Seriam leques ou abanos? Parte I

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Seriam leques ou abanos? Parte I Maria Luísa Pedroso

Num livro que muito apreciei1 fiquei bastante surpreendida por se comentarem as grandes quantidades de abanos constantes de uma muito extensa Lista de Carga Goa de 1630, como se tais abanos fossem leques da China ou Japão. Resolvi aprofundar este assunto e apresentar os resultados a que cheguei em separado de outras considerações que já fiz relacionadas com a mesma obra2, o que me pareceu fazer sentido por a carga em questão reportar ao segundo quartel do século XVII e não ao tempo em que Lisboa foi merecidamente reconhecida como a «CIDADE GLOBAL». Há naquela Lista, que passarei a chamar Lista de Goa, abanos em quantidades que variam desde o milhar aos dez milhares, esta última de fazer «empalidecer» as maiores que se processaram a partir de Macau já no auge da popularidade daqueles objectos, isto é, do terceiro quartel do século XVIII em diante. Tendo então sido efectivamente da ordem de milhares, diriam respeito a leques de qualidade e preço relativamente baixos, destinados a um mercado muito alargado e pouco exigente, portanto a bolsas menos favorecidas, visto nessa altura o uso do leque se encontrar muito generalizado, já democratizado por assim dizer, o que de modo algum poderia ser o caso por volta da terceira década dos anos mil e seiscentos. De princípio pensei omitir neste contexto a abundante documentação que existe disponível a partir do terceiro quartel do século XVIII relativa a cargas de navios, mas por ser a que restou após o terramoto de 1755 e a informação anterior ser tão exígua, resolvi afinal fazê-lo por permitir estabelecer determinados paralelos que tornam mais fácil identificar e comparar os mercados que consumiam leques provenientes da China e Japão. Verifica-se que o panorama à volta de 1630 demonstra um uso de objectos de abanar muito restrito, havendo para eles na Europa um mercado exigente, constituído quase só por senhoras da nobreza e alta burguesia, que então valorizavam o luxo e variedade dos exemplares europeus que lhes eram postos à disposição quando em paralelo com os orientais que nessa altura já não as surpreendiam. Este facto é importante para encarar os objectos em causa na Lista de Goa quando se coloca a hipótese de terem sido leques da China e/ou do Japão mesmo considerando que, chegados a Lisboa, grande parte podia ser encaminhada para diversas outras praças europeias, o que talvez pudesse justificar as grandes quantidades já referidas. 1 «THE GLOBAL CITY ON THE STREETS OF RENAISSANCE LISBON», editado por Annemarie Jordan Gschwend e K.J.P. Lowe, 2015 2 Leques, abanos e armas, Partes I e II, Academia.edu

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Leque europeu, pormenor de retrato do atelier de Cornelis de Vos, primeiro quartel do Sec. XVII

Um dos primeiros leques europeus tipo «cabriolet», pormenor de um retrato de Cornelis de Vos, datado 1617

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Existem várias referências à vinda para Portugal , , a partir do fim do século XVI, de grandes encomendas de leques de origens orientais mas, ao que saiba, nenhuma suportada por documentação coeva comprovativa. Procurei assim averiguar a partir de quando se poderá acreditar ter isso acontecido, alargando mesmo o âmbito aos restantes países europeus e a resposta a que cheguei levou-me ao final do século XVII, época em que grandes encomendas se podem encontrar declaradas nos registos de cargas de navios, se bem que relativas a um mercado que não era o português mas o de Inglaterra, nessa época já de dimensão incomparavelmente superior à do nosso. No caso português em concreto, tem-se de certo modo convencionado justificar a ausência de qualquer notícia fiável de grandes quantidades dos objectos em causa, mesmo durante o século XVII, como resultado de diversas razões, isoladamente ou em conjunto, a saber: estarem em causa embalagens de dimensões comparativamente reduzidas mesmo quando envolvendo quantidades já apreciáveis, não embarcarem declaradas por estarem isentas de taxas, poderem ter feito parte das «liberdades»5 ou ainda viajarem escondidas como contrabando. Também pouco ou nada se conhece sobre características específicas dos leques destinados a exportação provenientes do Oriente nos princípios do século XVII, contudo acerca de leques encomendados na China em finais desse século, sabe-se como aquelas puderam ser detalhadas e exigentes, através de documentos que referem as modificações sugeridas aos que eram localmente usados, porque se considerava não preencherem os necessários requisitos nos países europeus ou mesmo nos das colónias desses países, para onde grande parte dessas encomendas era também enviada. Os documentos que conheço, no entanto, não nos dizem respeito, mas sim à Inglaterra. Tomei conhecimento dessas tão relevantes informações através da generosidade de um bom amigo americano, conseguindo a partir delas perceber a importância fulcral das modificações impostas aos leques de encomenda para serem considerados aceitáveis às preferências europeias, que incidiram principalmente no domínio da estética, mas não descurando as que se pensava contribuírem para melhoria de robustez. Penso, contudo, que tal interferência, muito concentrada numa óptica comercial, poderá ter sido responsável por alterações em última análise prejudiciais para a respectiva sobrevivência. A esse respeito nada mais desvendo porque essa análise, que reputo importante para um eventual prosseguimento deste estudo, 3 Leite, José Roberto Teixeira, A CHINA NO BRASIL, pp. 75 e 76, refere a exemplo «Também ao Brasil devem ter chegado desde muito cedo leques provenientes da China e em número decerto compatível com as exigências do clima tropical. Muitos destes leques podem ter entrado no país trazidos em naus da Carreira da Índia como carga normal ou entre as liberdades de que usufruiam os tripulantes, outros chegaram seguramente por debaixo do pano, contrabandeados por marinheiros embarcadiços, ou até religiosos, das naus vindas de Goa ou de Macau...» 4 DeVere Green, Bertha, FANS OVER THE AGES, pp.96-98 onde escreve: «...It was not until 1516 that the Portuguese made their appearance in China...From this intercourse of trade, the folding fan found its way half way round the way to Portugal...The earliest forms of the hand fan in Europe were both the type with sticks and a leaf mount, and also the brisé type made of ivory, mother of pearl or wood. The earliest includes those which were imported in large quantities from the East from the latter part of the 16th century onwards.» 5 «Liberdades» eram mercadorias embarcadas pelos tripulantes, praticamente livres de fretes e direitos.

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pertence de direito ao amigo atrás referido, aliás para isso dotado de comprovada competência, conhecimento e sensibilidade. Excluo obviamente de terem sofrido qualquer influência ocidental os caríssimos e raros exemplares oriundos das famosas escolas de pintura da China e do Japão, por se terem situado num nível estético totalmente diferente, aliás muito difícil de entender por europeus. Infelizmente e apesar destes novos elementos, continuaria a desconhecer até que ponto os leques da China e Japão, encomendados para a Europa por volta de 1630, estariam próximos dos leques tradicionais daqueles países, já que mesmo no caso dos que se podem observar dessa época em alguns retratos de senhora e onde se poderia alvitrar proveniência ou influência chinesa ou japonesa, acabei por concluír, na maioria dos casos, serem de fabrico europeu e não oriental.

«Old habits die hard» Por volta de 1630 o uso do leque ainda não se tinha afirmado como preferencial, sendo também muito compartilhado com o do abano e mesmo com o de uma outra forma, digamos mixta e que designo por «leque de transição», já em voga desde finais do século XVI. O velho hábito de segurar na mão um cabo, feito de materiais muitas vezes preciosos, demontrou ser difícil de abandonar e por isso ainda se usava então esse tipo, em que o painel fixo do abano era substituído por uma folha de leque. São prova de tal duas maravilhosas «tentures», nome dado em França a trabalhos de bordados com aplicação de variadíssimos tecidos: cetim, damasco, brocados de seda e fio de prata e ainda pergaminho e renda, datáveis de cerca de 1635 e que a seguir mostro:

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Um exemplo, do tipo de transição6, é o que pode ser observado na miniatura abaixo ilustrada, onde se vê um leque com varetas de cores variadas, no qual saudades do fausto do abano são evidentes já que nele não se prescindiu dum cabo, ou pé, ainda feito de material provavelmente valioso.

Miniatura a óleo sobre cobre Retrato de Agnes Elisabeth , Condessa de Stolberg ( 1600-1651) por Wolfgang Heimbach

No que diz respeito a Portugal o desconhecimento do que se passava por volta de 1630 resulta ainda assaz penoso, nada se sabendo verdadeiramente sobre a produção nacional de objectos de abanar durante o Século XVII em geral. Uma das raras oportunidades de formar alguma ideia nesse aspecto resulta das preferências duma senhora daquela época, que pode ser observada numa pintura da Escola Portuguesa (1615-20), obra muito conhecida do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, aí se mostrando um leque de origem europeia, cuja armação é de madrepérola com varetas mestras e outras que se prolongam por flechas introduzidas em aberturas no tecido da folha. É ainda guarnecido de renda na parte superior e complemento do traje à moda espanhola da retratada.

6 Pedroso, Maria Luísa , BRISAS DE LEQUES, p. 205

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Escola portuguesa século XVII @ Museu Nacional de Arte Antiga Lisboa (fotografiaDGPC/ADF-José Pessoa)

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1755 e o terramoto Do terramoto de 1755 resultaram, como se referiu, a maior parte dos problemas que encontra quem procura estudar estes assuntos, por ter feito desaparecer praticamente todos os registos de descargas de navios chegados de Goa e da Grande Viagem do Japão, que nesta data tinha já substituído a «Grande Nao do Trato» ou «Grande Navio de Macau» como também ficou conhecido. Caso tais registos ainda fossem conhecidos, ajudariam a melhor interpretar a Lista de Goa que vou continuar a comentar. Poderíamos, por exemplo, verificar se numa carga da Nau do Trato se incluíam abanos e se estes eram acompanhados de leques, como tal em separado designados. Mesmo que leques estivessem ausentes da Lista seria apesar de tudo legítimo admitir que havendo referências apenas a abanos, podiam ainda assim englobar ambos os tipos, que coexistiam, tanto na China como no Japão. Admito até que pudessemos encontrar surpresas nas quantidades embarcadas. Rui Landeiro Godinho refere a este respeito e como segue, um livro de cerca de 1633 do Regimento da Casa da Índia: «...No mesmo documento surge ainda uma referência, no regimento do tesoureiro, à existência de um livro de entradas das armadas da Índia, ou tornaviagens...O terramoto de 1755, mais uma vez, deve ter consumido todo este material que seria hoje fundamental para o conhecimento da «torna-viagem» não só em termos navais mas também nos aspectos comerciais e financeiros.».7

Voltando a 1630 Reinava então em Portugal, D. Filipe III, IV de Espanha. O vigésimo terceiro vicerei da Índia era o seu leal súbdito, D. Miguel de Noronha, 4.º Conde de Linhares. O rei em «Carta Escrita em Lxsboa a 7 de Março de 1630» , como habitualmente assim o saudava: «Conde Vizo Rey, sobrimho amigo. Eu El Rey vos envio muito saudar como aquelle que muito amo.» visto ter honras de parente da Casa Real com tratamento de «sobrinho d'el Rei».8 Nesse mesmo ano, D. Miguel de Noronha procurava por todos os meios ao seu alcance fazer face a uma crise económica gravíssima que grassava em Goa, acompanhada da falta de abastecimento de produtos alimentares que escassearam em toda a Índia entre 1630 e 31. Voltando à tentativa de esclarecer que tipo exacto de objectos são designados como abanos na Lista de Goa o primeiro passo que dei foi verificar a coberto de que título 7 Godinho, Rui Landeiro, A Carreira da Índia, Aspectos e Problemas da Torna-Viagem ( 1550-1649), p 195 8 Livros das Monções, Livro 28, fl. 48 , Carta de D. Filipe III ao vice- rei D. Miguel de Noronha, conde de Linhares, com as instruções a dar para o torna-viagem. De Lisboa a 7 de Março de 1630.

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ou títulos teriam sido embarcados, isto é, se aí vieram englobados em «Roupas» ou em «Miudezas» e em seguida comparar aquela lista, elaborada numa altura de grave crise, com outras cargas de Goa que pudesse ler na íntegra, tendo em conta que as que encontrei para este efeito são de datas um pouco anteriores. Começo por reproduzir o que se relata em «THE GLOBAL CITY» sobre a referida Lista de Goa, tanto no texto como no «Appendix 7»: «This annotated cargo list of exotica, luxury goods, textiles and commodities that Miguel de Noronha (15851647), 4th Count of Linhares and 23rd Viceroy of India, and the crew of the 1630 fleet brought back to Lisbon on three vessels is unpublished. Some items were acquired in Portuguese Asia for the King of Portugal, João IV. The objects illustrated here are comparable to the luxury goods sailors, captains and aristocrats bought at their own expense to sell in Lisbon for high profits. Other items were purchased on behalf of third parties in Lisbon who gave crew going to India wishlists.»9 Esclareço, contudo, que o traslado completo desta extensíssima Lista de Carga começou na verdade a ser publicado a 3 de Outubro de 1884, no «BOLLETIM OFFICIAL DO ESTADO DA INDIA», prolongando-se, dada a extensão, pelos quatro números seguintes10 desconhecendo se terá havido versões ainda mais recuadas. Esta Lista vem também citada com frequência no «Glossário Luso-Asiático» de Dalgado, maioritariamente em relação com a enorme variedade de tecidos que nela é mencionada, recorrendo este autor para o efeito a um artigo de Cunha Rivara, publicado em «O CHRONISTA DE TISSUARY»11 Aliás, um facto aí referido veio darme, como adiante se verá, uma ajuda providencial... No já mencionado «Appendix 7» apenas encontrei um item adquirido na Ásia não

«para» o rei de Portugal (que não seria D. João IV pois o rei era ainda D. Filipe III) respeitante a «caun», mas sim para El-Rey das Ilhas de Maldiua e que me pareceu merecer análise mais detalhada. «...FERNÃO JORGE PARA EL REY das ilhas de Maldiva ( for King João IV from the Maldives). 975 paras de caun panos de balagate ( coarse blue and white cloth from Balaghat in the Deccan) fiado ( thread) chandris serras (cera: wax) lacre (lac or red coloured gum) lacre de formiga ( export from Cambodia, extracted from the resin of ants)...»12 9 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p. 262 10 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO Do ESTADO DA INDIA , PARTE NÃO OFFICIAL,1629-1630, L.º das Monções n.º 13- Cartas Officiaes, p. 880, Sexta-feira, 3 de outubro, ANNO 1844 - Nº22O 11 O CHRONISTA DE TISSUARY, Vol.I, pp. 156-158 12 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p. 262

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Por causa de uma dúvida que me surgiu a este respeito, averiguei o que dizia o traslado de 1884, obtendo o que segue, a coberto de «Lista que o Viso Rey da India mandou fazer das fazendas que se despacharão nesta alfandega pera a carga das tres naos que Deus leue a saluaamento este anno de 630», onde se encontra «cauri» e não «caun»: «...Fernão Jorge, por El-Rey das Ilhas de Maldiua, nouecentos setenta e cinquo paras de cauri. Fernão Jorge, oito corjas de panos de balagate. O mesmo, tres candis de fardo. O mesmo, setenta corjas de dotis. ...»13 Como se pode verificar através deste traslado, Fernão Jorge carregou «por» mandado de El-Rey nouecentos setenta e cinquo paras de cauri, e não «para» ElRey, o que faz a sua diferença e também que eram propriedade de Fernão Jorge os items: beatilhas, panos de balagate, fardo (ou talvez fiado?, porção fiada de linho, algodão etc) e dotis. É fácil perceber que há diferença de sentido relevante entre «por El-Rey» e «para El-Rey». No português antigo, distinguiam-se as preposições «per» e «por» e são disso exemplos «per mar e per terra» no sentido transitivo e o item embarcado por Fernão Jorge «por El-Rey» na acepção de «a favor» do mesmo. Só se a preposição fosse «para» é que significaria então e só então «destinado ao rei».

A propósito de Cauris moeda-mercadoria «CAURIM (tambêm cauri ou cauril) é pequena e branca concha do molusco CYPREA MONETA, que corria e ainda corre hoje, em menor escala, como moeda em várias regiões da Ásia austral e da Africa. Os ingleses chamam-lhe cowry e os franceses cauri, coris, caouri, Kauri ou cowry.» Declara Yule que a mais antiga menção de concha como moeda ocorre num manuscrito chinês (Shu-King) do século XIV AC. As ilhas de Maldiva são o principal produtor de cauris, que ao tempo das grandes conquistas portuguesas eram em grandes quantidades transportadas para diversas partes, especialmente para Bengala, considerados mais limpos para manusear do que as moedas de cobre e empregados na compra de artigos miúdos do mercado. Pyrard de Laval faz na sua «Viagem» várias referências a estes cauris das Maldivas e entre elas duas pareceram-me apropriadas para o nosso assunto: a primeira por tão 13 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA , PARTE NÃO OFFICIAL, Anno 1844, L.º das Monções n.º 13, Cartas Officiaes, p.880

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detalhadamente os descrever realçando ainda a sua importância comercial e a segunda por referir que terão feito parte do «terço de sua renda que o primeiro rei cristão destas ilhas deu ao rei de Portugal». «...Há outra espécie de riqueza nas ilhas de Maldiva e são certos búzios pequenos, em que há um bichinho e são da grossura da ponta de um dedo, todos brancos, mui polidos e resplandescentes...Chamam-se esses búzios Boly e transportam-se em espantosa quantidade, de sorte que vi carregar por ano trinta ou quarenta navios inteiros sem outra carga alguma. Tudo isto vai a bengala, porque é ali sómente que se extraem por bom preço e qualidade…Quando eu cheguei à ilha de Malé pela primeira vez, estava surto no Porto um navio de Cochim, cidade dos portugueses; era o navio de porte de quatrocentas toneladas...e vinham ali só para carregar dêste búzio e leválo a Bengala. Davam vinte medidas (coquetées) de arroz por um fardo de búzio...Êstes fardos de doze mil búzios correm como sacos de dinheiro, que entre os mercadores se dão por contado...Também em Cambaia e por toda a India engastam destes búzios em vários trastes, como se faz a certas peças de mármore, ou a pedras finas.» e no capítulo XVIII da primeira parte das sua «Viagem» pode lêr-se «DA CURIOSIDADE DE EL-REI DAS ILHAS DE MALDIVA, DA SUA GENEALOGIA: DA MUDANÇA DE ESTADO DESTAS ILHAS; DAS MULHERES DE EL REI E DE OUTRAS COISAS QUE ACONTECÊRAM NESTA TERRA...Mas tratando agora da genealogia dêste rei das ilhas de Maldiva, direi as informações que lá colhi e como ele e os seus haviam sido elevados à dignidade real. Seu pai tinha sido Catiba em uma ilha. E o caso é êste: Há coisa de cinquenta anos o rei destas ilhas, que era de mui boa e antiga linhagem, vendo-se mal obedecido e tendo um competidor que o queria desapossar do reino sendo inspirado por Deus, tomou a resolução de deixar tudo, porque não podia resistir a seus contrários e secretamente se foi com sua mulher e alguns dos seus, sem dizer porquê, nem aonde ia se encaminhou a Cochim, onde se fez cristão, com a dita sua mulher e alguns da sua comitiva, despedindo os outros que não quiseram ser baptizados. Pelo que o seu competidor, que era seu próximo parente, logo foi levantado por rei. Chamava-se este Haly, e o outro Assan.» A este acontecimento, seguir-se-ia um período de guerra de dez anos até que, de acordo com Laval: «...Enfim uns e outros, considerando que para benefício da terra e do comércio mais valia vir a algum concêrto, do que continuar uma guerra incerta, fizeram um tratado com estas condições, a saber: que deixariam em paz êstes reis das ilhas de Maldiva e seus povos e que eles possuíriam as ditas ilhas assim como as haviam possuído os outros reis seus precedentes, salvo pagarem certa tença ao seu rei cristão, seus herdeiros e sucessores; a qual tença seria posta em Cochim, sem todavia terem outra sujeição ao mesmo rei...Eis quais foram as condições desta paz que ora presentemente dura...O rei cristão deu o têrço de sua renda ao rei de Portugal. Esta renda consiste nos bollis ou caurim e cairo, que são os filamentos do côco que servem para fazer cordas. Os reis mouros enviam todos os anos à sua custa quatro navios com esta carga, os quais são do porte de cento e cinquenta toneladas cada um

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e o risco que correm, enquanto não saem dos bancos destas ilhas é por conta dos reis mouros, e fora dali é por conta do rei cristão.» O tradutor da versão portuguesa da obra de Laval, Cunha Rivara, diz em nota o seguinte: «...Estas acções e outras dos portugueses nas ilhas de Maldiva e bem assim como a história dêste rei cristão, que por mais de um século se continuou em Cochim e em Goa, até de todo se extinguir, são omissas ou leve e inexactamente tratadas pelos nossos cronistas da Índia, incluindo o proprio Diogo do Couto, aliás testemunha e contemporâneo da maior parte dêstes sucessos...» e ainda que «...como por diligência nossa temos descoberto vários documentos que jaziam ignorados...esperamos ordenar uma Memória especial sobre a acção dos portugueses nas ilhas de Maldiva e notícias da família do seu rei cristão, a qual memória sairá em tempo e lugar oportuno...». Assim, desde 1552, data em que o rei Hasan IX das Maldivas (Assan) tomou o nome de D. Manuel após o seu baptismo em Cochim, até 1655, portanto depois da restauração da monarquia portuguesa e no tempo do último rei cristão daquelas ilhas, D. Filipe, já não descendente directo do primeiro rei cristão, houve estreita e continuada relação desta dinastia com os reis de Portugal. Mas é curioso e pouco conhecido que, além dos cauris, outras mercadorias como por exemplo, tecidos da Índia ao gosto africano e alaquecas, isto é, pedras cornalinas, também serviram como moeda mercadoria: «Os grandes lucros do comércio de longa distância resultantes de moedas mercadorias, obtidas em mercados exóticos externos, conduzidas à casa da Mina e reexportadas, foram reservados desde 1480, como monopólio do príncipe D. João...Monopólio confirmado e alargado pelo próprio D. João quando rei e D. Manuel. As melhores moedas mercadoria para obtenção de ouro africano foram reservadas para o próprio rei que assim acumulava a convergência dos lucros de duas transações», tal como relata Maria Emília Madeira Santos em «A Carreira da Índia e o Comércio Intercontinental de Manufacturas»

Abanos aos milhares No princípio deste trabalho lembro que fiquei intrigada com a grande quantidade de abanos constante da Lista de Goa. A este respeito pode ler-se no «Appendix 7» em «THE GLOBAL CITY», que Diego de Castro teria embarcado: «...Diego de Castro dez mil abanos (10,000 Chinese or Japanese folding fans (see fig, 66) dez tapetes (hangings or rugs) dous gingores (guingões or ginghams: a Mughal cotton cloth) hua alcatifa (Indian carpet from Cambaya)...»14 No entanto, recorrendo ao traslado de 1884, verifica-se que os items inventariados 14 THE GLOBAL CITY, Appendix 7, p.262

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logo a seguir a «dez mil abanos», não constam na Lista em causa como propriedade de Diogo de Caostro ou Diogo de Crasto, nem mesmo os outros treze em continuação destes. Note-se que duplas grafias para nomes são frequentes no traslado desta Lista e sem acesso ao original torna-se impossível verificar se se tratou de erros ocasionais ou não. Com efeito no texto de 1884 o que consta referente a este ou estes consignatários de mercadoria é: «...Diogo de Crasto, outenta e cinquo corjas de sarsalas, seis corjas e meia de serras, vinte corjas de goldares, doze corjas de cascassão...Diogo de Caostro, outenta e quatro corjas de argaris, oitenta corjas de dotis, sessenta corjas de cachinhas, vinte e quatro corjas de canequis, dez mil abanos ...Diogo de Crasto cento e vinte corjas de canequis, cento e vinte corjas de cacinhas, oitenta e cinco corjas de serras, cento e vinte e cinco corjas de bertangis.»15 Procurando ainda mais abanos na versão da Lista do «Appendix 7» temos: «..FERNÃO JORGE 6,000 abanos (6,000 Chinese or Japanese folding fans)»16 Quanto ao traslado, verifica-se que os seis mil abanos não eram propriedade de Fernão Jorge, mas sim de Antonio Vaz Mendes: «...Fernão Jorge, vinte e oito corjas de dotis. Antonio Vaz Mendes, oitenta corjas de canequis, tresentas corjas de fofolis, duzentas e cinquoenta de bancais, duzentas e dez de cotonias, cento e cinquoenta corjas de seadas, duzentas e oitenta corjas de pachoris, quarenta e cinquo corjas de dotis, cento e cinquoenta corjas de argaris, trinta corjas de canequis, trinta corjas de chandeis, quarenta corjas de armur, cem corjas de meas cachas, dez candis de fiado, cem corjas de canequis, sessenta e noue de mais, onze corjas de tafeiras, trinta corjas de beatilhas, cinquoenta corjas de cachas, seis mil abanos, sete quintaes de bejorim, uinte mãos de laqueca, trinta mãos de lacre de canudo, dous candis de encenso, cincoenta corjas de canequis.»17 Adiante, no «Appendix 7» ainda se menciona: «...SALVADOR DE CAMPOS

1,000 abanos 4 corjas de santalos (sandalos or sandals) 25 corjas de contas de cristal ( 25 bundles of crystal beads) ( see figs. 106 e 107) 5 quintais de pau de mombaça (wood from Mombaza) 5 quintais de guilabrana 25 lailos 12 picotes (or burel, coarse cloth of dark colour) 104 colchas brancas...»19 18

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BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA, 3 de Outubro de 1884, p.880 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p.263 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA, Lº das Monções nº 13, p. 886 Não encontrei «Guilabrana» mencionada em nenhuma obra, mas acredito que possa ser «aguila braua» ou seja «pau de águila brava» 19 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p.265

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No Traslado de 1884 e neste conjunto de mercadorias somente os abanos pertenciam na realidade a Salvador de Campos, como mais abaixo mostro. As restantes, que supostamente os acompanhavam, são inventariadas da seguinte forma: as contas de cristal, uma só vez na Lista, só podem ser «…Diogo Roiz de Crasto, vinte e cinco corjas de contas de christal, quatro alcatifas, duas colchas». O «pao de mobaça» é dado como propriedade de um Gaspar Dias, que terá embarcado o seguinte: «huma corja de joris. O mesmo, quatro quintaes de encenso, quatro quintaes de lancoas, quatro quintaes e meio de gengire seco, cinquo quintaes de pao de mobaça». A António Costa pertenciam «tres mãos e meia de pao da China, cinquo quintais de aguila braua» e os lailos terão sido de «...Francisco Botelho, cento e vinte cinco lailos». Já os picotes seriam de «Diogo Dias Lobo, hum candil de cardamono, doze picotes, quatro corjas de sortes» e finalmente ao doutor Bento de Baena são atribuídas «cinco corjas de cortes, cento e sinco colchas brancas...». Quanto a mercadoria de «Salluador de Campos» referem-se «mil abanos, duas corjas de bertangis20, duas corjas de joris»21 No «Appendix7» constam ainda FRANCISCO TINOCO e MANUEL GOMES CARDOSO, o primeiro embarcando 1,000 abanos e o segundo «1,060 abanos, 6 bofetes e 16 carlas» . Contudo o traslado dá Francisco Tinoco como proprietário de «trinta e oito corjas de dotis, sete corjas de arganis, mil abanos, desaseis quintaes de canella» e diz-nos que Manuel Gomes Cardoso apenas possuía na Lista aqueles mil e sessenta abanos, já que as seis bofetas eram do padre Luis Teixeira e as carlas de Francisco Neto.23 Estas até vêm mencionadas no Glossário de Dalgado como: «CARLÁ» (s. f...conforme Couto). Figura o termo numa lista de panos despachados na Alfândega de Goa em 1630 a Francisco Neto.» 22

Após tudo isto constatar, ocorreram-me inevitavelmente várias interrogações, que me pareceram justificadas pela mais elementar cautela. Acontece que, quando comentamos um qualquer texto alheio, muita questão pode porventura suscitar o desagrado de certos autores e até mesmo de alguns leitores, mas esse espírito de tudo questionar é do meu agrado, apesar de estar consciente de que quem põe em causa um amontoado de meras «afirmações curiosas» sujeita-se a ser rotulado com desdém de «especialista» ou «preciosista» ou mesmo de «desmancha-prazeres». A este respeito permito-me recorrer ao artigo de José Cabrita Saraiva, intitulado «O prazer de ser desmancha prazeres» em que diz «...todas estas cautelas acabam por funcionar como chamadas à realidade que vão minando o prazer da leitura». O caso concreto a que Saraiva se refere, não é o de um romance, mas sim dum livro sobre 20 Bertangi ou bertangil era um tecido indiano de algodão, azul, preto ou vermelho e joris eram brocados da Índia. Portanto Salvador de Campos enviava para Lisboa mil abanos, 40 bertangis e 40 joris 21 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA, PARTE NÃO OFFICIAL, 1629-1630, Lº das Monções, nº13, p..896 22 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p.265 23 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA, PARTE NÃO OFFICIAL, 1629-1630, Lº das Monções, nº13, p..903

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Pompeia, que teria contra ele, em sua opinião, o facto de já se terem escrito «milhares de livros sobre a erupção do Vesúvio», não falando de «séries de TV, filmes e romances» O autor desse livro, cujo título não nos é desvendado, serve assim como exemplo do maçador «que enche a sua obra de minudências sem interesse, gastando parte do seu latim a comentar o que já foi dito e escrito» ou ainda «uma insistência exagerada em desmentir, quando não em ridicularizar, algumas opiniões alheias e os seus defensores». José Cabrita Saraiva não diz se esse autor, real ou fictício, apresenta provas para suportar os respectivos desmentidos, mas insurge-se do modo seguinte: «entre as suas frases feitas favoritas: Não é bem assim, não temos a certeza, não podemos afirmar com segurança que...» tudo isto lhe parecendo indesculpavelmente maçador, mas que, por meu lado, ao contrário soa muito melhor do que as «certezas» não comprováveis ou mesmo improváveis que tantas vezes encontro em obras outrossim respeitáveis. Em resumo, se o leitor partilha da atrás manifesta simpatia pelo facilitismo e mais não procura na leitura do que ser entretido, então por favor não continue a deter-se por estas bandas, já que nesta «Pompeia» irá fatalmente encontrar ainda muita dúvida e alguns desmentidos...

Interrogações Ultrapassadas as «perorações» anteriores, entremos então pelas minhas dúvidas adentro: 1.ª Porque terão sido os dez mil abanos de «Diego de Castro» e os seis mil dados como de Fernão Jorge, mas afinal pertença de Antonio Vaz Mendes, associados sem hesitação a leques japoneses ou chineses e se nos remete em ambos os casos para um muito já citado leque japonês, o que está ilustrado em de «THE GLOBAL CITY»?24 Estando em causa apenas «abanos», mesmo aceitando-os como objectos de abanar não parece razoável, pelo menos, omitir as hipóteses de poderem ter sido avanos tradicionais de palma da Índia ou de Ceilão (Sry Lanka) do mesmo material, estes últimos ainda hoje denominados avana.25 Com efeito, estando a analisar um documento de 1630, escrito setenta e quatro anos depois da inventariação dos «seis avanos da Índia, de palma g(u)ornecidos de taffeta - dois mil reais»26 a que já me referi num trabalho anterior27, não me parece claramente de excluir no caso vertente avanos dessas proveniências. 24 25 26 27

THE GLOBAL CITY, p.79, fig.66 Pedroso, Maria Luísa, BRISAS DE LEQUES, p.1 Appendix 6, THE GLOBAL CITY, p.255 - 256 Pedroso, María Luísa, LEQUES ABANOS E ARMAS PARTE I, Academia.edu

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Note-se que as quantidades dos «abanos» constantes da Lista de Goa infelizmente não estão acompanhadas das respectivas origens e materiais, o que nos poderia facultar pistas para identificação dos mesmos. Possivelmente na época tal não seria indispensável para os classificar. Assim e por enquanto, irei considerá-los apenas «objectos». 2.ª Já agora e a talhe de foice, porque será que «um escritório» constante da mesma Lista de Goa terá merecido em «THE GLOBAL CITY» a hipótese de ser de origem indiana e comparado com o de uma ilustração do livro, a coberto da descrição «Gujarat, Fall-front writing cabinet, late 16th century, teak, ebony, ivory and gilded copper, private collection?»28 Este escritório pode também ser encontrado no «Appendix 7» atribuido a Manuel de Bois, que terá embarcado: «...4 trapeças 3 catas e meio de seda (silk) 15 taboleiros ( Indian, Japanese, or Ryukiuan carved or lacquer wood) (see fig. 212) 30 onças de tranja 5 cotonias 1 pano 8 regos 2 guingois meia barca de louça (chinese Ming blue-white porcelain) 1 escritorio (Indian, Chinese or Japanese writing desk (see fig. 236)) 3 alcatifas(rugs from india or persia 16 corjas de berrames (beirame: a cotton cloth)»29 Contudo no traslado da Lista de 1884 o que consta é «Manoel de Bois, quatro trapecas, tres tates e meio de ceda, seis tabuleiros vinte e noue taboleiros, trinta oncas de franja, cinco cotonias, hum pano, oito regos, dois gengois meia barça de louça, hum seritorio tres alcatifas.». O berrame (ou beirame) não lhe pertencia mas sim a um outro Manoel, como segue: «Manoel Fernandes, seis mãos e meia de lacre. O mesmo, cincoenta mãos e meia de lacre, tres corjas de sagaris, tres corjas de berrames, mea corja de limitares».30 -

Recordo que na Lista em causa, a China é mencionada apenas em relação com «pao da China», também conhecido como «raiz da China», que tinha sido introduzido em Goa há quase um século e com «Hum cofre da China», propriedade de «...Francisco Muniz, hum cofre da China...». No «Appendix 7» o que se lê a este respeito é: 28 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, fig.236, p.263 29 idem, p.263 30 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA, PARTE NÃO OFFICIAL, 1629-1630, Lº das Monções, nº13, p..887

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«...Francisco Munis (Moniz) Hun cofre da China (lacquer chest from China) guingois ( guinghams: Persian fabrics from northern ( Mughal) India) canella (cinnamon) hun cobertor (blanket) tuti hun setim 1 piece of satin)...»31 Contudo, somente o cofre da China era propriedade de Francisco Muniz, segundo o traslado.32 Mas então pode o escritorio de Manuel de Bois não ter indicação da origem, ao contrário do que acontece com o cofre de «Munis», por ser obra da Índia, região de onde estava a ser exportado? Não é fácil aceitar que tenha havido tal critério na elaboração da Lista, já que esta revela precisão questionável, mesmo extensiva à grafia de muitas palavras, mas se houve, então os «abanos» estariam com alguma lógica na mesma situação, isto é, eram produtos da região, portanto da Índia... Mas serão? É verdade que determinados objectos, dentro da respectiva época e contexto, podem não oferecer grande dúvida quanto à origem, pelo que esta era natural e frequentemente omitida. São disso exemplo os biombos, que igualmente fizeram parte da carga em causa. Não terão tido, quando foram inventariados, necessidade de tal indicação por se saber que naquelas paragens provinham do Japão. Viajaram integrados nas «miudezas» talvez como a parte mais importante e valiosa da carga do «Conde Viso Rey», como provavelmente seria de esperar: «...O sr. Conde Viso Rey, quatro caixões dourados com meudezas, dous caixões com encomendas, duas alcatifas e outras pequenas, vinte e sete escritorios, dous bofetes, huma barça de louça, tres caixas de biombos, treze quintais de bejoim, huma tenda de campo por tres enuoltorios, duas jarras de agoa de canella, tres barris de salitre...».33 Goa, grande entreposto comercial, punha à disposição no magnífico e muito diversificado comércio local estas e muitas outras caras mercadorias, mas é de pensar que o vice-rei tivesse a oportunidade de aquirir o que pretendesse em melhores condições e mais directamente, sem recorrer às lojas da Rua Direita de Goa. Refiro, a propósito, que em Lisboa e em 1626 há notícia de dois biombos que foram inventariados da seguinte maneira: «...por dous mill reis que avera por dous 31 Appendix 7, THE GLOBAL CITY, p.263 32 BOLLETIM OFFICIAL DO GOVERNO DO ESTADO DA INDIA , PARTE NÃO OFFICIAL, L.º das Monções n.º 13, Cartas Oficiaes, p.887 33 idem ,p. 891

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beombos feitos na terra que foram vistos e avalliados na dita comtia...» como exemplo para alertar que naquela época nem todos os biombos que havia no Reino tinham necessáriamente origem japonesa.34 Voltemos, mais uma vez, aos milhares abanos que constam da Lista de Goa e foram considerados como leques de origem chinesa ou japonesa, sem qualquer argumentação que o suportasse, agora para acrescentar que esta forma de «imaginar» não é assim tão rara, já que «Doze avanos», assim referidos com toda a simplicidade, conseguem apesar disso ser motivo da seguinte nota explicativa: «149. Abanos: Fans. Provavelmente de manufactura Chinesa ou Japonesa.»35 Quem fez esta suposição esqueceu que avanos, mesmo antes de abanos, não referiram somente, tanto em português como em castelhano, mais que um tipo de objectos de abanar mas também diversas peças de vestuário, para além de que o uso indiscriminado, quase aleatório, das palavras avano e leque para descrever aqueles objectos ainda durante o século XVII pode ser a causa de mais dificuldades de leitura interpretativa, como no caso dum riquíssimo inventário, datado de 1650, que não me foi permitido consultar em versão original, devido ao estado de fragilidade em que se encontra, onde estão incluídos abanos, integrados no conjunto que segue: «...casticais, tijelinhas, galhetas, salvas, pires, caçoilas, talheres, um copo de coco, um copo de osso de abada, abanos, prato de batizar, gomil, saleiros, pratos cafeteira, púcaro,...»36, levando a supor que se tratasse aqui da variedade abanos de mesa e não de leques, os primeiros usados na dupla função de afugentar insectos e movimentar o ar durante refeições, manejados por criados em casas nobres. Como pode ser então lícito, em face do exposto, afirmar categóricamente que abanos, abanos «tout court», eram leques da China ou do Japão ou donde quer que fosse, até porque, pelo menos a partir de cerca de 1600, já a palavra leque e não só abano, começa a designar o objecto de abanar desdobrável, como um exemplo num inventário de bens feito por falecimento de uma senhora de Elvas: «seys leques, em duzentos reys».37 Reconheço que há confusões admissíveis com palavras que a isso se prestam em documentos antigos portugueses, mas foram interpretações como as anteriores que me induziram a levar a cabo o presente exercício, ingrato quanto baste, até por não saber se haverá ainda quem se interesse por estes assuntos com a boa vontade suficiente para neles apreciar rigor.

34 Drumond Braga, Isabel, REVISTA DE ARTES DECORATIVAS, nº 1, p.180 35 A. H. N., Consejos, libro 132r. in EXOTICA, p.46, nota 149 « Madrid, 18 de Fevereiro1578 - Hans khevenhueller envia a Rudolfo II desde Espanha... caballos... deziocho pares de medias de seda...veynte y seis pares de bolsas de seda, plata y oro, doze avanos,...» 36 PT/TT/IFF/006/0127/00011 - INVENTÁRIO DOS BENS DE FRANCISCA MENDONÇA DE VASCONCELOS 37 ANTT, Núcleo Antigo, 754, fl.87, Excertos de « Inventario dos beis moueis e de rais que ficarão por falesimento da senhora donna Brites que samta gloria aya molher que foy do senhor André d´Azevedo de Vasconcellos» Elvas, 1601

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3ª Mas então que seriam mesmo aqueles milhares de abanos ? É mais fácil começar por responder ao que não seriam, recorrendo para o efeito a um estudo de Cunha Rivara sobre a proveniência das mercadorias da Lista de Goa, visto não se ter limitado à respectiva enumeração mas ter procurado ir mais longe, escrevendo: «A historia do commercio não he menos digna de ser estudada, do que a dos cercos e batalhas;...Da nossa parte ajudaremos estas investigações com os subsidios, que nos for possível. E assim descobrindo nos archivos do Governo da India (Livro das Monções n.13, fol. 372) a Lista das fazendas, que se despacharam na alfandega de Goa para a carga das tres náos, que foram para o Reino na monção de Fevereiro de 1630, della extrahimos um breve summario indicador das mercadorias, que eram objecto do trato da Índia para a Europa. Comtem a lista, a que nos referimos, só as mercadorias despachadas por conta de pessoas particulares, sem fazer menção de pimenta e mais drogas, que na forma do costume eram carregadas por conta da real fazenda. Naquelle anno os cafilas, que costumavam vir de fora, como eram as de Cambaya, Canará, Ceilão e Cochim, chegaram a Goa a salvamento e as náos foram muito carregadas. Pode portanto haver-se por completo o inventario do commercio, que naquelles tempos corria entre a India e Portugal, excluindo a costa de Choromandel, Estreitos, e China; posto que na lista appareça um ou outro objecto dessas partes, que devia estar em Goa, onde nunca faltava provimento. Advertiremos por ultimo que os pannos se contam por corjas; outros varios estofos por serie numerica de cada objecto em si: os materiais dos estofos por cates e candins; as drogas por bares, quintaes e mãos; os lenhos da mesma sorte; o cauri por parás; a louça por barças; e outras varias fazendas ordinariamente pelo numero individual de cada objecto.»38 Foi neste estudo que finalmente encontrei a informação que me faltava e que por tarde me ter chegado, não me evitou e ainda bem, sucessivas leituras da Lista em causa, no esforço inútil de encontrar uma resposta à dúvida atrás referida. Com efeito, Rivara diz que naquele ano de 1630 chegaram a bom porto as cáfilas de Cambaya, Canará, Ceilão e Cochim, sem os atrasos que frequentemente ocorriam e mais informa, respondendo-me de forma cabal, que a origem da carga era esmagadoramente da Índia, excluindo a costa de Choromandel, Estreitos e China, dizendo ainda que a possibilidade de alguma mercadoria incluída na lista ser de origem chinesa era exígua. Como nota, que reputo interessante, as cáfilas de Cambaia são comentadas por Laval como segue: «...Este tráfico é tal que duas a três vezes por ano, vêm em conjunto entre trezentos a quoatrocentas embarcações, que eles chamam cafila de 38 Cunha Rivara, O CHRONISTA DE TISSUARY, Vol.I, pp. 156

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Cambaia, como são as caravanas de Alepo. E então em Goa, todos esperam essas cafilas e frotas, como se faz em Espanha com as das Índias.».39 Estas frotas viajavam «de conserva», isto é, em caravana ou combóio, para melhor resistirem aos corsários. Mas antes de avançar e para melhor compreensão de uma das razões da surpresa que manifestei ao iniciar este caminho sobre a afluência a Goa de tantos milhares de abanos ou leques da China e do Japão, a tempo de embarcarem para o reino no mês de Fevereiro do ano de 1630, pareceu-me interessante e útil verificar o que ocorria com as viagens regulares do Japão, entre 1627 e 1630, já que a situação, como se verá, de forma resumida, não era propícia para a chegada a Goa de quaisquer quantidades de objectos dessas origens, não me referindo exclusivamente a leques. A superioridade naval dos holandeses, inimigos herdados por Portugal desde a sua união com a coroa espanhola em 1580, a partir de quando foram impedidos de comerciar no porto de Lisboa, obrigara a que a Grande Nau do Trato, que se lhes tornara presa fácil por ser de díficil manobra, fosse substituída por galeotas muito mais ágeis, dificultando-se desse modo ataques holandeses entre Macau e Nagasáqui. Mas logo que confrontados com continuados insucessos, foram esses ataques desviados para o estreito de Malaca onde conseguiam mais facilmente interceptar as galeotas portuguesas no «Torna-Viagem». A este respeito diz C. R. Boxer: «...O cada vez mais bem sucedido bloqueio deste caminho marítimo estratégico, levou a que os mercadores de Macau concentrassem o seu comércio com Nagasáqui e Manila, em prejuízo de Goa.»40 Recorrendo ao resumo anual feito por Boxer das viagens efectuadas no período que interessa, constata-se que em 1627 não terá havido a ida regular para o Japão, porque um esquadra holandesa bloqueou a barra nos meses de Verão, impedindo a partida das galeotas. A pedido dos portugueses de Macau, Dom Juan de Alcarazo comandou dois pesados galeões, «San Ildefonso» e «Nuestra Señora de Peña», pelos quais foram pagos 20,000 pesos, que partiram de Manila escoltando as nossas galeotas que lá se encontravam e à chegada a Macau, encontrou já desfeito o bloqueio holandês. Considerando a sua presença aí desnecessária, dirigiu-se para o golfo do Sião, decidido a vingar a perda da vida de Dom Fernando da Silva e do seu navio, cuja carga fora confiscada em 1624. Não esquecendo o papel dos japoneses nessa derrota, ordenou-se a queima dum junco japonês que içava a bandeira vermelha do Shogunato. Quando, no ano seguinte de 1628, as notícias deste ultraje chegaram ao Japão, a reação do Bakufu foi imediata e enérgica. Três das cinco galeotas portuguesas que se encontravam ancoradas em Nagasáqui foram embargadas, visto duas terem já partido e aos portugueses foi dito que as suas vidas e mercadorias seriam destruídas em retaliação, a não ser que rápida compensação chegasse de Manila. Em vão os 39 VOYAGE DE PYRARD DE LAVAL AUX INDES ORIENTALES ( 1601-1611), Tomme II, p.747 40 Boxer, Charles Ralph , «The Great Ship from Amacon», p. 17

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portugueses argumentaram que não eram responsáveis pelos desmandos dos espanhóis no Sião. Do Japão receberam como resposta: Espanha e Portugal faziam parte da mesma monarquia e desse modo os súbditos de ambas as Coroas podiam ser responsabilizados conjuntamente... 41 Já em 1629, o Senado de Macau, enfrentando a perda do lucrativo comércio com o Japão, implorou ao Governador de Manila, que fizesse pazes pela destruição do junco japonês, a fim de salvar as vidas e propriedades dos seus compatriotas e nesse mesmo ano chegaria a Goa o vice-rei de quem falámos, Dom Miguel de Noronha. Finalmente, em 1630, Dom Gonçalo da Silveira, irmão do Capitão-Mor de Macau, partiu para Nagasáqui, conseguindo obter o levantamento do embargo ao comércio português, sendo contudo ele próprio, a sua galeota e o anterior Capitão-Mor de Macau, António de Oliveira Aranha, compelidos a permanecer no Japão como penhor das dívidas contraídas pelos mercadores de Macau, as quais eram estimadas entre 200,000 e 600,000 cruzados. As restantes quatro galeotas e um junco partiram de Nagasáqui para Macau a 8 de Novembro. » Boxer faz ainda notar que o grosso desta carga era prata em lingotes e que nesse mesmo ano o vice-rei se queixava que os mercadores vindos de Macau para Goa, tinham desenvolvido o hábito de investir a maioria da sua riqueza em ouro e ouro em pó, para no caso de serem interceptados pelos holandeses conseguirem fugir para terra nos seus botes, realçando que o bloqueio dos estreitos de Malaca era tão eficaz que podia ser considerado como «um milagre do Céu» se alguma das galeotas de Macau conseguisse ultrapassá-lo42. Como se vê a situação não era famosa e a carga das tres naus que foram para o Reino na monção de Fevereiro de 1630 é anterior ao levantamento parcial deste desastroso embargo. A Inglaterra não deve por justiça aqui ficar esquecida, visto ser sempre muito invocada a sua condição de nossa mais velha aliada, aliança essa a mais antiga da Europa. Apesar de não ter reconhecido Filipe II de Espanha como rei de Portugal, logo a seguir à união das duas coroas, convenientemente passou a considerar os portugueses como súbditos espanhóis, arrogando-se sem pejo algum o direito de atacar com denodo possessões e navios portugueses. Em 1622, Ormuz, a Pérola do Oriente, que Afonso de Albuquerque chamara de «Terceira chave do Império» (a primeira seria Goa e Malaca a segunda) foi atacada com o incitamento e auxílio da Inglaterra, por uma flotilha do Xá Abas e seis embarcações aliadas inglesas, seguindo-se um cerco que terminou com a queda desta praça a 3 de Maio desse mesmo ano. 41 Boxer,Charles Ralph, idem, pp. 114 a 123 42 Boxer,Charles Ralph, idem, p. 124

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Em conclusão, somando ao antecedente o dito por Rivara, dificilmente é de aceitar que quaisquer objectos, e não só abanos ou leques, fossem naquele ano de 1630 embarcados em Goa originários da China ou Japão, para além dos que já lá estivessem e estes pouco provavelmente seriam da ordem de milhares após um prolongado embargo

Afinal o que eram as grandes quantidades de abanos da Lista de Goa? É fácil acreditar que englobados nas «Miudezas» possam ter chegado a Portugal, em 1630, objectos de abanar da China e do Japão, bem resguardados dentro de escritórios, caixas, amarradinhos, fardinhos ou trouxas de encomendas, contudo o único abano que encontrei inventariado nas três listas de carga de Goa dessa época não era de nenhuma dessas origens, como se verá mais adiante. Faço também notar que as senhoras de Goa, por volta de 1600, usavam leques que se assemelhavam aos europeus de Ferrara e não aos da China ou Japão 43 como é visível, por exemplo, em gravuras que ilustram as «Viagens na Índia» de Van Linschoten.

Servidora levando leque da senhora

43 Pedroso, Maria Luísa, BRISAS DE LEQUES, pp. 203-204

Mulher casada de Ferrara

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Pormenor da conhecida gravura do Mercado de Goa, que ilustra «A Viagem de Van Linschoten» (1596). Maneira de transportar as damas portuguesas num palanquim coberto quando chove, ou também em outras ocasiões, com as suas demoiselles d´honneur» (servidoras) Note-se que o leque da senhora transportada em palanquim coberto, totalmente escondida de olhares curiosos, é levado por uma das acompanhantes e o seu lenço por outra.

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Liteira ou Palanquim em que são transportadas a descoberto as senhoras e meninas portuguesas

Pyrard de Laval, por sua vez, relata que senhoras de elevada condição não transportavam nem o leque nem as demais coisas «de uso» sendo esses objectos levados por servidoras ou escravas, que chegavam a ser «quinze ou vinte»: «As mulheres ricas e nobres vão pouco à igreja, a não ser nos dias principais...Quando vão são levadas à igreja em palanquim o mais ricamente paramentado que é possível...Uma das servidoras ou escravas leva a rica alcatifa, outra as duas preciosas almofadas, outra uma cadeira da China bem dourada, outra uma bolça de velludo onde está o livro, lenço, e outras cousas necessárias, outra uma bela esteira mui fina para pôr por cima da alcatifa, outra finalmente o leque, e mais cousas do uso da senhora» 44.

44 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD DE LAVAL, Vol. II, Capítulo VI, pp. 80-81

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Mulher casada- O leque da mulher casada de Goa, que ainda conserva cabo , assemelha-se ao mais antigo leque italiano conhecido, representado na conhecida gravura de Vecellio nas mãos da «matrona Ferrarese» ou seja mulher casada de Ferrara, conhecido no seu país de origem como «a pie d´anitra», entre nós como pata de pato e ainda por «duck´s foot» ou « pâte d´oiseau».

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Mulher portuguesa dirigindo-se de noite para a igreja acompanhada do marido e escravos

Nesta gravura vê-se um leque na mão de uma senhora Lusitana, que não era de condição social superior, visto seu marido se deslocar a pé e não a cavalo: «Os homens de qualidade portugueses não andam senão a cavalo; e têm grande número de cavalos que vêm da Pérsia e da Arábia, os quais são bonitos e bons e se assemelham aos de Espanha, salvo serem mais pequenos.» 45

Insistindo na busca de abanos Devido a James Boyajian 46 mencionar «silk fans» numa carga de Goa de 1616, aliás por mim já referida num trabalho anterior, esperei aí poder encontrar abanos ou até leques de seda, mas acabei por verificar com certa desilusão que no «Título de Miudezas» do Caderno das Fazendas47 correspondente, nem leques de seda nem abanos desse material apareciam, o que não quer dizer, mais uma vez, que bem protegidos por entre outras valiosas e variadas miudezas, não pudessem também abanos e/ou leques ter sido enviados, mas se assim foi, deles não ficou notícia. No entanto, no «Título das Roupas E Sedas» encontrei «um caixao dabanos», sem qualquer indicação do material ou materiais de que estes eram feitos nem da respectiva origem, mas que por estar inventariado a coberto daquele título, 45 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD DE LAVAL, Vol. II, p 58 46 «Caderno das fazendas que leva esta naveta Santo António», 3 Feb. 1616» in Boyajian, James C., PORTUGUESE TRADE IN ASIA UNDER THE HABSBURGS 1580-1640, p.386, nota 90 47 AHU/CU/58/Cx.6/Doc.25

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provavelmente levou a que os abanos fossem erradamente identificados como «silk fans». Veja-se então: «Goa, 3 de Fev. 1616 Caderno das Faz.as que leva Esta Naveta Santo António que Deus Ds Salve... T.º das Roupas E sedas...Embarcou Fernão Jorge hú Caixao de ceda na Camara do Mestre a entregar a fran.co da Silvr.ª em sua auz.ª a lopo sanches de portalegre per Conta de hú amigo seu...» Assim começa o atrás referido Caderno, em cuja fólio 6 descobri finalmente abanos: «...Embarcou Ant.º Mendes na Camara do dispensr.º Coatro fardos de fiado a entregar a simão vas de sevilla. Embarcou o dito hu Caixão dabanos na Camara do do dispensr.º a entregar ao dito Simão vas...» Resulta portanto que os abanos embarcados por Antonio Mendes, guardados na Camara do dispenseiro, a entregar a «simão vas de sevilla» não eram de «ceda», mas vinham dentro de um caixão, por definição de dimensões maiores do que uma caixa. Igualmente se informa que Fernão Jorge embarcou na Camara do Mestre «hú Caixao de ceda». Daqui se pode concluir que estes abanos mas também algumas sedas, viajavam em caixões, estas últimas provavelmente por serem mais preciosas, já que outras eram expedidas acondicionadas apenas em fardos, portanto menos protegidas.

De trás para a frente Roupas, ontem como hoje, é como se designa tudo o que serve para vestir o corpo e cobrir cama ou mesa. A exemplo de como era ontem, atente-se no que segue: 501 Mandámos hora tomar conta a Paio Rodrigues, cavalleiro de nossa casa de todo aquello que recebeo tendo o cargo de feitor da roupa velha de Sã Jorge da Mina, desde os vinte e oito dias do mês de agosto de 1503...924 lambees de sortes, husados, velhos e delles rotos; e de 1600 aljaravias grandes e pequenas , tambem husadas; e bem assim outras roupas de cama e mesa, e vestidos 48 e cousas velhas... Dada em Punhete, a 7 de maio, johan de Barros a fez, anno de 1507.- Liv. 5º de Misticos, f. 28.» 49 «...CARTAS DE QUITAÇÃO DEL REI DOM MANUEL

48 «Lambel» era um pano de listras que servia para cobrir bancas e assentos, «lambees de sortes» eram peças de tecido e as «aljaravias» foram peças de vestuário, espécie de roupão com capuz e meias mangas, neste caso embarcadas na já apreciável quantidade de 1600 unidades, o que pode ser significativo como adiante se verá. 49 ARCHIVO HISTORICO PORTUGUEZ, Vol. IV, p. 479

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Em relação com abanas e abanos não posso ficar por aqui, já que foram também peças de roupa do Norte de África, «espécie de capas com que os mouros costumavam cobrir-se» 50, denominadas alquicés, que dessas paragens chegaram a Portugal em grandes quantidades, desde finais do século XV. Esses «abanos» podem parecer aqui pouco a propósito, até pela proveniência, mas deles falarei mais à frente, por só recentemente ter descoberto a razão que terá levado a chamarem-lhes abanos. Abanos de abanar, daquelas paragens, igualmente vieram para Portugal, mas não aos milhares, pelo menos que se saiba documentalmente, ao contrário do que aconteceu com os que correspondiam a peças de vestuário. Mas ainda, pelo menos desde 1572, está comprovado que abanos referiam igualmente golas plissadas ou pregueadas, denominadas primeiro «colarinhos de abanos» e de seguida «manteos de abanos» e «collares de abanos». O uso deste tipo de colarinhos terá mesmo começado por volta de 1550. Na terceira das cargas de naus que anteriormente referi encontram-se ainda muitos abanos, como segue: «T.º das Roupas E Cedas / Tittº das Caixas e frdos de Roupas qvão embarcadas nesta nao Nossa Sra de Jesus f.1...Embarcou Antonio dias de amaral duas Caixas e quatro fardos e m.º de Roupas na Camara do Carpint.º e Callafatte de Viagem a entregar as duas caixas e tres fardos a Jorge dias da Costa, Hu fardo a Rodrigo da Veiga, Hu meo fardo a franº mu iz solis... ...Embarcou Amador Pedrozo passagr.º dous Caixõezinhos dabanos, outro Caixão pequeno cõRetros, e hu fr. de Roupas na Camara do guardião aentregar assi mesmo... f3 v...tres Caixas de abanos a Inigo Lopes Cardoso... f4...Huã Caixa de abanos na L. de Gp.ar Roiz. A entregar aos mesmos por conta e Risco de Simão borges araújo m.or em Cochim... f.9...Embarcou Luis fr.º Sampayo dous Caixoes Hu de abanos outro deçeda na estrinca dirigidos a – digo Luis fõnseca Sãpayo... f.10...o de çeda a Dom Antonio dasylva... ...o de Abanos a Manoel fraº tinoco... f.12..Embarcou o dito Bertholomeu Sanchez Correa n a Camara do Meir., tres fardos, cinco fardinhos seis Caixoes entre grandes e pequenos de Roupas e çedas e tres quartos de abanos dirigidos... f.12 v…os tres quartos de abanos a Ant.º Sanchez... f. 33...Embarcou António Dias de Amaral m.ª barça de louça na Camara do Carpint.ro e Callafate de Viagê a entregar a Jorge da Costa... ...Embarcou Amador pedroso passag.ro fdo engumados de tabolr.os e hum escrit.º na Camara do guardião a entregar assi mesmo...»51 50 Pedroso, Maria Luísa, BRISAS DE LEQUES, pp. 243-244 51 Talvez por não ser comerciante mas passageiro, a quantidade de abanos embarcada por Amador Pedrozo cabia em apenas dois caixõezinhos. O mesmo passageiro Amador pedroso, cuja grafia varia no documento, embarcou na Câmara do guardião tabuleiros e um escritório, bem protegidos

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Perguntando-me se seria de excluir a possibilidade destes abanos terem sido objectos de abanar só por virem englobados no « T.º das Roupas E Cedas» e alguns deles até embalados conjuntamente com roupas e sedas, ao invés de resguardados como «miudezas», pareceu-me contudo que, só por isso, não se lhes deve retirar nem garantir essa possibilidade. É de considerar que a partir do terceiro quartel do século XVIII muitos, mesmo muitos leques, terão sido inventariados no meio de roupas e até grande variedade de outros objectos, em numerosíssimas Listas de Carga de Macau, mas muito menos comum é encontrá-los embalados em conjunto com outras mercadorias, apesar de ter havido casos em que tal ocorreu, como o que segue: «P.r Importancia dos fretes, Direitos, e mais Despezas, feitas com o Despacho das suas fazendas F. F. livro 26 1787 f. 54 Filipe de Oliveira Lobato, & Capitão Victorino Correa __________Deve P.r a importância dos fretes Direitos, e mais Despezas, feitas com o Despacho das suas fazendas, vindas de Macau em o Navio S. Luiz, e S.ta Maria Magdalena ... ...1 Caixa com 145 ps. de Cangas de Cores, e 9 p.s de ditas em 1 Caixote de Leques......... 1.º f. 139___ 34$747 » Vê-se neste exemplo que «9 pessas de Cangas» (cangas ou gangas, tecidos de algodão grosso de proveniência chinesa) vinham num caixote de leques. Regresso aos abanos mencionados no « T.º das Roupas E Cedas-Tittº das Caixas e fr dos de Roupas qvão embarcadas nesta nao Nossa Sra de Jesus», para constatar que os mesmos vieram acomodados em caixõezinhos, caixas, caixões, entre grandes e pequenos. Uma referência a tres quartos de abanos, penso que corresponderia ao espaço que ocupavam na embalagem e pelo qual pagariam as taxas alfandegárias correspondentes. Foi preciso percorrer quase toda esta Lista, para finalmente me aparecer um abano seguramente de abanar, o que me soube a prémio, de certo modo merecido: «...f. 37.v...Embarcou João Machado huã trouxa cõ duas colchas, dous Canequis huã beitilha huã pessa de vollante huã esteira de Seillão e hum abano de marfim no gs. do Capitão derigido a Diogo mendes...». O abano de marfim vinha no «gasalhado» 52 do Capitão, e julgo legítimo associá-lo a Ceilão, por se conhecerem a partir de meados do século XVI abanos, ventarolas e os

como miúdezas que eram, o que leva a perguntar porque não teriam os seus dois caixõezinhos de abanos tido a sorte dos tabuleiros, que íam até num fardo de «engumados».

52 GASALHÁDO, s. m., Agasalhado, camarote, beliche. M. P. c. 61 « arrasar todas as obras dos gasalhados...tudo foi fora até a primeira coberta» n´estes gasalhados concedidos aos officiaes das náos vinha carga, e ás vezes com excesso, que desarrumava as naós, ou as pejava na mareação, e por isso forãm prohibidos, Alv. de 8 de Março de 1618» in MORAES DICCIONARIO DA LINGUA PORTUGUESA, 1844

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ainda mais raros leques de marfim desta origem, mas infelizmente o tipo do abano que foi embarcado por João Machado não é reconhecível, salientando contudo ser o primeiro que encontro numa carga de navio já do século XVII. Junto havia ainda duas colchas, dois «canequis» (ou canequins, lençaria de algodão fino da Índia), uma «beitilha» (ou beatilha que era de tecido muito fino e a que deram este nome por ser usada por beatas e freiras) e uma «peça de volante» (tela muito rara de linho ou de lã). Aqui chegada, sinto ser altura de revelar o que acredito podem ter sido realmente os milhares de abanos contantes da tão dissecada Lista de Goa:

Primeira hipótese: Abanos da Índia (denominados genericamente «pankhas»)

No actual SryLanka (Ceilão) estes abanos conservaram até aos nossos dias o nome de avana enquanto que os que se fazem na costa de Guzarate são denominados Vinjino. Na Índia, os «pankha» de grandes dimensões eram destinados a ser movimentados por servidores, proporcionando a movimentação de ar refrescante a mais de uma pessoa, afastando moscas e ainda para culto religioso, mas pequenos abanos, de uso pessoal, serviram também para os mesmos fins. As formas, materiais e tamanho destes objectos variaram sempre, não só consoante a região onde eram manufacturados e funções que iriam preencher mas, evidentemente, conforme a importância dos utilizadores e assim, diante de tanta variedade, duma designação tão genérica como a de apenas abanos nada é licito concluir. Os «pankha» (palavra que significa asa), são hoje produzidos na Índia em grandes quantidades, como nos indica o pintor Jatin Das 53, grande coleccionador destes objectos : « … Os abanos destinados ao uso corrente são confeccionados nos mais diversos materiais: tecido, coiro, palha, bambu, folhas de palma, assim como muitas espécies de fibras naturais, consoante o que a vegetação local produz. Durante o inverno, em Janeiro e Fevereiro, os comerciantes fornecem as matérias primas aos camponeses; serão trabalhadas e transformadas em abanos nos meses seguintes até à estação das colheitas...Os abanos simples e mais comuns são produzidos em grande quantidade.» Na descrição que segue pode apreciar-se como os portugueses de Goa 54 e da Península Ibérica, nos século XVI e XVII, utilizavam estas variedades de abano: « Uma das recreações dos portugueses de Goa, é juntarem-se às suas portas com cinco ou seis vizinhos assentados à sombra em belas cadeiras para praticarem; e estão 53 INDISCHE FACHER- Die Pankha, Sammlung von Jatin Das, Museum Rietberg, Zurich, 2005 54 VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD DE LAVAL,Vol. II, Capítulo VII, p. 89 (Versão portuguesa por Rivara, J. H. da Cunha, 1862 )

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todos em camisa e calções, com muitos escravos ao redor de si, dos quais uns os abanam e lhes enxotam as môscas…e enquanto comem, têm escravos que os abanam e enxotam as de cima dos manjares, porque aliás seria dificultoso não engolir algumas destas môscas, de que há grande abundância por toda a Índia.» Abanos em forma de bandeirola, de palma da Índia, igualmente terão sido usados na época na Península Ibérica para duas funções distintas, como se diz em: «Inventário de los biennes muebles- excepto tapices y armaduras- que se dejó a su muerte don Felipe II» 12 de Outubro de 1598... ...4795- Dos ventalles de palma , de bandera, de la Yndia, com palos negros e remates de marfil, guarnecidos de tafetanes de colores; gastaráronse el uno en la capilla y el outro en la cámara, 204. Recebió el uno que se yasó en 6 reales./ Idem.» 55

Antes de prosseguir, relembro que Cunha Rivara explicitou bem, como já vimos atrás, que a mercadoria embarcada em 1630 nas três naus que vieram para o reino de Portugal, na monção de Fevereiro de 1630, não provinha da costa de Coromandel, Estreitos ou China «...posto que na lista appareça um ou outro objecto dessas partes, que devia estar em Goa, onde nunca faltava provimento...». Este autor dedicou-se ainda a fazer um interessante estudo, o de agrupar as diversas mercadorias que a Lista de Goa continha, dividindo-as por vários titulos, a saber: PANNOS, VARIOS ESTOFOS, MATERIAIS DE ESTOFOS, DROGAS, LENHOS e COUSAS VARIAS. Entre estes, interessam ao presente assunto dois, um por incluir peças de vestuário e o outro abanos. O primeiro é: «VARIOS ESTOFOS...Alcatifas, Bancais, Cobertores, Colchas brancas, Colchas grossa, Colchinhas, Franja, Godoris ou Godrins, Lailos(a), Penteadores ,Sobrepellizes, Tapetes...(a) Não conseguimos identificar mercadoria, mas pelo modo de ser contada, em serie numerica indivídual, talvez fosse algum estofo especial...» Mais de meio século depois, esta identificação revelou-a Dalgado no «GLOSSÁRIO LUSO ASIÁTICO», onde faz a correspondência de Lailo56 a uma fazenda ou algodão indiano. Se Cunha Rivara de tal tivesse tido conhecimento Lailos teriam sido por ele incluídos em «PANNOS» e não em «VARIOS ESTOFFOS», porque estes não eram tecidos mas sim uma grande variedade de manufacturas tais como: alcatifas, bancais (tapetes ou cobertas que se punham sobre os bancos), colchas, colchinhas, franjas, godoris (godrins, godorim ou goderim, colchas estofadas da Índia) e mesmo peças de roupa como os penteadores (espécie de roupão com que se 55 CANTÒN VOL. II 56 «LAILO (ant.). Designação de um estôfo indiano, que figura na lista de 1630 tantas vezes mencionada. Se a fazenda era encarnada, o vocábulo ligar-se ia provávelmente ao persa lal, «encarnado», corrente na Índia. Mas, conforme Watt, lalio é o nome do algodão de Cambaia. Neste caso, o vocábulo deve provir do guzarate; os seus dicionários, porêm não o registam» in DALGADO, Glossário Luso-Asiático.

33 cobria quem era penteado por criados ou barbeado) e sobrepellizes (vestimentas eclesiásticas brancas, que se enfiavam pelo pescoço e o cobriam até meio). Saliento tudo isto sobre «Lailo», não com relação directa a abanos, mas por ser representativo de tantas palavras que andaram esquecidas, até um dia alguém as fazer reviver, às vezes deturpadas, como acontece em traduções onde se lhes atribui, com ligeireza, o significado conhecido ou corrente na época do tradutor, ignorando-se aquele que realmente teve originalmente. No seguimento poderá avaliar-se em concreto o que aqui refiro. O título onde Cunha Rivara incluíu os abanos foi «COUSAS VARIAS», obviamente afastando-os de peças de roupa, portanto não os colocando a par de «sobrepelizzes» ou «penteadores», mas de: «...Abanos, Bahús, Bofetes,Coiros, Caixões dourados, Cauri, Cofres da China, Contas de cristal, Esquifes, Escritorios, Jarras d`agua de canella, Louça, Papeis de seda, Pavilhões, Pentes, Taboleiros, Tendas de campo, Xavilhões ou Chavelhões...» Aqui chegada pareceu-me que este autor, que foi profundamente conhecedor das tradições seculares da Índia, por onde muito viajou, e entre estas do uso de abanos artesanais muito variados, originários de diferentes regiões, não duvidou em aceitar a enorme quantidade de abanos constante na Lista de Goa como sendo objectos de abanar, aliás semelhantes aos que viu por todo o lado, quando nesta cidade habitou durante 22 anos, no exercício do cargo de Secretário-Geral do Governador-Geral do Estado da Índia, o que o coloca na condição natural de apoiante desta primeira hipótese.

Fim da primeira parte

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