“SE EU NÃO FOR LUTAR, QUEM VAI?”: contracepção, aborto e compartilhamentos de pesquisa com mulheres de grupos populares urbanos

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“SE EU NÃO FOR LUTAR, QUEM VAI?”: contracepção, aborto e compartilhamentos de pesquisa com mulheres de grupos populares urbanos

Luiza Tonon da Silva1 Universidade do Estado de Santa Catarina Professora orientadora: Flávia de Mattos Motta2

“(Tem) Gente que vem aqui e nos faz pivô do trabalho deles e depois nunca mais dá as caras, só usam nossa comunidade sempre”.

Desse modo Bianca3 se lembrou de pesquisadores de universidades que costumavam ir ao seu bairro para as pesquisas, para fazer “monografia ou mestrado”, segundo suas palavras. Não apenas dessa moradora do Bairro Mãe de Deus4 sentimentos e expressões similares foram percebidos, muitas vezes de maneira espontânea, ao falarem das muitas pesquisas já feitas ali. A partir dessas percepções, buscou-se outro modo de concluir um trabalho: por que os sujeitos, que, como bem colocado por Bianca, foram “pivôs” de um trabalho, deveriam ser simplesmente lembrados como dados de artigos, esquecidos em meio a números e apresentações acadêmicas? Este foi o questionamento, e também o desafio, dessa etapa da pesquisa iniciada em 2008, “Práticas contraceptivas e aborto em grupos populares urbanos”5. Compreender os diferentes contextos sociais em que se dão os abortos – os quais, mesmo ilegais na maioria dos casos, são, por estimativa de SUS6, pelo menos um milhão por ano no país – entre as periferias da cidade foi

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Acadêmica de História (Bacharelado e Licenciatura) do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED/UDESC). Bolsista de Iniciação Científica no período 2012-2013 do Laboratório de Gênero e Família (LABGEF/UDESC). 2 Professora do Departamento de Ciências Humanas do Centro de Ciências Humanas e da Educação/UDESC da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED/UDESC). Doutora em Antropologia Social pela UNICAMP (2002), Mestra em Antropologia Social (1990) e Graduada em História (1985) pela UFRGS. Pesquisadora do Laboratório de Gênero e Família (LABGEF/UDESC). Atua nos seguintes temas: gênero, sexualidade, família, violência, velhice e infância. 3 Nomes fictícios por motivos éticos da pesquisa. 4 Nome também fictício a um bairro de Florianópolis, escolhido por fazer alusão à influência da maternidade e da religiosidade do local. 5 Realizada por professoras e professore do Laboratório de Gênero e Família/UDESC e financiada pelo edital MCT/CNP/MS-SCTIE-DECIT/CT – Saúde nº 022/2007. AREND; ASSIS; MOTTA, 2012, p. 19. 6 AREND; ASSIS; MOTTA, 2012, p. 24.

objetivado nesse projeto. No bairro em que ocorreu a pesquisa habitam cerca de 6 mil famílias7, no total de 24 mil habitantes, com renda média familiar de 3,4 salários mínimos aproximadamente um terço da média florianopolitana. Nele, entrevistas e pesquisas de modo survey foram feitas no Centro de Saúde e em meio a uma das nove comunidades do bairro. Em 2013 o livro “Aborto e contracepção: histórias que ninguém conta” foi publicado, com dessa extensa pesquisa e temática; relatórios e demais artigos também foram feitos, deste modo a cumprir as devidas obrigações às instituições que possibilitaram sua realização – no entanto, não era o suficiente para de fato finalizá-la. Julgamos que era necessária uma devolução dos resultados da pesquisa aos homens e muitas mulheres que foram os seus sujeitos, e que de fato deram a possibilidade dela acontecer. Seria no mínimo desconsiderar a importância dessas mulheres ao elaborar um produto final que ficasse restrito apenas aos muros da academia, distante dos olhos das pessoas que não só foram as “pesquisadas”, mas as agentes e protagonistas desses resultados – sem eles e elas, não teriam sentido. Pensou-se então em um material para um retorno concreto, e que, obviamente, não deveria ser descontextualizado: deveriam ser pensados e elaborados de forma que fizesse uso das informações obtidas, e que fossem de utilidade e interesse a elas e eles. Sobretudo, não se queria passar a sensação – como bem descreveu, e provavelmente sentiu alguma vez, Bianca – de que foram objetificados e numerizados; explorados: se os sujeitos incluídos nos estudos são apenas utilizados como meios para alcançar um fim – o resultado esperado -, pode-se dizer que eles foram explorados. A exploração diz respeito diretamente à distribuição injusta de vantagens na relação que se estabelece entre pesquisadores e participantes da pesquisa. 8

Por esses motivos, foram produzidos calendários e livretos que tratam sobre aborto e contracepção, ilustrados9, coloridos, de linguagem acessível e rica em conteúdos. Conteúdos, sem dúvida, de orientação feminista, a exemplo da proposta de toda a pesquisa, com o intuito de empoderamento feminino e luta por igualdade de gênero, por meio do compartilhamento de informações e troca de ideias, inclusive sobre direitos que a elas (e nós) pertencem10. Os 7

Ibid., p. 38. DINIZ; SUGAI; GUILHEM; SQUINCA, 2008, p. 384. 9 Felipe Bruno Martins Fernandes, antropólogo, foi quem ilustrou todo o material, atento à paisagem do bairro e à diversidade de seus moradores; 10 Em conivência com nossa concepção e proposta das devoluções, tentou-se a todo momento quebrar a dicotomia de “conhecimento científico” vs. “saberes populares”, com maiores créditos ao primeiro. Por essa razão, compartilhar 8

calendários, do ano de 2013, possuíam a cada mês uma ilustração e uma frase, relacionada a diferentes temas e aborto e contracepção presentes durante a pesquisa com as mulheres daquele grupo – e cada mês tinha, no livreto, um pequeno texto correspondente. Os livretos acompanharam, portanto, o calendário a cada tópico, com as mesmas ilustrações, contudo, de forma mais detalhada e informativa. Uma devolução de pesquisa a ser literalmente colada nas paredes e fazer parte do dia-dia daquelas mulheres, em forma de calendário, veio a ser um objeto que cumpriria o papel de “presente” ou contra-dádiva11, conforme idealizado. Pode ser pensado também enquanto meio de passar informações rápidas, para diferentes públicos, afeitos à linguagem gráfica ou não, pois concilia poucas palavras às ilustrações, deste modo, a não limitar conhecimentos a um público, a uma acessibilidade e linguagem acadêmica. As antropólogas Flávia de Mattos Motta, Gláucia de Oliveira Assis e Carmen Susana Tornquist, a pedagoga Denise Soares Miguel e a enfermeira Silvana Maria Pereira foram a equipe que elaborou os calendários e livretos como veículos capazes de “compartilhar” os resultados da pesquisa com a população nela envolvida: Nesse sentido, ousamos pensar que possamos encontrar outras formas de “Antropologia Compartilhada” para além da concepção fílmica e imagética de Jean Rouch que nos inspira, mas da qual não poderíamos lançar mão por motivos éticos (não identificar as pessoas era fundamental nessa pesquisa).12

Livros, livretos e calendários, entretanto, por si só, não eram o suficiente para uma devolução significativa ao bairro. Para tal, fora feitas três oficinas, com três públicos e em locais distintos do bairro que de alguma forma foram parte – e de grande importância – para a pesquisa. Buscaram o diálogo com os participantes - as participantes, diria, pois eram em maioria mulheres – ao invés de promover encontros nos moldes de aulas ou palestras, de modo em que fossem apenas receptores dos conteúdos. Ouvir, mais uma vez, o que tinham para falar; suas opiniões acerca da temática e do trabalho ali realizado foi essencial para a conclusão dessa etapa da pesquisa.

informações não teve o caráter de imposição ou hierarquização do saber, mas de conscientização e conversa sobre alguns assuntos que se destacaram em etapas anteriores na pesquisa; o uso adequado de contraceptivos e sua gratuidade por exemplo. 11 MAUSS, 1974. MOTTA, 2013. 12 ASSSIS; MIGUEL; MOTTA, 2013, p. 3.

Era preciso não somente estudar o local para se tirar conclusões e resultados; era preciso estudar naqueles locais – como sugere o antropólogo C. Geertz a não se estudar “a aldeia”, e sim “na aldeia”13. Nessa perspectiva, procuramos nos inserir nas conversas e mesmo nos lares da comunidade – em meio às oficinas, consequentes distribuições de materiais e posteriores visitas “de porta em porta” para perceber sua receptividade nas paredes e estantes daquelas famílias. Afinal, as mulheres de Mãe de Deus não eram nossos objetos de estudos, e sim sujeitos de estudo, com suas próprias vidas e trajetórias., suas próprias “histórias que ninguém conta”. Devolver resultados é produzir novos resultados A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são a que têm base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vida do etnógrafo, além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas.14

Um “perseguidor de pessoas sutis com questões obtusas” – talvez desse modo, como percebeu Geertz, as moradoras e moradores do bairro Mãe de Deus podem ter pensado sobre nós, pesquisadoras da universidade. Em todos os momentos no bairro Mãe de Deus, perguntar foi essencial. Convidaram-se as mulheres e homens da comunidade Santo Expedito15 de porta em porta para participar da oficina no centro comunitário, e do mesmo modo, de casa em casa, após a oficina e distribuição dos livretos e calendários, foi passado para conversar acerca do material. Nesse primeiro encontro, feito no centro comunitário, dez mulheres de diferentes idades vieram. Sua divulgação ficou a encargo de Maria, que como líder comunitária, é conhecida de todas e todos – houve também convite a homens, mas nenhum apareceu. O encontro, que teve mais um caráter de conversa, em tom informal, que uma oficina – em moldes acadêmicos -, ou aula, foi acompanhado de um “café”, como durante a pesquisa as mulheres da localidade demonstraram apreciar – um “café” de salgadinhos fritos e refrigerantes, o qual foi muito elogiado. A apresentação do material e do conteúdo de cada mês foi feita, o que envolveu as participantes, cada uma com seus relatos e histórias a contar – ou por vezes, seus silêncios a fazer, em delicados temas, silêncios que falavam. A satisfação com o retorno do grupo da 13

GEERTZ, 1978, p. 32. Ibid., p. 34. 15 Pequena comunidade, de cerca de 40 casas, formada por famílias que participaram de movimento sem teto na década de 1990. Maria, algumas vezes aqui referida, foi uma das líderes desse movimento. 14

universidade foi visível; em meio a risos algumas “denunciaram” a amiga ali presente, que havia falado mal dos que ali iam a pesquisar e não mais retornavam. “Mas, viu? Voltamos!”, foi a resposta de uma pesquisadora, também em risos.

Figura 1 – Oficina na comunidade Santo Expedito Fonte: acervo LABGEF.

Alguns calendários e livretos, além de distribuídos às que compareceram, foram deixados para ser entregues às vizinhas, amigas e parentas. No mesmo dia, duas outras oficinas foram agendadas: uma no centro de saúde do Mãe de Deus e outra na sede de uma Organização NãoGovernamental destinada a jovens do bairro. Na ONG houve recepção positiva de nosso retorno, com interesse em nossa proposta de devolução para aqueles que tiveram seu papel na pesquisa, por meio de encontros, no centro de saúde se sentiu uma diferente relação. No Centro de saúde, o retorno foi dificultado por uma troca de pessoal posterior ao nosso trabalho de campo. Inicialmente houve certa desconfiança, sobretudo pela menção da palavra “aborto”. Sobre nosso tema de pesquisa a enfermeira-chefe do local comentou: “nasce tanto guri pequeno aqui; quanto mais pobre parece que mais procria”. Romper com esse olhar normativo, de “ignorância da população” em contraponto ao endeusado conhecimento médico-científico, além de ser objetivado durante a pesquisa, foi também visado neste processo de devolução. Afinal, o próprio material tivera como base para a construção as frases, os temas, as percepções deixadas pelos homens e mulheres daquele bairro,

que tinham suas próprias ideias acerca de aborto e contracepção16, não eram um “espaço vazio” para ser preenchido com dados técnicos. Por isso julgou-se necessária a oficina no centro de saúde – ele fora, também, um importante locus da pesquisa -, ainda que se temesse alguma rejeição. Mas opostamente, mais uma vez houve boa recepção pelos participantes do encontro, que se deu nos 50 minutos marcados numa reunião de todos os funcionários do centro. Relatos apareceram por parte das mulheres – de aproximadamente 50 presentes no auditório do centro de saúde, nem meia dúzia era composta de homens - quando cada tópico do material foi abordado. Os calendários e livretos foram deixados para distribuição, e muito interesse neles veio por parte de algumas, a exemplo de uma mulher que gostaria de levá-los para a escola do bairro e outra para um evento mensal da instituição chamado “chá das 15h”. A última oficina foi na sede da ONG e contou com a presença de seu diretor, um líder comunitário, um jovens participantes da organização, dentre eles apenas uma garota. Os jovens fizeram diversas perguntas à enfermeira do grupo, e os mais velhos contaram suas experiências – de piadas de sua própria vida sexual, também relacionadas à idade, a conhecidas que tinham relatos de aborto. Mais uma vez, por meio das conversas, outras “histórias que ninguém conta” surgem, a revelar também novos resultados e dados nessa devolução.

Figura 2 – Garotos com livreto e calendário na sede da ONG Fonte: acervo LABGEF. 16

Os primeiros capítulos de “Aborto e Contracepção: Histórias que ninguém conta” (AREND; ASSIS; MOTTA, 2012) trazem essa abordagem; na lógica dos pesquisados era muito comum o que denominamos “bricolagem”.

Nas paredes de Mãe de Deus Após a oficina na comunidade Santo Expedito, planejamos uma etapa final para a pesquisa sobre o processo de devolução dos resultados. Uma vez que os calendários e livretos foram de grande sucesso, não sendo distribuídos apenas às que compareceram, mas em maior quantidade propositalmente para divulgação entre suas vizinhas e amigas, decidimos ir diretamente ver qual o fim dado por essas mulheres ao material. Um certo temos sobre a ineficácia da forma de “devolução” pareceu, por um instante ter se confirmado na ida ao lar de Maria. Talvez levemente incomodada pela presença de uma acadêmica em um começo de tarde de um dia de semana como outro qualquer, no qual tinha afazeres domésticos a cumprir, como cuidar de seu neto recém-chegado da escola, ela pediu “não conta para a Flávia, tá?” quando disse que não havia ainda pendurado o calendário em sua casa. Imediatamente pediu ajuda ao neto, que jogava no computador, e lembrou a avó que devia retirar o do ano anterior, com imagens bíblicas. Tirado da parede, este foi colocado numa estante, onde estava, em meio a outros folhetos e livros, o livreto da pesquisa. Na mesma tarde, Sula demonstrou mais entusiasmado com o material que ganhara na oficina, quando mostrou, com um quê de orgulho, o quarto da filha – de 19 anos, que naquela hora estava no seu trabalho no supermercado -, decorado de roxo, com as flores artesanais feitas por ela mesma, fotografias, imagens de princesas e de fadas, e, claro, o calendário. Sula elogiou o material, disse ter gostado de cada mês acompanhar um tema do livreto, e comentou que outro exemplar já tinha sido pega por sua segunda filha, que morava com o companheiro e filho no andar superior da residência. Ela se referia às pesquisadoras como “lá da universidade”, com algo de perceptível relação de distância e prestígio – o que mais uma vez fez refletir acerca da necessidade de aproximação dos diálogos da academia e de grupos populares.

Figura 3 – Quarto da filha de Sula Fonte: acervo LABGEF17.

Não diferente foi com as demais casas visitadas, nas quais as apropriações em seu espaço do calendário aconteceram, de forma a se integrar no ambiente e mesmo passar a ser decoração. Na casa de Isadora (figura 5), ele foi pendurado próximo à televisão, na sala da casa, junto a uma estante com diversos objetos – um calendário menor, inclusive - e fotografias de família. No lar de Beatriz, o calendário estava sobreposto a outros dois, num “porta-chaves” colorido afixado na parede, visível assim que aberta a porta da casa. Foi perceptível, por meios de falas e essas ações, à atribuição de valor social aos objetos vindo de fora. Deste modo, pode-se compreender a receptividade do material distribuído – ainda que fosse gratuito, isso precisava ser enfatizado quando perguntavam, antes de aceitá-lo, “tem que pagar?” -, o qual foi incorporado à decoração e aos objetos do cotidiano de uma casa. A maioria dos calendários e livretos chegaram às casas pelas mãos de mulheres. Como em muitos outros locais, a exemplo do que acontece entre as famílias descendentes de açorianos em Florianópolis estudadas por Carmem Silvia Rial18, no bairro que pesquisamos, a mulher é a responsável pela a estética da casa. Via de regra, no Mãe de Deus, são elas que arrumam as casas e as decoram. E na grande maioria dos casos, foram elas que introduziram e penduraram nossos calendários em suas casas. Aqui também vale a regra “o belo vem de longe”19; belo é o que vem de fora, o que é incomum. Podemos especular a respeito dessa “distância” de nossos calendários: 17

A baixa qualidade das fotografias se deve ao uso de uma câmera fotográfica digital amadora de baixa resolução, e a problemas com a iluminação local, como visível na figura 3. 18 RIAL, 1988. 19 ZONABEND, 1991.

além do objeto em si “folhinha” ser do agrado dos moradores é possível que o mesmo incorpore um certo capital simbólico20 – dado pela distância social e simbólica que a universidade e suas pesquisadoras representam. Se o belo vem de longe, essa distância não precisa ser necessariamente física, em alguns casos, a distância simbólica agrega um valor também estético aos objetos.

Figura 4 – sala de Isadora Fonte: acervo pessoal

Não é só a distância que agrega valor ao os objetos tidos como decorativos. A criatividade e habilidades de artesã das mulheres também têm esse poder. São elas as que podem transformar a casa, ou objetos, em algo bonito. São em geral também elas que determinam o que fica dentro e fora de casa. O registro fotográfico tem se popularizado nos trabalhos de etnografia, aliado a outros recursos. Sônia Kramer qualifica-o como um constante convite à releitura, a uma forma diversa de ordenar o texto imagético. Pode ser olhada muitas vezes, em diferentes ordens e momentos, pode ter outras interpretações: ele é sempre uma foto ali presente, pois uma foto se transforma a cada vez que for contemplada, revive a cada olhar.21

Em que pese uma perda de qualidade técnica resultante de um certo improviso, visto que esta etapa não havia sido prevista no projeto de pesquisa, destaca-se a importância que teve a fotografia nessa etapa da pesquisa e também na elaboração deste artigo, pois “leva ao leitor as imagens impressas observadas pelo pesquisador, ampliando as possibilidades de interpretação, e

20 21

BOURDIEU, 1983. KRAMER, 1992, p. 56.

apresentando, em uma outra linguagem, o que a escrita por vezes não abrange” 22. Apenas escrever da apropriação de cada livreto e calendário em cada casa, descrevê-la em conjunto com o resto da mobília para então concluir que a devolução da pesquisa foi significativa provavelmente não seria o suficiente – o recurso da imagem permite analisar mais detalhadamente, após o trabalho em campo, e tirar diferentes conclusões a cada momento em que é estudado. No entanto, pensar que apenas a fotografia retrata com maior precisão seria errôneo – há a imagem do calendário pendurado na parede de Maria, ainda que ela tivesse a pendurado pouquíssimos instantes anteriores ao registro, e nada, inclusive em outras residências, garante que teria ficado ali por meses. Preferimos, sem dúvida, pensar que até esse instante o calendário da pesquisa continua nas paredes das casas de Mãe de Deus. “Somos todas feministas?” Um gesto quase unânime de assentimento por parte das mulheres da comunidade Santo Expedito quando uma das professoras da universidade, na oficina no centro comunitário, falou, informalmente: “afinal, somos todas feministas, né?”. Não é possível afirmar se alguma delas ali presente teria qualquer conhecimento teórico sobre teorias feministas, autoras ou discussões acadêmicas – provavelmente não, ainda que houvesse militantes de movimentos sociais. Porém, – e isso deve ser ressaltado, justamente pela proposta do projeto de não-hierarquização de saberes - pelas falas espontâneas de muitas, ao se abordar cada mês e seu tema relacionado ao livreto, em forma de círculo de conversa, tópicos e falas que se ligam diretamente às discussões feministas de âmbito acadêmico e político estiveram à tona. Expressou-se na indignação de uma por não ter conseguido a tempo sua desejada laqueadura – somente alguns dias após o falecimento do esposo o hospital a contatou positivamente, alguns meses após uma gravidez não planejada -; na de outra por ter havido um médico em sua cidade que realizava procedimentos abortivos e “em troca” muitas vezes abusava sexualmente das pacientes; ou ainda na de muitas por não terem tido acesso a um determinado contraceptivo, como a pílula do dia seguinte, em seu centro de saúde. Falar da violência doméstica fez remoer as memórias – se não delas, de vizinhas, parentas, amigas -, como a de que um dia uma presente apanhou do companheiro “com uma coronhada na cabeça”, o que a fez sair correndo para a delegacia, e nesse meio tempo teve que lutar contra a tentativa de sua sogra de 22

COUTINHO, 2002, p. 60.

impedi-la. Sua vizinha, após o relato, comentou, em tom de indignação “pois é, sei que tem homem com diploma e tudo que bate em mulher”, a expressar o conhecimento que não era exclusividade de sua comunidade ou de uma classe social em específico a violência física, psicológica e emocional contra mulheres. Maria expressou a frase – que nomeou este trabalho, pela significância - de “se eu não for lutar, quem vai?” quando contava de sua viagem naquele mesmo dia ao Rio Grande do Sul para um encontro pelas reivindicações de mulheres das cidades – em complemento aos de mulheres camponesas e da floresta, já mais consolidados a seu ver; relacionou-o a outros encontro que já fora, em muitas horas de ônibus, apesar de sua idade avançada. Contou das pautas que constituem o movimento, como a aposentadoria e licença-maternidade às donas-de-casa e cumprimento mais rigoroso da Lei Maria da Penha – e seu envolvimento com tais assuntos é apenas um dos muitos exemplos que ali poderiam ser obtidos para se contrapor a ideia de uma passividade quanto às questões de gênero. Empiricamente se faz também a oposição de que a preocupação por militância em direitos das mulheres seja exclusivo das pertencentes a meios acadêmicos e/ou elitizados; de que essas mulheres precisam de outras outros para falar por elas. A ideia de que “a proibição só prejudica quem não tem dinheiro” – quando, Antônio, o líder da ONG visitada conta de uma conhecida sua que quando jovem morreu por contrair tétano em razão de uma má-sucedida tentativa de abortar -, ou que são necessárias mais políticas “pras meninas quererem ser alguma coisa a mais que mães nesse lugar”, como disse Rafaela – quando é falado de um dado percebido na pesquisa, de que a maternidade é como um rito de passagem de adolescente a adulta naquela comunidade - foi presente em outra oficina. Assim como, em meio a risos, comentários de mulheres sobre pegarem camisinhas no centro de saúde, tanto masculinas como femininas – essa última comentada positivamente por “dar de sair de casa com ela” – foram feitos. Tinham certo ar de cumplicidade a outras, como o comentário de semelhança de uma ilustração do calendário com Maria - uma mulher idosa com um homem idoso juntos à frase “fazer sexo não é fazer filhos”, que gerou, como as demais, concordâncias ativas com determinados tópicos. Pode-se refletir que essas infinitas histórias em meios aos pensamentos, comentários e risos, de sexualidade, além do aborto e contracepções, também eram algumas das “histórias que

ninguém conta”, ou que ao menos eram pouco contadas. Opõem-se à ideia23 da mulher, mãe, e por vezes dona-de-casa de grupos populares urbanos como a que “passa sempre uma manifestação do sexual como obrigação, como contigência, como violento e como concepção indesejada, sempre esvaziada da noção do prazer”24. Em contrapartida, falas e expressões de um senso comum, permeados por preconceitos reproduzidos apareceram, de acordo com pensamentos normativos, a exemplo da enfermeirachefe do centro de saúde. Ao se falar de Cytotec, foram lembrados os riscos do remédio – “pode nascer deficiente, vale mais ter o filho”, houve comentários acerca da quantidade de crianças abandonadas, do dito descaso dessas mães – discursos presentes em veículos midiáticos -, ou mais uma vez, sobre a quantidade de jovens ali grávidas. Quando nas etapas de visitas ao campo para ir “de porta em porta” com o material, em uma das casas, um homem foi quem abriu a porta e “elogiou” a ação – por um lado, em suas palavras “porque nenhuma mulher faz filho sozinha” e “aqui o pessoal tem mais é que se cuidar”, por outro. A reflexão suscitada pela presença da universitária pesquisadora também sugere a importância da temática de nossa pesquisa para aquela população: “com essa tua idade tem menina aqui com 3 filhos já!”. “A mulher não faz filho sozinha”, “a proibição (do aborto) só prejudica quem não tem dinheiro”, “pras meninas quererem ser alguma coisa a mais que mães nesse lugar”, “se eu não for lutar, quem vai?” são frases que poderiam ter sido ditas por feministas da academia. Mas também por militantes das ruas das quais Maria faz parte, o que já se contrapõe à ideia de ausência e pouca relevância de mulheres de grupos populares urbanos em lutas sociais. Faz-se necessário repensar: o assentimento à afirmação “somos todas feministas” teria sido apenas um gesto para agradar a pesquisadora? Ou seria, mesmo que pouco teorizado em estruturas formais, uma expressão daquelas que muito se identificaram com as temáticas abordadas, feministas – a seus modos? Considerações finais Naiana, neta de Bianca, dona de uma das casas onde houve conversa e distribuição de materiais, tirou os olhos do desenho animado para recaí-los sobre o material que havia dado a sua avó – novamente, pois na vez passada suas parentas e amigas levaram todo o que possuía. Bianca 23 24

Presente em pesquisas deste grupo como a de Ondina Fachel Leal. LEAL, 1986, p. 33.

pediu um para seu jovem filho, que teria um novo apartamento em outra cidade, e também para sua filha, mãe de Naiana, e ainda mais alguns outros para os vizinhos que a iriam pedir mais vezes. Em outras casas, igualmente a expressão de “vou dar para meu filho, ou filha, ler”, foi extremamente comum, assim como o “passar adiante” de diversos livretos e calendários. Desses exemplos – dentre tantos outros ocorridos – pode-se observar a importância dada ao material, e sua aceitação. Ter vindo “de lá da universidade” provavelmente o creditava, mas é inegável, ao se observar a reação quando distribuído ou seu uso nos domicílios, a popularidade, por suas cores, desenhos, e praticidades. Conseguir tirar várias fotografias, das quais poucas aqui aparecem, disso, é enriquecedor à nossa pesquisa; não só ilustra, ou comprova, é a nós também fonte de pesquisa. Uma fonte gratificante, não diferente nesse aspecto de todo esse processo de devolução. É preciso lembrar que essa foi uma pesquisa orientada politicamente ao feminismo. A todo o tempo criticou-se à imposição da verdade científica, em prol dos muitos saberes populares, porém, com a proposta de empoderamento feminino algumas informações foram partilhadas acerca do aborto e contracepção segura. A reivindicação de seus corpos, de seus direitos, de suas autonomias, permeou a fala de muitas das mulheres de Mãe de Deus, e também de homens, e temos esperança de termos contribuído para tal. Talvez num futuro, Naiana possa vir a pensar como Maria: “se eu não for lutar, quem vai?

” Figura 5 – Naiana folheia o material Fonte: acervo LABGEF

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