Separação dos Poderes, Cooperação Constitucional e Lealdade Institucional (Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política 2014)

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SEPARAÇÃO DOS PODERES, COOPERAÇÃO CONSTITUCIONAL E LEALDADE INSTITUCIONAL Raoni Macedo Bielschowsky*

Introdução “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder”1. A clássica frase do Barão de Montesquieu no Espírito das Leis retrata uma das construções teóricas mais influentes da cultura política do ocidente: que as funções do Poder estatal devem ser distribuídas, repartidas e institucionalizadas em poderes, autônomos, que mutuamente se controlam através da faculdade de estatuir e da faculdade de impedir2. O triunfo político dessa construção pode ser reconhecido desde a gênese do constitucionalismo, quer na América – com todas suas peculiaridades jurídico-políticas –, quer no constitucionalismo europeu continental – já, inicialmente, com o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em França3. Fato é que com a complexidade e velocidade da dinâmica política; com o avanço da estrutura constitucional, passando historicamente pela criação e reconhecimento de instrumentos de controle jurídico de constitucionalidade; com a ampliação do rol dos * Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Brasil; [email protected]. 1 Montesquieu, Do espírito das leis, tradução Cristina Murachco (São Paulo: Martin Fontes, 2005), 166. A passagem está no Capítulo IV do livro décimo da obra: “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite”. 2 Montesquieu, Do espírito das leis, 172. 3 Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. DOI: 10.17931/dcfp_v1_art12

Raoni Bielschowsky • 153 direitos fundamentais; com a intensificação da influência mútua de um poder constituído na esfera de atuação dos outros, em nome do controle e interdependência dos poderes, inerente à teoria dos freios e contrapesos4; por muitas vezes é gerado, dentro do próprio Estado, um ambiente de insegurança chegando, por vezes, a uma verdadeira conformação de guerrilha institucional. Nesse sentido, um dos elementos necessários ao triunfo da própria estrutura constitucional de separação dos poderes é o princípio da lealdade institucional, decorrência da própria ideia republicana e de vontade de Constituição. Assim sendo, este trabalho tem por objetivo fazer uma apresentação do delineamento, causas e consequências desse princípio, ainda pouco trabalhado no debate político-institucional brasileiro, mas que há algum tempo já é presente no debate jurídico-político europeu.

Separação dos poderes como distinção entre as funções estatais e sua repartição em diversos órgãos/ instituições Historicamente a preocupação com controle do Poder em muito se confunde com a própria história do ordenamento político5. De fato, a necessidade de organizar o político limitando as forças estatais – quer do ponto de vista interno, quer do ponto de vista externo – sempre foi uma questão de extrema relevância para a formulação do Estado Moderno. A separação dos poderes do modo como foi mais fortemente introduzida e consolidada na cultura constitucional, é apenas um dos critérios possíveis de divisão do poder estatal. Na verdade, a identificação de funções inerentes ao Estado (ou, mais precisamente, ao ordenamento político) é tema recorrente desde a Antiguidade por pensadores como Aristóteles e Cícero, antes mesmo de o Estado Moderno ser constituído como tal. Portanto, a grande peculiaridade que diferencia a doutrina da separação dos poderes dos Raoni Bielschowsky, “O Poder Judiciário na doutrina da separação dos poderes: um quadro comparativo entre a ordem brasileira e a ordem portuguesa”, Revista de informação legislativa 195 (2012): 269-290. 5 Ernst-Wolfgang Böckenförde, História da Filosofia do Direito e do Estado: antiguidade a idade média, tradução Adriana Beckman Meirelles. (Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2012), 21. 4

154• Separação dos poderes, cooperação constitucional... modelos de divisão do poder anteriores é o fato de que com ela – já nas formulações de Locke e, especialmente, de Montesquieu – não se propõe apenas a distinção de diferentes funções estatais, mas, também, a separação da competência ordinária para desempenhar essas funções entre distintas instituições, distinguindo, logo, poderes de funções6. Assim sendo, o que faz a fórmula até hoje adotada particular é a ideia de especialização orgânico-funcional no desempenho de cada um dos três poderes7. É de se destacar que mesmo essa estrutura se deu de forma significativamente diferente quando comparados os arranjos institucionais matrizes de França e Estados Unidos da América do Norte8. Em França, via de regra, optou-se, ainda que não sempre, por uma estrutura parlamentarista, com uma separação dos poderes um tanto mais fluida, havendo certa primazia do parlamento diante dos demais poderes. Esse é um modelo que originariamente privilegia formas de controle político-subjetivo entre os poderes em detrimento de controles jurídico-objetivos dos atos dos poderes. Essa estrutura historicamente tendeu a ser predominante do cenário europeu. Nos Estados Unidos da América do Norte, por seu turno, com seu presidencialismo e influenciados pelos Federalist Papers foi-se desde cedo instaurado um regime de separação dos poderes muito mais estanque e atomizado, ainda que atento à formulação dos checks and balances. Desse modo, na realidade estadunidense configurou-se, desde sempre, a primazia de mecanismos de controle jurídico-objetivo na interação entre os poderes. Assim, esses distintos formatos de disposição institucional, combinados à diferença existente entre as matrizes jurídico-culturais e à ordem de primazia das fontes jurídicas (Romano-Germânica e Anglo-americana, respectivamente) não implicam apenas em Eros Grau, O Direito posto e o Direito pressuposto, 8 ed. (São Paulo, Malheiros, 2011), 230. 7 Para aprofundamento sobre a doutrina da separação dos poderes, remeto a Nuno Piçarra, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: contributo para o estudo da suas origens e evolução (Coimbra: Coimbra Editora, 1989). 8 Há de se registrar que antes das revoluções americana e francesa, a Guerra Civil inglesa desdobrou-se num sistema muito próprio de organização do Poder. Para maiores aprofundamentos M. J. C. Vile, Constitucionalism and Separation of Powers, 2 ed. (Indianapolis, Liberty Fund, 1998). 6

Raoni Bielschowsky • 155 diferentes modelos da relação entre executivo e legislativo, mas também em diferentes papeis destinados ao poder judiciário em cada um dos modelos. Desde essas duas bases, combinadas às mais diversas realidades político-culturais, desenvolveram-se um sem número de outros formatos de sistemas de governo – repúblicas ou monarquias parlamentaristas, repúblicas semipresidencialistas, presidencialistas etc9 –, por vezes com maior preponderância do Poder Executivo, noutras do Legislativo e, desde 1945, com a ampliação do papel do Poder Judiciário na dinâmica política da maior parte dos Estados do mundo constitucional desde a jurisdição constitucional10. Em todos esses arranjos – ao menos em tempos de Democracia Constitucional11 – a separação dos poderes efetivamente tem se mostrado arma (muito) potente para a limitação do Poder estatal, e continua encontrando, ainda hoje, caríssimo apreço e proteção nas mais diversas ordens constitucionais. Portanto, a máxima de Montesquieu de que um poder limite outro poder continua bastante em voga. Porém, diante de todas essas estruturas, uma questão deve ser colocada: que força tem a capacidade de sustentar e integrar o Estado evitando e solucionando as crises advindas das tensões entre os poderes constituídos?

Cooperação constitucional Uma das soluções propostas para a manutenção da harmonia intraestatal, por exemplo, foi aquela pensada por Benjamin Constant e – por influência de por Pedro I (Pedro IV de Portugal) – concretizada nas Cartas Políticas brasileira de 1824 e Portuguesa de 1826. Ela consistia na da criação de um quarto poder (pretensaJ. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed. (Coimbra: Almedina, 2003), 588. 10 Na realidade americana, desde o século XIX o poder judiciário, mais precisamente a Supreme Court, sempre teve atuação e peso político-institucional bastante mais marcante. Enquanto isso, nos países de tradição romano-germânica o judiciário tomou maiores proporções a partir do segundo pós-guerra, sendo paradigmático o papel do Bundesverfassungsgericht na estrutura jurídico-política da Lei Fundamental de Bonn. 11 Raoni Bielschowsky, Democracia Constitucional (São Paulo: Saraiva, 2013). 9

156• Separação dos poderes, cooperação constitucional... mente neutro) que teria como função harmonizar e equilibrar os demais poderes dentro do Estado: o Poder Moderador12. Essa resposta institucional teve vida curta tendo sido oficial e definitivamente excluída da ordem constitucional brasileira em 1891 e da lusitana em 1911. De outra parte, algumas democracias parlamentaristas e semipresidencialistas até hoje depositam na figura do Presidente – Chefe de Estado – alguma função de mediação entre o governo (executivo) e parlamento (legislativo), através de várias competências de controle político-subjetivo que vão desde a possibilidade de dissolução de gabinete ao chamamento de novas eleições parlamentares, conforme diferentes desenhos institucionais13. Entretanto, independentemente de imaginar-se a possibilidade de uma “autoridade neutra” (moderadora) que pudesse dirimir as questões e celeumas que surgissem entre os três poderes do Estado; ou de partir-se desde a circunstância mais corrente de separação tripartite do Poder, em todos os diversos formatos que essa se apresenta, a antiga questão da Satira romana permanece: Quis custodiet ipsos custodes? De fato, quem vigiará os vigilantes? Quem controlará a legitimidade (e mesmo validade) da atuação daquele que tem força para, de fato, do Poder abusar? Afinal, não será essa mesma uma das questões de fundo do constitucionalismo: a de impedir que as forças fáticas de poder oprimam e se imponham ilegitimamente sobre a coletividade e sobre os indivíduos? Não será, talvez, essa a grande questão do constitucionalismo, em suas diversas fases e, sobretudo, desde o debate sobre quem é o soberano14? Não será essa, exatamente, o principal tema pretendido pela conciliação definitiva entre constitucionalismo e democracia15? Notas sobre o desvirtuamento das ideias de Constant sobre o Poder Moderador na Carta Constitucional de 1824: Paulo Bonavides, “O poder moderador na constituição do império”, Revista de informação legislativa 41 (1974): 27-32. 13 Para o exemplo português, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Os poderes do Presidente da República (Coimbra: Coimbra Editora, 1991). 14 Peter Caldwell, Popular sovereignty and the crisis of german constitucional Law: the theory and practice of Weimar constitutionalism (Durham: Duke University Press, 1997), Kobo edition. 15 Gilberto Bercovici, “Constituição e Política: uma relação difícil”, Lua Nova 61 (2004): 6; Bielschowsky, Democracia Constitucional. 12

Raoni Bielschowsky • 157 Nesse sentido, quanto à limitação do Poder, Lowenstein identifica que: “com o tempo foi-se reconhecendo que a melhor maneira de alcançar este objetivo é fazendo constar freios que a sociedade deseja impor aos detentores do poder na forma de um sistema de regras fixas – ‘a constituição’ – destinadas a limitar o exercício do poder político. A constituição se converteu assim no dispositivo fundamental para o controle do poder”16.

Portanto, mais que um poder que controle outro poder (estrutura que continua sendo chave para a composição do Estado de Direito), o arranjo do constitucionalismo pretende que a normatividade (força normativa da Constituição) controle o Poder. E talvez seja mesmo nessa zona mais etérea e imaterial que se coloque as possibilidades do projeto do Estado de Direito; desde a normatividade de uma cultura específica: da cultura constitucional. De certa forma é nesse sentido que Hesse trata da necessidade de uma vontade de Constituição quando trata da força normativa da Constituição. Vontade, essa, que deve ser vivida por todos os cidadãos da comunidade jurídico-política, mas que é especialmente importante aos atores dos poderes constituídos17. E é exatamente nesse sentido, quanto aos atores dos poderes Karl Loewenstein, Teoria de la constitución, 2 ed., trad. (Barcelona: Ariel, 1976), 149: “con el tiempo se ha ido reconociendo que la mejor manera de alcanzar este objetivo será haciendo constar frenos que la sociedad desea imponer a los detentores del poder en forma de un sistema de reglas fijas - «la constitución» - destinadas a limitar el ejercicio del poder político. La constitución se convirtió así en el dispositivo fundamental para el control del proceso del poder” 17 Konrad Hesse, A força normativa da constituição, trad. Gilmar Ferreira Mendes (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991), 19, “pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zurVerfassung). (...) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente”. 16

158• Separação dos poderes, cooperação constitucional... constituídos, que se pode identificar a necessidade de um princípio genérico de Cooperação Constitucional, do qual se desdobram, por um lado, as ideias de leal colabração (Leale Collaborazione)18 e fidelidade federal (Bundestreue)19 e, de outro, o princípio da lealdade institucional20. O tratamento dos conceitos de leal colaboração e fidelidade federal demandaria trabalho autônomo e destacado, por isso, aqui se faz apenas o registro de que ambas as ideias estão relacionadas à repartição vertical dos poderes, portanto, ao federalismo, ao pacto federativo e à questão da autonomia local e regional21. Já a ideia de lealdade institucional é relacionada à separação horizontal dos poderes, logo, quanto às relações institucionais entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e seus agentes. Essas construções estão sob a influência do conceito de integração de Rudolf Smend22. O autor constrói a ideia de uma unidade espiritual da comunidade no Estado a partir do processo da síntese de atividades (integração funcional23) e de valores (integração pessoal e integração material24). Para ele esses “são processos incessantes que corroboram a realidade dinâmica e espiritual do Estado. Partindo deles, a Constituição é a transcrição jurídico-normativa dos diverDi Carmela Salerno, “Note sul principio di leale collaborazione prima e dopo la riforma del titolo V dela Costituzione”, Amministrazione in cammino; Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzionale di leale collaborazione” (versão provisória: http://costituzionale.unipv.it/ Gruppo%20di%20Pisa/presentation/gratteri.pdf). 19 Stephen Korioth. Rudolph Smend, in Jacobson e Schlink, Weimar: a jurisprudence of crisis, Berkley/Los Angeles, University of California Press, 2002, p. 208; Rudolf Smend, Constitución y Derecho Constitucional, trad. José Mª Beneyto Perez (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985) 235. 20 Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos: alguns aspectos gerais”, Revista Direito e Política 1 (2012): 62-72. 21 Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 561. 22 Expressamente relacionando a leal colaboração e a Bundestreu desde Smend, Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzionale di leale collaborazione”, 1-3. Relacionando a lealdade institucional à integração smendiana: Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos”, 66. 23 Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 78 e ss. 24 Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 93 e ss. 18

Raoni Bielschowsky • 159 sos processos integradores da realidade estatal”25. Assim, a cooperação constitucional apresenta-se como uma das faces dessa integração, a partir da conexão que a normatividade constitucional possui com o comprometimento de cada cidadão e cada agente político com a eficácia da Constituição26.

Lealdade institucional E é nessa linha que se desenrola o princípio da lealdade institucional27, relacionado à separação e convivência entre os (três) poderes constituídos. Trata-se de um princípio de cooperação e lealdade que deve ser observado entre as instituições e seus agentes com o objetivo de contribuírem para fazer eficaz a ordem constitucional. Portanto, esse conceito compreende basicamente duas dimensões: uma positiva e outra negativa28. A primeira envolve a mutua cooperação entre os diversos órgãos, com a finalidade de realizar os objetivos constitucionais, de modo a permitir o funcionamento desse sistema com o mínimo de atritos possível. Enquanto isso, a segunda dimensão abrange o dever dos titulares dos poderes de respeitarem-se mutuamente, renunciando a práticas de guerrilha institucional e abuso do poder. Com isso Jaime Valle identifica que a: “A cooperação entre os órgãos constitucionais decorrente do Pablo Lucas Verdú, “Reflexiones en torno y dentro del concepto de constitucion. La constitucion como norma y como integracion política”, Revista de Estudios Políticos 83 (1994): 27. 26 Hesse, Konrad. “Constitución y Derecho Constitucional.” In Manual de derecho constitucional, ed. por Ernst Benda et al. Tradução de Antonio López Pina. 2 ed (Madrid: Marcial Pons, 2001), 9. 27 À semelhança da lealdade institucional a doutrina italiana tem identificado o princípio da leal cooperação: Roberto Bin, “Il Principio di Leale Cooperazione nei Rapporti tra Poteri”, Rivista di Diritto Costituzionale 2001 (2001): 3-13. 28 Canotilho mesmo trabalha como face positiva e face negativa. Contudo não se trata de face positiva no sentido de benéfica e negativa no sentido de maléfica, mas sim, no sentido de proativa e de abstenção/contenção, respectivamente. Por isso mesmo, preferimos tratar por dimensões positiva e negativa, Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 25

160• Separação dos poderes, cooperação constitucional... princípio da lealdade institucional resultaria assim não apenas da obrigação de obtenção de ciência para o conjunto da atividade estadual, mas sobretudo da necessidade de evitar o risco de desagregação do Estado induzido pela existência de uma multiplicidade de centros de poder estadual isolados que poderiam bloquear mutuamente a respectiva actuação”.29

Essa construção nos desperta a reflexão sobre a possibilidade e necessidade de pensar-se uma cooperação constitucional – que nos parece inerente ao princípio republicano e ao próprio Estado Democrático de Direito –, relativa, inclusive, a uma deontologia política fundada no respeito dos agentes e das instituições por seus pares, dentro de um apurado sentido da responsabilidade e integração (em liberdade) no Estado. Nesse sentido, identifica-se com os efeitos regulatórios principais do princípio da lealdade institucional seu desdobramento em três vertentes: enquanto elemento de interpretação constitucional e legal; enquanto fonte de deveres e adstrições no exercício de poderes; e enquanto limite ao abuso de poderes30. Não deixa de chamar atenção o fato de ser característico do conteúdo do princípio sua elasticidade, estando mais nítido quando observado desde casos concretos da dinâmica jurídico-política. De fato, seu teor é dificilmente observável de modo estático, sendo, pois, mais compreensível, quando notado na vivência das instituições, dos poderes e dos agentes estatais, quando em sua interação com, e sob, as regras constitucionais organizatórias. Essa característica, no entanto, não importa em ausência de natureza jurídica ao princípio, apesar de poder significar algum déficit de operatividade e judiciabilidade. Em que pese esses déficits, é de se destacar que o caráter de menor densidade e maior indeterminação normativa não é raro entre os princípios constitucionais, bem como, entre as demais normas de função quando contrastadas às normas de controle, nos termos da classificação de Forsthoff. Desse modo, parece-nos que é de se reconhecer que o princípio da lealdade institucional constitui, juntamente com os demais princípios jurídicos, critério de decisão de casos concretos. Isso porque, independentemente de posJaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos”, 64. 30 Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos”, 70. 29

Raoni Bielschowsky • 161 suir ou não instrumentos de coerção próprios, ele, enquanto norma jurídica, é vinculador da atuação dos agentes estatais31. Além disso, reiteramos que nos parece ser possível dizer que é apenas nesse ambiente normativo mais imaterial e impalpável que se coloca a possibilidade de estabilidade e unidade de um Estado que se pretenda Estado Constitucional; de um Estado que se pretenda Estado de Direito. Até como indício do fato da estrutura jurídico-constitucional se equilibrar muito mais sobre bases institucional-normativas, que sobre bases factuais de Poder32, vale destacar que mesmo em tempos de temerário e questionável ativismo e alargamento da atuação do poder judiciário, Dieter Grimm não nos deixa esquecer que: “não há ‘oficial de justiça’ em matéria constitucional. Isso mostra que não só constitucionalismo, mas também o controle judicial de constitucionalidade depende de bases culturais. Uma jurisdição constitucional efetiva requer uma cultura política efetiva em que, em geral, as decisões da corte sejam aceitas mesmo por aqueles que estão no poder e o sentimento constitucional seja tão grande que o desrespeito implique um custo muito alto para os políticos”33

Destarte, mesmo contemporaneamente, quando muito se fala de uma possível supremacia do poder judiciário frente os demais poderes constituídos, é necessário ter-se em conta que, especialmente no que diz respeito a questões constitucionais e a possíveis disputas institucionais entre os poderes, o poder judiciário na verdade tem muito pouca autonomia para de fato impor suas decisões. Assim, força de eficácia de tais determinações sustenta-se basicamente sobre o arranjo institucional do Estado de Direito. Dito por outras palavras, a real força impositiva das decisões judiciais, ao menos, em matéria constitucional, depende maximamente da cooperação dos demais poderes e de sua atuação com lealdade institucional e em cooperação constitucional. Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos”, 70. 32 Se não toda a estrutura jurídico-constitucional, pelo menos de sua normatividade de cumeada, especialmente as regras e princípios constitucionais. 33 Grimm, “Jurisdição constitucional e democracia”, Revista de DireitoDieter do Estado 4 (2006): 10. 31

162• Separação dos poderes, cooperação constitucional... O mesmo se aplica, entretanto, para as relações entre Executivo e Legislativo. Quem detém o Poder não deve dele abusar. E a reciprocidade leal é assim, talvez, uma das forças mais importantes para a manutenção da harmonia e da unidade do Poder estatal.

Conclusão Portanto, devem os poderes respeitar-se mutuamente, de modo a garantir a estabilidade da ordem constitucional. Isso porque são justamente a estabilidade e a integração normativa da comunidade jurídico-política que possibilitam mais determinantemente a unidade (em pluralidade) do Estado de Direito. Unidade e estabilidade, essas, que se colocam muito mais sobre bases de cariz cultural e de respeito mútuo entre os cidadãos e instituições, que sobre o jogo e/ou embate de forças antagônicas dentro da vida do Estado. A cooperação constitucional e a lealdade institucional são, assim, desdobramentos necessários da própria ideia de unidade da Constituição e do Poder. Destarte, é extremamente importante para o equilíbrio entre as instituições e para a manutenção da harmonia dentro do Estado que todos os poderes contenham-se espontaneamente quanto a suas competências, no exercício de suas funções34. Nunca será demais lembrar que para a Democracia Constitucional o soberano é o Povo, enquanto legítimo fundamento, destinatário e ator da ação política. O Poder, mesmo estatal, utilizado contra esse soberano é ilegítimo, passando de oficial a oficioso. Assim, aquele que abusa do Poder desde dentro do Estado acaba atentar contra a própria existência da ordem constitucional ao ocasionar uma dentre duas situações mais claras: ou incorrerá no risco de erodir – e mesmo implodir – sua própria solidez institucional, gerando prejuízos e dificuldades ao reconhecimento da legitimidade de suas próprias decisões pelos demais órgãos do Estado e pela própria sociedade civil, o que acaba por dificultar a capacidade de tornar essas decisões eficazes, prejudicando a própria força normativa e arranjo constitucional; ou, de outra parte, abusará do Poder pela força de forma ilegítima, conseguindo, assim, impor faticamente sua vontade, mas, também, ferindo de morte o grande projeto político da cultura do constitucionalismo: o Estado de Direito. 34

Quanto ao judiciário não raro fala-se de self-restrain, por exemplo.

Raoni Bielschowsky • 163

Referências Bercovici, Gilberto. “Constituição e Política: uma relação difícil”, Lua Nova 61 (2004): 5-24. Bielschowsky, Raoni Macedo. Democracia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. Bielschowsky, Raoni Macedo. “O Poder Judiciário na doutrina da separação dos poderes: um quadro comparativo entre a ordem brasileira e a ordem portuguesa”, Revista de Informação Legislativa 195 (2012): 269-290. Bin, Roberto. “Il Principio di Leale Cooperazione nei Rapporti tra Poteri.” Rivista di Diritto Costituzionale 2001 (2001): 3-13. Böckenförde, Ernst-Wolfgang. História da Filosofia do Direito e do Estado: antiguidade a idade média. Tradução Adriana Beckman Meirelles. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2012. Bonavides, Paulo. “O poder moderador na constituição do império”, Revista de informação legislativa 41 (1974): 27-32. Caldwell, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitucional Law: the theory and practice of Weimar constitutionalism. Durham: Duke University Press, 1997. Kobo edition. Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. Canotilho, José Joaquim Gomes e Vital Moreira. Os poderes do Presidente da República. Coimbra, Coimbra Editora, 1991. Gratteri, Andrea “La faticosa emersione del principio costituzionale di leale collaborazione.” In La riforma del Titolo V della Costituzione e la giurisprudenza costituzionale, ed .E. Bettinelli e F. Rigano, . 416-449. Torino: Giappichelli Editore, 2004. Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São

164• Separação dos poderes, cooperação constitucional... Paulo: Malheiros, 2011. Grimm, Dieter. “Jurisdição constitucional e democracia.” Tradução de Bianca Stamato Fernandes. Revista de Direito do Estado 4 (2006): 3-22. Hesse, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. Hesse, Konrad. “Constitución y Derecho Constitucional.” In Manual de derecho constitucional, ed. por Ernst Benda et alli. Tradução de Antonio López Pina. 2 ed. Madrid: Marcial Pons, 2001. Korioth, Stefan. “Smend.” In Weimar: a jurisprudence of crisis, editado por Arthur J. Jacobson e Bernhard Schlink. Tradução Berlinda Cooper, 207-2012. Berkley: University of California Press, 2002. Loewenstein, Karl. Teoria de la constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1976. Lucas Verdú, Pablo. “Reflexiones en torno y dentro del concepto de constitucion. La constitucion como norma y como integracion política.” Revista de Estudios Políticos 83 (1994): 9-28. Montesquieu, Charles de Secondat. Do espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. 3 ed. São Paulo: Martin Fontes, 2005. Piçarra, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: contributo para o estudo da suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989. Salerno, Carmela di. “Note sul principio di leale collaborazione prima e dopo la riforma del titolo V della costituzione.” In Amministrazione in Cammino, (2008). Acessado em 15 de junho de 2014. http:// amministrazioneincammino.luiss.it/wp-content/uploads/2010/04/ Salerno.pdf Smend, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Tradução de José M.ª Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estúdios Constitucio-

Raoni Bielschowsky • 165 nales, 1985. Valle, Jaime. “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes públicos: alguns aspectos gerais.” Revista Direito e Política, Loures 1 (2012): 62-72. Vile, M. J. C.. Constitucionalism and Separation of Powers. 2 ed. Indianapolis: Liberty Fund 1998.

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