Sexo, sexualidade e reflexão teológica: onde é que eles se encontram?

June 4, 2017 | Autor: Lilia Marianno | Categoria: Gender Studies, Feminist Theory, Queer Theory, Género, Gênero E Sexualidade
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SEXO, SEXUALIDADE E REFLEXÃO TEOLÓGICA: ONDE É QUE ELES SE ENCONTRAM? Uma introdução ao debate sobre teologia e gênero Lília Dias Marianno1

Resumo O artigo introduz a temática de Gênero no diálogo acadêmico interdisciplinar com a Teologia, identificando corpo e sexualidade como espaços de produção do saber. Traça o desenvolvimento histórico da teologia feminista desde suas origens nos anos 70 até o século XXI, introduzindo cada uma das categorias de análise que foram sendo abraçadas pela teologia bíblica feminista neste espaço de tempo. Mostra como o modelo de estudos de gênero feministas estabelecem a estrutura dos estudos de gênero e teologia que vêm sendo desenvolvidos no segmento queer e também nos grupos de varões.

Palavras-chaves Gênero, teologia feminista, teologia queer, masculinidade, história “Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino, Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino...”2

Introdução Os versos da canção “Masculino e feminino”, que estourava nas paradas de sucesso durante os anos 70, foram convidados a nos trazer a provocação inicial deste artigo em Incertezas. Nosso objetivo é introduzir a temática numa abordagem didática fornecendo embasamento teórico para os que desejarem se aprofundar nas questões levantadas.

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Pesquisadora de gênero e religião, teóloga biblista, Mestre em Ciências da Religião pela UMESP, Mestre em Teologia pelo STBSB, assessora das revistas Estudos Bíblicos, RIBLA - Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana e Palavra e Vida, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), do Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina (NETMAL) e da Rede Bíblica Latino-Americana e Caribenha (REBILAC). É professora da graduação em Teologia da FATERJ e da Pós-graduação em Ciências da Religião do IBEC/UGF. 2 Masculino e Feminino. Copyright: Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes.

3 A reação de muitos aos versos desta canção era a de considerar um absurdo que estas frases de conotações “homossexuais” envolvessem o nome de Deus sem qualquer tipo de reverência. A começar por seus autores e intérpretes, Pepeu Gomes, Baby Consuelo e os Novos Baianos, o próprio comportamento da banda era considerado extravagante. Os Novos Baianos eram “desenquadrados” até mesmo no meio da MPB, eram “desviantes”, transgrediam o senso de “normalidade” social. Um olhar preconceituoso sobre estas pessoas sempre recriminou e rotulou suas músicas como “estranhas” e com isso deixou-se de perceber os sujeitos religiosos por trás dos versos que viriam, num futuro não muito distante, surpreender a nação brasileira com seus depoimentos. Baby Consuelo, com toda sua excentricidade, estava, desde aquela época, numa busca incessante pelo sagrado, que se transformou em testemunho público pelo menos em duas ocasiões diferentes, que eu tenha assistido, no programa do apresentador Jô Soares, anos antes que ela viesse dar seu testemunho de conversão à fé evangélica, surpreendendo a audiência brasileira no final da década de 90. No fim dos anos 90, a niteroiense Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade mudou seu próprio nome para Baby do Brasil, e se tornou pastora evangélica da Igreja Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus, (quem poderia imaginar isso naquela época?). A pergunta que faço é: Será que os autores destes versos estavam tão “chapados” na década de 70 que não diziam coisa com coisa? Ou ainda, que tipo de insights aconteciam em suas confabulações a ponto de refletir impressões teológicas de forma tão ... “desviante” (ou implicante) para muitos? A Teologia Sistemática sempre se preocupou em definir a essência de Cristo. Desde o Credo dos Apóstolos, formulado a partir do segundo século da Era Comum e também através dos vários concílios que ocorreram de 325 até o séc. VIII EC, este tema provocou calorosas discussões, sendo retocado nas diversas fórmulas de credos subseqüentes. Mas é interessante a ausência de uma definição da essência de “Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Isso é o máximo de definição da pessoa de Deus que os cristãos dos primeiros séculos registraram. O que se registrou sobre a pessoa de Deus depois disso é fruto do árduo trabalho de interpretação bíblica e reflexão teológico-filosófica tanto dos pais da igreja quanto dos cristãos posteriores. E o que Baby Consuelo tem a ver com os pais da igreja? Simples: será que, de uma voz “desviante” do século XX não se levantou uma suspeita hermenêutica sobre algo que o texto bíblico nunca fechou totalmente? Será que os Novos Baianos não estavam fazendo “reflexão teológica” por trás de seu comportamento irreverente e “implicante” para tantos? O fato de hoje Baby do Brasil ser uma “irmã em Cristo” nos faz pensar nestas coisas e chega ser divertido imaginar tais possibilidades.

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1. “Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24) A teologia nos ensina que aquilo que é “imagem e semelhança de Deus” na nossa natureza é o nosso espírito, não o nosso corpo. Mas o texto bíblico que trata desta semelhança insinua algo sobre o corpo. Com todo o respeito aos demais exegetas que optaram por uma tradução diferente da que apresento abaixo, devo lembrar que todo tradutor precisa fazer sua própria opção hermenêutica sobre o texto, uma vez que a língua original possui uma riqueza de sentidos (polissemia) diferenciada da língua para a qual o texto está sendo traduzido. Assim, minha tradução de Gn 1.27 enxerga a seguinte possibilidade hermenêutica:

‘~d"a'h'¥-ta, ~yhiÛl{a/ ar"’b.YIw: 27 E criou Elohim ao ser humano

Amêl.c;B.

de uma estátua3dele

At=ao ar"äB' ~yhiÞl{a/ ~l,cB,î . em imagem de Elohim o criou

`~t'a( o ar"îB' hb'Þqen>W rk"ïz" macho e fêmea criou A idéia de nosso corpo não fazer parte da “imagem de Deus” fica meio insustentável sob este ângulo. Como lidar com os conflitos entre religião e sexualidade, teologia e diferenças de gênero? Como superar a influência do dualismo neo-platônico na teologia que tanto enfatiza o corpo como mau e a alma como boa? Como re-significar o espaço do corpo dentro da teologia? Este corpo, sexuado e sexualizado, foi escolhido pelo Espírito Santo como sua habitação e como lugar permanente da presença de Deus conosco por “todos os dias até a consumação dos séculos”. Será que há compartimentos proibidos nele, nos quais o Espírito Santo evita entrar, como por exemplo, sexo e sexualidade? Existem assuntos sobre o corpo que consideramos não possuírem relevância teológica por imaginarmos que eles contaminam o ideal de santidade? Se o corpo é mau, porque a teologia do Antigo Testamento concentra sua expectativa de vida vindoura através da ressurreição deste mesmo corpo? Bem, vamos por partes. Para entender quais são os principais temas dos estudos de gênero e religião precisamos primeiramente entender o papel do movimento feminista e da teologia feminista na América Latina e no Brasil. Por dois fatores, em primeiro lugar porque as teorias feministas deram origem à 3

O primeiro sentido desta palavra é estátua, depois vem imagem, e então modelo e desenho, tudo sugere forma física. Já a preposição pode ser traduzida como em, dentro de, em meio de, entre, como (na qualidade de, na condição de); em companhia de, junto com; por meio de; de (indicando matéria). KIRST, Nelson. Dicionário Hebraico-Português, Aramaico-Português, p. 21

5 teologia feminista (no campo da teologia sistemática) e à hermenêutica feminista (no campo ta teologia bíblica). Em segundo lugar porque seguindo as linhas mestras das teorias e teologias feministas, outras teorias e teologias foram surgindo, como a queer e a de masculinidade. Estudar a aproximação bíblico-teológica que pessoas do universo GLBTT4 e de grupos de varões têm feito exige que compreendamos a trajetória da aproximação bíblico-teológica das mulheres. A aproximação queer se apropriou de princípios delineados pela aproximação feminista e a aproximação de masculinidade se apropria de paradigmas de ambas: feminista e queer. Diga-se de passagem, a aproximação de masculinidade ganha corpo por incentivo direto e permanente da aproximação bíblico-teológica feminista e queer. Esta interação torna muito enriquecedor o debate sobre gênero, religião e teologia.

2. A trajetória da aproximação bíblico-teológica feminista

Os movimentos feministas no Primeiro Mundo surgiram na década de 60/70 com a exigência de equiparação jurídica, social e religiosa das mulheres e também da transformação das estruturas patriarcais e do sistema de valores androcêntrico na sociedade5. Antes que estes termos nos confundam, chamamos de androcentrismo à estrutura preconceituosa que caracteriza as sociedades de organização patriarcal, que quando estabelecem normas e valores, eles se dão a partir da condição de vida do homem adulto do sexo masculino, ignorando-se crianças, mulheres e idosos6. E às estruturas sociais que encerram o poder na mão dos homens e subjugam as mulheres, colocando-as em segundo plano e impondo-lhes subordinação 7 chamamos de estruturas patriarcais. A teologia feminista na AL, diferente da teologia feminista do Primeiro Mundo, é filha do confronto entre fé, política e direitos humanos que sofremos nas últimas três décadas. A década de 70 trouxe para o cenário religioso a efervescência dos movimentos populares, dos partidos de esquerda e das lutas contra os desmandos das ditaduras militares nos países latino-americanos. O oprimido e o marginalizado passaram a ser entendidos como sujeitos históricos deste confronto e a teologia da libertação tem tais grupos no seu foco. A mulher latino-americana, oprimida, discriminada e tantas vezes enviuvada e desfilhada por este sistema também é sujeito histórico neste conturbado contexto sócio-político. 4

A sigla GLBTT representa a união das definições de sexualidades queer, que são representadas por sujeitos Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. A sigla longe está de fechar a definição, porque os estudos descobrem uma nova “sexualidade” a cada dia, entretanto continua sendo usada para definir sujeitos queer na cultura brasileira. 5 GÖSSMANN, Elisabeth. Dicionário de Teologia Feminista, p.502. 6 Idem, p. 21. 7 Idem, p. 370.

6 Assim surge a aproximação teológica feminista na América Latina, filha da teologia da libertação, tendo, neste primeiro momento, dois eixos de luta: a) o comprometimento com os ideais feministas de desconstrução dos modelos patriarcais e androcêntricos de sociedade e b) a luta pela libertação político-econômica do povo latino-americano como um todo. A hermenêutica bíblica que daí surgiu tinha, logicamente, teores populares e militantes, pregoeira da libertação e da transformação da realidade, entendendo Reino de Deus como uma realidade de relações mais justas, de construção de um novo mundo possível. Deus é interpretado como agente libertador e solidário que luta em favor dos oprimidos e oprimidas8. O pobre e o oprimido têm suas próprias formas de enxergar o mundo e tais visões começaram a influenciar o discurso teológico feminista latino-americano na década de 80, quando a leitura popular da Bíblia se tornou um exercício sistemático de reflexão teológica no nosso continente. Os países latinos sofreram maior repressão dos EUA devido à mudança de interesses pelos direitos humanos ocorridas na transição dos governos Carter para Reagan. Os arautos dos direitos humanos e dos movimentos de libertação foram considerados perigosos e os teólogos da libertação como Leonardo Boff, passaram a ser pressionados pelo Vaticano, encabeçadas pelo então Cardeal Ratzinger. Alguns organismos ecumênicos como CLAI e CONELA9 foram criados por iniciativas protestantes. Neste contexto ecumênico as teólogas feministas e os demais teólogos da libertação empreenderam um diálogo aberto em prol de uma libertação para os marginalizados: homens, mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos etc. A teologia feminista passou a se ocupar em recuperar os aspectos femininos do discurso sobre Deus e mostrou que o fazer-teológico das mulheres latino-americanas tinha seu próprio pano de fundo. Ele vinha do cotidiano e do corpo destas mulheres cuja experiência e cosmovisão sempre foi diferente da dos varões por fatores culturais, biológicos e históricos10. Nesta década as teólogas feministas latino-americanas começaram a dialogar com as teólogas feministas do Primeiro Mundo, mas as teorias de gênero desenvolvidas pelas últimas não foram muito usadas neste princípio. As conseqüências destes movimentos foi a revalorização do cotidiano e do corpo das mulheres como “chão” hermenêutico e as virtudes exigidas das mulheres pela sociedade passaram a ganhar olhares da crítica feminista. O intercâmbio com as biblistas feministas do Primeiro Mundo sugeriu reconstrução de vários textos bíblicos e as biblistas latino-americanas abraçaram o desafio com grande motivação. Uma auto-educação foi iniciada para se adotar uma linguagem

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RESS, Mary Judith. História da Teologia Feminista na América-Latina, p. 40. CLAI – Conselho Latino Americano de Igrejas e CONELA- Confraternidad Evangélica Latino Americana 10 Idem, p. 42. 9

7 inclusiva ao se falar de Deus como “Deus pai e mãe” e a teologia passou a ser definida como “teologia a partir da mulher”. Os anos 90 introduziram novas pautas para abordagens feministas. A teologia a partir da mulher começou a olhar para outros aspectos da vida, como a questão da terra e da água, introduzindo o conceito de “ecofeminismo holístico”

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em suas premissas. O contexto

internacional e os movimentos de resistência contra as ditaduras militares na AL continuavam afetando a reflexão teológica. O movimento de leitura popular da Bíblia e as comunidades de base sofreram uma estancada. Emergem, então, para manter o vínculo da teologia feminista com o ideal de libertação, os movimentos indígena e negro12, que trazem novos insumos hermenêuticos em visão étnicoracial incluindo mais este eixo na aproximação bíblico-teológica feminista. A recém-consolidada nova ordem econômica internacional capitalista e neoliberal, que afetou a comunidade européia e o cone sul começaram a despertar reflexões teológicas e a hermenêuticas das mulheres. Novas ênfases que tratavam de temas como economia de mercado e revelação da divindade em culturas não-cristãs começaram a ser trabalhados pelas mulheres latino-americanas. Até aqui vimos que a reflexão bíblico-teológica das mulheres na AL teve seu próprio cenário de nascimento, seu chão, e só posteriormente começou a dialogar com a reflexão de mulheres do Primeiro Mundo. Vimos também que a teologia feminista latino-americana se compreende filha da teologia da libertação, possui desde seus primórdios fortes vínculos com as lutas políticas, tem o cotidiano e o corpo das mulheres como espaço do fazer teológico e foi introduzindo, sucessivamente temas como ecologia, etnia, economia de mercado e manifestação do sagrado. Que desafios se impõem à reflexão bíblico-teológica latino-americana no século XXI?

3. Reflexão bíblico-teológica feminista latino-americana para o século XXI Em 2004, teólogas biblistas latino-americanas, assessoras de RIBLA13, se reuniram no Brasil para discussão das pautas hermenêuticas que norteiam a reflexão bíblico-teológica feminista. O objetivo era listar as prioridades e ênfases na reflexão teológica para que a hermenêutica bíblica feminista latino-americana continue seguindo seu caminho sem abandonar 11

Entende-se por eco-feminismo holístico, expressão utilizada por Mary Ress, como o próprio conceito básico de teologia aplicado a toda a criação de Deus a partir das mulheres. “Poderíamos definir a ecologia como a ciência e a arte das relações dos seres relacionados [...] a ecologia possui um conteúdo eminentemente teológico” BOFF, Leonardo. Ecologia mundialização e espiritualidade, p.19. 12 É interessante acompanhar movimentos como os de Chiapas e sua influência na hermenêutica bíblica indígena, por exemplo. 13 RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana.

8 seus pilares, seus valores centrais, abrindo, porém, novos tópicos no debate de gênero, religião e teologia bíblica. Ali se reafirmam alguns paradigmas para a hermenêutica bíblica feminista latinoamericana no despontar do séc. XXI14: a) A parcialidade interpretativa e a pluralidade de paradigmas é critério interpretativo em nossas abordagens; b) a hermenêutica feminista latino-americana é filha do movimento bíblico-teológico latino-americano e continua tendo como objetivo “a construção de relações justas e de superação de todas as formas de violência, partindo de nossos [...] corpos, experiências e relações de construção de “um outro mundo possível”15. c) três enfoques de semelhante prioridade para a reflexão são estabelecidos: libertação, ecofeminismo e étnico-racial. d) Parcialidade, provisioriedade, ambigüidade, diversidade, experiência e simultaneidade foram categorias assumidas pelas biblistas como categorias hermenêuticas de crítica aos poderes hegemônicos.

Alguns teólogos pouco familiarizados com os estudos de gênero ironizam as iniciativas feministas classificando tais categorias como “falta de objetividade” dizendo que as biblistas feministas não são claras nem diretas quanto ao que querem discutir teologicamente. Entretanto, para as biblistas latino-americanas este é um paradigma e nosso maior diferencial: não dar respostas prontas, antes levantar novos questionamentos, novas suspeitas hermenêuticas e apontar novos caminhos ou caminhos antigos a serem revisitados. Não podemos desconsiderar os fatores sociológicos que deram origem à teologia feminista neste continente, muito menos esquecer que a militância feminista latino-americana, muito mais do que uma luta por igualdade de direitos, nasceu pela ausência de entes queridos, a partir das casas governadas por mulheres, casas cujos homens morreram nas lutas de resistência política ou ficaram trancafiados, sendo torturados por décadas como prisioneiros políticos em nossos países que sofriam sob a pesada mão da ditadura militar nos anos 70 e 80. Os motivos deste nascimento foram só nossos. Tais princípios (parcialidade, provisioriedade, ambigüidade, diversidade, experiência e simultaneidade) são assumidos justamente por sabermos que, mesmo numa crítica ao poder instituído, nem tudo é criticável, nem tudo pode ser visto de forma negativa, estabelecer valores generalizantes, definitivos, objetivos, unilaterais, teóricos e sucessivos implica em desprivilegiar

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RICHTER REIMER, Ivoni, Respiros... entre transpiração e conspiração, p. 158. Idem.

9 os aspectos positivos e benéficos que também devem ser mencionados em nossas abordagens cada vez que tentamos, através de nossas reflexões, propor “um novo mundo possível”. O principal desafio é o de não tornar nosso discurso um modelo feminilizado do discurso patriarcal tão criticado. Isto é, não permitir que o discurso feminista se torne tão militante que termine por marginalizar quaisquer pessoas que não sejam mulheres, e acabe se tornando uma cópia invertida do modelo machista. Cotidiano e corporeidade passam a ser categorias hermenêuticas articulando o pensamento feminista com as preocupações básicas de nossos povos pobres, o sistema de mercado, as políticas neoliberais e seus efeitos na vida do continente latinoamericano.

4. Teologia Queer ... do que se trata, afinal?

Apropriando-se das teorias de gênero como roteiro para o questionamento dos papéis sociais entre homens e mulheres, os integrantes do universo GLBTT começaram a participar dos Estudos de Gênero, direcionando seus esforços para a pesquisa sobre sexualidade16. Desde os finais do século XVIII os estudos sobre sexualidade humana estabeleceram uma ruptura com o conceito de que sexualidade é alguma coisa fixa e homogênea e que padrões diferentes de sexualidade não sejam identificáveis. Os estudos de Michel Foucault muito contribuíram para a compreensão de que a sexualidade humana tem uma história. Suas teorias formam os princípios germinais da Teoria Queer. No início dos anos 90 o termo queer foi adquirindo significado mais específico e seu principal objetivo foi questionar o centrismo da heterossexualidade que estrutura as sociedades, com isso propôs caminhos mais diversos e menos dualistas. Queer é tudo que não se enquadra, nem se encaixa no dualismo homem – mulher que define as relações heterossexuais normativas e consideradas “normais”, isto é não-desviantes. Sexualidade queer é justamente a sexualidade que se desvia do padrão normativo estabelecido na construção social. “O questionamento do binarismo/dualismo homo-heterossexual não implica apenas o rompimento com a normatividade da sexualidade heterossexual, mas a problematização da organização social que está organizada ao redor dela. [...] a vida pessoal não é apenas política, mas 16

Devemos fazer a devida diferenciação entre sexo (gênero da pessoa, constituição bio-física) e sexualidade (comportamento sexual), podendo esta ser resultante da constituição bioquímica e endócrina de uma pessoa (exposição hormonal determinada no código genético) bem como da estruturação neuro-psíquica (cérebro e inteligência emocional). Para aprofundar esta questão vale conferir: PEASE, Allan; PEASE, Bárbara. Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? Especialmente os capítulos que trabalham a estrutura hormonal e cerebral de heterossexuais e de homossexuais , p. 36-59 e 115-124.

10 sexualizada e, consequentemente, heterossexualizada. Por isso seu objetivo tem sido dar um passo além dos estudos de Gênero e tornar a sexualidade um assunto de relevância acadêmica, não só nos discursos e estudos da medicina e psicologia, mas em áreas tão diversas quanto economia, sociologia, antropologia, política e religião”17.

Pesquisas recentes de cientistas renomados18 como Berte Pakkenberg, Gunther Dorner, Dick Swaab (Netherland Institute of Brain Research) e a geneticista britânica Anne Moir têm trazido importantes descobertas no campo da sexualidade na última década.

Estudos sobre

codificação do DNA têm cooperado para o entendimento sobre quais seriam estas sexualidades entendidas como “desviantes” ou múltiplas, como o nome queer deseja definir. Tais estudos estão nos conduzindo a uma revisão do pressuposto de que homossexualidade seria doença, opção sexual ou atitude imoral e que na verdade tem muito mais conexão com o código genético que uma pessoa recebe durante seu processo embrionário19. Diante destes novos postulados, que papel desempenha a reflexão teológica? Pode existir uma teologia queer relevante para a vida da igreja? Que formulações éticas tais aproximações conseguem oferecer? Como uma hermenêutica queer pode contribuir para uma teologia pastoral mais humana? Que tipo de contribuições uma hermenêutica queer oferece à interpretação bíblica num momento em que a lista de direitos civis conquistados pelos gays aumenta a cada dia? Uma reflexão teológica queer é necessária? Entender como os teólogos gays pensam teologia não significa adotar suas práticas homossexuais. Que ninguém entenda de maneira equivocada! Entender o diversificado mundo queer implica em compreender um universo sempre sectarizado e marginalizado pela sociedade e para o qual, durante muitos séculos, a igreja se recusou a exercer uma prática pastoral inclusiva. Afinal é o “corpo de quem não se encaixa” que terá a oportunidade de ser ouvido neste exercício. “A teologia gay parte das histórias vividas pelas pessoas homossexuais como forma de devolverlhes a palavra e permitir que articulem seus próprios anseios e necessidades”20. Sérias questões pertinentes à corporeidade e à sexualidade entraram no debate teológico através dos teóricos queer. Gays também lêem a Bíblia, estudam teologia, fundam igrejas cristãs e pastoreiam estas igrejas e não há nada que a ortodoxia faça que consiga deter o crescimento destes segmentos. 17

TURNER, William.B. A genealogy of Queer Theory, p. 22, citado e traduzido por: MUSSKOPF, André Sidnei. Corporeidade queer: Hermenêutica Bíblica e Teologia. André Sidnei Musskopf é o teólogo sistemático brasileiro pioneiro nas pesquisas sobre teoria/teologia queer. Sua vasta bibliografia é acessível pelo seu currículo na plataforma lattes. 18 PEASE, Op. Cit., p. 115-124. 19 Idem. 20 MUSSKOPF, André. Além do arco-íris, p.155.

11 A teologia/hermenêutica queer apropria-se de vários eixos hermenêuticos da teologia feminista, por exemplo, questões de corporeidade, a luta contra a opressão social, contra a violência sexista, a favor da inclusão dos marginalizados etc. O momento de globalização, as lutas pelos direitos humanos e as ênfases mais recentes contra homofobia, discriminação sexista e racismo, e principalmente as recentes mudanças no código civil brasileiro, exigem que tais temas sejam revisitados e tratados não apenas com olhos espirituais, mas com seriedade jurídica e civil para que a Igreja, não se torne instrumento de segregação de alguns grupos específicos de marginalizados, ao invés disso, contribua para relações mais humanizadoras, que espelhem mais fielmente o amor inclusivo de Jesus, que nunca interditou a entrada nem dos coxos, nem dos mancos, nem das prostitutas e pecadores no banquete do noivo o filho do Rei (Mt 22,1-10). 5. Depois disso tudo, em que pé está o “mundo dos machos”? Recentemente ouvi de um senhor na faixa de cinqüenta anos o seguinte: “parece que a sociedade enlouqueceu, as mulheres deixaram a casa para trabalhar fora e de repente virou obrigação para os homens se tornarem gays!”. Logicamente a afirmação exagerada deste senhor não tinha qualquer fundamento científico nem qualquer verificação estatística. Os homens não estão deixando de ser “hétero” para serem gays, e ser gay não implica em adotar um terceiro sexo e deixar de ser homem. Mas de fato, o que ele estava sentindo era o sacudir inevitável das rápidas mudanças que a sociedade tem passado e principalmente a quebra do modelo patriarcal e a ruptura com o sistema androcêntrico. Uma contribuição valiosa que os estudos queer trouxeram para o debate sobre gênero são as análises sobre identidade masculina gay, que por simples questão de eliminação acabam definindo também a identidade masculina heterossexual. As mudanças sociais andam mexendo em várias áreas, que vão desde saúde sexual masculina até desemprego, afirmação de identidade e auto-estima à síndrome do pânico e depressão. O mundo dos homens está sofrendo reviravoltas muito mais rápidas do que o das mulheres ou dos gays, está sacudido com a mutação cultural que vivenciamos nesta velocidade astronômica. Ninguém estava preparado para mudanças tão radicais de forma tão rápida. É crescente o número de programas de televisão ou até mesmo de canais por assinatura dedicados aos homens e aos seus apetites, como que a preservar os pequenos espaços reservado para um machismo que não seja sufocado pelas críticas que deixaram de ser puramente feministas para serem sociais. Ser machista na sociedade pós-moderna, implica em começar a ficar deslocado, ser taxado como ignorante e pouco evoluído. É crescente o número de homens que criticam outros homens por se manterem com uma mentalidade androcêntrica e patriarcal. E isto é um sinal que os

12 paradigmas realmente estão sendo trabalhados, mas todo extremismo é perigoso. Há valores importantes que precisam ser mantidos, não entraremos aqui num detalhamento porque este seria o tema para um outro artigo. Estudos teológicos e hermenêuticos sobre masculinidade são conquistas recentes e ainda não se chegou a uma década de estudos no Brasil, mas sua relevância para o campo da teologia é simplesmente inquestionável, uma vez que nosso institucionalismo religioso ainda é majoritariamente masculino. A cada dia cresce o número de fóruns de masculinidade, grupos de reflexão teológica a partir dos varões, enfim, finalmente a leitura de gênero conquistou o coração dos homens e eles agora também trabalham com questões de gênero. Vale a pena ressaltar os números temáticos da revista Estudos Bíblicos: (n. 86) Bíblia e Masculinidade e (n.87), Bíblia e Corpo, ambos resultantes de grupos de gênero orientados para o debate sobre masculinidade. Também o grupo de teólogos-biblistas latino-americanos publicou este ano o número 56 da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana sob o tema Reimaginando a masculinidade, contendo 15 artigos debatendo a questão à luz de uma teologia bíblica. Também devo ressaltar o vol. 12 da revista Mandrágora, publicação anual do NETMAL – Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina da Universidade Metodista de São Paulo, que é um dos grupos de estudos feministas mais antigos do continente. Coordenei pessoalmente a edição de Mandrágora n. 12 sob o tema Gênero, religião e masculinidades. O último ensaio desta edição traz, de forma bem-humorada, mas não menos séria a necessidade que estudantes de teologia sentem de debater as questões de masculinidade em nível curricular nas graduações de teologia. Neste ensaio sob o título: “Masculinidade: queremos conversar sobre isso! Uma proposta curricular para graduações de teologia” inserimos diversos insights fornecidos pelos alunos de teologia, quase uma pesquisa de campo realizada em dois semestres onde a Temática Teologia e Gênero foi introduzida em seminários batistas em cidades da Baixada Fluminense. No segundo semestre de 2007 novamente a disciplina voltou à graduação de teologia e foi desenvolvida em nível curricular sob o título Teologia e Gênero (seminário de pesquisa) oferecida na graduação de teologia da FATERJ (Faculdade de Teologia do Rio de Janeiro). Mais uma vez a reflexão está alcançando um significativo nível de maturidade acadêmica e ficamos felizes que Incertezas abra também este espaço de reflexão. Mencionamos na bibliografia todos os números temáticos de revistas que resultaram dos movimentos mencionados desde o início deste ensaio.

Conclusão

13 O grande desafio para os estudos de gênero no ambiente teológico e das Ciências da Religião tem sido trazer os discursos de gênero para uma confluência de objetivos comuns. Tecnicamente isso atinge tudo que já foi mencionado. O objetivo é equiparação jurídica, social e religiosa dos gêneros, sejam eles femininos, masculinos ou queer. E o maior desafio encontra-se na transformação das estruturas patriarcais e androcêntricas em estruturas de gênero equiparáveis entre si. É trazer os gays para o diálogo sem que a militância termine por segregar e discriminar os heterossexuais. É trazer os varões para o diálogo, ouvindo-os e percebendo os próprios caminhos criados por eles para a construção de uma nova masculinidade possível, que consiga ser uma leitura de gênero sem ser androcêntrica. Acima de tudo é imprescindível acompanhar os avanços dos estudos de geneticistas e bioquímicos sobre sexualidade, constituição hormonal, estruturação sexual do cérebro humano e tantos outros componentes científicos que irão nos auxiliar na reformulação de novos postulados teóricos e para um estudo de gênero relevante para a teologia brasileira e latino-americana e principalmente para a práxis pastoral no seio da igreja.

Bibliografia

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