Ser objetivo e realismo direto em Duns Scotus

August 2, 2017 | Autor: V. F. de Romariz ... | Categoria: Epistemology, Medieval Philosophy, Duns Scotus, Scholastic Philosophy, Realism
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Vitor Mauro F. de Romariz Bragan¸ca

Introdu¸ c˜ ao

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Ser objetivo e realismo direto em Duns Scotus

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A ontologia do conhecimento de Duns Scotus tem como um de seus pilares a no¸c˜ ao de ser objetivo, ou seja, o ser atribu´ıdo aos entes apenas na medida em que s˜ ao objetos de um ato cognitivo. Uma tal no¸c˜ao, no entanto, d´a margem a que se levante a seguinte quest˜ao: se o objeto de um ato cognitivo desfruta de um ser que depende de tal ato, ´e leg´ıtimo inferir que tal objeto ´e um intermedi´ ario entre o intelecto e o real, isto ´e, o dom´ınio que compreende tudo e somente aquilo cujo ser intr´ınseco independe dos atos cognitivos de seres finitos? O intuito do presente artigo ´e contribuir para a formula¸c˜ao de uma resposta a essa quest˜ ao atrav´es da an´alise detalhada de certos aspectos centrais das psicologia e metaf´ısica de Scotus. Tal contribui¸c˜ao se restringir´a, no entanto, ` a an´ alise de atos cognitivos intelectuais. Resumidamente, a conclus˜ao a ser defendida ´e que n˜ ao se deve classificar os objetos desses atos como intermedi´ arios, visto que seu ser caracter´ıstico, o ser objetivo, envolve um constituinte, a natureza comum, cuja rela¸c˜ao com certos seres reais ´e de identidade real e ao qual, por isso, deve ser atribu´ıdo um ser real ou independente de qualquer intelecto finito. Nesse sentido o ser objetivo n˜ao seria um intermedi´ ario entre o intelecto e o real simplesmente porque em seu interior o real j´ a estaria contemplado. Scotus seria, por consequˆencia, defensor de um contato cognitivo imediato entre intelecto e realidade – um realista direto. A fim de alcan¸car tal resultado, a seguinte estrutura ser´a obedecida. Tomando como pano de fundo uma discuss˜ao sobre species intelig´ıveis, na primeira se¸c˜ ao ser´ a reconstitu´ıda a gˆenese da no¸c˜ao de ser objetivo tal qual Scotus a retrata. A segunda se¸c˜ao consistir´a em uma exposi¸c˜ao da teoria das naturezas comuns, textualmente classificadas como os objetos do intelecto1 . Na terceira se¸c˜ ao ser´ a analisada a rela¸c˜ao entre conhecimento abstrativo, intencionalidade e universaliza¸c˜ao da natureza comum. Na quarta e u ´ltima se¸c˜ ao a supramencionada conclus˜ao ser´a reafirmada a partir da articula¸c˜ao dos pontos expostos nas se¸c˜ oes precedentes. 1

Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 32.

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A gˆ enese da no¸ c˜ ao de ser objetivo

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A psicologia aristot´elica foi buscar boa parte de seus princ´ıpios na f´ısica que a ela corresponde, para a qual as no¸c˜oes b´asicas, engendradas no contexto de explica¸c˜ ao da mudan¸ca e movimento, s˜ao as de forma e mat´eria. Numa tal f´ısica a forma seria respons´ avel pelas diferentes caracter´ısticas que aparecem e desaparecem em um certo sujeito, ao passo que a mat´eria garantiria haver algo que se mant´em em meio a esse “vai-e-vem”. A aplica¸c˜ao conjunta dessas no¸c˜ oes justifica a intui¸c˜ ao b´ asica de que as coisas mudam – que n˜ao surgem ou desaparecem ex nihilo. Dentre as duas, a mais importante para psicologia aristot´elica ´e a de forma, principalmente pelo modo como Arist´oteles concebe a cogni¸c˜ ao humana, ou seja, como o resultado obtido quando o “cognoscente se torna o cognoscido”2 . Se para conhecer algo ´e necess´ario conhecer suas caracter´ısticas e al´em disso conhecer ´e “tornar-se” aquilo que se conhece, segue-se que um cognoscente deve, em algum sentido, assumir a(s) caracter´ıstica(s) do item cognoscido. Ora, as caracter´ısticas dos seres s˜ao determinadas por suas formas, do que se conclui que um cognoscente deve assumir a(s) forma(s) do cognoscido. Os meandros e min´ ucias dessa doutrina aristot´elica foram objeto de discuss˜ ao durante praticamente todo o per´ıodo escol´astico. Mas o acordo de muitos autores sobre alguns dos aspectos essenciais da mesma deu origem a um quadro geral mais ou menos paradigm´atico. Nele a cogni¸c˜ao se d´a pela comunica¸c˜ ao entre sensibilidade e intelecto, sendo a primeira composta pelos sentidos e imagina¸c˜ ao, e o u ´ltimo pelos intelectos agente e poss´ıvel. Os dados sens´ıveis, provenientes da intera¸c˜ao entre os cinco sentidos e itens extra-mentais, seriam processados pela imagina¸c˜ao e originariam, assim, o phantasma. Sobre esse termo operaria o intelecto agente, universalizando e imprimindo-o no intelecto poss´ıvel como uma species intelig´ıvel, ou seja, a forma do cognoscido presente no intelecto. Tom´as de Aquino, por exemplo, era um dos que aceitavam tal quadro geral – fato importante para compreender seu supramencionado paradigmatismo – mas muitos foram os que nisso n˜ao o seguiram. Dentre os escol´ asticos que antecederam Scotus, o flamengo Henrique de Gand ´e, provavelmente, seu maior interlocutor. Muitas s˜ao as discuss˜oes em que os dois sustentam posi¸co˜es diametralmente opostas, sendo a segunda dentre as mais representativas delas – a primeira, sem d´ uvida, a da univocidade e analogia – aquela que diz respeito `a no¸c˜ao de species intelig´ıvel3 . Henrique defendia o abandono de tal no¸c˜ao e construiu, tendo em vista essa finalidade, dois argumentos. O primeiro, baseado no princ´ıpio de economia te´orica, t˜ ao caro aos nominalistas que o sucederiam menos de um s´eculo 2

De anima III, c. 4, 430a3-5. Como o artigo se limita ` a an´ alise de atos cognitivos intelectuais, a n˜ ao ser que o contr´ ario seja explicitamente mencionado qualquer futura men¸c˜ ao a species deve ser tomada sob a glosa “intelig´ıvel”. 3

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adiante, tenta mostrar que todos os fenˆomenos supostamente explicados por trˆes dos itens tradicionais da psicologia aristot´elica – phantasma, intelecto agente e species – podem ser devidamente tratados utilizando-se apenas dos dois primeiros. O segundo, por sua vez, nega que a species, tomada enquanto uma forma inerente `a alma, seja capaz de explicar o car´ater inequivocamente intencional da intelec¸c˜ao. Por ser o estopim para o surgimento da no¸c˜ ao escotista de ser objetivo, esse u ´ltimo argumento ser´a, no que se segue, investigado em detalhes. De in´ıcio, cabe apreciar sua formula¸c˜ao nas palavras do pr´ oprio Scotus:

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Ademais, se a species intelig´ıvel estivesse no intelecto, ela o informaria como um acidente informa seu sujeito; portanto, o intelecto sofreria uma paix˜ao real de seu objeto e n˜ao consequentemente uma paix˜ ao intencional.4

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O trecho parece suficientemente claro: o surgimento de uma species intelig´ıvel na mente de um sujeito nada mais ´e do que a determina¸c˜ao de um sujeito (a mente) por uma forma (a pr´opria species), ou seja, uma modifica¸c˜ ao real desse sujeito. Ora, modifica¸c˜oes reais n˜ao s˜ao suficientes para ocasionar modifica¸c˜ oes cognitivas, pois as primeiras permeiam mesmo eventos concernentes a seres incapazes de atos intencionais, como plantas ou seres inanimados. Com efeito, um peda¸co de madeira, ao ser pintado de amarelo e, destarte, ser informado pelo acidente correspondente a tal cor, n˜ao realiza ato intencional algum – i.e. n˜ao passa a dizer respeito, ser sobre ou representar o amarelo – apesar de indubitavelmente sofrer uma modifica¸c˜ao real. Nesse ponto uma pequena digress˜ao sobre a hist´oria desse cr´ıtica faz-se necess´ aria. Via de regra, ela n˜ao foi interpretada como acima, isto ´e, como uma cr´ıtica que indica a mera insuficiˆencia explicativa de uma modifica¸c˜ao real frente ` a intencionalidade, mas como uma redu¸c˜ao ao absurdo nos seguintes moldes. Na f´ısica aristot´elica, adquirir certa caracter´ıstica parece equivaler a ser informado pela forma correspondente a tal caracter´ıstica. Assim, no exemplo mencionado acima o peda¸co de madeira se tornou amarelo por ter sido informado pela forma dessa cor. Interpretada sob esse prisma, a obje¸c˜ ao de Henrique faria referˆencia n˜ao `a insuficiˆencia, mas ao absurdo de se assumir que em nosso intelecto possam se encontrar formas (species) correspondentes ` a cor amarela ou ao elemento qu´ımico ouro: para isso ele teria de ser amarelo e formado por ´atomos de ouro. Essa leitura possui, entretanto, pontos cegos que n˜ao afetam a anterior e mais modesta. Para que o intelecto assuma as caracter´ısticas previstas em uma forma, ´e necess´ ario que ele contenha todas as determina¸c˜oes l´ogica ou metafisicamente anteriores que condicionam tal transforma¸c˜ao. Sendo imaterial, contudo, o intelecto jamais poderia conter as determina¸c˜oes que condicionam a assun¸c˜ ao das caracter´ısticas previstas em uma forma material, seja a 4

Rep. d. 3, q. 4, n. 86.

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do amarelo, ouro ou qualquer outra. Tem-se assim que, contrariamente ao que conclui a mais forte das leituras acima, poderiam estar contidas formas no intelecto sem que com isso ele adquirisse as caracter´ısticas nelas previstas. Seja como for, restringindo-se `a primeira leitura da obje¸c˜ao, poder-se-ia insistir: mesmo que a presen¸ca de formas (species) no intelecto n˜ao gere absurdos, ela ainda n˜ ao ´e suficiente para fundamentar o direcionamento de nosso atos cognitivos aos seres dos quais tais species foram extra´ıdas. O que autorizaria algu´em a afirmar que a simples presen¸ca da forma do amarelo no intelecto de S´ ocrates ´e suficiente para que seu pensamento seja sobre o amarelo? Pois ao que parece, a presen¸ca dessa forma em um peda¸co de madeira n˜ ao autoriza ningu´em a afirmar que tal peda¸co de madeira representa o amarelo. ´ no contexto dessa cr´ıtica e das quest˜oes que ela suscita que Scotus E inaugura a no¸c˜ ao de ser objetivo. A passagem abaixo, uma resposta ao argumento detalhado anteriormente, ilustra com clareza essa rela¸c˜ao dial´etica:

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[...] digo que o intelecto [...] ´e recipiente de uma dupla impress˜ao. Primeiramente, ele recebe a species de modo real [...] e quando isso se d´ a, segue-se uma impress˜ao intencional do que pode ser conhecido, quando o intelecto reage ao objeto na species de um modo intencional [...].5

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O intelecto agente possui, portanto, uma dupla opera¸c˜ao, a qual ocasiona uma dupla presen¸ca no intelecto poss´ıvel. Primeiramente o intelecto agente imprime de modo real a species no intelecto poss´ıvel, fazendo com que o mesmo seja por ela informado. Em seguida, ele opera sobre o conte´ udo da species – “o objeto na species” – e imprime o termo dessa opera¸c˜ao de modo ´ a esse termo da opera¸c˜ao intencional intencional no intelecto poss´ıvel. E que se atribui o ser objetivo, visto que somente nesse ponto est´a oferecido `a intelec¸c˜ ao seu objeto. A solu¸c˜ao, por conseguinte, consiste em assumir com Henrique que a presen¸ca de uma forma n˜ao ´e suficiente para que ocorra cogni¸c˜ ao, sem acompanhar-lhe na sua conclus˜ao de que a no¸c˜ao de species deve ser, por isso, abandonada: ela ainda ´e necess´ aria para que a cogni¸c˜ao ´ preciso assinalar, contudo, que h´a aqui um pre¸co a ser pago, e o ocorra. E montante inclui uma nova opera¸c˜ao do intelecto agente e um consequente novo tipo de presen¸ca no intelecto. N˜ ao obstante o sucesso em mostrar como ´e poss´ıvel resguardar o papel da species, fato ´e que a cita¸c˜ao acima mais levanta do que responde quest˜ oes. Primeiramente, (i) por que exatamente deve-se aceitar que a species ´e necess´ aria? Ao que parece, uma teoria na qual o intelecto realizasse a impress˜ ao intencional no intelecto poss´ıvel diretamente a partir do phantasma – sem a intermedia¸c˜ ao da forma real ou species – teria rigorosamente o mesmo poder explicativo. Al´em disso, (ii) qual ´e a diferen¸ca entre o 5

Rep. d. 3, q. 4, n. 119.

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conte´ udo da species e a pr´ opria species tomada como um todo? Por fim, (iii) qual a natureza da opera¸c˜ao que o intelecto agente exerce sobre esse conte´ udo, opera¸c˜ ao essa que ter´a como termo aquilo a que se atribui o ser objetivo? Evidentemente, a quest˜ao (i) tem rela¸c˜ao estrita com a primeira das cr´ıticas de Henrique mencionadas mais acima, ou seja, aquela que apela ao princ´ıpio de economia. Com efeito, o que ali se aponta ´e que species intelig´ıveis devem ser abandonadas justamente por n˜ao serem necess´arias. Uma abordagem minuciosa desse aspecto da discuss˜ao, no entanto, se coloca para al´em do escopo do presente artigo, o qual consiste apenas em demarcar os aspectos essenciais da no¸c˜ao de ser objetivo e suas implica¸c˜oes em rela¸c˜ ao ao realismo. As quest˜oes (ii) e (iii), por sua vez, ser˜ao tratadas respectivamente nas duas se¸c˜oes a seguir.

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Natureza comum e ser diminuto

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O grande sustent´ aculo sobre o qual Scotus desenvolve sua solu¸c˜ao para o problema dos universais ´e o que ele chama de natureza comum, ou seja, o elemento respons´ avel por unir diversos indiv´ıduos sob uma mesma esp´ecie natural e, portanto, por lhes conferir algum tipo de identidade real, ainda que n˜ ao num´erica. Mas n˜ ao apenas essa fun¸c˜ao metaf´ısica recai sobre a no¸c˜ao de natureza comum. Como mencionado na introdu¸c˜ao, a Ordinatio tamb´em atribui a tais itens a fun¸c˜ ao psicol´ogica de objetos do intelecto. A partir disso fica suficientemente claro que uma compreens˜ao precisa do ser objetivo – o ser dos objetos do intelecto – depende de uma compreens˜ao precisa da natureza comum – o objeto do intelecto. Destarte, nessa se¸c˜ao ser˜ao investigados os aspectos da no¸c˜ao de natureza comum que mais auxiliam no delineamento do ser objetivo. Especial aten¸c˜ao ser´a dada `a caracteriza¸c˜ao da unidade intr´ınseca ` a natureza comum como uma unidade menor do que a unidade num´erica, pois essa parece importante para compreender melhor uma das mais obscuras afirma¸c˜oes de Scotus sobre o ser objetivo, a saber, a de que ele consiste em um ser diminuto 6 . De in´ıcio, cabe reconstruir, ao menos em parte, a introdu¸c˜ ao do conceito de natureza comum e as raz˜oes para que ela exer¸ca o papel de objeto do intelecto. Como j´ a mencionado, o contexto prim´ario da natureza comum ´e o das discuss˜ oes a respeito dos universais. A formula¸c˜ao medieval do assunto tem em seu cerne a seguinte quest˜ao: se o real ´e objetivamente dividido em esp´ecies, gˆeneros e diferen¸cas, ent˜ao ´e poss´ıvel que os princ´ıpios que fundam tal divis˜ ao sejam individuais, ou ´e necess´ario que eles sejam comuns a mais de um indiv´ıduo? Em outros termos: os indiv´ıduos que constituem o real s˜ao objetivamente classificados sob gˆeneros, esp´ecies e diferen¸cas; ora, mas alguns indiv´ıduos s˜ ao de uma mesma esp´ecie, do que parece se seguir que o princ´ıpio que determina sua esp´ecie deve ser igualmente o mesmo para todos 6

Rep. d. 3, q. 4, n. 105.

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eles e, portanto, que n˜ ao deve ser um princ´ıpio individual. Scotus ´e tradicionalmente considerado um realista no tocante `a quest˜ao dos universais. De acordo com ele, a divis˜ao do mundo em categorias de fato requer a presen¸ca nesse mesmo mundo de princ´ıpios n˜ao-individuais. Esses princ´ıpios s˜ ao reunidos sob a no¸c˜ao de natureza comum que, mais uma vez, ´e a respons´ avel por determinar a esp´ecie sob a qual um certo indiv´ıduo ser´ a classificado. Muitos s˜ ao os argumentos dispon´ıveis nos textos de Scotus para demonstrar a necessidade de se assumir a existˆencia de naturezas comuns. Por brevidade e por n˜ao ser o objeto central de an´alise do artigo, apenas um desses argumentos ser´a detalhado. A escolha se deve principalmente ao fato dele ser um bom ponto de partida para o desenvolvimento da no¸c˜ ao de unidade menor que num´erica, a qual ser´a de suma utilidade para a delimita¸c˜ ao mais precisa da no¸c˜ao de ser objetivo. A Ordinatio oferece a seguinte formula¸c˜ ao desse argumento: Ademais, o que por si mesmo possui um [membro] de um par de opostos repugnar´ a por si mesmo o outro [a ele] oposto. Logo, se a natureza fosse por si mesma una em n´ umero rejeitaria a 7 multiplicidade num´erica.

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Baseado, assim, na suposi¸c˜ ao de que a natureza ´e, por defini¸c˜ao, o princ´ıpio que confere unidade espec´ıfica aos indiv´ıduos, Scotus reduz ao absurdo a tese de que tal princ´ıpio n˜ ao pode ser essencial e intrinsecamente individual ou, em outros termos, possuir uma unidade num´erica por si. Com efeito, se assim fosse, a natureza comum repugnaria essencial e intrinsecamente a multiplicidade num´erica – o oposto imediato de sua suposta unidade num´erica essencial – e, por consequˆencia, n˜ao poderia haver uma multiplicidade de indiv´ıduos numericamente distintos sob uma mesma natureza ou, o que vem a dar no mesmo, sob uma mesma esp´ecie. Em termos concretos, seria imposs´ıvel a existˆencia simultˆ anea de mais de um membro da esp´ecie humana, como S´ ocrates e Plat˜ ao, Pedro, Paulo e Thiago etc. – um resultado absurdo. Posteriormente observar-se-´a que a natureza tampouco pode possuir como unidade intr´ınseca a universalidade. Por ora, por´em, ´e preciso analisar o modo como Scotus caracteriza a unidade intr´ınseca da natureza comum relativamente a outros tipos de unidade, a saber, como uma unidade real e menor que num´erica. Que ela ´e uma unidade real, parece se seguir imediatamente do fato de que a divis˜ ao em esp´ecies e gˆeneros, divis˜ao essa principiada pela natureza, ´e uma divis˜ ao igualmente real e objetiva8 . A ideia de Scotus aqui ´e bem simples: ´e imposs´ıvel que algo real esteja realmente fundado em algo sem realidade. A justificativa para tratar tal unidade como menor que num´erica parece um pouco mais dif´ıcil de ser identificada no texto, mas pelo menos uma hip´ otese pode ser avan¸cada. A unidade num´erica ´e capaz de 7 8

Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 4. Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 30.

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fundar mais identidades do que a unidade espec´ıfica – a unidade principiada pela natureza comum: se a e b s˜ao o mesmo indiv´ıduo, ent˜ao necessariamente eles pertencem ` a mesma esp´ecie; por outro lado, se a e b pertencem `a mesma esp´ecie, n˜ ao necessariamente s˜ao eles o mesmo indiv´ıduo. Assim, assumindo-se que quanto mais identidades uma unidade for capaz de fundar, tanto mais forte ser´ a tal unidade, tem-se que a unidade num´erica ´e um tipo de unidade mais forte que a unidade espec´ıfica. Para compreender como as teses metaf´ısicas expostas nos dois u ´ltimos par´ agrafos conspiram para a melhor compreens˜ao da no¸c˜ao psicol´ogica de ser objetivo, duas teses adicionais s˜ao necess´arias. Primeiramente, que a qualifica¸c˜ ao da unidade intr´ınseca da natureza comum como uma unidade menor que num´erica compromete Scotus com a tese de que o ser da natureza comum – se ela ´e real, como acima demonstrado, deve ter algum grau de ser – ´e um ser menor do que o ser dos itens que possuem unidade num´erica. Essa tese parece se seguir de um princ´ıpio aceito por Scotus e por boa parte dos escol´ asticos, a saber, o coextens˜ao dos transcendentais. Ora, ser e unidade s˜ao transcendentais; logo, coextensionais. Resulta da´ı que mais ser, mais unidade, menos unidade, menos ser e assim por diante. A segunda tese importante para tornar mais precisa a no¸c˜ao de ser objetivo ´e a de que a natureza comum ´e o objeto do intelecto. Grosso modo, ´e um aspecto b´asico da teoria da ciˆencia aristot´elica e escol´astica que n˜ao pode haver ciˆencia do indiv´ıduo. Sendo o intelecto uma ferramenta apropriada para produzir ciˆencia, segue-se que seu objeto n˜ao pode ser algo individual. Al´em disso, o paradigma aristot´elico de ciˆencia tem como alicerce uma teoria das defini¸c˜oes em termos de gˆenero e esp´ecie. Nada h´a de espantoso, por conseguinte, na escolha de Scotus pela natureza comum como objeto do intelecto por excelˆencia. Ela re´ une, com efeito, dois tra¸cos fundamentais para exercer tal papel: n˜ ao ´e individual e determina as defini¸c˜oes e classifica¸c˜oes cient´ıficas sob as quais ser˜ ao postas os indiv´ıduos. Finalmente, reunidas as trˆes teses acima tornam muito mais clara a supramencionada afirma¸c˜ ao de Scotus de que o ser objetivo ´e um ser diminuto. Se o ser objetivo ´e, por defini¸c˜ao, o ser dos objetos do intelecto, se o objeto do intelecto ´e a natureza comum e, por u ´ltimo, a natureza comum possui um ser menor, ergo, deve-se assumir que o ser objetivo ´e um ser menor ou diminuto. Pode-se, entretanto, questionar essa linha interpretativa com uma cr´ıtica `a premissa de que a natureza comum ´e o objeto do intelecto. Ora, dir-se-ia, Scotus ´e um defensor radical da tese de que o ser enquanto tal ´e o objeto do intelecto, a ponto de polemizar insistentemente contra a concess˜ao que Tom´ as de Aquino faz ao sustentar que ´e `a quididade das coisas materiais que cabe esse papel. O ser, por´em, engloba outros itens al´em das naturezas comuns – como indiv´ıduos, por exemplo – de modo que atribuir a elas a fun¸c˜ ao de objeto do intelecto implica restri¸c˜oes a tal faculdade que n˜ao est˜ ao de acordo com o quadro geral escotista. 7

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Essa cr´ıtica ´e, de fato, bem sucedida em mostrar que ´e necess´ario ao menos qualificar a tese de que a natureza comum ´e o objeto do intelecto. Para ser mais preciso, deve-se dizer que a natureza comum ´e o objeto do intelecto em seu estado terreno ou, o que vem a dar no mesmo, de sua faculdade abstrativa. Com efeito, ao contr´ario de Tom´as, Scotus leva a s´erio a possibilidade de uma faculdade intuitiva do intelecto, a qual teria acesso direto e imediato ao ser em todos os seus aspectos. De acordo com o mesmo Scotus, no entanto, tal faculdade n˜ao estaria dispon´ıvel aos homens durante seu estado de vida terreno9 , em que s´o lhes restaria, portanto, a abstra¸c˜ao – para a qual pode-se dizer sem restri¸c˜oes que as naturezas comuns s˜ao seu ´ digno de nota, portanto, que a an´alise aqui oferecida se objeto pr´ oprio. E restringe ao funcionamento abstrativo ou terreno do intelecto e que, por consequˆencia, qualquer ocorrˆencia da express˜ao “objeto do intelecto” deve ser tomada sob glosa. A no¸c˜ ao de natureza comum ´e importante tamb´em para compreender um segundo aspecto da psicologia escotista no que concerne o processo de constitui¸c˜ ao do ser objetivo. Como descrito na segunda se¸c˜ao, a opera¸c˜ao intencional do intelecto agente tem como objeto apenas aquilo que foi chamado de conte´ udo da species, e n˜ ao a species como um todo. Essa diferen¸ca entre conte´ udo e todo est´ a refletida numa outra que Scotus tra¸ca entre a natureza ´ uma comum tomada em si e a natureza comum enquanto individualizada. E tese b´ asica de Scotus de que tudo o que existe ´e individualizado, ainda que nem tudo o que existe seja individual por si mesmo ou intrinsecamente. Isso significa que, apesar da natureza comum n˜ao ser essencialmente individual, ela sempre e necessariamente se encontra, no real, acidentalmente acompanhada por pelo menos um e geralmente muitos princ´ıpios de individua¸c˜ao10 . Assim, tomada enquanto uma forma real que inere no intelecto, a species deve estar tamb´em l´ a individualizada – e o respons´avel por tal individua¸c˜ao ´e a pr´ opria individualidade do intelecto no qual ela inere. Essa individualidade, no entanto, n˜ ao pode ser codificada durante o processo de impress˜ao intencional, pois do contr´ ario n˜ao seria poss´ıvel gerar uma intelec¸c˜ao com a universalidade requerida, como j´a mencionado, pela teoria da ciˆencia aristot´elica e escol´ astica. Assim, quando Scotus afirma que o “o intelecto reage ao objeto na species”, isso significa que o intelecto agente opera sobre a natureza comum contida na species em abstra¸c˜ao da individualidade que a acompanha, individualidade essa que, como dito, ´e a pr´opria individualidade do intelecto em que tal species inere. A partir desse ponto resta compreender mais precisamente o que o intelecto realiza em sua opera¸c˜ao intencional e se a abstra¸c˜ao descrita acima ´e suficiente para gerar um conte´ udo universal e, enfim, o ser objetivo. Esses s˜ ao aspectos da teoria da intencionalidade de Scotus a serem analisados 9 10

In Met. VII, q. 15, nn. 31–32. Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 32

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abaixo, na pr´ oxima se¸c˜ ao.

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Abstra¸ c˜ ao, universaliza¸c˜ ao e intencionalidade

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A despeito das aparˆencias, ser comum n˜ao ´e suficiente, de acordo com a terminologia de Scotus, para ser universal. A defini¸c˜ao que ele formula da no¸c˜ ao de universalidade cont´em uma condi¸c˜ao que a natureza comum tomada em si mesma – como, ali´as, qualquer outro ser real tomado em si – ´e absolutamente incapaz de satisfazer: possuir uma potˆencia pr´oxima para ser predicado ou dito de outros. Sob esse prisma Scotus certamente se distancia de muitos de seus interlocutores escol´asticos. Com efeito, enquanto boa parte dos escol´ asticos acatava uma defini¸c˜ao de universalidade disjuntiva – universal ´e aquilo que ´e dito de muitos ou aquilo que est´a em muitos – Scotus definia a universalidade como um conjun¸c˜ao: universal ´e aquilo que ´e dito de muitos e que est´ a em muitos11 . Essa distin¸c˜ao entre um universal e um comum ´e de suma importˆ ancia para compreender a opera¸c˜ao intencional do intelecto agente e em que medida a mera abstra¸c˜ao da individualidade investigada na se¸c˜ ao anterior n˜ao ´e suficiente para gerar universalidade e ser objetivo. Inicialmente, cabe expor as raz˜oes de Scotus para afirmar que seres independentes do intelecto, como a natureza comum tomada em si, s˜ao incapazes de satisfazer a condi¸c˜ao de predicabilidade que os universais requerem por defini¸c˜ ao. Assim como a natureza comum se coloca, numa escala de graus de unidade, abaixo dos indiv´ıduos, o universal se coloca, nessa mesma escala, abaixo da natureza comum. Como se viu acima, a natureza comum ´e incapaz de fundar certos tipos de rela¸c˜ao, como a de identidade num´erica, e por isso ´e considerada uma unidade mais fraca que a unidade num´erica. Essa incapacidade se deve, de acordo com Scotus, a uma indetermina¸c˜ao interna que a natureza comum possui: por poder ser individuada por esse ou aquele princ´ıpio de individua¸c˜ ao, a natureza comum n˜ao ´e intrinsecamente determinada a nenhum deles e, assim, ´e incapaz de fundar por si a unidade num´erica deles advinda. Assim sendo, na cadeia de raz˜oes essa indetermina¸c˜ao justifica a incapacidade de fundar identidades num´ericas, a qual, por sua vez, justifica a atribui¸c˜ ao de uma unidade menor. A linha de raz˜oes que faz com que o universal esteja, na escala de unidades, abaixo da comunidade, ´e, como se ver´ a, an´ aloga a essa. Por ser o princ´ıpio de unidade espec´ıfica, a natureza comum tem tamb´em o papel de fundar uma s´erie de rela¸c˜oes reais que se estabelecem entre diferentes esp´ecies, como por exemplo rela¸c˜oes de similaridade e contrariedade. A contrariedade ´e uma no¸c˜ao bastante caracter´ıstica da f´ısica aristot´elica, aplicada quando entre dois princ´ıpios f´ısicos quaisquer se estabelece uma rela¸c˜ao de corrup¸c˜ao. Os exemplos mais tradicionais s˜ ao os de calor e frio, branco e preto etc. Assim, por haver uma 11

Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 37.

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rela¸c˜ ao de contrariedade n˜ ao somente entre ocorrˆencias singulares de calor e frio, mas entre as pr´ oprias esp´ecies calor e frio, a natureza comum do frio e do calor deve ser respons´ avel por fundar tal rela¸c˜ao. O mesmo ocorre com as naturezas comuns que determinam esp´ecies com rela¸c˜oes de similaridade: por todo c˜ ao ser mais parecido com uma raposa do que com um camale˜ao, a pr´ opria natureza comum do c˜ao deve fundar essa rela¸c˜ao de similaridade com a esp´ecie das raposas. Um universal, no entanto, por defini¸c˜ao algo capaz de ser predicado, ´e absolutamente incapaz de fundar tais rela¸c˜oes de similaridade e contrariedade: apesar da raposa ser parecida com o c˜ao, o conceito de raposa ´e t˜ ao semelhante ao de c˜ao quanto ao de pedra; apesar do calor corromper o frio, o conceito de calor corrompe o de frio tanto quanto o de Deus ou o de Anticristo – n˜ao corrompe em absoluto. Assim, a incapacidade de um predic´ avel de fundar rela¸c˜ oes reais ´e o que justifica a tese de Scotus de que nada de real pode ser por si mesmo predic´avel em ato. Al´em disso, essa mesma incapacidade ´e o que explica a posi¸c˜ao mais baixa dos universais na escala de unidades: assim como a incapacidade de fundar rela¸c˜ oes de identidade num´erica colocava a natureza abaixo dos indiv´ıduos, a incapacidade de fundar rela¸c˜oes de identidade num´erica e rela¸c˜oes de similaridade e contrariedade coloca o universal abaixo dos indiv´ıduos e da natureza comum. Do mesmo modo que a menor unidade da natureza comum se deve, em u ´ltima instˆ ancia, a uma indetermina¸c˜ao intr´ınseca da mesma, a unidade m´ınima da universalidade se deve tamb´em a uma indetermina¸c˜ao. Mas nesse caso, ´e claro, de grau ainda maior. Desse ponto pelo menos trˆes conclus˜oes importantes podem ser tiradas. Em primeiro lugar, pode-se verificar, como mencionado anteriormente, a semelhan¸ca entre as ordens que explicam as unidades diminutas da natureza comum e do universal, as quais obedecem sempre ao seguinte esquema: indetermina¸c˜ ao −→ impossibilidade de fundar certa rela¸c˜ao −→ menor unidade

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Em segundo lugar, segue-se que a mera abstra¸c˜ao da individualidade da species n˜ ao ´e suficiente para que o universal e o ser objetivo sejam gerados. Para se transformar em um universal a natureza comum deve n˜ao apenas perder sua individualidade, mas tamb´em a capacidade de fundar rela¸c˜oes reais entre esp´ecies, como as de contrariedade e similaridade. A terceira e u ´ltima das conclus˜ oes requer um pouco mais de aten¸c˜ao, mas se segue igualmente do que foi posto anteriormente. Sabe-se que em sua opera¸c˜ao intencional o intelecto agente deve ter como termo o ser objetivo, algo capaz de ser imediatamente predicado ou, finalmente, um universal. Sabe-se tamb´em que o objeto dessa opera¸c˜ao ´e a natureza comum contida na species, da qual o intelecto agente abstrai a individualidade que dele mesmo (intelecto) adv´em. Dessas duas teses segue-se que a opera¸c˜ao do intelecto agente sobre a natureza comum contida na species deve produzir justamente 10

Conclus˜ ao

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aquilo que diferencia tal item (seu objeto) do universal ou ser objetivo (seu termo). Ora, como se viu a diferen¸ca fundamental entre o universal e a natureza comum tomada em si ´e dada justamente pelos diferentes graus de indetermina¸c˜ ao do qual os mesmos desfrutam. A terceira e u ´ltima conclus˜ao, portanto, ´e que a opera¸c˜ ao do intelecto agente sobre a natureza comum consiste em torn´ a-la indeterminada a ponto de, por um lado, ser incapaz fundar rela¸c˜ oes reais e, por outro, ser capaz de exercer a fun¸c˜ao de predic´avel. Aqui surge, mais uma vez, o problema que move o presente artigo desde o in´ıcio. Se aquilo que ´e predic´avel e tem ser objetivo depende, para assumir tal status, de uma opera¸c˜ ao do intelecto agente que lhe confere seu caracter´ıstico grau de indetermina¸c˜ao, parece que tudo que se torna objeto do intelecto perde, na medida em que adquire ser objetivo, sua independˆencia em rela¸c˜ ao ao intelecto e assim, sua realidade. No fim, por consequˆencia, parece que Scotus de fato se compromete com um v´eu intranspon´ıvel de representa¸c˜ oes entre o intelecto e a realidade. Articular os pontos expostos at´e aqui de modo a evitar tal conclus˜ao ´e o que se pretende levar a cabo na pr´ oxima e u ´ltima se¸c˜ ao.

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Como dito na introdu¸c˜ ao, a tese mais importante para demonstrar como Scotus n˜ ao se compromete com um realismo indireto ´e a de que h´a uma identidade real entre um elemento contido naquilo a que se chama de ser objetivo e algo que se encontra no dom´ınio do real, o qual ´e independente do intelecto. Esse elemento idˆentico e que participa dos dois dom´ınios ´e a natureza comum. Uma tal tese est´a baseada, por sua vez, em uma outra, a saber, a de que ao ser universalizada a natureza comum n˜ao perde aquilo que tem de essencial e, por isso, mant´em sua identidade e seu grau essencial de realidade mesmo ao se fazer presente no intelecto ao modo de um objeto, isto ´e, ` a maneira de um ser objetivo. A passagem abaixo ´e inequ´ıvoca em afirmar que ´e uma e mesma a natureza que est´a no intelecto e no real: Assim [...] ´e a mesma natureza que ´e determinada por ser na existˆencia atrav´es de um grau de singularidade e que ´e indeterminada por ser no intelecto [...].12

Como exposto anteriormente, a opera¸c˜ao do intelecto agente sobre a natureza comum tem como resultado certa indetermina¸c˜ao e predicabilidade do termo de tal opera¸c˜ ao. De in´ıcio, poderia se supor que isso extrai da natureza comum um grau de determina¸c˜ao que lhe ´e essencial e que, por isso, ela, bem como seu grau de realidade, n˜ao est˜ao mais presentes no universal resultante. Isso, no entanto, n˜ao ´e o caso. Tanto o grau de determina¸c˜ ao quanto as outras caracter´ısticas que cabem `a natureza apenas 12

In Met. VII, q. 18, n. 59. Grifo meu.

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enquanto esta se encontra fora da mente lhe s˜ao acidentais, apesar de algumas dessas caracter´ısticas – como a comunidade e um grau intermedi´ario de determina¸c˜ ao – pertencerem `a natureza por si mesma. Esse u ´ltimo aspecto da teoria escotista merece um maior aprofundamento: como ´e poss´ıvel que uma caracter´ıstica por si de algo seja modificada sem que a essˆencia desse algo tamb´em o seja? Scotus n˜ ao ´e muito claro em rela¸c˜ao a esse ponto, mas algumas hip´oteses parecem gozar de certo apoio textual. Em uma das diversas passagens que caracterizam a rela¸c˜ ao entre a natureza comum e sua unidade intr´ınseca, a comunidade, Scotus parece tentar evitar a essencialidade da u ´ltima ao afir13 mar que “essa unidade ´e um atributo pr´oprio da natureza” . Com efeito, um atributo pr´ oprio seria uma extens˜ao do conceito aristot´elico de acidente pr´ oprio, ou seja, caracter´ısticas que se seguem da essˆencia de um certo item, mas cuja modifica¸c˜ ao ou extin¸c˜ao por fatores externos n˜ao implica em uma mudan¸ca na essˆencia e, por consequˆencia, na identidade desse item. O exemplo tradicional de acidente pr´oprio ´e a capacidade humana de rir. Para que algo seja capaz de rir, n˜ ao ´e necess´ario nada al´em do que ´e, em conjunto, necess´ ario e suficiente para ser homem. No entanto, se por fatores extr´ınsecos – a perda do maxilar e das cordas vocais, por exemplo – um homem perde a capacidade de rir, isso de modo algum tem implica¸c˜oes para sua essˆencia humana e a identidade pessoal que est´a a´ı fundada. No limite, portanto, a distin¸c˜ ao entre caracter´ısticas essenciais e atributos pr´oprios permite a Scotus dizer que certas caracter´ısticas s˜ao por si ou intr´ınsecas mas, ainda assim, acidentais e irrelevantes para determinar se certo item se mant´em ou n˜ao o mesmo. Esse, evidentemente, seria o caso da unidade e da indetermina¸c˜ ao intr´ınsecas ` a natureza comum, como a seguinte passagem parece tamb´em implicar: Destarte, a natureza possui uma potˆencia remota para a determina¸c˜ ao da singularidade e para a indetermina¸c˜ao do universal.14

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Com isso a mais importante das conclus˜oes enunciadas na introdu¸c˜ao est´a demonstrada: ´e um erro afirmar que o ser objetivo ´e um intermedi´ario entre intelecto e realidade porque a realidade, na forma de uma natureza comum, j´a est´ a contemplada no interior do ser objetivo, o qual ´e, no fim das contas, nada mais do que a combina¸c˜ao entre a natureza comum e um modo caracter´ıstico do intelecto, que ´e o da universalidade em sua indetermina¸c˜ao. Como ponto derradeiro, cabe salientar tamb´em que justamente por ser um acidente da natureza comum, a universalidade que lhe cabe no intelecto n˜ao ´e parte do conte´ udo predic´avel que ser´a oferecido `a intelec¸c˜ao, mas apenas uma condi¸c˜ ao de tal intelec¸c˜ao, e uma condi¸c˜ao imposta por parte do intelecto, e n˜ ao de seu objeto – a natureza comum. A seguinte passagem vai precisamente nessa dire¸ca˜o: 13 14

Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 34 In Met. VII, q. 18, n. 48.

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[...] mas tamb´em quando [a natureza comum] tem ser no intelecto, n˜ ao possui universalidade primariamente em virtude de si mesma. Pois, apesar de ser inteligida sob a universalidade como sob um modo de intelig´ı-la, ainda assim a universalidade n˜ao ´e parte de sua ratio prim´aria [...] a despeito da universalidade ser um modo de inteligir o item inteligido, ela [sc. a universalidade] n˜ ao ´e um modo que ´e, enquanto tal, inteligido.15

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Assim, al´em de n˜ ao ser suficiente para extrair da natureza comum seu grau de realidade, a indetermina¸c˜ ao operada pelo intelecto na gera¸c˜ao do universal n˜ ao ´e sequer algo que faz parte da constitui¸c˜ao intr´ınseca do conte´ udo inteligido ao fim da opera¸c˜ ao de intelec¸c˜ao. Com isso Scotus evita uma s´erie de problemas. Por exemplo, se a universalidade fosse inteligida em conjunto com a natureza, ent˜ ao ao se predicar “homem” de “S´ocrates” se estaria tamb´em atribuindo a S´ ocrates a caracter´ıstica da universalidade, algo que ele n˜ ao tem, visto que ´e um indiv´ıduo e algo real. Finalmente, fica pelo acima exposto claro que Scotus pode ter conseguido com sua psicologia o que muitos consideraram imposs´ıvel: conjugar uma teoria de conte´ udos mentais que mant´em certo grau de independˆencia em rela¸c˜ ao ` a realidade, pois est˜ ao inteligidos sob um modo que ´e exclusivo do dom´ınio intelectual, ao mesmo tempo em que n˜ao podem ser qualificados como um tipo de v´eu representacional que impede o acesso direto a essa mesma realidade, por conterem uma parcela dela em seu interior.

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Ord. II, d. 3, p. 1, qq. 1–6, n. 33.

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