Saúde das populações quilombolas no Espírito Santo: vulnerabilidade e direitos humanos

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Saúde das populações quilombolas no Espírito Santo: vulnerabilidade e
direitos humanos[1]

Eu tenho cinqüenta e poucos anos de idade! O que eu posso
esperar da vida? (Mulher quilombola da comunidade de São
Jorge, 2005).





Resumo


Esta comunicação considera as interpretações dos quilombolas sobre o
"sofrimento" em relação ao seu "imprensamento" como uma forma de linguagem
que associa identidade, gênero e condições de vida. Por meio de relatos de
vida, a compreensão que os sujeitos têm da doença emerge como uma das
formas de compreensão/resistência à violação de seus direitos humanos.


Palavras-chave: Quilombos, Espírito santo, Direitos Humanos.





No estado do Espírito Santo existem cerca de 100 comunidades quilombolas
distribuídas nas regiões norte, centro-sul e sul. A legislação
internacional por meio da Convenção 169 ratificada no Brasil e a própria
Constituição Federal — artigos 68ADCT, 215 e 216 — garantem uma série de
direitos aos povos e comunidades tradicionais tais como o direito à saúde e
a uma vida digna, segundo suas formas tradicionais. O dispositivo da
autodeclaração do decreto 4887/2003, corrigiu os equívocos de uma
classificação por meio de categorias raciais abrindo aos processos
socioculturais de resistência histórica à opressão um dos caminhos para a
identidade quilombola.


A despeito do imaginário e das práticas repressivas coloniais sobre as
comunidades quilombolas como sendo grupos de "negros fugidos que não
queriam trabalhar", o termo emerge no século XX, com o sentido de reafirmar
a identidade negra pelos direitos étnicos face à sociedade nacional. Nesta
primeira década do século XXI, os processos de etnogênese política e
legalmente amparados, desafiam toda a sociedade a pensar na inclusão real
dos quilombolas e seu patrimônio cultural na história do Brasil.


Historicamente, as comunidades quilombolas se organizaram em torno da
produção e reprodução cultural e econômica de suas formas organizativas
como uma forma de resistência ao sistema escravista e seus desdobramentos
contemporâneos ligados à discriminação racial, ao trabalho semi-escravo e à
expulsão de suas terras de forma violenta. As comunidades quilombolas
também buscam preservar suas formas culturais por meio de uma infinidade de
representações simbólicas ligadas ao cotidiano do trabalho e à resistência
histórica à dominação.


No Estado a invisibilização dos quilombolas por políticas públicas
excludentes que não reconhecem a diversidade cultural e pelo livre avanço
do agronegócio sobre as terras tradicionalmente ocupadas desenhou um
cenário de violência institucional contra os direitos sociais, econômicos e
culturais destas comunidades.


O maior dano aos Direitos Humanos é percebido na região norte do estado do
Espírito Santo composto pelos municípios de Conceição da Barra e São
Mateus, onde a restrição ao uso do solo, a expulsão de milhares de pessoas
de suas terras, o envenenamento sistemático do solo e das águas coloca em
questão a capacidade do governo federal e estadual de garantir a segurança
jurídica destas comunidades.


Nos relatórios técnicos de identificação realizados em convênio com o
INCRA, dezenas de relatos dos quilombolas que ainda resistem narram
situações dramáticas de morte por envenenamento e pelo que eles denominam
de "imprensamento", uma eliminação sistemática de suas condições de
existência física e social. (INCRA/UFES, 2005)




Breve Histórico

O Norte do Espírito Santo recebeu no período colonial milhares de negros
escravizados. O Porto de São Mateus era importante ponto de comércio e
tráfico de negros escravizados para as lavouras de cana-de-açúcar atendendo
o grande latifúndio da época. A abolição e o declínio das atividades da
grande propriedade fizeram emergir um grande número de propriedades nas
mãos de antigos negros escravizados que reconstruíram suas vidas,
estabelecendo famílias, formas de sustentabilidade econômica, práticas
culturais, buscando superar os séculos de escravização.

Estes grupos ocuparam extensas áreas nos municípios de Conceição da Barra e
São Mateus produzindo e reproduzindo seu patrimônio material e imaterial
por meio da agricultura, dos etnosaberes ligados às práticas curativas,
alimentação, artesanato, calendário religioso e festivo, bem como à
preservação do patrimônio genético da Mata Atlântica.

A partir da década de 1960 a transformação no regime de propriedade para o
latifúndio agro-exportador levou à expulsão de milhares de famílias de seus
sítios, provocando o empobrecimento e a exclusão dos meios de reprodução
social, cultural e econômica e eliminando as formas de sustentabilidade
desenvolvidas até então. Hoje, a Comissão quilombola do Sapê do Norte
indica que existem 1.500 famílias quilombolas nos municípios de Conceição
da Barra e de São Mateus.

A ausência de políticas públicas voltadas para as desigualdades de raça e
gênero aliada à produção de uma mídia hegemonicamente voltada para os
interesses das grandes empresas tornou "invisível" a presença das
populações quilombolas e suas formas organizativas. Isto implicou numa
sistemática expulsão do campo de milhares de famílias.[2]

O artigo 68 e os decretos 4886 e 4887 de 2003 abriram uma nova
possibilidade para estas comunidades na medida em que indicam a
regulamentação dos territórios quilombolas. No entanto, a posse dos
territórios pleiteados implica na melhoria das condições econômicas da
população negra, marcada pela exclusão social de séculos de escravização. A
criação de projetos econômicos sustentáveis que aumentem o IDH da população
negra no Sapê do Norte se apresenta como um dos principais desafios ao
Espírito santo.



A presença negra

O perfil sócio econômico do Sapê do Norte indica que 76% da população de
São Mateus é composta de população rural, enquanto a população de Conceição
da Barra é composta por 72%. A população que se declara negra é de 64% em
São Mateus e de 72% em Conceição da Barra.[3]
O Índice de Desenvolvimento Humano indica que a região do Sapê do Norte
está em desvantagem em todos os quesitos de desenvolvimento humano. Por
exemplo, enquanto o Estado apresenta um índice geral de 0,765, o município
de Conceição da Barra apresenta um índice de 0,688.
"No caso de São Mateus, destaca o relatório da Koinonia, continua
apresentando uma situação intermediária: ocupa a 36ª posição, sendo que 35
municípios (45,5%) estão em situação melhor e 41 municípios (54,5%) estão
em situação pior ou igual. Mais uma vez, o indicador de longevidade é o que
apresenta a pior condição dos três, onde São Mateus ocupa a 62ª posição do
Estado (Koinonia, 2005: 21).

"Tabela 1 "
"Índice de Desenvolvimento Humano no Sapê do Norte "
"IDH – M "Conceição da "São Mateus"Espírito "
"2000 "Barra " "Santo "
"Educação "0,810 "0,843 "0,855 "
"Longevidade"0,638 "0,666 "0,721 "
"Renda "0,617 "0,680 "0,719 "
"Total "0,688 "0,730 "0,765 "
"Fonte: Koinonia, 2005. "

O processo de concentração de renda "foi mais intenso no município de
Conceição da Barra, onde a população que se situa entre os 20% mais pobres
diminuiu 0,4 pontos percentuais a participação na renda total e o extremo
oposto (20% mais ricos) aumentou 6,9 pontos percentuais"(Koinonia, idem,
idem).

A renda no Sapê do Norte representa outra herança do sistema escravista e
da ausência de políticas de desenvolvimento social. Quanto à distribuição
de renda segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano do PNUD temos:


"Tabela 2 "
"Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População "
"Extratos da "Conceição da "São Mateus "Espírito Santo"
"População "Barra " " "
" "1991 "2000 "1991 "2000 "1991 "2000 "
"20% mais pobres "3,0 "2,7 "2,4 "2,6 "2,4 "2,6 "
"80% mais pobres "41,2 "34,3 "34,7 "33,7 "35,7 "34,8 "
"20% mais ricos "58,8 "65,7 "65,3 "66,3 "64,3 "65,2 "
"Fonte: Koinonia, 2005. "
" "


"Tabela 3 "
"Taxa de analfabetismo por cor segundo raça - população >= 15"
"anos "
"Local "Branca "Negra "Total "
"Conceição da Barra "15,5 "23,4 "21,2 "
"São Mateus "9 "16,6 "13,8 "
"Estado do Espírito Santo "8,3 "13,5 "10,9 "
"Fonte: Koinonia, 2005. "


Economia dos quilombolas

" " "
"Comunidade Quilombola de São "Feira livre de São Mateus: "
"Jorge: "comercialização da produção de "
"produção de farinha com base na "farinha "
"organização familiar. " "


A pesquisa realizada pela ONG Koinonia sobre a região do Sapê do Norte
destaca que a economia da região "se alterou profundamente entre os anos 50
e 60 com a decadência do ciclo madeireiro, entre os anos 70 e 80 com a
implantação dos grandes empreendimentos da indústria de eucalipto e do
açúcar, mas também a partir dos 90, quando ambas as indústrias iniciaram um
forte processo de substituição da mão-de-obra local por moderno maquinário,
gerando assim, grande desemprego "(Koinonia, 2005:37).

A produção histórica desta desigualdade em relação aos rendimentos pode ser
acompanhada pela tabela abaixo.


"Tabela 4 "
"Renda per capita segundo cor e gênero em Reais Conceição da Barra e São "
"Mateus. "
"Conceição da Barra " "Homem "Mulher "
" "Branco "347,68 "215,06 "
" "Negro "256,52 "91,71 "
"Município de São Mateus "Branco "659,21 "258,58 "
" "Negro "306,52 "123,97 "
"Fonte: Koinonia, 2005. "




" " "
"Quilombola da comunidade de "Acima, dois irmãos menores de idade "
"Córrego do Sapato apresenta "enchem os fornos com restos de "
"as técnicas de pesca com o "eucaliptos para a produção de carvão. "
"Quixó. A pesca artesanal "Um dos maiores desafios dos "
"constitui uma das fontes de "quilombolas do Norte do Estado é "
"renda das comunidades do "garantir às gerações presentes e "
"Sapê do Norte "futuras um desenvolvimento com bases "
" "sustentáveis. "


Jovens e desenvolvimento

A pesquisa da Koinonia apresenta ainda a ocupação de jovens e crianças como
um dos fatores preocupantes na garantia da sustentabilidade das comunidades
quilombolas. Segundo a mesma:

A relevância de se analisar, separadamente, o trabalho das
crianças e jovens diz respeito a análise da possibilidade de
gerações futuras não terem sua capacidade de criação de renda e
seu posicionamento, enquanto cidadãos cientes dos seus direitos
e deveres comprometidos. Estudos mostram que o fato da pessoa
ter começado a trabalhar mais cedo reduziu o seu rendimento e o
seu estado de saúde numa fase adulta, mesmo mantendo constantes
o nível educacional, idade, infra-estrutura do domicílio, cor,
gênero e outras variáveis relevantes. A explicação pode estar no
fato de que as crianças se engajam nas piores atividades, muitas
vezes perigosas e sem higiene, em que a fiscalização é
praticamente inexistente (Koinonia, Idem, 46).




A violência no Espírito Santo tem sido pensada exclusivamente em sua versão
interpessoal, envolvendo a criminalidade patrimonial e a morte violenta
como um desafio ao imaginário da "bucólica sociedade capixaba". Mas para
compreender melhor esta questão é preciso considerar que os processos
violentos têm relações mais ampla com formas autoritárias com que a
sociedade se organizou no tempo e no espaço. Como exemplo, é possível
enfocar a violência no meio rural a partir da exclusão histórica das
sociedades afrodescendentes e, a partir disto, compreender as
interpretações sobre a violência feitas pela comunidade quilombola de São
Jorge a partir de uma compreensão local da doença.




Corpo, saúde e doença em São Jorge: a vulnerabilidade de quem que escapa e
resiste.


Numa tarde na casa da Sra. Marcolina e do Sr. Helvácio, no Córrego do
Sapato, conversávamos sobre os tipos de parto e os cuidados com a saúde da
mulher e do bebê. Regina, agente de saúde e filha do casal, também
participava da conversa surpresa com os saberes do pai em relação com corpo
feminino. "Seu Eva" falava de banhos, chás, purgativos e resguardos
necessários à saúde feminina, ao mesmo tempo em que desfilava um número
incrível de espécies vegetais e formas de aplicação.


Não é difícil imaginar o quanto o trabalho de Regina como agente de saúde
exige dela um esforço contínuo de esquiva e negociação entre os dois mundos
que ela representa: aquele do Estado e das políticas públicas de "saúde-
cidadanização" e aquele dos moradores quilombolas, com suas estratégias
próprias de resistência e afirmação históricas do próprio mundo.


Por mais que o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha sido o resultado de
muitas lutas sociais e que venha propor um regime inclusivo de cidadania
participativa, seus programas de busca ativa e de saúde da família, tal
como pensados desde Brasília, dificilmente podem assimilar as concepções de
corpo, saúde e doença trazidas pelo Sr. Helvácio. Isto porque, longe de
expressar um mundo que atravesse a diversidade social em direção a uma
visão sólida da verdadeira natureza humana, os discursos e práticas do SUS
são a própria expressão de um mundo específico: o mesmo mundo moderno que
fundamenta nosso cientificismo, nosso Estado moderno, nossas políticas
civilizatórias e nossa economia de mercado e que há séculos investe na
patologização e exclusão dos grupos sociais resistentes.


Assim, por um lado, por mais integralista que se proponha o tripé "bio-
psico-social" que sustenta os discursos e práticas do SUS, ele sustenta
ainda as visões de mundo contemporâneas e suas políticas civilizatórias.
Ele é em si mesmo o resultado de um processo amplo e progressivo que, ao
longo dos séculos, dissociou a natureza física do corpo e a densidade da
vida social, reacomodando os termos em jogo em quadros psicopatológicos
conforme o maior ou menor investimento em modernizar o povo. No conjunto
dominante das variações científicas é a própria condição de verdade que
pressupõe um afastamento radical do plano moral-religioso e das relações
sociais a ele atreladas.


Por outro lado, nossas políticas civilizatórias acostumaram-se a
desqualificar e a eliminar qualquer sistema de compreensão do corpo que não
opere segundo os princípios modernos. Neste sentido, as práticas curativas
afro-brasileiras (simultaneamente religiosas e terapêuticas; densas em sua
corporalidade social e em sua socialidade corporal) foram os alvos
históricos mais nítidos de nossas campanhas civilizatórias, acusadas
freqüentemente de charlatanismo e de patogenia[4]. Mesmo se considerarmos
as políticas oficiais e os movimentos sociais que, nas últimas décadas,
apontam para um reconhecimento progressivo dos quilombos e da cultura afro-
brasileira, ainda é possível encontrar, por exemplo, profissionais de saúde
que consideram os cultos religiosos afro-brasileiros causadores ou
potencializadores de transtornos mentais graves, reproduzindo em grande
medida as teorias eugênicas do início do século XX.


Historicamente os discursos da "falta" ou da "carência" (das diferenciações
de grau) têm sido bastante utilizados para analisar os "déficits" de
compreensão em uma dada região, classe ou grupo social. Porém, tais
recursos acabam por reduzir a vida social a um aspecto deficitário, não
apenas desconsiderando, mas também dificultando a construção recursos
analíticos que permitam considerar a positividade das construções sociais
dos mesmos. Em outras palavras, a lógica da "falta" e da "carência social"
encontra-se na base dos programas de saúde e é extremamente útil para
analisar a "falta de informação e de acesso", o não engajamento nos
cuidados com o corpo e com a saúde, ou ainda a "não compreensão" da doença,
da terapia indicada, da cidadania. Entretanto, esta lógica não pode dar
conta de explicar a positividade das ações e compreensões elaboradas
historicamente e a consistência lógico-discursiva encontrada entre os
moradores dos quilombos acerca do corpo e daquilo que o perturba.


Assim, quando no mundo acadêmico e nas políticas de Estado nos propomos a
reagrupar as dimensões biológica, psíquica e social que antes separamos,
esquecemo-nos frequentemente o quanto uma visão dessacralizada do corpo
físico ou da individualidade psíquica são a marca específica de uma cultura
moderna. Mesmo o dito "aspecto social" deste tripé não parece escapar
facilmente dos projetos civilizatórios. E não podemos desconsiderar que as
bases de sustentação de nossas noções e valores mais nobres — como direitos
humanos, autonomia, respeito à diferença etc. — são quase sempre as mesmas
bases que, em nome da saúde e da cidadania, investem no reenquadramento e
na desqualificação dos grupos resistentes, sob a bandeira "legítima" de
civilizar, conscientizar ou cidadanizar o outro.[5]


É justamente essa densidade social do corpo que se pode observar entre os
moradores de São Jorge. Um corpo denso e relacional que escapa e resiste
aos processos modernizadores e que é ao mesmo tempo excluído política e
economicamente por eles. É a partir destas questões que propomos agora
abordar o tema da "pressão alta".



Pressão alta em São Jorge


A certa altura nos perguntamos por que em São Jorge haviam tantos casos
declarados de "pressão alta". Perguntamos se Regina media a pressão ou se
eram as mulheres que declaravam a doença. Ela disse que elas é que
declaravam e ela apenas anotava.


Passamos a nos perguntar se a "doença" "pressão alta" não seria uma forma
específica das mulheres perceberem outras condições sociais – pobreza,
falta de perspectiva, morte -, como parte da experiência de suas vidas. Já
havíamos percebido que a saúde e a doença eram temas públicos dos moradores
e que diante da doença de algum morador, são ministrados remédios caseiros
"segundo a natureza da pessoa". A observação desta "natureza" passou a nos
ajudar a compreender as formas pelas quais a etiologia e a nosologia da
doença eram construídas em São Jorge.


Qual o lugar que esta natureza da pessoa teria em termos da relação entre
corpo e sociedade? Pensar nas maneiras de transmissão da memórias da
escravidão que, por uma concepção específica do corpo, transmitia as formas
de resistência parece ser um caminho possível pois permite comparações e
distanciamentos.


Para os grupos sociais tradicionais, o corpo desempenha um papel ativo na
construção social da pessoa e na determinação da identidade: ele é mais uma
determinação coletiva do que individual. Essa perspectiva, como já falamos,
difere radicalmente das concepções vigentes na sociedade ocidental moderna
para as quais o corpo se configura numa realidade individual e autônoma.[6]



Nem mesmo a classificação "bio-psico-social" parece dar conta dessa
diferença. Por um lado, ela traz ainda em seu bojo uma dissociação de pelo
menos quatro séculos entre os planos da natureza, da sociedade e da
alma/psique individual. Por outro lado, esta classificação moderna traz em
seus três planos um distanciamento progressivos.


Como foi visto anteriormente, a consolidação do individualismo moderno
caracterizou-se, dentre outras coisas, por todo um movimento secular de
dessacralização do mundo e distanciamento cada vez maior entre os planos
natural, moral, mundano e extra-mundano. No campo religioso, por exemplo, a
reforma protestante instaurou uma desintegração dos lugares hierárquicos de
mediação instituídos pela igreja católica e uma relação cada vez mais
individualizada entre deus e o homem. Este processo, entretanto, foi
marcado por variações e descontinuidades, dentre as quais aquelas da
península ibérica.


Contrastivamente com o movimento protestante europeu, no Brasil o que se
pode perceber neste mesmo período histórico é justamente uma proliferação
de personagens hierarquicamente privilegiados de mediação entre o plano
natural e o plano sobrenatural[7] (curandeiros, rezadores, benzedeiras,
pais e mães de santo, pastores evangélicos, etc.). Esta proliferação, assim
como a persistência maior ou menor de alguns destes mediadores na sociedade
brasileira até os dias de hoje são pelo menos demonstrativos do quanto os
processos de dessacralização do mundo (mas também todo o universo moderno
de valor) permaneceram secundários e marginais nos mais diversos nichos
sociais, englobados pelas configurações hierárquicas que neles são
hegemônicas.


A própria dissociação entre natureza e sociedade que marca o ocidente a
partir do século XVIII contribui para uma concepção fisicalista do corpo,
afastada das relações sociais, da moral e da política. Assim, por um lado,
a saúde e a doença passam a ser vistas como um campo estritamente técnico-
científico e, por outro, constituem dispositivos poderosos de sobreposição
do universo moderno e das políticas civilizatórias num movimento de
patologização.


A noção de que o corpo desempenha um papel ativo na construção social da
pessoa e na determinação da concepção da doença está fundamentado na idéia
de que 1)Cada sociedade ou grupo social dispõe de maneiras específicas de
conceber e lidar com o corpo, sendo que o saber biomédico contribuiu, ao
longo da história, na difusão de sua naturalização, tida como universal; 2)
da doença, como fenômeno social, que é capaz de estabelecer uma relação
entre as ordens biológica e social, atingindo concomitantemente o
indivíduo, no que deve à biologia – o seu corpo –, a sociedade e as
relações sociais; e 3) das muitas indagações e significados, suscitados
pela doença na sociedade, superam os estreitos limites biológicos do corpo
e as explicações biomédicas.


O que deve nos interessar basicamente são os modos como estas relações são
produzidas, seus contextos, suas projeções, a leitura social das pessoas¸ a
formulação do "problema" para elas.


Na mitologia dos negros escravizados, o corpo é linguagem de múltiplos
sentidos. O corpo é política, o corpo é religião, o corpo é metáfora, o
corpo é tempo e espaço. O corpo é gramática, onde se lê e onde se apreende.
Durante o período do cativeiro o corpo era capaz de fugir e desaparecer,
escapando da violência.

Nas histórias dos heróis anti-escravidão o corpo ocupa lugar privilegiado.
Sempre desaparecem e não se sabe ao certo se eles são de carne e osso ou se
são encantados. O corpo escravizado reflete a violência e organiza as
experiências do ser nos limites da dominação. Por isso o corpo quilombola
não é coisa, ele é matéria etérea, um desafio, uma mudez e uma presença.
Nos limites da dominação ele opera com o medo do outro, ele ameaça
desaparecer, ele ameaça mover os ventos, transbordar os rios, deslocar
cipós.

Fugir e desaparecer tem aproximações, mas representam no imaginário
quilombola, semânticas diversas. Fugir e desaparecer estão associados à
resistência ao cativeiro e ao que ele representa em termos de atraso na
reprodução social e econômica das populações escravizadas. A autonomia, as
formas de expressão religiosa e estética tinham na perspectiva da fuga uma
forma de realização. Desaparecer é diferente. Desaparecer é uma
continuidade do fugir só que mais elaborada. Desaparecer leva o corpo às
suas últimas conseqüências, pois subverte o tempo e o espaço, como as
narrativas demonstram: Benedito Meia Légua era um desses que apareciam e
desapareciam desafiando a violência da polícia em sua captura. Ele
organizava reuniões, levantes no córrego do Chiado em São Mateus e quando a
milícia dos coronéis vinham prendê-lo ele já estava no Córrego do Angelim,
em Conceição da Barra, a 20 quilômetros dali. Quando por fim o queimaram
escondido num tronco de árvore seu corpo desapareceu, deixando apenas uma
pequena imagem de São Benedito que é reverenciada nas festa locais até
hoje.




Imprensamento como violência étnica


As famílias quilombolas criam suas crianças brincando no terreiro de suas
casas, na rua, nos córregos, comendo frutas, dependurando-se em árvores. O
espaço da casa é o espaço da pessoa moral: ao longo do quintal encontram-se
ervas para banhar o corpo e proteger a casa dos malefícios que vem de fora.
A situação de imprensamento dos quilombolas se tornou tão insuportável que
o quintal passou a ser um lugar de perigo e de impossibilidade de
reprodução dessa ocupação tradicional.


Estela perdeu um filho e um irmão por envenenamento. Segundo ela os meninos
haviam comido castanhas contaminadas pelo veneno que era borrifado pela
Aracruz Celulose. Os médicos se recusaram a dar o laudo da morte como
envenenamento e, no caso do irmão, atestaram que ele morrera devido ao
alcoolismo. Ela lembra com desespero a ausência dos meninos


Sabe o que eles estão fazendo? Eles estão comendo o dinheiro nosso!
Estão comendo o nosso dinheiro! Eu estou dando entrada [na justiça]
a toa. A toa! Já pegaram o laudo do meu menino de novo. Você sabe
quantos meses nós ficamos aqui desde que o menino morreu? Eles
[Aracruz Celulose] queriam tirar nós daqui! Só não fui por causa
dela aqui (a mãe, Maria Euzébio) (...) eles queria jogar nós para
lá. Eu disse "eu não vou"! "Porque é causa de morte, eu não vou
porque isso é causa de todo mundo". A Aracruz é o bicho! É o bicho!
É o capeta! Nunca vi uma firma desgraçada que nem esse satanás que
está aí, ó! Esta peste que está aí, ó! Ela é miserável, ela é
miserável. (Estela, São Jorge, 2005)





Assim, passou-se a perceber que em São Jorge a relação entre doença e as
condições sociais é um dos aspectos fundamentais para compreendermos a
noção corrente de Imprensamento. A "pressão alta" reclamada pelas mulheres
não se resumia aos aspectos biológicos, mas estavam relacionados a uma
classificação complexa que reúne condições ambientais, sociais e
sintomáticas. A situação histórica do Imprensamento estava sendo
incorporada às formas pelas quais os moradores de São Jorge relacionam
saúde e doença.


A antropologia da saúde tem procurado analisar as doenças como forma de
expressão de problemas sociais.


"O encontro entre o método epidemiológico, privilegiado para
generalização, e outro capaz de aprofundamento pode ser alcançado
pela estratégia etnoepidemiológica que tem como pressuposto que os
fenômenos da saúde-doença são processos sociais, devendo ser
concebidos como tais, "históricos, complexos, fragmentados,
conflitivos, dependentes, ambíguos e incertos". (Fernandes, 2003)


Em São Jorge, segundo a observação de Regina são as próprias mulheres que
empregam o termo "problema de pressão" para descrever sua condição de
saúde. Em decorrência do auto-diagnóstico, elas fazem largo uso de plantas
medicinais locais e de remédios alopáticos. Estas mulheres declaram que se
sentem desconfortáveis com determinadas situações do dia a dia tais como a
falta de recursos, os filhos sem tratamento adequado, a falta de
determinados remédios encontrados apenas nas extintas matas e, nos casos
extremos a morte[8].


A produção da doença não trata exclusivamente da ação externa de um
elemento ambiental agressivo, conforme indicado na metáfora de fatores-
produzindo-riscos, nem da reação internalizada de um hóspede susceptível,
senão do sistema (totalizado, interativo, processual) de efeitos
patológicos. A doença se prolonga para o sofrimento como percepção de si.
Segundo Estela:


"Eu já estou com cinqüenta e poucos anos! O que eu tenho de futuro
mais?! O que, meu bichinho, eu tenho de futuro mais?! Nada! Ela
[Aracruz Celulose] é miserável. Ela é miserável, essa tal de
Aracruz. Ela acabou com a água daqui, destruiu! Destruiu tudo a água
daqui. Secou tudo os córregos. Secou tudo porque nós ficamos aqui
numa situação miserável. A Aracruz é o bicho porque nós estamos aí
de cara para cima. Meu filho! Vai fazer o que? Já fez dez anos de
morto. O bichinho botava sangue pisado! Vomitava, vomitava. O sangue
aquele sangue talhado. Talhado do veneno. E eu sem saber o que era.
Isso aí é que é a minha paixão. É a minha revolta é isso aí. É isso
aí, meu filho! Ela caia (a castanha) sem saber que estava
contaminada. Só descobriram por causa do meu menino, do meu menino!"
(Estela, São Jorge, 2005).


Passamos a perceber que a doença se tornava uma forma de linguagem a partir
da qual os danos ambientais se expressavam na vida dos moradores de São
Jorge, eliminando a possibilidade de reprodução da sociedade.


Perceber a produção da saúde e doença em São Jorge é parte de um protocolo
que a Antropologia pretende observando os seguintes aspectos:


"Enxergar outras representações de saúde e doença admiti-las na
coleta de dados, construir novas taxonomias incorporando a
interpretação das narrativas, situá-las no contexto histórico,
social e cultural, reconhecer os rituais, perceber a diversidade
dos gêneros e grupos sociais no âmbito da singularidade do adoecer
humano e considerá-la no coletivo das populações (Fernandes,
2003:772)




Considerações finais

Na fronteira do que consideramos o desenvolvimento econômico no Espírito
Santo, a morte das populações quilombolas continua fora das estatísticas da
violência. Elas não podem ser contabilizadas e sequer reconhecidas pela
classe médica e política porque atualizam a sombra das práticas da
escravidão que paira nas mentes da elite capixaba. A morte se atualiza
cotidianamente na desertificação dos territórios, na contaminação dos rios,
na cegueira provocada pelo veneno. A morte como um projeto político de
eliminação da sociodiversidade ata nossos corpos aos dos quilombolas e
desafia nossa percepção sobre as formas de resistência histórica destas
comunidades.



Bibliografia
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divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
INCRA/UFES. Relatório de Identificação e delimitação da comunidade
remanescente de quilombos de São Jorge. INCRA/UFES. Vila Velha, 2005.
KOINONIA. Quilombos do Sapê do Norte: As comunidades negras rurais dos
municípios de Conceição da Barra e São Mateus/ES. Rio de Janeiro, 2005.
RUSSO, J. A. 1998. "Raça, psiquiatria e medicina-legal: notas sobre a "pré-
história" da psicanálise no Brasil". Horizontes Antropológicos, n. 9. Porto
Alegre: PGAS/UFRS.
VICTÓRIA et. All. Pesquisa Qualitativa em Saúde. Porto Alegre. Tomo. 2000.

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[1] Sandro José da Silva (UFES) e Emílio Nolasco de Carvalho (FAESA). Texto
apresentado na Reunião da Associação Brasileira de Psicologia Social –
regional Espírito Santo. Fotos: Sandro José da Silva
[2] Sobre a invisibilização da questão dos negros por parte do poder
público é possível ler no site oficial do governo do Estado que "O núcleo
urbano de São Mateus originou-se das incursões destinadas a repelir os
freqüentes ataques indígenas aos colonizadores situados em Vila Velha.
(...) Em 1596 o padre José de Anchieta visitou a povoação do Cricaré no dia
consagrado a São Mateus. E assim denominou-se a localidade, que se tornou
município em 27 de setembro de 1764. Em 1888 começaram a chegar os
primeiros imigrantes italianos." Ou seja, há a omissão pública de um dos
portos mais significativos de tráfico de negros escravizados no Brasil. Ver
http://www.saomateus.es.gov.br/
[3] Fonte das tabelas: Quilombos do Sapê do Norte: as comunidades negras
rurais dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus. Koinonia, Rio de
Janeiro, 2005.
[4] Sobre as formas de classificação e acusação dos movimentos terapêuticos
afro-brasileiros, conferir os trabalhos de Russo (1998) e de Guedes (1985).
[5] Sobre as políticas de cidadanização como modos de sobreposição da
cultura moderna, conferir Duarte et all (1993).
[6] VICTÓRIA et. All. Pesquisa Qualitativa em Saúde. Porto Alegre. Tomo.
2000. Para Ver também CANESQUI (2003) (Ciência e Saúde Coletiva, n8(1),
2003.)

[7] Optou-se por utilizar as noções distintivas "natural" e "sobrenatural"
para designar a relação entre os fatos-eventos cotidianos e o plano mágico-
religioso. As noções distintivas do tipo "mundano" e "extra-mundano",
pareceram impróprias ou limitadas para dar conta do caráter intramundano
das construções religiosas próprias às classes populares (dos espíritos,
das atividades de feitiçaria, das simpatias, etc.), sendo talvez mais
adequadas para designar as construções religiosas atravessadas por uma
concepção dessacralizada do mundo.

[8] Em São Jorge verificaram-se três mortes por envenenamento que foram
denunciadas ao Ministério Púbico, mas ainda não foram devidamente
investigadas.
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