SERVIÇOS PÚBLICOS URBANOS E AS SOBRETAXAS POR EXCESSO DE CONSUMO OU DESPERDÍCIO: BREVE NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE UM TEMA ESQUECIDO

Share Embed


Descrição do Produto

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

1021

SERVIÇOS PÚBLICOS URBANOS E AS SOBRETAXAS POR EXCESSO DE CONSUMO OU DESPERDÍCIO: BREVE NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE UM TEMA ESQUECIDO

Luiz Henrique Antunes Alochio Doutor em Direito da Cidade pela UERJ

Sumário: 1. Apresentação do problema. 1.1. Qual a natureza jurídica da sobrecobrança? Eis o nosso problema. 2. O acesso aos serviços públicos. 3. A figura jurídica das sobrecobranças. A doutrina. A jurisprudência. Nossa discordância. 3.1. Direitos fundamentais e deveres fundamentais. 4. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. 5. Análise dos critérios utilizados para a sobrecobrança: razoabilidade e proporcionalidade. 6. Conclusões. 7. Referências bibliográficas.

1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA Tema pouquíssimo estudado na literatura jurídica em língua portuguesa, que sem dúvida passará a dominar as questões relativas aos serviços públicos – sejam eles prestados diretamente pelo Poder Público, por suas empresas estatais/ delegatárias, ou mesmo por concessionárias –,1 diz respeito à questão dos adicionais de cobrança realizados diante da ocorrência de certos fatos especiais. Muito particularmente, a questão desses adicionais estará presente dentre aqueles serviços públicos passíveis de serem mais profundamente afetados pela relação disponibilidade–necessidade–escassez. Cabe reconhecer

que os juristas2 não atentamos muito – na realidade nos preocupamos muito pouco – para a relação necessidade–escassez. De fato, acreditamos que essas ponderações são metajurídicas: coisa para economista ou sociólogo. Nada obstante, quem assim se mantiver pensando demonstrará um enorme atraso metodológico. Não que o direito esteja submisso, por exemplo, à economia; longe de nós tal afirmação. O que pretendemos esclarecer é que a arte jurídica não existe por si, existe para dar respostas sociais, e dentre os problemas que deve regular estão questões de conteúdo ou de viés econômico. Se já tivéssemos – os juristas – olhado

1. Todas as vezes que fizermos referência às concessionárias, estaremos denominando um ambiente de concessão-padrão, como o fazem Justen Filho e Eros Grau. Portanto, excluímos da noção de concessionárias as empresas estatais (sejam elas sociedades de economia mista ou empresas públicas), posto que são, via de regra, meras delegatárias. Para a distinção entre concessionária e delegatária, remetemos o leitor às obras seguintes: Marçal Justen Filho, Teoria Geral das Concessões de Serviços Públicos, São Paulo, Dialética, 2003; Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 10ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005. 2. Usamos o termo jurista despido do pedantismo que adquiriu no uso corrente. Usamo-lo em preferência à expressão operadores do direito. Quem trabalha o direito não o opera simplesmente, pensa-o criticamente. O mero operador jurídico, se existe, anda muito mal em sua profissão. Por isso, o jurista – que todos nós somos, independentemente de grau acadêmico ou de formalidade – tem o dever de usar o direito pensando-o.

1022

BDA – Boletim de Direito Administrativo – Setembro/2009

para a noção de escassez com a preocupação e a atenção devidas, todas as discussões que travaremos neste breve artigo seriam absolutamente desnecessárias. Tão desnecessárias que para um economista boa parte do que está sendo aqui apresentado não passa de um amontoado de obviedades: uma lição singela de começo de curso. Avaliaremos a seguir a questão das denominadas sobretaxas ou também chamadas sobretarifas. Para não criarmos, desde cedo, neste artigo, uma disputa de “nomenclaturas” (se os serviços públicos são remunerados por taxas ou por tarifas/preços públicos), doravante iremos usar a seguinte denominação para o problema analisado: sobrecobrança (que abarca tanto o preço/tarifa quanto a taxa). Esse problema da sobrecobrança ocorre – para que possa ser legitimado juridicamente – em certos casos especiais em que o fornecimento de um serviço público está gravado pela escassez, ou quando um determinado nível de consumo excede àquele padrão que razoavelmente se possa considerar como necessidade. Sintetizando, as sobrecobranças ocorrem em caso de desperdício, de uso desconforme e em época de escassez.

1.1. Qual a natureza jurídica da sobrecobrança? Eis o nosso problema Para alguns autores, as sobrecobranças pelos serviços públicos teriam a natureza jurídica de tributo. Há aqueles que defendem que essas sobrecargas monetárias mantêm a condição da taxa – para os que defendem a cobrança de taxas em decorrência da prestação de alguns serviços públicos. Há outros que admitem que, in-

dependentemente da natureza da cobrança original, o valor do plus, em realidade, caracteriza um verdadeiro imposto. Para os que defendem a natureza de tarifa nas remunerações pela prestação de serviços públicos, o plus manteria a mesma natureza jurídica de preço/tarifa. A pretensão deste artigo é demonstrar, no pequeno espaço de que dispomos, que as sobrecobranças por serviços públicos têm, em verdade, natureza sancionatória; e, principalmente, analisar o ponto em que o consumo de serviço público passa a ser visto como ato juridicamente reprovável (portanto, passível de incidência de sanções negativas). 2. O ACESSO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS A acessibilidade aos serviços públicos – particularmente aos serviços tidos como essenciais – é gravada pelo chamado princípio da continuidade dos serviços públicos: tanto quanto possível, o fornecimento de tais serviços não poderá ser interrompido, e sua fruição por parte da população deverá ser permitida e até mesmo incentivada. Em determinados casos, esses serviços públicos poderão ter sua fruição feita de forma coativa, tamanha a relevância que revestem os interesses por detrás desses serviços.3 Muito comumente notamos decisões judiciais que fazem uso do princípio da continuidade dos serviços públicos para determinar a manutenção da prestação dos serviços mesmo em casos de inadimplência do consumidor. Aliás, não é novo o socorro ao argumento do princípio da continuidade dos serviços públicos para que se mantenha o fornecimento de um serviço. Não se faz a

3. No serviço público de saneamento básico existe o consumo compulsório dos serviços prestados pelo sistema “público” onde este for disponível. Ou seja, havendo serviço público de esgoto, não podem coexistir fossas; havendo água tratada, não podem coexistir os poços. A “ligação” dos prédios à “rede pública” é obrigatória, sob pena de ser negado o “habitese” ao prédio (ou ser cassado o “habite-se” posteriormente à infração). Não bastando isso, é suficiente a disponibilidade do serviço para ocorrer sua cobrança. Invariavelmente, todos os “Códigos de Obras”, “Códigos Sanitários” e legislações correlatas municipais e estaduais têm regras desse tipo. Mudam alguns detalhes, mas a essência destas regras continua a mesma: a compulsoriedade. A mesma compulsoriedade que veio repetida na Lei federal nº 11.445/07: Art. 45. Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da entidade de regulação e de meio ambiente, toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços. (...) § 2º A instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de água não poderá ser também alimentada por outras fontes (grifamos).

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

1023

distinção, lastimavelmente, quanto aos possíveis casos de devedores contumazes. Não se podem tratar da mesma maneira as diversas hipóteses de inadimplência. Tomemos, à guisa de exemplo, dois casos de inadimplência para com os serviços públicos:

A noção de continuidade dos serviços, em caso de inadimplência, impede, tão-somente, o abuso de direito inverso, qual seja, o uso, por parte do prestador de serviços, do corte ou suspensão de fornecimento apenas como coação para a cobrança.

a) Uma dona de casa inadimpliu por doze meses as contas pelo consumo de um dado serviço público por estar desempregada. Há três meses conseguiu um emprego. Após empregar-se e receber um salário, passou a pagar rigorosamente em dia o mês corrente das respectivas contas e as mantém em dia. Nesse caso, seria possível o uso do corte ou da suspensão apenas como forma de coação para a adimplência dos meses passados?4

No caso de contumaz inadimplência (especialmente se o consumidor/contribuinte denota capacidade contributiva), a continuidade dos serviços não dá azo à manutenção da prestação! É caso típico de aplicar o raciocínio ponderativo, mesmo porque a inadimplência generalizada (que daí decorreria) seria perniciosa, afetando a manutenção dos serviços, mesmo para os adimplentes.

b) Uma grande empresa, inadimplente há um ano, com lucro imenso e consumo altíssimo, que utiliza a água como matéria-prima de seus produtos, mas que deseja manterse na condição de inadimplente contumaz.5 A supressão do fornecimento é caso extremo. Não se pode generalizar com as hipóteses de cabimento da suspensão de fornecimento. Para o caso de suspensão de fornecimento é essencial, concessa venia das opiniões diversas, a avaliação das possíveis situações de abuso de direito, particularmente quanto ao uso do princípio da continuidade dos serviços simplesmente para escamotear a pura e simples vontade de inadimplir com os pagamentos devidos.

A essência – a ratio essendi – da continuidade dos serviços públicos visa a algo muito mais ético do que garantir serviços aos inadimplentes contumazes. Para tal conclusão devemos recordar a razão mesma do princípio, que envolve os elementos seguintes: a) o reconhecimento de um interesse público naquele específico serviço; b) o reconhecimento de que o serviço atende a algo além da vontade de um consumidor individual (ou grupo de consumidores individualizável ); c) o reconhecimento de que o serviço, atende, isto sim, ao interesse público, pois da correta e eqüitativa fruição de certos serviços depende, por via mediata ou imediata, a própria qualidade de vida da comunidade.

4. Fazemos, nesse caso, uma analogia. Usualmente, a possibilidade de suspensão de fornecimento, como via de exceção, é justificável, pois a inadimplência contumaz pode acarretar a perda da seriedade da cobrança, instigando todos à mesma inadimplência. Com isso, ficaria comprometida a própria sustentabilidade econômica da prestação dos serviços. Do mesmo modo ocorre com as ações de alimentos. Caso não houvesse, ainda hoje, a prisão civil do alimentante inadimplente, a quantidade de alimentados desassistidos seria enorme. Tal como as tarifas para o serviço público, o pagamento dos alimentos serve para dar sustentabilidade econômica ao alimentando. Com uma agravante: falamos aqui de fome! Ocorre que, se o alimentando negligenciar na cobrança das prestações de alimentos, não poderá socorrer-se tão amplamente da via excepcional da prisão civil. A jurisprudência pacificou no sentido de que, em sendo depositados pelo alimentante os últimos três meses em atraso e mantidas em dia as parcelas futuras, os demais valores retroativos devem ser perseguidos pela via executiva tradicional, sem aplicação da prisão civil do alimentante – vide Súmula nº 309 do STJ. Mutatis mutandis, a medida de força excepcional da suspensão de fornecimento não se pode usar apenas como coação para quitação de inadimplências pretéritas. Se, porventura, as faturas atuais estiverem quitadas, não se pode suspender o fornecimento para coagir os pagamentos dos meses pretéritos. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Agravo de Instrumento nº 676.901, relator Ministro José Delgado, que “o corte de água potável pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, em relação aos quais a companhia deve utilizar-se dos meios ordinários de cobrança, não se admitindo qualquer espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do CDC”. 5. Nesse sentido decide o STJ, no que citamos, por exemplo: “A nossa legislação permite o corte de fornecimento de energia elétrica quando o consumidor ou o insumidor é devedor contumaz, (...)” (EmbDREsp. nº 598970, rel. Ministra Denise Arruda, publ. em 13.9.05).

1024

BDA – Boletim de Direito Administrativo – Setembro/2009

Nada melhor para ilustrar nossa argumentação – repetimos – que o exemplo dos serviços de saneamento básico (água e esgoto, especificamente). O uso e a fruição do serviço de abastecimento domiciliar de água potável atendem não apenas aos moradores de uma residência ou aos empregados de uma edificação empresarial. O uso desse serviço público protege a coletividade, pois, se água de fonte duvidosa estivesse sendo consumida, aquelas pessoas consumidoras seriam potencialmente freqüentadoras do serviço público de saúde (gerando superlotação de hospitais e alto custo de tratamento, além de deixarem vagos os seus postos de trabalho, p. ex.). Além disso, a água de péssima qualidade poderia fazer de seus consumidores vetores de transmissão ou de proliferação de enfermidades, podendo contaminar outras pessoas, entre tantos outros reflexos. O mesmo se diga (com ainda mais razão) quanto ao serviço de esgoto. Sob o signo de tais constatações, a legislação reconhece no saneamento um serviço público essencial. E o grava com o princípio da regularidade não porque os consumidores individuais tenham o direito de consumir – ao contrário, muitas vezes, têm o dever de fazê-lo –, mas porque a coletividade demanda uma proteção quanto à sua salubridade. A partir dessa premissa, podemos seguir com a análise das sobrecobranças por certos serviços públicos. 3. A FIGURA JURÍDICA DAS SOBRECOBRANÇAS. A DOUTRINA. A JURISPRUDÊNCIA. NOSSA DISCORDÂNCIA

atendimento aos distintos segmentos de usuários. A sobrecobrança não terá como nascimento nenhuma questão técnica do serviço ou de custo específico da prestação. Mesmo não se tratando de acréscimos decorrentes das características técnicas e dos custos, as sobrecobranças são válidas. Elas não violam o caráter sinalagmático desses pagamentos. Ocorre que a situação não é assim tão simples. Não se pode olhar a sobrecobrança com uma lente tão simplória. “Não há almoço grátis”, como também não pode haver, para temas sofisticados, respostas jurídicas de afogadilho. O tema das sobrecobranças recebeu atenção da melhor doutrina financeira e tributária que analisou essa questão. Citamos, por todos, o escólio do Professor Doutor António L. de Sousa Franco, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa e ex-Ministro das Finanças de Portugal, que sentencia: “3º – As sobretaxas sobre consumos excessivos (...) têm natureza discutível. Cremos que se trata de verdadeiros impostos – no caso incidentes sobre o consumo (...). Visa-se com elas mais restringir um consumo do que punir actos que não são censuráveis nem puníveis (excesso de consumo (...)): têm fins financeiros e extra-financeiros (de política), não fins punitivos”.6

Ainda tomando o saneamento básico como ponto de reflexão, veremos que as sobrecobranças são situações nas quais o custo de uma prestação de serviços poderá ser acrescido não em razão do próprio serviço. Com isso, parece que se estará violando a Lei de Concessões, que assim prescreve em seu art. 13:

Entendia o autor que o valor da sobretaxa, não estando vinculado ao serviço em si, não poderia ser taxa (nem tarifa). E, se o consumo não era ato ilícito, não poderia ser sanção; logo, deveria ser um imposto.7 Em situação ocorrida em Brasília, o Supremo Tribunal Federal, mediante voto da Ministra Ellen Gracie, reconheceu a natureza de tarifa quanto à sobrecobrança realizada pelo consumo de água no período de estiagem. No julgamento do AgRgRE nº 201.630, nossa Corte Constitucional assim se pronunciou:

Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do

“Serviço de fornecimento de água. Adicional de tarifa. Legitimidade. Mostra-se coerente com a jurisprudência do Supremo Tri-

6. Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, 4ª ed., 9ª reimpr., Coimbra, Almedina, 2002, p. 79. 7. No Brasil também vigora a lógica de que as cargas financeiras ou são preços, ou tributos, ou sanções por ato ilícito. Fora essas categorias, a imposição seria ilegítima. Por todos, citamos Sacha Calmon Navarro Coelho: “(...) se o Estado, tirante a sua condição de contratante ou donatário, não está nem arrecadando bens pecuniários vacantes, nem recebendo multas, nem sendo indenizado em tempo de guerra ou paz, nem percebendo pecúnia ex contratu, tudo o

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

bunal o despacho agravado, ao apontar que o ajuste de carga de natureza sazonal, aplicável aos fornecimentos de água pela CAESB, criado para fins de redução de consumo, tem caráter de contraprestação de serviço, e não de tributo” (publ. no Diário da Justiça em 2.8.02). No voto, a Ministra Ellen Gracie deixa patente que o aumento de valor objeto da discussão tratava-se de um ajuste de carga de natureza sazonal, aplicável aos fornecimentos de água pela CAESB, criado para fins de redução de consumo. Apesar disso, a Srª Ministra entendeu tratar-se de um acréscimo de tarifa. Nesse caso, particularmente, incide nossa discordância tanto com a posição tributária quanto com a vertente tarifária. Passamos a expor o nosso ponto de vista. Diante da sazonalidade, que implicou período de escassez de água, o sobrevalor de cobrança criado por lei tende, teleologicamente, à proteção da coletividade de consumidores – interesse público primário –, evitando o excesso de consumo pessoal egoístico, que possa acarretar – em razão da própria escassez sazonal – o impedimento de um consumo eqüitativo pelos demais citadinos. A intenção do aumento de valor não seria proporcionar um acréscimo de tarifas, muito menos um adicional de taxas. Nem seria visando à tributação, mediante imposto novo, pelo ato privado de consumir serviços. A intenção foi – às escâncaras – proteger a coletividade consumidora, e não onerar o consumo individual. Voltemos à noção de continuidade da prestação dos serviços públicos. A contínua fruição dos serviços, certamente, pode ser violada pela paralisação no fornecimento, imputável ao prestador. Contudo, a fruição também pode ser violada por culpa dos consumidores. Ora, o consumo excessivo de água ou o uso da água que não seja para o consumo humano (beber, preparar

1025

alimentos etc.), em determinados períodos – particularmente em época de seca –, acabaria equiparando-se a um ato potencialmente causador de impacto negativo na eqüitativa acessibilidade ao consumo; logo, como o acesso ao consumo pode ser violado, por alcance irrestrito e sem controle de uma classe de consumidores, teríamos como resultado o ferimento do direito fundamental à saúde, que decorre do saneamento.

3.1. Direitos fundamentais e deveres fundamentais A doutrina muito tem produzido sobre o conceito e o conteúdo dos direitos fundamentais; porém, por razões políticas, deixou-se ao esquecimento a relevante noção dos deveres fundamentais.8 Tanto que a noção de dever constitucional passou a ser entendida como mero limite imanente de um direito constitucional; na verdade, os deveres têm tanta autonomia quanto os direitos e, por isso, merecem uma produção acadêmica mais vigorosa. E, antes que ataques menos avisados venham a ocorrer, ao falarmos de deveres fundamentais não estamos avalizando nenhum tipo de Estado de exceção ou ditatorial: ocorre, apenas, que a relação cidadão–Estado ou cidadão–cidadão não pode ocorrer apenas sob a regência do signo dos direitos, até porque a outorga de um direito demanda, sempre, o correlativo dever; ou mesmo o exercício de um direito traz consigo embutido um dever! Não apenas um limite, mas um dever. No caso de serviços públicos, o acesso ao serviço é um direito fundamental (por vezes chega a ser um dever imposto em lei);9 porém incide o necessário respeito ao dever fundamental de consumir responsavelmente. Afinal, o consumo irresponsável poderá ser – como de fato é – a causa de faltar condições de acesso para outros consumidores. Violado o dever fundamental de consumir responsavelmente, podem incidir sanções, dentre elas, uma sobrecarga monetária a título de sanção desestimulante.

mais que entra como receita, excluídas as ‘entradas’ de caixa, tais como cauções e fianças, ou é tributo ou é enriquecimento sem causa” (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 391). 8. Sobre o tema, consultar José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo, Coimbra, Almedina, 1998. 9. Nas áreas urbanas servidas pela rede pública de água, o acesso à rede não é um direito. É dever, inclusive vedando-se o uso de fontes alternativas, como decorre da Lei federal nº 11.445/07.

1026

BDA – Boletim de Direito Administrativo – Setembro/2009

4. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Como pudemos referir, a sobrecobrança não se faz por razões econômicas, mas, isto sim, por razões de fixação de respeito ao dever fundamental de um consumo socialmente responsável. Queremos com isso afirmar que a sobrecobrança não afronta a legislação de proteção ao consumidor, ou, quando for o caso de cobrança de taxas, a legislação de proteção ao contribuinte. Vejamos, apenas a título de ilustração, a questão do art. 13 da Lei federal nº 8.987/95, a qual prescreve que as “tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários”. A regra é claramente protetiva dos usuários dos sistemas de serviços públicos, aliás, é aplicável, mutatis mutandis, tanto para taxas quanto para tarifas. Como na sobrecobrança a variação da “cobrança” não se dá por conta de nenhuma “característica técnica” ou por “custos específicos” relativos ao próprio serviço, mas por conta de um fato exógeno (escassez ou desperdício), poder-se-ia cogitar, em tese, a violação de qualquer legislação consumerista. Mas devemos objetar que a fiscalização do consumo responsável será tão protetiva dos consumidores/usuários quanto a regra do art. 13. O valor da sobrecobrança, quando bem aplicado (frise-se que há, invariavelmente, uso abusivo dessa forma de cobrança apenas para aumento mascarado de preços/taxas), servirá para que “quem pode pagar muito” não faça, por meio de desperdício ou em tempo de escassez, aquele menos favorecido ficar alijado do acesso ao próprio serviço. Analisada a questão da ratio essendi das sobrecobranças, verificamos que não ocorre um simples “acréscimo de preços”. Ocorre, isto sim, a aplicação de uma técnica sancionatória de desestímulo ao consumo irresponsável. Visa-se não ao enriquecimento do prestador de serviços, mas à tentativa de impedir que o consumi-

dor exceda os limites de fruição de um dado serviço em tempo de escassez, para que o seu ato de consumir não seja a razão da (ou um potencializador) impossibilidade de consumo dos demais. Em casos que tais resta inaplicável o Código do Consumidor quanto à fixação das sobretarifas (ou sobretaxas). A questão que resta responder (e não buscaremos a resposta, agora, pela razão do pouco espaço e da finalidade introdutória deste texto) é atinente ao destino a ser dado à verba da sobrecobrança.10 5. ANÁLISE DOS CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A SOBRECOBRANÇA: RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE Ao referirmos que a sobrecobrança encontra respaldo legal e constitucional, e, ainda, que não fere o Código do Consumidor, não estamos declarando que a fixação das sobrecargas financeiras poderá ocorrer livremente e sem controle. Peias e limites há! E a controlabilidade dessas sobrecobranças ocorrerá por meio dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade. Os critérios para acréscimo de valor não serão puramente discricionários nem aleatórios; devem ser critérios técnicos, ainda que se permita a discricionariedade técnica. A alternativa da sobrecobrança apresenta-se enquanto via excepcional de quantificação de valores. Por isso mesmo a sindicabilidade a respeito da retidão dos critérios fixados para a elevação de taxas e/ou tarifas ocorrerá de forma muito vigorosa. A discrição técnica tanto permite a sindicabilidade em casos de excessos quanto resguarda (segurança jurídica) o prestador de serviços, nos limites de liberdade inerente à discrição técnica, na fixação de critérios válidos. 6. CONCLUSÕES Postas essas considerações, e levando em conta o espaço de que dispúnhamos, finalizamos o presente texto com as seguintes conclusões:

10. Como salientamos, a sobrecobrança não visa à remuneração do serviço prestado; logo, sua destinação não deveria ser o cofre do prestador de serviços. A questão financeira seria mais bem resolvida com a afetação dessa receita à melhoria do sistema de prestação dos serviços, ou seja, aplicação para fins de mitigar a fonte da própria escassez que gerou sua cobrança. Diga-se, ainda, o valor arrecadado, além de não poder ser destinado ao cofre do prestador de serviços, no caso de serviços concedidos, as obras ou investimentos realizados com esses valores (se tiverem a destinação afetada, como proposto) devem ser reversíveis ao Poder Público sem nenhuma indenização (afinal, não foram feitos com dinheiro do concessionário).

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

a) os serviços públicos guardam, intrinsecamente, um dado valor inerente à coletividade. Não necessariamente o valor dos serviços públicos corresponderá ao interesse individual do seu consumidor, mas ao interesse da coletividade na existência daquele serviço; b) a fruição dos serviços públicos deve levar em consideração o dever fundamental referente ao uso e gozo responsável de tais serviços, evitando que o excesso de fruição por uns poucos possa ser fonte de problemas para a fruição dos demais membros da coletividade; c) os serviços públicos devem preocupar-se com a questão da escassez, fixando parâmetros de fruição individual para períodos de possível falta de condições de prestação e para evitar a questão do desperdício individual; d) as sobrecobranças podem ser instrumentos de inibição de consumo impróprio dos serviços públicos; e) as sobrecobranças podem ser aplicadas tanto a casos de remuneração mediante taxa quanto a casos de remuneração por meio de tarifa; f) a questão das sobrecobranças não se confundirá com a discussão sobre a natureza jurídica (taxa ou tarifa) da remuneração dos serviços públicos: as sobrecobranças serão sanções por ato ilícito, decorrentes de uso indevido, supérfluo ou desperdício, de forma que viole o dever fundamental de consumir responsavelmente. g) a questão das sobrecobranças não será a criação de um imposto novo sobre o ato privado de consumir serviços públicos; h) as sobrecobranças, quando utilizadas em conformidade com as possibilidades do sistema legal vigente, serão, em qualquer caso, uma sanção pelo descumprimento do dever fundamental de usufruir responsavelmente um serviço público. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. “O problema da concessão de serviços públicos em regiões metropolitanas: (re)pensando um tema relevante”, in Revista Interesse Público nº 24, Porto Alegre, Síntese, mar./abr. 2004. ____. “A problemática do enquadramento jurídico da remuneração dos serviços de saneamento básico (água e esgoto): taxa ou tarifa/pre-

1027

ço público?”, in Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico nº 6, vol.1, jun./jul. 2006. ____. Direito do Saneamento: Introdução à Lei de Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico (Lei Federal n. 11445/2007), Campinas, Millennium, 2007. ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O Direito dos Resíduos, Coimbra, Almedina, 2003. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 676.901, relator Ministro José Delgado, Diário da Justiça da União, Brasília, 1º.7.05. ____. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 598. 970, relator Ministra Denise Arruda, Diário da Justiça da União, Brasília, 13.9.05. ____. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 201.630, relatora Ministra Ellen Gracie, Diário da Justiça da União, Brasília, 2.8.02. ____. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 309, Diário da Justiça da União, Brasília, 19.4.06. ____. Código Tributário Nacional. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 10ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005. HELLER, Leo e PADUA, Valter Lúcio de. Abastecimento de Água para Consumo Humano, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2006. JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviços Públicos, São Paulo, Dialética, 2003. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo, Coimbra, Almedina, 1998. SOUSA FRANCO, António L. de. Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, 4ª ed., 9ª reimpr., Coimbra, Almedina, 2002. WANNACOTT, Paul e WANNACOTT, Ronald. Economia, 2ª ed., São Paulo, Makron Books, 1994.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.