial em 1550. Sua Histoire des Martyrs foi reeditada algumas vezes ao longo do século XVI, trazendo sempre na página de rosto a marca de sua tipografia e dois versículos do Apocalipse. Pela natureza da obra – um compêndio de todos os mártires da religião reformada – não é de se esperar que Crespin a tivesse publicado em octavo. De fato, a 3ª edição, de 1597, é um volume grande (35 cm), dividido em 12 livros. Na apresentação da obra, há aspectos interessantes no que diz respeito aos usos do latim e do francês no século XVI. Após a folha de rosto, há uma dedicatória do autor, em francês, intitulada À l’Eglise de nostre Seigneur, à Igreja de Nosso Senhor. É uma mensagem aos calvinistas, e era natural que viesse escrita em francês. Na página seguinte, há outra dedicatória, desta vez escrita primeiramente em latim e em seguida traduzida para o francês: Ad Ecclesiæ Christi carnifices, seguida da tradução Aux persecuteurs de l’Eglise de Iesu Christ, aos perseguidores da Igreja de Jesus Cristo. É uma clara mensagem ao clero católico, e também mais um indício do desuso do latim em detrimento do francês. O ódio ao clero católico é recorrente na obra: no primeiro livro, ele refere-se ao papa como l’Antechrist de Rome11. A questão da tradução é também importante. Ao apresentar ao leitor a obra, Crespin o faz em latim com tradução paralela em francês, argumentando que

11. Jean Crespin. Histoire des martyrs, persecutez et mis à mort pour la vérité de l’Evangile depuis le temps des Apostres iusques à l’an 1597. Genebra, Jean Crespin, 1597, p. 21. 27 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Porque muitos que não sabem a língua latina desejavam entender o sentido dos versos latinos escritos no começo desta história dos mártires, S.G.S. pôs-se a traduzi-los em francês: e tendo no-lo comunicado, quisemos levá-lo ao leitor, para que nada doravante lhes impeça de entender todo o conteúdo deste livro.12. Jean-François Gilmont buscou analisar tanto o impacto do livro na difusão da Reforma quanto o impacto da Reforma no desenvolvimento da imprensa europeia. De acordo com ele, a situação do livro acompanha o desenvolvimento da Reforma em países de mentalidades diversas. O estudo da recepção do livro e das práticas de leitura busca determinar de que formas o livro impresso pôde agir em uma sociedade majoritariamente analfabeta. Gilmont pesquisou qual era o público-alvo dos editores protestantes, assim como as respostas católicas aos escritos protestantes, testemunhas da influência cada vez mais crescente destes. A análise das práticas de leitura constitui o caminho mais fecundo, e também o mais difícil, para se mostrar que a influência do livro somente pôde se exercer através de leituras públicas e familiares em voz alta13. É assim que o século XVI apresenta uma nova relação entre o autor e um público anônimo. O relato de Jean de Léry sobre o Brasil, como sabemos, teve sete edições em francês entre 1578 e 1677, além de algumas edições em latim. Se considerarmos a estimativa de

12. Idem, Ibidem. [Trad. Nossa do original: «Pour ce que plusieurs qui ne savent la langue Latine, ont desiré entendre le sens des vers Latins mis au commencement de ce recueil des Martyrs, S.G.S a esté esmeu de les traduire en vers François: et les nous ayant communiquez, nous en avons voulu faire part au Lecteur, afin que desormais rien ne les retarde d’entendre tout le contenu de ce Livre”] 13. Jean-François Gilmont. La Réforme et le livre: l’Europe de l’imprimé (1517-v. 1570). Paris, Les Editions du Cerf, 1990. 28 Alexandre Belmonte

Roudaut, de cerca de 1.000 exemplares por edição, teremos uma média de 7.000 exemplares da obra de Léry em francês, em circulação durante 100 anos. É um número significativo, tanto pela já comentada capacidade de leitura, bastante limitada na época, quanto pelo número de habitantes em Genebra e Paris. Estima-se que a Genebra de fins do século XVI, por exemplo, contava com uma população de apenas 13 ou 14 mil habitantes14. Certo que Paris era muito mais populosa, mas proporcionalmente contava com um número muito maior de analfabetos. Na 2ª. edição da Histoire de Léry, o editor Antoine Chuppin dirige-se aos leitores, explicando o objetivo desta nova impressão da História da viagem: o autor a havia aumentado, corrigido, “enrichie de choses bien remarquables et dignes de memoire”15, adornado com figuras. Na 5ª edição da Histoire, Léry indica que a edição precedente, de 1599, fora muito bem recebida e encontrava-se esgotada, daí a necessidade de uma nova edição16. Novamente surge a recorrência às coisas “notáveis” e “dignas de memória”, e o recurso às ilustrações como provas da autópsia. Para Hartog, a animação das figuras é parte da retórica da alteridade que “faz o destinatário crer que a tradução é fiel”17. Se, por um lado, a história da recepção dos relatos e narrativas de viagens no século XVI deixam ainda muitas lacunas, por outro lado, a iconografia referente ao Novo Mundo é, de

14. Louis Binz. Brève histoire de Genève. Genebra, Chancellerie d’Etat, 2000. 15. Léry, Op. Cit. p. 46. [Trad. nossa: “enriquecida de coisas mui notáveis e dignas de memória”.] 16. “L’imprimeur m’ayant fuit entendre que la 4e. et dernière Edition de ceste Histoire de l’Amerique avoit esté si bien recevuë, que n’ayant plus d’exemplaires il decidoit la r’imprimer: cela m’ayant occasioné de la revoir et corriger par tout où il failloit (…)”. Jean de Léry. Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, dit Amérique… 5a. edição, Genebra, Jean Vignon, 1611, “avertissement du lecteur”. 17. François Hartog. Op. Cit. p. 273. 29 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

fato, outra via para se acessar o impacto das culturas ameríndias nas culturas europeias. Através das imagens, o europeu representa não somente o outro, mas, fundamentalmente, a si mesmo.

30 Alexandre Belmonte

Os selvagens: espelho do europeu

E

m 1504, começou a circular, sobretudo na Itália, França e Alemanha, uma carta traduzida em latim do original italiano, intitulada Mundus Novus. A carta fora escrita a Lorenzo de’ Medici por Vespucci, e era a relação de sua viagem, com descrições das terras descobertas, nativos, geografia, clima, animais exóticos etc. Vespucci dizia tratar-se da descoberta de um “mundo novo”, talvez aquela terra incógnita que os antigos já acreditavam existir, e em torno da qual várias lendas haviam sido criadas: terra sem males, terra onde não se morria, Paraíso terrestre. A carta teve inúmeras edições entre 1504 e 1516, em latim, alemão, holandês e francês. Além disso, o conteúdo total ou parcial da carta consta de inúmeras obras editadas ao longo do século XVI, o que parece indicar uma circulação considerável pela Europa continental. De que forma a descoberta e subsequente conquista do Novo Mundo passam, aos poucos, a figurar no imaginário europeu do século XVI? Quais são as representações e as práticas que balizam essa nova relação entre culturas diversas? Nesta carta de Vespucci a Lorenzo de’ Medici, a questão da nudez dos indígenas é abordada como uma das visões do Paraíso. Os nativos encontrados são gente mansa e tratável. Todos andam nus, sem cobrir nenhuma parte do corpo, e assim como saem do ventre materno, vão até a morte. São selvagens. O selvagem é, sem dúvida, uma peça fundamental nesse novo estatuto de indivíduo que se esboça publicamente em vários contextos sociais europeus. Em Rouen, alguns 31 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

indígenas do Brasil foram apresentados publicamente, por ocasião da visita dos reis à cidade, em 1550. Na Espanha, nos Alpes italianos e por vários centros urbanos europeus, começam a aparecer com mais frequência representações dos selvagens, em que a questão do embate entre civilização e barbárie parece ser o pano de fundo das discussões, assim como a questão de saber-se se o homem possuía de fato uma natureza. A iconografia legada pelo Renascimento constitui-se em um dos espólios privilegiados para se avaliar o impacto dos encontros e confrontos entre europeus e ameríndios. Ela nos dá uma ideia de como os nativos foram vistos e representados: é uma iconografia essencialmente ocidental, europeia se pensarmos na auctoritas, mas híbrida e mestiça pela própria possibilidade de representar. No primeiro encontro entre Vespucci e uma indígena, as tensões ficam por conta dos elementos simbólicos presentes na gravura de Theodor Galle, sobre o desenho de Jan van der Straet. Em primeiro lugar, Vespucci encontra-se vestido dos pés à cabeça, contrastando com a indígena que, estendida em uma rede, estaria nua, não fosse um cocar semelhante a um chapéu e uns trapos ou penas à guisa de saia. A vestimenta, conforme observou Todorov, é um símbolo de cultura, e a sua falta é reveladora da falta de propriedades culturais do indígena18. A questão do corpo é um dos aspectos cruciais para se compreender o impacto das culturas ameríndias nas culturas europeias. Chegava-se sempre vestido à América, e um dos escambos mais frequentes parecia ser, ao menos do ponto de vista dos cronistas, o de roupas. Por que dar roupa ao indígena? Por que vesti-lo, já que não somente os tecidos eram caros, mas

18. Tzvetan Todorov. Op. Cit. pp. 47-50. 32 Alexandre Belmonte

também os pigmentos, a tecelagem e a mão-de-obra especializada? A nudez parecia funcionar como o elemento selvagem por excelência, prova de que os ameríndios desconheciam o castigo perpetrado por Deus a Adão e Eva, desconheciam os limites a que estava habituado o homem europeu: limites fundados a partir de uma complexa relação entre religiões e sexualidade. A nudez também expunha a vergonha do europeu, a dimensão não somente transcendente, mas sexual e finita, do seu próprio corpo. É uma figura de retórica constante nas crônicas e relatos a alusão à falta de vergonha do indígena em mostrar o que deveria estar oculto.

Fig. 2 – Amerigo Vespucci et l’Amérique. Desenho de Jan Van der Straet gravado por Théodore Galle, 1589.

A índia está desarmada, diferente de Vespucci, que tem uma espada embainhada. Ela é dócil, embora haja ao fundo outros nativos que provavelmente deleitam-se em carne humana. A identidade cultural de Vespucci é bem sinalizada pela vestimenta, pelas armas, pela cruz. Nessa pintura, não há um 33 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

plano mais importante e detalhes sem importância em segundo plano, apesar de aparentemente sobressaírem Vespucci e a indígena. Já neste primeiro plano estão presentes de forma sintética todos os elementos retratados: não somente os dois personagens do encontro, mas também os navios, o astrolábio, a cruz e a espada, os animais exóticos, as grossas raízes das árvores e o verde de uma natureza que jamais deixou de surpreender o homem. Conforme Roger Bartra, parece uma ironia da história que tenham sido os índios maia de Maní que, no século XVI, esculpiram dois homens selvagens peludos, armados com bastões, na fachada barroca da casa de Montejo, em Mérida, Yucatán19. Assim como os selvagens representados no Colégio de San Gregorio, em Valladolid, estes selvagens não são os ameríndios encontrados nas descobertas. São uma espécie de antípoda interno do europeu civilizado, um elemento grotesco, mas ao mesmo tempo inofensivo, que figura no imaginário popular medieval e, de acordo com Bartra, mesmo antes do medievo. Essa imagem do selvagem peludo, o agrios grego, associado ao campo, à floresta, perdurou durante todo o período medieval, assumindo diferentes formas de acordo com os contextos culturais em que era percebido, e chegou à Renascença e ao Novo Mundo, de maneiras diversas. Bernal Díaz del Castillo nos informa sobre a grande festa na Tenochtitlán conquistada, em 1538, celebrando a paz entre as cortes francesa e espanhola. Tratava-se de uma festa castelhana no Novo Mundo, com direito a corrida de touros e bosques artificiais. Mais que castelhana ou espanhola, era uma festa que concentrava um espírito ocidental da antiga Roma. Luis de León, um romano que diziam pertencer à linhagem dos patrícios, idealizou um estilo de festa semelhante às triunfais entradas de cônsules e capitães, após as batalhas, na antiga Roma.

19. Roger Bartra. El salvage en el espejo. Cidade do México, Ediciones Era, 1998, p. 9. 34 Alexandre Belmonte

A praça maior do México amanheceu como um bosque, cheia de árvores de todos os tipos, “tan al natural como se allí hubieran nacido”20 e muitos animais, “venados, y conejos, y liebres, y zorros, (...) y dos leoncillos, y cuatro tigres pequeños”21. Em meio a esse bosque, dois esquadrões de selvagens pelejam: de um lado, selvagens munidos de bastões; de outro, selvagens com arcos e flechas: “los unos salvages con los otros revuelven una cuestión soberbia entre ellos, que fue harto de ver cómo batallavan a pie”22, nos conta Bernal Díaz. O que representavam esses dois grupos de selvagens? Por que, nessa encenação, recorreu-se a dois grupos distintos? Para Bartra, os selvagens com bastões são os mesmos que os índios maias esculpiram na fachada da Casa de Montejo. De fato, é possível que se trate dos mesmos selvagens peludos representados no pórtico do Colégio de San Gregorio, em Valladolid, e na fachada da Catedral de Ávila. São os selvagens internos que acompanham o colonizador até o Novo Mundo, e que figuram a seu lado, embora em posição inferior, na fachada da dita Casa de Montejo. Sua encenação e representação no México é bastante simbólica. Seria caso de se pensar que, encontrando o nativo ameríndio e chamando-o selvagem, o europeu tenha reencontrado sua antiga sombra, seu antigo antípoda interno? Se pensarmos nos embates e discussões sobre o bárbaro e o selvagem, sobre civilização, governo e canibalismo, que atravessaram o século XVI europeu, a resposta é provavelmente afirmativa. De acordo com Bartra, esse selvagem é o próprio

20. Bernal Díaz del Castillo. Historia de la Conquista de Nueva España. México, Porrúa, 1976, p. 545. [Trad. nossa: “tão ao natural como se alí tivessem nascido”.] 21. Idem, Ibidem, p. 545. [Trad. nossa: “veados, coelhos, lebres, raposas (...) e dois leõezinhos e quatro pequenos tigres”.] 22. Idem, Ibidem, p. 545. [Trad. nossa: “os selvagens, uns contra os outros, revolvem uma questão soberba entre si, que me cansei de ver como batalhavam a pé”.] 35 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

homem europeu, e a noção de selvageria foi aplicada a povos não europeus “como una transposición de un mito perfectamente estructurado cuya naturaleza sólo se puede entender como parte de la evolución de la cultura occidental”23. Os conquistadores trazem seu próprio selvagem com eles, de acordo com Bartra, para evitar que seu ego se dissolvesse na extraordinária alteridade que estavam descobrindo. Era como se os europeus tivessem que tocar as cordas de sua identidade ao recordar que o Outro – seu alter ego – sempre havia existido, e com isso evitar cair no rodamoinho da autêntica alteridade que os rodeava24. Desta forma, a encenação de uma selvageria artificial, em um bosque artificial, com animais capturados, toda essa representação protegia o europeu não somente da alteridade, de uma selvageria real, mas também de sua própria selvageria e bestialidade, preservando-lhes a identidade de homens civilizados. De fato, a não compreensão do homem selvagem europeu pode, conforme salienta Bartra, obscurecer nossa visão tanto sobre a conquista como sobre a imagética ocidental acerca dos habitantes do Novo Mundo. É evidente que tanto os indígenas quanto os europeus são selvagens em igual medida,

23. Roger Bartra. Op. Cit. p. 13. [Trad. nossa: “como uma transposição de um mito perfeitamente estruturado cuja natureza só se pode entender como parte da evolução da cultura ocidental”.] 24. Idem. Ibidem, p. 13. [Trad. Nossa do original: “para evitar que su ego se disolviera en la extraordinaria otredad que estaban descubriendo. Parecía como si los europeos tuviesen que templar las cuerdas de su identidad al recordar que el Otro – su alter ego – siempre ha existido, y con ello evitar caer en el remolino de la auténtica otredad que los rodeaba”.] 36 Alexandre Belmonte

ainda que de formas diferentes. Tanto uns quanto outros sofreram o impacto do confronto de culturas. A cultura aparece, em vários relatos de viajantes europeus, como uma forma de salientar a selvageria do Outro, o selvagem que todo outro sempre representa. A própria tradição antiga e medieval do ocidente tratou o desconhecido de si-mesmo como o outro selvagem, seja na ideia dos agrioi da Grécia, dos centauros e sátiros, ou dos anacoretas peludos do cristianismo copta, seja na imagem dos homines sylvestres dos Alpes, das bruxas e alquimistas medievais, ou na figura do Louco, o primeiro dos arcanos maiores do Tarô – em todos esses percursos, o homem sempre lidou com sua própria natureza, sua própria vitalidade, o embate entre apolíneo e dionisíaco, entre pulsões construtivas e destrutivas.

Fig. 3 – O Louco, um dos arcanos maiores do Tarô, em uma de suas representações renascentistas25.

25. http://www.tarotcours.com/hist_tar.php.acesso em agosto de 2013. 37 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Também na iconografia renascentista sobre os nativos do Novo Mundo, era sempre, em última instância, o homem metafísico que vinha representado, embora o foco de atenção seja no indígena e nas suas práticas. Há desdobramentos bastante complexos da compreensão e utilização, por determinadas culturas, dessa imagética sobre o outro em geral, e sobre o selvagem em particular, ao longo dos tempos. Não há meios de se saber o exato impacto da difusão de imagens sobre o Novo Mundo na cosmovisão popular europeia no século XVI. É de se supor, entretanto, que o embate entre cultura / civilização, de um lado, e selvageria, do outro, tenha assumido dimensões inéditas: o europeu pretendeu, por fim, exilar seu próprio selvagem de si mesmo, exorcizá-lo, sobretudo entre os séculos XVII-XIX, adentrando no século XX26. O selvagem ficou sendo somente o outro longínquo, cada vez mais reconstruído e assimilado como um outro externo. Os males são exorcizados para o Novo Mundo, e forja-se, na Europa, a própria ideia de Paraíso terrestre que durante séculos fora buscado, e que, em fins do século XV e início do XVI, chegou a ser identificado com as terras então recém-descobertas, mas que ao longo dos séculos XVIII e XIX, chega a ser identificado com o espaço da civilização europeia. Muitos são degredados para o Brasil pela Santa Inquisição, sobretudo durante o século XVII, quando o Paraíso rapidamente se converte em Purgatório. Parece ser precisamente no embate entre homens civilizados e selvagens, entre selvageria, barbárie e civilização, que se cria uma alteridade cultural. Ao mesmo tempo em que se tornam selvagens através de uma encenação, os europeus conquistadores também civilizam o Outro, e, de uma forma ou de outra, são também civilizados e conquistados pelo outro. É o

26. Ainda hoje, a identidade dos brasileiros é atravessada pela identificação com uma natureza exótica. 38 Alexandre Belmonte

caso de alguns detalhes presentes na iconografia de Théodore de Bry, desenhista, gravador e editor protestante nascido na Bélgica, como as indígenas com longos cabelos cacheados, ou com os cabelos presos em tranças, ou ainda as crianças indígenas que remetem aos putti renascentistas. Essa assimilação dos valores e características dos indígenas é freqüente em Jean de Léry. Ele admira-se com a capacidade de autogoverno dos indígenas, surpreendente e exemplar para povos “civilizados” como os franceses: É coisa quase incrível e de envergonhar os que consideram as leis divinas e humanas como simples meios de satisfazer sua índole corrupta, que os selvagens, guiados apenas pelo seu natural, vivam com tanta paz e sossego.27. E mesmo esse lugar de perdição – verdadeiro Paraíso que vai aos poucos sendo convertido em Purgatório e Inferno – é mais casto do que se supõe, até para um religioso calvinista como Léry: Direi mais que apesar do clima da região em que habitam e não obstante serem orientais, nem os mancebos nem as donzelas núbeis da terra se entregam à devassidão como fora de supor; e prouvera a Deus que o mesmo acontecesse por aqui.28

27. Léry, Op. Cit. p. 439. [Trad. Bras. Jean de Léry. Viagem... p. 229.] 28. Léry, Op.Cit. pp. 429-430. As experiências de Léry ficam de tal modo impressas nele mesmo que, embora ele pretenda apresentar o relato de sua viagem ao Brasil como uma história escrita in loco, com “tinta de pau-brasil”, Léry trai-se constantemente ao falar da terra distante (“par delà”) e da França (“par deçà”) – se a passagem tivesse sido escrita na América, a referência deveria ser necessariamente o contrário. [Trad bras. In Jean de Léry. Viagem... p. 224.] 39 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

O selvagem chega a ser, por vezes, um exemplo a ser seguido. Para que seja um verdadeiro selvagem, entretanto, é necessário que careça de civilização, que seja promíscuo, que prostitua a filha solteira, que seja sodomita29. Esta radicalidade entre o que é próprio do selvagem e o que é próprio da civilização parece ser uma condição para a afirmação de uma identidade em Léry, uma identidade primeiramente calvinista, às vezes francesa, às vezes europeia, e às vezes simplesmente judaico-cristã. A iconografia parece, ironicamente, mergulhar mais ainda na universalidade do homem, embora pretenda pintar o indígena com tons exóticos, por vezes grotescos. Em relação à antropofagia, é sempre um momento espantoso e deslumbrante o relato das práticas de guerra e do destino dos prisioneiros de guerra dado pelos indígenas. Ao observarmos atentamente as ilustrações de De Bry, porém, nos indagamos sobre a identidade dos canibais.

Fig. 4 – Theodor de Bry

29. Cf. Léry, Op. Cit. p. 430. 40 Alexandre Belmonte

Quem são os comensais deste banquete macabro, senão os próprios europeus? É bastante evidente a forma como o europeu está contido nestas imagens. Os longos cabelos cacheados das indígenas contradizem as descrições de vários cronistas, segundo as quais as indígenas possuíam cabelos bem lisos e compridos.

Fig. 5 – Theodor de Bry.

Não tendo sido uma testemunha presencial das culturas ameríndias, De Bry recorreu ao seu próprio entorno, à sua própria cultura, para poder retratar o desconhecido. Na figura 6, o prisioneiro rodeado de indígenas selvagens pode perfeitamente ser um outro selvagem – o selvagem peludo que o europeu traz consigo. É preciso que o europeu figure como aquele prestes a ser devorado, para que não caia na tentação de devorar o outro. Mas, estranhamente, ele aparece coberto de pelos da cabeça aos pés, ele próprio um selvagem em meio a outros selvagens. 41 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Há, finalmente, algo em comum entre o canibal e sua refeição. Tanto uma cultura quanto a outra parecem civilizar-se mutuamente, de acordo com suas possibilidades. Chama a atenção o fato de que, mesmo nesse canibal desconhecido, o europeu tenha podido enxergar-se e reconhecer-se a si próprio.

Fig. 6 – Theodor de Bry.

42 Alexandre Belmonte

O Grande Khan sonhou com uma cidade – e descreveu-a para Marco Polo. (...) – Ponha-se em viagem, explore todas as costas e procure essa cidade – diz o Khan para Marco. – Depois volte para me dizer se o meu sonho corresponde à realidade. –Perdão, meu senhor: sem dúvida cedo ou tarde embarcarei nesse molhe – diz Marco –, mas não voltarei para referi-lo. A cidade existe e possui um segredo muito simples: só conhece partidas e não retornos. Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

Capítulo

2

A especificidade do relato de Léry em relação a outros relatos de viagens

Viagens e viajantes, textos e contextos

A

o passear pela Avenida Rio Branco quando de sua estadia no Brasil, Lévi-Strauss carregava o relato de Léry no bolso: “Passeio pela Avenida Rio Branco, onde outrora se elevavam aldeias tupinambás, mas carrego no bolso Jean de Léry, breviário de etnólogo.”1 A especificidade do relato de Léry tem sido evidente na historiografia sobre as representações da alteridade feitas no século XVI através, sobretudo, dos recorrentes estudos de sua obra. Seu relato apresenta inúmeras diferenças de estilo, de interpretação e de método, em relação a outros relatos e crônicas contemporâneas. A Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil de Léry é o relato de uma viagem, em um tempo em que as viagens tinham significado e intenções totalmente diversas em relação aos dias de hoje. Hoje, com as facilidades de locomoção e a virtual abolição das fronteiras, as diferenças entre os homens parecem dissolver-se na contiguidade das metrópoles ou na fruição consumista do turismo de massa. Aquilo que constitui o objeto e a paixão do etnólogo transformou-se, na modernidade, em lazer, distração da mente, descobertas exóticas de mundos de certa forma sempre conhecidos e reconhecidos através de narrativas históricas, romances, mídias... Vivemos numa sociedade em contínuo movimento – diz Nicola Gasbarro – mas fazemos viagens em vão. Quanto mais se

1. Apud Léry, Ibidem, p. 5. [Trad. nossa do original “Je foule l’Avenida Rio-Branco (sic), où s’élevaient jadis les villages Tupinamba, mais j’ai dans ma poche Jean de Léry, bréviaire de l’ethnologue”.] 46 Alexandre Belmonte

gira o mundo, mais se sai da estrutura que torna possíveis o relato e a busca: ‘não há retorno’ porque a viagem já se exaure num ‘transitar sem fim’, que a filosofia da crise faz coincidir com a vida2. No século XVI, as viagens tinham outro significado, e estavam, evidentemente, inseridas em contextos bastante diversos. Em primeiro lugar, realizar uma viagem da Europa ao Mundo Novo custava muito caro, e envolvia uma complicada rede de pessoas conhecedoras das técnicas de navegação, outras dispostas a financiar a viagem, tripulação disposta a vir ao Novo Mundo etc. Colombo, por exemplo, sai de sua cidade de origem para conseguir financiamento para seu projeto de descobrir novas rotas marítimas para as Índias, e somente na Espanha conseguiria financiamento para suas viagens. Léry e muitos outros missionários chegaram ao Mundo Novo financiados seja pelo Estado, pelo clero, pela discreta burguesia em ascensão, ou por todos ao mesmo tempo – nos casos em que os três “financiadores” não se resumissem em uma só instância de poder. Estima-se que, em 1492, ano que marca o início da conquista da América, aproximadamente um terço da população europeia era constituída de povos não europeus. É este também o ano da queda do califado de Córdoba e da subseqüente expulsão dos árabes da península Ibérica. Os Bálcãs, a península grega e a Itália meridional encontravam-se controlados pelos otomanos. As rotas venezianas de comércio, que seguiam as antigas rotas dos tempos de

2. Nicola Gasbarro. “Il ritorno di Colombo tra antropologia e storia” in: Guido Giuffrè (org.). 1492: “... apparve la terra”. Milão, Giuffrè, 1992, p. 3. [Tradução nossa do original “Viviamo dentro una società in continuo movimento, ma facciamo viaggi a vuoto. Più si gira il mondo più si esce dalla struttura che rende possibili il racconto e la ricerca: non si torna perché ormai il viaggio si esaurisce in un transitare senza fine, che la filosofia della crisi fa coincidere con la vita”.] 47 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Marco Pólo, encontravam-se obstruídas, sobretudo pelo alto risco de pirataria. Uma Europa não cristã ameaçava o ciclo de circulação de ideias e mercadorias3. Foi nesse período, em que expulsavam seu outro interno, que os ibéricos confrontaram-se com a alteridade cultural dos ameríndios. Além do custo elevado, viagens tão longas eram acompanhadas pelo fantasma do fracasso. Estão ainda presentes, na cartografia europeia do século XV, as antigas inquietações acerca do que poderia ser encontrado além da linha do horizonte. Monstros que devoravam embarcações, sereias que as atraíam ao fundo do mar, serpentes e dragões gigantes ainda figuravam nas representações cartográficas, e ainda que o senso comum da época as percebesse possivelmente como simples representações do desconhecido, eram figuras grotescas diante das quais o homem nada podia, já que subvertiam a ordem das coisas de forma absurda. De certa forma, a mensagem era a de que havia perigos inimagináveis no mar desconhecido. Para muitos viajantes e exploradores, entretanto, desbravar mares e terras desconhecidos era quase uma missão divina. Em carta a Luís de Santángel, Colombo refere-se ao sucesso de sua viagem como “a grande vitória concedida por Nosso Senhor”4.

3. É nessa conjuntura que a Gênova de Colombo se sobressai, através do acúmulo de capitais provenientes do comércio com o Oriente, e, via Portugal e Espanha, é Gênova que inicia a navegar pelo Atlântico. É também nessa época que o cristianismo se modifica: constantemente ameaçada pela expansão do islamismo e pelas práticas comerciais dos judeus da península Ibérica, torna-se cada vez mais uma religião ofensiva, como nos tempos das Cruzadas, sobretudo após a conquista do Novo Mundo. Com a substituição do domínio muçulmano e otomano, é a articulação entre as coroas europeias, o cristianismo e uma poderosa burguesia em ascensão que passam a constituir o primeiro sistema-mundo efetivo, colocando o Novo Mundo como sua primeira periferia. A formulação e a extensão da lógica do capital no Novo Mundo ocorrem sob o signo da conquista, que representou um modelo político-militar funcionando a serviço do capital, e provocando o fenômeno da polarização. 4. Cristóvão Colombo. “Lettera a Luìs de Santángel” in: Nuova Raccolta Colombiana. Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, 1988, vol. 1, tomo I, p. 309. 48 Alexandre Belmonte

Esse desmedido gosto pelo maravilhoso e pelo misterioso (que a história tradicional já desde o Iluminismo tem percebido como profundamente encarnado no homem medieval) pode ser encontrado em ampla literatura de viagens. Já Marco Polo descrevia os habitantes das ilhas de Andaman como tendo “cabeças de cão e dentes e focinho semelhantes aos de um grande mastim”5. Em Lambri (provavelmente na atual Sumatra), Marco Polo fala dos homens das montanhas, “que têm uma cauda de mais de um palmo de comprimento, grossa como as dos cães”6, que, segundo Sérgio Buarque de Holanda, seria uma referência aos orangotangos. Na cartografia, o mapa de Andrea Bianco de 1432 mostra “homens sem cabeça e com os olhos e a boca no peito”7. Outras representações do maravilhoso no mundo medieval são a cosmografia fantástica, o satanismo, o sabá negro, a bruxaria8, a alquimia, a astrologia e a mitologia em geral9 e, em certa medida, os primeiros relatos de viagens, em que vários desses elementos estão presentes no discurso sobre o outro. Na história do Brasil escrita por Pero de Magalhães de Gândavo, por exemplo, em que pese seu compromisso com a história como “luz da verdade”, ele chega a descrever como foi encontrado e morto um “monstro marinho” – provavelmente um leão marinho – que tinha “quinze palmos

5. Marco Polo. Il Milione, p. 282. Apud. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso, p.18. Ou ainda As viagens de Marco Polo. Trad. De Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p.200. 6. As viagens de Marco Pólo. Ibidem, p. 198. 7. Joachim Lelewel. Géographie du moyen Âge, II. p. 86. Apud. Sérgio Buarque de Holanda, Op. Cit., p. 18. 8. Cf. Jules Michelet. A feiticeira. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1992. 9. Cf. Sérgio Buarque de Holanda. Ibidem, Laura de Melo e Souza. Inferno Atlântico – demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo, cia. das Letras, 1993, Jacques Le Goff. Pour un autre Moyen Age, Idem. L’imaginaire médiéval e Carlo Ginzburg. Mitos, Emblemas, Sinais – morfologia e história. São Paulo, Cia. das Letras, 1989, pp. 15-39. 49 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”10. Em terceiro lugar, superados os perigos da ida, a viagem contava com o retorno; era o retorno a dar sentido a tudo o que fora visto e vivido. Viajava-se para conhecer e também para contar. O retorno evocava uma “operação escriturária”, usando a terminologia de Certeau11, em que a alteridade era definida por um corte que demarcava a diferença, a saber, o próprio oceano, sendo o externo (o Outro) assimilado internamente. Foi o retorno de Colombo, Caminha, Gândavo, Thevet, Léry etc. que gerou e fomentou, entre os séculos XVI e XVII na Europa, a diferença como um fato antropológico, e que lançou as bases do mundo moderno. O comércio insinuou-se cada vez mais, quase como o derradeiro modo de ser do homem, ao passo que o cristianismo atingia proporções cada vez mais planetárias. Além disso, o encontro e confronto entre culturas, cosmovisões e imaginários pôs o europeu em contato com a alteridade cultural de forma abrupta e total. A antiga humanitas greco-romana foi retomada por alguns viajantes, que viam os indígenas como “crianças gigantes”, dotados da força mais primordial e originária da humanidade, e por estar então essa força tão perdida e esquecida pelas culturas europeias, as diferenças foram amadas e ao mesmo tempo repudiadas ao longo de todo o período que se seguiu às descobertas. No caso do relato de Jean de Léry, sua publicação acontece muitos anos após o retorno. Ao ter de publicar suas memórias de viagens, Léry as reconduz a uma via literária; o passado é

10. Pero de Magalhães de Gândavo. A Primeira história do Brasil – História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. (texto modernizado e notas de Sheila Moura Hue e Ronaldo Menegaz). Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 2004. p. 130. 11. Michel de Certeau. A Escrita da História. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982. pp. 216-226. 50 Alexandre Belmonte

rememorado e analisado. Os fatos vividos passam a ser descritos nos relatos de viagem, tornando-se narrativas exemplares. Ao lê-los hoje, devemos pensar, como adverte Todorov, que eles nos remetem mais ao conhecimento do verossímil do que do verdadeiro12: devemos lê-los não como simples descrições, mas como atos. Ao lidar com suas memórias de viagem de forma literária, Léry reelabora a atividade política implicada no encontro com os tupinambás do Novo Mundo. A questão do poder está vinculada à produção de um discurso sobre o outro – no caso de Léry, o outro estava constituído por sociedades ágrafas, essencialmente orais, vivendo em estado de natureza. Há uma relação necessária entre o texto escrito e o mundo, de acordo com Paul Ricoeur. Nem o mundo dos tupinambás, nem o mundo de Léry podem ser apreendidos diretamente através de um texto: o mundo é sempre inferido a partir de suas partes, e “as partes devem estar separadas conceitual e perceptualmente do fluxo da experiência”13. Assim como o etnógrafo que vai embora do campo levando consigo textos para posterior interpretação, também no caso de Léry, a real elaboração de seu texto é feita em outro lugar. As experiências, no dizer de James Clifford, tornam-se narrativas, ocorrências significativas e exemplares. É esta operação de tradução da experiência num corpus textual – afastado das condições discursivas e dialógicas de sua produção – que está na base de uma certa autoridade etnográfica. Autoridade não somente no sentido de alguém ser autor de uma narrativa sobre outrem, mas também, e essencialmente, da possibilidade de uma narrativa isolada

12. Tzvetan Todorov. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 64. 13. James Clifford. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 2a ed. 2002. p 40. 51 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

constituir-se como discurso de poder sobre outrem14; um poder sempre autoritário, pretensamente emanado a partir de um autor, embora seja ingênuo pensar em poder nesses termos. Em todo caso, é um poder relativo e sujeito, por sua vez, ao fascínio e poder exercido pelo outro que se tenta descrever. Há, por um lado, a relação cultural da testemunha presencial com o conhecimento da realidade e sua relação essencialmente política com o tupinambá, e, por outro, a operação política que se dá na escrita (experiência corporal, ao vivo, e elaboração literária a posteriori). De que forma essa produção simbólica se apropria do outro? Qual é a sua função política dentro do contexto em que é gerada? As discussões levantadas por Clifford em relação às etnografias são válidas também para um relato de viagem como o de Léry. Em ambos os casos, o texto não é uma mera interpretação de uma realidade abstraída e textualizada – a linguagem é, tanto nas etnografias modernas como nas ‘etnografias’ quinhentistas “atravessada por outras subjetividades e nuances contextuais específicas, pois toda linguagem, na visão de Bakhtin, é uma ‘concreta concepção heteroglota do mundo’”15.

14. Esta é a discussão que Clifford faz ao falar da autoridade etnográfica: “(...) um “autor” generalizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou contexto dentro do qual os textos são ficcionalmente recolocados. (...) O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada.” Idem, Ibidem. pp. 41-42. 15. Idem, Ibidem. p. 44. 52 Alexandre Belmonte

Os primeiros relatos: a busca do Paraíso terrestre

A

s diferenças entre o relato de Léry e outros relatos contemporâneos seus não se resumem apenas à produção simbólica sobre o outro – que, no caso de Léry, conta com o referencial da igreja reformada e dos ideais calvinistas e as controvérsias e questões político-religiosas que dominaram a França na segunda metade do século XVI. O tipo de discurso que Léry produz é diferente em vários sentidos, apesar de trazer os mesmos estereótipos políticos, culturais e religiosos de vários contemporâneos seus. O tipo de pergunta que fazemos às primeiras cartas e relatos (por exemplo, às cartas de Colombo, Caminha e Vespucci) refere-se mais às possibilidades discursivas sobre o outro do que propriamente aos modos de ser e viver do outro. Tentamos acessar um conjunto de crenças e estereótipos que se perdem na história, e que subjazem às possibilidades de narrar e construir uma abordagem da alteridade presentes nessas primeiras cartas. Assim, nem os descobrimentos de fins do século XV nem as possibilidades de narrar foram algo fortuito – inscrevem-se no desenrolar da história europeia de fins da Idade Média, no desenvolvimento das técnicas de navegação, da cartografia, na história de guerras, peste negra e fome que assolaram a Europa continental no século XIV. Os descobrimentos inserem-se, igualmente, nos percursos do cristianismo na Europa, nas guerras de religião, nas disputas políticas, na história do acúmulo de riquezas pelas monarquias europeias, nos ofícios e atividades burguesas nos séculos XIV e XV – e, sobretudo, num tipo de homem que deixava 53 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

aos poucos de ser feudal, no sentido de preso à gleba e ao território, e aumentava a comunicação através do comércio, tornando-se mais planetário. Antes de sua quarta viagem, Colombo acreditava que o Novo Mundo fosse de fato uma enorme ilha. Ao realizar sua quarta viagem, entretanto, chegou à conclusão de que o continente que explorava era parte da costa oriental da Ásia. Os mapas que ele esboçou parecem mostrar isso. A confusão que muitos viajantes, inclusive Colombo, experimentaram, é bem representada tanto nos mapas esboçados quanto na carta enviada por este ao rei Fernando da Espanha. Rejeitando algumas informações cartográficas e aceitando outras, Colombo subestima a imensa distância entre Europa e Ásia e superestima a dimensão das terras descobertas. É provável que, a partir desse erro, ele tenha realizado suas descobertas. Todorov fala do “erro” de Colombo como um “erro linguístico”, dada a sua dificuldade em pensar nas línguas e medidas métricas como convenções locais: Colombo aceita a autoridade do astrônomo árabe Alfragamus, que indica com bastante correção a circunferência da Terra, mas exprime-a em milhas árabes, de um terço superior às milhas italianas, a que Colombo está acostumado16. A representação pré-colombiana do mundo, em especial o mapa-múndi de Martellus, mostra ainda a influência direta dos mapas criados a partir das informações de Marco Polo sobre a Ásia, e das então recentes incursões portuguesas na África. Martellus representa a transição entre a cartografia da Alta Idade Média – emergindo de profundas transformações sociais, religiosas, tecnológicas e científicas – e a cartografia

16. Tzvetan Todorov. Op. Cit. pp. 41-42. 54 Alexandre Belmonte

que reflete o espírito Renascentista das novas descobertas. Era alemão, provavelmente de Nuremberg, e trabalhou na Itália entre 1480 e 1496. Suas representações cartográficas ajudaram a redefinir a forma como o globo era representado. Acredita-se que uma cópia do mapa de Martellus tenha chegado às mãos de Colombo na Espanha. Essa tradição cartográfica, desenvolvida a partir da projeção de Ptolomeu, era sempre forçada a acomodar uma quarta parte do mundo. Mesmo na Antigüidade, Cratos de Mallos, por volta de 180 a.C., evitou representar a Oekumene isolada (figura 7).

Fig. 7 – Reconstrução do Globo por Cratos de Mallos, circa 180 a.C17.

Possivelmente para não ferir o senso estético e matemático dos gregos, Cratos deduziu a existência da Antipodes, quarta 17. http://cassian.memphis.edu/history/jmblythe/GlobalS10/GlobalS10.html. acesso em agosto de 2013. 55 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

parte do mundo, equilibrando o globo terrestre com quatro grandes blocos continentais. Os esboços de Colombo (figura 8), na verdade desenhados por seu irmão Bartolomeu Colombo para ilustrar a quarta viagem ao longo da costa da América Central, representam suas conclusões mais amadurecidas em relação à proximidade entre o Novo Mundo e a Ásia. Em relação às cartas escritas por Colombo, percebe-se uma diferença muito grande entre estas e os relatos de viajantes elaborados no decorrer do século XVI. Tal como a carta de Pero Vaz de Caminha, as de Colombo têm uma preocupação em apresentar um panorama geral das terras e dos nativos: conta o número de milhas entre uma ilha e outra, descreve a topografia das regiões, a nudez dos nativos etc. Colombo descreve efetivamente uma viagem. Fala dos gentios, entre os quais não vê muita diversidade, e visto que “todos se entendem”, imagina que será mais fácil convertê-los ao cristianismo. Colombo diz não ter encontrado “homens monstruosos, como muitos pensavam”.

Figura 8 – Esboço de mapa das Índias Orientais de Colombo e Alessandro Zorzi18.

18. http://colombo.do.sapo.pt/indexPTColomboPort01Bartolomeu.html. acesso em agosto de 2013. 56 Alexandre Belmonte

Quando fala de quão exuberante é a vegetação do Novo Mundo, fornece ao leitor uma imagem do Éden. Sua curiosidade não é saber como os indígenas fazem suas casas, preparam suas iguarias ou fumam suas ervas, como mostraram os viajantes ao longo do século XVI. Quer saber, primeiramente, quem é esse outro dentro de seu habitat. É uma perspectiva muito diferente da de Léry, por exemplo, que buscava descrever as plantas e árvores inexistentes na Europa, recorrendo a metáforas e comparações, desenhando-as, descrevendo suas propriedades medicinais e seus usos pelos indígenas – enfim, falava da vegetação mais como cientista, ainda que o caráter edênico seja recorrente em toda a literatura de viagens até praticamente o século XVIII. Uma diferença marcante entre os relatos tipicamente ibéricos e os da Europa continental foi percebida por Holanda em Visão do Paraíso. Enunciando visões de mundo e maneiras de se relacionar com a realidade diferentes entre si, os dois tipos de relatos – continental e ibérico – remetem o leitor a ânimos igualmente diversos. Os franceses parecem ser mais abertos ao maravilhoso e ao sobrenatural. No português, por outro lado, Holanda enxerga um “realismo desencantado”, em que a experiência imediata com a realidade é que vai reger a noção de mundo. No Brasil, sustenta Holanda, os portugueses contribuíram muito pouco para a formação dos chamados mitos de conquista. A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu, desde o começo, as novas terras descobertas, parece assim rarefazerse à medida que penetramos na América lusitana.19

19. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e ciolonização do Brasil. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1992. 57 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Fazem referência, utilizando-se de metáforas, ao colorido do lugar, ao verde da flora, à riqueza da fauna, à inocência das gentes, mas não parecem enxergar nisso uma diferença tão determinante em relação à Europa a ponto de impor um outro tipo de relação que não uma colonização por vezes preguiçosa, daquelas em que, embalados na rede pelo mesmo vento, igualam-se colonizador e colonizado. Pero de Magalhães de Gândavo, que esteve no Brasil provavelmente na década de 1560, ao falar dos motivos que o fizeram escrever sua história do Brasil, compara a escassez de informações sobre as novas terras que se tem em Portugal em relação a outros países: (...) parece coisa decente e necessária terem também os nossos naturais a mesma notícia, especialmente para que todos aqueles que nestes reinos vivem em pobreza não duvidem escolhê-la para seu amparo; porque a terra é tal e tão favorável aos que a vão buscar, que a todos agasalha e convida com remédio, por mais pobres e desamparados que sejam20. De fato, longe de fazer uma narrativa maravilhada, Gândavo apresenta a terra exótica como lugar a ser habitado, ou conforme observou Sheila Hue, como “casa”, e é nesse sentido que não produz, segundo Hue, um relato de viagem, mas um tratado, uma história21. Ele dá importância à experiência em detrimento da fantasia (“Tudo o que escrevo aqui, vi e experimentei”22) – tanto é assim que, ao preparar a sua história para ser publicada, reformula certas passagens que constam de outros três manuscritos, omitindo e suprimindo

20. Pero de Magalhães de Gândavo. Op. Cit. p. 38. 21. Idem. Ibidem, p. 23. 22. Idem. Ibidem. p. 22. 58 Alexandre Belmonte

fatos que não podiam ser verificados. O episódio do monstro marinho, entretanto, é mantido, se bem que acompanhado por um desenho, “tirado pelo natural”23. Outro aspecto interessante de seu texto é sua noção de história. Embora não se apresente como douto ou refinado nas artes e letras (ao contrário, ele diz escrever em estilo “fácil e chão”24), Gândavo havia certamente tido contato, direta ou indiretamente, com o De Oratore, de Cícero, já que fala da história como “luz da verdade”. Sérgio Buarque de Holanda argumenta, porém, que mesmo os ibéricos, em que pese sua propensão a um realismo amargo e resignado, cético e empirista, não se encontravam tão afastados de certas concepções correntes na Idade Média sobre a realidade física do Éden. A tradição medieval, tanto a europeia quanto a árabe, versava sobre o Éden havia séculos. Essas histórias e lendas já se haviam transformado em verdadeiros mitos, sobretudo após as viagens de Marco Pólo à Ásia (1275-1295). A descoberta significou, em muitos aspectos, a realização de uma profecia. O mito da conquista estava de tal forma arraigado nas culturas e no imaginário europeu medieval que, ao chegar às Antilhas, Colombo pensou ter chegado ao Paraíso terrestre: “Estou convencido de que aqui é o Paraíso terrestre, onde ninguém pode chegar se não for pela vontade divina.”25 É a conquista de um mundo que se coloca, historicamente, fora do mundo real, o que segue a tradição das descrições maravilhosas de outros mundos por Marco Polo. Foi mais fácil para Gândavo qualificar um novo e bizarro animal marinho de “monstro marinho”, situando-o nos confins ou mesmo fora do mundo. Mesmo que o seu relato seja, comparado aos

23. Idem. Ibidem. p. 130. 24. Idem. Ibidem. p. 40. 25. Colombo. Carta aos reis de 31/8/1498 Apud Todorov. Op. Cit. p. 22. 59 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

de outros, bastante verossímil, racional ou humanista, ele está, entretanto, submerso em uma cosmovisão mais antiga e irresistível, em que seres monstruosos habitam o além-mar. Da mesma forma, do ponto de vista dos ameríndios – sobretudo dos astecas no México-Tenochtitlán – a conquista representou a realização de uma profecia26. Assim, tanto a América, mundo novo, entra para a história, desde sua descoberta e apropriação simbólica e material, como lugar irreal, fora do mundo, como também os que chegam, europeus conquistadores, são vistos como entidades reconhecidas (sobretudos pelos incas peruanos e pelos astecas) através dos inúmeros presságios e profecias sobre a tomada das terras – preocupação antiquíssima com guerras e tomada de terras e poder. Algumas crônicas, como as de José de Acosta, Martín Morua e Garcilaso de la Vega, recolhem versões orais acerca dos presságios sobre a chegada dos espanhóis. Garcilaso relata:

Lembro-me que um dia, conversando com aquele Inca velho (...) lhe disse: “Inca, sendo essa terra de vocês tão áspera, e sendo vocês tão belicosos e poderosos para ganhar e conquistar tantas províncias e reinos, por que deixaram que tão poucos espanhóis tomassem tão depressa seu império?” Para responderme, tornou a repetir o prognóstico acerca dos espanhóis (...) e contou-me como seu inca lhes havia ordenado que os obedecessem e servissem (...) e respondeu à minha pergunta dizendo: ‘Estas palavras que nosso Inca nos disse, que foram as últimas que proferiu, foram mais poderosas para nos sujeitar e

26. Leopoldo Zea. Ideas y presagios del descubrimiento de América. México, Fondo de Cultura Económica, 1991. Tvzetan Todorov. Op. Cit. 60 Alexandre Belmonte

toma nosso império do que as armas que teu pai e seus companheiros trouxeram a esta terra’.27 Alguns estudiosos, entre eles Todorov, estudam a derrocada do Império Inca e da Confederação Asteca a partir das profecias locais, como é o caso das palavras do inca Huaina Cápac dirigidas a seus súditos, ou a capitulação de Montezuma a partir de seu suposto temor que o deus Quetzalcoátl estivesse voltando para reconquistar o que um dia fora seu e que os astecas lhe haviam usurpado. Se, por um lado, os presságios e profecias dos nativos referiam-se à perda da terra local e seu subjugo por outro povo e outro deus, as profecias dos europeus referiam-se à realidade física do Éden, do Paraíso terrestre, terra de delícias criada por Deus e destinada a alguns homens – não a todos, mas a quem a achasse com a divina ajuda de Cristo. Para os nativos, os deuses iriam conquistar o que os homens lhes haviam usurpado. Para os europeus, os homens deveriam conquistar o que Deus lhes havia reservado. Eis o que relata Vespucci a Lorenzo de’ Medici: Esta terra é muito amena e cheia de infinitas árvores verdes e muito grandes, e nunca perdem as folhas, e todas têm odores muito suaves e aromáticos, e produzem infinitésimas frutas, e muitas dessas são boas ao paladar e saudáveis ao corpo. Os campos produzem muitas ervas, flores e raízes muito suaves e boas, e às vezes eu ficava maravilhado com os suaves odores das ervas e flores, e com o sabor dessas frutas e raízes, tanto é assim

27. Apud. María Luisa Rivara. “El mundo andino inmediatamente anterior al descubrimiento: pronósticos en el Imperio Incaico sobre la llegada de los españoles” In: Leopoldo Zea. Op. Cit., p. 6. [Trad. nossa.] 61 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

que eu achei que estava no Paraíso terrestre: entre esses alimentos, acreditei estar perto do Paraíso.28 Colombo contava, também, com esse forte argumento bíblico, o da existência do Paraíso, e não é a experiência que parece reger suas ações, mas sim a confirmação dessa realidade. Conforme diz Todorov, “ele sabe de antemão o que vai encontrar; a experiência concreta está aí para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser investigada (...).”29 No prefácio de seu Livro das Profecias, Colombo explica a simplicidade dos descobrimentos: Já disse que, para a execução do empreendimento das Índias, a razão, a matemática e o mapa-múndi não me foram de nenhuma utilidade. Tratava-se apenas da realização do que Isaías havia predito30. Em terras assim concebidas e assim engendradas às possessões europeias, cabia aos conquistadores batizá-las, ‘limpando-as’ das marcas que os nativos pagãos haviam nelas deixado, reinaugurando-as. Colombo, ao passo que fazia o reconhecimento das ilhas que acabara de descobrir, dá-lhes novos nomes: No trigésimo terceiro dia após minha partida de Cádiz, cheguei ao mar Índico, onde encontrei muitas ilhas habitadas por inúmeros homens, as quais tomei por possessão de nosso Felicíssimo Rei (...). Às 28. Amerigo Vespucci. “Notta d’una lettera venuta d’Amerigo Vespucci a Lorenzo di Pietro Francesco de’ Medici l’anno 1502 da Lisbonna della loro tornata delle nuove terre mandato a cercare per la Maestà de re di Portogallo” In: Luciano Formisano. Lettere di viaggio. Milano: Mondadori, 1984, pp. 21-25. [Tradução nossa] 29. Todorov. Op. Cit. p. 23. 30. Idem. Ibidem. p. 31. 62 Alexandre Belmonte

primeiras dei-lhes o nome de nosso Santo Salvador (...). Mas os índios as chamam Guanahany. Também dei a cada uma das outras [ilhas] um novo nome. Ordenei que uma se chamasse Santa Maria da Conceição, outra Fernandina, outra Isabela, outra Joana, e assim por diante..31 A América é engendrada ao mundo, primeiramente, a partir de uma operação de apropriação, na qual a atribuição de novos nomes é a condição de cognição e de relacionamento com o outro. Os nativos chamavam as Antilhas de Guanahany, palavra que, para Colombo, não significava nada, e, portanto, ele decidiu dar-lhes outros nomes, que evidentemente as situavam dentro da cosmovisão daquele que chegava: a reverência a Cristo, aos santos, ao Rei e à família real, dentro da típica cosmovisão do Antigo Regime ibérico que punha Cristo, santos e reis em um mesmo patamar. Ao que tudo indica, Colombo fiava-se em velhas convenções eruditas como orientação para sua experiência náutica: historiadores, teólogos, cartógrafos, poetas, viajantes, geógrafos – muitos haviam já falado do além-mar. Essa tradição erudita e ‘científica’, porém, continuava enlaçada ao tema mítico do paraíso terreal. É por isso que há tanta semelhança entre as descrições de Colombo sobre os indígenas e as de Marco Polo sobre os habitantes da ilha de Ágama. Colombo também faz alusão ao verde do Novo Mundo, usando quase as mesmas palavras de Léry e de muitos outros cronistas e historiadores das descobertas: 31. The Letter of Columbus on the Discovery of America: A Facsimile of the Pictorial Edition, with a New and Literal Translation, and a Complete Reprint of the Oldest Four Editions in Latin. New York:Trustees of the Lenox Library, 1892. [Tradução nossa do original “Tricesimotercio die postquam Gadibus discessi: in mare Indicü perveni: ubi plurimas Iunsulas innumeris habitatas hominibus reperi: quarü omnium pro fœlicissimo Rege nostro: (...) primeque earum: divi Salvatoris nomě imposui. (...) Eam vero Indi Guanahanyn vocant. Aliarum etiam unăquanque novo nomine nücupavi. Quippe aliam Insulam Sancte Marie Conceptionis, aliam Fernandinam, aliam Hysabellam, aliă Iohănam, et sic de reliquis appellari iussi”] 63 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Todas estas ilhas são muito bonitas, e se distinguem por várias qualidades. São acessíveis, e uma grande variedade de árvores estende-se em direção ao céu, e creio que suas folhas nunca caiam, pois as vi tão verdes e florescentes como geralmente são na Espanha no mês de maio. Algumas estavam em flor, algumas davam frutos, algumas em outras condições, cada qual em sua maneira própria. O rouxinol e vários outros pássaros sem número cantavam, no mês de novembro, quando eu passava por lá.32 É interessante notar que, nesse tipo de relato, há sempre a recorrência do mesmo deslumbre, sempre a alusão ao fato de as árvores nunquam foliis privari (“nunca se desfolharem”); há sempre também a alusão à primavera europeia como o que mais se assemelhasse ao cenário edênico do Novo Mundo: ceu mense Maio in Hispania solent esse (“como geralmente são na Espanha no mês de maio”). Também Gândavo fala do clima do Brasil como uma amena primavera portuguesa. Filippo Sassetti, viajante, mercador e humanista florentino, descreve a Índia de forma semelhante, cheia de “coisas novas”, quando de sua chegada a Cochim, Malabar, em 1583: Na terra se apresentavam à vista coisas totalmente novas, seja em relação às plantas ou aos animais e homens. Os frutos são muitos e de várias formas (...)33

32. Idem, Ibidem. [Tradução nossa do original: “Omnes he insule sunt pulcerrime et variis distincte figuris pervie et maxima arborum varietate sidera lambentium plene, quas nunquam foliis privari credo, quippe vidi eas ita virětes atque decoras, ceu mense Maio in Hispania solent esse. Quarum alie florětes, alie fructuose, alie in alio statu, secundum uniuscuiusque qualitatem vigebant: garriebat philomena, et alii passeres varii ac innumeri, mense Novembris quo ipse per eas deambulabam.”] 33. Filippo Sassetti. Lettera da Vari Paesi, 1570-1588. editadas por V. Bramanti, ed. Longanesi, Milão, 1970. [Tradução nossa do original “In terra si rappresentano alla 64 Alexandre Belmonte

Vários relatos de viajantes à Índia entre os séculos XVI-XVII também fazem alusão ao encontro como novidade histórica: o próprio Sassetti envia à Europa várias sementes de árvores que considerava exóticas, e chega a montar um jardim botânico em Goa. Os viajantes italianos na Índia, porém, fazem mais referência às culturas humanas encontradas do que propriamente ao caráter edênico da terra. Niccolao Manucci (1653-1708) chega a descrever de forma sucinta o funcionamento do sistema de castas na Índia34, e Pietro Della Valle conjectura sobre a origem dradiviana da rainha de Olaza, entre 1623-25, pelo fato de andar descalça “tal qual as mulheres hindus”35. Esses relatos se colocam, temporalmente, um século ou mais após as primeiras cartas sobre o novo mundo, e tais quais os relatos contemporâneos sobre a América, estão mais preocupados em compreender como vivem as culturas encontradas do que propriamente estabelecer uma visão do Paraíso – embora este tema seja recorrente em quase toda a literatura de viagens. Os primeiros relatos sobre a América recém-descoberta parecem emergir, portanto, da busca pelo Éden, pelo Paraíso terrestre, uma busca que a historiografia tem visto como estritamente medieval. A natureza é exacerbada pelo observador: uma natureza semelhante à europeia, mas infinitamente mais verde, mais colorida, que parecia desafiar suas próprias leis, já que as árvores estavam sempre verdes, os pássaros estavam sempre a cantar, os homens estavam sempre como quando saíram do ventre.

vista tutte cose nuove, sì quanto alle piante come degli animali e degli uomini. I frutti sono molti e di varia figura (...)”] 34. Niccolao Manucci. Storia do Mogor, 1653-1708. Niccolao Manucci, tr. William Irvine, Royal Asiatic Society, Londres, 1900, pp. 34-35. (reeditado em 1989 por Publishers and Distributors, Nova Delhi). 35. James Talboys Wheeler e Michael Macmillan. European Travellers in India. Calcutá, Susil Gupta India Ltd., 1956, p. 30. 65 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

A nudez era um aspecto edênico por excelência: mito e religião se confrontam de forma tensa na imagem do índio nu. Adão e Eva, antes de caírem em tentação, andavam nus. Thevet chega a fazer uma interessante comparação: Afirmam alguns indivíduos que nos primeiros tempos da colonização europeia homens e mulheres viviam nus, escondendo suas partes secretas, assim como está escrito com relação aos nossos primeiros pais.36 Chegava-se vestido à América, e a nudez do outro apontava não somente o modo de vida diverso desse outro, mas a estranheza por parte de quem chegava de ter que se confrontar com sua própria vestimenta, de ter que historicizá-la, de ter que encontrar na religião e nos desígnios de Deus a justificativa maior para o uso da vestimenta. Colombo não deixou de sentir esse estranhamento, de sentir-se inferior ao índio nu; tanto é assim que o obrigou a vestir-se antes que viesse a ter com ele. O sentimento de inferioridade diante do índio nu tinha origens explicitamente bíblicas: se os indígenas eram criaturas de Deus, e se podiam andar nus, significava que eram então puros e livres do pecado original assim como o haviam sido Adão e Eva antes da Queda. Restavam duas atitudes, exercidas e pensadas ao longo da conquista: ou via-se o indígena como esse elemento puro, ou pensava-se nele como infiel e pagão, infrator da lei de Deus, ousando andar nu mesmo após a expulsão do primeiro pai e da primeira mãe do paraíso. Muitos viajantes enxergavam, na nudez, não simplesmente a humanidade em sua infância, mas uma humanidade sexualizada ao extremo, tão adulta a ponto de andar nua e infringir a ordem de Deus. Além disso, a nudez erotizava tanto o outro como o si-mesmo: o encontro de culturas significava

36. André Thevet. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte, Itatiaia, 1978, p. 101. 66 Alexandre Belmonte

também encontros sexuais, jogos de sedução, e na falta da sedução recíproca, recorria-se a investidas violentas, tratando o corpo do outro como objeto vivo a ser consumido, ato sexual a ser consumado de uma maneira ou de outra. A nudez dos nativos remetia não somente a um primitivismo cultural, mas ao prazer do ato sexual. O paradisíaco do mundo novo deveria contar também com a facilidade de se obter prazer carnal num imenso jardim de delícias, e as índias, segundo Michele de Cuneo, vencidas menos pelo prazer que por cordas que as atavam, comportavam-se como experientes cortesãs37. A nudez remetia à imagem de índios fortes e saudáveis, objetos de desejo e repugnância – desejo do que é diferente e repugnância do que é igual, desejo do homem-besta e repugnância da bíos, da cultura ameríndia, estranha e agressiva. A esse tipo de relato, relacionado às primeiras viagens de exploração, seguem-se os relatos ligados às viagens de expansão, como é o caso do Diário de navegação de Pero Lopes de Souza. Neste, o outro deixa de ser a totalidade dos entes, e passa a ser descrito em suas especificidades. Parece haver aí uma transição entre formas de conhecer: enquanto nos primeiros relatos ‘conhecer é saber’, nas viagens de expansão, conhecer passa a ser ‘ver’. O relato de Gândavo é significativo dessa relação entre a visão e o verossímil, entre o que se vê e a história fidedigna que se propõe a contar. Serão as viagens de colonização a consolidar a transição entre formas distintas de conhecer. Para Léry, conhecer era ver e experimentar. Não bastava o “eu vi com meus olhos” – pois André Thévet havia evocado esta máxima e nem por

37. Assim relata Michele de Cuneo: “(...) capturei uma mulher belíssima (...) e estando ela nua, como é costume deles, concebi o desejo de ter prazer. Queria pôr meu desejo em execução, mas ela não quis, e tratou-me com suas unhas de tal modo que eu teria preferido nunca ter começado. Porém, vendo isto (para contar-te tudo, até o fim), peguei uma corda e amarrei-a bem, o que a fez lançar gritos inauditos (...). Finalmente, chegamos a um tal acordo que posso dizer-te que ela parecia ter sido educada numa escola de prostitutas.” Apud. Todorov. p. 67. 67 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

isso seu relato era fidedigno – mas sim o “eu estive lá e experimentei junto aos nativos”. Connaître, ‘nascer com’: eis o que recupera o olhar de Léry para o ocidente. É assim que as viagens de colonização inauguram uma nova abordagem da alteridade, uma nova retórica sobre o outro e também novas reflexões sobre a alteridade cultural. Claro que Léry evoca sempre o colorido do Novo Mundo, sua flora diversificada, seus estranhos animais – justamente como nos relatos dos viajantes que o antecederam. Será, porém, a espiritualidade o paradigma por excelência a apontar diferenças essenciais entre as culturas do lado de lá e as do lado de cá. A espiritualidade será o paradigma essencial, tanto para católicos quanto para protestantes, em suas descrições dos nativos. Os relatos do século XVII deixam várias pistas sobre a evangelização e sobre o fato de ter de se confrontar com a alteridade cultural: Em relação aos Tapuias, não tinha sido ainda possível persuadi-los, pois o diabo lhes ameaçava e maltratava (...) e eles não queriam reluzir de santidade entre os cristãos. 38. Os tapuias, segundo Rouloux Baro, “(...) vivoient comme des bestes, sans autre soucy que d’en tirer service”39. No século XVII, era já comum entre os cronistas descrever os tapuias como povos bárbaros, mais selvagens que os tupinambás do litoral. A própria palavra tapuia significava, em tupi, “aqueles

38. Relations de Madagascar de F Cauche, Du Bresil de Rouloux Baro avec l’Histoire dela guerre faite ao Bresil entre les Portugais & les Hollandois. Paris, chez Augustin Courbé, Traduict d’hollandois en Français par Pierre Moreav de Paray en Charluis, 1651. [Tradução nossa do original « Pour les Tapoyos il n’avoit pas encore esté possible de les persuader, à cause que le diable les menaçoit et mal-traittoit (...) et qu’ils ne voyoient point reluire de sainteté entre les Chrestiens »] 39. Viviam como bestas, sem qualquer outra preocupação além de tirar proveito disso. (tradução nossa) Relations de Madagascar... Op. Cit. 68 Alexandre Belmonte

que falam a língua travada”, “selvagens”40. Francisco de Brito Freyre relata ao monarca português que os nativos desta parte do mundo eram “incapazes dos Sacramentos, como animaes brutos(...)”41. Esse tipo de narrativa prevalecia ainda no século XVII, apesar de ser conhecida a Bula apostólica que decidia sobre a racionalidade dos nativos: Pelo que o Pontifice Paulo Terceiro declarou por Bulla Apostollica, anno mil quinhentos trinta e sete, que os Amèricos erão homes racionaes; e podião ser admitidos no gremio da igreja42. Um projeto de evangelização deveria, portanto, levar em conta as adversidades, que eram basicamente centradas nos defeitos dos nativos em relação aos europeus (indisciplina, preguiça, gula etc.) e na cosmovisão indígena estruturada de forma mítica (adoração a deuses, transes e comunicação com espíritos dos mortos etc.): Inredusiueis [os Tapuyas] ao exemplo dos que se converterão a nossa Fè, e tomárão nossos costumes, cento e sessenta annos havia, que sem quererem ouvila, bradava no Estado do Brasil, a voz do Evangelho. A nenhum Deos adorão; mas reconhecem confusamente hũa excellencia Superior, a que chamão Tupá; não ignorando de todo o premio e o castigo, reservados para a immortalidade”.43 40. Sheila Hue argumenta que os portugueses aliados dos tupinambás da costa haviam já herdado o desprezo destes últimos por tribos não-tupis. Cf. Pero de Magalhães de Gândavo. Op. Cit. p. 167. 41. Nova Lusitania - historia da guerra brasilica à purissima alma e savdosa memoria do serenissimo principe Dom Theodosio principe de Portugal, e principe do Brasil. Por Francisco de Brito Freyre, Lisboa, Officina de Joam Galram, 1675. 42. Nova Lusitania... Op. Cit. 43. Nova Lusitania... Op. Cit. 69 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

A percepção do transe indígena ainda intriga o colonizador, em fins do século XVII, seguindo uma já sesquicentenária tradição de referir-se aos costumes dos nativos de forma etnocêntrica, comparando-os às bruxas e feiticeiras: São muy viciosos na gula; na preguiça, e em venerar copiosa canalha de Feiticeiros, e Predicantes, que com espantosas vozes os aconselhão todas as noites no modo de suas vidas; e os chamão todas as madrugadas a chorarem seus mortos, a que dão abomináveis sepulcros dentro de sy mesmos”.44 É interessante a percepção do transe indígena pelos catequistas do século XVII: tratava-se de dar aos mortos “abominável sepulcro dentro de si”. Mais de um século antes, Léry vira o transe de outra forma; seu olhar era outro. É curioso que, passadas quase duas décadas desde que estivera entre os tupinambás, Léry ainda se espanta ao falar do transe dos indígenas em suas cerimônias. Ele diz, a propósito de sua experiência numa assembleia tupi: (...) Tive como recompensa uma tal alegria, não apenas ouvindo os acordes tão bem medidos de uma tal multidão, e sobretudo pela cadência e pelo refrão da balada, a cada estrofe todos conduziam suas vozes dizendo: heu, heuaüre, heüra, heüraüre, heüra, heüra, oueh, fiquei inteiramente encantado; mas também todas as outras vezes que me lembro disto, o coração sobressaltado, me parece que ainda os tenho nos ouvidos45.

44. Nova Lusitania... Op. Cit. 45. Léry, Op. Cit, p. 403. [Trad. nossa adaptada de Michel de Certeau. Op. Cit. p. 215] 70 Alexandre Belmonte

O transe não é, antes de qualquer coisa, algo abominável; Léry guarda a melodia na memória, o que faz com que seu coração se sobressalte, mesmo passados 20 anos de seu encontro com os tupinambás. Ele ouve muito, mas não consegue mais recuperar o exato sentido das palavras em seu contexto de origem, por isso deve transcrevê-las, deve até mesmo marcar a notação musical e transcrever um longo diálogo com um nativo em língua indígena. Mas Léry também vê, também testemunha. Ele parece recuperar o sentido grego de histor – testemunha ocular – em sua História do Brasil. A primazia do olhar ressurge na história do ocidente, instaurando um tipo de discurso sobre a alteridade onde não mais cabem os antigos argumentos de autoridade utilizados por Colombo, Vespucci, Cortés ou Pigafetta. Preocupado em traduzir e compartilhar o outro que ele constrói, Léry acaba elaborando uma nova retórica da alteridade. Será a arqueologia desse olhar sobre o outro a nos dar a dimensão das tensões e negociações entre culturas, identidades e diferenças. Se Colombo, 50 anos antes, batizava as ilhas e terras, Léry, por outro lado, as descreve na língua dos nativos. É tão elaborada sua retórica sobre a alteridade que chega a transcrever um colóquio em tupi-guarani, traduzindo-o para o francês. A segunda edição do relato de Léry, de 1580, é dividida em um prefácio e 22 capítulos. Os quatro primeiros dizem respeito à partida da França e à travessia do Atlântico, descrevendo os preparativos, encontros com navios piratas, peixes avistados em alto-mar, tormentas e incômodos da viagem. Do quinto ao oitavo capítulos, é descrita a descoberta da terra nova e sua geografia, a acolhida no forte de Coligny, bem como os primeiros contatos com os nativos, sua indumentária e nudez. Do capítulo 9 ao 13, Léry descreve a flora e fauna do Novo Mundo. Os capítulos 14 e 15 versam sobre as armas dos nativos e suas maneiras de guerrear. O capítulo 16 fala sobre a religião dos nativos. Entre os capítulos 17 e 19, Léry parece consolidar 71 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

sua etnografia, narrando graus de parentesco, casamento, poligamia, leis, sepulturas e funerais dos nativos. O capítulo 20 é um (controverso) colóquio entre Léry e um nativo, traduzido por um intérprete, e transcrito em francês e em tupi. Os dois capítulos restantes versam sobre a partida do Brasil e a penosa viagem de retorno: perigo de naufrágios, tormentas, fome, sede, e finalmente a chegada à França.

72 Alexandre Belmonte

Identidade e alteridade no relato de Léry: o discurso sobre o outro

L

éry inicia seu relato explicando ao leitor os motivos que o fizeram realizar sua viagem ao Novo Mundo. Descreve a atividade religiosa de Villegagnon na França, afirmando que este, “ayant gagné les cœurs de quelques grans seigneurs de la Religion reformée”46, com especial simpatia de Coligny, recebe a proposta de vir ao Novo Mundo. Após chegar e se instalar numa ilha na baía de Guanabara, à qual deu o nome de ilha de Coligny, Villegagnon construiu um forte para proteger-se de ataques de portugueses e indígenas. Tal como Colombo, ele também batiza o lugar, situa-o dentro do contexto religioso que traz consigo. Mandou diversas cartas à Genebra, pedindo auxílio, “requerant l’Église et les Ministres dudit lieu de luy ayder et de se secourir autant qu’il leur seroit possible en ceste sienne tant saincte entreprinse”47. Em uma das cartas, Villegagnon pedia que lhe fossem enviados “ministros da palavra de Deus”, para “attirer les sauvages à la cognoissance de leur salut”48.

46. Léry. Histoire... p. 108. (Trad. Bras. Por Sérgio Milliet: “conseguiu a boa vontade de alguns fidalgos adeptos da religião reformada” In Jean de Léry. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980). 47. Idem, Histoire..., pp. 108-9. (Trad. Bras: “[mandou] ... requisitar ministros religiosos para o ajudarem e socorrerem na medida d possível nessa sua tão santa empresa”. Léry, Viagem... p. 55). 48. Léry. Histoire... p. 109. (Trad. Bras. “abrir aos selvagens o caminho da salvação”. Léry. Viagem... p. 55). 73 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Em Genebra, há uma constante mobilização para se buscar pessoas aptas a realizar esse tipo de viagem. Villegagnon deixara claro que os interessados deveriam estar dispostos a aceitar uma mudança radical de vida: (...) advertiu Du Pont que, em chegando a essa terra da América, seria necessário contentarem-se com certa farinha feita de raízes em lugar de pão; que não teriam vinho, nem notícias dele, pois aí não havia parreira e finalmente que no novo mundo (...) far-se-ia mister levar uma vida em tudo e por tudo diferente da da nossa Europa. Com isso todos aqueles que se compraziam de preferência na teoria dessas coisas e aos quais não apetecia mudar de ares nem suportar as ondas e o calor da zona tórrida, nem ver o Pólo Antártico, se recusaram a se alistar e embarcar em tal viagem.49 É assim que Léry, “curieux de voir ce monde nouveau”50, decide deixar a França em direção ao desconhecido mundo novo. Nesse breve primeiro capítulo de seu relato, Léry nos diz alguma coisa a respeito de sua proveniência. Não foi à toa que Lévi-Strauss qualificou seu relato de “breviário do etnólogo”. Em seu despojamento da terra segura e ‘civilizada’ e na viagem rumo a um mundo novo, há curiosidade e medo, fé e coragem. É somente no segundo capítulo da Histoire que se inicia propriamente a relação de Léry com o mar. Todos os suprimentos, bem como as peças de artilharia, haviam sido financiados pelo rei, por intermédio de sieur de Bois le Comte, sobrinho de Villegagnon. O capitão do navio,

49.Léry. Histoire... p. 111. (Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 56). 50. Léry. Histoire... p. 112. (“curioso de ver esse mundo novo”. Tradução nossa.) 74 Alexandre Belmonte

“fort bien experimenté en l’art de navigation”51, dá a Léry confiança para embarcar. Comecemos pela tripulação. Quem vinha para o Novo Mundo? Certamente calvinistas como o próprio Léry, outros, conforme reprova Léry, participariam de banquetes canibais. Marinheiros experientes, jovens destinados ao aprendizado rápido da língua dos indígenas, e cinco moças e uma governante, “as primeiras mulheres francesas vindas à terra do Brasil e cuja chegada causou grande admiração aos selvagens do país, os quais (...) jamais haviam visto mulheres vestidas”52. O grupo avista a costa brasileira em 26 de fevereiro de 1557, após uma experiência com o mar marcada pelo acaso e pela deriva. A despeito da ciência cartográfica que se tinha então, Léry chega a pensar que se encontravam num “exílio sem solução”. Quando finalmente vêem terra firme, Léry e seus companheiros de viagem rendem graças a Deus. E porque nos vimos então não somente livres dos perigos e adversidades às quais por tantas em mar vezes estivéramos próximos, mas também por termos sido tão felizmente conduzidos ao porto desejado, a primeira coisa que fizemos, todos juntos, após colocar pé em terra firme, foi render graças a Deus53 O discurso é construído de forma a louvar Deus, mas é um discurso claramente escrito por um cristão reformado – o sujeito emerge, em Léry, quase como um indivíduo, no sentido moderno. Louis Dumont vê, no calvinismo, uma intensificação no que se refere à relação do homem enquanto indivíduo

51. Léry. Histoire... p. 114. (Trad. Bras. “bom piloto e experimentado na arte da navegação”. Léry. Viagem...p. 59.) 52. Léry. Viagem à terra do Brasil, Op. Cit., p. 59. 53. Léry. Histoire... p. 161. [Tradução nossa] 75 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

com o mundo54. Em Léry, de fato, o indivíduo emerge como aquele que atua no mundo – um indivíduo que, a despeito de sua devoção a Deus, é livre não só para interpretar a Bíblia, mas para agir sobre a realidade. Sob esse aspecto, a reinvenção, por Léry, de um fato antropológico – a diferença – tem ligações estreitas não somente com a cultura do calvinismo em sentido estrito, mas com a transformação no estatuto do indivíduo possibilitada, por entre outros fatores, também pelas práticas da Igreja Reformada e pelo ambiente cultural reformado em certos lugares da França e Suíça. Além do fator religioso, parece haver, junto ao processo de expansão ultramarina na Europa dos séculos XV-XVI, uma saturação das possibilidades de sociabilização do homem e da cultura. As formas e possibilidades de interações sociais encontravam-se limitadas, sobretudo pela ideia eclesiástica acerca do que fosse o homem. Apontando ao homem o que ele deveria ser idealmente, essa ordem social excluía de antemão quaisquer outras possibilidades de individuação, criatividade e relacionamento com o mundo. Sob este aspecto, a expansão ultramarina funcionou como a fuga desse homem de sua situação – uma fuga não apenas de seu mundo circundante, mas da própria realidade. Márcio Gonçalves defende, referindo-se à busca de outros mundos dentro do ciberespaço, que a fuga da realidade em favor de outra realidade, de um duplo da realidade, tem sido constante no Ocidente.55 Citando Clément Rosset, Gonçalves diz que essa esquiva do real tem seu fracasso e sua maldição: o “indesejável ponto de partida”, ou seja, o próprio real do qual se pensava estar protegido, é também o ponto

54. Louis Dumont. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, pp. 62-71. 55. Márcio Gonçalves. Amores Virtuais – uma minoria desejante. In: Revista eletrônica da ECO-UFRJ Semiosfera, n.º 3. http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/ semiosfera03/perfil/mat3/frmat3.htm. Acesso em agosto de 2004. 76 Alexandre Belmonte

de chegada (o outro, o “duplo protetor” transformado em fantasma). As consequências dessa fuga, e desses encontros e desencontros é o desenrolar de uma velha história: levando seu mundo consigo e encontrando outros mundos possíveis, os homens vão construindo cultura. No caso específico do encontro entre culturas ocorrido nessas terras no século XVI, seu estudo demanda necessariamente a análise do caráter do ato comunicativo, dos modos em que se dá a comunicação, e das relações intelectuais entre o homem e tudo aquilo que é passível de ser comunicado. Em que consistia o universo de comunicação de quem chegava e de quem aqui estava? De que forma a questão da identidade do homem estava implicada em todo esforço por comunicar-se? A identidade – seja ela individual ou coletiva – sempre se constrói em um relacionamento com a alteridade. O indivíduo moderno surge em um momento singular da história da humanidade: surge através dos encontros e desencontros entre homens, entre homens e religiões, entre homens e ofícios, entre homens e labor. As grandes navegações funcionam como uma mola propulsora, revolucionando o estatuto do sujeito e incrementando a formação do indivíduo moderno. Pois os encontros culturais que se seguem às grandes navegações recolocam em jogo a questão das identidades e diferenças. De acordo com E. C. Leão, na modernidade, o indivíduo é o modo em que o homem se realiza como homem. Nem sempre, porém, foi assim. Tempo houve em que o homem não sentia que todo homem era um indivíduo. O indivíduo, in-divisum56, reivindica sempre exclusividade: é por isso que hoje não se consegue mais pensar em homem sem essa identificação quase necessária, como se o afrouxamento entre os dois termos – homem e indivíduo – representasse uma terrível ameaça à humanidade mesma. É próprio, pois, do indivíduo,

56. In-divisum é o particípio passado do verbo latino in-dividere: não dividir, individir. 77 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

não se identificar, mas sempre se discriminar e distinguir do outro. O indivíduo não sente o outro dentro de si – o outro está sempre fora57. A individualidade pré-moderna, por outro lado, era tanto vivida quanto conceitualizada de forma diferente. O nascimento do que costuma ser caracterizado por indivíduo moderno, entre os séculos XVI e XVII, representou uma importante ruptura com o passado, abrindo novas formas de ver e comunicar a realidade. A Reforma e o Protestantismo expuseram o homem diretamente a Deus, sem o até então necessário filtro da igreja. O Humanismo renascentista recolocou o homem no centro do universo – a antiga humanitas greco-romana foi retomada não somente nas artes, embora as artes sejam espaços privilegiados dessa experiência humanista de outros relacionamentos possíveis com a alteridade. As revoluções científicas também indicaram outras formas de comunicação entre homem e natureza. Posteriormente, a cultura da Ilustração, aparentemente libertando o homem do dogma e da intolerância, fez emergir a imagem de um homem racional e científico. Léry reclama individualidade ao mesmo tempo em que o Outro ainda não estava radicalmente fora dele mesmo. Os indígenas faziam parte dele mesmo, e encontravam acolhimento na cultura europeia, mais especificamente, na cultura do calvinismo francês. Entretanto, é a liberdade do Léry calvinista que lhe possibilita enxergar o tupinambá como o outro – que ele não aniquila e destrói como um espanhol destrói um asteca. Ao contrário, é precisamente a presença do tupinambá que ajuda Léry a construir um lugar próprio de onde lhe é possível falar. É nesse sentido que Léry jamais poderia aniquilar o outro; é a presença do outro a condição da sua escrita.

57. E. C. Leão. O indivíduo – uma experiência moderna. (manuscrito inédito). 78 Alexandre Belmonte

O encontro de Léry com o tupinambá não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito se distingue dos demais a priori. Tampouco se estabelece primeiramente uma visão de si mesmo, para então se construir o referencial da diferença. A possibilidade de ver a diferença existe porque o homem sempre encontra a si mesmo naquilo que ele vê, usa, empreende, enfim, naquilo que Heidegger diz que “está imediatamente à mão no mundo circundante”58. O mundo já é sempre a totalidade referencial de toda significância, seja no encontro em si, seja na escrita do relato desse encontro. O outro não é somente apreendido como coisa-homem, como mera estrutura biológica, mas sim inserido em uma rede de referências, no próprio mundo enquanto espaço de todas as possibilidades de ser homem. O outro não significa a totalidade dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria59. Sendo aqueles dos quais ninguém se diferencia propriamente, o outro é aquele no qual também já sempre se está. Por isso é que identidade e alteridade não são dois elementos distantes e antônimos, mas partes necessárias de um mesmo processo. Léry se vê no outro, e se vê de modo totalmente inusitado, pois, na medida em que se identifica com os indígenas, Léry se vê como indivíduo. Assim, pode até mesmo se dar conta de que o homem pode ser tanto um francês calvinista como um tupinambá “pagão”. A chegada de Léry ao Mundo Novo supõe, desde o primeiro momento, uma interação com os nativos. É interessante que mesmo esses primeiros contatos já são de certa forma historicizados: (...) fomos ancorar a meia légua de um lugar montanhoso chamado Huuassú pelos selvagens. Botamos nágua (sic) o escaler

58. Martin Heidegger. Ser e Tempo, vol 1. Petrópolis,Vozes, 1997, p. 170. 59. Idem, Ibidem, p.169. 79 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

e depois de ter disparado alguns tiros de peça para avisar aos habitantes, conforme o costume de quem chega a esse país, vimos reunirem-se na praia homens e mulheres em grande número. Nenhum de nossos marinheiros, já viajados, reconheceu bem o sítio; entretanto os selvagens eram da nação dos margaiá, aliada dos portugueses e por consequência tão inimiga dos franceses que se nos apanhassem em condições favoráveis, não só não nos teriam pago resgate algum, mas ainda nos teriam trucidado e devorado. 60

Já há histórias e lendas acerca desse lugar. Cinquenta anos de descoberta já haviam sido suficientes para motivar, na Europa, uma organização das ideias acerca do Novo Mundo. Essa sistematização do conhecimento acerca do Novo Mundo, típica da cultura do Renascimento, é também evidente quando Léry parece, já de antemão, classificar os nativos, chamando-os “nação”. Léry, antes mesmo de pisar em terra firme, já divide os indígenas em grupos. O outro já é disciplinado através da escrita – é um outro que já existe, de certa forma, no europeu. Sabia-se algo desse outro representado pelo indígena, mesmo anteriormente a qualquer experiência e contato, pois ele já fora engendrado não somente à história da navegação francesa, mas também às disputas políticas e econômicas entre Portugal e França, por exemplo. É curioso, porém, que Léry não somente disciplina o outro a partir de seu engendramento à história europeia, mas também disciplina o leitor em relação à diferença: o lugar montanhoso de que fala Léry tem um nome indígena, Huvassou (Iguaçu?). Essa disciplina que Léry impõe aos seus leitores é parte da retórica da alteridade que ele constrói. Esse

60. Léry. Op. Cit. p. 147. (grifos nossos) [Trad. Bras. In Léry. Viagem..., p. 77] 80 Alexandre Belmonte

recurso, diferente de um Colombo, por exemplo, conferia ao relato mais credibilidade. Através dos nomes em língua nativa, o leitor podia sentir-se mais próximo ao mundo distante. Outro fator bastante recorrente durante grande parte do relato é a alusão à aparência paradisíaca das terras novas. Aqui, a natureza é o outro que se contrapõe à cultura, representada pelo homem: E logo pudemos admirar as florestas, árvores e ervas desse país que, mesmo em fevereiro, mês em que o gelo oculta ainda no seio da terra todas essas coisas em quase toda a Europa, são tão verdes quanto na França em maio e junho.61 Chama também atenção a maneira como Léry descreve o corpo do indígena. Suas descrições levam em conta relações e interpretações quase etnológicas, no sentido que conhecemos hoje da palavra. Ele relata como os indígenas mantêm os cabelos, como adornam o corpo com penas e plumagens, como espetam paus e pedras no corpo à guisa de identificação ou rituais etc. Mais tarde a etnologia diria que as tribos se diferenciam pelo corte de cabelos, pela forma como adornam o corpo, pelo sistema de parentesco, pelos totens e cosmogonias diversas. Por isso Lévi-Srauss qualificou o relato de Léry como breviário de etnólogo; por isso que, ao caminhar pela Avenida Rio Branco, trazia no bolso e na mente o relato de Léry. A nudez parece ser a diferença que, por razões óbvias, mais surpreende o europeu: embora os descreva minuciosamente noutro lugar, quero desde já dizer alguma coisa a seu respeito. Tanto os homens como as

61. Idem, Ibidem, p. 147. (Trad. Bras.: In Léry. Viagem... pp. 77-78) 81 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno (...)62 Mesmo ao escrever suas memórias a posteriori, e, portanto, tratar da nudez dos nativos em um capítulo especialmente dedicado ao tema, a surpresa perante a nudez interpõe-se à sua escrita – já disciplinada por quase duas décadas de leituras e análises de sua experiência entre os selvagens. Nem mesmo um texto escrito depois de passados quase 20 anos da viagem deixa de dar conta da surpresa do encontro e da perplexidade do confronto. Léry era um religioso calvinista – seus correligionários eram pastores, intelectuais, editores, escritores religiosos que pregavam as ideias de Lutero e Calvino, que falavam contra os jogos e as danças. Seu espanto perante a nudez do selvagem é o confronto com o que a nudez representava: a visão do corpo nu excita os prazeres; o corpo nu é o corpo apenas saído do ventre, ainda sem inscrição da cultura, sem batismo, e, entretanto, adulto, fecundo e fértil. A nudez do selvagem é uma ameaça. A descrição do corpo dos ameríndios é recorrente em toda a literatura de viagens, desde Caminha: A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.(...).63 A comunicação é, evidentemente, outro tema que parece orientar o olhar de Léry. Em relação ao grupo de colonos

62. Idem. Ibidem, pp. 148-149. [Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 78] 63. Pero Vaz de Caminha. A Carta. Rio de Janeiro, MEC-Fundação Biblioteca Nacional, s/d., p. 3. 82 Alexandre Belmonte

portugueses já estabelecidos na costa brasileira, Léry diz: “(...) mandou-nos três tiros de canhão aos quais respondemos com juros”. Ao falar da comunicação com os indígenas, Léry relata a ferocidade de alguns grupos: “[os waitacá] são índios tão ferozes que não podem viver em paz com os outros e se acham sempre em guerra aberta não só contra os vizinhos mas ainda contra todos os estrangeiros.” 64 A ferocidade desses indígenas “comme chiens et loups, mangeans la chair crue”65 não limitava-se somente à antropofagia, mas incluía a adversidade linguística, já que “mesme leur langage n’estant point entendu de leurs voisins”66. Sem comunicação não poderia haver comércio. A todo instante, Léry aponta para diferenças e semelhanças, especialmente ao tratar da fauna e da flora do Novo Mundo: aves de diversas espécies, aliás diferentes das nossas”; “peixes de várias espécies diferentes das nossas (...) Foi também aí que pela primeira vez vimos papagaios voando alto e em bandos como os pombos e gralhas na França, e pude observar que andam sempre acasalados à maneira das nossas rolas.67

64. Léry. Op. Cit. pp. 152-3. (Trad. Bras.:In Léry. Viagem... pp. 80-81.) 65. Idem. Ibidem. p. 153. (Trad. Bras.: “comedores de carne humana, como os cães e lobos” In: Léry. Viagem... p. 80.) 66. Idem. Ibidem. p. 153. (Trad. Bras.: “donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem” In Léry. Viagem... p. 80.) 67. Léry. Ibidem, pp. 157-9. (Trad. Bras. In Léry, Viagem... pp. 83-84.) 83 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Descreve o tamanho, forma, dentição e potência de um peixe “difforme et monstrueux”68. Descreve também o que ensina esse novo peixe: mesmo fora d’água é forte o suficiente para atacar as pernas do pescador desavisado. O relato de Léry parece ser possível somente e na medida em que ele faz aparecer o indígena em sua complexidade cultural e humana. É possível, então, aparecer também a própria complexidade cultural, humana e existencial do autor. O nativo é, a todo o momento, um referencial na organização da história da viagem de Léry. Ao falar sobre a fome que sentiu junto à tripulação na viagem de volta, Léry não se esquece dos tupinambás e do canibalismo que poderia ocorrer ali mesmo no navio. Gândavo, por exemplo, quando falava dos indígenas, fazia sempre generalizações. Indicava o que o indígena era, e, de fato, em muitas passagens ele insistia em dizer, assim como Colombo, que os nativos eram todos iguais. A única experiência possível, portanto, era a de historiar, narrar esse outro que era sempre e a cada vez igual: Os quais ainda que estejam divisos, e haja entre eles diversos nomes de nações, todavia na semelhança, condição, costumes e ritos gentílicos todos são um.69 Ao descrever os indígenas, Gândavo confia nas generalizações, como se, de fato, os nativos fossem uma única entidade, produzindo passagens interessantes e ‘saborosas’: São desagradecidos em grã maneira, e mui desumanos e cruéis, inclinados a pelejar e vingativos em extremo. Vivem todos mui descansados sem terem outros pensamentos senão comer, beber e matar gente, e por isso 68. Idem. Ibidem. p. 159. (“disforme e monstruoso”, tradução nossa) 69. Pero de Magalhães de Gândavo. Op. cit. p. 133. 84 Alexandre Belmonte

engordam muito, mas com qualquer desgosto tornam a emagrecer. (...) São mui desonestos e dados à sensualidade, e assim se entregam aos vícios como se neles não houvera razão de homens (...)70 Léry, embora por vezes se refira aos indígenas como uma única entidade, compara e dialoga com um conhecimento prévio que já devia ser comum na França, em meios letrados, sobre os nativos americanos. No capítulo que escreve sobre os nativos, Léry diz que eles não são nem maiores, nem menores, nem mais gordos que os franceses, e que não têm a aparência monstruosa. Os selvagens não são maiores nem mais gordos do que os europeus; são porém mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios.71 Ao passo que Léry compara os indígenas aos europeus, Thevet, por outro lado, parece insistir em mostrar a monstruosidade do selvagem, tema fascinante ao europeu do século XVI: Seus olhos, contudo, são mal feitos, ou seja, são negros e vesgos. Esta característica confere ao seu olhar um aspecto que lembra o de feras selvagens.72 A comparação parece ser, para Léry, o método mais eficaz de conhecer; será parte do método que ele utiliza para organizar o conhecimento sobre os indígenas. E não é um método 70. Idem. Ibidem. P. 134. 71. Léry. Op. cit. p. 211. (Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 111) 72. Thevet. Op. Cit. p. 103. 85 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

óbvio. Muitos viajantes e exploradores, como vimos, não conseguiam ter esse relativismo, cuja ausência é muito clara em Colombo. Sua hesitação em comparar era equivalente à sua hesitação em enxergar humanidade nos nativos. Nem mesmo reconhecia que os indígenas falassem uma língua: “Se Deus assim o quiser – escreve Colombo – no momento da partida levarei seis deles a Vossas Altezas, para que aprendam a falar”73. Todorov lembra que os tradutores franceses de Colombo, chocados com as palavras, traduziram a passagem em “para que aprendam nossa língua”74...

73. Apud. Todorov. Op. cit. p. 42. 74. Idem. Ibidem, p. 42. 86 Alexandre Belmonte

(...) – Sire, já falei de todas as cidades que conheço. – Resta uma que você jamais menciona. Marco Polo abaixou a cabeça. – Veneza – disse o Khan. Marco sorriu. – E de que outra cidade imagina que eu estava falando? O imperador não se afetou. – No entanto, você nunca citou o seu nome. E Polo: – Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza. – Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza. –Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza. – Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela. (...) – As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se – disse Polo. – Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco. Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

Capítulo

3

Construção da narrativa e métodos da História em Léry

Argumentos de autoridade e construção do conhecimento

Q

ue sabia Jean de Léry acerca do Mundo Novo antes de sua viagem? E de que forma esse conhecimento prévio pôde aparecer – se é que pôde – em um texto escrito quase 20 anos após o regresso de seu autor? E, ainda, como é possível conjecturar sobre o impacto da experiência presencial de Léry no Novo Mundo sobre o conhecimento que tinha dessas terras antes de sua viagem, abalando antigos preconceitos e criando outras visões e representações? Em suma, como podemos, hoje, interpelar um texto como o relato de viagem de Léry, no que diz respeito às representações do outro e à construção de uma identidade cultural para si mesmo? Concordemos, a princípio, com a desculpa de Léry por não ter publicado sua obra até então devido à perda do manuscrito original, o qual foi recuperado, novamente perdido e finamente recuperado definitivamente pouco antes da publicação da Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil, em 1578. Não há meios de saber os pormenores da epopeia de suas anotações de viagens, senão pelo que dela conta o autor. É de se supor, porém, a existência de algum registro escrito no Novo Mundo, de outra forma, como pôde Léry lembrar-se com exatidão de detalhes tão minuciosos acerca dos tupinambás? Como poderia transcrever tantos nomes em tupi-guarani – além de um inteiro colóquio em língua nativa – se não através de algum suporte material, de anotações feitas in loco? Frank Lestringant procurou marcar as fontes a que Léry supostamente recorreu ao escrever a história de sua viagem. 90 Alexandre Belmonte

Muitas dessas obras foram, entretanto, editadas após o regresso de Léry à França, de modo que se torna difícil, senão pelas próprias indicações do autor, estabelecer uma lista precisa de suas leituras. A análise de outra obra de Léry nos elucida alguns problemas, ao passo que nos sugere outros. Em 1574, ou seja, quatro anos antes da publicação da história de sua viagem ao Brasil, Léry publica a Histoire de la ville de Sancerre1, seu testemunho do ataque aos protestantes refugiados em Sancerre e da fome imposta à cidade em 1573, que culmina, na escrita de Léry, com o episódio de um pai e uma mãe surpreendidos enquanto comiam o cadáver da filha, morta de fome aos três anos. Através de remissões a outros autores, tanto na Histoire d’un voyage quanto na Histoire de la ville de Sancerre, podemos conjecturar sobre as possíveis leituras de Léry, assim como através de sua relação com seus editores e com os escritores protestantes do século XVI. É de se supor que ele tivesse lido algumas das publicações do primeiro editor de sua história do Brasil, Antoine Chuppin. Várias de suas publicações são, entretanto, posteriores à primeira edição do relato de Léry. No ano da publicação da primeira edição da Histoire de Léry, Chuppin traduziu e publicou o relato de Martin Frobisher, capitão inglês que buscou demarcar os contornos das terras limítrofes ao pólo norte, e que, ao voltar para a Inglaterra, trouxe consigo três esquimós capturados du-

1. Jean de Léry. Histoire mémorable de la vie de Sancerre. Contenant les Entreprises, Siege, Approches, Bateries, Assaux et autres efforts des assiegeans: les resistences, faits magnanimes, la famine extreme et delivrance notable des assiegez. Le nombre des coups de Canons par journées distinguées. Le catalogue des morts et blessez à la guerre, sont à la fin du Livre. Le tout fidelement recueilly sur le lieu, par Jean de Léry. Obra editada muito provavelmente em Genebra, embora não conste na obra o local de publicação. 91 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

rante a viagem, feita em 15772. Em 1581, Chuppin publica a Histoire de Portugal de Jerónimo Osório da Fonseca, tradução de De Rebus Emmanuellis Regis feita por Simon Goulart3. A tradução de Goulart é permeada de juízos de valor, e nos indica uma visão comum da história no século XVI, a história como speculum vitæ, espelho da vida. Goulart argumenta que as histórias, em sua maioria, são como espelhos bem limpos que mostram, através de testemunhos, “os estados do mundo, e a vida dos grandes e dos pequenos”. Um dos efeitos que tinham as histórias, e, portanto, também os relatos de viagens, era fazer o leitor “amar o bem e odiar o mal”4. A relação de Chuppin com o protestantismo pode ser feita não somente por sua casa editorial ter sido em Genebra, Meca dos calvinistas, sobretudo após a noite de São Bartolomeu, mas também pela publicação de Philippe de Mornay, em 1579. Mornay era teólogo e ‘diplomata’ de Henrique IV, tendo prestado importante contribuição na negociação do Edito de Nantes. Após a abjuração do Protestantismo do rei Henrique IV, em 1593, Mornay dedica-se ao ensino de teologia protestante na Universidade de Saumur. Chuppin publica, da autoria de Mornay, o Traité de l’église ion traite des principales questions qui ont été mues 2. O título da obra em francês é La navigation du Capitaine Martin Forbisher Anglois, és régions de west et nordwest, en l’année MDXXVII, contenant les moeurs et façons de vivre des peuples et habitans d’icelles, avec le portrait de leurs habits et armes, et autres choses mémorables et singulières, tout incognues par deça. 3. Jerónimo Osório da Fonseca. Histoire de Portugal, contenant les entreprises, navigations, et gestes memorables des portugallois, tant en la conqueste des Indes Orientales par eux descouvertes, qu’ès guerres d’Afrique et autres exploits, depuis l’an mil quatre cens nonante six, jusques à l’an mil cinq cens septante huit, sous Emmanuel premier, Jean troi-siesme, et Sebastian premier du nom. Comprinse en vingt livres, dont les douze premiers sont traduits du latin de Ierosme Osorius, Evesque de Sylves en Algarve, les huit suivans prins de Lopez de Castagnede et d’autres historiens. Nouvellement mise en François par S[imon] G[oulart] [de] S[enlis]. Avec un discours du fruit qu’on peut recueillir de la lecture de ceste histoire, et ample Indice des matieres principales y contenues. s.l. [Genebra], François Estienne pour Antoine Chuppin, 1581. 4. Idem, Ibidem. 92 Alexandre Belmonte

sur ce point en nostre temps. É muito provável que Léry não desconhecesse as questões veiculadas por Mornay – como o tratado sobre a Eucaristia, tema, aliás, próximo a Léry pela sua experiência com Villegagnon e a crise sobre a Eucaristia na França Antártica5. É bastante possível que Léry também conhecesse alguns escritos de autores que lhe escreveram as dedicatórias e o sonnet que constam das várias edições da Histoire d’un voyage: Lambert Daneau, pastor refugiado em Sancerre com Léry, escreveu livros contra a dança e os jogos6, e em 1577 escreveu uma dedicatória à Léry, que consta da primeira edição da Histoire d’un voyage, em que louva-lhe a capacidade de transportar o leitor diretamente à América através de uma escrita bem conduzida: (…) DE LERY, qui nous peins un monde tout nouveau, Et son ciel, et son eau, et sa terre, et ses fruits ; Qui sans mouiller le pied nous traverses l’Afrique, Qui sans naufrage et peur nous rend en l’Amerique Dessous le gouvernail de ta plume conduits.7 Há nessa dedicatória a estupefação de ser transportado ao Novo Mundo “sem molhar os pés”, “sem naufrágio ou medo”: Lévi-Strauss parece reviver um encantamento semelhante,

5. A esse respeito, consultar Frank Lestringant. Le huguenot et le sauvage – L’Amérique et la controverse coloniale en France, au temps des guerres de religion (15551589). Paris, Klincksieck, 1990. 6. Lambert Daneau. Traite des Danses, Auquel est amplement resolue la question, a savoir s’il est permis aux Chrestiens de Danser. Nouvellement mis en lumiere. Genebra, François Estienne, 1579. 7. Jean de Léry. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. Paris, Librairie générale française, Le livre de Poche, 1994, p. 51. (Tradução nossa: “De Léry, que nos pinta um mundo inteiramente novo / e seu céu, e sua água, e sua terra, e seus frutos; / que sem molhar os pés nos faz atravessar África, / e sem naufrágio e medo nos leva à América/ sob a boa condução de tua pena.” 93 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

ao passear pela Avenida Rio Branco na década de 1950, com Jean de Léry no bolso, “breviário de etnólogo”8, ou quando diz que ao pensar no Brasil quinhentista, nas paisagens e nos habitantes, e ao ler o relato de Jean de Léry, “on y est”9, somos transportados para o Novo Mundo, e simplesmente colhe-se, para Lévi-Strauss, o momento do encontro e confronto de culturas, através da “fraîcheur du regard”, da novidade do olhar de Léry. Léry mantivera contato com Daneau, já que estiveram sitiados juntos em Sancerre. Daneau foi pastor, inicialmente em Genebra, depois em vários lugares da França, e era um dos grandes propagadores do calvinismo. Em 1566, Jeanne d’Albret, rainha de Navarra, funda em Orthez uma escola, onde se ensinam teologia, grego, hebraico, filosofia, matemática e música. Henrique de Navarra lhe confere, em 1583, o título de universidade real. É aí que Lambert Daneau ensina teologia, de 1583 a 1593, após ter passado rapidamente pela Universidade de Leide, e após longa estadia em Genebra, ensinando teologia junto a de Bèze. Daneau não se contenta em apenas comentar Aristóteles: escreve vários tratados sobre ética cristã, dentre os quais Ethices Christianae, publicado em Genebra em 1577, com reedições em 1579, 1582, 1583, 1588, 1601 e 1614. Daneau estuda, na Bíblia, todas as ocasiões em que figuram as danças, e decide que esta deve ser proibida aos cristãos: “Telles sont les voyes de peché, telles les ruses et artifices du Diable pour engendrer les convoitises et paillardises.”10 Em 1564, Daneau já havia escrito Les Sorciers, traduzida em 1575 para o inglês com o curioso título de A Dialogue of

8. Apud: Jean de Léry, op. cit., p. 5. 9. Jean de Léry. Op. Cit. p. 7. 10. Daneau, Op. Cit. p. 47. [Trad. nossa: “Eis as vias do pecado, eis as astúcias e artifícios do Diabo para engendrar caprichos e lascividades.”] 94 Alexandre Belmonte

Witches. É também de sua autoria a tradução do Traité de dr. Florent Tertullian tres-ancien, & voisin du temps des Apostres, environ CLXX ans apres l’incarnation e Iesus Christ, touchant l’Idolatrie. É neste aspecto que Daneau é, junto a Jean Bodin e Nicholas Remy, um dos principais escritores religiosos do século XVI francês contra a idolatria, a bruxaria e as ‘imoralidades’. Um outro companheiro de Léry presente no cerco a Sancerre, o pastor Pierre Melet, lhe escreve uma dedicatória que faz alusão à fome de Léry em sua viagem ao Brasil, que não se fez extremada a ponto de comparar-se ao cerco a Jerusalém por Tito, nem ao cerco a Sancerre pelos católicos, poupando Léry do “ato enorme e cruel” representado pela ingestão da carne humana, ato “abominável” cometido pela desesperada família de Sancerre:

(...) Nous peignant ton retour du ciel Ameriquain, Où tu te vis pressé d’une tres-aspre faim. Mais telle faim, helas, ne fit pas si dure guerre, Ni la faim de Juda, ni celle d’Israel, Où la mere commit l’acte enorme et cruel, Que celle qu’as ailleurs escrite de Sancerre.11

O próprio Léry, ao falar da fome por que passou a tripulação do navio na volta a França, faz referência ao livro de Flavius Josephus, La guerre des juifs, em que é narrada a fome dos sitiados em Jerusalém por Tito, e onde há um episódio de uma mãe que come o corpo de seu filho12. Também

11. Idem. Ibidem. p. 52 12. Idem. Ibidem, p. 529. 95 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

na Histoire de la ville de Sancerre, Léry já havia traçado um paralelo entre a fome dos protestantes e a fome imposta por Tito a Jerusalém no ano 70 d.C.13 O soneto dedicado à Léry na primeira edição da Histoire d’un voyage faz alusão às mentiras de Thevet, à fúria de Villegagnon e às guerras de religião na França14, o que nos leva a crer que a leitura tanto da Cosmographie quanto das Singularitez de Thevet tivesse sido comum entre os protestantes, bem como a leitura da obra de Jean Crespin sobre os mártires protestantes desde a época de Huss. O próprio Léry faz alusões tanto a Crespin quanto a Thevet: ele teria lido a Cosmographie em 157715. Esboça-se, nas duas obras de Léry, um cânone de leituras “clássicas”, citadas constantemente, mas não sob a forma de remissões, manchettes ao lado do texto, ou notas ao longo do texto. A forma de citar Cícero, por exemplo, como se ele fosse parte de um cânone obrigatório, como se fosse tão óbvio que dispensava a indicação do livro e do editor, nos indica quais são os autores que fazem parte desse cânone especial, e quais outros autores Léry quer destacar, ou apresentar ao leitor. Léry cita Cícero com naturalidade, como se dialogasse com ele, como se devesse fazer menção ao que Cícero escrevera e ao que era uma das principais matrizes do pensamento ocidental. O texto de Léry comporta e acolhe essa tradição greco-romana – percebe-se que a questão da identidade em Léry leva em conta percursos históricos da Europa greco-romana, peripécias do pensamento, da linguagem, da poesia, da filosofia e, sobretudo, do cristianismo. O próprio pensamento já é balizado nesse percurso

13.Ver a apresentação de G. Nakam à Histoire de la ville de Sancerre. Paris,Anthropos, 1975. 14. Idem, Ibidem, p. 53. 15. Idem, Ibidem, p. 63. 96 Alexandre Belmonte

histórico. Além dessa matriz clássica, Léry também apresenta uma interpretação alternativa da história, citando constantemente Flavius Josephus, aproximando-se de uma visão mais providencialista da história, inclusive quando fala da catequização dos indígenas, do destino histórico dos índios do Brasil, inconvertíveis à fé cristã por serem descendentes diretos da raça maldita, filhos de Cam. Léry havia sem dúvida lido Calvino, Lutero, de Bèze e outros protestantes. Certamente havia lido Ronsard e Rabelais, ambos exaustivamente reeditados ao longo do Quinhentos, e por vezes citados por Léry, e também algumas relações de viagens: a Cosmographie Universelle, de Sebastien Münster, publicada em Paris por Chesneau et Sonnius em 1575, a Histoire generale des Indes Occidentales de López de Gómara, publicada em francês por Sonnius em 1568, à qual Léry recorre algumas vezes para provar as “mentiras” de André Thevet. Hans Staden somente foi traduzido para o francês após a primeira edição da Histoire d’un voyage de Léry, apesar de ter sido publicado em 1557 em alemão, língua que Léry muito provavelmente não dominava. Possivelmente, Léry havia lido a Novus Orbis, de Grynaeus, publicada em Bâle em 1555, antes de chegar ao Novo Mundo, já curioso de conhecer essa quarta parte do mundo, antípoda da Europa cristã. Suas referências a López de Gómara fazem questão de citar seu tradutor para o francês. Sabemos, entretanto, que o relato de Gómara fora publicado diversas vezes em línguas que Léry provavelmente não desconhecia de todo: antes de vir ao Mundo Novo, é possível que Léry já tivesse lido Gómara. Só no ano de 1554, a relação de sua viagem foi publicada 3 vezes em espanhol, por Pedro Bernuz e Miguel Zapila, em Zaragoza, por Augustín Millan, também em Zaragoza, e por Jan Steels, na Antuérpia. Em 1571, outro viajante espanhol, Las Casas, foi publicado em latim em Frankfurt, por Hieronymi Feyerabend. As comparações que Léry faz entre os tupinambás e outros ameríndios é bastante 97 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

rica em detalhes, bastante atenta a sutilezas e especificidades de cada grupo indígena, sem que ele tivesse tido contato direto com outras tribos. No capítulo V, ele descreve a relação dos waitakás com outras tribos, e a partir daí deduz que eles “n’ont, ni ne veulent avoir nulle acointance ni traffique avec les François, Espagnols, Portugallois, ni autres de ce pays d’outre mer de pardeçà”16. Gabriel Soares de Souza e posteriormente Fernão Cardim descreveram as peculiaridades culturais desses indígenas, conforme aponta Plínio Ayrosa17. Léry fala também, no mesmo capítulo, dos carajás e margaiás, ao descrever as trocas comerciais destes com os waitakás. As fórmulas que utiliza para a autópsia dos fatos são indicações do tipo: “conforme vim a saber” e “como afirmam”, o que mostra que ele próprio não tivera contato com essas tribos. Léry relata também a proximidade dos waitaká com certas tribos da Flórida, baseado nas suas leituras de Gómara: Também poderíamos pôr em paralelo com esses selvagens certos habitantes da Flórida, perto do rio das Palmas, tão fortes e ágeis que correm um dia inteiro sem parar e pega veados na carreira; ou ainda os grandes gigantes que vivem no rio da Prata e são igualmente tão fortes e ágeis que agarram com as mãos os cabritos na corrida.18

16. Idem, Ibidem. p. 153. [Trad. Bras.: “não têm nem querem ter comércio com os franceses, espanhóis e portugueses, nem com outros povos transatlânticos” In Léry, Op. Cit. p. 80]. 17. Léry, Viagem à terra do Brasil, op.Cit, p. 80, nota 118. 18. Léry. Op. Cit. p. 155. [Trad. Bras.In Lery. Op. Cit., pp. 81-82] 98 Alexandre Belmonte

Desta vez, entretanto, Léry indica o autor, através de uma manchette ao lado do texto, que indica Francisco Lopez de Gómara, Histoire generale des Indes, trad. M. Fumée, “liv. 2 ch. 46. & 89”. Faz questão de remeter à obra de Gómara traduzida para o francês, o que ocorreu somente em 1568. Entretanto, Léry parece trair-se, já que menciona “le fleuve de la Plate”, afrancesando o original espanhol, que Gómara lista como “Rio de la Plata” e que M. Fumée traduz como “autrement dict de l’Argent”. Vale lembrar que Gómara fora publicado diversas vezes em espanhol antes da viagem de Léry ao Brasil. Guillaume Gazeau e Jean de Tournes, primeiros editores de Thevet, em 1554, publicaram várias obras em latim, antes e depois da viagem de Léry: obras sobre astronomia (Marc Manili, 1551); poesia (Octavianus Mirandula, 1553); Prudêncio, 1553; vários livros de medicina, dentre os quais Jérôme Monteaux, 1556, 1557, 1558; Jacques Dubois, 1555; Erasmo, 1558; Phsysicorum Aristoteli Libri, 1559; Yuhanna Ibn Massawayh (sec. IX), 1560 etc. Christophe Plantin, também editor de Thevet (1558), publicou várias edições da Bíblia, além de Epístolas e prosas eclesiásticas. Publicou gramáticas, obras de Cícero e escritos de Aldo Manuzio. Publicou em 1558, na Antuérpia, a tradução da relação de viagem de Francisco Alvares, Historiale description de l’Ethiopie: contenant vraye relation des terres, [et] pais du grand Roy, [et] Empereur Prete-Ian, l’assiete de ses Royaumes [et] Prouinces, leurs coutumes, loix, [et] religion, auec les pourtraits de leurs temples [et] autres singularitez, cy deuant non cogneues. É muito provável que Léry tivesse lido algumas obras publicadas por Jean Crespin. Havia certamente lido seu célebre livro dos mártires, publicado em 1554, antes, portanto de sua viagem, o qual cita por vezes em sua história do Brasil. Léry é coautor de um artigo nesse livro, conforme conta no último

99 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

capítulo de sua Histoire.19 Crespin publicou também diversos livros sobre história e religiões, além de Homero (1567), e gramáticas grega e italiana. Na mesma década em que Léry empreendeu sua viagem ao Brasil, outras relações de viagens foram publicadas na Europa: Luca Antonio Giunta publicou Gianbattista Ramusio em 1556. O primeiro dos Giunta, ainda em Veneza, publicara, entre 1489 e 1538, diversos “clássicos”, como Ptolomeu, Dante, Aristóteles, Tomás de Aquino, Tito Lívio, Virgílio, Máximo Valério, Eusébio de Cesarea etc. Seus herdeiros publicaram, entre outros, Marco Polo, 1554-1559 (2 volumes, mais de uma edição), vários comentários jurídicos e diversas publicações eclesiásticas, além dos clássicos São Tomás de Aquino e Aristóteles. Publicaram também a Viagem à Escandinávia de Olaus Magnus, bispo de Upsala, em 1565. A análise da Histoire Memorable de la ville de Sancerre nos fornece outras pistas de possíveis e prováveis leituras de Léry, assim como nos dá indícios para tentar reconstruir ou ao menos acessar um outro modo de fazer história que se esboça em meados do século XVI. Em sua tese sobre a Histoire Memorable de Jean de Léry, Bruna Conconi20 analisa os prefácios de obras de autores protestantes a fim de perceber como se esboça esse modo diferente de fazer história e uma nova figura de historiador na segunda metade do século XVI. Segundo Conconi, é nesse período que surge, na França, um autêntico movimento historiográfico, ligado ao Parlamento de Paris, a Jean Bodin, François Baudoin, Jean de Tillet etc.

19. Idem, Ibidem. p. 548. 20. Bruna Conconi. Le prove del testimone – scrivere di storia, fare letteratura nella seconda metà del Cinquecento: l’Histoire memorable di Jean de Léry. Bolonha, Patron Editore, 2000. 100 Alexandre Belmonte

Se até então a ars historica era uma ciência carente de autonomia e desprovida de um objeto específico, o movimento político e literário que agitou a França e outros países europeus em meados do século XVI consagrou o Estado como objeto dessa “nova” história. O fito da história continuava sendo o speculum vitae, o espelho da vida – à máxima Historia est magistra vitæ (A história é mestra da vida), acrescenta-se um novo aspecto da história como lux veritatis, luz da verdade, através de exempla de repertórios a atingir, regras de comportamento civil e modelos a seguir. Os paradigmas metodológicos na busca dessa lux veritatis, entretanto, foram bastante influenciados pela livre-interpretação da Bíblia e pelos escritos de Lutero e Calvino. O editor calvinista Jean Crespin ocupa papel especial nesse movimento, e é através da atividade religiosa subjacente ao seu ofício de editor que podemos relacionar essa transformação literária a uma operação propriamente política, em que o pano de fundo parecia ser o embate político em torno da religião. Crespin nasceu em Arras, estudou Direito em Louvain e posteriormente em Paris, onde tornou-se advogado do Parlamento. Aos 25 anos, conheceu Calvino e Théodore de Bèze. Acusado de heresia, refugiou-se em Estrasburgo, de onde seguiu para Genebra com de Bèze. Foi em Genebra, em um meio bastante influenciado pelos protestantes, que Crespin fundou sua editora e publicou vários livros ao longo da segunda metade do século XVI, alguns propagando explicitamente o protestantismo. Em 1554, conforme vimos, publicou sua Histoire des Martyrs21, relatando o calvário dos protestantes vítimas de perseguições religiosas, desde Jan Huss. Publicou,

21. Jean Crespin. Le Livre des Martyrs, qui est un recueil de plusieurs Martyrs qui ont enduré la mort pour le Nom de nostre Seigneur Jesus Christ, depuis Jean Hus jusques à ceste année presente MDLIIII. De l’Imprimerie de Jean Crespin, Au mois d’Aoust de MDLIIII. 101 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

a partir da década de 1550, vários estudos sobre história e história das religiões, como a de Jean de Hainault22, de 1556, e a de Jean Sleidan23, em 1557. Publicou também clássicos como A Odisséia de Homero (1567), além de gramáticas e dicionários de grego (Guillaume Budé, 1562) e de italiano (Scipione Lentulo, 1567). É no momento político da ascensão do protestantismo na Europa que se delineia uma ideia providencialista da história: os textos da Bíblia são figuras que remetem à história do mundo, contendo a totalidade dos fatos sacros e profanos24. Todas as experiências humanas eram passíveis de ser interpretadas, portanto, à luz da Bíblia. Talvez tenha sido precisamente essa abertura que assegurou à História do Brasil de Léry um acolhimento em relação ao Outro sem par em toda a literatura de viagens do século XVI. Léry compreende o selvagem tupinambá em sua complexidade humana, diferentemente de um Colombo ou Castillo. Além disso, a disputa pela evangelização dos ameríndios com missões cristãs não reformadas possivelmente levaram o protestante a uma necessidade de se relacionar com os nativos de outra forma, estabelecendo novas formas de pactos e alianças, e, eventualmente, estimulando uma outra abordagem da catequização, e mesmo da alteridade humana em geral, embora o próprio Léry considerasse os ameríndios inconvertíveis à fé cristã.

22. Jean de Hainault. L’Estat de l’Eglise, avec le discours des temps, depuis les Apostres sous Neron, jusques à present, sous Charles V. Contenant en bref les histoires tant anciennes que nouvelles, celles specialement qui concernent l’Empire et le siege Romain, la vie et decrets des Papes, le commencement, accroissement et decadence de la Religon Chrestienne. [Jean Crespin], MDLVI. 23. Jean Sleidan. Histoire de l’estat de la Religion, et Republique, sous l’Empereur Charles V. Chez Jean Crespin, MDLVII. 24. Bruna Conconi, op. cit. cap. 3 102 Alexandre Belmonte

É nesse contexto que será dada à estampa, em 1574, a obra de Léry sobre o cerco à cidade de Sancerre, em que ele relata sua experiência como testemunha presencial, e fala da fome que levaria à prática de antropofagia.

103 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Gastronomia grotesca: canibalismo no Brasil e na França – o memorável, o notável e o traduzível na escrita de duas Histórias

C

orre o ano de 1573. Estamos em meio às guerras religiosas na França, decorrentes da Reforma Protestante iniciada na Alemanha por Lutero, que, com a publicação de suas 95 teses, propunha uma reforma no catolicismo. Esse movimento se estendeu pela Suíça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia, além de outros países, irradiando-se pelo leste europeu. Na França, Calvino é a figura central para o protestantismo. Refugiou-se na Suíça em 1536 devido à perseguição aos protestantes em seu país de origem. Foi neste ano que publicou a obra A Instituição da Religião Cristã. Quarenta anos depois, as disputas religiosas significavam verdadeiras guerras. Em 1572, uma verdadeira matança aos protestantes é organizada pelo rei Carlos IX e, sobretudo, por sua mãe Catarina de Médici, que era quem realmente detinha o poder. O sangrento episódio ficou conhecido como “O Massacre da Noite de São Bartolomeu” (23-24/08/1572) e dizimou milhares de protestantes, inicialmente em Paris e, numa série planejada de ataques, estendeu-se o massacre a outras cidades francesas, durando meses. Um ano após a onda de massacres, a situação ainda era tensa para os protestantes. A cidade de Sancerre, no centro da França, encontrava-se sitiada pelos católicos. Outrora uma pacata cidadela, Sancerre perdeu sua identidade com a 104 Alexandre Belmonte

destruição de suas torres e de seu relógio, e, enfim, a imposição da fé católica. A destruição do relógio conseguiu retirar Sancerre de seu tempo: passaram a confundir-se, aí, velhas e recentes histórias de guerras de religião, intolerância religiosa, fome e carestia, tabus e violações... Em março iniciou a escassez de comida; a população resistia ao cerco, embora muitos já tivessem morrido de fome ou de tiro proveniente dos canhões que cercavam a cidade. Um cavalo morto a tiro de canhão foi comido pela população: “ele foi esfolado, cortado, arrebatado e comido pelos mais pobres vinhateiros e trabalhadores, os quais relatavam a qualquer um não terem nunca comido carne melhor”25. Mesmo a fome passava ainda pela gastronomia, mesmo a escassez era atravessada pelo gosto e pela vontade de comer. Em abril, mataram e venderam um asno, comendo-o assado com cravos-da-índia. Jean de Léry é o narrador desses episódios, e dá atenção ao gosto, ao tempero – únicas armas, em Sancerre, contra a fome e o isolamento. Em maio começaram a matar cavalos, a vendê-los e comê-los. Entre julho e agosto, disparou o preço da carne de cavalo no famélico comércio de Sancerre. Mesmo cães e gatos foram transformados em iguarias para a população faminta, sendo esses últimos condimentados e preparados como se fossem coelhos. As receitas circulavam de boca em boca. Comia-se de quase tudo na Sancerre sitiada: pergaminhos, couro de cintos, sapatos, qualquer coisa que fosse mastigável, que pudesse ‘enganar’ o estômago. Quando não restavam mais nem cães e nem gatos, recorria-se aos famintos ratos. Comiam-se até mesmo excrementos na Sancerre sitiada. E eis que em fins de julho, a desesperada gastronomia dá espaço ao grotesco. 25. Léry. Sommaire discoursde la famine ... Apud Bruna Conconi, Op. Cit. p. 175. Tradução nossa. 105 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

O ambiente é desolador: pratos e tigelas sobre a mesa, a família preparando-se para a ceia. Um tal Symon Potard, sua mulher Eugene e uma velha chamada Philippes de la Fuëille são, entretanto, surpreendidos em seu banquete. Nada haveria de macabro se o prato principal não fosse o corpo da filha dos Potard, uma menina de aproximadamente três anos, morta de fome. Seu corpo franzino fora cuidadosamente cortado nas articulações, salgado, condimentado e cozido. Na panela podiam ser vistas as pernas da menina. O ambiente cheirava a vinagre e condimentos. A família e a velha de la Fuëille já haviam comido as orelhas, a língua, a cabeça, o cérebro e o fígado da criança. Entre os que testemunham o evento está Jean de Léry, deparando-se com o canibalismo pela segunda vez – a primeira fora quase 20 anos antes, entre os tupinambás. Desta vez, Léry se revolta; sente-se aterrorizado ao ver a cena, ao constatar que o luto pela menina morta de fome é ironicamente acompanhado pelo banquete de seu próprio cadáver. É claro que não deixa de lembrar-se do canibalismo dos tupinambás: um canibalismo que, ali em Sancerre, era para ele perfeitamente desculpável, aceitável, já que Léry compreendera seu sentido dentro da cosmovisão e das práticas de guerra tupinambás. A antropofagia da família francesa, por outro lado, era absurda, perturbadora. Em primeiro lugar, a família era cristã, e não selvagem; em segundo lugar, o ato extremo fora consequência, em última instância, do cerco provocado pelos católicos aos protestantes. É notável o encontro entre sua história do Brasil e a de Sancerre. Seja em relação à história de sua viagem ao Brasil, seja em relação à história de Sancerre, o papel da testemunha presencial é fundamental para o estatuto de veracidade dos eventos. Em ambas as histórias, Léry escreve em primeira pessoa, como testemunha dos eventos que se propõe a contar. 106 Alexandre Belmonte

O uso do ‘eu’ marca o estatuto jurídico do nome e seu caráter inalienável26. A veracidade das informações é evocada pelas fórmulas “eu mesmo vi”, “conforme presenciei” etc. e, na falta de observação direta, Léry faz questão de dizer que narrava um fato “como lhe fora dito”. Também no título de sua história de Sancerre, ele diz que foi tudo “fielmente recolhido in loco”, e ao longo da história, fala “daqueles que estiveram no lugar” assim como ele. As coisas eram observadas “bem de perto”, estavam “diante dos olhos”, o que dava à história mais gravidade, veracidade e credibilidade. É igualmente notável o fato de que, em ambas as histórias, é ele a testemunha que a todo o momento procura dar provas do que registrara. É implícita a contraposição entre história e natureza em seus dois escritos: a ideia de que os fatos humanos, por terem uma natureza fenomênica, deviam ser registrados, ao contrário dos ‘dados’ da natureza, que, por serem sempre presentes e atuais, não necessitavam de rememoração. No prefácio da Viagem à terra do Brasil, é significativa sua noção de história, bastante próxima da ideia de história de Heródoto, que apresenta, em sua Historíai, os resultados de suas investigações, “para que a memória dos acontecimentos não se apague”. O termo istoría deriva de id-, “ver”, e ístor, que originalmente tem o sentido de “testemunha ocular”, e que posteriormente significa “a verdade que se estabelece pela investigação”. Esse sentido de testemunha que Heródoto deu à sua obra é recorrente nos escritos de Léry. Na Histoire Memorable, é digna de nota a forma circular, portanto perfeita, da cidade de Sancerre, situada no exato centro da França. Nesta história, tal qual na história do Brasil, Léry fala dos motivos que o levaram a escrever: fala da impossibilidade “de enterrar no silêncio coisas tão dignas de perpétua memória”. Ele diz: “Não posso nem devo calar-me”, e o fato 26. Michel Pêcheux. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Ed. Unicamp, 1988, p. 60 e ss.) 107 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

de não poder nem dever se calar inscreve-se, mais uma vez, na própria história do calvinismo na França. Léry quer dar seu testemunho a fim de perpetuar uma história que não pode ser esquecida, mas também a fim de denunciar o que ele achava serem “atrocidades” cometidas pelos católicos. A finalidade da história liga-se à ação concreta: “a fim que se possa recolher o fruto dessa história” – a ‘História’ acaba sempre assumindo o papel de mestra da vida, e, através do que ensinam os exemplos do passado, o presente pode conduzir a um futuro melhor. Não se trata somente de um otimismo ingênuo: os calvinistas parecem ter uma preocupação com a ideia de justiça atestada pela história verossímil; não é à toa que já em meados do século XVI o editor Jean Crespin publica sua Histoire des Martyrs, e que na segunda metade do século XVII Louis Maimbourg já publica uma história do calvinismo (Histoire du Calvinisme, 1682) É importante não perder de vista que a Histoire d’un voyage de Léry é também, em certa medida, uma réplica às Sigularitez de la France Antarctique do franciscano Thevet, obra, segundo Léry, recheada de mentiras e informações fantasiosas e exageradas. Já no prefácio, Léry cita o tradutor de López de Gómara, M. Fumée, para quem a obra do franciscano era “prenhe de mentiras”. É, a princípio, contra esse “imprudente caluniador” e “refinado mentiroso” que Léry busca escrever a história de sua viagem, sobretudo quando Thevet lança, em 1577, sua Cosmographie:

Mas ao verificar, neste ano de 1577, pela leitura da “Cosmografia” de Thevet, que ele somente repetia suas mentiras e ampliava seus erros (sem dúvida na esperança de que todos estivéssemos enterrados ou não ousássemos contradizê-lo), mas ainda se valia da oportunidade para detrair dos ministros e imputar mil crimes aos que como eu 108 Alexandre Belmonte

os acompanharam em 1556 à terra do Brasil, com digressões falsas e injuriosas, vi-me constrangido a dar à luz o relato de nossa viagem.27 O relato de sua viagem é uma história que, para o autor, não deve ficar enterrada – palavra que ele mesmo usa diversas vezes – mas que deve vir à luz. É constante a dicotomia luz x escuridão na obra de Léry. Lumière é uma palavra de força em seu texto: o discurso sobre os “sauvages” deve ser trazido à luz: “ce que j’avois escrit de l’Amerique (...) n’avoit pu venir en lumiere”28. Léry fala de choses notables (“coisas notáveis”) por ele observadas. Em primeiro lugar, é significativo, em Léry, o fato de certas coisas serem notáveis, dignas de nota, em detrimento de outras. É uma segunda questão de método: a seletividade do olhar. Ele não é um observador passivo ou indiferente; é justamente essa seleção das coisas “dignas de nota” que nos permite acessar de que modo as culturas ameríndias causaram impacto no observador e o modo como essa diferença encontra acolhimento em sua escrita. Essa seleção coloca Léry diante da diferença dos indígenas, e, curiosamente, nos coloca diante da abertura de Léry ao que era próprio do tupinambá. Ao apontar o que é digno de nota, a diferença do outro não é acolhida tão-somente pelo padrão da escrita. Léry transita entre significante e significado: o significado que dá ao que, em seu discurso, é próprio do outro, liga-se à sua própria possibilidade (linguística, cultural) de significar. Outra identificação entre a História de Léry e a de Heródoto é que ambos tentam, cada um conforme suas possibilidades, dar conta de um Outro: em ambos os casos esse Outro é também um bárbaro, alguém que está para além das fronteiras de uma dada visão de mundo, de um dado país ou 27. Léry. Op Cit. p. 63. [Trad. Bras. In Jean de Léry. Viagem à terra do Brasil. p. 36.] 28. Jean de Léry, Op. cit. p. 62. [Trad. nossa: O que eu havia escrito sobre a América(...) não pôde vir à Luz.] 109 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

de uma dada cultura ou linguagem religiosa. Embora haja de antemão uma contraposição – que a linguagem da Ilustração do século XVIII chamará da tensão entre civilização e barbárie – tanto Heródoto quanto Léry conseguem ver o bárbaro como humanos antes de qualquer coisa. Heródoto escreve sua história para que os “feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados”. Léry quer escrever a história de sua viagem para fugir da condição de que as choses ... dignes de memoire (coisas ... dignas de memória) não perecessem, nem ficassem enterradas no esquecimento, ne demeurassent ensevelies. Para tal, conduz suas memórias a um diálogo constante com um cânone que aos poucos vemos emergir em seu texto. A interlocução com Heródoto, embora não seja direta, é de tal forma imbricada no pensamento de Léry que a atenção de Heródoto parece ser o motor de toda investigação. Mas a investigação, em Léry, exige ordem, e é feita aos poucos. Suas memórias, diz ele, je les devois rediger plus au long et par ordre29. A ordem do Léry autor é a ordem do agente da história. A observação de algumas marcas em seu texto nos coloca questões sobre a ordem de seu discurso. Logo no prefácio, ele fala da língua dos selvagens, e escreve “selvagens” com letra maiúscula, já na primeira edição, tal qual escreverá, ao longo de sua história, os nomes próprios, as nacionalidades e alguns substantivos como rei, pirata etc. Ao longo do texto, alterna-se o uso de maiúscula e minúscula para a palavra ‘selvagens’: a letra minúscula surge quando ele usa ‘selvagens’ como adjetivo, por exemplo, ao falar de “algumas mulheres selvagens”, ou de “costumes selvagens”. A maiúscula expressa o substantivo, ou seja, o selvagem como entidade, substância: “a língua dos Selvagens”, (“langage des Sauvages, qu’on verra

29. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “eu tinha que descrevê-las minuciosa e ordenadamente”.] 110 Alexandre Belmonte

au vingtiesme chapitre”30), “costumes dos Selvagens” etc. Antes de ser mera convenção tipográfica, esse uso substantivado de selvagens é uma marca importante no que diz respeito à maneira de nomear o outro, de conferir-lhe substância e quididade, de encará-lo propriamente como entidade. São marcas que constam já da primeira edição de seu relato. Outra marca constante em seu texto é o uso da voz passiva em determinados momentos. Quando as coisas fogem do controle de seu olho observador e de sua ação, Léry recorre à voz passiva. Ao desculpar-se pelo fato de não ter publicado sua história imediatamente após sua chegada do Brasil, Léry usa sempre a voz passiva: algo exterior a ele acontece, e ele sofre a ação desse agente que está sempre implícito: je fus pour la seconde fois privé de mon labeur31, ce que j’avois escrit de l’Amerique, m’estant tousjours eschappé des mains, n’avoit peu venir en lumiere32. É emblemático o uso que Léry faz da voz passiva: ele não diz que observou as coisas, mas sim que as coisas foram observadas por ele. É ele próprio o agente dessa ação sobre as coisas, que, de certa forma, estavam à disposição de forma atemporal. O mundo a ser observado se reflete não só nas formas gramaticais, mas também no próprio texto que será publicado somente 18 anos após sua viagem ao Brasil. As mémoires que Léry tinha, ele as quer transformar em histoire – quer, de fato, mettre ceste histoire en lumiere33. A memória é traiçoeira e obscura: os fatos devem ser vistos à luz, e é esta a condição da escrita de sua história. Mais

30. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “língua dos Selvagens, que veremos no capítulo XX”.] 31. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “fui pela segunda vez apartado de meu trabalho”.] 32. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. bras.: “o que escrevi sobre a América, tendo-me sempre fugido das mãos, não pôde ser publicado antes.” In Léry. Viagem... p. 35] 33. Ver várias referências em todo o prefácio: Idem. Ibidem, pp. 61-99. [Trad. nossa: “dar essa história à luz”] 111 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

uma vez, é importante pensar que, antes de ser meramente um “estilo” do autor, por vezes o uso de determinadas formas verbais em detrimento de outras pode fornecer chaves para se compreender a própria relação do autor com o objeto de sua escrita. A questão da escrita, aliás, não era algo que passava ao largo de Léry. Embora não pretendesse passar uma imagem de douto ou refinado, Léry tem algumas leituras, e, sendo um protestante quase de primeira geração, é bastante entusiasta em relação à escrita e ao seu significado teológico e antropológico. Essa é uma questão presente na época. Em 1579, em sua Introduzione a Artis historicae penus, Johann Wolf fala da transmissão escrita dos exemplos do passado, “que permite adquirir (...) a memória histórica, o que nos torna mais fortes e poderosos que os povos que não a possuem, nos distingue e torna superiores ao ‘outro’”34. Os historiadores protestantes recorrem aos teóricos do cristianismo a fim de buscar um método particular de tratamento de um documento como o texto sagrado. É sobre a alegoria e o simbolismo bíblicos, segundo Conconi, que se fundará o método crítico da história. Léry, na história de sua viagem, também faz um elogio da escrita como forma distintiva de conhecimento: Eis portanto aí um tema de dissertação suscetível de mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus pela sua superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo que os selvagens nada podem comunicar-se entre si a não ser pela palavra, nós, ao contrário, podemonos entender e dizer os nossos segredos, por meio da escrita, pelas cartas que enviamos de um a outro extremo da terra. Além da invenção da escrita, os

34. Bruna Conconi. Op. Cit. p. 37. [Trad. Nossa do original “che permette di acquisire (...) la memoria storica, ciò che ci rende più forti e potenti dei popoli che non la posseggono, ciò che ci distingue e rende superiori all’‘altro’”.] 112 Alexandre Belmonte

conhecimentos de ciência que aprendemos pelos livros e que eles ignoram, devem ser tidos como dons singulares que Deus nos concedeu.35 A escrita foi constantemente louvada ao longo dos séculos, sobretudo pela tradição eclesiástica, e a preocupação com a transmissão de obras escritas era evidente na atuação dos copistas no scriptorium das bibliotecas monasteriais. Ela torna-se instrumento fundamental tanto para a nova abordagem da história que se insinua no século XVI quanto para as representações da alteridade e os processos locais de formação de identidades culturais. Para o calvinismo, a escrita, e, sobretudo, as Escrituras sagradas, têm também a função de pôr homem e Deus em contato. De acordo com Certeau, A descoberta do Novo Mundo, o fracionamento da cristandade, as clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma política e de uma razão novas engendram um outro funcionamento da escrita e da palavra.36 A oposição entre culturas possuidoras de escrita e culturas ágrafas é fundamental para a compreensão dos mecanismos da conquista da América e das representações da alteridade e das identidades que foram se construindo a partir dos primeiros contatos. Todorov procurou demonstrar como foi importante para Cortez a compreensão dos signos astecas, e como isso funcionou como instrumento de poder37. Através do estudo comparado de várias obras publicadas ao longo do século XVI, vemos que se rascunha uma certa concepção de história, com métodos próprios e passível de 35. Léry. Op. Cit. pp. 381-2. [Trad. bras. In Léry. Viagem... p. 206.] 36. Michel de Certeau. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1992, p. 213. 37. Tvetan Todorov. Op. cit. 113 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

ser verificada através dos exempla dos antigos, mas sobretudo através da Bíblia. Retornando sempre a um cânone greco-romano e cristão, esse não é propriamente um movimento original, mas consegue reconstruir uma visão canonizada da história. Não é fortuito o fato de várias obras da época conterem tantas remissões a outros textos, seja em forma de referências às margens do texto quanto ao longo do texto. Dentre essas remissões, a Bíblia era, evidentemente, o argumento de força por excelência dos escritores protestantes. A história, tal como a conta Léry, e também Crespin, Paul Eber, Sleidan e Wolf, buscava dar conta dos movimentos da mão da Providência, de modo que nada era atribuído à sorte. O homem, para Eber, não era fruto do acaso: “(…) le genre humain n’est point né par cas d’aventure, et la nature des choses n’est point forgée par accident des atomes: mais Dieu par un certain conseil a créé les hommes.”38 Também Crespin, ao editar seu livro sobre a vida dos mártires, “ceux qui avoyent receu la grace de rediger par forme d’histoire”39, louvava a escrita em suas implicações teológicas, antropológicas e metafísicas. Léry faz um dos topoi d’exorde40 recomendados pela historiografia antiga: faz uma análise das origens da cidade de Sancerre. Léry não faz isso na História do Brasil, seja pelo caráter inaugural de sua história, ou por tratar-se, não propriamente de uma história do Brasil, mas da história de uma viagem ao Brasil, ou ainda, pelo fato de enxergar o Novo Mundo nos confins do mundo, portanto uma terra ainda não historicizada. 38. Paul Eber, apud Bruna Conconi, Op. Cit. p. 40. [Trad. nossa: “o gênero humano não nasceu por acaso, e a natureza das coisas não foi forjada acidentalmente pelos átomos, mas Deus, através de certa compreensão, criou os homens”.] 39. Jean Crespin apud Bruna Conconi. Op. cit, p. 40. [Trad. nossa:“os que receberam a graça de escrever em forma de história”.] 40. tópicos preliminares. 114 Alexandre Belmonte

O regresso à França: fome, tormentas e saudades

O

que é mesmo que Léry aprende, afinal, com os civilizados indígenas? E o que é que lhes ensina? Será que, nos encontros e confrontos entre culturas, caberiam relações de aprender-ensinar? Nos dois últimos capítulos de sua relação de viagem, Léry apresenta o testemunho dramático das tormentas por que passou em seu regresso à França, após quase um ano em terras tupinambás. A tripulação carrega muita coisa consigo, coisas materiais, lembranças dos indígenas, animais exóticos, pau-brasil... Parecem levar uma miniatura do Mundo Novo, para encenar aos seus financiadores, à sua Igreja, ao seu meio. Nada disto chega, entretanto, ao Velho Mundo, salvo a madeira do pau-brasil. Tudo o que é mastigável é devorado na viagem. Os que levavam bugios e papagaios, aos quais ensinavam a falar, os comeram na falta de outros víveres. Dois marinheiros morreram quatro meses após a partida, estando toda a comida já esgotada. Muitos rezavam. Léry, claramente contra a idolatria, conta como certos “marinheiros papistas” faziam promessas a São Nicolau41, “inclusive a de uma imagem de cera do tamanho de um homem”42. Léry conclui que era como se apelassem a Baal, e que ele e os calvinistas julgavam melhor recorrer diretamente a Deus. 41. São Nicolau é conhecido, sobretudo entre os ortodoxos, como protetor dos marinheiros e navegantes. 42. Léry. Op. Cit., p. 528. 115 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

A imagem que Léry retrata é de que todos no navio mal podiam sustentar-se de pé, de tão magros, fracos e cansados que estavam. À generosidade dos tupinambás – que dividiam toda sorte de comida com os franceses, inclusive nacos de coxas e braços humanos, assados ao moquém – contrapõe-se a avareza da tripulação, que escondia cuidadosamente qualquer coisa mastigável. Os grumetes e pajens do navio, conta-nos Léry, de tal forma apertados pela fome, comeram todos os chavelhos das lanternas, e todas as velas de sebo que encontraram a bordo. No último capítulo de sua epopeia, há páginas e páginas de uma descrição que, em crescendo, mostra como tudo o que era mastigável foi comido: primeiro os víveres e bolachas, depois os animais, em seguida o couro do tapir assado na brasa, por fim os famigerados ratos e ratazanas que, também assolados pela fome, saíam à luz do dia em busca de comida. Até mesmo ossos velhos e “outras imundícies” foram usados para saciar a fome. Tem-se a impressão de que mesmo o casco do navio poderia ser, a qualquer instante, devorado pela famigerada tripulação: é bem verdade que muitos, “levados pela miséria”, mascaram a madeira do pau-brasil que transportavam. Léry conta como a fome embrutece de tal forma as pessoas que, tirando-lhes o ânimo, torna-os ferozes e enraivecidos. Ele diz compreender porque Deus ameaçara seu povo com a fome caso não lhe obedecessem43. Enfim, tendo acabado toda a criatividade gastronômica e tudo o que era mastigável a bordo, Léry diz que somente o amor a Deus os reteve de se devorarem uns aos outros, pois mal podíamos falar uns com os outros sem nos agastarmos e o que era pior (perdoe-me Deus) sem nos lançarmos olhares denunciadores da nossa disposição antropofágica.44 43. Deuteronômio, XXVIII, 53. 44. Léry. Op. Cit. p. 536. [Trad. Bras. In Léry, Viagem... op. Cit, p. 265.] 116 Alexandre Belmonte

O “ato bárbaro”, entretanto, não foi levado a cabo – ao menos não a bordo, não naquele momento. Seria realizado alguns anos depois, em Sancerre, durante o cerco. Enfim, em 24 de maio de 1558, foi avistada terra firme. O mestre do navio comunicou que, se a deriva tivesse se prolongado por mais um dia, estava decidido a matar um dentre eles para a alimentação dos demais “sem aviso prévio”. Léry ainda tem bom-humor para lembrar-se que jamais o teriam escolhido, “a menos que quisessem comer apenas pele e ossos”45. Tendo encontrado um barco perto da costa, atiraram-se sobre ele e devoraram o pão preto que ali encontraram. Mais uma vez, contraposto à generosidade tupinambá, à generosidade do Mundo Novo, Léry conta como um dos “miseráveis” desse barco chegou a receber dele dois reales por um pedaço de pão. E é essa espécie de generosidade que faz falta a Léry. Livre dos perigos do mar, já em terra firme, Léry é um homem dividido entre sua devoção a Deus e à religião reformada, e a saudade que sente de outro mundo, da possibilidade de um novo começo, de uma nova história. Pois é entre os selvagens que Léry reconhece um espírito de que carece a sua França natal: entre eles não há dissimulação e deslealdade: Assim, ao dizer adeus à América, aqui confesso, pelo que me respeita, que, embora amando como amo a minha pátria, vejo nela a pouca ou nenhuma devoção que ainda subsiste e as deslealdades que usam uns para com os outros, tudo aí está italianizado46,e reduzido a dissimulações e palavras vãs, por isso lamento muitas vezes não ter ficado entre os selvagens nos quais como

45. Léry. Viagem... op. Cit, p. 265. 46. Referência a Catarina de Médicis e à sua influência no clero francês. 117 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

amplamente demonstrei, observei mais franqueza do que em muitis patrícios nossos com rótulos de cristãos47 É esta, afinal, a experiência maior de Léry, que se reflete não somente em nível pessoal, mas que, publicada, lida e traduzida rapidamente, irradia-se pela Europa, na imagem de um Paraíso, ou, na falta de qualidades paradisíacas no Mundo Novo, na imagem de uma terra onde tudo era ainda possível. Léry sente-se, enfim, tentado a renunciar à sua própria religião e ao seu meio social, para viver esse recomeço. Por um motivo ou outro, por medo, acomodação ou excesso de ocupações, não retorna ao Brasil, senão através das inúmeras reedições de seu relato. Seria caso de se pensar que sua primeira edição, 20 anos após o regresso do narrador, marca mesmo a chegada de Léry à França, o fim de uma espécie de transe, o fim de um longo trânsito. O texto, e, com ele, as experiências e memórias de seu autor, voltam de terras tupinambás e são apresentados à França em 1578. É uma transição. De um grande entusiasta da religião reformada 20 anos antes, Léry está agora profundamente abalado pelos conflitos entre católicos e protestantes. Consegue ser, entretanto, um calvinista exemplar, mas talvez para continuar a sê-lo, precise ainda revisitar muitas vezes sua história entre os tupinambás do Novo Mundo, “gente perdida”, perdida de Deus, longe de Cristo, mas também longe da Europa, de culturas já massacradas pela historicidade de Cristo. Se bem que inconvertíveis à fé em Cristo, os nativos possuíam algo que faltava aos compatriotas de Léry: a liberdade que permite sempre um recomeço. É o sonho de um início, de um novo começo, livre das mazelas que assolavam os governos e o clero por toda a Europa, 47. Léry, op. Cit. pp. 507-508. (grifos nossos). [Trad. Bras. In Léry, op. Cit., p. 251 (grifos nossos)] 118 Alexandre Belmonte

livre de vícios, aberto à observação e à interação com a Natureza – que é sempre uma Natureza divina. Léry é, finalmente, conquistado pelos selvagens, carrega sua melodia nos ouvidos, suas cores na retina; carrega o espanto e a abertura ao outro, e busca escrevê-lo, rescrevê-lo, na tentativa de ainda sentir-se par-delà.

119 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

O Grande Khan já estava folheando em seu Atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World. Disse: – É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito. E Polo: – O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

Capítulo

4

Transes e trânsitos

U

m relato de viagens não é somente um depósito de memórias que o viajante traz consigo. Não é somente uma compilação descritiva acerca de um lugar ou de um povo estrangeiro. Quase todos os relatos, quando revisitados em outro tempo, quando interpelados por outro contexto, remetem o pesquisador a outro tipo de informação além daquela a que se propunham a divulgar em seu tempo. E o que é mesmo que os relatos se propunham a divulgar? Seria possível tratar as relações de viagens como narrativas que, de fato, se propõem a divulgar alguma informação? Mesmo quando quer falar da maneira como os indígenas cozinham e comem os alimentos, por exemplo, o narrador desvia-se do assunto: não fala somente da mandioca, do fogo ou dos utensílios de cozinha. Vai além, explorando a relação do indígena com a agricultura praticada nessas terras, sua relação com o fogo, os motivos com que decoravam seus utensílios etc. E com isso, de forma muitas vezes ingênua e deslumbrada, mostra algo que falta em si, mas que reconhece como seu: a relação mágica com o fogo, os símbolos com que eles próprios revestem não somente utensílios domésticos, mas instituições sociais e comunais. A possibilidade de contar e nomear o que se supõe ser digno de nota deixa aparecer o vigor da abertura ao outro, de uma certa universalidade das experiências do homem. Muitas culturas, ao longo da história, percebem-se como ‘superiores’ a outras; muitas vezes as subjugam, dominam, aniquilam. No século XVI, as culturas ameríndias foram consideradas primitivas por aqueles que chegaram da Europa. 122 Alexandre Belmonte

Os nativos tendiam a ser vistos como gente bárbara e desgraçada, por não conhecerem a escrita, por andarem nus, pela prática da antropofagia, por suas práticas sociais diferentes, e, sobretudo, por não possuírem, como muitos supunham, uma religião monoteísta. É interessante notar que nem todos os nativos desconheciam a escrita, nem todos andavam nus, nem todos eram canibais, e suas práticas sociais, embora diversas, diziam respeito ao mesmo empenho de vida, morte e sobrevivência de todo homem. Tantas tribos esparsas acabaram por ser reduzidas a ‘nativos’, ‘índios’, ‘autóctones’. E, curiosamente, portugueses, genoveses e catalães, normandos e bretões, espanhóis e franceses das mais diversas regiões e origens, todos passaram a ser ‘europeus’, não mais um mero referencial geográfico, mas uma demarcação de fronteira identitária, cultural. O europeu viu-se diante de culturas “não civilizadas”, que ele repudiou e tentou transformar, e, na impossibilidade de transformá-las, tentou aniquilá-las. Entretanto, no vigor das relações que estabeleceu com estas novas e tão diversas culturas, está presente uma tentativa de historicizá-las, de compreendê-las, ao invés do simples impulso de dominá-las e destruí-las. Após a análise do relato de Léry e a investigação dos problemas que colocamos, podemos supor que é ingênuo e simplista argumentar que os europeus simplesmente “dominaram” as culturas do Novo Mundo, pois desde o início da descoberta e conquista, o Mundo Novo pareceu caracterizar-se pelo hibridismo, pela fusão e confusão de culturas, pela mestiçagem. Poderíamos falar em uma descoberta mútua, recíproca; uma conquista mútua, recíproca. Em nosso trabalho, buscamos pensar a lógica discursiva que, ao longo do relato de Léry, parece mostrar uma transformação significativa da sua relação com sua própria cultura, com a própria ideia de cultura possível em seu tempo. Buscamos analisar 123 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

de que forma os encontros entre culturas impulsionaram os viajantes em geral, e Léry em particular, a pensar sua própria proveniência; em última instância, como estes reconstruíram, textualmente, sua própria cultura através do encontro com a alteridade. O relato de Léry parece ser bastante diferente de outros relatos contemporâneos. Parece haver uma diferença fundamental nas maneiras de perceber a alteridade e de pensar a identidade. O indígena figura, na maioria dos relatos, como uma aberração humana, um selvagem encerrado em sua primitividade. Em Léry, o indígena pode ser um outro qualquer, e, como qualquer outro, possuidor de uma complexa personalidade, e de formas de se organizar, de (se) pensar e de se relacionar igualmente complexas. Em Léry, o indígena é tão nobre quanto o europeu. E tão selvagem quanto. Poder-se-ia argumentar que Léry foi o único narrador calvinista entre tantos católicos, e que a diferença na abordagem da alteridade reside neste fato. Ora, vale lembrar que, para Léry, os tupinambás eram inconvertíveis à fé cristã, já que eram herdeiros da maldição de Cam. É por isso que Léry não luta com os indígenas pela posse de um espaço sagrado no Novo Mundo, como parecem ter feito outros viajantes e colonos religiosos, como certamente o pretenderam os jesuítas. Decerto, alguns detalhes da vida de Léry o levaram a perceber o nativo de forma diversa: Léry era bastante jovem quando chegou ao Mundo Novo, e, após seu regresso à França, viu-se em meio a uma longa guerra civil que dividia franceses de acordo com a religião. Viu-se, enfim, diante da antropofagia praticada em sua própria terra natal, o que provavelmente o levou a repensar a antropofagia dos tupinambás levando em conta seu contexto no Mundo Novo. Na história de sua viagem, Léry localiza a diferença do outro, e, ao fazê-lo, localiza-se em sua própria singularidade. Deixa, por vezes, de se identificar como calvinista, e passa a 124 Alexandre Belmonte

se perceber ora como francês, ora como europeu, ora como humano. Isso é bastante claro nas comparações que faz entre os nativos de “par delà” e os franceses de “par deçà”. O “par deçà” passa a representar, enfim, toda a cultura judaico-cristã, na qual Léry enxerga sua filiação. Léry é também uma espécie de tradutor que dá espaço e acolhe o mundo do outro, que compreende, ou acredita compreender, os signos que traduz. As diferenças entre as culturas são, afinal, bastante tênues, e uma tradução dá conta do trânsito entre elas. A diferença do outro é até mesmo passível de tradução e representação, não somente em outro idioma, mas em outros valores, em outra compreensão de tempo, espaço e sociabilidade. Em outras palavras, a diferença do tupinambá consegue transitar, através de Léry, em uma outra dimensão histórica: a do viajante europeu e sua cosmovisão. Trata-se, então, de muitas culturas traduzíveis, passíveis de compreensão recíproca. No fim das contas, Léry dá um tratamento bastante humanista à sua narrativa: a ideia de cultura deixa de estar atrelada a uma perspectiva de cultura em curta duração, e passa a ser percebida como um pano de fundo universal, que tudo pode abranger e representar. A cultura aparece, em Léry, como o tudo aquilo que é dizível e passível de ser vivido, tudo o que é mastigável (inclusive a própria carne humana em rituais canibais), todas as instâncias habitáveis do homem. O conhecimento sobre o outro representado pelo indígena e sua compreensão como cultura foram agenciados apenas segundo a ótica dos europeus, já que os nativos destas terras não deixaram testemunhos escritos de suas impressões e experiências com os europeus que chegaram. O cerne de uma certa ‘cultura brasileira’ nunca pôde ser, portanto, considerado em sua totalidade, em sua radicalidade e sob a ótica dos que foram considerados os ‘perdedores’ de uma longa conquista. 125 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Será que um tupinambá do século XVI considerava-se conquistado, um perdedor? Quando zombam da ignorância dos franceses em relação à natureza, não parecem sentir-se perdedores, ou incivilizados; ao contrário: são eles que apresentam a um francês ‘ingênuo’ as particularidades destas terras. Sua cosmovisão de integração à Natureza é até mesmo mais compatível com o que hoje é definido como um desenvolvimento ecologicamente coerente e sustentável. Uma investigação maior se faz necessária, no sentido de evidenciar como se desenvolveram as transformações de um homem europeu medieval a partir de seu contato com a alteridade do Novo Mundo. Como se deram as transformações de tantos nativos tão diversos entre si a partir do contato com novos e inusitados ‘vizinhos’ conhecedores da pólvora, da espada, da Cruz e de refinadas técnicas agrícolas, comunicacionais, econômicas. É nas lacunas de uma história construída e reconstruída muitas vezes que podemos escrever a história silenciosa das transformações mentais possibilitada pelos encontros e confrontos entre culturas.

126 Alexandre Belmonte

Glossário do francês quinhentista

Pequeno glossário do francês do século XVI1

A ains – mais amour (pour l’amour de) – à cause de apeter – désirer vivement aucuns – quelques-uns, certains avarice – avidité, cupidité

C charge – tâche, mission combien que – bien que comme ainsi soit que – étant donné que cri – annonce d’une nouvelle, proclamation

D deduire – exposer en détail depuis – après discours – récit, exposé, histoire

1. Para uma lista mais completa, ver Bruna Conconi, Op. Cit. Apêndice. 128 Alexandre Belmonte

E effect (pour l’effect de) – en vue de ; par effect: par actes encore – même espace – laps de temps

F faillir – manquer

G gourmander – manger avec excès, goulûment

H herbe – légume

J jeu (venir en) – avoir son tour joint que – outre que

L livre – unité de poids variable selon les provinces, de 380 à 552 grammes ; monnaie de compte qui se devisait en sous et deniers ; livre tournois: 25 sous. long (au) – complètement, en détail 129 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

M mal (adj) – mauvais, violent.

P participer de – avoir des traits commun avec police – governement, administration publique porter – garantir prodigieux – monstrueux protester – déclarer de manière solennelle

Q quartier – quatrième partie de l’écu

R remonstrer – montrer clairement, faire savoir retenir – garder, conserver

S selon que – comme, de la manière dont

T tellement que – d’une manière telle que, de la même manière que 130 Alexandre Belmonte

Fontes e Bibliografia

1. Fontes:

1.1. Manuscritas:

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132 Alexandre Belmonte

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Lettere

di

viaggio.

Milano,

FREYRE, Francisco de Britto. Nova Lusitania - historia da guerra brasilica à purissima alma e savdosa memoria do serenissimo principe Dom Theodosio principe de Portugal, e principe do Brasil. Lisboa, Officina de Joam Galram, 1675.

133 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. A Primeira história do Brasil – História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. (texto modernizado e notas de Sheila Moura Hue e Ronaldo Menegaz). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2004. JOSEFO, Flavio. Histoire de Flavius Iosephe,... / mise en françois, reveve sur le grec, [et] illustree de chronologie, figures, annotationes,... par D. Gilb. Genebrard... Paris, Pierre l’Huillier, 1578. LAUDONNIERE, René Goulainé de. Three Voyages. Trans. and ed. Charles E. Bennet. Tuscaloosa: U of Alabama P, 2001. LÉRY, Jean de. Historie d’un voyage faict en la terre du Bresil, autrement dit Amerique ... / le tout recueilli sur les lieux par Jean de Lery ... Non encores mis en lumiere, pour les causes contenues en la preface. La Rochelle, Antoine Chuppin, 1578. LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. (Édition commentée par F. Lestringant). Paris, Librairie générale française, 1994. LÉRY, Jean de. History of a Voyage to the Land of Brazil… (Trad. Janet Whatley). Los Angeles, U of California P, 1990. LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. (trad. Sérgio Milliet) Belo Horizonte, Itatiaia, 1980. LÉRY, Jean de. (org. por G. Nakam). Histoire de la ville de Sancerre. Paris, Anthropos, 1975. LESCARBOT, Marc. Histoire de la Nouvelle France. Paris, Jean Millot, 1609. (BNRJ, OR, Cofre, 2, 23 no 1) 134 Alexandre Belmonte

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135 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

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147 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

Anexos

TABELA 1 Edições da Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil de Jean de Léry: EDITOR Antoine Chuppin

LÍNGUA Francês (1ª edição)

LOCAL

ANO

La Rochelle

1578

(Genebra?)

Antoine Chuppin

Francês (2ª edição)

Genebra

1580

Antoine Chuppin

Francês (3ª edição)

Genebra

1585

Herdeiros de Eustache Vignon

Francês

Genebra

1594

(cópia da 2ª edição)

Genebra

1599-1600

Herdeiros de Eustache Vignon

Francês (4ª edição)

(2ª tiragem?)

Jean Vignon

Francês (5ª edição)

Genebra

1611

Eustache Vignon

Latim (1ª edição)

Genebra

1586

Herdeiros de Eustache Vignon

Latim (2ª edição)

Genebra

1594

Latim

Frankfurt

1592

Frankfurt

1593

Amsterdam

1597

Lyon

1604

Londres

1611

Théodore de Bry

(compilação, ed. reduzida, várias gravuras da 3ª edição)

Théodore de Bry

Alemão (1ª tradução parcial)

Cornelis Claesz

Holandês (provável 1ª tradução)

??

Latim (Omnium gentes mores, de Johannes Boemus, com parte da História de Léry)

George Eld

Inglês (apenas parte da tradução da História de Léry)

Pieter Van der Aa

Holandês

Leide

1706

Pieter Van der Aa

Holandês

Leide

1710

Verlag der Platvoetischen Buchhandlung

Alemão

Münster

1794

150 Alexandre Belmonte

TABELA 2 Edições de outras relações de viagens, em diferentes línguas: AUTOR

Lopez de Gomara

Bartolomé de Las Casas

Cristóvão Acosta

EDITOR

LÍNGUA

LOCAL

ANO

Pedro Bernuz e Miguel Zapila

espanhol

Zaragoza

1554

Iuan Steelsio (Jan Steels)

espanhol

Antuérpia

1554

Augustin Millan

espanhol

Zaragoza

1554

Hieronymi Feyerabend

Latim

Frankfurt

1571

Marco Ginami

Italiano

Veneza

1630, 1636, 1640

Antonio Lacavalleria

espanhol

Barcelona

1646

Christophe Plantin

Latim

Antuérpia

1582

Giacomo Cornetti

espanhol

Veneza

1592

151 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

TABELA 3 O que publicavam os editores dos viajantes? EDITOR

VIAJANTE

OUTRAS PUBLICAÇÕES

Antoine Chuppin

Jean de Léry, 1578, 1580, 1585

Plutarco. Les Oeuvres Morales, translatées de Grec en François, revues et corrigées... - Les Oeuvres Meslées.. Genebra ?, 1583-1584; Jerónimo Osório. De rebus Emmanuelis regis Lusitaniae ... Frances Imprenta, Genebra?, 1581; Innocent Gentille. Apologie, ou défense pour les chrétiens de France, qui sont de la religion évangélique ou réformée: satisfaisant à ceux qui ne veulent vivre en paix et concorde avec eux. Par laquelle la pureté d’icelle religion, ès principaux points qui sont en différend, est clairement montrée, non seulement par la sainte écriture et la raison, mais aussi par les propres canons du pape. Genebra, 1584. Em 1578, Chuppin traduz e publica uma relação de viagem à Europa setentrional.

Jean Crespin

Jean de Léry (Histoire Mémorable de la Ville de Sancerre), 1574

Homero, 1567; Gramática grega (Guillaume Budé, 1562) e italiana (Scipione Lentulo, 1567); História e história das religiões (Jean Sleidan, 1557; Paul Eber 1561; Jean de Hainault, 1556; O Livro dos Mártires, de sua autoria, 1554) Reedição em 1597: Histoire des martyrs, persecutez et mis a mort pour la verite de l’Evagile, depuis le temps des Apostres jusques a l’an 1597 .. Ainda de sua autoria: Actiones et Movimenta Martyrum: qvia Wicleffo et Husso ad nostram hanc aetate[m] in Germania, Gallia, Anglia, Flandria, Italia, [et] ipsa demum Hispania ..., Genebra, 1560. 152

Alexandre Belmonte

EDITOR

VIAJANTE

OUTRAS PUBLICAÇÕES

Eustache Vignon (e herdeiros)

Jean de Léry, 1586, 1594 (2 edições), 1599-1600

Dicionário (Ambrogio Calepino, 1594); François de Belleforest, 1595). Escritos religiosos. Girolamo Benzoni. Histoire nouvelle du nouveau monde: contenant en somme ce que les Hespagnoles fait iusqu’a present aux Indes Occidentales, /et/ le rude traitement qu’ils font a ces poures peuples-la / Extraite de l’Italien de M. Hierolme Benzoni ... ; enrichie de plusieurs discours et choses dignes de memoire por M. Vrbain Chavveton ... , 1579.

Pieter Van der Aa

Jean de Léry, 1706, 1710

Especializado em publicações sobre Botânica e curiosidades sobre outros lugares, daí o interesse por Léry.

Cornelis Claesz

Jean de Léry, 1597

Publicou a carta náutica de Lucas Janszoon Waghenaer, 1598.

Theodore de Bry

Jean de Léry, 1592

Descrições de viagens à Virgínia, 1590; Jardins Botânicos de Pádua, de Melchior Guilandini, 1608; estudo sobre monstros hermafroditas, de Gaspard Bauhin, 1614.

Guillaume Gazeau e Jean de Tournes

André Thevet, 1554

Várias publicações em latim, dentre as quais: Phsysicorum Aristoteli Libri, 1559; Prudêncio, 1553; Erasmo, 1558; vários livros de medicina, dentre os quais: Jérôme Monteaux, 1556, 1557, 1558; Jacques Dubois, 1555, Yuhanna Ibn Massawayh (sec. IX), 1560; poesia (Octavianus Mirandula, 1553) e astronomia (Marc Manili, 1551) etc.

153 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

EDITOR

VIAJANTE

Christophe Pantin

André Thevet, 1558 Cristóvão Acosta, 1582

Giacomo Cornetti

Cristóvão Acosta, 1592

OUTRAS PUBLICAÇÕES Publicou várias edições da Bíblia, além de Epístolas e prosas eclesiásticas. Publicou gramáticas, Cícero e escritos de Aldo Manuzio. Publica a tradução da relação de viagem de Francisco Alvares. Historiale description de l’Ethiopie: contenant vraye relation des terres, [et] pais du grand Roy, [et] Empereur Prete-Ian, l’assiete de ses Royaumes [et] Prouinces, leurs coutumes, loix, [et] religion, auec les pourtraits de leurs temples [et] autres singularitez, cy deuant non cogneues ... Antuérpia, 1558. Lelio Zacchi, 1591; Leonardo Fioravanti, 1591; Johan Boemus (sobre viagens), 1585; Isabella Cortese, 1584; vários escritos religiosos: Caterina de Siena, 1589; Luigi Bigi Pittorio, 1590; Marino Negro, 1590; Francisco de Vitoria, 1588.

Antonio Bartolomé de Lacavalleria Las Casas, 1646

Publicação de vários escritos católicos (sermões, ofícios, solilóquios etc.) e militares (em catalão).

Marco Ginami

Maquiavel (1648); Duns Escoto (1625).

Bartolomé de Las Casas, 1630, 1636, 1640

154 Alexandre Belmonte

EDITOR

VIAJANTE

OUTRAS PUBLICAÇÕES

George Eld

Jean de Léry, 1611

Editor de Shakespeare em Londres.

Luca Antonio Giunta e herdeiros

Giovanni O primeiro dos Giunta, em Veneza, Battista Ramusio publicara, entre 1489 e 1538, (1556) Ptolomeu, Dante, Aristóteles, Tomás de Aquino, Tito Lívio, Virgílio, Máximo Valério, Eusébio de Cesarea etc. Seus herdeiros, os filhos Giovanni Maria e Tommaso, mantiveram o nome do pai e a marca, e publicaram, entre outros, Marco Polo, 1554-1559 (2 volumes, mais de uma edição); vários comentários jurídicos; São Tomás de Aquino, Aristóteles, várias publicações eclesiásticas; Viagem à Escandinávia de Olaus Magnus, bispo de Upsala, 1565. O neto de Luca Antonio Giunta, filho de Giovanni Maria, torna-se único herdeiro da casa e publica até o início do século XVII.

155 Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry

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__________________________________ Este livro foi composto nas famílias tipográficas: Electra, Episode, Conduit e Bookman Light Impresso em papel offset 75g

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