Sexualidade romana: para além dos paradigmas atuais

September 22, 2017 | Autor: Lourdes Feitosa | Categoria: Gender and Sexuality
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doxa

R e vist a Brasileira de P sico lo g ia e E du c ação

Departamento de Psicologia da Educação F.C.L. – Araraquara UNES P

ISSN 1413-2060

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP

doxa

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – F.C.L. – Araraquara

Diretor: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Vice-diretor: Prof. Dr. Cláudio César de Paiva

R ev i s t a Brasileira d e P s i c o l o g i a e E d u c a ç ã o

Departamento de Psicologia da Educação: Chefe: Prof. Dr. Newton Duarte Vice-chefe: Prof Dr Antonio Carlos Domene Conselho Editorial: Prof. Dr. Angel Alcalá (City Univ. New York) Prof. Dr. Antonio Joaquim Severino (USP) Prof. Dr. Antonio Nóvoa (Universidade de Lisboa) Profª Drª Berta P. de Braslawsky (Argentina) Profª Drª Betty Oliveira (UFSCar) Prof. Dr. Carlos Alberto Vidal França (UNICAMP) Prof. Dr. Carlos Roberto Jamil Cury (UFMG) Prof. Dr. Celestino Alves da Silva Junior (UNESP-Marília) Prof. Dr. Demerval Saviani (UNICAMP) Prof. Dr. Evaldo Amaro Vieira (USP) Prof. Dr. Florindo Stella (UNESP-Rio Claro) Profª Drª Gilberta S. M. Jannuzzi (UNICAMP) Profª Drª Maria da Graça N. Mizukami (UFSCar) Profª Drª Maria de Fátima G. M. Tálamo (USP) Profª Drª Mary Neide Damico Figueiró (UEL) Prof. Dr. Manuel Calvino (Univ. Havana) Prof. Dr. Ronaldo Victer (UFF) Prof. Dr. Sadao Omote (UNESP-Marília) Prof. Dr. Sérgio Luiz Saboya Arruda (UNICAMP) Prof. Dr. Sérgio Vasconcelos de Luna (PUC-SP) Profª Drª Sílvia T. M. Lane † (1933 - 2006) (PUC-SP) Profª Drª Sônia Aparecida Ignácio Silva (UNESP-Araraquara) Profª Drª Sonia Maria Martins de Melo (UDESC) Prof. Dr. Valério José Arantes (UNICAMP)

Departamento de Psicologia da Educação F.C.L. – Araraquara U N ESP

Doxa

Araraquara

v.17

n.1 e 2

p.1-330

2013

Comissão Editorial: Profª Drª Ana Claudia Bortolozzi Maia Profª Drª Andreza Marques de Castro Leão Prof. Dr. Leandro Osni Zaniolo Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro (Editor) Profª Drª Sueli Aparecida Itman Monteiro

Secretária: Maria Zuleica de Barros

Normalização: Andreza Leão

Editoração Eletrônica: Eron Pedroso Januskeivictz

Arte da capa: Antônio Parreira Neto

Doxa: Revista Brasileira de Psicologia e Educação / Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. – Vol.17 (2013)–. – Araraquara : UNESP/FCLAR-Laboratório Editorial, 2013Continuação de DOXA: Revista Paulista de Psicologia e Educação (vol.1 – n.1(1995)) Semestral ISSN 1413-2060

Indexada por: Bibliografia Brasileira de Educação/INEPE–MEC CLASE–Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (México) Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine/Université de La Sorbonne Nouvelle – Paris III (França) LILACS – Literatura Latino Americana e do Caribe para Ciências da Saúde Index Psi Periódicos/PsychoInfo/SIRPEP – Sistema de Referenciação de Periódicos em Psicologia no Brasil Sumários de Educação/CENP–SEESP Sumários de Periódicos de Educação/FE–USP

Listada por/Listed by: Sumários de Periódicos em Psicologia/IP–USP

SUMÁRIO/CONTENTS ARTIGOS ORIGINAIS Dificuldades no trabalho com a sexualidade humana em sala de aulas nas escolas do ensino primário na cidade de Maputo-Moçambique Difficulties of teachers work with human sexuality in classroom in primary schools of the city of Maputo-Mozambique Juvêncio Manuel Nota A concepção de cultura em Lev Semenovich Vigotski e Jerome Bruner: convergências ou divergências? The conception of culture in lev semenovich vigotski and jerome bruner: convergences and divergences Vanessa Rabatini e Lígia Márcia Martins Televisão, telenovelas e educação sexual: algumas interfaces... Television, soap operas and sex education: some interfaces... Gabriela Maria Dutra de Carvalho e Sonia Maria Martins de Melo Imagem refletida: um olhar sobre várias perspectivas históricas do corpo social no Brasil e suas consequências na educação física Reflected image: a look at various historical perspectives of social body in Brazil and its consequences in physical education Fábio Tadeu Reina, Luci Regina Muzzeti e Maria José Romanatto Os artigos de jornal no ensino superior: utilizando um recurso didático não-convencional no ensino do Direito Newspaper articles in higher education: using an unconventional resource teaching in higher education law Alexandre de Castro e Rosane Michelli de Castro

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Gestão estratégica e participativa: uma alternativa para a rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora – MG Participatory strategic management: an alternative to the public education in Juiz de Fora – MG Josélia Barbosa Miranda e Márcia Cristina da Silva Machado Algumas contribuições da psicanálise para a educação sexual na escola Some contributions of psychoanalysis to sex education in schools Danielle Regina do Amaral Cardoso, Fernando Crespolini dos Santos, Luzia Helena das Neves Teixeira, Maria de Fátima Pessoa de Assis e Sandra Fernandes de Freitas

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Percepção de docentes e da escola sobre a posição de história e geografia na hierarquia das disciplinas – um estudo de caso em duas escolas públicas de educação de jovens e adultos 115 Perception of teachers and school community about the position of history and geography in hierarchy of subjects – a case study in two public schools of adult education Ana Luisa Pereira Marçal Ribeiro, Bruna Raspantini Pellegrino, Luiza Sassi Affonso Ferreira e Laura De Bona Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos 133 Intervention with families who’s children are deafblind Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento e Maria Piedade Resende da Costa DOSSIÊ: HISTÓRIA DA SEXUALIDADE E DA EDUCAÇÃO SEXUAL Notas preliminares sobre historiografia da educação sexual brasileira: apontamentos de uma cronologia descritiva. 1) Atitudes e comportamentos sexuais no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII 149 Preliminary notes on brazilian historiography of sex education: notes from a descriptive chronology. 1) Attitudes and sexual behaviour in Brazil in the documents of the inquisition on 16th and 17th centuries Paulo Rennes Marçal Ribeiro e Regina Celia Bedin

Manuais da civilidade e de bem viver no século XIX: o código do bom-tom de J. I. Roquette 169 Civility and well living manuals in the nineteenth century: the code of J. I. Roquette Regina Celia Mendes Senatore e Ailton Pereira Morila História da educação sexual no Brasil: dos ginásios vocacionais à nova LDB (1960 – 1980) 183 History of sexual education in Brazil: from the new gymnasiums to the LDB (1960-1980) Eliane Rose Maio Breve historiografía de la educacion sexual en el contexto educativo español 221 Brief historiography of sex education in spanish educational context Eladio Sebastián Heredero Perspectiva evolutiva das políticas e práticas de educação sexual na comunidade escolar em portugal 245 Evolutive perspective of policies and practices of sex education at the community school in portugal Teresa Vilaça Sexualidade romana: para além dos paradigmas atuais 295 Roman sexuality: beyond contemporary paradigms Lourdes Conde Feitosa A mulher na história da sexualidade: apontamentos sobre os relacionamentos familiares e conjugais em diferentes culturas 309 The woman in the history of sexuality: notes on family and conjugal relationships on different cultures Bruna Mares Terra, Mariana Pereira da Silva e Ana Cláudia Bortolozzi Maia ÍNDICES/INDEX Índice de Assuntos/Subject Index 323 Indice de Autores/Authours Index 325 Normas para apresentação dos originais 327

DOXA – REVISTA BRASILEIRA DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO v. 17, n. 1 e 2, Janeiro/Junho e Julho/Dezembro de 2013

EDITORIAL Com satisfação publicamos o v. 17, n. 1 e 2, Janeiro/Junho e Julho/Dezembro de 2013 da DOXA – Revista Brasileira de Psicologia e Educação, que apresenta, além dos artigos gerais iniciais, uma sessão temática denominada Dossiê que, neste número, traz a temática História da Sexualidade e da Educação Sexual. Paulo Rennes Marçal Ribeiro Editor

ARTIGOS ORIGINAIS

DIFICULDADES NO TRABALHO COM A SEXUALIDADE HUMANA EM SALA DE AULAS NAS ESCOLAS DO ENSINO PRIMÁRIO NA CIDADE DE MAPUTO-MOÇAMBIQUE DIFFICULTIES OF TEACHERS WORK WITH HUMAN SEXUALITY IN CLASSROOM IN PRIMARY SCHOOLS OF THE CITY OF MAPUTO-MOZAMBIQUE

Juvêncio Manuel Nota1 RESUMO

ABSTRACT

Com vista a perceber os desafios no trabalho em sexualidade e educação sexual desenvolvido de forma transversal no ensino primário foi conduzida uma pesquisa exploratória em cinco escolas primárias completas na zona urbana da cidade de Maputo, nas quais foi administrado um questionário anónimo estruturado a uma amostra de 67 professores seleccionados cujas respostas eram dadas maioritariamente numa escala Likert. Os resultados mostraram que apesar dos professores revelarem atitudes tendencialmente positivas eles enfrentam basicamente dificuldades de natureza didáctico-pedagógica, mas também pessoal que vão desde a escassez de material didáctico á sentimentos de desconforto face à determinados conteudos da sexualidade e a incapacidade de trabalhar a sexualidade humana ajustando-a faixa etária dos alunos, facto que levou alguns dos participantes a optar por um ensino selectivo de tópicos da sexualidade por considerarem os alunos crianças.

In order to understand challenges in teaching work with sexuality and sex education developed transversally in primary school were conducted an exploratory research in five primary schools (from first to seventh grade). In these schools an anonymous and structured questionnaire was administered to a sample of 67 teachers regardless of subject and level that taught. The results showed that the subjects surveyed did not have any training in sex education for children and adolescents although had positive attitudes toward sex education in school. However, they face personal difficulties and pedagogical-didactic such as: feeling of discomfort toward certain themes of sexuality, difficulty in teaching psycho-socio-cultural and affective contents relating to sexuality, difficulties in addressing sexuality by adjusting to the age of pupils for considering them as children, shortage of didactic material oriented to the teachers and low use of participatory methods-assets in class on human sexuality.

PALAVRAS-CHAVE Sexualidade. Educação sexual. Ensino primário.

KEYWORDS Sexuality. Sex education. Primary schools.

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Professor da Universidade Pedagógica em Maputo – Moçambique. Integrante do Grupo de Estudos de Género, Sexualidade e Educação Sexual – NEITRACO/CEPE. E-mail: [email protected]

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Introdução Neste artigo pretende-se apresentar principais resultados de uma pesquisa exploratória feita na cidade de Maputo em 5 escolas primárias da rede pública em que se buscava identificar as dificuldades dos professores no ensino de conteúdos relativos a sexualidade, saúde sexual e reprodutiva nas escolas primárias. Como se sabe o trabalho pedagógico com a sexualidade humana não é novo na educação moçambicana, uma vez que seus conteúdos sempre estiveram intrinsecamente ligados á disciplinas como Ciências Naturais e Biologia, para além de programas extracurriculares de Saúde Sexual e Reprodutiva. Todavia, no ambito da reforma curricular levada a cabo pelo Ministério da Educação introduziu-se uma nova proposta pedagógica de ensino da sexualidade humana assente no principio da inter e transdisciplinaridade, e ao pacote básico de habildades para a vida no curriculo do ensino básico. Contudo, havia suspeitas de que os professores encaravam dificuldades no trabalho com a sexualidade e educação sexual em sala de aulas (MINED, 2003). Neste sentido, pretendeu-se averiguar até que ponto tais dificuldade exisitiam de facto e como elas se reflectiam no trabalho do professor.

Educação Sexual – conceito e pressupostos Antes de prosseguir em nossas reflexões importa clarificar o conceito de Educacção Sexual. Alguns autores como Cortesão (1989 apud REIS, 2004) e Vilaça (2010, 2011) optam pelo termo Educação em Sexualidade, enquanto que Ribeiro (1990) e Figueiró (2006) utilizam o termo educação sexual, e Brasil (1997), Orientação Sexual. No entender de Vitiello (1995, p.20) a Educação Sexual seria em sentindo amplo, “a parte do processo educativo especificamente voltada para a formação de atitudes referentes à maneira de viver a sexualidade”, que para além da informação básica sobre a biologia da sexualidade (anatomia sexual e fisiología, puberdade, reprodução, infecções sexualmente transmissíveis, HIV/SIDA e prevenção de gravidez) favorece a reflexão sobre a sexualidade e a saúde reprodutiva, contemplando não só a informação sobre aspectos biológicos, mas também a discussão sobre sentimentos, valores, preconceitos, experiências pessoais, etc (RIBEIRO, 1990, FIGUEIRÓ, 2006). Virtualmente o processo da educação e socializaçao sexual começa em casa, na familia (OSÓRIO; SILVA, 2008), que com a escolarização da criança ela trnasita 14

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para a escola como um “novo” espaço de socialização secundária, cuja missão é primariamente atribuida ao professor. Por essa razão, Werebe (1998) ao conceptualizar a Educação Sexual define-a como um conjunto de informações desenvolvidas de forma assistemática sobre a sexualidade por meio de um processo global, não intencional, que envolve toda a acção exercida sobre o indivíduo no seu cotidiano independentemente de considerá-la formal ou não formal. O Conselho para Informação e Educação em Sexualidade (SIECUS, 2004) dos Estados Unidos utiliza um conceito abrangente de educação sexual, a qual é definida como o processo vitalício de aquisição de informação e formação de valores, crenças, atitudes sobre a própria idetidade, o relacionamento e intimidade; inclui as dimensões biológicaas, culturais, psicológicas e espitituais da sexualidade. Ainda segundo o Siecus (2004) a educação sexual aborda o desenvolvimento sexual, a saúde reprodutiva, o relacionamento interpessoal, a tomada de decisões, o afecto, a intimidade, a imagem corporal, os papéis de género e a reflexão crítica dos valores. No entanto, independentemente de qual definição tomar fica patente que tal como a própria sexualidade, a Educação Sexual tem várias dimensões: biológica, psicológica, sociológica e ética. Fagundes (1992) apresenta vários argumentos que elucidam a premência e/ou relevancia de uma Educação Sexual, desde que o processo de sua implementação, segundo defende a autora, se baseie nos seguintes princípios: respeito à necessidade de autoconhecimento; Holística2, que acompanhe as fases de desenvolvimento humano; assente em uma metodologia que contemple a discussão aberta. Por essa razão Vitiello (1995) argumenta que a Educação Sexual deve ser participativa, dialógica,baseada na realidade sócio-cultural, desenvolvida com criatividade, infimista e lúdica, ou seja, permitir que o aluno, a criança compreenda o seu meio, conheça seu corpo, sua sexualidade, de forma criativa, alegre e positiva, como uma importante dimensão de seu desenvolvimento biológico e psicossocial. Este quadro é corroborado por Vilaça (2006), a qual assevera que a Educação Sexual deve ser desenvolvida na escola de tal maneira que favoreça a reflexão, o desenvolvimento de competencias de acção, o treinamento da assertividade e outras competencias pessoais e sociais, isto é garantir que os alunos tenham de facto uma literacia em sexualidade e competencias de acção em detrimento de uma bagagem de informação util apenas nos dias de prova.

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Integrando simultaneamente aspectos biológicos e psico-sócio-culturais.

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Método

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a maioria dos professores em exercício que possui algum treinamento em matéria de sexualidade, educação sexual adquiriu-a em intervenções levadas a cabo por ONG’s

Participantes No total responderam ao questionário 67 professores em exercício, de cinco escolas primárias da rede pública e privada da Cidade de Maputo situadas na zona urbana. Após solicitar-se a autorização para realizar o estudo, os questionários foram entregues a direcção pedagógica que se encarregou de destribuir aos professores, independentemente da idade, sexo e classe que lecciona. Do total da amostra 53.7% era do sexo feminino e 46.3% do sexo masculino. Com relação ao perfil etário, é aproximadamente homogéneo para ambos os sexos, sendo que a maioria (38.8%) tinha idade compreendia entre 39-45 anos, sendo a média amostral de idades de 37.6 anos. No que diz respeito ao nível de escolaridade, a maioria da população do estudo 71.6% possuia o nível médio do Ensino Secundário Geral, isto é, 12ª classe ou o equivalente, 10% nível superior e apenas 6% posuem o nível primário do segundo grau. A maioria dos professores (33.9%) com formação psico-pedagógica, era oriunda dos Institutos de Magistério Primário – IMAP, 16.9% provinha dos antigos Centros de Formação de Professores Primários – CFPP e 15.3% do Instituto Médio Pedagógico Elija Machava, em Maputo. Relativamente à experiência profissional, 88.7% eram professores com formação psicopedagógica e 11.3% não tinha qualquer formação. Por outro lado, observa-se que 58.1% do total da amostra eram professores bastante experientes com um tempo de leccionação médio maior ou igual há 11 anos. Relativamente a aprendizagem de conteudos da educação sexual, sexualidade humana ao longo de seua formação incial 55.2% (n=37) declarou ter aprendido algo a respeito e 44.7(n=30) declarou que não aprendeu. Com respeito a aqueles que aprenderam a algo sobre sexualidade/educação sexual durante a sua formação incial, a maioria afirmou té-lo feito em disciplínas como saúde e higiene escolar, educação sanitária e metodología das Ciências Naturais. Por outro lado, quando questionados sobre participações em acções de capacitação/treinamento em matéria de sexualidade/educação sexual, a percentagem dos afirmou nunca ter-se beneficiado de qualquer acção de treinamento foi alta (56.7%, n=38), quando comparada com aqueles que declararam ter-se beneficiado de alguma acção de treinamento (43.3%, n=29); destes 41.4% afirmou que a acção fora promovida por organizações não governamentais, 27.6% apontou o ministério da educação e 13.8% referem que esta foi levada a cabo pela própria escola. Portanto, 16

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Instrumentos O questionário utilizado foi adaptado a partir da consideração simultânea dos diferentes paradígmas que consubstanciaram os estudos de Gilliam (2000) para avaliação de programas de combate ao SIDA; de Reis (2003) para avaliação de atitudes e sentimentos dos professores face á Educação Sexual, também chamado de Questionário de Avaliação de Atitudes dos professores face á Educação Sexual, ou abreviadamente QAAPES e da UNAIDS (2000) para avaliação de atitudes com relação à educação sobre HIV/SIDA. O questionário constava essencialmente de 5 partes: (1ª). Treinamento e formação de professores (2ª). Educação sexual e saúde reprodutiva na escola, (3ª). Meios didácticos e metodología de ensino usados na abordagem de temáticas sobre sexualidade e SSR,(4ª). Dificuldades na abordagem de conteúdos sobre sexualidade e afins, (5ª). Atitudes e sentimentos de conforto e/ou desconforto em relação a determinados temas da sexualidade e SSR. As 5 resumiam-se em duas categorías, a saber: categoría avaliativa do sentimento de conforto ou de desconforto face aos temas da sexualidade e a categoría avaliativa das atitudes face a educação sexual. A categoria avaliativa envolveu a medição dos seguintes parâmetros: nível de formação do professor, nível de conhecimentos sobre sexualidade, posição relativamente a educação sexual na escola, aspectos da sexualidade considerados difíceis, grau de dificuldade enfrentada no ensíno dos conteúdos e acesso a meios didácticos.

Propriedades psicométricas do instrumento e validação das escalas e subescalas A fidedignidade ou homogeneidade dos itens nas escalas e subescalas foi avaliada por meio do coeficiente Alfa de Cronbach cujos valores se indicam seguidamente para cada escala: a) Escala de atitudes face á ES na escola (EAES): constitui-se em uma adaptação da escala utilizada por Vilar e Reis (2003) designado de QAAPS. Esta escala contimha itens positivos e negativos (eg. a educação sexual incentiva relações sexuais precoces, 10 itens (5 positivos e 5 negativos) cujas respostas eram dadas numa escala Likert de 5 pontos. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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Nesta escala obteve-se um alfa de Cronbach igual a 79, o que pode ser considerado satisfatório. b) A escala avaliativa dos conteúdos/aspectos da sexualidade de dificil leccionação (ECDL): era composta por 27 itens, todos eles referentes a temas gerais sobre Sexualidade e Educação Sexual constantes dos programas de ensino básico e secundário geral (8ª classe), como por exemplo: transmisão e prevenção do HIV/SIDA, anatomia e fisiologia do aparelho reprodutor, tomada de decisões e negociação do sexo seguro, masturbação e sonhos molhados, etc.. A fidedignidade da escala avaliada por meio do coeficiente de consistencia interna (alfa de Cronbach) apresentou um valor igual a 0.87, que pode ser considerado óptimo. Nesta escala o participante indica quão fácil ou dificil era leccioar os temas indicados obedecendo a seguinte escala likert: 1- muito fácil leccionar, 5-muito dificil de leccionar; c) escala de entraves na Educação Sexual (EES): Os aspectos envolviam: Falta de livros específicos sobre sexualidade para a preparação das aulas; falta de material/meios didácticos para alunos; superlotação das turmas; falta de orientações/sugestões metodológicas nos programas, a idade dos alunos, etc. Cujos escores na escala Likert estavam assim distribuidos: 1– Não é entrave; 2– Algum entrave; 3– Entrave; 4– Grande entrave, obtendo-se uma alfa de 0.77 (N=11). Na amostra final foram extraídos e retidos 4 factores todos com valor próprio superior a 1, explicando cumulativamente 67.9 % da variabilidade total dos dados. O primeiro factor com itens relativos ao professor comos sejam seus valores, formação/treinamento, foi designado de factor pedagógico/ professor (FPP); o qual explicava aproximadamente 27% da variabilidade; o factor 2 explicava 16.1% da variabilidade era composto por itens relativos ao aluno foi designado factor aluno (FAL); o terceiro factor explicava 14.5% da variabilidade e era constituído por itens relacionados as condições materiais e didácticas sendo por isso designado de factores didáctico-materiais e, finalmente, o quarto factor que explica 10.1% foi disignado factores pedagógicos relativos a composição da turma (FPCT); d) subescala explicativa dos entraves, forneceu um coeficiente alfa de cronbach igual Desta constavam de 27 itens, cujas opções de resposta era baseada numa escala Likert de 5 pontos assim distriduidos: 1- Não domino bem esta matéria, 2- Matéria bastante complexa, 3- Não me sinto seguro a ensiná-la, 4- Sinto-me psicologicamene embaraçado, 5- sinto falta de material didáctico para consulta/preparar a aula. Esta escala revelou uma excelente consistencia interna ao fornecer um alfa de Cronbach igual a 0.97; e) Escala de conforto face á temas da sexualidade: foi construida apartir do modelo utilizado por Reis (2003), na qual o participante indicava o grau de conforto/desconforto que sentiria ao abordar cada um dos temas da sexualidade que contam dos programas de ensino (básico e 8ª classe), tais como “aborto”, “funcionamento sexual masculino”, “contracepção”, “ciclo menstrual”, “masturbação e sonhos

molhados”, tomada de decisões responsáveis” “contracepção” (a escala variava de 1-Muito inconfortável, 3-indiferente: nem confortável e nem inconfortável, 5-Muito confortável de tal maneira que maiores medias correspondiam a maior conforto). No instrumento usado neste estudo obteve-se nesta susbescala com 27 itens um alfa de 0.918. f ) Escala avaliativa da metodologia/métodos de ensino em Educação Sexual baseou-se no modelo utilizado por Vilaça (2006) em que as metodologias utilizadas na educação sexual foram analisadas em função de três tipos de métodos de ensino: (1) métodos expositivos; (2) métodos alternativos à exposição; e (3) métodos de aprendizagem baseados na experiência empírica. Da análise da estrutura factorial exploratória,através dos método das componentes principais com rotação varimax foram extraidos 3 factores todos com eigenvalue superiores a 1, os quais explicam conjuntamente 62.0% da variabilidade dos dados. Esta escala forneceu um alfa de 893 (n=14). O primeiro factor envolvia variantes metodológicas relacionadas ao método de elaboração/trabalho conjunto (discussão professor-aluno, aluno-aluno), assim o factor 1 foi designado de Metodos alternativos a exposição (MAE) e explicava 43.2% da variancia com um alfa de .842, o segundo factor envolvia itens relativos ao trabalho activo do aluno foi designado de Abordagens de aprendizagem baseadas na experiencia empirica (AEP/PA) e explicava 10% dos dados e finalmente o terceiro e último factor foi denominado de Metodologia expositiva-apresentativa (MEX), centrada na exposição oral e/escrita do professor, que explicava penas 8.7% da variabilidade dos dados. A análise de fidedignidade nas escalas mostra alfas de 839 e 711 para o segundo e terceiro, respectivamente.

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RESULTADOS Atitudes face à Educação Sexual A pontuação final da escala de atitude em relação à educação sexual variou entre 21 e 40. Verificou-se que os professores tiveram atitudes relativamente neutras (M=30.29; DP= 2.54) face a educação sexual escolar.

Análises Inferenciais em Função das Variáveis Sócio-Demográficas Com relação ao genero observou-se que os homens tiveram atitudes mais positivas (M=31.2, DP=2.28) do que as mulheres (M=28.8; DP= 4.0) em relação á educação sexual e as diferenças de atitudes observadas foram estatisticamente signi19

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ficantes quanto ao género; F(1,57)=7.263; p=.009). Idade. Com relação às idades, observou-se que os professores mais jovens apresentavam, tendencialmente, atitudes mais positivas que os adultos, apesar de as diferenças de atitudes observada face á ES não terem sido estatisticamente significantes, F(4,57) =1.152, p=.343). Nem habilitações literárias (F(3,57)=.917; p=.439), expêriencia na leccionação (F(4,54)=2.156; p=.088), nem o facto do participante possuir ou não formação profissional como professor (F(1,57)=.604; p=.440) influenciaram suas atitudes face á ES na escola. Participação em acções de capacitação sobre Educação Sexual. A atitude face á ES foi influenciada, F(1,57) = 4.568; p=.037), pelo facto do participante ter ou não participado de acções de treinamento ou capacitação sobre matérias de Educação em Saúde Sexual e Reprodutiva incluindo HIV/SIDA. Os participantes que se beneficiaram de algum treinamento/capacitação em matéria de Educação Sexual ou Saúde Sexual e Reprodutiva apresentaram atitudes moderadamente mais positivas (M=31.1, DP=3.4) que áqueles que não tiveram qualquer capacitação (M= 29.9, DP=3.4).

Face aos resultados da tabela 1, procurou-se saber em que conteúdos, especificamente, os professores encaravam maiores dificuldade na sua abordagem. Os dados apontam que, independentemente da classe, experiencia docente, nivel académico, falar/ensinar a respeito de preconceitos e tabus sexuais (M=2.55, DP=.85), práticas sexuais e cultura (M=2.59, DP=.64), tomada de decisão e negociação (M=2.95, DP=.81), são conteúdos em que a maioria dos professores sente dificuldades em leccionar. De seguida analisam-se cada um dos temas especificos.

Alguns conteúdos da sexualidade de dificil leccionação a. Preconceitos e tabus sexuais. De acordo com os dados constantes da tabela, 44.1% do total da amostra afirmaram que o tema “precoceitos e tabus sexuais” são de dificil leccionação para os alunos. Porém, as análises revelaram que nem a idade (F(4,59)=2.492, p=.054) e nem o género (F(1,59)=.958, p=.332) condicionaram a dificuldade dos inquiridos na leccionação de conteudos relativos a preconceitos e tabus sexuais.

Dificuldade na abordagem de conteúdos/aspectos da sexualidade De modo geral para a maior parte dos respondentes são mais difíceis de abordar ou ensinar os aspectos sócio-culturais e psico-afectívos da sexualidade, com 46.3% e 29.9% cada. Em contrapartida, apenas uma minoria (23.9%) aponta os aspectos biológicos ou biomédicos como sendo difíceis de leccionar. Por outras palavras, significa que os aspectos biológicos da sexualidade são os mais fáceis de serem ensinados pela maioria dos professores (tabela1).

Tabela 2. Frequencias e percentagem na escala de dificuldade de leccionação do tema “preconceitos e tabus sexuais” Preconceitos e tabus sexuais Muito fácil Fácil de nem facil/ Difícil de Muito difícil de leccionar leccionar nem dificil leccionar de leccionar Sexo

Tabela 1. Aspectos da sexualidade dificeis de leccionar em função do género Total Aspectos da sexualidade mais difíceis de ensinar

Masculino Sexo Feminino Total

20

Biológicos

Sócio-culturais

Psico-afectivos

Total

f

3

16

12

31

%

4,5%

23,9%

17,9%

46,3%

f

13

15

8

36

%

19,4%

22,4%

11,9%

53,7%

f

16

31

20

67

%

23,9%

46,3%

29,9%

100,0%

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Total

Masculino

f

0

15

0

16

0

31

Feminino

f

0

5

4

15

12

36

f

0

20

4

31

12

67

%

0%

29,8%

5,9%

46,2%

17,9%

100,0%

b. Práticas sexuais e cultura Segundo os dados da tabela 12, 52.5% afirmaram que era dificil leccionar aspectos relativos á sexualidade no contexto sóciocultural/tradicional, aqui se referiu, por exemplo, aos papéis de género, direitos sexuais e reprodutivos, rituais de purificação de viúvas (Kutchiga na zona sul, Kupitakufa, na centro centro), ritos de iniciação masculina e feminina, alongamento do clítoris e lábios vaginais em alguns grupos étnicos de Moçambique. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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Tabela 3. Frequencias e percentagem na escala de dificuldade de leccionação do tema “práticas sexuais e tradição”

Algumas razões que explicam as dificuldades no ensino de aspectos psico-sócio-culturais da sexualidade

Práticas sexuais e tradição

Sexo

Muito fácil de leccionar

Fácil de leccionar

Difícil de leccionar

Muito difícil de leccionar

Total

Masculino

f

2

13

14

1

31

Feminino

f

0

11

18

2

36

Ft

2

24

32

3

67

%

2,98%

35,8%

47,7%

4,47%

100,0%

Total

c. Tomada de decisões responsáveis e negociação A tomada de decisão responsável e negociação nos relacionamentos amorosos, o desenvolvimento de competencias de assertividade, resistência á pressão dos pares para ter sexo, negociação de sexo seguro são alguns aspectos que os professores afirmam ser-lhes de dificil leccionação, aqui, por exemplo, 41.7% afirmaram ser dificil leccionar a tomada de decisão e negociação de sexo, enquanto que 38.3% afirmaram que este é um tema de fácil leccionação (tabela 4). Todavia, as diferenlas observadas em função do género não foram estatisticamente significativas F(3,59) =.875, p=.450).

Em geral as médias para os temas dificeis de leccionar, nesta escala variaram de 3-4, mostrando as dificuldades estariam também relacionados ao facto da materia ser considerada bastante complexa e á setimentos de desconforto. De facto, quando se olham para os resultados da tabela 5, observa-se que a média em relação ao tema Preconceitos e tabus sexuais (M=3.53, DP=1.52), estão próximas de 4.0, revelando que a razão é fundamentalmente pelo facto do professor sentir algum desconforto/embaraço psicológico, enquanto nos dois últimos a razão é serem consideradas matérias bastante complexas, as médias estão entre 3-4 e assim destribuidas em função dos temas: Tomada de decisão e negociação do sexo (M= 3.2, DP=1.47); Práticas sexuais e tradição (M=3.18, DP=1.46). Tabela 5. Medias e desvio padrão na escala explicativa das dificuldades no ensino de temas psico-sócio-culturais da sexualidade M

DP

1. Preconceitos e tabus sexuais

3,5306

1,52892

2. Práticas sexuais e tradição

3,1887

1,46834

3. Tomada de decisões e negociação

3,2000

1,47093

Nota: as medias de 1-2 revelavam insegurança/ falta de dominio da materia, 3-4: complexidade do assunto e embaraço psicológico, 5- contrangimentos didácticos por falta de material de consulta para preparar as aulas.

Tabela 4. Frequencias e percentagem na escala de dificuldade de leccionação do tema “tomada de decisões e negociação” Tomada de decisões e negociação do sexo

Sexo

Fácil de leccionar

Difícil de leccionar

Muito difícil de leccionar

Total

Masculino

f

1

12

13

3

31

Feminino

f

5

11

12

3

36

f

6

23

25

6

67

%

9,9%

34,3%

37,3%

9,9%

100,0%

Total

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Muito fácil de leccionar

Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

Entraves na lecionação de conteudos da sexualidade na escola Os dados da tabela 6 mostra, em geral, que os grandes entraves na Educação Sexualsão de natureza didáctico-pedagógica e não necessariamente epistemológica. Neste sentido os participantes destacaram: a falta de material didáctico sobre sexualidade/SSR para os alunos, turmas superlotadas, falta de sugestões ou orientações metodológicas nos conteudos relativos à sexualidade/SSR, nos programas do Ensino Básico e a idade dos alunos. Foi interessante observar que, por exemplo, os professores não olhavam para seus valores sociais, culturais e religiosos como possíveis entraves ao seu trabalho com a sexualidade.

Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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Tabela 6. Medias e desvio padrão na subescala de entraves na leccionação da Sexualidade

mais ele tende a utilizar metodologias menos tradicionais nas aulas sobre sexualidade e/ou saúde sexual e reprodutiva (r =-.421, p < .01).

M

DP

1. Seus valores morais, culturais e religiosos

1,98

0,95

2. Falta de treinamento ou capacitação dos professores em aspectos sobre sexualidade, saúde sexual e reprodutiva e HIV/SIDA

2,25

0,98

3. Falta de material/meios didácticos sobre sexualidade/SSR para alunos e professores

2,68*

1,03

4. Turmas superlotadas

2,51*

1,18

2. Dificuldade no ensino da ES

5. Falta/escassez de orientações metodológicas sobre a sexualidade nos programas de ensino

2,50*

0,99

3. Entraves na ES

693* .042

.067 -.042

-.375

.141

-.367

.031

-.060

4. Metodologia usada em ES 2,39

1,12

7. Tempo lectivo disponível nas aulas para ensíno e discussão da matéria com os alunos

2,19

0,79

8. Fraco interesse/sensibilidade dos professores sobre o assunto

2,23

1,06

9. Excesso de dúvidas por parte dos alunos.

2,16

1,06

2,95*

1,19

3.5. (Des)conforto face os temas da sexualidade Dos intens arrolados, o conteúdo no qual os professores apresentaram baixos niveis de conforto foi no tema “Masturbaçãoe sonhos molhados” (M=2.95, DP=.95). No entanto foram encontrados altos niveis mais alto de conforto em temas como: contracepção e planeamento familiar (M=4.2, DP=.61), Puberdade e transformações que ocorrem no corpo da muher e do homem na adolescência (M=4.65, DP=.84), fecundação gravidez e parto (M=4.98, DP= .78).

3.5.1. Relação entre nível de desconforto e dificuldades no ensino da sexualidade A relação entre as subescala de desconforto e de dificuldades face á leccionação dos conteudos da sexualidade foi calculada usando o coeficiente de correlação de Pearson, estas duas subescalas estão fortemente associadas entre si (r=.693, p˂0.01). Os dados da tabela mostram que quanto mais o professor se sente desconfortável em face de conteúdos da sexualidade tanto maiores tendem a ser as dificuldades que ele enfrentará ao ensiná-los na Educação Sexual. A tabela 7 também mostra que quanto mais alta ou positiva é a atitude do professor face à Educação Sexual na escola tanto 24

*p ˂0.01 1. Desconforto

6. Indisciplina dos alunos quando se trata deste tema

10. A idade dos alunos.

Tabela 7. Correlação, de Pearson, entre o nivel de desconforto face á conteudos da sexualidade e dificuldades na Educação Sexual

Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

-.421*

5. Atitudes face a ES

Metodos/estrategias usadas no trabalho com a Educação Sexual na escola A tabela 8 mostra as médias de frequencia de utilização de algumas técnicas de ensino em aulas sobre sexualidade humana. Segundo os resultados observa-se que dos métodos nunca ou muito pouco utilizados constam: i. jogo de papéis/ Role-play (M=1.96, DP=1,18) que levariam o aluno a reflectir sobre situações práticas e concretas do quotidiano e que eventulmente ele enfrentará em algum momento, ii. jogos/simulações e/ou actividades lúdicas (M=2.20, DP=1.15) que levariam o aluno a prender, activamente, a sexualidade brincando, interagindo com outros colegas, desenvolvendo habilidades para a vida; iii. murais e /ou exposições artisticas (M=2.10, DP= 1.25) para explorar as representações dos alunos face a vários dominios e ambitos da sexualidade, iv. fichas ou guiões de estudo independente sobre a sexualidade (M=2.1, DP=1.25), v.método de estudo/actividade em grupo na sala de aulas (M=2.3, DP=1.04). Tabela 8. Medias e desvio padrão na subescala de actividades/metodologias utilizadasnas aulas sobre sexualdade/saúde sexual e reprodutiva M

D.P

1. Exposição/métodoapresentativo

2,75**

1,17

2. Elaboraçãoconjunta

3,74**

1,17

3. Divisão dos alunos em grupos

2,35*

1,04

4. Palestra com activistas/agentes da saúde (especialistas)

2,81**

1,43

5. Fichas de estudo ou trabalho /actividade independente do aluno.

2,16*

1,25

Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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M

D.P

6. Role-play /simulações /teatro e dramatização

1,96*

1,18

7. Estudo de casos/ análise de acontecimentos da actualidade/do quotidiano

2,51**

1,21

8. Jogos/actividades lúdicas

2,20*

1,15

9. Debates/discussões entre alunos

2,83**

1,29

10. Leitura e análise de artigos emrevistas e jornais

2,50**

1,42

11. Murais, exposições/pinturas

2,10*

1,25

12. Recortes de jornais/revistas

2,82**

1,34

13. Chuva de ideias no ensino

3,03*

1,45

Nota: os itens assinalados com * são pouco ou nunca utilizados, enqunto os assinalados com ** são algumas vezes/frequentemente utilizados pelos professores no ensino de conteúdos da Sexualidade/SSR.

Recursos de ensino utilizados nas aulas de sexualidade/SSR Os dados da tabela 9 mostram que os professores nas aulas sobre conteúdos da sexualidade, Saúde Sexual e Reprodutiva utilizam muitas vezes ou quase sempre o quadro preto e o giz (M=3.6, DP=1.36), seu caderno de apontamentos (M=3.4, DP=1.3) e o livro/caderno do aluno (M=3.5, DP=1.4); enquanto que os menos utilizados são o visionamento de filmes seguido de debates (M=1.3, DP=.70) e a exploração/projecção de transparencia e slides. Tabela 9. Recursos didácticos utilizados pelos participantes nas aulas sobre sexualidade humana

26

M

DP

(1) Quadro “preto” e giz

3,67*

1,39

(2) Brochuras

2,75

1,24

(3) Panfletos e cartazes

2,96

1,29

(4) Livro do professor/caderno de apontamentos

3,48*

1,33

(5) Visionamento de filmes seguidos de debate

1,30**

0,70

(6) Exploração de transparências ou slides em turma

1,20**

0,55

(7) Utiliza livro e/caderno do aluno

3,54*

1,45

(8) Resolução de fichas de trabalho e textos de apoio

2,48

1,33

Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

M

DP

(9) Mapas ilustrados

3,00

1,41

(10) Revistas

3,03

1,37

Nota :(≤2 nunca, 2-2.99: pouca ou algumas vezes, 3-4: muitas vezes, 4-5: sempre). Os itens assinalados com * são as variantes do método expositivo mais explorados/utilizados; e o assinalados com ** são os menos utilizados.

Discussão Os sujeitos da pesquisa demonstraram atitudes relativamente neutras (M=30.2) com tendencia a positiva quanto à implementação de uma ES nas escolas. Encontramos, por exemplo, que os participantes desta pesquisa atribuem ou pelo menos reconhecem a importancia de dialogar com os alunos sobre aspectos da sexualidade, e discordam que a ES estimula o início precoce da actividade sexual (55.2%) ou que é imoral ensinar sexualidade aos alunos (80.6%). Porém, ainda assim cerca de 73.1% dos professores reconhece que esta actividade não tem sido nada fácil, o que permite sustentar as suspeitas do MINED (2003) segundo a qual os professores encaram dificuldades em ensinar a sexualidade aos alunos. Ao que nos mostram os resultados tais dificuldades são múltiplas, todavia considerando a dificuldade em ensinar conteudos da sexualidade numa escala crescente encontramos que os aspectos biomédicos são os mais fáceis de serem leccionados pela maioria dos participantes em contraposição aos psico-sócio-culturais considerados como os mais dificeis, facto que pode ser explicado em grande medida pelo enfoque médico-biologista (FIGUEIRÓ, 2006) que a sexualidade assume na formação inicial de professores em Moçambique. Como se observa os professores têm mais dificuldades em ensinar conteúdos que pela sua natureza demandam a reflexão sobre valores, atitudes, crenças e práticas, isto é, aqueles cujo resultado de aprendizagem seria o desenvolvimento de competências sociais, de habilidades para a vida, que são, por assim dizer, o eixo norteador do curriculo do ensino básico em Moçambique. A verdade é que continuamos a assistir na prática a uma educação (sexual) baseada no professor, na sua retórica, no seu ditado (monólogo), no giz e no quadro preto, o que no entender de Zabala e Arnau (2010) não favorecem o desenvolvimento do pensamento do aluno, da sua autonomia e criatividade, muito menos a necessidade formativa (competências sociais, pessoais e interpessoais) para responder aos problemas da vida. Por essa razão, Dias (2012) refere que “era preferível haver Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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franqueza e dizer-se que se continuam a usar métodos tradicionais e que o professor é o centro do PEA, do que estarmos a mentir para nós próprios”. Por outro lado Silberman, Auerbach (1998 apud VILAÇA, 2006, p.450) argumentam que “[...] a exposição coloca os participantes numa posição prolongada de ouvintes e a aprendizagem não pode ocorrer simplesmente ouvindo e vendo, pois é necessário que ocorra um processamento mental da pessoa para que a aprendizagem aconteça [...]”. Aliada a adopção de uma metodologia preferencialmente expositiva-apresentativa, protelando-se também o lúdico, os professores utilizam sempre o quadro preto, seu caderno de apontamento e o caderno/livro do aluno, o que evidencia uma “Educação Sexual do Giz”, do ditado, de memorização, obviamente baseada na exposição do professor, nesse contexto as aulas sobre sexualidade humana paasam a assumir o carácter de uma ‘catequese’. Encontrámos que as dificuldades enfrentadas pelos professores no ensino de conteudos da Sexualidade e/Educação Sexual não se devem necessariamente à existência de um déficitepistemológico no ambito da ES, mas, sobretudo ao domínio dos aspectos didáctico-pedagógicos, as metodologias de ensino em sexualidade por vezes até a tensão gerada entre a escola e família (aqui, por exemplo, questionava uma professora: como ensinar a um aluno de 6 anos que o que ele tem nos calções não é “bicho3” mas sim pénis, e como irei-lhe explicar para que serve? como irei dizer a minha aluna que o que ela tem dentro da calcinha chama-se vagina e não “minina”, e para que serve? para fazer xixí ...? e a professoa termina dizendo: alguns pais vêem até a escola para saber se estamos ensinando isso a seus filhos, porque ja sabem de preservativos, SIDA, etc, o que no entender de alguns pais não está correcto (PROFESSORA A). É verdade que a tarefa da educação para a sexualidade no contexto familiar, em Moçambique, continua sendo marcada por proibições, pelos tabus, medos e silêncios (OSÓRIO; SILVA, 2008); por outro lado, é-nos forçoso reconhecer que face às dinâmicas sociais e económicas porque vêm passando a nossa sociedade o papel familiar na educação para sexualidade vai-se diluindo de tal maneira que a responsabilidade da socialização sexual do adolescente e jovem é quase que alienada a outros elementos a exemplo da escola, dos tios e tias, dos mass media (televisão/ novelas) e dos amigos. “bicho”, “pipito”, são alguns termos usados na linguagem coloquial para se referir ao pénis, enquanto que “minina” é usualmente utilizada para se referir a vagina. E assim os genitais masculinos ganham uma conotação de algo mau, assustador, monstruoso, enquanto que a vagina passa a ser algo dócil, desejável.

Não raras vezes também as familias, a sociedade responsabiliza a escola pelo estado de socialização sexual (e.g.alterações de comportamento) dos educandos, apesar do silêncio que caracteriza as familias com respeito à sexualidade, por sua vez chama a escola atribui a responsabilidade da familia na gênese de tais alterações de tal maneira que acabamos por estar numa situação de culpabilização mútua (OSÓRIO; SILVA, 2008). Os mesmos autores afirmam, inclusive, que apesar desta crise transformativa sofrida pela familia na socialização sexual do adolescente não é menos verdade que a escola tem limites para o correcto desempenho deste papel, apresentando-se na maioria dos casos despreparada para orientar as/os jovens, particularmente quando se trata da socialização da sexualidade (OSÓRIO ;SILVA, 2008, p.109). De facto, pode até existir um despreparo colectivo quanto a isso, no entanto vale ressaltar que as dificuldades encontradas nesta pesquisa envolveram em maior ou menor peso variáveis pessoais do próprio professor (seus sentimentos de desconforto e insegurança), variáveis instituicionais (como a falta de recursos didácticos e sugestões metodológicas de como tratar a sexualidade com “crianças”), variáveis relativas ao aluno (idade). Assim, os professores demonstraram dificuldades em promover discussões com os alunos naqueles temas que favorecem o desenvolvimento de habilidades para a vida como, tomada de decisão responsável e negociação nos relacionamentos amorosos, o desenvolvimento da assertividade, resistência á pressão dos pares para ter sexo, negociação de sexo, etc., que são as premissas defendidas pelo MINED (2003) na sua estratégia de comunição em HIV/SIDA. Neste ponto é importante que tanto o ministério da educação (através da direcção nacional de formação de professores) quanto as instituições de formação de professores a exemplo dos IFPs e outras, elaborem planos de formação/treiamento dos professores em exercício e/ou em formação inicial a respeito da sexualidade infanto-juvenil e da educação sexual com recurso a metodologias inovativas baseadas na experiência empírica do aluno, portanto um ensino, da sexualidade, activo e criativo (VILAÇA, 2006). Um aspecto curioso nos resultados obtidos é que os participantes não referem, por exemplo, seus valores morais, culturais e religiosos como um entrave no seu trabalho comconteudos da sexualidade em sala de aulas, no entanto, apontam a idade dos alunos com um sério entrave, o que pode ser interpretado como uma atitude “politicamente correcta”. Veja-se que por um lado os professores reconhecem a importancia da educação sexual na escola, de falar da sexualidade com os alunos, no entanto ao se apontar a idade dos alunos como um entrave pode ser que seus sistemas de valores e crenças os informem que os alunos ainda são crianças e como tal não devem aprender assuntos da sexualidade que, eventualmente só dizem respeito a

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pessoas mais adultas. Mas a grande implicação pedagógica disso é o facto de indiciar dificuldades em desenvolver uma abordagem da sexualidade contextualizando-a à faixa etária dos alunos sem incorrer em inverdades, omissões ou desinformação ao aluno (NUNES; SILVA, 2006). Este facto ganho eco se atentaramos, por exemplo, o que disse um professor em idade já avançada quando questionado se ensinava sexualidade a seus alunos da 3ª classe ao que nos retorquiu “[...] nós aqui não ensinamos essas coisas aos alunos porque são crianças[...]”. Veja-se que os alunos das classes inciais do ensino primário são tomados como seres angelicais e, portanto desprovidos de uma sexualidade sui generis,de anseios e dúvidas quando na verdade é precisamente neste periodo em sua curiosidade, pelos genitais, pelas diferenças corporais se agudizam. Neste ponto Brasil (1997) esclarece que o autodescobrimento caracteriza grande parte da sexualidade infantil,

Segundo Louro (2000) há uma preocupação/tentativa em manter a “inocência” e “pureza” das crianças e dos adolescentes a respeito de questões sexuais, ainda que isso implique o silêncio e a negação de suas curiosidades e dos saberes infantis e juvenis sobre as identidades, as fantasias e as práticas sexuais. Porém, a mesma autora acautela que nessa ideologia a educação sexual passa a servir como um instrumento de vigilancia, de sensura, de repressão sexual, de proibições, de ocultamentos, de imposições á sexualidade dos alunos (CHAUI; WEREBE, 1981; LOURO, 2000). Por isso, é importante que os professores reconheçam e interiorizem que as crianças também possuem uma expressão própria de sua sexualidade, cabendo a nós, professores, saber lidar com ela em vez de reprimi-la, ou de nos sentirmos desconfortáveis diante de suas manifestações. Neste ponto, foi interessante observar, por exemplo, a existência de uma forte associação positiva (r =.693, p˂0.01) entre o nivel de desconforto diante de temas da sexualidade e o grau de dificuldade didáctico-pedagógica revelada pelo professor no ensino de topicos da sexualidade, ou seja quanto mais desconfortável se sente o professor tanto mais dificuldades ele sente em trabalhar de forma positiva e criativa a sexualidade com seus alunos. A esse respeito Reis (2003:739) lembra que “partindo do princípio de que um professor tem uma atitude favorável em relaçãoabordagem de temas sexuais e que teve acesso à formação nessa matéria, aindaassim o factor desconforto pode permanecer’’, facto que é igualmente corroborado pelos nossos resultados. Por outro lado, Boler et al. (2003) falam de um fenómeno a que designam de “ensino selectivo de tópicos da sexualidade’’, em que os professores evitam ensinar ou saltam aqueles conteudos com os quais não se sentem bem. Isso pode igualmente a acontecer em nossas escolas primárias uma vez que os sujeitos desta pesquisa consideram a idade dos alunos é um entrave na abordagem de temas da sexualidade eventualmente por serem crianças. Enfim, neste estudo, os participantes indicaram a falta de material didáctico de apoio sobre sexualidade, turmas superlotadas (que eventualmente dificulda a utilização de métodos participativo-activos), falta de sugestões ou orientações metodológicas nos conteudos relativos à sexualidade nos programas do Ensino Básico como outros constrangimentos do processo.

As manifestações da sexualidade infantil mais frequentes acontecem na realização de carícias no próprio corpo, na curiosidade sobre o corpo do outro, nas brincadeiras com os colegas (...). A manipulação curiosa prazerosa dos genitais e as brincadeiras que envolvem contato corporal nas regiões genitais são frequentes nos cíclos iniciais (MEC/SEF, 1997, p.300).

Mas também, a dificuldade em desenvolver uma abordagem contextualizada da sexualidade á faixa etaria dos alunos pode ter base explicativa em nosso contexto macrossial e cultural, uma vez que, Para quase todos os segmentos sociais da nossa sociedade, sexo e sexualidade, pertencem ao domínio do tabu (...) ao terreno do interdito e do desconhecido. O conhecimento e o domínio da sua linguagem não só constitui um enorme desafio, porque é diferente das linguagens do quotidiano, mas também porque a sexualidade é em sociedades como a nossa, o fundamento básico da moralidade familiar (CNCS, 2004, p. 34).

Contudo, Irvin (2000) entende que um treinamento gradual dos professores em matéria de sexualidade ajudalos-á a estar mais á vontade para falar com seus alunos sobre sexo e sexualidade. Todos esses factos quando conjugados podem explicar o porquê para alguns professores os conteúdos da sexualidade não deviam ser ensinados a alunos das classes inciais do ensino primário, evenualmente, por serem “crianças”, aliás, há um forte apelo no seio escolar para que o aluno do ensino primário se comporte como um sujeito assexual,para não revelar interesses a respeito de questões sexuais.

De posse dos resultados podemos afirmar que o trabalho com a sexualidade humana no ensino primário, numa dimensão aberta e positiva é uma utopia, uma vez que o ensino é bastante normativo, o que significa que o ensino da sexualidade

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Considerações finais

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ainda baseia-se no quadro, giz e ditado entremeado com momentos de diálogo catequético o professor com seus alunos. Por outro lado, comprovou-se de facto a existencia de dificuldades no trabalho com a sexualidade, as quais se aliam tanto ao professor, quanto ao sistema em si. Assim, defendemos a institucionalização da sexualidade como tema tranvsersal nos institutos de formação de professores (IFPs) em Moçambique ou que os mesmos beneficiem-se de uma formação em exercicio no dominio da educação sexual dissociado do enfoque meramente preventivo/biomédico.

MINED. (Ministério da Educação). Estratégia de Comunicação sobre o HIV/ SIDA, Maputo, 2003.

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Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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Doxa, v.17, n.1 e 2, p.13-34, 2013

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Juvêncio Manuel Nota

WEREBE, M. J. G. Sexualidade, Politica e Educação. Autores Associados: Campinas, 1998.

A CONCEPÇÃO DE CULTURA EM LEV SEMENOVICH VIGOTSKI E JEROME BRUNER: CONVERGÊNCIAS OU DIVERGÊNCIAS?

ZABALA, A.; ARNAU, L. Como aprender e ensinar competências. Artmed: Porto Alegre, 2010.

THE CONCEPTION OF CULTURE IN LEV SEMENOVICH VIGOTSKI AND JEROME BRUNER: CONVERGENCES AND DIVERGENCES

Vanessa Rabatini1 Lígia Márcia Martins2 RESUMO

ABSTRACT

Este artigo analisa a concepção de cultura em Lev Semenovich Vigotski e Jerome Bruner, apontando as possíveis convergências e divergências no tratamento que ambos conferem a esse fenômeno. Consideramos que um estudo desta natureza se faz relevante, uma vez que Bruner se apresenta como um dos mais destacados psicólogos culturais do mundo ocidental, desenvolvendo um decisivo papel na disseminação das obras de Vigotski nos campos da psicologia e da educação ocidentais. A importância da cultura na formação humana é, seguramente, o ponto central na articulação das obras desses autores, dado que nos encaminha para a análise do enfoque que ambos conferem a ela. Em face desse objetivo, apreendemos de suas obras núcleos teóricos conceituais relacionados à concepção de cultura, quais sejam: em Vigotski, natureza social do psiquismo, signos ou instrumentos culturais e função psicológica superior; em Bruner, universo simbólico, narrativa e comunidade cultural. Segundo Vigotski, a cultura é produto do trabalho objetivado em consonância com leis históricas e fundamental-

This article analyzes the conception of culture in Lev Semenovich Vigotski and Jerome Bruner, pointing out their possible convergences and divergences in the treatment that both give to this phenomenon. We believe that a study of this nature it is relevant, once Bruner is known as one of the most distinguished cultural psychologists of the occidental world, developing a decisive role in the dissemination of the works of Vigotski in the western psychology and education fields. The importance of the culture in the human development is certainly the central point in the joint of these authors’ works, since it leads us to the analyzis of the focus that both give to it. In light of this objective, we apprehended from their works conceptual theoretical cores related to the conception of culture of each author, which are, in Vigotski, social nature of the psychism, signs or cultural instruments and superior psychic function; in Bruner, symbolic universe, cultural narrative and community. According to Vigotski, the culture is a product of the labor objectified in step with historical laws determinated by the

1 Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar – UNESP - Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras- Araraquara-SP- Brasil. [email protected]. 2

Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar – UNESP- Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras- Araraquara-SP- Brasil- 14800-901. E-mail: [email protected].

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mente determinada pelas condições concretas da existência humana. Bruner, por seu turno, entende a cultura como um sistema simbólico construído, negociado e interpretado pelos indivíduos em contextos compartilhados de vida. A concepção de cultura em Vigotski integra a vertente materialista histórico-dialética, sustentando uma ontologia do ser ligado a sua historicidade e totalidade das relações sociais. Já Bruner estabelece sua concepção de cultura com base na fenomenologia hermenêutica, anunciando premissas da pós-modernidade e defesa do pluralismo cultural. Concluímos, assim, que Jerome Bruner, no seu viés fenomenológico hermenêutico, e Lev Semenovich Vigotski, fundamentado em uma ontologia de cunho marxista, não obstante defenderem a tese da natureza cultural do psiquismo apresentam distintas concepções de cultura. A nosso juízo, Bruner – ao propor a psicologia cultural entendendo que sua obra é uma continuidade do trabalho vigotskiano, pretere os fundamentos epistemológicos que marcam distintivamente suas proposições em relação à psicologia histórico cultural.

PALAVRAS-CHAVE Vigotski. Bruner. Cultura e Psicologia.

concrete conditions of the human existence. Bruner, on the other hand, understands the culture as a symbolic system built, negotiated and interpreted by the individuals in shared contexts of life. The conception of culture in Vigotski integrates the materialistic, historical-dialectic angle, sustaining a being ontology linked to his historicity and totality of the social relations. While for Bruner, he establishes his conception of culture based on the hermeneutic phenomenology, affirming premises of the postmodernity and defense of the cultural pluralism. Thus, we conclude that Jerome Bruner, in his phenomenological hermeneutic cutting, and Lev SemenovickVigotski, based on a Marxist ontology, nevertheless they defend the thesis of the cultural nature of the psychism, have different conceptions of culture. In our opinion, Bruner, by proposing the Cultural Psychology, understanding that his work is a continuity of Vigotski’s work, prefers the epistemological fundamental that mark severally their propositions towards the cultural historical psychology.

KEYWORDS Vigotski. Bruner. Culture and Psychology.

Introdução Este artigo coloca em questão a centralidade do conceito de cultura nas obras de Vigotski3 e Bruner, visando contribuições para o campo da educação escolar, tanto no que se refere aos debates sobre as relações entre cultura e conteúdos escolares, quanto no que concerne aos estudos sobre o caráter essencialmente cultural dos processos psicológicos presentes na atividade de aprendizagem dos referidos conteúdos. Ao analisarmos a concepção de cultura desses dois autores, destacamos, especialmente, as relações que eles tecem entre cultura universal e cultura local. Ademais, ao empreendermos essa análise não desconsideramos o contexto 3

Adotaremos a grafia Vigotski, exceto em citações, quando reproduziremos a forma empregada no original.

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histórico-cultural do qual ambos fizeram parte. Os estudos do primeiro, no campo de uma psicologia cultural, ocorreram no contexto da União Soviética no período que se estende de 1917, ano de sua formatura e da Revolução Russa, até 1934, ano de sua morte; já os trabalhos empreendidos pelo segundo pertencem às duas últimas décadas do século XX e foram realizados no contexto da América do Norte e Europa. Vigotski (1993, 1995, 1997) estudou a influência da cultura sobre o desenvolvimento psicológico a partir da análise do processo de emprego de signos como meios de complexificação das funções psíquicas, transformando-as de funções naturais e espontâneas em funções culturais e voluntárias. As funções psíquicas mediadas pelo uso dos signos existentes na cultura foram consideradas por Vigotski como funções superiores, responsáveis pela diferenciação entre o psiquismo humano e o psiquismo animal, ou seja, responsáveis pela humanização do psiquismo. Bruner (1997) reconhece que Vigotski foi um dos primeiros psicólogos a estudar o papel constitutivo da cultura sobre a evolução da natureza da espécie humana, bem como sua influência sobre o desenvolvimento psicológico dos seres humanos. O psicólogo americano defende o desenvolvimento de uma psicologia que tenha em seu centro a ideia de significados culturalmente produzidos e compartilhados e, mais do que isso, uma psicologia que veja a si mesma inserida nos processos culturais de compartilhamento e negociação de significados. Anuente à importância conferida por Vigotski à apropriação da cultura na constituição psíquica, Bruner se apresenta como um dos mais destacados psicólogos culturais do mundo ocidental, desempenhando um decisivo papel na disseminação das obras de Vigotski nos campos da Psicologia e da educação. Não por acaso escreveu, no início dos anos sessenta, o prólogo da primeira edição norte-americana do livro Pensamento e Linguagem de Vigotski (1962) e 25 anos depois escreveu o prólogo do primeiro volume, publicado nos Estados Unidos, das obras escolhidas de Vigotski (BRUNER, 1987). Em 1996 proferiu conferência intitulada Piaget e Vigotski: celebrando as diferenças (BRUNER, 2006, p. 187-197), em um congresso internacional que comemorou, em Genebra, o centenário do nascimento tanto de Piaget como de Vigotski e no ano de 2005 Bruner gravou uma conferência que foi exibida na seção de encerramento do primeiro congresso da International Society for Cultural and Activity Research, realizado em Sevilha, Espanha. Para o desenvolvimento deste artigo, analisamos, no primeiro item, a concepção de cultura em Vigotski, dispensando atenção especial aos núcleos teóricos: Doxa, v.17, n.1 e 2, p.35-52, 2013

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natureza social do psiquismo, signos ou instrumentos culturais e funções psíquicas superiores. No segundo item, apresentamos a concepção de cultura em Bruner a partir de três núcleos teóricos: universo simbólico, comunidade cultural e narrativa. No que concerne ao terceiro item, tomamos como objeto de apresentação e análise as premissas epistemológicas que balizam a produção dos dois autores, para, na sequência destacar as divergências teórico-metodológicas existentes entre elas. Por fim, nas considerações finais, sintetizamos as proposições desses autores e suas possíveis implicações para a educação escolar.

O segundo traço aponta que a atividade consciente suplanta os limites das condições sensorialmente dadas pelo meio à medida que, abstraindo-as, o homem guia suas ações não mais pela captação sensorial imediata, mas pelos conhecimentos que elabora e preserva conscientemente sobre essa captação. Assim, a atividade consciente orienta-se por um domínio mais profundo da realidade, não dado imediatamente na relação sujeito-objeto. O terceiro traço refere-se à apropriação do legado objetivado pela atividade humana ao longo das gerações, graças a qual a existência de cada indivíduo passa a condensar habilidades que foram criadas ao longo de milênios. Trata-se, segundo Vigotski, da reorganização dos mecanismos naturais, dos processos psicofísicos, por decorrência da apropriação dos signos da cultura. Nesse processo de transformação do naturalmente dado em direção ao culturalmente desenvolvido, reside a função dos signos como instrumentos da ação psíquica socialmente condicionada. Nas palavras do autor:

1. A concepção de cultura em Vigotski Vigotski, em sua obra, parte do princípio marxiano segundo o qual existe uma relação de condicionabilidade recíproca entre o desenvolvimento do psiquismo humano e a complexificação do trabalho – como processo que ao transformar a natureza, transforma também o próprio homem. No produto histórico do trabalho, isto é, na cultura, reside, pois, o conteúdo fundante das práticas humanas e dos processos psíquicos que são requeridos por ela. Para uma compreensão mais aprofundada desse pressuposto, destacamos na sequência as proposições vigotskianas acerca da natureza social do psiquismo e do papel dos signos ou instrumentos culturais na formação das funções psíquicas superiores. Segundo esse autor, as características fundamentais do trabalho, a saber, sua natureza gregária, a mediação de instrumentos e a objetivação de seus resultados disponibilizados à apropriação de outros, marcam, em definitivo, a transição da história natural dos animais à história social do homem. Nessa direção, o processo de trabalho intervém decisivamente na formação das particularidades humanas, que se colocam, cada vez mais, como resultados e ao mesmo tempo como condições de sua realização. Pelo trabalho, o homem inaugurou uma forma específica de atividade – a atividade consciente, cujos resultados determinaram saltos qualitativos incomensuráveis em sua relação com a natureza. Grosso modo, tais resultados se expressam em três grandes traços. O primeiro traço diz respeito ao fato de que a atividade humana se desprende dos limites das necessidades naturais, biológicas e, mesmo ao visar atendê-las, o faz vinculando-as a outras e mais complexas necessidades. Por essa via, para além do atendimento de necessidades vitais orgânicas, o homem criou novas demandas tão vitais quanto as primeiras, instituindo uma ‘segunda natureza’, isto é, um universo cultural de existência.

Nessa direção, Vigotski estabelece uma analogia entre os instrumentos técnicos de trabalho – na condição de ‘ferramentas’, de meios para a execução de dada operação, e os signos – na condição de ‘ferramentas psíquicas’, ou meios auxiliares para a solução de alguma tarefa psicológica complexa desenvolvida pelo homem. Para ele, o dado essencial na utilização tanto das ferramentas técnicas quanto dos signos é o papel que assumem na complexificação da conduta humana, ou seja, o papel das ferramentas em uma operação laboral é igualmente a função instrumental do signo no ato psíquico. Da mesma forma que as ferramentas, os signos originam-se na atividade de trabalho que, em sua natureza gregária, determinou a superação dos sistemas de comunicação naturais, instintivos, em direção ao desenvolvimento da linguagem. Graças a esse desenvolvimento, a imagem psíquica advinda da captação sensorial do objeto conquistou o seu mais importante atributo: a denominação por meio da palavra, a partir da qual as ideias, os conceitos e juízos puderam ser elaborados. Não sem razão, Vigotski encontra na palavra o dado matricial do signo.

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chamamos signos os estímulos artificiais introduzidos pelo homem na situação psicológica, que cumprem a função de autoestimulação; incluindo a este termo um sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais exato do que se tem habitualmente a essa palavra. De acordo com nossa definição, todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta – própria ou alheia – é um signo (VIGOTSKI, 1995, p. 83).

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Portanto, a adoção do conceito ‘ferramenta’ corresponde à função mediadora que algo assume como condição de realização de dada ação. Vigotski afirma que do ponto de vista lógico, tanto os instrumentos técnicos quanto os signos devem ser considerados no âmbito de um processo mais geral: no processo de mediação. Interpondo-se entre o homem e o mundo que o cerca, ambos potencializam a operacionalização dos atos humanos, sejam eles práticos ou teóricos. Para Vigotski (1997), o ato instrumental, isto é, o ato mediado, introduz profundas mudanças no comportamento humano, posto que entre a resposta da pessoa e o estímulo do ambiente se interpõe um novo elemento designado signo. O signo, então, opera como um estímulo de segunda ordem que, retroagindo sobre as funções psíquicas, transforma suas expressões espontâneas em expressões volitivas. As operações que atendem aos estímulos de segunda ordem conferem novos atributos às funções psíquicas e por meio deles o psiquismo humano adquire um funcionamento qualitativamente superior. Nesse processo, Vigotski (1995) identifica o traço distintivo entre as funções psíquicas elementares, legadas pelo desenvolvimento filogenético da espécie, e as funções psíquicas superiores, desenvolvidas culturalmente por meio da internalização de signos. O autor reiterou que da mesma forma que o emprego de ferramentas possibilita a complexificação das atividades de trabalho, o emprego de signos promove a complexificação das funções psíquicas. Por conseguinte, o sistema de atividade do indivíduo determina-se a cada etapa do desenvolvimento pelo grau de desenvolvimento orgânico e pelo grau de domínio de signos, numa dinâmica em que o segundo retroage sobre o primeiro condicionando sua superação. O processo de desenvolvimento cultural das funções psíquicas pressupõe que a cada momento os limites do sistema funcional primitivo, elementar, que aprisionam sujeito e objeto no padrão imediato de estímulo e resposta, sejam superados pela interposição de conteúdos culturais consubstanciados nos signos. Assim, para Vigotski, o psiquismo superior não se institui por desdobramentos naturais do ser orgânico, de sorte que a história real de seu desenvolvimento reflete a história de complexificação da vida em sociedade. Em suas palavras: “as funções psíquicas superiores são relações interiorizadas de ordem social, são o fundamento da estrutura social da personalidade. Sua composição, sua estrutura genética e modo de ação, em uma palavra, toda sua natureza, são sociais” (VIGOTSKI, 1995, p. 151). Em suma, para Vigotski, a cultura representa o acervo de objetivações materiais e simbólicas produzidas pela prática social do conjunto dos homens, segundo as leis históricas que regem as condições concretas de sua existência. O autor estabelece

estreito vínculo entre a cultura e as relações sociais de produção erigidas pelo trabalho, conferindo à cultura um caráter histórico-concreto. As produções culturais, sejam elas físicas ou simbólicas, colocam-se, pois, a serviço do domínio da natureza, do domínio do sujeito sobre o objeto, dado que requer o domínio do sujeito sobre si mesmo e, consequentemente, o desenvolvimento de funções psíquicas superiores. Nessa direção, os significados e os conhecimentos elaborados visam à decodificação da realidade objetiva que existe fora e independentemente da consciência dos homens, aos quais compete representá-la de forma multilateral e profunda, isto é, para além de sua manifestação fenomênica, aparente. Para Vigotski (1996), nisso reside a função precípua da internalização de signos: a constituição da consciência como um sistema de conhecimentos que suplanta significações espontâneas, fortuitas, em direção aos conceitos maximamente representativos da realidade concreta.

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2. A concepção de cultura em Bruner Cultura, para Bruner, é um sistema simbólico construído, interpretado e negociado pelos indivíduos em situação de vida compartilhada. Partindo dessa tese do autor e objetivando o seu aclaramento, apresentaremos três núcleos teóricos depreendidos de sua obra, a saber, universo simbólico, comunidade cultural e narrativa. Para esse autor, a cultura tem como elementos constitutivos primários os sistemas simbólicos que conferem significados às ações dos indivíduos. O autor utiliza-se da metáfora “kit de ferramentas comunitário” para referir-se a esses sistemas simbólicos, arraigados na vida social e consubstanciados na linguagem, dado que torna seus usuários reflexos da comunidade em que se inserem (BRUNER, 1997, p. 22). De acordo com esse pressuposto, a evolução humana ocorreu com o surgimento desses sistemas simbólicos compartilhados, pelos quais as restrições humanas naturais, biológicas, puderam ser superadas. Como marco da evolução do homem, a cultura molda a ‘mente’ enquanto produto da história e não da natureza, tornando-se um universo simbólico ao qual os indivíduos se adaptam negociando significados. Portanto, o ser humano estabelece uma adaptação mais complexa na natureza que o animal e essa adaptação ocorre pelas formas de compartilhamento de signos. Bruner integra uma psicologia que tem em seu centro a ideia de significados culturalmente produzidos e compartilhados e, mais do que isso, uma psicologia que tem a si mesma inserida nos processos culturais de compartilhamento e negociação de significados. Conforme o autor, essa negociação se faz necessária em face das inúmeras possibilidades de atribuição de significados aos objetos e fenômenos e, Doxa, v.17, n.1 e 2, p.35-52, 2013

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igualmente, por conta das várias interpretações que cada indivíduo pode conferir ao mundo. Assim, a cultura é sempre unidade de interpretações edificada em contextos particulares, e a esse fenômeno Bruner chamou de comunidade cultural (1997, p. 27). Segundo o autor, uma psicologia de orientação cultural toma como central que interpretação e explicação são modos pelos quais o pensamento se processa com vista a orientar as pessoas na realidade. Tais modos são referidos também como pensamentos narrativo e paradigmático. Com base nesse pressuposto, desenvolve a ideia de que uma comunidade cultural, cultura situacional ou ação situada (o autor não possui uma expressão única para definir uma cultura em seu contexto particular) constitui e estabelece especificidades de pensamento próprias às condições de vida grupal, tais como crenças, valores, religiões, etc. Nesse modelo de psicologia, a ‘mente’ é modelada pela cultura, sendo parte de um processo evolutivo da humanidade. Essa evolução estaria ligada ao desenvolvimento de uma forma de vida na qual a cultura é representada por um simbolismo compartilhado entre os membros de uma comunidade cultural, organizada e interpretada por meio desse mesmo simbolismo. Portanto, para Bruner, esse modo simbólico não é apenas compartilhado por uma comunidade, mas elaborado, conservado e transmitido para outras gerações. Nesse sentido, a cultura é considerada pelo autor como supraorgânica e, ao mesmo tempo, condicionante primário do psiquismo de cada indivíduo. A sua expressão individual integra a produção de significados a coisas em diferentes contextos e em ocasiões particulares. Ainda de acordo com essa concepção, a produção de significados envolve encontros com o mundo em contextos culturais específicos, em decorrência dos quais os indivíduos conquistam os conhecimentos ou saberes referentes aos objetos ou fenômenos que pautam o referido contexto. A ideia da cultura como supraorgânica é oriunda da antropologia, tanto que autores dessa vertente, como Clifford Geertz, tornam-se referências importantes na produção bruneriana, influenciando fortemente a concepção de cultura como comunidade cultural. Geertz (1978) define a cultura como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, que integram um contexto que pode ser descrito de forma inteligível, isto é, descrito com densidade, como se referem os antropólogos. O ponto central das concepções de cultura de Geertz e de Bruner reside no fato que ambos a tomam como um sistema de significados a serem interpretados e negociados entre os indivíduos, instituindo-se e preservando-se pela via do compartilhamento. Outra aproximação entre Geertz e Bruner diz respeito à afirmação da linguagem como principal signo cultural. Para ambos, a linguagem é a ferramenta mais poderosa

para a organização do conhecimento e da experiência e, consequentemente, para constituir realidades. Nessa concepção, os produtos da linguagem assumem uma função representativa da realidade, na qual o significado é o foco central. Assim como a palavra pode ser interpretada, também o será a cultura, concebida como uma espécie de “texto” que seus integrantes “leem” para sua própria orientação. A linguagem é a própria narrativa em forma de discurso, como representação da realidade interna do sujeito. A narrativa vincula-se ao discurso do indivíduo, bem como à sua capacidade de entender e verbalizar sua realidade psíquica, como a própria linguagem. A narrativa é polissêmica, ou seja, passível de várias interpretações e significados, ao contrário da explicação que dispõe de um único significado, qual seja, o de quem explica. Da mesma forma que a explicação na ciência se caracteriza por critérios de rigor, os estudos sociais, a história e a literatura também possuem a sua própria rigorosidade. O autor caracteriza a narrativa como uma forma de arte, ou melhor, a arte é a estrutura da narrativa. A realidade psíquica dominaria a narrativa, de sorte que o estado temporal é o da realidade imediata e cotidiana. Para Bruner (2001), a narrativa é a introspecção do indivíduo convertida em linguagem, explicitando a forma pela qual o indivíduo organiza suas experiências e conhecimentos, sua compreensão acerca dos mesmos e as ideias que incorporou, manifestando-os como uma história ou formato narrativo. Tais considerações apontam na direção da importância conferida à questão da linguagem em suas relações com a concepção de realidade. Daí, para Bruner, a linguagem ser entendida como a realidade dos seres humanos na medida em que ela, na qualidade de signo, ancora e representa a psique humana. Em suma, ao analisar os modos de pensamento paradigmático e narrativo, sendo o primeiro de cunho explicativo e o segundo interpretativo, Bruner evidencia que para se conhecer a realidade o modelo narrativo é o mais adequado. Desta forma, a ação humana é mediada pelo significado, cuja instituição subordina-se à interpretação compartilhada. Nessa perspectiva, o signo é algo interpretado pelo indivíduo e profundamente arraigado à cultura que condiciona sua subjetividade.

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3. Premissas epistemológicas da concepção de cultura em Vigotski e Bruner Neste item, abordamos primeiramente os fundamentos epistemológicos das proposições de Vigotski, cujo esteio reside no materialismo histórico dialético. Em seguida, discorremos sobre a fenomenologia hermenêutica, aporte teórico que baDoxa, v.17, n.1 e 2, p.35-52, 2013

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liza a obra de Bruner. Por fim, analisamos tais pressupostos tomando como base a categoria dialética singular-particular-universal proposta por Lukács (1970). O surgimento da psicologia soviética é marcado pela revolução de outubro de 1917, período em que o materialismo histórico dialético assume destaque nos debates acadêmicos na Rússia antiga. Portanto, suas raízes são fortemente vinculadas à perspectiva de transformação social e à adoção da filosofia materialista dialética na qualidade de método de análise e intervenção na realidade. No âmbito da ciência psicológica, a teoria histórico-cultural desponta voltada para a construção de uma psicologia articulada à realidade econômica, política e social de seu tempo, rompendo definitivamente com o caráter supostamente neutro das psicologias “tradicionais” já existentes naquele momento. Sendo assim, ao incorporar o materialismo histórico dialético aos seus trabalhos, Vigotski dedicou-se a uma nova concepção de homem, conhecimento e realidade. Assim, sustentando uma concepção marxista de homem, ou seja, de um ser coletivo e social que se humaniza ao mesmo tempo em que transforma a natureza por meio do trabalho, Vigotski buscou nas especificidades do processo de produção e reprodução da realidade humana os fundamentos de seu desenvolvimento, entendido como confronto entre natureza e cultura. O autor considera que o salto qualitativo da vida biológica para a vida social é marcado pela relação dialética entre a internalização dos produtos da cultura e a própria cultura como objetivação do trabalho humano. O trabalho, portanto, demarca, nessa perspectiva, a relação entre o homem e a natureza, na qual o homem se apropria das forças essenciais da natureza, incorporando-a e transformando-a por sua prática social. E é por meio desta relação ativa que a produção do conhecimento objetivo desponta como forma de desvelamento da realidade pelo homem e, igualmente, como decorrência da práxis (integração teórico-prática), uma vez que, o conhecimento só é possível por meio da relação sujeito-objeto. Para o materialismo histórico dialético, a práxis aponta na direção da universalidade humana, o que significa dizer que o conhecimento advindo da prática humana relaciona-se com a realidade objetiva e serve de objeto dessa atividade. Por isso, as ideias, os conceitos não surgem unilateralmente a partir da consciência do sujeito, mas pelas demandas da captação do real. A prática humana que emana da relação ativa sujeito-objeto e produz o conhecimento objetivo da realidade é um processo histórico e universal que congrega em si as características subjetivas e objetivas do homem. É antes de mais nada um

processo de elaboração da inteligibilidade do real, ou imagem subjetiva da realidade material em sua máxima fidedignidade (MARTINS, 2011). Para o materialismo histórico dialético a realidade é histórica, o que determina reconhecê-la como um processo em constante transformação. O movimento do real, por sua vez, ocorre graças às contradições internas imanentes a todos os fenômenos, numa dinâmica de transformação por superação da condição dada imediatamente. Por isso, a efetiva captação do real subjuga-se à captação do trânsito metabólico que marca a existência do objeto como movimento. Nessa direção, urge a necessidade de superação daquilo que se manifesta na aparência do fenômeno, tendo em vista a identificação das tensões que emanam da relação entre aparência e essência. Por isso, a psicologia histórico-cultural, tendo como base o marxismo, afirma que a construção do conhecimento deve visar à apreensão da realidade em suas múltiplas determinações, ou seja, deve-se estudar qualquer fenômeno em sua totalidade, nas intervinculações e interdependências que mantém em relação à realidade concreta que sustenta sua existência objetiva. Bruner, por sua vez, assume uma compreensão de homem, conhecimento e realidade que se apoiam na fenomenologia hermenêutica e, para explicitarmos essa assertiva, apresentamos brevemente os significados filosóficos conferidos à fenomenologia e à hermenêutica. A fenomenologia é fruto de duas expressões gregas, phainomenos e logos. Phainomenos (fenômeno) significa aquilo que se mostra por si mesmo, o manifesto. Logos é tomado como o discurso esclarecedor. Assim, “fenomenologia” significa: discurso esclarecedor a respeito daquilo que se mostra por si mesmo (MARTINS, 1984). A ciência fenomenológica, cujo proponente foi Edmund Husserl (1859-1938), se apoia fundamentalmente no conceito de epoché. Essa expressão tem origem na língua grega, e significa “suspensão do juízo”, diluindo o mundo da objetividade em favor da subjetividade. A hermenêutica, derivada do verbo grego hermenewin cujo significado consiste, entre outros, interpretar ou levar algo à compreensão, é tomada no início do século XIX pela filosofia como uma teoria geral do conhecimento. Além de ser uma teoria da compreensão interpretativa, a hermenêutica é também um movimento filosófico que destaca a importância da interpretação não apenas no caso de textos, mas, sobretudo, no âmbito das relações com a realidade. Nessa direção, indivíduo e realidade são expressões daquilo que se manifesta fenomenicamente em situações imediatas particulares. Portanto, compreender a realidade neste pressuposto implica dedicar-se ao fenômeno, ou seja, interpretar

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o que se mostra por si mesmo, entendendo-se que a essência não está por trás do fenômeno – ela é o próprio fenômeno que se apresenta e se transforma em cada situação particular vivida ou manifesta. A fenomenologia, assim como a hermenêutica, tem como tarefa a descrição e não a explicação, na medida em que questiona o caráter absoluto das teorias empiristas, e objetivistas, consideradas impeditivas da autêntica relação do homem com “as coisas mesmas”. Segundo essa perspectiva, tudo o que homem sabe, e nisso se inclui a própria ciência, ocorre a partir de uma experiência de mundo específica, que dá sentido aos próprios símbolos constitutivos do conhecimento. Esses pressupostos desvelam-se na obra bruneriana, sobretudo, quando ele tece considerações epistemológicas sobre o que é conhecimento e realidade. Para esse autor, por exemplo, os estados psíquicos do homem são expressos em suas narrativas e interpretados de acordo com o contexto em que se inserem, tornando-se validações da realidade e conhecimento do homem. Destarte, Bruner (2001) considera que o conhecimento é crença justificada e a explicação objetiva é mérito de um modelo positivista, que ele cunha pejorativamente. Esse caráter interpretativo que orienta a psicologia cultural de Bruner desemboca inevitavelmente no relativismo, posto que para o autor cada indivíduo constrói sua realidade dentro de uma dada cultura. Bruner (1997) considera o relativismo como uma forma de conhecimento flexibilizada, advinda da unidade entre o homem e seus signos culturais. Nessa perspectiva, a realidade é construída à medida que na cultura estão imbricados processos de construção e negociação (o que o autor cunhou como construtivismo ou “virada interpretativa”), sendo que a essa prática o relativismo é inerente. Para Bruner (1997, p. 31), a alegação básica do construtivismo é simplesmente de que o conhecimento é “certo” ou “errado” à luz do ponto de vista que se escolhe assumir. Assim, deve-se estar ciente do ponto de vista do qual o conhecimento desponta, já que não há verdades ou falsidades absolutas. Essa concepção de conhecimento no autor advém de seu referencial teórico com base no pragmatismo de Richard Rorty (1982) e William James (1907). Isso nos fica claro quando Bruner cita premissas dos autores referidos como, por exemplo, que a verdade é “o que é bom sob a forma de crença e não há nenhuma utilidade sermos informados de que a verdade é uma correspondência com a realidade” (BRUNER, 1997, p. 31). Para o autor, a verdade é relativa às crenças que as justificam e à importância que assumem para orientarem a visão de mundo dos indivíduos no interior da comunidade cultural da qual participam.

Ainda no que concerne à realidade conforme a teoria bruneriana, ela é produto dos usos linguísticos representados em atos de fala e a cultura, nesse ínterim, é um texto ambíguo que precisa ser constantemente interpretado pelos que a integram. Portanto, a linguagem, nessa perspectiva, tem um papel fundamental na construção da realidade social, concebida, necessariamente, como representação subjetiva.

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4. Divergências epistemológicas nas concepções de cultura em Vigotski e Bruner Conforme exposto, Vigotski  – fundamentado em uma ontologia de cunho marxista e Bruner – baseado na fenomenologia hermenêutica, não só se distanciam no que tange ao enfoque conferido à cultura, como também divergem. Vigotski (1995), em sua produção, já criticava as psicologias empíricas subjetivistas, pautadas na fenomenologia-hermenêutica. Bruner (1997, 1998, 2001), ao propor a psicologia cultural, entendendo que sua obra é uma continuidade do trabalho vigotskiano, pretere a referida crítica e, da mesma forma, que epistemologicamente seus trabalhos são diversos. Uma aparente aproximação de alguns conceitos, a exemplo do papel da linguagem e apropriação dos signos culturais, não ultrapassa o âmbito das aparências, posto que, na essência, as posições metodológicas desses autores são radicalmente distintas. Sobre tal assertiva nos aprofundaremos a seguir. De partida, há que se destacar a própria concepção de cultura que baliza as proposições dos autores em questão. A teoria de Vigotski, sustentada pelos preceitos do materialismo histórico dialético, apresenta-nos a cultura como expressão universal, produzida pela prática social do conjunto dos homens e disponibilizada à apropriação por parte dos indivíduos. Diferentemente, Bruner, no seu referencial fenomenológico hermenêutico, a concebe como construção e expressão particular, imediatamente dada aos indivíduos por meio do compartilhamento de significados. Essa divergência ganha relevância à medida que dela resulta, também, uma concepção distinta acerca da relação entre indivíduo e sociedade. Para explicitarmos essa assertiva, recorremos à análise de Oliveira (2001) sobre essa relação, desenvolvida pela autora com base na dialética entre singularidade, particularidade e universalidade proposta por Lukács (1970). Segundo Oliveira, a relação indivíduo-sociedade só pode ser compreendida como expressão de uma relação mais ampla, isto é, da relação indivíduo-genericidade. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.35-52, 2013

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A concepção de cultura em Lev Semenovich Vigotski e Jerome Bruner: convergências ou divergências?

A concretização da genericidade na vida do indivíduo, ou seja, sua constituição como ser pertencente ao gênero humano, só se realiza pela via da sociabilidade, isto é, na dependência das apropriações das objetivações humano-genéricas. Na ontologia marxiana, a correta compreensão do homem como ser social demanda sabê-lo instituído cultural e historicamente, num processo que imbrica o indivíduo (singular) e o gênero humano (universal) por meio das mediações que entre eles se estabelece (particular). Por isso, para o marxismo, do ponto de vista ontológico, não há antagonismo entre homem e sociedade, sendo ambos os polos de um mesmo processo histórico. Ocorre, porém, que a sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que torna a vida humana mais livre e universal, não garante que todos os seus membros tenham acesso a essa riqueza, nisso residindo o cerne da alienação entre o indivíduo (singular) e o patrimônio humano-genérico (universal). Destarte, Oliveira (2001) aponta como equívoco conceitual, advindo dos próprios processos de alienação, tomar-se a “sociedade” como representativa do coletivo ou do mais amplo e, consequentemente, a relação ‘indivíduo-sociedade’ nas manifestações imediatas desse binômio. Nas palavras da autora: “a realidade da categoria de ‘indivíduo’ e de ‘sociedade’ é concebida como sendo aquilo que está sendo manifesto, aquilo que se pode ver, medir, observar de imediato” (OLIVEIRA, 2001, p. 19), de tal forma que as mediações, alienadas e alienantes, que sustentam a vinculação entre os homens e suas condições sociais de existência resultam ocultadas. Como resultado desse processo, as características particulares relacionadas tanto ao indivíduo quanto à sociedade acabam sendo concebidas como dados fortuitos e casuais, resultantes de algum tipo de natureza dada, esvaziada da historicidade concreta dos homens.

Transpondo essa análise para as proposições de Bruner em relação à concepção de cultura, consideramos que ele incorre nos limites acima mencionados. O autor,

em virtude de sua ênfase idealista-fenomenológica denega uma visão histórica e, com isso, prescinde a análise da cultura na perspectiva da totalidade. Consequentemente, na relação indivíduo-cultura por ele aventada, o polo cultura acaba por ocupar o lugar do universal, deixando de ser elemento mediador na relação particular indivíduo-genericidade. Essa é a raiz do cunho adaptacionista que identificamos na obra bruneriana. Ainda que Bruner avente a grande importância das apropriações culturais na vida dos indivíduos, suas proposições ficam restritas a uma sociabilidade imediata e adaptativa. Com isso, sem maiores esforços, suas ideias se alinham ao pensamento neoliberal e pós-moderno no tocante às concepções de indivíduo, de cultura e das relações entre eles. A ênfase ao pluralismo cultural, tão em voga na atualidade, é emblematicamente representativa dessa orientação de pensamento. Diferentemente, as análises empreendidas por Vigotski, pelo próprio atendimento ao método marxista, não prescindem da dialeticidade singular-particular-universal, no que se inclui sua concepção de cultura. Ao afirmar a natureza cultural do desenvolvimento humano, esse autor não pretere as mediações particulares, ou seja, ao destacar a relação indivíduo-cultura como uma relação básica, não perde de vista a relação indivíduo-gênero humano e o caráter mediador do legado cultural à vista da máxima genericidade dos indivíduos. A universalidade humano-genérica é elemento nuclear em sua obra e, por isso, a concepção de cultura nela presente não corresponde ao entorno imediato, isto é, ao dado representativo meramente da imediaticidade da vida cotidiana. Vigotski não perde de vista que a cultura cristaliza relações sociais de produção, divisão social do trabalho e, na sociedade capitalista, a alienação que instala fossos imensos na relação indivíduo-gênero humano. Nessa direção, a cultura desponta como mediação particular nessa relação e, como tal, de sua mais abrangente apropriação decorre a formação dos indivíduos, aos quais compete muito mais que adaptar-se às condições imediatas de existência, isto é, aos quais compete serem sujeitos de tais condições e não por elas sujeitados. Portanto, apesar de Bruner considerar Vigotski pioneiro na compreensão do papel constitutivo da cultura na transformação da natureza humana e, sobretudo no desenvolvimento psíquico do homem, e de julgar que ambos convergem na defesa de uma psicologia cujo núcleo seria o desenvolvimento humano inserido nos processos culturais de compartilhamento e negociação dos significados, eles acabam por divergir, essencialmente porque para Vigostki a cultura possui um caráter materialista e universal enquanto para ele um caráter idealista e local.

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Nessa perspectiva, na relação indivíduo-sociedade, o pólo “indivíduo” é o singular e o pólo “sociedade” é o universal. E, desse modo, deixa-se de perceber dois problemas: como o pólo “sociedade” é tomado como universal, perde sua função de particular na relação indivíduo-genericidade, perde sua função de mediação; e como o pólo “gênero humano” não é considerado, perde sua função de universal nesta relação. Daí que ele, o gênero humano, não é o elemento em que se encontra a meta máxima do desenvolvimento do indivíduo e sim, os estreitos limites da sociedade. Nestes limites, a adaptação do indivíduo aos moldes da sociedade existente, é o princípio fundamental (OLIVEIRA, 2001, p. 21).

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Considerações Finais Cultura para Vigotski é o produto do trabalho humano, edificado segundo leis históricas determinadas pelas condições concretas de existência. O homem, nessa perspectiva, produz cultura ao mesmo tempo em que é por ela produzido. Nesse trânsito metabólico, criando e se apropriando dos signos culturais edifica funções psíquicas que suplantam o legado da natureza, conquistando propriedades culturalmente formadas denominadas pelo autor como funções psíquicas superiores. Para Bruner cultura é um sistema simbólico construído, interpretado e negociado pelos indivíduos em uma situação de vida compartilhada, centrando-se na interpretação do sujeito dentro da comunidade cultural da qual participa. Por isso, para este autor, a cultura assim como seus integrantes é expressão de determinado contexto social, ou seja, de uma realidade particular. Vigotski, ao sustentar uma concepção de cultura com base no marxismo e entender que a natureza psicológica do homem resulta da totalidade das relações sociais, diverge sobremaneira da psicologia cultural bruneriana, uma vez que para apreender algo em sua totalidade há que se ir além da manifestação fenomênica imediata e aparente. Como anteriormente exposto, a fenomenologia hermenêutica idêntica o fenômeno e sua essência e, com isso, não se debruça sobre o desvelamento da aparência em direção à essência tal como apregoa o método materialista dialético. Para Vigotski, a apropriação de signos culturais opera como condição de humanização à medida que subsidia os indivíduos na elaboração da inteligibilidade do real, isto é, na formação da imagem subjetiva da realidade objetiva consubstanciada na consciência dos indivíduos. Portanto, esse autor não pretere que a realidade existe objetivamente, ‘fora’ e independentemente da consciência, a quem compete representá-la em sua máxima fidedignidade. A esse alto grau de correspondência entre representação e realidade concreta representada Vigotski chama de conhecimento objetivo. Diferentemente, as proposições brunerianas deslocam o foco da realidade concreta para o compartilhamento de significados, de sorte que a apropriação de signos desponta como condição para a edificação dos acordos simbólicos requeridos à vida coletiva. Ademais, para o autor, os significados resultam das negociações entre indivíduos que compartilham um mesmo tempo e espaço e, portanto, contêm especificidades distintivas em razão da imensa variedade espaço-temporal. Destarte, consideramos preocupante quando Jerome Bruner é tomado como um autor representativo da ‘escola vigotskiana’, posto as inúmeras divergências 50

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teórico-metodológicas que balizam suas obras. Concordamos com Duarte (2004, 2008), que a aproximação da psicologia de Vigotski a outros campos teóricos muitas vezes encerra a descaracterização do universo ideológico marxista que sustenta a produção do autor bielorusso. Ainda de acordo com Duarte, as ideias defendidas por tais aproximações são regidas por um contexto ideológico pós-moderno e pluricultural que nega as categorias objetividade e totalidade em favor de um relativismo epistemológico que identifica o ato de conhecer com as particularidades do ponto de referência em que se encontra o sujeito. Portanto, as proposições de Vigotski e Bruner, transpostas para a educação escolar, não podem confluir em uma mesma direção porque aventam concepções distintas de realidade, de conhecimento e do papel dos signos na constituição do psiquismo. Por um lado Bruner prioriza a dimensão individual do desenvolvimento humano, a narrativa em detrimento da explicação, a ênfase na cultura local em detrimento da cultura universal. Por outro, Vigotski prioriza a natureza histórico social do desenvolvimento, o conhecimento objetivo como meta do desenvolvimento psíquico e a apropriação de signos como condição para a consecução desse objetivo. As proposições de Vigotski e Bruner permitem-nos deduzir que o primeiro anuncia uma educação escolar universalizadora do homem, enquanto Bruner aponta na direção de uma escola e de indivíduos adaptados à sua cultura local.

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TELEVISÃO, TELENOVELAS E EDUCAÇÃO SEXUAL: ALGUMAS INTERFACES...

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TELEVISION, SOAP OPERAS AND SEX EDUCATION: SOME INTERFACES...

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Gabriela Maria Dutra de Carvalho1 Sonia Maria Martins de Melo2

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RESUMO

ABSTRACT

A televisão é considerada um dos veículos de comunicação de massa dos mais assistidos nos lares brasileiros e seus programas, especialmente as séries ficcionais, possuem um poder de sedução incontestável, principalmente as telenovelas da Rede Globo de Televisão. E num contexto de sala de aula, o (a) professor (a) poderá criar motivação para trabalhar temáticas sexuais se utilizar cenas das telenovelas como ferramentas para que os alunos adolescentes revelem seus pontos de vista e seus anseios sobre questões relativas à sexualidade, questões essas muitas vezes ignoradas por eles, ou informadas de maneira que não os levam a refletir de forma responsável sobre a dimensão de tais questões.

The television is considered one of the batter communication vehicles more watched in Brazilians’ homes and its programs, specially the fictional series, possess a power of unquestionable seduction, mainly the soap operas of the RedeGlobo de Television. And in a context of classroom, the teacher will be able to create motivation for work sexual themes if to use scenes of the soap operas as tools for that the adolescents show your point of views, an your about questions that refer to the sexuality, questions these many times ignored by them, or informed of way that do not cause them to reflect of responsible form about the dimension of such questions.

PALAVRAS-CHAVE:

KEYWORDS

Televisão. Telenovela. Adolescentes. Educação sexual.

Television. Soap operas. Adolescents. Sexual education.

Ver televisão é uma das atividades de lazer mais freqüentes na sociedade brasileira, principalmente nas classes média e baixa. É constatado que o aparelho de TV1 é um instrumento presente nos mais diversificados lares brasileiros3, desde 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação-Universidade do Estado de Santa Catarina. Centro de Ciências Humanas e Educação. Florianópolis – SC – Brasil. CEP 88035-001. 2 UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina. Centro de Ciências Humanas e da EducaçãoDepartamento de m educação-Florianópolis-SC- Brasil. CEP 88035-001. E-mail: soniademelo@gmail. com 3

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Pesquisa do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), da Eletrobrás constatou

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as grandes mansões aos barracos das favelas, pois a comunicação com o jogo de imagens em movimento é muito mais instigante do que as mensagens somente orais ou escritas. Assim sendo, tal veículo de comunicação pode e deve ser utilizado pelo (a) professor (a) no espaço escolar como ferramenta para aquisição de novos conhecimentos. Martin-Barbero e Rey (2001), ao falarem sobre as novas competências de linguagens, sobre o esvaziamento sofrido pela imagem submetida à lógica da mercadoria, procuram mostrar a ocorrência de uma insignificância que corrói o campo das imagens da arte, ao mesmo tempo em que reproduz uma estetização banalizada de toda vida e a proliferação de imagens nas quais o real é oculto pelo espetacular discurso audiovisual da informação que transforma o desejo de saber em mera pulsão de ver. Tal realidade é perceptível, tanto nos documentários, nas novelas, nos programas de humor, como nos noticiários, nos quais a riqueza de imagens, de figurinos, de cenas “inéditas” chama mais atenção do que os diálogos, os textos, as informações que substituíram os relatos. Para esses autores, o fato de assistir à televisão ocupa o terceiro lugar na escala de atividades à qual os cidadãos adultos dedicam mais tempo, depois do trabalho e do sono, e o segundo lugar no tempo dedicado pelos estudantes. Segundo Ferrés (1996), levando em consideração as férias e os fins de semana, os estudantes passam maior número de horas assistindo à televisão do que em sala de aula. Como a maioria das instituições tradicionais, nas escolas, muitos educadores preocupam-se, ainda, mais em reproduzir o conhecimento já estabelecido, em perpetuar a cultura existente, ficando, por isso, a comunidade escolar, muitas vezes, defasada quando precisa se adaptar a nova sociedade das chamadas TIC (Tecnologias da Informação e da Comunicação). O professor e a professora, como mediadores do processo de construção de conhecimento, precisam necessariamente adaptar-se às mudanças com o objetivo de educar para uma cultura renovada, pois é, em grande parte do tempo, na televisão que se mescla a oralidade cultural com a imagística popular, espaço segundo Martin Barbero e Rey (2001, p. 54), por onde “os jovens vivem uma experiência cultural des-localizada, que provém da profunda ligação entre seu mal-estar na Cultura (com maiúscula) e o estouro das que os televisores são os eletroeletrônicos com maior acesso aos consumidores: 97,1% dos lares têm TV, a maior parte mais de um aparelho. A geladeira aparece em segundo lugar, em 96% das residências, e, segundo uma das conclusões da pesquisa, parece ter atingido a saturação. http://www.cabecadecuia.com/ noticias/3213/tv-esta-presente-em-971-dos-lares-brasileiros-pcs-em-25.html dia 04 de novembro às 14h

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fronteiras espaciais e sociais, que a chave televisão computador introduz no estatuto dos sentires, dos saberes e dos relatos.

Segundo Eco (1979), os denominados apocalípticos assumidos, ao referirem-se à televisão, falam de uma indústria homogenizadora, de uma cultura degradada, de uma massificação alienadora. Consideram-na como a principal responsável pelos sérios problemas vivenciais da época. No outro extremo, surgem os posicionamentos dos chamados integrados, para os quais a televisão deve ser considerada como uma oportunidade para a democratização do conhecimento, da cultura, para a ampliação dos sentidos, para elevar o nível da aprendizagem. Nesse contexto, o (a) educador (a) não deve ignorar o poder da mídia televisiva na formação dos adolescentes, e, necessariamente, pode e deve fazer uma leitura crítica dos aspectos positivos e negativos veiculados nos diversos programas por eles assistidos e comentados no contexto escolar. É importante auxiliar os jovens na busca da compreensão de como a televisão produz efeitos de socialização, isto é, como sua programação transmite idéias e valores em suas mensagens, quer subliminarmente nas publicidades, quer em outros programas, como telenovelas, reportagens, filmes, programas de auditório, reality shows, etc. É inegável o poder desse veiculo midiático que invade milhões de lares brasileiros, onde há uma forte presença de analfabetos funcionais que não são capazes de interpretar de forma crítica e reflexiva as mensagens ali veiculadas e transmitidas por esse importante meio de comunicação que sempre informa e transmite conhecimento, mesmo que não seja o esperado pelo receptor. Tal veículo de comunicação inclusive, dependendo de programação, pode representar a cultura da opulência e da diversidade, a cultura da liberdade, das opções múltiplas, enfim, várias são as possíveis formas de abordagem das mensagens nele transmitidas. Portanto o(a) professor(a), assim como qualquer mediador do conhecimento de crianças, jovens ou mesmo adultos, pode tornar-se um educomunicador, tomando uma atitude crítica diante dos meios, adquirindo uma postura de equilíbrio entre o otimismo ingênuo e o catastrofismo estéril, observando coerentemente a ambivalência do meio, as suas potencialidades e limitações, assim como suas contradições internas. Como profissional das comunicações, Bucci (2008) destaca a importância da escola no estímulo ao desenvolvimento de telespectadores críticos. O jornalista considera fundamental que comunidade escolar abra um canal pelo qual as crianças Doxa, v.17, n.1 e 2, p.53-60, 2013

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possam se manifestar, verbalizar, elaborar, por que vêem televisão, o que gostam de ver na TV, o que as atrai. Depois disso, imagina ser possível, aos poucos, relativizar o discurso da televisão e também o da publicidade. Acredita que assim se estaria plantando “a semente para o desenvolvimento de telespectadores críticos”. “Mais importante do que controlar o que a TV veicula diariamente é preparar o público, sobretudo os telespectadores adolescentes e mirins, a vê-la sem se submeter a ela. O importante é saber usá-la para a vida, sem ser usado por ela”, afirma esse autor. Contudo, tal ponto de vista parece acreditar na total passividade do telespectador, o que de fato não acontece, pois os assuntos veiculados pela televisão, em especial pelas telenovelas, são mediados também por outros espaços de socialização, como por exemplo, a igreja, grupos de amigos, o cabeleireiro, o ambiente de trabalho, o contexto familiar, o clube, etc., locais em que também são discutidos e vivenciados os mais diversos temas abordados na televisão, o que permite a construção de várias opiniões. É inegável que, enquanto os noticiários e programas em geral enchem-se de fantasia tecnológica e se tornam um espetáculo em si mesmo, é, em grande parte, nas telenovelas e programas dramáticos que o país revela-se, mostra-se, deixa-se ver, como confirmam Martin-Barbero e Rey (2001, p. 84),

Nesse contexto, é que surge a possibilidade a importância do (a) docente do Ensino Fundamental e Médio também utilizar-se de reflexões e debates sobre temas relativos à sexualidade humana presentes, principalmente nas telenovelas da rede Globo brasileira, pois a grande maioria dos adolescentes assiste com muita freqüência esses seriados ficcionais e debatem sobre eles, nos pátios do recreio e corredores da escola, sobre questões lá apresentadas, tais como: gravidez na adolescência, relações homossexuais, beijo dentro e fora da escola, questões sobre atitudes machistas, etc. Nessas telenovelas, segundo Lopes (2003), o privilégio do beijo, por exemplo, é substituído por uma crescente liberalização que adentra os aposentos íntimos das personagens, cenários de quartos, casais na cama e gestos que simbolizam o orgasmo passaram a ser veiculados na tela. Mesclam-se cenas de relações incestuosas, de prostituição, do prazer, de nudez, do sexo antes do casamento, desvinculando-o da procriação, da separação como saída para os casamentos infelizes, com a legitimidade de segundas uniões, assim como cenas de relações inter-raciais, de uniões homossexuais entre jovens e adultos e muitas outras. Sabe-se que no cotidiano das escolas muitos dos jovens expressam uma grande curiosidade sobre os mais diversos assuntos relativos à sexualidade, sendo que, na maioria dos casos, percebe-se que parece que ainda obtém informações explícitas apenas dos colegas e pelos meios de comunicação, em especial pela televisão, possivelmente de uma forma acrítica. Contudo é importante registrar que informações que também devem ser desveladas e levadas em conta no fazer pedagógico, nas práticas educativas, são aquelas observáveis no currículo oculto inclusive sobre sexualidade que se expressa em ações subliminares que estão presentes nas relações entre os alunos com seus familiares, com os membros do corpo docente e administrativo da unidade escolar em que estudam, assim como com outros grupos com os quais esses jovens mantêm contato, além da influência intensiva que recebem desse oculto na mídia, especialmente da TV, e nela, nas telenovelas, especialmente as da Rede Globo. Esse currículo oculto, segundo Silva (2001, p. 98)

Nas telenovelas, nas dramatizações semanais, é onde se faz possível representar a história do que acontece, suas misturas de pesadelo com milagres, as hibridações de sua transformação e de seus anacronismos, as ortodoxias de sua modernização e os desvios de sua modernidade.

Em pesquisas sobre o Estado de Arte, Martin-Barbero e Téllez (2006) verificaram que, tanto na Colômbia como em demais países da América Latina, os estudos de recepção, na década de 80, século XX, são caracterizados por uma concepção que procura observar os efeitos provocados na sociedade por situações-chave como a fragilidade da democracia e a profundidade da violência. Nos anos noventa constata-se a recepção fortemente influenciada pelo consumo e, já no final do século e do milênio, as crianças receptoras também aparecem como foco central das investigações. Esse último enfoque criticamente destaca a importância de se romper com a concepção de fragilidade e passividade da audiência dos jovens e das crianças, considerados como os seres mais afetados pelos efeitos ‘nocivos’ da televisão e propõe uma ampliação de suas competências comunicativas. Sugere a substituição de uma visão ‘nociva’, dos efeitos catastróficos, por uma posição mais aberta e flexível que leve em consideração a escola e a família como importantes espaços de socialização e mediação dos conteúdos que são transmitidos na televisão. 56

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é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes [...] o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações...

Partindo desse pressuposto, todos os envolvidos no trabalho escolar sempre possuem seus conceitos e pontos de vista a respeito da sexualidade humana, mesmo Doxa, v.17, n.1 e 2, p.53-60, 2013

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que não saibam disso, não os tenham claro e nem os manifestem explicitamente, conceitos esses que podem ir desde a visão mais conservadora, herdada da tradição cristã, até a mais progressista, que trabalha a questão de uma maneira mais compreensiva, na busca da emancipação. Todavia há indicações de que a educação, de um modo geral, e principalmente a educação institucionalizada, ainda transmite em suas vivências, majoritariamente, a idéia, de que a escola é “assexuada”. Um currículo oculto, que nega essa dimensão humana da sexualidade, ainda é muito vivenciado no cotidiano escolar, e, na grande maioria das vezes, nem é percebido o que aponta para a preocupação de Silva (2001, p. 135) de que o conhecimento não é exterior ao poder, o conhecimento não se opõe ao poder. O conhecimento não é aquilo que põe em xeque o poder: o conhecimento é parte inerente do poder [...], o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade.

Sabendo-se que nós, seres humanos, estamos inseridos no mundo mediante nossos corpos sexuados, e que este mundo é uma construção sócio-política, histórica e cultural de pessoas dialeticamente vistas como seres únicos e parte da sociedade ao mesmo tempo, produtores e produzidos nas e pelas relações sociais (mesmo que a maioria não se aperceba assim) é fundamental que os grupos educativos busquem trabalhar uma abordagem de educação sexual emancipatória, procurando a reconstrução consciente e participativa de um saber amplo e universal sobre a dimensão humana da sexualidade, que “busca desalojar certezas, desafiar debates e reflexões, posturas fundamentais na busca do desenvolvimento pessoal do ser humano como um ser corporificado, sexuado, contribuindo na busca da cidadania como um todo.” (MELO,POCOVI, 2002, p.38). E dentro desta proposta não há como descartar a intervenção pedagógica dos educadores junto ao que é trabalhado na televisão. Ao trabalhar com essa mídia cabe ao docente primeiramente, como etapa diagnóstica, descobrir qual paradigma hegemônico está subjacente a sua maneira e a de seus discentes de compreender e viver a sexualidade, bem como o que está proposto explicitamente, ou de maneira subliminar nos programas televisivos, por exemplo, nas telenovelas, pois segundo Silva (2001, p. 63-65) a vivência da sexualidade não tem sido um exercício de autoconhecimento, um exercício de conhecer e deixar conhecer. Por todos os percalços que historicamente a sexualidade tem passado, pela forma como se tem desenrolado seu sentido, as sociedades ocidentais vivem hoje, ainda, uma sexualidade alienada, dirigida por plásticas

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e modelos que na maioria das vezes são estranhos aos indivíduos. É como se a própria sexualidade, no seu sentido mais humano – o prazer – fosse algo que estivesse fora dos limites corporais. No outro, para o outro ou em qualquer lugar metafísico, difícil de alcançar.

E, nessa perspectiva, sabendo que a televisão é uma criação cultural que, como relata Fischer (2003, p. 18 e 19), utiliza-se de estratégias para afirmar-se como um lugar especial de educar, de “fazer justiça”, de promover a “verdadeira” investigação dos fatos, de “ensinar como fazer” certas tarefas do dia-a-dia, certas operações com o próprio corpo e mudanças no cotidiano familiar, dentre outras ações, devemos ter a clareza de que os jovens de todas as camadas sociais “aprendem modos de ser e estar no mundo também nesse espaço da cultura”. Portanto, tendo essa clareza e conscientes do interesse dos adolescentes por telenovelas é que está sendo realizada uma pesquisa sobre temáticas sexuais, utilizando recortes de algumas recentes telenovelas da Rede Globo de Televisão, com alunos e alunas da 8ª. série do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública de ensino. Acreditamos que tal recurso pedagógico é muito rico, instigante e permite ao (a) docente aplicar, em suas escolas, uma metodologia que certamente despertará o interesse do (a) adolescente para refletir e debater sobre questões relativas à sexualidade humana assim como sobre outras temáticas. Voltando a Martin-Barbero e Rey (2001, p. 47) lembremo-nos sempre que a “televisão expõe as crianças, desde que abrem os olhos, ao mundo antes velado dos adultos” (p. 55). Tal veículo de comunicação, segundo tais autores, desvela os mecanismos de simulação que dão sustentáculo à autoridade familiar, pois desmascara os papéis desempenhados pelos pais, ao mostrarem adultos que mentem, roubam, embebedam-se e se maltratam. A televisão, assim como outros meios audiovisuais, segundo tais autores, causou profundas transformações na cultura cotidiana das maiorias da América Latina e, “especialmente, nas novas gerações que sabem ler e cuja leitura se acha atravessada pela pluralidade de textos e escritura que circulam hoje.” Concluindo, no atual contexto comunicação, os profissionais da educação não podem ignorar os modernos dispositivos de transmissão de conhecimento, dentre eles a televisão, nem tampouco atribuir a crise de leitura entre adolescentes ao fascínio exercido pelas tecnologias das imagens, pois assim agindo, confirmarão a mensagem de Martin-Barbero e Rey (2001, p. 58) de que: Não só a escola, mas também o sistema educativo inteiro, nega a fazer perguntas como estas: que atenção estão prestando as escolas, e inclusive as faculdades de educação, às modificações profundas na percepção do espaço e do tempo vividas pelos

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adolescentes, inseridos em processos vertiginosos de desterritorialização da experiência e da identidade, apegados a uma contemporaneidade cada dia mais reduzida à atualidade, e no fluxo incessante e embriagador de informações e imagens?

IMAGEM REFLETIDA: UM OLHAR SOBRE VÁRIAS PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DO CORPO SOCIAL NO BRASIL E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Fica o desafio aqui para que todos e todas nós, educadores e educadoras, respondamos as perguntas propostas.

REFLECTED IMAGE: A LOOK AT VARIOUS HISTORICAL PERSPECTIVES OF SOCIAL BODY IN BRAZIL AND ITS CONSEQUENCES IN PHYSICAL EDUCATION

Referências BUCCI, E. A Televisão na Educação Disponível em: http://br.geocities.com/ info_caxias/oficina_tvescola.htm. Acesso em 02 de dez. 2008

Fábio Tadeu Reina1 Luci Regina Muzzeti2 Maria José Romanatto3

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RESUMO

ABSTRACT

Este artigo tem como objetivo principal mostrar como o corpo assume perspectivas diferentes em vários momentos históricos, principalmente na realidade brasileira. Para alcançar esse objetivo, este artigo faz uma revisão bibliográfica de importantes estudos da área, salientando como a Educação Física escolar, enquanto área de conhecimento e prática social – que, juntamente com seu professor desenvolve a cultura corporal de movimento nos alunos –, precisa saber perceber criticamente as representações corporais hegemônicas e procurar desmistificar os estereótipos corporais para efetivamente possibilitar e oportunizar a prática pedagógica a todos os alunos, sem excluir ninguém do processo de aprendizagem dos conteúdos específicos da área, apenas porque não detêm certos padrões corporais.

The main goal of this paper is to show how the body takes different views in several historical times, mainly in the Brazilian reality. To achieve this goal, this article shows a literature review of important studies of this knowledge range, emphasizing how the school Physical Education, as knowledge area and a social practice – that, jointly with its teacher, develops the culture of body movement in students –, has to know to perceive, in a critic manner, the hegemonic representations of body and to try demystify the body stereotypes to really to make possible the pedagogic practice to all students, without to exclude anyone of the process of learning of specifics contents of area, just because they don’t have certain body standards.

1 UNIARA – Centro Universitário de Araraquara – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14801-340. E-mail: [email protected] 2 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14800-901. E-mail: [email protected] 3

UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14800-90. E-mail: [email protected]

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PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Educação Física. Cultura Corporal. Corpo. Prática Pedagógica.

Physical Education. Body Culture. Body. Pedagogical Practice.

Imagem refletida: um olhar sobre várias perspectivas históricas do corpo social no Brasil e suas consequências na educação física

oportunizar a prática pedagógica a todos os alunos, sem excluir ninguém do processo de aprendizagem dos conteúdos específicos da área, apenas porque não detêm certos padrões corporais.

Introdução Percurso histórico do corpo no Brasil: sob um olhar higienista Na história da humanidade, vários são os olhares sobre o corpo, seu significado e sua importância para as sociedades. Portanto, no bojo dessa complexidade de vertentes de pensamentos sobre o corpo, este artigo de revisão bibliográfica, destina-se a apontar, por meio de uma síntese histórica, como o corpo assumiu significados específicos na sociedade brasileira, seus signos e valores, para em seguida apontar como o corpo é visto na Educação Física, principalmente na perspectiva da cultura corporal. Ressaltamos que o corpo focalizado neste artigo, não é o corpo dimensionado por características biológicas, mas sim um corpo que se constitui pela sua historicidade, que é produto e produtor de cultura e que, acima de tudo, traz registros e marcas sociais dos vários contextos com os quais se estrutura e reestrutura. Portanto, a partir desse momento, não se fala mais na singularidade do corpo e sim na pluralidade de corpos, pois cada agente social, pertencente a frações de classes diferentes, terá sua história, concepção, visão e construção específica do corpo social, embora presenciemos a todo o momento um modelo padrão de produção social de corpo, aquele veiculado pelos meios de comunicação, inclusive na escola. Modelo esse, geralmente de um corpo jovem, branco ou negro, magro e com musculatura definida, que assume lugar de destaque e prestígio social e, de forma direta e linear, associa-se ao sucesso e à felicidade. Com isso, passa a ser referência para desqualificar e hierarquizar corpos que fogem desse padrão. Daólio (1999) considera que, os alunos independentes de suas diferenças, são iguais quanto ao direito à prática de atividades físicas, pois a valorização excessiva do rendimento corporal nas aulas privilegia apenas uma parcela de alunos que possuem melhores aptidões físicas, incentivando a competição e a formação de elites nas aulas. Nesse sentido, a Educação Física escolar, enquanto área de conhecimento e prática social, que tem com seu professor o desenvolvimento dessa cultura corporal de movimento nos alunos (forma de andar, correr, saltar, gesticular, falar, etc.), precisa saber perceber criticamente essas representações corporais hegemônicas e procurar desmistificar esses estereótipos corporais para efetivamente possibilitar e

Essa ênfase na noção de corpo enquanto linguagem, culturalmente adquirida, inserida em um universo simbólico, pode, muitas vezes, passar despercebida. A presença do social está presente tanto nas chamadas ações corporais básicas como, por exemplo, o andar, quanto nas diferenças entre os sexos masculino e feminino, também chamadas de diferenças biológicas. Especificamente, as diferenças anatômicas entre os dois sexos serviram em muitos momentos para justificar como naturais diferenças socialmente construídas entre os gêneros e, entre a divisão social do trabalho (BOURDIEU, 1999). Ao feminino, desde tempos remotos, se associa a imagem de beleza, o papel da mãe, da esposa, da anfitriã, enquanto ao masculino, a força física associada à figura do herói e da sexualidade pulsante. No Brasil, pode-se falar em uma relação dos cidadãos com o corpo e de uma vida privada dos costumes a partir do século XVIII, época em que a colonização se estabelece por definitivo, ocasionando crescimento das cidades e uma dinamização da economia, fazendo entrever mudanças nas formas de sociabilidade e costumes domésticos. Destaca-se uma valorização da intimidade dos indivíduos, dos corpos e das famílias, principalmente entre as elites (ALGRANTI, 1997). É através da higiene que a cidade e a população são incorporadas ao campo do saber médico. “Administrando antigas técnicas de submissão, formulando novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de intervenção, a higiene congregou harmoniosamente interesses da corporação médica e objetiva da elite agrária” (COSTA, 1979, p. 28). A higiene foi, no século XIX, o ponto de partida para a mudança das relações entre a medicina e o Estado. De acordo com Nunes (1982), foi através da intervenção nos fatores de produção da doença que a instituição médica estabeleceu sua presença na sociedade. Assim, a medicina, através de uma postura higienista, que em um primeiro momento pretendia combater as possíveis condições de deterioração da saúde da população, com intervenções sanitárias sobre a organização da cidade e dos indiví-

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duos e sua relação com a disseminação de epidemias, formula um discurso sobre as diferentes formas de relações sociais através desse contexto. De acordo com D’Incao (1997), as distinções do corpo feminino e masculino passariam por questões de ordens morais e sociais amplamente associados com as ordens médicas. Através da educação higiênica os corpos são redesenhados, devendo ter saúde, o que significa status social e, ao mesmo tempo, ser política e economicamente manipulado. O corpo saudável é criado e designado como um “corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso, flácido e doentio do indivíduo colonial” (COSTA, 1979, p. 13). D’Incao (1997) aponta ainda que o corpo construído pela higiene foi um corpo burguês higienicamente urbanizado e disciplinado, representando uma classe e uma determinada raça, servindo para incentivar o racismo e os preconceitos sociais. O corpo se configura como uma medida de desempenho do indivíduo e, mais do que isso, passa a revelar a busca pela perfeição, em uma sociedade pautada pelo narcisismo. De acordo com Morgan e Azevedo (1998, p. 89), a “imagem do corpo ideal é acompanhada de conotações simbólicas de sucesso, autocontrole, autodisciplina, liberação sexual, classe e competência. O fracasso em atingir este ideal passa a ser equacionado com falta de força de vontade, preguiça e fraqueza”.

O Brasil dos anos setenta, marcado pela ditadura militar, configura um período em que se constata a proliferação discursiva das vantagens e da importância de espaços de descanso e de diversão para o trabalhador, isto é, há uma preocupação mais acentuada em relação à maneira como o tempo livre do trabalhador será gasto, devendo esse tempo livre ser voltado para a prática de atividades físicas e esportivas. Assim, o período dos anos setenta, promove uma cultura esportiva, um modo esportivo de ser, o que acarreta no culto de certo tipo de descontração e de certo tipo de corpo, saudável e produtivo. Nesse momento, a mídia veicula, ao corpo feminino, um corpo de mulher sofisticada, uma imagem de mulher feita em estúdio, vestida com uma marca de material esportivo de alta qualidade para a época, com pernas em evidência, seios seminus e maquiagem pesada.

A década de 70 gera o Plano Nacional de Educação Física (PNED). É também a década das campanhas em prol da saúde e do lazer pela atividade física orientada, como, por exemplo, as campanhas Esporte para Todos e Mexa-se. Essas campanhas traduzem, em grande medida, a ambição dos governos militares de abrir espaço, dar visibilidade e estimular a existência de corpos velozes, úteis e sadios. No Brasil do PNED, por exemplo, o desporto é definido por lei (Lei nº 6.251, de 8/10/75) como “[...] um dos mais valiosos elementos de apoio à formação do homem e de coesão nacional e social, podendo solucionar problemas gerados pela moderna sociedade industrial”. O conteúdo da lei configura e permite apreender um modo específico de olhar o corpo e a educação do corpo a partir de parâmetros fornecidos pela ciência social. Os exercícios físicos e, mais tarde, o esporte, podem, assim, ser compreendidos como pedagogias voltadas à educação do corpo, à preservação e à manutenção da saúde individual e social. Elabora-se, com requinte, um novo modelo de corpo útil e conceitua-se uma tecnologia do orgânico com a finalidade de fazer crescer a chamada eficácia funcional. Os exercícios físicos e, mais especificamente, a ginástica, passam a ser percebidos como capazes de revelar, a partir de sua apurada sistematização, uma visão totalmente nova do movimento corporal, e também de sua aplicação no mundo do trabalho, com a denominação de ginástica laboral, com o intuito de levar o trabalhador a desempenhar suas funções com mais eficácia e principalmente com mais produção. A criança e a atividade física, o trabalho e a prostituição infantil, faziam parte desse contexto histórico, além dos altos índices de evasão e repetência escolar; a miséria secular da sociedade brasileira nunca deixou de existir e a criança brasileira era também expressão desse quadro. Olhar para o corpo criança, nesse momento, tornou-se olhar as formas de desenvolvimento motor de escolares, ou seja, a antropométrica: as dobras cutâneas de escolares. Essa concepção de Educação Física para a infância estava em conformidade com a teoria educacional em voga naquele momento: o chamado tecnicismo. Nessa concepção de Educação, a criança era vista como passível de uma educação motora, cognitiva e afetivo-emocional; caberia a então recente Educação Física escolar destinada a esta faixa etária ocupar-se do domínio motor, que sempre deveria estar vinculado aos outros domínios, o cognitivo e o afetivo-emocional. Desse modo, a educação trataria de um desenvolvimento integral: biopsicossocial. No âmbito específico da Educação Física, os exames médicos para a sua prática constituíam-se em obrigatoriedade fornecida no plano legal pelo Decreto Federal

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Trajetória histórica do corpo: um olhar voltado ao tecnicismo

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nº 69.450/71 e a presença do médico na escola, uma necessidade imperiosa. Mais amplamente, nesse quadro referencial da pedagogia tecnicista, em sua aliança com a Educação Física escolar dos anos setenta, estão também presentes os chamados objetivos operacionais e, em sua formulação, a avaliação das habilidades motoras e os testes motores, entre outros aspectos pedagógicos que merecem maior análise. A avaliação das habilidades e capacidades, desse modo, materializava uma compreensão da Educação Física escolar sintonizada com as teorias de educação do momento, nas quais a importância a ela atribuída estava vinculada à sua capacidade de melhorar o desempenho cognitivo; a Educação Física estava instrumentalizada para auxiliar a matemática, a língua portuguesa e os estudos sociais. Por um lado, meramente instrumental e funcional para a vida escolar e, por outro, funcional para a futura vida esportiva. Os seus conteúdos clássicos transformaram-se em meios para desenvolver lateralidade, coordenação fina, orientação espacial, dentre outros. A Educação Física escolar, por exemplo, poderia construir-se a partir de outros modelos e não mais apenas a partir do referencial da aprendizagem motora, do desenvolvimento motor e da psicomotricidade. A ginástica, o jogo, os esportes, a dança, desse modo, ganharam a possibilidade de ser problematizados como conhecimentosclássicos que se ensinam na escola para crianças e jovens; os conhecimentos da Educação Física escolar não seriam exclusivos para meninose para meninas, muito menos para faixas etárias; essa era apenas uma abordagem, não mais a única possível. Do mesmo modo, o conhecimento não necessitaria mais ser definido e autorizado por médicos e a Educação Física escolar não precisaria mais, exclusivamente, ser uma questão médica, ela poderia ser uma questão pedagógica.

Mas do que o movimento pelo movimento, na perspectiva da cultura corporal é imprescindível que a Educação Física escolar oportunize o conhecer e o desenvolver das manifestações corporais. O pressuposto básico da perspectiva cultural é o de que os conhecimentos historicamente adquiridos precisam ser transmitidos para as novas gerações por meio da escola. Segundo Daólio (1999), a Educação Física Escolar é uma prática cultural com uma tradição respaldada em certos valores. Ela ocorre historicamente em certo cenário, com certo enredo e para certo público, que demanda certa expectativa. É justamente isso que faz a Educação Física Escolar ser o que é. Sendo uma prática tradicional, ela possui certas características, muitas vezes inconscientes para seus atores. Em outras palavras, existe um determinado estilo de dar aulas de Educação Física, o que Bourdieu (1999) categoriza socialmente como héxis corporal do professor de Educação Física. É justamente esse estilo que é, na maioria das vezes, valorizado pelos alunos, pela comunidade e pela direção da escola. Portanto, nesse novo paradigma, a variedade de atividades deve ser proposta pelo professor, que deve criar atividades que valorizem todas as características de seus alunos, para que este amplie o seu repertório motor por meio de experiências práticas vivenciadas na sua trajetória escolar. Nesse momento, as aulas de Educação Física devem propiciar, então, uma ampla gama de oportunidades motoras, a fim de que o aluno explore sua capacidade de movimentação, descubra novas expressões corporais, domine seu corpo em várias situações e experimente ações motoras com novos implementos, com ritmos variados, etc. Com isso, o professor deverá, durante a realização de ações motoras, procurar fazer com que os alunos compreendam o significado e as formas de execução das atividades motoras realizadas. Essa atuação nas primeiras séries do ensino fundamental refere-se ao que os desenvolvimentistas denominam educação do movimento (TANI, G. et al., 1988). Para Bracht (1987), a dimensão que a cultura corporal ou de movimento assume na vida do cidadão atualmente é tão significativa que a escola é chamada não a reproduzi-la simplesmente, mas a permitir que o indivíduo se aproprie dela criticamente, para poder efetivamente exercer sua cidadania.

O corpo na educação física: visto sob a perspectiva da cultura corporal Sob a perspectiva da cultura corporal, a Educação Física constitui-se em uma área de conhecimento que estuda e atua sobre um conjunto de práticas ligadas ao corpo e ao movimento criado pelo homem ao longo de sua história: os jogos, as ginásticas, as lutas, as danças e os esportes, conteúdos estes presentes no Parâmetro Curricular Nacional, são os pilares dessa perspectiva. É nesse sentido que se tem falado atualmente de uma cultura corporal, ou cultura física, ou, ainda, cultura de movimento. 66

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Considerações finais Com base nos teóricos revisados e nas considerações feitas ao longo do artigo, considera-se que as várias manifestações ideológicas a cerca de um padrão de corpo veiculado na sociedade brasileira, em diversos momentos históricos, fez com que a Educação Física escolar assumisse paradigmas que contribuíram para garantir o pensamento hegemonicamente construído pela classe dominante, no qual os detentores do corpo disciplinado têm maiores oportunidades, em comparação com os agentes sociais que transgridem a condição imposta do corpo sarado, musculoso e magro, assumindo uma condição de contrariedade perante essa ideia, no interior da escola. Contudo, constatou-se também que a cultura corporal, como paradigma hoje constituído no interior da escola, proclamado pelos documentos educacionais oficiais, deveria se materializar no interior da escola, em várias manifestações culturais, nos conteúdos específicos da área: jogos, ginástica, esporte, lutas e danças. Diante de tudo que foi revisto neste artigo, a Educação Física escolar torna-se uma disciplina fundamental para desmistificar o valor social atribuído ao corpo e a todos os movimentos realizados nas diferentes práticas tanto dentro como fora da escola, favorecendo a verdadeira democratização do saber em prol da formação de um cidadão crítico e atuante na sociedade da qual vive.

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OS ARTIGOS DE JORNAL NO ENSINO SUPERIOR: UTILIZANDO UM RECURSO DIDÁTICO NÃOCONVENCIONAL NO ENSINO DO DIREITO NEWSPAPER ARTICLES IN HIGHER EDUCATION: USING AN UNCONVENTIONAL RESOURCE TEACHING IN HIGHER EDUCATION LAW

Alexandre de Castro1 Rosane Michelli de Castro2

RESUMO

ABSTRACT

Trata o presente de comunicar um trabalho desenvolvido no ensino superior, particularmente no ensino de Direito Constitucional mediante a utilização de artigos de jornais nas discussões do conteúdo programático. A ideia da utilização de um recurso nada convencional no ensino do Direito Constitucional surgiu com a finalidade de despertar o aluno para a leitura de periódicos específicos da área, e de diminuir a distância no campo do conhecimento entre a eficácia jurídica e a eficácia social. O trabalho, em andamento, é desenvolvido mediante duas etapas distintas, sendo que na primeira a busca é pela compreensão das normas e dos princípios existentes no corpo da Constituição e, numa posterior, objetiva-se a tradução de tais normas e princípios no contexto social, com base nas discussões em artigos de jornal. Essas discussões são desenvolvidas por meio da análise da configuração textual dos artigos, a saber: quemdiz, o quê, como, de onde, quando,por quê, para quêe para quem. O que se tem como resulta-

The present paper is aimed at communicating a kind of work that was developed on the higher teaching, particularly, of Constitutional Right, by using newspaper articles during the discussions on the pragmatic content. The idea of using a non-conventional resource in the Law teaching arised in order to make the student interested in the reading of specific periodicals on this area, and also to shorten the distance between the legal efficiency and social effiency in this knowledge field. In relation to the teaching of Constitutional Right, at the same time that it presupposes a close relationship with other Law branches, it keeps a huge distance when the transmission of its content. The work, an ongoing, is developed into two different stages; the first of them searches for the understanding of the norms and principles existing in the Constitution and the second stage is aimed at translating such norms and principles in the social context, based on discussions about newspaper articles. These discussions are

1 Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul– UEMS- Paranaíba-MS-Brasil –79.500-000. E-mail: [email protected] 2

Universidade Estadual Paulista-Unesp-Faculdade de Filosofia e Ciências-Pós-Graduação em EducaçãoMarília-SP-Brasil-17.525-000. E-mail: [email protected]

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dos parciais é a observação de que, mediante o recurso didático de artigos de jornais no ensino do Direito Constitucional, direito a vida ganha significado quando apresenta-se fatos relatados de eutanásia embasados na discussão de profissionais da saúde, pacientes e familiares; e, que o trabalho escravo e a morte de trabalhadores no corte da cana dão outra conotação aos direitos sociais. Ainda, o estabelecimento de uma discussão das normas e princípios constitucionais tem tornado a relação ensino-aprendizagem no curso de Direito mais interessante aos alunos e professor.

developed through the analysis of the textual configuration of the articles, namely: who, say what, how, where, when, why, what for and for whom. The partial results show the observation that, before the didactic resource of newspaper articles in the teaching of Constitutional Right, the right of living reaches meaning when there is the presentation of euthanasia facts based on discussions of health professionals, patients and families; and that the slave work and the death of workers during the cut of sugar cane provide another connotation to social rights. Moreover, the opening of a discussion on constitutional norms and principles has made the teaching-learning relationship more interesting to students and teachers of the Law course.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Direito. Ensino de direito constitucional. Recurso didático. Artigos de jornal.

Right. Constitutional right teaching. Didactic resource. Newspaper articles.

Introdução Assim como em Castro e Castro (2011, p. 26), a expectativa de que, sobretudo no Ensino Superior, os processos de ensino possam proporcionar condições para uma educação que “[...] leve à formação de um profissional apto a exercer os seus direitos de cidadão [...]”, levou-nos a desenvolver um trabalho com recursos didáticos que, ao nosso ver, despertam novas perspectivas de apreensão do conhecimento e do mundo. Nessa perspectiva, acreditamos que o trabalho em sala de aula com artigos de jornal abre as possibilidades para se trabalhar temáticas e propostas de maneira interdisciplinar, tornando as aulas dinâmicas e provocadoras. Segundo Cavalcanti (1999, p. 31 apud CASTRO; CASTRO, 2011, p. 27), “muitos dizem que a imprensa representa o quarto poder e, na realidade, isso tem fundamento, pois ela orienta e redimensiona o entendimento da realidade.” De acordo com CASTRO e CASTRO (2011, p. 27), a fim de ressaltar a importância do jornal no trabalho docente, pesquisadores como Cavalcanti (1999) e Silva (2003; 2007) “[...] têm reunido importantes resultados de suas reflexões, em busca de promover aproximações entre o jornal e a educação.” 72

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Os artigos de jornal no ensino superior: utilizando um recurso didático não-convencional no ensino do Direito

Particularmente em um Curso de Direito, acreditamos que as diversas temáticas trabalhadas mediante artigos de jornal podem transformar, em dado momento, o que era informação (doutrina) em conhecimento, pois o artigo de jornal remete ao cotidiano, estabelecendo uma relação entre as formas abstratas contidas na Constituição Federal e na legislação brasileira e o dia a dia vivido e presenciado pelos alunos. Especificamente no campo do Direito Constitucional, a relação ensino-aprendizagem apresenta dificuldades com relação à assimilação de seu conteúdo e tem desafiado os professores à busca de novas formas de transmissão do conteúdo programático desta importante disciplina do direito público. O ensino do Direito, devido as peculiaridades implementadas por seus profissionais, ainda comtemplam o “[...] padrão didático [...] de aulas lidas [...] na eterna repetição [...]” (ADORNO, 1988, p. 104) da doutrina, inclusive com exemplos ilustrativos trazidos pelos próprios autores em seus escritos. Tal situação faz com que as expectativas dos destinatários do conhecimento trasformem-se em desistímulo ou desinteresse. Somado a essa situação, o ensino do Direito Constitucional não raramente se dá pela técnica da subsunção, ou seja, a aplicação da regra em abstrato ao caso concreto. O que compromete a transmissão do conhecimento em matéria constitucional, já que a presença de princípios é muita grande na Carta. Como subsumir liberdade? Como aplicar educação ao caso concreto? Os “[...] princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido [...]” (ÁVILA, 2006, p. 71), assim sendo a metodologia com relação ao ensino do Direito Constitucional não pode obedecer a lógica e a técnica dos demais ramos do conhecimento do Direito. Esse tem sido o grande desafio para os docentes envolvidos na transmissão do conhecimento do Direito Constitucional. Neste texto não nos propomos a esgotar e, nem tão pouco, esgotar essa questão. Longe de qualquer pretensão neste sentido, a proposta de um recurso didático nada convencional no campo do Direito – a utilização de artigos de jornais nas discussões do conteúdo programático – tem por finalidade, primeiro, despertar o aluno para leitura de periódicos, e, segundo, diminuir a distância no campo do conhecimento entre a eficácia jurídica (com respeito à validade da norma constitucional que obedeceu os trâmites de sua elaboração) e a eficácia social, ou seja, a norma “[...] cumprida e aplicada concretamente [...]” (DINIZ, 1992, p. 57).

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Desenvolvimento

Os artigos de jornal no ensino superior: utilizando um recurso didático não-convencional no ensino do Direito

A falta de interesse pela disciplina do direito público encarregado das normas fundadoras do Estado tem-se mostrado preocupante. O Direito Constitucional ocupa, em alguns casos, uma posição de inferioridade na estrutura curricular, como por eemplo, destinando-lhe um tempo incompatível com a necessidade do desenvolvimento do conteúdo programático. Por outro lado, também dignido de certa apreensão, a falta de interesse daqueles aos quais o ensino é destinado. No início do curso, há uma máxima que aflora logo nos primeiros passos das discussões relativas aos principais temas do Direito Constitucional: a de que a teoria apresentada e contida nos manuais se constituem em meros discursos desprovidos de qualquer possibilidade de concretização e aplicação. Compreensível a opinião do corpo discente logo nos primeiros passos do estudo do Direito, sobretudo do Direito Constitucional, já que questões de natureza social e política não estão presentes na vida acadêmica, ou ainda, são matéiras ignoradas por parte de algumas Instituições de ensino. Compreensível, mas preocupante. O desafio se impõe. Como ministrar o conteúdo de uma disciplina com tempo e grade curricular insuficientes, além do desistímulo do corpo discente? O primeiro passo é eliminar o “[...] hábito corrente de se empregar apostilas [...]” (ADORNO, 1988, p. 104), evitando condicionamento do aluno ao simples exercício de decorar. A etapa seguinte é buscar algo com que o aluno possa estabelecer uma relação entre eficácia jurídica e eficácia social, mas algo que demonstre efetivamente uma relação existente entre os princípios e normas constitucionais lidos, discutidos e estudados na disciplina e o cotidiano. Dispertar para a relação direta existente entre o dia-a-dia e a produção legal constitucional. Nada mais significativo nesse sentido do que os jornais. Editoriais, opiniões, debates, notas etc uma infinidade de material, com publicação diária, diretamente relacionados com os temas do Direito Constitucional. Estavam parcialmente resolvidos os primeiros empecilhos da implementação de uma outra metodologia do ensino do Direito Constitucional. Agora cabia analisar o impacto da proposta e os resultados das primeiras aulas. Mas antes vamos aos procedimentos da escolha dos artigos. A pesquisa e análise do material a ser utilizado em sala foi abundante graças a dois jornais de circulação nacional: A Folha de São Paulo e O Estado de S. Paulo. A garimpagem do material se dá de forma diária: procura-se por temas pertinentes

ao Direito Constitucional, depois a leitura, discussão e a viabilidade da utilização do artigo no trabalho em sala de aula. Após seleção, o material é reproduzido de tal forma que cada aluno tenha em mãos o artigo a ser discutido. Não demora muito para que a implementação da metodologia suscite debates e deixa alguns alunos com olhar incrédulo. Ao discorrer sobre o Artigo 1º da Constituição Federal de 1988, mais especificamente quando se trata da ideia de República, nada seria discutido se a forma de transmissão do conhecimento obedecesse a eterna repetição doutrinária. Cabe primeiramente discorrer sobre a República, mais especificamente a argumentação colocada por Montesquieu na questão das leis relativas ao princípio de cada governo, matéria já estudada nos primeiros anos do curso em Ciência Política. O “[...] Estado republicano [...]” tem a virtude como princípio. (MONTESQUIEU, 1979, p. 61). E a virtude como princípio na visão do Barão de la Brède “[...] nada mais é do que o espírito cívico, a supremacia do bem público sobre os interesses particulares.” (ALBUQUERQUE, 1991, p.115). A aula teria tudo para reforçar a argumentação da enorme distância existente entre eficácia jurídica da eficácia social, considerando nossa organização política. Explicado o significado do princípio da virtude em Montesquieu, observado para a contemplação da República adotada pelo Brasil, desde 1891, o momento é de refletir sobre o artigo escolhido: “Buffett diz que nunca quis deixar herança.” O artigo, publicado na Folha de São Paulo, em 27 de junho de 2006, dá uma excelente ideia da atitude de um republicano. Warren Buffett é um bilionário investidor americano que resolveu doar US$ 31 bilhões de sua fortuna calculada em US$ 40 bilhões para a Fundação Bill and Melinda Gates. “A riqueza dinástica não me entusiasma [...]” (PETERS, 2006, p. B6). Destinar maioria da parcela de sua riqueza à uma Fundação é ato de um Republicano. Sabe-se muito bem que as grandes fortunas são taxadas nos Estados Unidos, de tal forma que, antes que o governo destine parcela dessa soma para a indústria bélica, o montante é destinado a outras atividades como pesquisa, filantropia, etc. O doador “[...] esperava que sua decisão quanto às doações inspirasse outras pessoas ricas a praticar generosidade semelhante.” (PETERS, 2006, p. B6). Colocado o Artigo da Constituição Federal sobre a República e a leitura do artigo de jornal sobre as doações de grandes fortunas, as perguntas surgem e o entendimento do que vem a ser uma República ganha outra dimensão: apesar da forma de governo adotada na organização política brasileira desde 1891, nosso princípio não é de um país republicano. Começa-se a entender a distância existente entre eficácia

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jurídica e social. Não basta autoproclamar-se Republicano praticando o princípio de um anti-republicano. Quais foram as atitudes dessa natureza (filantrópica) e dimensão empreendidas no Brasil? Nesse ponto cabe esclarecer aos alunos as peculiaridades com relação ao ensino do Direito Constitucional. A Constituição Federal traz em si regras e princípios que necessitam de uma compreensão, para posterior aplicação, embora “[...] a concretização constitucional não é diferente da concretização normativa em geral.” (GALINDO, 2005, p.171). Mas para a concretização (eficácia social) da Constitucição “[...] é necessário que haja uma pré-compreensão [...] do enunciado normativo por parte do intérprete-concretizador [...]” (GALINDO, 2005, p. 172). Foi o recurso aplicado ao caso da República. Não basta somente ler o artigo constitucional referente a nossa forma de governo. Se faz necessário o entendimento do que venha a ser República, quais suas implicações, para posterior discussão desse instituto político no interior da organização política brasileira. Essa tem sido a tarefa proposta pela metodologia implementada. A “pré-compreensão do enunciado normativo”, sua tradução e sua posterior relação no interior de nossa organização social, esta a tarefa dos artigos de jornais. Um outro exemplo da dinâmica tomada pela introdução dessa metodologia foi a discussão do Artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso VI, quando trata da inviolabilidade de crença e consciência, inclusive da descrença. Lido o preceito legal, destaca-se a quantidade de crenças no Brasil, inclusive a garantia de não crer. Mas num país eminentemente católico como é o caso do Brasil, “normal” a presença de um crucifixo na maioria das repartições públicas, inclusive nas dependências do Forum. “Normal” ainda é a falta, nos cemitérios municipais, de locais para cerimônias aos mortos de outros cultos, num país onde a multiplicidade religiosa é da mesma natureza da multiplicidade étnica. Em artigo do dia 28 de julho de 2006, na Folha de São Paulo, onde o Ministério Público do Estado de São Paulo cobra a retirada de um crucifixo fixado em uma repartição pública, os alunos atentaram para o problema da religião em nosso meio. Os argumentos pela manutenção do símbolo religioso se fizeram inconsistentes, como ser o catolicismo no Brasil a religião da maioria. E quanto a minoria? Que o crucifixo é uma representação de Deus. Mas de qual Deus estamos falando? Alertados para o princípio da legalidade, cabe a “[...] Promotoria [...] apurar eventual desprestígio a outras crenças religiosas.” (CREDENDIO, 2006, p. C4). Destaque para a atuação do Ministério Público que “[...] enviou ofício a USP cobrando a retirada de um crucifixo[...] sob a alegação de que [...] o Estado é laico[...]”

(CREDENDIO, 2006, p. C4) e a retirada de um símbolo que representa somente uma das várias formas de relação com o metafísico ganhou discussão inclusive fora da sala de aula. Um último assunto digno de ser mencionado encontra-se no campo do trabalho. A discussão dos direitos de segunda dimensão, dieitos relacionados aos Direitos Sociais, elencados no Artigo 7º, inciso XXX, trata de uma das “[...] regras sobre a proibição discriminatória no ato de admitir o trabalhador.” (ARRUDA, 1998, p. 67). A compreensão desse dispositivo constitucional ganha relevo quando encontramos uma realidade analisada a partir de sua distinção entre os gêneros. A “[...] média de remuneração das mulheres negras equivale a cerca de 50% da dos homens brancos [...]” (DIANNI, 2007, p. B13). As mulheres ainda não possuem remuneração laboral compatíveis com os cargos e funções que ocupam, apesar das conquistas e da dupla jornada. Tal discriminação, uma realidade, não é ignorada pela Constituição Federal, daí sua importância na proteção da discriminação em virtude do sexo que, se displicentemente desconsiderada mantém o “[...] desperdício de talento e potencialidade [...] que debilita a coesão social e conseqüentemente a democracia.” (DIANNI, 2007, p. B13). Espera-se, entre outros objetivos, que, com essa metodologia se possa implementar um debate que extrapole o mundo jurídico, vá além dos códigos, evite os exemplos eternizados e desperte os alunos para uma realidade que, se não encontra sua verdadeira contraprestação na Constituição Federal, pode ser compreendida e apreendida na complexa sociedade de onde foram extraídos seus valores e princípios. Dentre outras propostas, o ensino do Direito Constitucional mediante artigos de jornais visa aproximar as normas constitucionais da realidade social, evitando a falsa percepção de que temos um ordenamento legal sem a devida aplicação. Para tanto, buscou-se uma forma de inserir, no aprendizado, algo que seria do cotidiano dos alunos, reforçando a relação existente entre Constituição e realidade social, demonstrando que, muitas vezes, a falta de aplicação dos preceitos e princípios encontram-se na seara do campo político, fora do mundo jurídico. O recurso didático escolhido foram os artigos de jornais que tivessem uma relação com o assunto a ser ensinado apontando a relação existente entre a abordagem jornalística e a previsão legal. Para a implementação desta proposta didática foram escolhidos dois periódicos de grande circulação: a Folha de São Paulo e O Estado de S. Paulo. Numa pesquisa diária aos periódicos, promove-se uma verdadeira garimpagem dos artigos, opiniões, resenhas, etc que guardam estreita relação com o conteúdo

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constitucional a ser ensinado. O material é separado, lido e discutido. Se aprovado, providencia-se sua reprodução de forma que cada aluno tenha o material em mãos no momento da discussão em sala. Discorre-se sobre o assunto legal e logo em seguida um dos alunos lê o artigo em voz alta, para que se obtenha uma visão global do seu conteúdo.

o que faz com que o debate sobre temas variados e complicados venham a tona, como o caso do aborto (que já possui sua previsão legal), da impunidade,do voto secreto, etc. A terceira e última finalidade é a de levar os leitores, professor e alunos, a produzir uma leitura autorizada, a partir de seus próprios objetivos, necessidades e interesses. Uma pesquisa tem sido realizada a cada final de semestre, com alguns alunos, para avaliar o procedimento e a validade desta metodologia. De forma incipiente, os resultados tem-se mostrado positivos, mas ainda é cedo para emitir qualquer conclusão definitiva a respeito desse recurso didático. Fato é o dispertar dos alunos para a ignorância dos temas do Direito Constitucional relacionados à falta de obediência àquilo que escolhemos como princípio e valores enquanto sociedade. Ainda, que a ausência de aplicabilidade dos preceitos, normas e princípios constitucionais encontram seus próprios obstáculos no seio da própria sociedadede na qual estamos inseridos, tornando o Direito Constitucional, ao mesmo tempo, fonte de legitimidae legal e vítima da falta de observância de seu conteúdo.

Uma vez realizada essa etapa da leitura, parte-se para uma outra de “[...]compreensão como ‘uma forma de diálogo’ entre [leitores] e autor, por meio do texto já escrito para se produzirem significados e sentidos e que envolve a história de leitura [dos leitores] e do texto.” (BAKHTIN, 1981, p. 132 apud MORTATTI, 1999, p. 71).

Nessa perspectiva, o trabalho que se busca é o de análise dos aspectos constitutivos da configuração textual dos artigos, segundo Mortatti (1999, p. 72), que implica em identificar: quem? (sujeito do discurso), diz o quê? (opções temático-conteudísticas), como? (estruturais-formais), de onde? (lugar social), quando? (momento histórico), por quê? (necessidades), para quê? (propósitos), e, para quem? (leitor). A expectativa final é a de que, por meio dessa análise dos aspectos constitutivos da configuração textual dos artigos, os alunos e professor possam “[...] produzir uma leitura possível e autorizada, a partir de seus próprios objetivos, necessidades e interesses.” (MORTATTI, 1999, p. 73), na maioria da vezes, expressos sob a forma das opiniões e dos questionamentos por parte dos envolvidos.

Referências

Considerações finais

ADORNO, S. Os aprendizes do poder. O bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Como foi possível observar, a finalidade do trabalho desenvolvido é tripla.Primeiro a de despertar o aluno para que vá além das leituras doutrinadas em matéria de Direito, já que o interesse por jornais é muito baixo entre os alunos do ensino superior de uma forma geral.A segunda, a de traçar uma relação entre o mundo das leis e o cotidiano, inclusive inserir a discussão da falta de aplicabilidade das regras. A falsa percepção de que para cada problema no seio social temos uma norma em abstrato que a contempla, cria um universo acadêmico perfeito. Essa percepção de mundo perfeito induz o aluno a acreditar que o sistema jurídico resolve, soluciona conflitos, pacifica a sociedade. Porém “[...] decisões não eliminam conflitos” (FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 91). A decisão judicial “[..] impede a continuação de um conflito: ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim” (FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 91). De tal forma que os problemas ficam latentes no interior da sociedade

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RESUMO

ABSTRACT

O presente estudo teve como objetivo avaliar a política de seleção, formação e acompanhamento do gestor escolar na rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, a fim de verificar possíveis lacunas frente às exigências adequadas ao modelo de gestão estratégica e participativa, visto como uma alternativa para a referida rede. Trata-se de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, que envolveu levantamento e análise documental; pesquisa bibliográfica; e pesquisa de campo em seis escolas da rede. O estudo evidencia uma formação e um acompanhamento ainda pautados em questões meramente burocráticas e administrativas, e sinaliza a necessidade de implementação de novas práticas de capacitação dos diretores escolares.

The present study aimed to evaluate the policy of selection, training and monitoring of the school manager in municipal public schools of Juiz de Fora, Minas Gerais, Brazil, to assess possible gaps opposite the appropriate requirements of the strategic management and participatory seen as an alternative to said network. This is a case study, qualitative approach involving survey and document analysis, literature research, and field research in six schools in the network. The study high lights atraining and coaching still guided by purely bureaucratic and administrative issues, and indicates the need to implement new practices for the training of school principals.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Gestão educacional. Gestão estratégica e participativa. Capacitação de gestores escolares.

Education Management. Strategic and participatory management. Training of school managers.

1 Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF – Juiz de Fora – MG – Brasil. CEP 36036900. E-mail: [email protected] 2

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Introdução Diante do processo de democratização da educação brasileira, ocorrido a partir da década de 1990, muito se tem discutido sobre a gestão participativa como uma alternativa de melhoria na qualidade da educação básica. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, consagra o princípio da gestão escolar democrática e participativa no ensino público, o que é reafirmado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. Esses dois documentos vêm alicerçando as políticas brasileiras de gestão escolar, nas quais a escolha dos diretores pela via eleitoral e a formação para o exercício da função constituem-se dois importantes componentes. No final da década de 1990, as experiências de escolha dos diretores escolares pela via eleitoral, que já vinham sendo implementadas nas redes públicas de ensino brasileiras, multiplicaram-se com a criação de normas próprias em cada rede. Foi nesse contexto que o município de Juiz de Fora, Minas Gerais, constituiu, em 1999, seu sistema municipal de ensino e promulgou a lei que regulamenta, até os dias atuais, as eleições para provimento dos cargos de diretor e vice-diretor escolar da sua rede pública. A escolha dos diretores por meio de processos democráticos evidencia avanços na gestão escolar, pois sinalizam a mudança de um modelo estático de gestão, caracterizado pelo diretor tutelado dos órgãos centrais, para um paradigma dinâmico, em que escolas e sistemas educacionais são vistos como organizações vivas, caracterizadas assim, por uma rede de relações de atores que nelas atuam e interferem, direta ou indiretamente (LÜCK, 2000a). No entanto, essa mudança, por si só, não concebe uma gestão eficiente e eficaz. Uma nova concepção da gestão escolar demanda políticas de formação e acompanhamento dos diretores, capazes de garantir a autonomia das escolas como um meio, e não um fim em si mesmo, na busca por melhores resultados de desempenho educacional. Dentro dessa perspectiva, o presente estudo partiu da hipótese de que a política de seleção, formação, apoio e acompanhamento do gestor escolar na rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora – MG, gerida pela Secretaria de Educação (SE/ JF), não está compatível com a realidade de cada escola, e assim, impedindo uma gestão escolar eficiente e eficaz3 na rede. O objetivo geral foi avaliar a referida polí3

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tica, a fim de verificar possíveis lacunas frente às exigências adequadas ao modelo de gestão estratégica e participativa. Para tanto, foram traçados os seguintes objetivos específicos: (i) descrever a política de seleção, formação, apoio e acompanhamento dos gestores escolares na rede; (ii) problematizar possíveis deficiências em termos de formação, apoio e acompanhamento do gestor escolar na referida rede, frente ao dia a dia da gestão e aos desafios impostos às escolas pelas avaliações em larga escala; (iii) sinalizar alternativas para ampliar a formação dos gestores na rede, com foco no desenvolvimento de competências para o planejamento, e a gestão estratégica e participativa. Trata-se de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, pautado em levantamento e análise documental, pesquisa bibliográfica, e pesquisa de campo que envolveu seis gestores escolares da rede pública municipal de Juiz de Fora4. Além desta introdução e das considerações finais, o texto está dividido em três seções. A primeira trata da gestão estratégica e participativa na educação brasileira; a segunda da apresentação da política de seleção, formação e acompanhamento do gestor escolar na rede pública municipal de Juiz de Fora – MG; na terceira são apresentados os resultados da pesquisa de campo.

Gestão estratégica e participativa na educação brasileira A gestão escolar, desde a década de 1990, passou a ser vislumbrada como condição fundamental para a melhoria da qualidade do ensino. Na referida década, o clamor pela democratização da educação brasileira, a guisa de sua garantia como direito constitucional, levou o país à ampliação do acesso ao ensino fundamental. Como consequência, ocorreu uma mudança no perfil dos alunos do ensino público, com a entrada massiva, nas escolas públicas, de crianças oriundas de famílias de classes sociais mais empobrecidas, e a progressiva saída da classe média. Como abordado por Peregrino (2010), a massificação do acesso ao ambiente escolar, no entanto, não ocorreu acompanhada pela melhoria na aprendizagem, levando a autora a afirmar que as escolas passaram a gerenciar pobreza ao invés de escolarizar. conceitos, podemos definir eficiência como a melhor maneira ou a forma mais racional de gerir os recursos públicos e, assim, entendida como a relação entre custos e benefícios. Já a eficácia está relacionada ao alcance dos resultados e dos objetivos das organizações. Enquanto a eficiência se relaciona com os meios, a eficácia está atrelada aos fins. O ideal é que a gestão seja ao mesmo tempo eficiente e eficaz, já que pode existir gestão eficiente que não seja eficaz e vice-versa(CASTRO, 2006).

Deve ser citado que a Emenda Constitucional n.19, de 04 de junho de 1998, estabeleceu o princípio da eficiência na administração pública brasileira, propiciando a discussão sobre a implementação de inovações na sua forma de gestão, pautada até então, no modelo burocrático. Essa nova perspectiva na gestão pública traz à baila os conceitos de eficiência e eficácia. Com intuito de melhor esclarecer o leitor a respeito desses

Este estudo é parte integrante da dissertação de mestrado de autoria de Josélia Barbosa Miranda, com orientação de Márcia Cristina da Silva Machado.

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Na mesma década, inauguram-se as políticas de avaliação em larga escala, com a adoção, por parte do governo federal, do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). O espírito dessa política alinhavam-se às orientações do Banco Mundial, que preconizava o papel da avaliação como base para medir a eficiência e a eficácia dos programas de aceleração da aprendizagem, implementados à época, além de se tornar instrumento de responsabilização das escolas pelo rendimento de seus alunos. Diante desse contexto, “[...] o diretor e a equipe escolar deveriam ser capazes de desenvolver um plano de ação e definir estratégias de curto, médio e longo prazo, para garantir a melhoria da aprendizagem dos alunos e de outros indicadores de desempenho” (NEUBAUER; SILVEIRA, 2009, p.104). No entanto, segundo Burgos e Canegal (2011), os diretores de escolas públicas ainda tendem a se confundir com a própria instituição, imprimindo um padrão personalista de gestão. Ao mesmo tempo, a administração central atua orientada pela lógica da racionalidade abstrata e, portanto, distante da realidade concreta da escola, gerando isolamento do diretor, e uma relação unilateral entre sistema e escola. A demanda por um gestor capaz de conduzir e estimular a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e do Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE), dentro de um modelo de gestão pautado na participação, denota um trabalho complexo, visto a necessidade de se desenvolver competências para conseguir vencer a gestão da pobreza, fortalecer a autonomia e avançar rumo à melhoria dos resultados educacionais. Em outras palavras, o movimento por maior responsabilização da escola pelos resultados educacionais, iniciado na década de 1990, nos remete à necessidade de formação dos gestores escolares, para o exercício de múltiplas competências. Porém, ainda assistimos a capacitações de caráter genérico, com conteúdos abstratos e distantes do dia a dia das escolas (LÜCK, 2000a; MACHADO, 2000; PAZETO, 2000). Para garantir o funcionamento pleno da escola como uma organização social, a gestão escolar deve ser um meio de garantia da promoção da aprendizagem, de acordo com as determinações da legislação educacional, articulando, para tanto, suas várias dimensões de forma equilibrada, em uma perspectiva, democrática, participativa, interativa e integradora. Isso requer mudança de cultura e de comportamento no âmbito das redes de ensino, e consequentemente, das escolas. Sendo a mudança de cultura na organização o que leva à mudança de comportamento das pessoas, o primeiro passo para a mudança no modelo de gestão deve ser a compreensão clara do modelo em si, e das exigências que ele coloca para a sua operacionalização na organização.

Nesse sentido, a gestão estratégica se apresenta como o mecanismo que permite identificar as reais necessidades de mudanças, estabelecer as prioridades em termos de mudanças e os meios para efetivá-las. Ou seja, a gestão estratégica proporciona a compreensão de forma planejada do que mudar, de como mudar e, desse modo, deve ser vista como um importante mecanismo por meio do qual os participantes do sistema educacional poderão identificar e implementar as mudanças necessárias à efetivação de um novo paradigma de gestão. Nesse processo, a gestão estratégica abrange três componentes: visão sistêmica, pensamento estratégico e planejamento. A visão sistêmica pode ser definida como a capacidade do gestor de compreender e estabelecer as diversas relações de interdependência presentes dentro e fora da organização e que condicionam o desempenho organizacional. Na gestão escolar, a visão sistêmica permite que o diretor compreenda como funciona a escola, e o sistema educacional como um todo, imprimindo um caráter de interdependência entre a sua escola e a rede, englobando as demais unidades escolares e seus órgãos centrais. Do mesmo modo, a visão sistêmica permite que sejam estabelecidas relações de interdependência dentro da própria escola, entre professores, funcionários, pais e alunos. Ademais, a visão sistêmica deve se constituir em uma das bases da autonomia escolar, definida por Lück (2000a) como sendo a ampliação do espaço de decisão, voltada para o fortalecimento da escola, e, assim, caracterizada por um processo de gestão participativa. Já o pensamento estratégico deve ser compreendido como a capacidade do gestor de pensar a realidade, as necessidades e as ações da organização de forma articulada com os condicionantes internos e externos da organização e com objetivos de curto, médio e longo prazo. Isso significa dizer que o pensamento estratégico é decorrência da visão sistêmica, uma vez que seu desenvolvimento proporciona a percepção do é prioritário e estratégico para o desempenho da organização. Quando aplicado à escola, o pensamento estratégico permite que o gestor tenha conhecimento dos fatores críticos para o sucesso da unidade escolar, e que devem que ser considerados na elaboração do Plano de Desenvolvimento da Escola e do Projeto Político Pedagógico. A visão sistêmica e o pensamento sistêmico são os elementos que permitem ao gestor utilizar o planejamento como ferramenta de apoio indispensável na definição de objetivos e estratégias para as organizações, e seu desdobramento em metas e planos de ação. Considerando essa perspectiva, a formação e o acompanhamento do gestor escolar devem permitir que esse seja agente de mudanças, que estabeleça relações intra

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e interescolares, de modo que as ações da escola sejam efetivadas de forma sistêmica e estratégica, garantindo uma gestão integrada entre os diversos atores envolvidos na gestão educacional. Segundo Machado (1999) apud Machado (2000, p.102),

Assim, desde a promulgação dessa lei, os diretores e vice-diretores eleitos das escolas públicas da rede municipal vêm sendo capacitados para o exercício da função, por meio de um curso de caráter obrigatório, de 40 horas, que é ministrado no ano seguinte ao processo eleitoral.

no contexto das mudanças que invadiram o cenário educacional e a gestão escolar, a formação continuada vem ganhando progressiva importância, como sinal de que o aprendizado deve assumir caráter permanente e dinâmico na vida dos profissionais de qualquer organização humana. A formação passa a ser vista como instrumento fundamental para o desenvolvimento de competências, envolvendo valores, conhecimentos e habilidades para lidar com as mudanças aceleradas, com contextos complexos, diversos e desiguais, para aprender a compartilhar decisões, lidar com processos de participação e adaptar-se permanentemente às novas circunstâncias e demandas institucionais.

Acredita-se que essas competências poderão contribuir para a consolidação de um novo modelo de gestão educacional, permitindo que a gestão escolar, como importante dimensão da educação brasileira, seja capaz de implementar as mudanças necessárias para a busca de um ensino de qualidade, de acordo com as demandas da sociedade moderna.

Apresentação da política de seleção, formação, apoio e acompanhamento do gestor escolar na rede municipal de ensino de Juiz de Fora – MG Em 1999, o município de Juiz de Fora – MG constituiu seu Sistema Municipal de Ensino, através da Lei Municipal 9569/99, em consonância com o Art. 11, Inciso I, da LDB de 1996, o qual requer dos municípios a organização, a manutenção e o desenvolvimento de órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados. Após a constituição do seu sistema de ensino, o referido Município, ainda em 1999, promulgou a Lei Municipal 9611, marco importante na seleção e na capacitação do gestor escolar da sua rede pública, pois institui e regulamentou a eleição para diretor e vice-diretor nas escolas públicas municipais. Ficou estabelecida uma qualificação mínima para os candidatos aos cargos de diretor e vice-diretor escolar, garantindo que todos tenham escolaridade em nível superior, excluindo do processo os docentes que possuem, apenas, formação de nível médio (TEIXEIRA, 2000). A Lei 9611/99 também determina como condição para a candidatura, a assinatura de um termo de compromisso de participação, por parte dos candidatos, em um curso de orientação para o exercício da gestão escolar. 86

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A partir de 2011, a formação dos gestores escolares na rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora, passou a ser ministrada em três etapas. A primeira, com carga horária de 10 horas, destina-se a todos os interessados em concorrer aos cargos de diretor e vice-diretor, com o objetivo de oferecer, aos candidatos aos cargos de gestão escolar, uma oportunidade antes das eleições, de receberem orientação para a elaboração de seu Plano de Trabalho. A segunda etapa conta com um curso de Introdução ao Tema da Gestão Escolar, que se destina aos diretores e vice-diretores eleitos. Este tem caráter obrigatório, em cumprimento ao disposto na Lei 9611/99; uma carga horária de 40 horas; e objetiva desenvolver competências e habilidades julgadas necessárias aos gestores escolares. Na terceira etapa, é oferecido um Curso de Aperfeiçoamento para Gestores de Educação Pública, com carga horária de 120 horas. Nesse caso, a participação é de livre escolha dos diretores e vice-diretores eleitos. Com relação ao acompanhamento dos diretores, a Secretaria de Educação de Juiz de Fora conta com a Assessoria de Programação e Acompanhamento, a qual compete, segundo o Regimento Interno da Secretaria – Resolução 028/2009, estabelecer as diretrizes do planejamento estratégico, tático e operacional da secretaria; avaliar, periodicamente, os resultados alcançados pela rede; e subsidiar as decisões do Secretário de Educação. Destaca-se, ainda, a atuação da Supervisão de Apoio à Gestão Escolar e da Supervisão de Avaliação e Monitoramento, ambas pertencentes ao Departamento de Ações Pedagógicas. Quando observadas as atribuições da Supervisão de Apoio à Gestão Escolar, na Resolução 028/2009 da SE/JF, constata-se que essas, versam, na realidade, sobre a organização da gestão administrativa e burocrática da rede como um todo. Em relação às atribuições da Supervisão de Avaliação e Monitoramento, merece ênfase o acompanhamento, a orientação e a avaliação dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas da rede. Deve-se ressaltar que, no Regimento Interno da Secretaria de Educação, não consta nenhuma atribuição, referente às supervisões supracitadas, que nos remeta Doxa, v.17, n.1 e 2, p.81-95, 2013

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ao apoio e ao acompanhamento do gestor escolar no que tange ao planejamento e à gestão estratégica das escolas da rede.

Os resultados evidenciam as limitações da política em questão, frente ao dia a dia da gestão, ratificando as hipóteses levantadas, como será apresentado a seguir. Para tanto os sujeitos participantes da pesquisa foram identificados como Diretor 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Pode-se dizer que, de forma geral, os processos de eleição para os cargos de diretor escolar têm colocado ênfase na competência política dos candidatos, sem levar em conta as exigências quanto à competência técnica dos mesmos para o exercício da função (TEIXEIRA, 2000). Em relação a Juiz de Fora, desde a promulgação da Lei 9611/99, existiu uma preocupação, também, com a competência técnica. A referida lei buscou garantir a ocupação dos cargos de diretor e vice-diretor por profissionais com curso superior, e uma formação inicial e específica para o exercício dessas funções, de modo a suprir as deficiências inerentes aos currículos das licenciaturas. Contudo, a formação está voltada somente para questões burocráticas e administrativas, e é considerada válida pelos gestores entrevistados no que se refere a este aspecto.

Desbobramentos da política de seleção, formação, apoio e acompanhamento do gestor escolar na rede pública municipal de ensino Tendo em vista compreender o desdobramento da política de seleção, formação apoio e acompanhamento do gestor escolar na rede pública municipal de Juiz de Fora – MG, realizou-se entre os meses de fevereiro e abril de 2012, uma pesquisa de campo em seis escolas da rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora. A pesquisa de abordagem qualitativa e cunho exploratório utilizou como instrumento entrevistas semiestruturadas com gestores de seis escolas, selecionadas a partir dos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), referentes a 2007 e 2009. A escolha dessas escolas buscou contemplar as diversas situações apresentadas na rede com relação aos resultados do desempenho escolar, expresso pelo IDEB, por se entender que deveria ser verificado o desdobramento da política em análise em diferentes contextos. Tal escolha se justifica na premissa de que “a idéia por trás da pesquisa qualitativa é selecionar propositalmente participantes ou locais [...] mais indicados para ajudar o pesquisador a entender o problema e a questão de pesquisa” (CRESWELL, 2007, pp.189-190). Com base no desenho da política, apresentado na seção anterior, a pesquisa partiu das seguintes hipóteses:

[...] no dia a dia a gente vai aprendendo, com cada situação a gente aprende, seja na relação com o professor, com o aluno, com a comunidade. [...] eu acho que o aprendizado é mesmo no dia a dia (Diretor 4).

A pesquisa revela que a formação não contribui para facilitar a gestão escolar no que se refere a outros aspectos que permeiam o fazer da escola, como o planejamento, a condução das questões pedagógicas e a gestão de conflitos, estando, desse modo, distante de importantes aspectos do dia a dia da gestão escolar.

(i) A formação, o apoio e o acompanhamento dos gestores na rede pública municipal estão voltados para questões burocráticas e administrativas, não permitindo a efetivação da gestão estratégica e participativa nas escolas;

O curso de 40 horas é muito pouco, nós tivemos palestras interessantes, boas, que trouxeram orientação, mas talvez se este curso tivesse acompanhado, assim, o dia a dia, nas nossas dificuldades [...] (Diretor 1).

(ii) No dia a dia, o diretor se encarrega mais de gerenciar tarefas corriqueiras, do que programar, estruturar, controlar, comunicar e negociar;

Foi uma transmissão de conhecimento do que é ser gestor, de qual é a tarefa do diretor dentro da escola e que não tinha muito haver com a realidade não (Diretor 3).

(iii) Falta visão sistêmica por parte dos atores envolvidos no processo da gestão educacional na rede, contribuindo para o isolamento do gestor em sua própria realidade; (iv) Problemas de gestão podem ter contribuído para os casos de resultados insatisfatórios de desempenho na rede, o que sinaliza a necessidade da formação dos gestores e agentes de apoio da Secretaria de Educação de Juiz de Fora, para o desenvolvimento da gestão estratégica e participativa, como forma de enfrentamento dos desafios de melhoria no ensino ofertado.

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A parte burocrática até que ele dá uma mão. Mas o dia a dia, o fazer da escola é mais com a prática mesmo. Aqui a gente vai buscando soluções [...] (Diretor 2).

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É importante destacar que os gestores mencionam a prática como sendo o espaço de maior aprendizado, o que pode revelar que a formação dos gestores na rede não está levando em conta os contextos de atuação dos mesmos (LÜCK, 2000A; MACHADO, 2000). Com isso percebe-se que os gestores tendem a sobrepujar a prática em detrimento da formação teórico-conceitual, sem a real noção de que, na verdade, estes dois aspectos se complementam. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.81-95, 2013

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Deve ser destacada a importância de uma formação mais abrangente para todos os diretores da rede, possibilitando o aprendizado, não somente, com seus erros e acertos. Nesse sentido, se faz imperioso dizer que uma gestão participativa, que sustente a autonomia escolar como caminho para melhoria na qualidade do ensino, demandará esforços no sentido de propiciar aos diretores o desenvolvimento de competências, lhes permitindo assumir, efetivamente, as responsabilidades inerentes as suas funções. Com relação ao apoio e ao acompanhamento do gestor por parte da administração central de rede a pesquisa aponta que estes também estão pautados em questões meramente burocráticas e administrativas. Os diretores afirmam ter uma boa relação com a Secretaria de Educação, mas deixam transparecer certo distanciamento entre esta e as escolas no que se refere à gestão escolar, como fica evidente na fala do Diretor 2:

Embora seja relatada a prática de visitas técnicas às escolas, por parte da atual gestão da Secretaria de Educação, a pesquisa não evidencia uma proposta de acompanhamento contínuo desse gestor no exercício de sua função. Em outras palavras, não é possível perceber uma gestão integrada na rede, contribuindo para o sentimento de isolamento do gestor escolar em sua realidade. Essa constatação nos leva a denotar que a administração central atua distante da realidade da escola (BURGOS; CANEGAL, 2011; LUCK, 2011), dificultando a efetivação da mudança de paradigma na gestão da rede. Ademais, tais observações podem sinalizar problemas de gestão, uma vez que o trabalho do gestor escolar deve estabelecer uma relação de interdependência com o trabalho da Secretaria. Os atores que atuam dentro da SE/JF, com a responsabilidade de dar suporte aos diretores, a fim de apoiá-los no processo de tomada de decisões eficazes na condução da gestão escolar, devem conhecer, além da política educacional, a realidade das escolas atendidas e suas demandas, buscando atuar junto com seus diretores. Isso indica a necessidade de um novo estilo de relacionamento entre sistema de ensino e escola, mais horizontalizado e co-lateral (LÜCK, 2011). Para tanto, é imprescindível que os diretores e os agentes de apoio e acompanhamento da gestão escolar da SE/JF possuam uma visão sistêmica da rede, o que implica na capacidade de compreender as diversas relações de interdependência presentes dentro e fora da escola, ou seja, as relações que se estabelecem entre os atores que atuam diretamente no contexto escolar, e destes com o sistema educacional como um todo. Aliada a essa realidade, percebe-se que a gestão escolar ainda está comprometida com a gestão da pobreza. Desse modo, o pleno conhecimento do contexto escolar e de sua clientela tornam-se imprescindíveis na busca de estratégias para vencer obstáculos rumo a melhorias no desempenho dos alunos. Assim, ressalta-se que a formação na referida rede deveria levar em conta, também, as especificidades de cada unidade. Tal proposição vai ao encontro dos apontamentos de Machado (2000) ao afirmar que a formação dos gestores deve buscar um equilíbrio entre descrições gerais de uma boa prática de gestão e as necessidades específicas de cada escola. Somada a esta importante questão, a busca por melhores resultados do IDEB na rede, embora conte com o apoio do Programa de Desenvolvimento da Escola5,

Boa. [...] Essa parte eu não tenho do que reclamar. Os professores sempre vieram sempre a tempo e a hora, os professores do projeto laboratório de aprendizagem sempre também estiveram a tempo e a hora, muitos recursos, muito material por conta da escola estar participando do Mais Educação, vieram bastante recursos e a gente pode investir bastante, tanto na parte física como na parte pedagógica, então foi assim excelente (Diretor 2). [...] mais de uma vez vieram na escola para visitar todas as salas e eu mostrei está faltando isso, isso e isso. Eu acho que existe uma triagem dos problemas levantados nas escolas, mas a priori eles teriam que estabelecer o que é mais importante, o que é principal (Diretor 2).

As respostas sinalizam um movimento mais significativo do diretor em busca de apoio da Secretaria de Educação, mesmo que seja para questões administrativas, do que o contrário, um movimento da Secretaria em relação à escola, no sentido de apoiar e acompanhar a gestão escolar. Sempre que temos um problema temos que procurar a SE por e-mail, por telefone, ou tem que ir pessoalmente, você pode marcar um horário. E é sempre assim, a gente que vai atrás. Uma coisa que eu comento sempre com a secretária aqui da escola, quando a gente manda um e-mail, por exemplo, nos casos que eu te contei da demanda de professor, ninguém te liga ou te manda um e-mail dizendo, sabe fulano aquele seu pedido, a gente está vendo, mas não está conseguindo. Isso não acontece, sempre sou eu que ligo para saber como anda o encaminhamento. Não parte de lá um retorno em relação às demandas, e isso eu sinto falta [...] (Diretor 6).

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5 O Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE Escola é um Programa do governo federal voltado para o aperfeiçoamento da gestão escolar democrática e inclusiva. Por meio da utilização do planejamento estratégico, o programa busca auxiliar os gestores na identificação dos seus principais desafios, buscando desenvolver e implementar ações que possam melhorar os resultados do desempenho escolar (BRASIL, 2012).

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ainda enfrenta desafios, na medida em que os gestores necessitam desenvolver competências para fazer melhor uso dos recursos que o referido programa propicia. Segundo Lück (2011), a gestão educacional deve sustentar e dinamizar o modo de fazer das escolas e do sistema, sob pena de que os demais esforços sejam despendidos sem promover melhorias nos resultados educacionais. De acordo com a autora, mesmo existindo instrumentos e condições para a realização de um ensino de qualidade nas escolas, estes se tornam ineficientes por falta de ações articuladas, que devem ser promovidas e orientadas sob a liderança do diretor escolar. Tal afirmação reforça a necessidade de gestores e agentes de apoio à gestão escolar desenvolverem competências em termos de gestão estratégica, e sinaliza que esta possa ser um possível caminho para a rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora, no sentido de empreender esforços na reversão das inconsistências em termos de desempenho que as escolas ainda apresentam. Além disso, percebe-se pelos resultados das entrevistas que os diretores não possuem visão sistêmica, pensamento estratégico, e não fazem uso do planejamento como instrumento de gestão. Quando indagados sobre o planejamento escolar, os diretores evidenciam a falta deste como ferramenta de gestão, o que pode ser exemplificado por meio do relato dos Diretores 1 e 5.

adotar outra perspectiva que não seja apenas reagir ao que se dá na superficialidade das situações, gerando ações limitadas, uma vez que agem sobre os sintomas dos problemas e não nas bases de sua sustentação (LÜCK, 2000b).

[...] planejar não tem como, você tem metas, você tem foco, entendeu, e você mobiliza os outros a fazerem aquilo que você pretende, mas você não senta para pensar (Diretor 1). Primeiro a gente tem que administrar o pedagógico, tem que administrar a disciplina, é a falta de professores, então o aluno fica aí sem aula, a gente tem que estar tampando buraco, e toda a rotina da escola, tem que administrar os serviços, um sempre acha que está fazendo mais que o outro, e é uma rotina que a gente sai daqui às oito horas, às vezes até mais, e a gente sai doido para ir embora, e sai pensando que no outro dia a gente tem que retornar. É muito difícil esse cargo (Diretor 5).

Considerações finais Diante dos resultados apresentados, pode-se dizer que o caminho para a implementação de um modelo estratégico e participativo de gestão, que fomente a descentralização e reafirme a autonomia das instituições de ensino como meio de obtenção de um ensino de qualidade, necessita da adoção de instrumentos que contemplem novas práticas de gestão nas escolas e na administração central da rede. Tal afirmação vai ao encontro das considerações de Pazeto (2000, p. 164), ao assinalar que “as instituições educacionais, de um modo geral, ainda não tomaram consciência da necessidade de criarem uma gestão ágil, dinâmica e comunicativa para o empreendimento de seu plano de ação”. Para o autor, esse panorama sinaliza a importância da formação e da qualificação dos gestores educacionais, reafirmando a necessidade de uma capacitação mais abrangente e compatível com as demandas dos diretores escolares. Desse modo, acredita-se que a capacitação dos gestores deveria propiciar competências para conciliar os anseios e as metas das escolas e da rede, em acordo com as normas vigentes no sistema educacional brasileiro, rumo a melhores resultados de desempenho escolar. Em outras palavras, para além de propiciar uma formação técnica, a capacitação dos gestores deveria pautar-se no desenvolvimento de competências inerentes à função, e assim propiciar visão sistêmica; pensamento estratégico; e a devida utilização do planejamento como ferramenta de gestão.

O Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE) e o Projeto Político Pedagógico (PPP) não são mencionados pelos diretores, nos levando a inferir que o planejamento não está sendo utilizado como ferramenta na construção desses dois instrumentos norteadores do fazer escolar. Deve ser citado que Lück (2009) refere-se ao planejamento na educação como forma de delinear seus desdobramentos, rumos e objetivos, a partir de uma visão abrangente e integrada que deveria, assim, culminar na elaboração do PDE e do PPP. No entanto, a pesquisa nos leva à dedução de que são os acontecimentos que determinam a ação dos gestores. Em outras palavras, os diretores parecem não

Referências

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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A EDUCAÇÃO SEXUAL NA ESCOLA SOME CONTRIBUTIONS OF PSYCHOANALYSIS TO SEX EDUCATION IN SCHOOLS

Danielle Regina do Amaral Cardoso1 Fernando Crespolini dos Santos2 Luzia Helena das Neves Teixeira3 Maria de Fátima Pessoa de Assis4 Sandra Fernandes de Freitas5 RESUMO

ABSTRACT

Este trabalho tem por objetivo discutir a Educação Sexual na escola à luz do conhecimento psicanalítico. Trata-se de uma pesquisa teórica e bibliográfica, realizada em livros e artigos dos últimos dez anos (2000-2010). Após uma breve contextualização histórica sobre a sexualidade e a educação sexual, buscamos definir a sexualidade, para a Psicanálise, esta que é entendida como sendo a materialidade da vida psíquica, a condição de emergência do inconsciente enquanto estrutura simbólica. Os resultados de nossa investigação mostraram que há poucos trabalhos que abordam a sexualidade inconsciente no âmbito da educação sexual escolarizada, os quais se limitam a discutir principalmente aspectos de ordem teórica e metodológica. A fecundidade da contribuição da Psicanálise

The main purpose of this paper is to discuss sex education in schools in the light of psychoanalytic knowledge. It is a theoretical and bibliographical research, held with books and articles during the last ten years (2000-2010). After a brief historical contextualization on sexuality and sex education, we aimed to define sexuality for psychoanalysis, which is understood as the materiality of psychic life, the emergency condition of the unconscious as a symbolic structure. The results of our investigation have showed that there are few studies addressing the unconscious sexuality in the context of sex education in school, which are mainly limited to discuss theoretical and methodological aspects. The fruitful contribution of psychoanalysis to the debate on sex education

1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP 14800-901. 2 Centro de Referência Especializado da Assistência Social – CREAS. Secretaria Municipal da Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS – Prefeitura Municipal de Araraquara. CEP 14801-450 – Araraquara – SP – Brasil.  3

Instituto Taquaritinguense de Ensino Superior – ITES – Taquaritinga – SP – Brasil. CEP: 14900-000.

4

Universidade Federal de Goiás – UFG – Jataí – GO – Brasil. E-mail: CEP: 75800-000.

5

Universidade Estadual Paulista – UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14800-901.

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ao debate sobre a Educação Sexual encontra-se na consideração da realidade psíquica dos sujeitos, o que acarreta o destaque atribuído ao entrelaçamento entre a vida pulsional e as atividades culturais, na presença do erótico, e do agressivo na conquista do conhecimento.

is found in the psychical reality of the subject, which emphasizes the entanglement between the instinctual life and cultural activities in the presence of the erotic and the aggressive in quest for knowledge.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Psicanálise. Educação Sexual. Sexualidade. Escola.

Psychoanalysis. Sex Education. Sexuality. School.

Introdução Em nossa tradição escolar, assinala Nunes Silva (2000, p.13), a Educação sexual sempre foi objeto de polêmicas. A confluência de saberes conflitantes sobre sexo e sexualidade6 faz da abordagem da sexualidade na escola um desafio para os educadores, temática na qual encontramos uma riqueza de representações sociais, advindas de diferentes fontes, (como o saber religioso, o senso comum, os conhecimentos da medicina e das ciências humanas em geral). Assim, ao enveredarmos por este território de grande complexidade e riqueza de saberes sociais e referenciais teóricos, encontramos algumas observações importantes para nos situarmos diante da sexualidade no campo escolar. Ribeiro (2004, p. 19) faz uma distinção entre educação sexual, “aquela que é dada pela família desde o nascimento, que é influenciada pela cultura e pela sociedade e que determina diferentes atitudes e comportamentos sexuais” (p.15) e a orientação sexual, “ação educativa que pode ocorrer na escola a partir de um trabalho organizado e sistematizado com a participação de professores e profissionais treinados para este propósito”. Verificamos também em Werebe (1981) citado por Figueiró (2009a) a distinção entre a educação sexual informal, “processo global, não intencional, que engloba toda a ação exercida sobre o indivíduo, no seu cotidiano, desde o seu nascimento, com repercussão direta ou indireta sobre sua vida sexual” (p.64)e a “educação sexual formal, deliberada, feita dentro ou fora da escola.” (p.64)

6

Figueiró (2009b, p. 143 –144), faz uma distinção entre o significado de sexo e sexualidade. Sexo está diretamente relacionado com o ato sexual e à satisfação da necessidade de obter prazer sexual. Sexualidade inclui o sexo, a afetividade, o carinho, o prazer, o amor, os valores e normas sociais sobre o comportamento sexual.

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Algumas contribuições da psicanálise para a educação sexual na escola

Figueiró (2009, p.65-66) salienta o entrelaçamento entre as abordagens formal e informal da educação sexual, tendência observada em diversos autores por ela pesquisados, que chamam a atenção para a constatação de que a escola educa sexualmente, não apenas através de programas planejados, mas também na forma como organiza suas atividades, nos silêncios e omissões, pelas maneiras de ser, de pensar, de vestir, de agir dos professores e pelo tratamento que estes dispensam aos alunos. De fato, podemos encontrar a presença de aspectos que não estão diretamente sob o controle das ações conscientes dos professores, conforme afirma Werebe (1998) citado por Figueiró (2009, p.66): “todos os professores, qualquer que seja a matéria que ministram, desempenham, consciente ou inconscientemente, uma ação no campo da educação sexual, assim como todos eles ensinam o vernáculo.” Embora a distinção feita por Ribeiro (2004) seja a designação adotada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC (1998) e nos ajude a situarmo-nos diante dos diferentes níveis de estudo que a abordagem da sexualidade na escola permite, para os propósitos deste trabalho, que pretende discutir a contribuição da psicanálise para a problemática da sexualidade na escola, estaremos utilizando a expressão “educação sexual” no sentido apontado por Figueiró (2009), que envolve tanto os aspectos formais, quanto os informais. Para a Psicanálise, a consideração dos aspectos inconscientes como determinantes de toda conduta humana nos coloca sempre diante do desafio de superarmos a consideração da educação como restrita aos aspectos conscientes e sob o controle das ações de planejamento intencionais, como veremos a seguir. Para que possamos discutir e situar historicamente no Brasil a possibilidade de uma educação sexual orientada pela psicanálise, elegemos algumas questões norteadoras de nossas reflexões, a saber: – Qual o contexto de surgimento da abordagem da sexualidade na escola em seus aspectos sócio-históricos e culturais? – Quais os pontos centrais que vem sendo debatidos na educação sexual escolarizada? – Como a psicanálise, desde Freud pode contribuir para fecundar este debate?

1. A trajetória da educação sexual no Brasil Acompanhamos com Ribeiro (2004) ainda que de forma sintética, alguns pontos históricos sobre a trajetória da educação sexual no Brasil. Este autor descreve as raízes históricas de atitudes e comportamento que compõem uma educação sexual desde a Colônia, em seis momentos, percurso que nos possibilita vislumbrarmos a riqueza e diversidade de representações presentes em nossa Doxa, v.17, n.1 e 2, p.97-114, 2013

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Algumas contribuições da psicanálise para a educação sexual na escola

cultura, bem como os caminhos de implementação do conhecimento escolar no campo da sexualidade. Em um primeiro momento, localizado entre os séculos XVI e XVIII, período referente ao Brasil colonial, temos: “sexo pluriétnico libidinoso para o homem; submissão e repressão do comportamento sexual da mulher; e normas e condenações pela Igreja.” (p.16). Percebemos neste período que as diferenças de gênero vão recebendo suas marcas constitutivas em nosso imaginário social, compondo os sentidos para o masculino e o feminino (estabelecendo-se os primeiros contrapontos entre a atividade/liberdade do homem versus submetimento/opressão da mulher). O segundo momento da educação sexual, a partir do século XIX, nos mostra “o controle da sexualidade e das práticas sexuais licenciosas (originadas da colônia) sob a normalização da moral médica.” (p.17). Neste período, o discurso religioso passa a dividir terreno com o discurso médico, interessado no controle da sexualidade que passa a ser tratada também como caso de higiene e saúde, envolvendo a idéia de risco e doença. A partir do final do século XIX às primeiras décadas do século XX, no terceiro momento, “a relação da medicina com a sexualidade torna-se cada vez mais intensa, culminando com o nascimento da sexologia enquanto campo oficial do saber médico” (p.18). Este período também inaugura uma série de publicações médicas, com livros sobre orientação sexual. Além dos médicos, professores e sacerdotes publicaram trabalhos sobre orientação sexual, fundamentados cientificamente. Este terceiro momento vai até o final da década de 50. O quarto momento da educação sexual no Brasil é marcado por intensas mudanças culturais, políticas e sociais na sociedade brasileira, quando da chegada dos anos sessenta, com a difusão da pílula anticoncepcional, pivô da reviravolta conhecida como revolução sexual. Ribeiro assim sintetiza as conquistas deste momento: “implantação de programas de orientação sexual em várias escolas, sendo o período bastante favorável a esta ação educacional.” (p.19) No entanto, com o advento da ditadura militar houve um recrudescimento da repressão e a recusa da proposta da introdução da obrigatoriedade da educação sexual nas escolas do país, sendo somente a partir de 1978 que as propostas de educação sexual retornam às escolas, com a abertura política do presidente Ernesto Geisel. O quinto momento da educação sexual no Brasil é localizado entre 1980 a 2000, quando da implantação de políticas públicas que assumem a responsabilidade por projetos de educação sexual nas escolas pela mediação das secretarias de educação tanto municipais quanto estaduais.

O sexto momento da educação sexual no Brasil é iniciado a partir de 1996 até os dias atuais, período cujo marco inaugural é a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases Darcy Ribeiro e o estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais como linhas a serem seguidas em todo o país, no qual encontramos a inclusão oficial da Orientação Sexual no currículo escolar. Ao avaliarmos os temas e as abordagens da educação sexual nas escolas, a partir dos anos oitenta conforme a descrição apresentada por Ribeiro (2004) verificamos que a preocupação com a saúde e o risco de contração de doenças sexualmente transmissíveis (DST/AIDS) é a tônica. A sexualidade aparece vinculada a projetos de saúde e educação, nos quais é abordada no contexto do crescimento e desenvolvimento humanos, com ênfase na ação preventiva ao abuso de drogas e à gravidez na adolescência. No estudo de Ribeiro (2009) o qual aborda como o sexo e a sexualidade são incorporados nas ciências e institucionalizados, notamos que a despeito da existência da diversidade de abordagens da sexualidade no âmbito das ciências humanas (antropologia, sociologia, história, psicologia e psicanálise) e médicas (medicina, biologia, química), o saber médico mantém-se hegemônico no contexto da institucionalização dos saberes sobre a sexualidade no Brasil. Era uma medicina preocupada em definir, identificar, classificar e tratar os desvios sexuais, os quais acreditava-se, tinha sua origem nas práticas sexuais consideradas fora da norma. Segundo (Ribeiro, 2009, p. 132) “a medicina do século XIX institucionalizou o saber sexual, criando a sexologia”.

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2. O debate em torno da Educação Sexual nas escolas Sem pretendermos ser exaustivos na consideração dos tópicos mais debatidos no campo da sexualidade na educação escolar, elegemos alguns autores que tratam das principais dificuldades encontradas pelos educadores. Apresentamos sinteticamente algumas idéias que possam nos servir como alguns pontos para debate, para que possamos inserir o saber psicanalítico como interlocutor privilegiado na busca de fecundar as reflexões sobre a sexualidade na escola. Iniciamos pela apresentação da tipologia da educação sexual escolar proposta por Nunes e Silva (2000) no intuito de visualizarmos as diferentes abordagens da sexualidade. Percebemos que embora obedeçam a uma ordem de aparecimento no tempo, acabam por compor um conjunto heterogêneo de ênfases teóricas e metodológicas que convivem lado a lado, gerando polêmicas. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.97-114, 2013

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Assim, embora as raízes históricas de nossa cultura da sexualidade remonte ao Brasil colonial, as abordagens são constituídas e vão tomando forma somente a partir dos anos sessenta. Destacam-se, de acordo com Nunes e Silva: - uma educação sexual normativa e parenética, que nasce nos anos sessenta e é conduzida por pais pioneiros na educação sexual de seus filhos. Fundamenta-se no aconselhamento religioso e origina-se nos núcleos mais conservadores da sociedade brasileira. - uma educação médico-biologista, que toma corpo ainda nos anos sessenta, mas avança pela década de setenta, inspirada nas funções procriativas, centrado na descrição do aparelho reprodutor e das funções procriativas, a partir de uma abordagem higienista e médico-profilática. Por vezes combina-se com a abordagem normativa e parenética constituindo “uma simbiose conservadora, descritiva, formalista e receituária” (p.14) - uma educação sexual terapêutico-descompressiva, que pode ser identificada a partir dos anos oitenta, influenciada pela televisão e pelos discursos libertários. Apresenta-se sob a forma de consultas terapêuticas veiculadas pela mídia televisiva e mídia impressa, nas quais as consultas sexuais passam a ser a mediação da descompressão da fala. Agregam-se a este modelo a defesa dos direitos dos homossexuais, críticas ao casamento tradicional e denúncias de violência contra a mulher. (Nunes e Silva, p.16) - uma educação consumista – quantitativa. Neste modelo, a sexualidade é concebida como objeto de consumo, como prática compulsiva de catarse pessoal e coletiva: “predominante na mídia, nas filmografias pornôs, na coreografia do sex-appeal, na indústria do entretenimento e na mercantilização do corpo e da sensualidade estereotipada.” (p.16-17). Esta modalidade aparece disseminada nas instituições sociais, sob a forma de representações padronizadas da estética contemporânea sobre a identidade do homem e da mulher. Assenta-se na década de noventa, cujo espaço privilegiado é a mídia e sua expressão a cultura de massa ou indústria cultural. Para Nunes e Silva (2000) este modelo requer do educador capacidade crítica para detectar as expressões da sexualidade como objeto de consumo, no sentido de propor reflexões que se oponham a ele. - uma educação sexual emancipatória, que na avaliação de Nunes e Silva constitui o contraponto aos demais modelos referidos anteriormente. Trata-se de uma utopia ético-política cuja ênfase é dada no sentido do que é a emancipação: “A emancipação pode ser entendida como a formação para a compreensão plena, integral, histórica, ética, estética e psicossocialmente significativa e consciente das

potencialidades sexuais humanas e sua vivência subjetiva e socialmente responsável e realizadora”. (NUNES; SILVA, p.17) Para a consecução da proposta de uma educação sexual emancipadora, os autores ressaltam a necessária participação da escola e da família, que seriam co-responsáveis por construírem um conjunto de saberes voltados para a emancipação humana em plenitude. Sob este pano de fundo tecido por diferentes discursos, os educadores encontram-se diante de grandes desafios em seus projetos de educação sexual escolar. Como podemos perceber, são as transformações e as demandas sociais, as responsáveis pelas mudanças nos paradigmas da educação e no trabalho de educação sexual. Foram muitas as propostas apresentadas nas escolas, como forma de integrar seus currículos, de acordo com o período histórico, porém é diante da urgência de uma demanda social, com um crescente número de adolescentes grávidas, com a expansão do vírus da AIDS, que a sociedade, os pais e educadores percebem e passam a reivindicar a implantação de programas de educação sexual nas escolas para crianças e adolescentes. Dessa forma, a educação sexual passa a ser oficialmente integrada no currículo escolar por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental em 1995. Segundo Pereira (2006, p.56) nos PCNs, consta que a orientação sexual na escola deve ser trabalhada como tema transversal, ou seja, a concepção, os objetivos e os conteúdos propostos podem ser trabalhados pelas diversas áreas do conhecimento, em qualquer ciclo, variando apenas o grau de profundidade e abrangência. Os objetivos propostos para a orientação sexual são: respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes relativos à sexualidade; compreender a busca de prazer como uma dimensão saudável da sexualidade humana; conhecer o corpo, valorizar e cuidar da saúde como condição necessária para usufruir do prazer sexual; conhecer e adotar práticas de sexo protegido para evitar o contágio das DSTs e da AIDS, entre outros objetivos (BRASIL, 2001). Os PCNs passam a sugerir questões para o trabalho de orientação que sempre foram dificultadas em função do entrecruzamento dos diferentes discursos na escola, sobre a sexualidade (ora de cunho religioso e moralizador, ora libertário) como o prazer, valores e crenças, ampliando os saberes e as informações sobre a sexualidade humana. Porém, nos perguntamos como estas questões vêm sendo trabalhadas pelos educadores? A forma como vem sendo trabalhadas tem atingido os objetivos propostos e as demandas sociais de forma geral e dos alunos em particular?

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Observamos que há um abismo entre o que propõe os PCNs, a formação dos professores para trabalhar com essa temática e conseqüentemente na forma como a orientação sexual vem ocorrendo nas escolas. De fato, conforme observa Nunes e Silva (2000), embora a proposta dos PCNs abarque o modelo emancipatório de educação sexual, sua implementação na realidade escolar esbarra na insuficiência de suporte teórico do professor para trabalhar a complexidade de fatores envolvidos na abordagem da sexualidade nas escolas. Ao se referirem ao trabalho proposto pelos PCNs Nunes e Silva (2000) salientam que

da formação continuada dos professores como forma de superação dos impasses cotidianos no trabalho com a sexualidade na escola. Diante do breve histórico sobre a educação sexual apresentado, percebemos que o trabalho com a sexualidade no espaço escolar assenta-se em terreno tortuoso, permeado por concepções médicas, religiosas, políticas, morais e pedagógicas. As dificuldades encontradas no percurso da educação sexual escolarizada conforme nos informa a literatura por nós consultada, nos fazem pensar que os educadores, ao esforçarem-se por conciliar saberes contrastante e diante do desafio de conciliar valores, informações e sentimentos envolvidos, de certa forma acabam por preconizar que a sexualidade deva receber um tratamento neutro, científico e se possível, purificado. A saída encontrada pelos educadores acaba sendo a de que a sexualidade não seja apresentada como exercício do prazer e do erotismo, pois se assim o fizessem, estariam ferindo o ideal da criança inocente ou passando seus próprios valores e crenças no lugar dos conhecimentos científicos. A recorrência desta cultura da inocência da criança (Bacha, 2003) nos alerta para refletirmos sobre o lugar da escola como instituição que surge na modernidade justamente para retirar a criança do mundo dos adultos e da sexualidade destes7. Como concretizar a implantação da orientação sexual preconizada nos PCNs em um espaço institucional como a escola, lugar estratégico de proteção da inocência da criança e de neutralização sexual? Como conciliar a realidade da sexualidade no cotidiano de crianças e adolescentes, com suas angústias, dúvidas e prazeres com a presença maciça de campanhas de prevenção que freqüentemente estão mais preocupadas em apresentar os perigos do exercício da sexualidade sob o comando das estratégias de prevenção à gravidez na adolescência e das doenças sexualmente transmissíveis? Neste cenário, o prazer do exercício da sexualidade não nos parece encontrar espaço algum para ser trabalhado. As palavras de Maia (2004) ilustram o terreno movediço no qual encontramos a educação sexual escolarizada:

Entendemos que a realidade atual, a forma com que se organizou a proposta dos parâmetros sem a estruturação popularizada e acessível para a formação teórico-prática de professores para este trabalho, aponta para um êxito duvidoso, por melhor que seja a intenção dos envolvidos neste processo escolar. (NUNES; SILVA, p.68).

Algumas das dificuldades encontradas no trabalho cotidiano dos professores com a temática da sexualidade vêm sendo documentadas em artigos como os de Ribeiro (2004; 2009), Maia (2004), Figueiró (2009a; 2009b), Maistro (2009) e Oliveira (2009). Dentre as dificuldades apresentadas, destacam-se a insegurança e despreparo do professor para lidar com a sexualidade, uma vez que todos carregam o histórico de suas próprias dificuldades quanto à sexualidade (FIGUEIRÓ 2009a; 2009b); os impasses do esforço de conciliar a linguagem clara, objetiva e científica necessária ao trabalho educativo com os termos populares que são utilizados nos apelidos ligados aos órgãos sexuais e demais atividades sexuais (FIGUEIRÓ, 2009a); os desafios de unir a informação com o trabalho sobre sentimentos, atitudes e a formação de valores morais (OLIVEIRA 2009; FIGUEIRÓ 2009b); a insuficiência do modelo médico-biológico para abordar a sexualidade em sua amplitude (MAISTRO 2009; FIGUEIRÓ 2009a; 2009b);os limites do trabalho com a informação quando desvinculada da realidade das crianças e jovens, no tocante a seus preconceitos, valores, costumes e crenças (MAIA, 2004; MAISTRO 2009; FIGUEIRÓ 2009a; 2009b); a busca por uma metodologia mais adequada para o trabalho com a sexualidade na escola (MAIA, 2004; FIGUEIRÓ 2009a; 2009b; MAISTRO 2009); os desafios da colocação de limites quando das manifestações da sexualidade (FIGUEIRÓ, 2009a, 2009b), a descontinuidade das políticas públicas que interrompem projetos de orientação sexual em andamento (RIBEIRO, 2004; MAIA, 2004), dentre outras. Em linhas gerais, podemos afirmar que toda a literatura consultada atesta a importância 104

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A despeito dos parâmetros curriculares, que reconhecidamente têm propostas educativas e reflexivas, e a despeito das possíveis críticas sobre a efetividade dessas ações éticas no trabalho diário do professor com seus alunos, percebemos que ainda prevalecem na chamada ‘orientação sexual’, ações cujo fundamento é a intenção de ressaltar os malefícios da prática sexual: a gravidez indesejada e o contágio pelo vírus HIV, da Aids. A prevenção de doenças, realizada através de propostas educativas, ressaltando as conseqüências do sexo irresponsável, é de suma importância, mas esta prevenção deveria ser um dos aspectos de uma discussão mais ampla sobre a sexualidade, de 7

Para maiores informações sobre a ruptura entre o mundo adulto e o mundo reservado à criança, ver em Áries, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1981.

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modo que as atitudes de responsabilidade se resultassem de uma formação emancipadora e crítica. O que lamentamos é que tomados por esta demanda da prevenção à doenças e à gravidez, as propostas de orientação sexual nas escolas reproduzam a noção restrita de sexualidade genitalizada, o que a reduz de modo inevitável. (MAIA, 2004, p.166).

3. A contribuição da Psicanálise ao debate sobre a sexualidade na escola 3.1. A sexualidade, desde Freud Com o advento da psicanálise no final do século XIX, Freud revoluciona os conhecimentos sobre a sexualidade humana. Segundo Silva, (2006, p.23), “na obra Freud, a sexualidade é essência dos processos do psiquismo humano. É combustível para o seu desenvolvimento e evolução, adquirindo amplitude muito além do limitado entendimento de genitalidade”. O Vocabulário de psicanálise de (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p.619), nos mostra que na experiência e nas teorias Psicanalíticas o termo “sexualidade”: Não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc), e que se encontram a título de componentes na chamada forma normal de amor sexual.

Como podemos perceber, a Psicanálise propõe o uso do sentido ampliado do conceito de sexualidade, que ultrapassa sua dimensão puramente biológica, mas articula-se com a constituição do psiquismo humano, estando presente em todas as realizações humanas. Laplanche (1997) percorre na obra de Freud a constituição e os sentidos da sexualidade. Este autor salienta que a sexualidade encontra-se enxertada no biológico, pois no início da vida há um organismo que é montagem biológica, mas também sentido, pois os cuidados corporais, inseparáveis dos significantes gestuais, mímicos e sonoros, vão transportando sentidos e inaugurando o plano da fantasia e do erótico. Encontramos aqui o recorte do corpo erotizado sobre o soma. Este entrelaçamento entre o somático e o fantasístico que coloca o outro na constituição do ser humano sexual, possui muitas conseqüências. Uma delas é a distinção, no ser humano, entre instinto e pulsão. Para Laplanche, os dois termos 106

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coexistem em Freud, sendo a distinção entre eles muito significativa.A expressão “instintivamente”, possui a conotação de reação quase automática, de reação finalizada e pré-formada, dada como herança. O instinto é caracterizado por três elementos: adaptação, esquema fixo e hereditariedade. O termo pulsão já aparece nos três ensaios para uma teoria da sexualidade infantil, em 1905, como trieb, impulso que procura mais a satisfação do que um fim pré-estabelecido. Nas palavras de Freud: Por pulsão deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação em contraste com um ‘estímulo’, que é estabelecido por excitações simples vindas de fora. O conceito de pulsão é um dos que se situam entre o psíquico e o físico. (...) em si, uma pulsão não tem qualidade, e no que concerne à vida psíquica deve ser considerada apenas como uma medida da exigência de trabalho feita à mente. (FREUD, 1977a, p.171).

Quando procura definir o conceito de pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático, Freud funda a Psicanálise como um saber não redutível à biologia e à psicologia. O corpo psicanalítico é de ordem sexual e pulsional, constituindo-se em ruptura com o organismo biológico, sendo atravessado pela alteridade; trata-se de um corpo-sujeito, um corpo habitado por uma subjetividade. Acompanhando Freud e Laplanche é possível construirmos a imagem de sexualidade ampliada a qual nos referimos. A sexualidade nasce em um corpo pulsional, ou seja, em um corpo no qual o somático e o psíquico encontram-se entrelaçados desde o início da vida. Os lugares do corpo, os locais de cuidados vão configurando zonas erógenas, locais de implantação da atividade de fantasia, do próprio inconsciente. Há, assim, uma coincidência do inconsciente e da sexualidade na própria obra de Freud. A experiência de satisfação da necessidade alimentar deixa um traço mnêmico, que faz a pulsão tender à repetição destas primeiras experiências. Temos aqui, a idéia de um inconsciente atávico, presente neste início, anterior à consciência, quando do nascimento da própria sexualidade. Bacha (2003) assim descreve o momento em que nasce a sexualidade: A satisfação sexual está, primeiro, ligada à absorção dos alimentos. Então a pulsão encontra seu objeto fora, na sucção do seio materno. Depois esse objeto é perdido. A pulsão sexual torna-se, a partir de então auto-erótica. (...) O objeto foi substituído por uma fantasia. É nesse momento que há o aparecimento efetivo da sexualidade. (BACHA, 2003, p.155).

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3.2. Sexualidade e Educação Uma conseqüência muito importante depreendida do estudo da gênese da sexualidade empreendida por Freud é a descoberta da sexualidade infantil. No artigo Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Freud escreve que: Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só desperta no período da vida designado da puberdade. Mas esse não É apenas um erro qualquer, e sim um equívoco de graves conseqüências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual. Um estudo aprofundado das manifestações sexuais da infância provavelmente nos revelaria os traços essenciais da pulsão sexual, desvendaria sua evolução e nos permitiria ver como se compõe a partir de diversas fontes. (FREUD, 1977b, p.177).

Com a descoberta da sexualidade infantil Freud apud Bacha (2003) compreende a oposição existente entre as pulsões de autoconservação (pulsões do eu) e as pulsões sexuais, como sendo um conflito intrapsíquico, em que a sexualidade precisa ser recalcada em nome das exigências da civilização e em prol às vantagens oferecidas pela mesma. Nesta primeira teorização sobre a sexualidade, esta é considerada em oposição à tarefa de educar, conforme constatamos em Freud: Vamos tornar claro para nós mesmos o que é a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de por em prática todos os seus impulsos sem restrição. Fazê-lo seria muito instrutivo para os psicólogos de crianças; mas a vida seria impossível para os pais, para as próprias crianças sofreriam grave prejuízo, que se exteriorizaria, em parte, imediatamente, em parte, nos anos subseqüentes. Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isso ela procurou fazer em todos os períodos da história.(...) A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de danos. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios. (FREUD, 1977, p.182 v. XXII).

Neste ponto de nossa apresentação da sexualidade para a Psicanálise, nos encontramos diante de um paradoxo. Se por um lado a sexualidade é constitutiva do psiquismo humano, para que o ser humano seja educado é preciso contê-lo em seu próprio âmago, ou seja, conter sua constituição de ser desejante e sexuado. Como o excesso de repressão envolve o risco da neurose, a tarefa do educador seria a de dosar as proibições. Para Bacha (2003) a definição de educação como repressão da vida pulsional visando à adaptação da criança à vida social e cultural pressupõe um antagonismo 108

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essencial entre indivíduo e sociedade. Em sua opinião esta posição precisa ser revista, uma vez que implica, de um lado as pulsões e de outro, a sociedade. Bacha fundamenta-se em Laplanche (1988; 1992 apud BACHA, 2003) e Mijolla-Mellor (1992 apud BACHA 2003) para escapar aos antagonismos absolutos entre pulsões e cultura, aspecto que a seu ver dificulta o estabelecimento de laços entre a Psicanálise e a Educação. De acordo com Bacha (2003, p.152), “graças à sexualidade, o ser humano tem suas chances de sobreviver ao desamparo biológico. Porque a autoconservação no homem (sua capacidade autônoma de perseverar no ser, o que se pode chamar suas potencialidades instintivas) é tão precária que a sexualidade é que vem incessantemente supri-la.”Assim, o plano da autoconservação apóia-se inteiramente na sexualidade. Sem a presença do corpo do outro que ampara o recém-nascido, recobrindo de erotismo seu aparato orgânico, não há sobrevivência possível. Verificamos, pela contribuição de Laplanche tal qual nos é apresentada por Bacha (2003), que tudo o que nos mantém como ser humano e social encontra-se revestido e sustentado pela sexualidade. A sexualidade é implantada por meio do outro (seu inconsciente, sua sexualidade, suas fantasias) pela sedução, processo que permite que algumas significações do mundo adulto sejam introduzidas no universo da criança: “coube a Laplanche demonstrar que sedução não é um estupro, mas introdução do desejo na psique, através da ação do inconsciente dos pais sobre o psiquismo infantil.” (BACHA, 2003, p.188). Tendo em vista o que foi posto, não há oposição entre sexualidade e autoconservação. A sexualidade não se apresenta como algo que ameaça a sobrevivência do indivíduo e mesmo do grupo, mas justamente aquilo que fomenta a vida. Neste sentido, não haveria um antagonismo entre as pulsões sexuais e a vida social, mas um entrelaçamento destes. Outro conceito que envolve o antagonismo entre sexualidade e a vida social e cultural é o conceito de sublimação, entendido como a substituição de objetivos sexuais por alvos não sexuais, isto é, por objetos socialmente valorizados (como as atividades artísticas e culturais) de acordo com Laplanche (1988, p.638). A sublimação acarreta em seu bojo a idéia de que a cultura deve retirar suas energias da sexualidade. Neste contexto, haveria o entendimento de que as atividades intelectuais de pensamento estariam condicionadas à abstinência sexual, posto que o exercício da sexualidade subtrairia energia ao trabalho intelectual. Mijolla – Mellor (1992) apud Bacha (2003) dedica-se a uma redefinição do conceito de sublimação trazido por Freud. A autora entende que a abstinência sexual Doxa, v.17, n.1 e 2, p.97-114, 2013

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seria a retirada do afeto e, para ela, a sublimação não é um processo separado do afeto e do sexual. Diz Mijolla- Mellor:

Diante do que foi posto, estamos agora em condições de avançar em nossas reflexões sobre as possíveis contribuições da psicanálise para a temática da educação sexual escolar. Retomamos algumas das dificuldades apontadas pelos educadores no esforço de implantação de projetos de educação sexual, elencando sinteticamente alguns dos aspectos mais enfatizados: a) As dificuldades com o uso das informações científicas, quando desvinculadas da realidade das crianças e jovens; o desafio de integrar a informação com uma reflexão sobre sentimentos, atitudes, crenças e valores

morais; b) O despreparo do professor e o necessário investimento em políticas de formação que o prepare teórica e metodologicamente para enfrentar suas próprias inseguranças ao lidar com a educação sexual; c) A busca por estratégias metodológicas que envolvam o diálogo entre alunos e professores no tocante ao trabalho com o tema da sexualidade; d) O desafio da colocação de limites às manifestações da sexualidade no contexto escolar. A fecundidade da psicanálise para as reflexões sobre a educação sexual encontra-se justamente na consideração da presença do inconsciente em todas as manifestações humanas, aspecto que possui profundas implicações para a educação em geral, e em especial, para a educação sexual. A consideração do inconsciente nos remete ao plano simbólico no ser humano, à realidade psíquica, um modo de funcionamento no qual o sim e o não podem conviver lado a lado, e onde, portanto, a ambigüidade é a tônica, assim como a expressão dos desejos e fantasias. Incluir a presença do inconsciente nos desafios que os educadores encontram em sua tarefa cotidiana de educar é conceber a fantasia como uma forma de apreensão da realidade, que esta somente começa a existir para o sujeito pela experiência que seu desejo faz dela, e não simplesmente como uma informação. A presença do inconsciente dirige nosso olhar para a realidade desejante de cada um, a sua realidade psíquica e não apenas para a realidade externa. Isto não significa abrir mão dos aspectos concretos do cotidiano escolar, da organização do trabalho pedagógico e do planejamento das atividades, mas entender que conhecimento, verdade, desejo e fantasia encontram-se unidos nos sujeitos humanos, havendo uma íntima articulação entre o intelectual e o afetivo na construção dos sentidos e significados sobre o mundo, exigindo dos educadores uma construção compartilhada no plano do ensino e da aprendizagem e não uma mera aplicação metodológica de conhecimentos. Para as ciências médicas, principais informadoras da educação sexual, só há uma realidade a considerar, que é a realidade física, orgânica e natural. Nesta, a sexualidade limita-se aos seus aspectos orgânicos, regidos pelas leis da evolução e da maturação biológica e limitada ao âmbito genital. Os limites desta abordagem vêm sendo apontados, mas acreditamos que tais limitações apenas podem ser superadas pela consideração da sexualidade inconsciente, cuja inclusão permite, de fato o intercâmbio entre informação, sentimentos e angústias dos estudantes. O que queremos do professor, é que este atue sempre como um cientista, que repasse as informações com objetividade, de modo impessoal e que utilize

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Enquanto a sublimação é abertura a uma circulação recíproca entre pensamento, afeto e pulsões sexuais, a inibição de pensamento, ao contrário, gela e imobiliza essa possibilidade de troca, e obriga o pensamento, os afetos e as pulsões sexuais a um funcionamento autárcico, patógeno e empobrecedor (MIJOLLA  – M., apud BACHA, 2003, p. 144).

Ao invés de roubar a energia do corpo e de se realizar às custas do sexual, o pensamento que se atinge por meio da sublimação lhe traz energia. O trabalho intelectual seria uma fonte de energia psíquica indireta. Para Mijolla – Mellor, a sublimação não é condicionada por uma dessexualização, mas pela capacidade da pulsão agressiva de deixar sobreviver seu objeto. A sublimação é entendida por esta autora como agressividade transformada, como transformação da pulsão agressiva em curiosidade exploradora e conquistadora. A combinação do erótico com o agressivo na conquista do conhecimento evidencia mais uma vez o entrelaçamento entre pulsões e atividades culturais. Assim, o processo de aquisição de conhecimentos oportunizado pela escola nos mostra o contexto erótico-pulsional em que é erigida a aculturação do ser humano. Não há criança pura; não é possível a escola configurar-se como local de exclusão da sexualidade da criança ou de uma educação assexuada. Não há oposição entre sexualidade e educação. Neste cenário psicanalítico os personagens seguem outro roteiro que o meramente adaptativo. Aqui a criança não é pura, o professor não é tão objetivo quanto deseja com sua identificação ao método pedagógico, a escola retira a criança do mundo adulto e a atividade intelectual não é necessariamente asséptica. (BACHA, 2003, p. 241-242)

3.3. Por uma Educação Sexual fecundada pela Psicanálise

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Algumas contribuições da psicanálise para a educação sexual na escola

estratégias metodológicas adequadas, mantendo excluída a sua realidade psíquica. O despreparo do professor e a sua insegurança não seriam sinais desta exclusão? As políticas de formação continuada para professores que lidam com a educação sexual devem prepará-los apenas teórica e metodologicamente? A ênfase apenas no preparo teórico e técnico dos (em detrimento de uma formação que contemple os afetos, sentimentos e a própria história subjetiva dos docentes) resolveria o despreparo e insegurança dos professores? A fecundidade da contribuição da psicanálise encontra-se em denunciar os dispositivos de uma educação assexuada, que limita o educar, o ensinar e o aprender ao terreno asséptico das informações e estratégias metodológicas. Acreditamos que “todos os processos (afetivos e intelectuais), todo sentimento de amor ou de ódio intenso e todo trabalho de pensamento ressoam sobre o corpo e a sexualidade. Não há trabalho de pensamento que possa se desenvolver sem afetos.” (BACHA, 2003, p.165).

suas questões inconscientes e a maneira como lida com elas. No outro lado está o professor com suas próprias questões acerca da sua própria sexualidade. Entre os dois há vínculos afetivos, há corpos habitados por subjetividades que demandam acolhimento. A psicanálise não oferece receitas para conciliar os desencontros desta relação educativa, mas possibilita a introdução de uma sensibilidade que facilita a livre circulação entre pensamentos, informações, afetos, valores e crenças.

BACHA, M.S.N. Psicanálise e Educação- laços refeitos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. BRASIL.MEC/SEF.Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros CurricularesNacionais: pluralidade cultural/orientação sexual. Brasília, 1998. FIGUEIRÓ, M.N.D. A Educação sexual presente nos relacionamentos cotidianos. In: FIGUEIRÓ, M.N.D.(org). Educação sexual: em busca de mudanças. Londrina: UEL, 2009a.p.63-103

Considerações finais Constatamos que a sexualidade inconsciente encontra-se pouco presente na discussão sobre a educação sexual na literatura pesquisada, descoberta que confirma a pesquisa de Pereira (2006), a qual nos mostra que o inconsciente tem sido pouco explorado na produção científica sobre a Aids e a educação escolar. Em todos os trabalhos analisados, percebemos uma leitura do ser humano como ser histórico, social e cultural, olhar que nos permite ver a sexualidade como uma construção histórica, cujos sentidos e significados vão sendo tecidos pelos sujeitos sociais ao longo da história. Esta perspectiva é fundamental, pois nos ajuda a desnaturalizar a sexualidade, fazendo-a ser concebida a partir de uma realidade que é humana, e, portanto, não restrita aos aspectos biológicos, maturacionais e evolutivos, à despeito da presença hegemônica da sexologia na história da educação sexual brasileira. No entanto, a desconsideração da sexualidade inconsciente no debate sobre a educação sexual limita as potencialidades de uma educação sexual emancipadora e que atenda às demandas e dificuldades dos educadores, uma vez que não inclui o plano simbólico e inconsciente que constituem componentes essenciais da subjetividade humana. Quando um aluno seja ele, criança ou adolescente encaminha ao professor um questionamento acerca da sua curiosidade sexual, ele também está trazendo 112

Referências

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Danielle Regina do Amaral Cardoso, Fernando Crespolini dos Santos, Luzia Helena das Neves Teixeira, Maria de Fátima Pessoa de Assis e Sandra Fernandes de Freitas

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PERCEPÇÃO DE DOCENTES E DA ESCOLA SOBRE A POSIÇÃO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA NA HIERARQUIA DAS DISCIPLINAS – UM ESTUDO DE CASO EM DUAS ESCOLAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

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Ana Luisa Pereira Marçal Ribeiro1 Bruna Raspantini Pellegrino2 Luiza Sassi Affonso Ferreira3 Laura de Bona4

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RESUMO

ABSTRACT

A preocupação com a importância das disciplinas de História e Geografia na formação do aluno leva ao questionamento da posição das mesmas numa hierarquia das disciplinas nas escolas públicas brasileiras. Tal hierarquia relaciona-se diretamente com a seleção dos conteúdos escolares, o que aponta para a ideia de que não há uma neutralidade na escolha do que é valorizado na escola. O presente trabalho então se propôs a analisar essa hierarquia de disciplinas a partir de documentos publicados pelo estado de São Paulo e pelos municípios de Campinas e São Paulo, assim como do estudo de caso de duas escolas públicas de EJA, uma municipal em Campinas e uma estadual em São

The concern with the importance of the subjects of history and geography the formation of the student raises the question of their position in a hierarchy of subjects in Brazilian public schools. This hierarchy is directly related to the selection of school subjects, pointing to the idea that there is no neutrality in the choice of what is valued in school. This paper proposes to examine this hierarchy of disciplines from documents published by the State of São Paulo and the municipalities of Campinas and São Paulo, as well as case study of two public schools adult education in Campinas and in São Paulo, by analyzing the timetable and Pedagogical Plan of them and interviews with

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Licenciada e Mestre em Geografia pela UNICAMP. Instituto de Geociências. E-mail: ana.lpmr@gmail. com

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Licenciada em Geografia pela UNICAMP. Instituto de Geociências.

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Licenciada em Ciências Sociais pela UNICAMP e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela USP.

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Licenciada em Geografia pela UNICAMP. Instituto de Geociências.

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Ana Luisa Pereira Marçal Ribeiro, Bruna Raspantini Pellegrino, Luiza Sassi Affonso Ferreira e Laura De Bona

Paulo, por meio de análise da grade horária e Plano Pedagógico das mesmas e da realização de entrevistas com docentes e membros da equipe gestora das escolas.

teachers and members of the management staff of the schools.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Hierarquia de disciplinas, EJA, História, Geografia.

Hierarchy of subjects, adult education, History, Geography.

1. Introdução O presente trabalho foi norteado pela ideia de que não existe neutralidade na escolha do que é ensinado na escola. Mais precisamente, nos propusemos a pensar a hierarquia das disciplinas no ambiente escolar, com foco em História e Geografia, questionando-nos sobre uma questão recorrente entre os profissionais envolvidos no campo das ciências humanas, de que estas são desvalorizadas em relação a outros campos científicos. A preocupação com o tema está relacionada diretamente com a seleção dos conteúdos escolares e com a formação dela decorrente. Como aponta Bourdieu (2000), os diversos campos do saber engendram disputas de poder dentro do discurso científico. Também dentro de cada campo, os objetos “nobres” e dignos de estudo, mostram um jogo de valorização e de destaque e, ao mesmo tempo, de ofuscamento de certos assuntos. É através da determinação de objetos legítimos ou legitimáveis que é imposta a censura específica de um campo. Transcrevendo essa relação de poder para a estrutura educacional do ensino básico no Brasil, podemos identificar uma hierarquização nítida das matérias escolares. O saber valorizado na escola acaba por selecionar o que é valido e excluir outras formas de conhecimento, fato que ocorre não somente na seleção do conteúdo de cada campo, mas também no destaque de alguns campos específicos: o processo de construção do conhecimento escolar sofre, inegavelmente, efeitos de relações de poder. Recorramos ao que por vezes ocorre nos Conselhos de Classe: a “hierarquia” que se encontra no currículo faz com que se valorizem diferentemente os conhecimentos escolares e “justifica” a prioridade concedida à Matemática em detrimento da Língua Estrangeira ou da Geografia. Nessa hierarquia, se supervalorizam as chamadas disciplinas científicas, secundarizando-se os saberes referentes às artes e ao corpo [...] (CANDAL e MOREIRA, 2007, p. 8).

A partir dessa constatação, foi proposto um levantamento que possibilitasse a identificação da visão de alguns agentes da escola em relação ao ensino de História 116

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e Geografia. Tendo como base alguns movimentos de desvalorização desses campos no ensino escolar, como por exemplo, a recente proposta de eliminação dessas nos primeiros anos de algumas escolas estaduais; a utilização apenas do ensino de matemática e de português para avaliações de desempenho da escola e; ainda, sua reduzida carga horária em relação às mesmas, matemática e português, objetivou-se observar a percepção dos profissionais que lidam diariamente com tal hierarquização. Qual a visão dos professores, coordenadores e diretores, pessoas atuantes cotidianamente no ambiente escolar, em relação às contribuições dessa área de conhecimento? Esses agentes – no exercício de sua profissão – reproduzem tal hierarquização? São eles conscientes desse processo? Foi levantada a hipótese de que há uma importante relação entre essa diferenciação das matérias do ensino fundamental e o poder público. Pois, se é através das secretarias de educação, dos governos municipais, estaduais e federal que se decide as diretrizes de ensino, é a partir dessas instâncias, “de cima para baixo”, que se define tal hierarquia. Com essa afirmação, não se desconsidera o papel da sociedade como um todo para o estabelecimento, para a legitimação dessa desvalorização das matérias em questão, mas é, em última instância, a partir de decisões oficiais que essa se concretiza. Como demonstra Martins (2000), há um histórico de luta, no Brasil, para a manutenção da qualidade do ensino de História. Uma periodização, desde o regime militar, demonstra constantes tentativas de precarização, através de reduções de sua carga horária nas escolas, da extinção da licenciatura específica nas faculdades particulares, substituída pelos Estudos Sociais. Destaca-se que as dificuldades do período ditatorial mantiveram-se, entretanto, na democracia: A atuação dos “dirigentes” da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo tem sido marcadamente tecnocrática e antidemocrática. O corte atual das aulas de História (e Geografia) aponta para uma desvalorização das Ciências Humanas no ensino fundamental e médio. Contra tudo o que se lutou nas décadas da ditadura militar, é doloroso ver que as autoridades educacionais do país, e, em particular, no Estado de São Paulo, apontam para uma reintrodução maquiada dos Estudos Sociais em nossas escolas, em detrimento de uma boa e qualificada formação para a cidadania. (MARTINS, 2000 p. 13).

Sendo assim, o presente trabalho buscou relacionar esses fatores a realidade existente em duas escolas públicas brasileiras de Ensino de Jovens e Adultos (EJA), nos municípios de Campinas e São Paulo.

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2. Materiais e métodos

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sionais em relação à hierarquia de disciplinas e como elas de fato são tratadas nas escolas estudadas.

A fim de organizar o trabalho, foi estabelecido um desenho metodológico para coordenar a pesquisa, considerando por um lado, a importância das prescrições estaduais e municipais para o ensino e para a organização curricular e, por outro, a possível reiteração dessas diretrizes estaduais por parte do corpo docente e administrativo das escolas. Além da bibliografia consultada, foi feita uma análise crítica dos documentos oficiais publicados pelo estado de São Paulo, pelo município de São Paulo e pelo município de Campinas. Como há diferenças no número e no ano de publicações, foi estabelecido que apenas as edições mais recentes seriam abordadas. Dessa maneira, foram utilizados Parâmetros Curriculares do Estado de São Paulo – Ensino Fundamental II (2011); Parâmetros Curriculares Municipais de São Paulo – Ensino Fundamental II (2007) e Ensino de Jovens e Adultos (2010); Parâmetros Curriculares Municipais de Campinas – Ensino Fundamental II (2012) e Ensino de Jovens e Adultos (2012) Para identificar a problemática da hierarquização de disciplinas, foram escolhidas duas escolas públicas como estudo de caso, sendo a primeira uma Escola Estadual (Ensino de Jovens e Adultos – todos os ciclos) localizada no município de São Paulo e a segunda uma Escola Municipal (Ensino de Jovens e Adultos e Ensino Regular), localizada no município de Campinas. Nas visitas de campo foram observadas as grades horárias das turmas e os Planos Pedagógicos elaborados pelas escolas, assim como realizadas entrevistas com membros da equipe gestora e professores de diferentes disciplinas. As entrevistas foram semiestruturadas, e partiram das seguintes questões básicas:

3. Resultados e discussões 3.1. Análise documental Os Parâmetros Curriculares são documentos publicados nas diferentes instâncias governamentais – federal, estadual e municipal – para orientar o ensino público. É recorrente no discurso que esses parâmetros não são regras e não anulam a autonomia das escolas em organizar seus planos pedagógicos. Na realidade, não deixam de ser prescrições que balizam a atuação dos educadores. Por meio da leitura desses documentos, referentes ao ensino regular e ao ensino de jovens e adultos, busca-se identificar se as políticas referentes à educação pública no estado de São Paulo, mais especificamente nas cidades de São Paulo e Campinas, estabelecem uma hierarquização entre disciplinas. Para complementar a análise das prescrições feitas para o EJA dessas cidades, foi feita uma comparação com a abordagem dos documentos do ensino regular.

3.1.1. Parâmetros curriculares do Ensino Fundamental II – Ensino regular

Sendo assim, partindo de aspectos comuns nos resultados obtidos, foi feita uma avaliação da carga horária das disciplinas nas escolas, e estabelecido uma conclusão quanto a postura da escola em relação às disciplinas de História e Geografia. Com essas informações, foi traçada uma conclusão a respeito da percepção dos profis-

O currículo apresentado pelo estado de São Paulo em 2011 (baseado no documento publicado em 2008) se pauta na aprendizagem do aluno. O objetivo do currículo é formar indivíduos que possuam a capacidade de se posicionar criticamente em relação ao mundo e sejam capazes de aprender de forma autônoma. As “habilidades e competências”, conceito apresentado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – publicados em 1997 – dá uma nova abordagem metodológica, já que o documento defende que mais do que absorver conteúdos, os alunos precisam “aprender a aprender”, e com isso estipula o que se espera que o aluno seja capaz de fazer ao fim de cada ciclo. Partindo dessa premissa, observa-se que o documento coloca a competência da linguagem como mais importante (presente em todas as disciplinas), já que sem o domínio da leitura e da escrita não é possível se comunicar ou aprender. Isso reforça um aspecto pertinente do discurso apresentado, que destaca a importância da interdisciplinaridade, que é colocada como uma ferramenta pedagógica que reforça as habilidades e competências do aluno. A capacitação tecnológica dentro das especificidades de cada área do conhecimento também é consenso.

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Qual a importância da disciplina dada pelo professor entrevistado (no caso de professor)?



Qual a importância das disciplinas História e Geografia na formação do aluno?



Quais os conteúdos que o entrevistado acha importante aprender em História e Geografia?



A carga horária das disciplinas como um todo é adequada?

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Dividindo as disciplinas em áreas do conhecimento – ciências da natureza e suas tecnologias; linguagens, códigos e suas tecnologias; ciências humanas e suas tecnologias – o documento aborda as especificidades de cada área isoladamente. Analisando as seções referentes à História e Geografia, observa-se uma abordagem diferente em cada caso. No texto de História fica explícito a importância dada a disciplina pela sua ampla aplicação em todas as áreas do saber, apesar de ressaltar que os currículos escolares anteriores não reconheciam essa importância, ensinando uma História desinteressante e desprendida da realidade do aluno.

saber, pois a Geografia é colocada como instrumento para uma leitura diferenciada do mundo e da sociedade. A História é apresentada como indispensável na compreensão da sociedade nos diferentes períodos históricos, o que permite que o aluno se motive a questionar o mundo e refletir sobre sua participação nesse contexto. No município de Campinas o discurso apresentado nas diretrizes curriculares municipais, ao discutir o currículo e a importância da escola na sociedade, reforça a linguagem como ferramenta básica para o pensamento crítico e a valorização da cultura e do trabalho. No documento também se coloca o aprimoramento de competências e habilidades como estratégia de ensino. Contudo, apesar desse posicionamento socialmente consciente e dos princípios de cidadania que norteiam o currículo, as disciplinas de História e Geografia são colocadas de maneira superficial, juntamente das Ciências. Além disso, as disciplinas são colocadas como complementares, ou “interdisciplinares”, recebendo a função de tratar do conteúdo de outras disciplinas para complementar a visão de mundo do aluno.

[...] a História é necessária por ser uma das mais importantes expressões de humanidade, como a Música, por exemplo. E, conquanto a História e a Música pareçam conhecimentos sem utilidade, caso se considerem os valores estabelecidos na sociedade contemporânea – que hierarquiza as coisas em função de seus usos práticos ou técnicos –, basta imaginar um mundo em que elas não existam para perceber sua importância (SÃO PAULO, 2011, p. 28)

Já a seção referente à Geografia coloca como diversos temas devem ser abordados, reforçando determinados conceitos e abordagens da ciência, porém em nenhum momento coloca a disciplina como de fato relevante, mas como um conhecimento complementar às outras áreas do saber. Essa alteração de enfoque (de conteúdos curriculares) implica propostas educacionais que considerem a interação entre os conteúdos específicos da Geografia e os de outras ciências, possibilitando ao estudante, por intermédio da mediação realizada pelo professor, ampliar sua visão de mundo, por meio de um conhecimento autônomo, abrangente e responsável (SÃO PAULO, 2011, p. 76)

As orientações curriculares apresentadas para o município de São Paulo têm outra abordagem. O discurso é voltado para os educadores, como forma de orientação pedagógica. A interdisciplinaridade é apresentada como recurso fundamental, mas que não deve ser feito de maneira arbitrária, sobrepondo conteúdos sem um propósito coerente de aprendizagem. A importância da linguagem também é destacada, como ferramenta básica de comunicação e peça fundamental na aprendizagem, assim como a questão das habilidades e competências. As disciplinas são tratadas em volumes individuais, com uma introdução comum. Nos parâmetros curriculares do município de São Paulo fica clara a importância dada à disciplina de Geografia, enquanto a disciplina de História é colocada como disciplina complementar. O texto que aborda a “educação geográfica” critica a maneira superficial que a disciplina era tratada, e propõe uma valorização da área do 120

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Corsino (2007) ressalta a importância do trabalho pedagógico, nos ciclos I e II, em articular as Ciências, as noções Lógico-Matemáticas e as Linguagens a partir do estudo, comparação, investigação, reflexão crítica sobre grupos humanos e o lugar onde habitam, transformações, suas consequências e formas de intervir sobre a realidade, sobre relações entre os seres humanos, outros seres vivos e tecnologias, para que assim os alunos possam fazer uma leitura com maior propriedade do mundo (CAMPINAS (b), 2010, p.88).

Observa-se que existem determinados aspectos comuns que devem ser ressaltados. Nos três documentos História e Geografia são colocadas em um lugar de destaque, já que fundamentam o discurso social que as três propostas procuram criar. Entretanto, são colocadas em segundo plano – depois de língua portuguesa e matemática (ferramentas da linguagem), e pouco exploradas pelos textos. Mesmo quando há maior destaque para a disciplina (como para História nos parâmetros estaduais e Geografia nos parâmetros do município de São Paulo), muitas vezes essa importância se dilui na grade horária, mantendo a hierarquia curricular.

3.1.2. Parâmetros curriculares do Ensino Fundamental II – Ensino de Jovens e Adultos A formalização do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) é bastante recente. Apesar de ser uma prática recorrente no Brasil do século XX, o foco estava na alfabetização Doxa, v.17, n.1 e 2, p.115-131, 2013

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e pouco se discutia sobre a importância de um programa pedagógico diferencial para o público do EJA. Isso é bastante problemático, já que os alunos estão em um estágio de formação cognitiva diferente dos alunos de ensino regular, e muito da carga que esse aluno trás pode contribuir para o processo de aprendizagem. É fundamental haver prescrições para os profissionais desse segmento para evitar que se infantilizem os alunos e o conteúdo seja passado de forma meramente resumida e acelerada. O município de São Paulo publicou em 2010 as Orientações Didáticas para EJA, documento que busca apresentar uma abordagem alternativa do conteúdo, reforçando a todo momento do texto que é fundamental focar o ensino para a realidade dos alunos de EJA, que são um grupo extremamente heterogêneo. Para isso, estabelecem um grande tema para organizar o conteúdo ministrado: o mundo do trabalho, tema bastante relacionado com as disciplinas de História e Geografia, e que são de extrema importância para o público do EJA. O documento trata cada disciplina em volumesindependentes, porém reforça que a base do EJA deve ser a formação de cidadãos conscientes e que possam participar da sociedade independente de não terem tido a oportunidade de estudar na idade convencional. O documento de Geografia faz uma introdução em relação à importância da “Geografia escolar”, com seu caráter interdisciplinar reforçado:

aluno se coloque como agente da sociedade, o que é importante já que muitas vezes a ausência do estudo anterior os marginaliza. Os parâmetros curriculares organizados para o ensino de jovens e adultos do município de Campinas seguem a tendência identificada no documento paulistano, abordando o trabalho como eixo estruturante do conteúdo ministrado. Fica clara a importância dada à disciplina de língua portuguesa, apontada como principal ferramenta do indivíduo em todos os documentos analisados. Geografia é tratada de forma superficial, sem qualquer tipo de aprofundamento. Já a disciplina de História é tratada com especial atenção. O texto é inclusive mais extenso do que a seção de português e matemática. Isso também acontece nos parâmetros municipais de São Paulo, sob o argumento que a História para os alunos de EJA é fundamental na formação de uma consciência coletiva, na identidade e na cidadania. Como os alunos já têm uma vivência anterior, os conteúdos da disciplina podem ser mais desenvolvidos, auxiliando na consolidação de valores e conceitos importantes da sociedade. A partir das abordagens identifi cadas pelos documentos, é necessário esclarecer o que isso representa. Os parâmetros curriculares, apesar de alegar que não são prescrições e sim orientações de como a educação básica deve ser desenvolvida, são os parâmetros utilizados na organização das avaliações do aprendizado do aluno, que ocorrem periodicamente. Dessa maneira, as escolas não tem a autonomia de estabelecer planos pedagógicos que não sigam esses parâmetros. Partindo dessa premissa compreende-se a influência que esses documentos possuem. Ao utilizar um discurso baseado na cidadania, nas habilidades e competências e na importância da linguagem como forma de interação com o mundo – temas norteadores de todos os documentos avaliados – a educação é pautada nos conceitos humanistas, próprios das disciplinas de História e Geografia. Contudo, essa importância dada a esses conceitos se limita ao discurso, já que essas disciplinas são tratadas como secundárias. Elas não só possuem uma carga horária menor na grade curricular, como não são exigidas pelas avaliações do ensino. Isso ainda é mais visível nos documentos referentes ao EJA, que pelo encurtamento do tempo de estudo, tem muitos conteúdos tratados de forma superficial. Para ter menor impacto nas disciplinas tidas como mais importantes, reduzem ainda mais a carga horária de História e Geografia.

E, mais, pelo seu caráter interdisciplinar, por fazer uso de saberes das mais diversas áreas do conhecimento, como economia, sociologia, agronomia etc., ela serve, na escola, para apresentar um conjunto vasto de elementos significativos da cultura que permite ao aluno obter uma visão menos fragmentada da realidade, compreender como o espaço é produzido pela sociedade e nele atuar de modo consciente e crítico (SÃO PAULO (a), 2010, p.30).

No entanto, ao tratar da disciplina nos domínios do ensino para jovens e adultos, é extremamente superficial, tratando a disciplina como mero componente do currículo. Há um desenvolvimento de como tratar os principais temas (cartografia, sociedade e território, questões socioambientais e globalização), porém trata-se de um desenvolvimento do conteúdo, e não da importância da ciência na formação desses alunos. Na seção direcionada ao estudo de História, o documento reforça a importância do estudo da disciplina justamente pelo diferencial dos alunos do EJA, onde há uma vivência anterior e conceitos pré-estabelecidos. O texto coloca a História como ferramenta fundamental de formação de identidade e cidadania, que permite que o 122

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3.1.3. O estudo de caso nas escolas públicas

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Figura 1: Carga horária do EJA Ensino Médio

Escola estadual no município de São Paulo A escola se localiza na cidade de São Paulo-SP, no bairro Vila Dalva, que se situa no extremo oeste da cidade, já próximo a municípios da Região Metropolitana, como Osasco e Carapicuíba. O bairro onde se localiza a escola situa-se, portanto, na periferia de São Paulo eé densamente ocupado, no geral por perfis sociais de baixa renda. Coexistem no respectivo bairro áreas mais urbanizadas e áreas de baixa densidade de infraestrutura urbana. A escola funciona em todos os horários, matutino, vespertino e noturno, oferecendo o Ensino Fundamental II, Ensino Infantil e Ensino de Jovens e Adultos nessa ordem. A maior parte dos alunos matriculados na escola habita os bairros muito próximos à escola, o que ocorre principalmente com alunos que frequentam a escola no período noturno. As “séries’ do EJA da escola são compostas por em média 30 alunos matriculados, com faixa etária entre 18 e 75 anos. No entanto, desses matriculados temos uma frequência real de estudantes muito baixa e uma desistência muito alta ao longo do período letivo. A escola, assim como muitas outras do Estado de São Paulo, apresenta problemas em relação à precária captação e administração de investimentos de diversas ordens. Uma carência evidente se mostra quanto à infraestrutura física precária e insuficiente, pois a escola não possui condições físicas suporte para o montante de alunos que atende,o que ocorre principalmente nos períodos matutinos e vespertinos, quando o número de alunos é imensamente maior que no período noturno. Outro problema reincidente na instituição, que também é comum a muitas escolas públicas paulistas, principalmente as periféricas, é a constante falta de professores de diversas formações. Para solucionar este déficit são “contratados” professores eventuais que não apresentam longa permanência na escola, como resultado os alunos estão constantemente defasados em relação ao conteúdo. Tendo em vista a questão da hierarquia das disciplinas, a partir de alguns dados trabalhados na escola paulistana durante a pesquisa de campo, foi analisada a carga horária do EJA (figura 1) e realizadas entrevistas com professores de diferentes disciplinas.

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Fonte: SÃO PAULO, 2013.

O conteúdo de ensino é distribuído ao longo de três termos, nos quais quatro meses equivalem a um ano. Nota-se que a carga horária na escola varia ao longo desses termos, no entanto, mantém uma certa linearidade em relação a hierarquia de disciplinas. As disciplinas de Português e Matemática representam 29,62% da carga horária, com 4 aulas semanais cada, ou seja, o dobro das demais disciplinas que tem 2 aulas semanais. Há uma mudança de um termo para o outro, na qual Filosofia passa a ter 2 aulas semanais, Geografia perde uma aula no última termo, passando a ter apenas 1 aula e Sociologia chega ao último termo com duas aulas semanais. A questão da carga horária na escola foi fundamental para saber a posição dos professores em relação à mesma, como veremos adiante. Foram realizadas entrevistas a partir de duas etapas distintas, ambas conduzidas pelo o mesmo objetivo, no entanto, com métodos investigativos diferentes. O modo de encaminhar o diálogo nas entrevistas foi alterado ao longo do desenvolvimento do Doxa, v.17, n.1 e 2, p.115-131, 2013

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trabalho, uma vez que percebemos que para ter resultados mais naturais, era preciso realizar as entrevistas de uma forma menos tendenciosa. A primeira etapa das entrevistas e conversas abrangeu principalmente o corpo docente, composto por distintas formações, como Matemática, Física, Química, Português (Literatura e Gramática), História, Inglês e Geografia. Estes foram convidados a se expressar quanto à importância da sua própria disciplina e a forma como desenvolvem as abordagens das mesmas, por fim, os mesmos professores eram questionados quanto a importância das disciplinas das Ciências Humanas. Nesta primeira etapa os resultados obtidos foram principalmente ponderações feitas quanto à importância da Geografia, História, Filosofia e Sociologia, em relação à pertinência de suas abordagens teóricas. Dessa forma a importância dessas disciplinas foi destacada, mas obscureceu-se a questão da hierarquia entre as disciplinas. Os professores entrevistados pontuaram a importância das disciplinas do conjunto das Ciências Humanas, em diversos aspectos, que incluem desde a formação dos estudantes e sua relação com outros aspectos vida, até a inter-relação necessária entre disciplinas. Quanto à importância para formação destacaram que estas disciplinas funcionam como conhecimento geral e específico para concursos, provas e para o mercado de trabalho no geral. Neste ponto importante salientar que de acordo com a maioria dos professores a formação dos alunos do EJA deve estar diretamente vinculada às exigências do mercado de trabalho e não à continuidade do estudo. De acordo com os professores, quanto aos aspectos pertinentes à formação do aluno, a contribuição das Ciências Humanas também ocorre pelas possibilidades que ela pode criar na construção de uma visão crítica do mundo pelos estudantes, por situar a pessoa no mundo e no lugar em que vive (Geografia), além de auxiliar como um todo na compreensão do cotidiano. Também foi pontuado que essas disciplinas são conhecimento intrínseco e utilizável na compreensão de outras disciplinas, como matemática e literatura. Nesse contexto foi mencionado que as Exatas e Humanas são ciências conectadas desde a Idade Média (Ex. Filósofos Gregos). No mesmo contexto as Ciências Humanas também foram destacadas por sua capacidade situar e emparelhar disciplinas tendenciosamente abstratas à uma realidade social. A segunda etapa das entrevistas e conversas envolveu a coordenação e a direção da escola, além de demais representantes do corpo docente. Neste momento optamos por uma abordagem mais diretiva da temática da hierarquia das disciplinas. Com essa intenção recorremos à grade de carga horária de todas as disciplinas oferecidas na suplência de Ensino Médio do EJA da escola, e passamos a utilizá-las ao longo das entrevistas.

Ao abordarmos os coordenadores, diretores e professores, questionávamos quanto aquela disposição de carga horária e a opinião dos mesmo em relação a esta. As ponderações foram mais uma vez diversas, no entanto desta vez a hierarquia estabelecida ficou mais clara pois, ao notarem a distribuição desigual da carga horária, negavam a possibilidade de uma redistribuição, afirmando que o ensino de matemática e português não poderia ceder seu tempo para as outras disciplinas, por serem “básicos”, “meio caminho andado”, “muito importantes para as outras matérias”.

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Escola no município de Campinas Trata-se de uma escola de Ensino Fundamental regular e EJA, localizada no município de Campinas, no bairro Jardim Flamboyant. Apresenta aproximadamente 550 alunos, distribuídos nos períodos da manhã, tarde e noite. O horário das aulas varia de acordo com o ano e ciclo. Das 7h00 as 12h00 é o período de aula do Ensino Fundamental I, das 12h50 as 18h10 é o período de aula do Ensino Fundamental II e das 19h00 as 23h00 é o período de aula do EJA. O grupo de alunos da escola é composto, quase que exclusivamente, de crianças e adolescentes que habitam o bairro São João da Vitória e do Jardim Novo Flamboyant. Essa comunidade de classe média/baixa vivencia vários tipos de privações e conflitos familiares. A porcentagem de alunos de baixa renda que frequenta a escola é bastante grande (aproximadamente 80%) e pertence a famílias pobres que, muitas vezes, vivem em condições sociais vulneráveis. Grande parte mora em habitações precárias, muitos dos pais são analfabetos e não estão acostumados a orientar seus filhos na vida escolar (CAMPINAS, 2012). Sendo assim, a escola procura atrair estes pais para retomarem ou iniciarem os estudos no curso EJA, oferecido pela escola, mas nem sempre obtendo sucesso. Também são promovidos eventos para a comunidade, como por exemplo, palestras para os pais, em uma tentativa de integrar a comunidade com o ambiente escolar. Sobre o EJA, este tem 102 alunos, divididos em quatro turmas, chamadas de termos, de acordo com o conteúdo aser trabalhado em sala de aula. Na escola, o EJA é trabalhado para que todas as disciplinas tratem a questão do trabalho em sala de aula, trata-se do projeto “Mundo do Trabalho”, a fim de tentar trazer uma temática mais próxima da realidade do público do EJA (CAMPINAS, 2012). Dentro do contexto abordado neste trabalho, a questão da hierarquia das disciplinas pode ser pensada a partir de algumas informações trabalhadas na escola durante o trabalho de campo, através da análise dos documentos de carga horária do EJA e Doxa, v.17, n.1 e 2, p.115-131, 2013

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do Plano Político Pedagógico, assim como por meio de entrevistas com professores de diferentes disciplinas. Primeiramente, a análise de tais documentos permitiu um panorama geral da posição das disciplinas oferecidas para o EJA na escola. De acordo com a carga horária de disciplinas para o EJA (figura 2), cada termo conta com uma carga horária total de 27 aulas semanais. Sendo assim, é possível observar que as disciplinas de Português e Matemática estão no topo de uma hierarquia de disciplinas, apresentando uma carga horária 5 aulas por semana cada, ou seja, representam 37.03% em relação ao total de aulas na semana.

enquadra na mesma categoria das demais disciplinas e tem uma carga horária de 1 aula semanal. Além dessa distribuição das disciplinas na carga horária, pode ser observado que no Plano Político Pedagógico da escola existe uma tentativa de integração dessas disciplinas, de trazer algo de interdisciplinaridade para os alunos. Essa tentativa pode ser evidenciada no tema “Mundo do Trabalho”, a qual objetiva trazer um tema presente na realidade dos alunos e que pode ser trabalhado em todas as disciplinas de forma crítica. Além disso, a escola apresenta projetos extraclasses interdisciplinares e um bom diálogo com a comunidade no entorno da escola. A partir das entrevistas realizadas na escola, foi possível refletir algumas questões referentes a temática do trabalho, e principalmente se os professores tinham essa mesma visão apresentada nos documentos. Foram realizadas entrevistas com professores de EJA, no período noturno de diferentes disciplinas. Foram entrevistados dois professores de Português, um de Matemática, dois de História, dois de Geografia e um de Inglês, além de uma entrevista com o coordenador pedagógico da escola. O foco da entrevista era a questão das disciplinas de História e Geografia na carga horária e sua importância em termos de interdisciplinaridade, de acordo com as entrevistas semiestruturadas no desenho metodológico. Dessas entrevistas, podemos levantar alguns pontos:

Figura 2: Carga horária do EJA Ensino Fundamental



Todos os professores consideram História e Geografia extremamente importantes na formação do mundo. Segundo a maioria, falta conhecimentos básicos nos alunos de elementos importantes como noção de espaço geografia e de história brasileira.



Quando indagados a respeito da diferença de aulas na carga horária, ou seja, hierarquia de disciplinas, os professores de Português e Matemática defenderam que essas disciplinas são a base para as outras, por isso devem ter mais número de aulas. Já os professores de História e Geografia defenderam que as disciplinas de Português e Matemática são sim a base para as outras, mas que seus conteúdos podem ser trabalhados em todas as disciplinas, devendo a grade ser mais equilibrada.



A maioria dos professores considerou que essa tentativa da escola de interdisciplinaridade não é suficiente e que na maioria das vezes não funciona na prática. Segundo eles, também falta um diálogo maior entre os professores das diferentes disciplinas.



O coordenador da escola explicou que a grade com a carga horária é definida pelo município de Campinas, cabendo a escola apenas uma organização da mesma, ou seja, essa hierarquia de disciplinas já vem estabelecida pelo município.



Pensando na melhor forma de passar o conteúdo aos alunos, considerando a questão de hierarquia de disciplinas e interdisciplinaridade, entre outras, o coordenador realça a dificuldade em integrar as diretrizes curriculares definidas pelo município a serem

Fonte: CAMPINAS, 2012.

Em seguida, observamos as disciplinas de História, Geografia e Ciências apresentando o mesmo número de aulas na semana, 4 aulas cada. Isso significa que 29,63% da grade horária corresponde as Ciências Humanas (História e Geografia). As demais disciplinas, com um menor número de aulas semanais são Artes e Educação Física (2 aulas cada) e Inglês, apresentando 1 aula semanal. O EJA ainda oferece a disciplina Ensino Religioso, no entanto, a mesma não se 128

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seguidas pela escola, o material didático disponível (nem sempre a melhor opção) e a realidade da escola, que muitas vezes não se encaixa com os dois anteriores.

CANDAU, Vera; MOREIRA, Antônio Flávio. Currículo, conhecimento e cultura. Salto para o futuro. Ministério da Educação, Boletim Set. 2007.

Para o coordenador, o mais importante para os alunos de EJA é saber ler, escrever e fazer contas matemáticas, no entanto, isso é possível de ser trabalhado em qualquer disciplina.

CAMPINAS. Adendo/Adequação ao Plano Escolar e Plano Pedagógico 2011 da EMEF Raul Pila. Campinas: Secretaria Municipal de Educação, 2012. CAMPINAS. Diretrizes curriculares da educação básica para o ensino fundamental e educação de jovens e adultos, volume I: um processo contínuo de reflexão e ação. Campinas: Secretaria Municipal de Educação, 2010. (a)

Considerações Finais O cenário da educação brasileira é marcado por tensões. Ao mesmo tempo em que se busca atingir a universalização do ensino, os documentos oficiais que qualificamo ensino demonstram um sistema repleto de vícios que não conseguiram ser superados após a redemocratização do país. Ao mesmo tempo em que o discurso oficial alega a importância da formação de indivíduos críticos e conscientes, há uma valorização de conhecimentos hegemônicos, reflexo de uma sociedade pautada no discurso do conhecimento científico e aplicado. A precarização da estrutura educacional, a pressão internacional pela qualidade do ensino, e os índices de avaliação acabam deixando de lado uma reflexão necessária: a finalidade da educação básica. Com isso, disciplinas são tomadas como secundárias, dando espaço para as disciplinas que capacitam (ou não) os alunos para o mercado de trabalho. Isso fica claro na leitura feita dos planos pedagógicos, que apesar de desenvolverem um discurso socialmente crítico, continuam fomentando essa estrutura hierárquica dos saberes. Torna-se de grande importância refletir sobre o papel desses parâmetros curriculares, que se colocam como imparciais  – mas atuam como prescrições claras do âmbito escolar. Ao delimitar políticas públicas efetivas para reestruturar a base da educação no país, esses documentos são instrumentos efetivos para legitimação essas políticas, podendo promover a transição de um ensino pautado na formação de habilidades para um ensino que favoreça a aprendizagem e promova a valorização da formação dos alunos.

CAMPINAS. Diretrizes curriculares da educação básica para o ensino fundamental e educação de jovens e adultos, anos finais: um processo contínuo de reflexão e ação. Campinas: Secretaria Municipal de Educação, 2010. (b) MARTINS, Maria do Carmo. A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes? (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2000. SÃO PAULO. Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem para o Ensino Fundamental, ciclo II: Geografia. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, 2011. SÃO PAULO. Caderno de orientações didáticas para EJA – Geografia: etapas complementar e final. Secretaria Municipal de Educação, 2010. (a) SÃO PAULO. Projeto Político Pedagógico da EE Samuel Klabin. São Paulo: Secretaria de Educação, 2013. SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo: Ciências Humanas e suas tecnologias. São Paulo: Secretaria da Educação, 2011. SÃO PAULO. Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem para o Ensino Fundamental, ciclo II: História. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, 2007.

Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. Propossurle Champ Politique. Lyon: Presse Universitaire de Lyon, 2000. SÃO PAULO. Caderno de orientações didáticas para EJA  – História: etapas complementar e final. Secretaria Municipal de Educação, 2010. (b) 130

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INTERVENÇÃO COM FAMÍLIAS CUJOS FILHOS SÃO SURDOCEGOS INTERVENTION WITH FAMILIES WHO’S CHILDREN ARE DEAFBLIND

Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento1 Maria Piedade Resende da Costa2 RESUMO

ABSTRACT

A família é o agente mediador primário entre o indivíduo e as demais unidades da sociedade. Sofre interferência nos casos da presença de uma alteração no desenvolvimento do filho. O presente estudo teve como objetivo implementar e avaliar um programa de intervenção que fornecesse oportunidades crescentes de desenvolvimento de novas competências nos pais, em relação às possibilidades e as técnicas de comunicação mais viáveis com suas filhas surdocegas. Participaram duas famílias que possuem filhas surdocegas (identificadas como 9F e 7F), pré-lingüísticas, ambas com surdez profunda bilateral associadas à baixa visão monocular. A coleta de dados ocorreu 106 encontros com as famílias, distribuídos em formas de atividades distintas: avaliação inicial, reuniões, aulas abertas, troca de informações, visitas às residências e avaliação final. O aspecto mais destacado pelas famílias foram o desenvolvimento e ampliação dos recursos de comunicação. Este fato promoveu mudanças positivas e importantes no comportamento das filhas. Provavelmente, o progresso e as conquistas obtidas pelos participantes só se tornaram viáveis em função dos contatos constantes estabelecidos entre a escola e o contexto familiar.

The family is the primary agent mediator between the individual and the other units of the company. Interfered in cases of the presence of a change in the child’s development. The present study aimed to implement and evaluate an intervention program that provides increasing opportunities for developing new skills in parents, about the possibilities and techniques of communication more viable with their deafblind children. Two families that have daughters deafblind (labeled 7F and 9F), pre – linguistic, both with bilateral profound hearing loss associated with low vision monocular participated . Data collection occurred 106 meetings with families, distributed forms of distinct activities: initial assessment, meetings, open classes, information exchange, home visits, and final evaluation. The most prominent aspect of the families were the development and expansion of communication resources. This fact has promoted positive and important changes in the behavior of daughters. Probably the progress and achievements made by the participants only became feasible due to the constant contacts established between school and family context.

1

Centro Universitário do Distrito Federal- Brasília- Brasil. 70390-045.

2

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar - São Carlos - Brasil. 13600-970. E-mail: piedade@ ufscar.br

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Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento e Maria Piedade Resende da Costa

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Educação Especial. Surdocegueira. Comunicação. Mediação.

Special Education. Deaf-Blind. Communication. Mediation.

Introdução

Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos

Método O estudo se pautou em três momentos distintos e complementares: avaliação inicial, intervenção e avaliação final. A inicial consistiu na realização de entrevistas com os pais na escola e nas residências. A intervenção pautou-se em cinco formas de atuação: aulas abertas para alunos com surdocegueira com participação dos pais, visitas às residências, reuniões programadas no calendário escolar, contatos por telefone e intervisitação. Na avaliação final realizou-se uma entrevista semi-estruturada. As atividades foram desenvolvidas em locais habituais: a escola e as residências. Ocasionalmente utilizaram-se espaços públicos para a realização de atividades extra-classe. Ao todo foram realizados 106 encontros, distribuídos nas cinco modalidades de atuação. Participaram duas famílias que possuem filhas surdocegas, pré-lingüísticas, ambas com surdez profunda bilateral associadas à baixa visão monocular, com prognóstico de perda progressiva da eficiência visual, matriculadas numa escola especial, pública, do Distrito Federal. As famílias foram identificadas pela convenção 9F e 7F, os números significam a idade das crianças, na época da pesquisa, a letra representa a palavra família. O Quadro 1 mostra o perfil de cada família.

A família é o agente mediador primário entre o indivíduo e as demais unidades da sociedade. Esta mediação primária sofre interferência na presença de depressão materna, paterna, do bebê ou nos casos da presença de uma alteração no desenvolvimento. Nestes casos as reações desencadeadas são ao mesmo tempo singulares e universais em cada família. Telford e Sawrey (1988) apontam que a forma como a família enfrenta a “decepção e o trauma inesperado (ou esperado) é uma experiência universal”. Na mesma perspectiva, Regen et al. (1994) destacam que o momento e a forma pela qual os pais entram em contato com o problema de um filho deficiente são determinantes do processo posterior de aceitação da condição de ter alguma alteração orgânica. Ao discutirem os problemas suscitados pela presença de um deficiente na família Telford e Sawrey (1988) identificaram oito etapas vivenciadas no contexto imediato: 1/autocomiseração; 2/ansiedade; 3/ambivalência; 4/culpa; 5/projeção; 6/ vergonha; 7/depressão; 8/autopunição. Estas etapas estão diretamente vinculadas ao processo em si, as suas especificidades, porém a forma como a família recebe a notícia pode interferir e influenciar as ações futuras. A este respeito Chacon (1999) ao estudar a descoberta da deficiência por um grupo de mães de deficientes mentais evidenciou que todos os profissionais apresentaram para as mães os aspectos negativos da deficiência em si sem evidenciarem perspectivas positivas. Cader-Nascimento e Costa (2007) apontam que a surdocegueira congênita, pré-lingüística, reduz as possibilidades de aprendizagem incidental da criança. Porém, enfatizam que a partir do momento em que família e a criança começam a ter acesso aos recursos de comunicação alternativa e ao atendimento especializado novas perspectivas de aprendizagem e desenvolvimento se fortalecem e redimensionam a interação do grupo familiar. Diante destes dados elaborou-se este estudo com vistas a implementar e avaliar um programa de intervenção que fornecesse oportunidades crescentes de desenvolvimento de novas competências nos pais, em relação às possibilidades e as técnicas de comunicação mais viáveis com suas filhas surdocegas.

Fonte: entrevista com os pais (ambos progenitores),* sm usado para salário mínimo.

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Quadro 1 – Perfil das famílias participantes. Critérios

família 9F

Idade em anos (no início da pesquisa)

família 7F

pai

Mãe

pai

mãe

40

38

30

31

Idade em anos dos filhos

9, 15 e 17 ª

9, 7, 4, 2 e 1 mês

Escolarização dos pais

6 série

8 série

5 série

8ª série

Ocupação profissional

garçom

do lar

vendedor

do lar

Renda em salários mínimos

3 sm*

0

4 sm

0

Habitação Distância casa – escola em km Quem mais brinca com a criança De quem a criança parece gostar mais Quem fica mais tempo com a criança

ª

ª

Aluguel

casa cedida

40

30 X

X

irmã X

X

X

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O baixo nível de escolarização provavelmente reduziu as oportunidades de opção de trabalho, consequentemente, interferiu no rendimento de ambas as famílias. Somente a filha 9F participa do programa de aposentadoria do governo federal. Apesar da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) assegurar liberdade, o direito e a disposição da educação pública a todos os cidadãos, não há uma relação de equivalência entre a uniformidade de oportunidades com a igualdade das mesmas.

Avaliação inicial Esta fase compreendeu o desenvolvimento de duas etapas: contato inicial e entrevista com base em formulário. No contato inicial esclarecemos sobre a pesquisa, as metas programadas e os compromissos éticos com a família e escola, na seqüência houve a assinatura do termo livre e esclarecido de consentimento em participar do estudo. Na entrevista ouvimos os pais, encorajando-os a discorrer sobre a interação com suas filhas, bem como a percepção deles sobre o desenvolvimento e as potencialidades das mesmas. Buscou conhecer as singularidades de cada família em relação à identificação pessoal, condição econômica, social e cultural, caracterização da relação afetiva vivenciada com a filha surdocega (SC), às experiências na época da descoberta da deficiência, principais redes de apoio, modalidade de comunicação estabelecida e, principalmente, as expectativas em relação à participação na pesquisa.

Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos

Reuniões As reuniões estavam previstas no calendário oficial da escola e foram realizadas com ênfase no progresso das crianças. Planejou-se a exibição de dois filmes clássicos: “O milagre de Anne Sullivan” e “Os transformadores”. Os pais eram orientados sobre os setores de atendimento público no que se refere a locais de: a) aquisição de Aparelho de Amplificação Sonora Individual – AASI; b) realização de exames audiológicos e visuais; c) treino de fala; d) serviço de orientação para o trabalho; e) leitura e explicação dos laudos médicos; f ) participação em associação de pais; g) distribuição gratuita de colírio de alto custo.

Aulas abertas As aulas abertas consistiam na participação dos pais nas atividades próprias da sala de aula com suas filhas. Visou dar oportunidade à família de compartilhar as situações e os êxitos das filhas. O procedimento adotado consistiu em: a) convidar os acompanhantes (pai, mãe, prima) para participar das atividades; b) explicar, estimular e valorizar a participação do acompanhante; c) demonstrar a dinâmica da atividade para os pais através de exemplos concretos; d) orientar a seqüência da participação de cada um. Geralmente, os pais eram os últimos, possibilitando um tempo maior de observação; e) quantificar e comparar o resultado de cada participante;

Intervenção

f ) comemorar a vitória com muito entusiasmo por meio de aplausos, beijos, abraços, aperto de mão, fala, entre outros gestos naturais. No caso do último lugar as reações consistiram no gesto do dedo polegar para baixo, simulação de choro, etc;

Desenvolvemos atividades com a família de acordo com as seguintes formas de atuação: a) reuniões convencionais; b) aulas abertas; c) contato por telefone; d) visita domiciliar; e) intervisitação dos pais, isto é, visita as residências. Para cada uma elaboraram-se materiais, objetivos e procedimentos específicos. Os objetivos comuns foram: 1) envolver os pais com a escolarização de suas filhas, fortalecendo a crença da capacidade deles na interação e no processo de desenvolvimento delas; 2) possibilitar informações sobre a natureza da deficiência e alternativas de comunicação entre pais, filhas e escola; 3) motivar e incrementar as freqüências das respostas das filhas ao ambiente; e, 4) possibilitar uma adaptação mútua das condutas (pais / filhas).

Contatos por telefone

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g) entregar material semelhante ao da atividade desenvolvida em sala, para que pudessem brincar em outros ambientes.

Visando acompanhar as manifestações das crianças em suas casas, a pesquisadora telefonava para os pais uma vez por semana, caso não tivesse a informação na escola.

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Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos

Visita domiciliar Atividades

Foram previstas visitas às residências com um intervalo de dois meses, com vistas a: a) observar a interação; b) envolver o núcleo familiar no processo de aprendizagem e desenvolvimento das filhas SC; c) esclarecer dúvidas; e) orientar e ensinar sistemas alternativos de comunicação. Atividades lúdicas (jogos) foram programadas para que todos participassem. Outro procedimento foi a identificação dos membros da família através de fichas, escritas com fita adesiva de cores variadas e a orientação sobre o calendário adaptado.

Intervisitação das famílias A intervisitação viabilizada pela pesquisadora, em seu próprio veículo, teve por objetivo aumentar a proximidade das famílias, possibilitando trocas de informações a respeito de suas experiências de vida fortalecendo a cumplicidade entre elas.

Avaliação final Realizou-se uma entrevista semi-estruturada em relação ao grau de satisfação dos pais com o trabalho. As informações foram organizadas segundo: a) data; b) forma (telefone ou pessoalmente); c) quem informou; d) enunciado. Os dados foram quantificados em relação a frequência e analisados qualitativamente por meio de categorias organizadas a partir dos relatos dos pais.

Resultados e discussão. Estavam previstos 106 encontros, distribuídos em cinco formas de atividades distintas. O Quadro 2 apresenta uma síntese destas atividades previstas em relação às realizadas. Quadro 2 – Participação das famílias. Atividades

Previstas

Realizadas Família 9F

Família 7F

Reuniões

05

5

4

Aulas abertas

55

48

15

Troca de informações

41

74

47

138

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Previstas

Realizadas Família 9F

Família 7F

Visitas às residências

05

3

5

Total

106

130

71

Fonte: anotações no caderno de campo e formulário de registro dos relatos das famílias.

Conforme as informações indicadas no Quadro 2, a família 9F participou de 100% (5) e a 7F de 80% (4) das reuniões realizadas. Ressalta-se que o comparecimento da família 7F mobilizava o pai, a mãe, o bebê recém-nascido, 7F e uma irmã; enquanto na 9F houve alternância entre o pai (1) e a mãe (4). Nota-se que apesar das dificuldades as famílias se organizaram para estarem presente. Talvez esta mobilização esteja relacionada ao fato dos aspectos positivos do comportamento das filhas serem sempre enfatizados durante as reuniões. Quanto aos filmes, os dados evidenciaram que a exibição do filme “O milagre de Anne Sullivan” não atingiu os objetivos esperados. Houve dispersão, movimentação no banco, conversa paralela e comentários, como: “tá vendo, a surdocega tem uma professora só para ela [...](mãe 9F) a professora mora na casa dela [...]”(mãe 7F).

Este comportamento associado à dificuldade de conciliar a disponibilidade de tempo e a necessidade dos pais em dividir sua atenção entre o filme e os filhos menores, acarretou a decisão de alterar a programação, substituindo os filmes pela exibição das gravações do desempenho das filhas na escola. Os pais demonstraram interesse, permaneciam atentos, realizavam comentários como: “como a professora têm paciência para explicar as coisas... eu preciso ter mais paciência para ensinar (pai 9F)”; “é a segunda mãe da 7F, é por isso que eu não tenho coragem de tirar minha filha daqui... nossa minha filha consegue fazer isto... eu nunca vi minha filha fazendo isto... (mãe 7F)”

Os comentários dos pais, para Telford e Sawrey (1988) são decorrentes da necessidade que eles têm de verem que seus filhos com necessidades especiais sejam aceitos de maneira calorosa e plena no ambiente escolar e que possam dar respostas coerentes às situações propostas. Geralmente, ao final das sessões as famílias solicitavam o material (fitas de vídeo ou DVD e fotografias) para levar e mostrar para os avós e tios que moravam em outra cidade. Este dado reforça a importância do núcleo familiar acompanhar o trabalho desenvolvido pela escola. Provavelmente, Doxa, v.17, n.1 e 2, p.133-145, 2013

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este fato motivou-os a colaborarem espontaneamente com o processo educacional dos mesmos, como mostra a seguinte fala:

esperado e desejado pelos pais que o denominaram de “herdeiro, aquele que irá pôr ordem na casa...”, alterou o comportamento da família, conforme mostra a fala da filha mais velha:

“[...] se a professora que não é da família está se dedicando tanto para ela aprender as coisas; nós que somos da família temos que ajudar [...]” (pai 9F, ago)

Das 55 aulas abertas 23 envolveram uma programação extraclasse e 32 foram realizadas no espaço escolar. A família 9F teve uma participação de 88%, sendo que em 22% houve a participação de mais de um membro. Já a 7F participou de 27% dos encontros no primeiro semestre. No caso da 7F a família encontrou dificuldades para administrar sua participação devido aos outros filhos. Estava previsto que a pesquisadora iria entrar em contato por telefone com os pais uma vez por semana, no entanto os pais, espontaneamente, começaram a ter esta iniciativa, por meio de ligações, bilhetes e conversa informal na escola, conforme mostra a Fig. 1.

“não está nada bem. O papai fica falando que a gente vai ter que obedecer o E (irmão) só por que ele é homem. Eu não vou obedecer ninguém”(irmã 7F, maio).

A Figura 2 mostra a freqüência de informação espontânea em relação ao informante.

Figura 2 – Freqüência de informação das famílias. Fonte: caderno de campo.

Nota-se, na Figura 1 que a família 9F é mais freqüente em termos de informações espontâneas e adicionais do que a 7F. Este comportamento pode ser decorrente de vários fatores, entre eles: a) presença constante de um membro 9F na escola; b) 7F com um maior número de filhos (Quadro 1); c) dificuldades da 7F em se dirigir ao telefone público com três filhos pequenos, sendo um recém-nascido; d) expectativas das famílias frente às possibilidades e ao potencial de desenvolvimento das filhas surdocegas. Aliado a estes fatores é importante destacar algumas alterações nas relações sociais do núcleo familiar 7F, marcadas pelo nascimento, no mês de maio, de um menino. A chegada de mais um filho e, neste caso, do sexo masculino, tão

Os dados mostram a freqüência maior das mães como informantes dos processos de desenvolvimento de seus filhos. Estes resultados são compatíveis com o estudo de Murdoch (1994) no qual constatou a baixa freqüência do pai no processo de desenvolvimento do filho com surdocegueira. Segundo Telford e Sawrey (1988) a mãe, em geral, assume a responsabilidade central no cuidado e supervisionamento do desenvolvimento de sua prole, independente do fato destes serem ou não deficientes. Em relação à participação dos pais, os comentários foram poucos e, em geral, ocorreram nas reuniões escolares ou nas visitas às residências. Os dados mostraram que as famílias parecem designar a mãe como participante mais ativa no processo de escolarização dos filhos enquanto cabe ao pai garantir a manutenção econômica do grupo. Ressalta-se que durante as conversas ao telefone com o núcleo 9F eles sempre colocavam a filha para falar com a pesquisadora. Esta iniciativa, por um lado evidencia o desejo deles em ver a filha falando; por outro lado, mostra como eles buscam

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Figura 1 – Freqüência dos comentários realizados pelas famílias. Fonte: anotações no caderno.

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inserir a filha surdocega no contexto familiar. Neste contexto, surdez profunda da filha a impedia de ter acesso à informação, porém ao colocar o fone no ouvido ela demonstrava satisfação de emitir sons distintos, contando sua história. O acesso às informações era garantido na medida em que os pais realizavam a tradução dos sinais e gestos realizados pela filha durante a interação com a pesquisadora. Dessa forma, era possível saber o que ela estava transmitindo, sendo possível, posteriormente, comentar o assunto em sua presença. A partir de dezembro, quando a filha aprendeu a utilizar o telefone começou a realizar ligações de forma independente, muitas das quais os pais só ficavam sabendo quando as pessoas comentavam o fato com eles. Os enunciados espontâneos dos pais foram organizados em quatro aspectos básicos para análise de conteúdo. Os resultados obtidos são apresentados no Quadro 2. Quadro 2 – Síntese dos resultados obtidos na avaliação inicial e final com a família. Aspectos observados

Participantes Av. inicial 9F

Av. final 9F

Av. inicial 7F

Av. final 7F

Recursos de comunicação apresentados

Elementar (sons, gestos, nervosismo).

Mais elaborados Elementar (bate, Mais elaborados (fala, gestos, briga, birras, (extinção das Libras, Braille...). nervosismo). birras e gritos).

Interação com a filha

Dificuldades de entender a filha

Facilidade em entender a filha.

Dificuldade em Facilidade em controlar a filha. entender a filha.

Adaptação do ambiente

Ambiente inadequado.

Adequação do ambiente.

Ambiente inadequado.

Alterações no ambiente.

Expectativas da pesquisa

Baixa

alta

baixa

alta

Fontes: anotações no caderno de campo e entrevistas com base em formulário.

Em relação aos recursos de comunicação expressiva e receptiva houve um progresso no desenvolvimento dos mesmos em ambos os casos. A ampliação destes recursos promoveu melhores condições de acesso às informações pelas crianças surdocegas e suas famílias. Assim, durante a avaliação inicial, a família 9F relatava como:

Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos

“Eu não dou conta de controlá-la; não sei como ensinar para ela. Ela é muito nervosa”, já na avaliação final os pais declaram que “[...] agora, ela tá mais calma. É mais fácil entendê-la e ela entende o que eu quero”.

Durante a avaliação final os pais sinalizaram uma compreensão mais ampla do desenvolvimento de suas respectivas filhas, atribuindo a si mesmo incompetência em entendê-las e em se fazerem entendidos por elas. Com isto o desenvolvimento passa a ser visto como fruto das condições socioculturais vivenciadas e não como decorrente exclusivamente da gama de incompetências atribuídas à pessoa com alguma deficiência. Com relação à adaptação do ambiente às condições visuais das filhas, apenas a família 7F, provavelmente, por não ter tido acesso às informações sobre a iluminação e disposição dos móveis no espaço, não havia até o início da intervenção realizado qualquer adaptação. Assim, no caso desta família, quando a pesquisadora realizou a segunda visita, a mãe comentou sobre a troca de todas as lâmpadas da casa de baixa para alta potência, conforme fala da mãe: “Você viu Fatima; nós trocamos todas as luzes daqui de casa. Agora a casa está mais clara. Ficou melhor para todo mundo, você viu?”.

Aliado a esta mudança, o núcleo 7F reorganizou a disposição dos móveis da casa e acatou as sugestões para adaptações no uso e no armazenamento de utensílios, equipamentos e produtos de limpeza. No caso da família 9F houve apenas a sugestão da troca do fósforo pelo acendedor de fogão, uma vez que a própria filha realizava o controle de iluminação na parte interna da casa, conforme relata a mãe: “Ela sempre deixa as janelas abertas. Ela gosta de ficar na varanda, acho que é porque é mais claro. Eu não deixo nada no meio da sala, para evitar que ela tropece. Os cabos das panelas estão sempre para dentro do fogão. Ela não gosta de escuro”.

O mesmo processo ocorreu com a família da 7F. Segundo seus pais, era difícil controlar seus comportamentos:

Conforme já mencionado, inicialmente, a expectativa das famílias em relação às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento de suas filhas era baixa, conforme mostra os seguintes depoimentos: “Espero que seja melhor para ela” (9F); e, “Que ela pare de dar birra”(7F). Notava-se que os pais não se sentiam muito à vontade para discorrer sobre seus projetos e desejos relacionados as filhas surdacegas. Um fato que ilustra esta postura refere-se ao sonho dos pais da filha 9F de vê-la falar. Algo que, antes da pesquisa parecia impossível, durante a pesquisa tornou-se mais acessível.

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“É difícil entendê-la e explicar as coisas para ela. Ela é muito nervosa. Eu falo normal com ela”, na avaliação final comenta que: “Agora é mais fácil entendê-la. Ela fala, mostra o que quer, desenha, tá mais calma”.

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Intervenção com famílias cujos filhos são surdocegos

Ao final da pesquisa os pais são unânimes em relatar que: “Foi bom demais para todos nós”(9F); e, “Minha filha agora é outra”(7F).

REGEN, M; ARDORE; HOFFMANN, V.M.B. Mães e filhos especiais: relato de experiência com grupos de mães de crianças com deficiência. Brasília: CORDE, 1993.

Considerações finais

TELFORD, C.W; SAWREY, J.M. O indivíduo excepcional. 5ed. Rio de Janeiro:Zahar 1988.

O aspecto mais destacado pelas famílias foi o desenvolvimento e ampliação dos recursos de comunicação. Este fato promoveu mudanças positivas e importantes no comportamento das filhas. Provavelmente, o progresso e as conquistas obtidas pelos participantes e relatadas, espontaneamente, pelas famílias, só se tornaram viáveis em função dos contatos constantes estabelecidos entre a escola e o contexto familiar. Esta interação escola/família tornou os pais os principais colaboradores no processo de aprendizagem e desenvolvimento delas. Enfim, os dados obtidos confirmaram os resultados da pesquisa desenvolvida por Watkins et al. (1991) e evidenciaram a importância de se manter atividades nas residências e contar com a participação de membros da família no espaço escolar. Com isto amplia-se a cumplicidade entre professores e família. Além disto, os resultados obtidos neste estudo superaram as dificuldades encontradas no estudo de Mira e Hoffaman (1974) em relação ao envolvimento da família no processo educacional de seus filhos. Enfim, parece que com a realização dessa pesquisa foi possível reduzir o estresse parental e contribuir para maior compreensão dos pais em relação às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento de suas filhas surdocegas.

WATKINS, S; CLARK,T.C; STRONG,C; BARRINGER,D. The effectiveness of an intervener model of services for young deaf-blind children. American Annals of Deaf. v.139, n.4, p.404-409, 1991.

Referências BRASIL, Secretaria de Educação. Constituição. República Federativa do Brasil. Brasília: MEC. 1988. CADER-NASCIMENTO, F.A.A.A; COSTA,M.P.R.da. Descobrindo surdocegueira. Educação e Comunicação. São Carlos: UFSCar, 2007.

a

CHACON, M.C.M. Deficiência mental e integração social: o papel mediador da mãe. In: Revista Brasileira de Educação Especial, v.3, n..5, 1999, p. 87-96. MIRA, M; HOFFAMAN, S. Educational programing for multihandicapped deafblind children. Exceptional Children. v.40, n.7, p.513-514, 1974. MURDOCH, H. The development of infants who are deaf-blind: a case study. Journal of Visual Impairment & Blindness. v.88, n.4, p.357-367, 1994. 144

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DOSSIÊ HISTÓRIA DA SEXUALIDADE E DA EDUCAÇÃO SEXUAL

NOTAS PRELIMINARES SOBRE HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO SEXUAL BRASILEIRA: APONTAMENTOS DE UMA CRONOLOGIA DESCRITIVA. 1) ATITUDES E COMPORTAMENTOS SEXUAIS NO BRASIL NOS DOCUMENTOS DA INQUISIÇÃO DOS SÉCULOS XVI E XVII1 PRELIMINARY NOTES ON BRAZILIAN HISTORIOGRAPHY OF SEX EDUCATION: NOTES FROM A DESCRIPTIVE CHRONOLOGY. 1) ATTITUDES AND SEXUAL BEHAVIOUR IN BRAZIL IN THE DOCUMENTS OF THE INQUISITION ON 16TH AND 17TH CENTURIES

Paulo Rennes Marçal Ribeiro2 Regina Celia Bedin3 RESUMO

ABSTRACT

Os autores pretendem apresentar a historiografia da educação brasileira como campo importante de pesquisa a partir da descrição cronológica de sua constituição, destacando os autores e suas respectivas obras que atuaram no campo da Sexualidade e da Educação Sexual. Neste primeiro artigo o período estudado é o Brasil Colônia dos séculos XVI e XVII e o material de análise são os documentos da Inquisição.

The authors intend to present the history of Brazilian education as an important field of research from the chronological description of its constitution, highlighting authors and their works in Sexuality and Sex Education field. In this first paper, the period of study is the 16th and 17th centuries and the doccuments of the Inquisition.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

História da Educação, Historiografia da Educação, Brasil.

Education History, Historiography ofEducation, Brazil.

1 Trabalho parcialmente apresentado e publicado nos Anais da 28ª Reunião Anual da ANPED com o título Por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa... a educação sexual no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII. 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14800-901. E-mail: paulorennes@fclar. unesp.br 3

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – SP – Brasil. CEP: 14800-901. E-mail: redacelita@ hotmail.com

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1. Introdução A configuração do campo da História da Educação no Brasil começa nas últimas décadas do século XIX, período em que são publicadas obras voltadas para a descrição de escolas, compilação de leis e relatórios, elogios à política educacional do Império, obras estas publicadas sob os auspícios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, e que constituía o espaço mais importante para a consolidação de uma identidade nacional a partir da escrita da nossa história. Proclamada a República, destacam-se as Escolas Normais, e com o Estado Novo de Getúlio Vargas surge mais um espaço importante para a História da Educação, que é o INEP – Instituto Nacional de Pedagogia, denominado posteriormente Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Vidal e Faria Filho (2003) mencionam como marco da História da Educação no Brasil o artigo em francês L’instruction publique au Brésil, de Frederico José de Santa-Anna Nery, publicado na Revue Pédagogique, em 1884, e o “primeiro livro voltado exclusivamente a narrar a história da educação brasileira, L’instruction publique au Brésil: histoire et legislation (1500 – 1889), de José Ricardo Pires de Almeida” (op.cit., p. 40), obra de vital importância que foi citada por vários autores posteriores, como Julio Afrânio Peixoto, Primitivo Moacyr, Fernando de Azevedo e Theobaldo Miranda Santos. Estes historiadores deram valiosa contribuição para a constituição da História da Educação enquanto campo de ensino e pesquisa com a publicação de livros que se tornaram referência para a Historiografia da Educação no Brasil, como os três volumes de A instrução e o Império: subsídios para a História da Educação no Brasil (MOACYR, 1936/1938), Noções de história da educação (PEIXOTO, 1933) e o também intitulado Noções de história da educação (SANTOS, 1945). Depois do IHGB, um segundo pólo aglutinador de obras de história da educação foi constituído pelas Escolas Normais, que podemos considerar serem das mais importantes instituições responsáveis pelo avanço da ciência no Brasil. Estiveram à frente da consolidação da Psicologia no país e possuíam em seus quadros os mais qualificados e conhecidos docentes de sua época (RIBEIRO, 1997; 1999). No tocante à História da Educação, Vidal e Faria Filho (2003, p. 45-46) mencionam que em 1928 era introduzida a disciplina História da Educação no currículo da Escola Normal do Rio de Janeiro [...]. Dentre os primeiros professores chamados a ministrar a nova disciplina... estava Júlio Afrânio Peixoto. Médico, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1911, antigo diretor da Escola Normal do Distrito Federal em 1915 e reformador da instrução pública da capital brasileira em 1916...

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Notas preliminares sobre historiografia da educação sexual brasileira: apontamentos de uma cronologia descritiva. 1) Atitudes e comportamentos sexuais no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII

Como vários médicos de seu tempo, Afrânio Peixoto transitava com desenvoltura no campo da Educação, e da mesma forma que se destacou na Medicina Legal e na Saúde Pública, inclusive com a publicação de obras relevantes como Elementos de Higiene, de 1913, e Psicopatologia Forense, de 1916 (Maio, 1994), obteve reconhecimento como um pioneiro da História da Educação tendo publicado o já mencionado Noções de história da educação (PEIXOTO, 1933). Afrânio Peixoto já havia publicado anteriormente um livro sobre Educação (PEIXOTO, 1923), e Reis e Ribeiro (2004), por outro lado, o citam em um texto sobre a institucionalização do conhecimento sexual no Brasil, assim como Abrantes (2010), que descreve o pensamento pedagógico de Afrânio Peixoto no tocante à educação feminina a partir de sua obra Eunice ou a educação da mulher, cuja 1ª edição data de 1936 (PEIXOTO, 1944). Comentando esta obra, Reis e Ribeiro (2004, p. 52) explicam que Afrânio Peixoto trata da educação sexual, que deve ser iniciada pelos pais, na família, e continuada pelos mestres e mestras, nas escolas [...] e é uma forma de preparar a mulher para o casamento, destacando a importância da relação sexual como responsável pela harmonia conjugal e criticando a atitude brutalizada que muitos homens tinham no relacionamento sexual com suas esposas.

Abrantes complementa esta idéia, dizendo que para Afrânio Peixoto a educação, portanto, era o fator primordial da emancipação feminina, pois, segundo [ele], os homens sabiam que a subalternidade de educação e de instrução da mulher era o meio mais eficaz de mantê-la na submissão civil e doméstica. Essa situação levava a ocorrência de algumas tragédias familiares, pois algumas mulheres preferiam a má fama a continuarem sofrendo nas mãos de cônjuges que dilapidavam seus bens, mocidade e beleza. Dessa forma, Peixoto defendia que, se a educação era fundamental para a mulher viver bem no casamento, mais ainda era para viver sem ele. (ABRANTES, 1994, p. 151)

Outros educadores vinculados às Escolas Normais são apontados por Vidal e Faria Filho (2003) como autores de obras de valor para a constituição da História da Educação enquanto área específica de estudo. José Veríssimo era professor de escola normal. Ruy de Ayres Bello, que publicou Esboço de história da educação, em 1945, foi diretor da Escola Normal de Pernambuco, e Tito Lívio Ferreira, autor de História da Educação Luso-brasileira, de 1966, era diretor de escola normal no Estado de São Paulo. Um terceiro pólo aglutinador de estudos sobre a história da educação no Brasil foi o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, criado em 1937, que tinha como uma de suas metas “organizar documentação relativa à história Doxa, v.17, n.1 e 2, p.149-168, 2013

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e ao estudo atual das doutrinas e das técnicas pedagógicas, bem como das diferentes espécies de instituições educativas” (BRASIL, 1938). De 1938 a 1945 o INEP foi dirigido por Lourenço Filho, tendo subsidiado a produção de importantes obras, inclusive A instrução e a república, de Primitivo Moacyr, em sete volumes, que na fala de Carvalho (2000, p. 919-920) foi, juntamente com A cultura brasileira, de Fernando Azevedo, “as principais ferramentas, senão as únicas, para todo o estudante ou pesquisador que trabalhasse com história da educação brasileira”. Das várias obras de História e Historiografia da Educação produzidas pelo INEP, podemos mencionar Subsídios para a história da educação brasileira, coleção em 11 volumes publicados entre 1942 e 1951 (VIDAL; FARIA FILHO, 2003, p. 45). Em 1944 é criada a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, e em 1952 a direção do Instituto é assumida por Anísio Teixeira. A consolidação das universidades no Brasil possibilitou o direcionamento dos estudos de História da Educação para centros de ensino superior que possuíam em seus quadros docentes que se voltavam para esta área, notadamente a Universidade de São Paulo – USP, que já tinha Fernando de Azevedo como seu grande interlocutor: A cultura brasileira teve sua escrita marcada pela dupla inserção de Fernando Azevedo. Professor universitário, lente de sociologia educacional, em 1942, e de sociologia, em 1943, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (USP), da qual foi também diretor, entre 1941 e 1943 (período de redação da obra), Azevedo fora reformador da instrução pública do Distrito Federal (1927-1930) e de São Paulo (1933), redator do Manifesto dos pioneiros da educação nova, carta monumento publicada em 1932 defendendo um modelo de educação nacional (a escola noiva), e presidente da Associação Brasileira de Educação, eleito em 1938 (VIDAL; FARIA FILHO, 2003, p. 52).

De fato, A cultura brasileira é referência ímpar para os estudos de história da educação, tendo subsidiado imensa produção na área. Antes mesmo da constituição de cursos de pós-graduação, entre 1938 e 1969, surgiram vários trabalhos importantes na USP, mas também no interior do Estado de São Paulo, nos então Institutos Isolados de Ensino Superior, que em 1976 formaram a UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”: Um outro fator que me parece relevante no Estado de São Paulo para o aumento da produção bibliográfica na área da educação, inclusive da produção historiográfica, foi a interiorização do ensino superior, ou seja a criação dos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo, a partir do final dos anos 50, no governo de Jânio Quadros. Além dos tradicionais cursos de Pedagogia da USP e da PUC, instalaram-se outros nas FFCL de Araraquara, Marília, Rio Claro, São José do Rio

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Notas preliminares sobre historiografia da educação sexual brasileira: apontamentos de uma cronologia descritiva. 1) Atitudes e comportamentos sexuais no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII

Preto e Franca, constituindo-se, assim, centros de ensino e pesquisa na área de Educação, os quais, apesar das condições incipientes da época, puderam contribuir para a formação do grupo de pesquisadores que começava a se constituir a partir da antiga secção de Pedagogia da FFCL da USP e para dar maior densidade aos trabalhos que começavam a ser produzidos. No âmbito da História da Educação, dois nomes pioneiros merecem especial destaque: o de Laerte Ramos de Carvalho e o de Roque Spencer Maciel de Barros (TANURI, 1998, p. 144).

Vidal e Faria Filho (2003, p. 55-56) citam nominalmente o núcleo inicial de pesquisadores com relevantes trabalhos em História da Educação: o já citado Roque Spencer Maciel de Barros e sua A ilustração brasileira, de 1959; Casemiro dos Reis Filho e o Índice básico da legislação do ensino paulista, de 1963; Jorge Nagle e Educação e sociedade no Brasil, de 1966; Heládio César Gonçalves Antunha e sua obra A reforma de 1920 da instrução pública no Estado de São Paulo, de 1967; Maria de Lourdes Mariotto Haidar e O ensino secundário no Império, de 1971; e Leonor Tanuri e sua Escola Normal no Estado de São Paulo, de Leonor Tanuri. No final da década de 1960 são criados os primeiros programas de pós-graduação em educação, o da PUC-Rio em 1965 e da PUC-São Paulo em 1969, seguidos pelo da USP, em 1971 e da UFRJ em 1972, que criaram novos espaços para o ensino e a pesquisa em História e Historiografia da Educação. Os programas de pós-graduação, segundo Warde (1984, p. 2), não nasceram com uma tradição de estudos historiográficos já constituída. Muito ao contrário, esses programas nasceram ou dentro da tradição de estudos filosóficos que marcavam uma linha de investigação das idéias filosóficas no âmbito da educação e de proposição de modelos pedagógicos, ou nasceram com a marca da tendência tecnicista e economicista que vinha influindo o pensamento pedagógico brasileiro. O Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo (USP) e o da Pontifícia Universidade Católica (PUC), até mais ou menos 1978, são exemplos da primeira vertente; o da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), exemplo da segunda.

Dentre as características que podemos levantar atualmente para os programas de pós-graduação em educação existentes no Brasil, Warde (1984, p. 5) afirma que ainda predomina, nos trabalhos examinados, certa tendência de se caminhar pelas fendas já abertas pela historiografia da educação, quando muito acrescentando novos dados, mais do que vasculhando as muitas zonas de sombra nas quais se encontra a história da educação brasileira. [...] boa parte dos trabalhos não são de efetivo interesse na investigação histórica, na efetiva preocupação de historicizar a educação como objeto de análise.

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Notas preliminares sobre historiografia da educação sexual brasileira: apontamentos de uma cronologia descritiva. 1) Atitudes e comportamentos sexuais no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII

Ou seja, mesmo considerando a longa trajetória desde os trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico do Brasileiro, no século XIX, não conseguimos ainda a constituição de uma Historiografia da Educação Brasileira relevante, contínua e sistematizada. Continuando, Warde (op. cit., p. 6) diz que

cultura sexual brasileira, que é nossa proposta para este artigo e para os demais a serem publicados em sequência.

na maioria dos estudos historiográficos, ainda é o Estado a grande personagem do palco educacional. O que ele fez ou o que deixou de fazer, o que cumpriu ou deixou de cumprir, o que absorveu das demandas de setores sociais e o que deixou de absorver são ainda as grandes questões vistas nesses estudos.

Questões ligadas à sexualidade e que contribuíram para a constituição de um conhecimento sexual no Brasil têm sido objeto de estudo e pesquisa das ciências humanas em geral, particularmente da educação, da antropologia, da psicologia e seus afins, da sociologia, da história e das ciências médicas. A institucionalização do conhecimento sexual no Brasil ocorreu a partir do final do século XIX e principalmente nas primeiras décadas do século XX, quando médicos e, posteriormente educadores, elaboraram, desenvolveram ou se apropriaram de teorias e idéias que foram consideradas científicas e capazes de dar sustentação àquelas instituições que necessitavam de um discurso oficial para atingir seus objetivos de fazer ciência, propor ações educacionais ou práticas pedagógicas e resolver problemas de saúde pública, em alguns casos para justificar ideologias e exercer o poder. É a partir deste período que questões ligadas à sexualidade começaram a ter lugar importante no discurso médico-educacional. Alguns estudos sobre este momento histórico foram realizados, como o artigo de Vidal (1998), a tese de doutorado de Besse (1983), e mais recentemente os trabalhos de Reis e Ribeiro (2001, 2002, 2004, 2005) e Ribeiro e Reis (2003), mas não temos uma historiografia da educação sexual no Brasil abrangente e aprofundada, como explicam Nunes e Silva (1998, p. 172):

E Nagle (1984), ao descrever os problemas atuais dos estudos historiográficos em educação, conclui que há, no Brasil, uma falta de tradição destes estudos entre nós e dificuldade em selecionar material de pesquisa. Ele explica que os estudos sobre história da educação brasileira inicialmente foram de natureza basicamente descritiva. Com essa orientação encontram-se os relatos sobre a situação então presente, ou os relatórios dos ministérios, das câmaras, além daqueles poucos estudos realizados por intelectuais não diretamente ligados ao setor público. No momento seguinte, a ênfase foi dada à análise da história das idéias educacionais, especialmente a partir da discussão do republicanismo no Brasil (NAGLE, 1984, p. 28).

Estas observações são importantes porque nos levam a tentar compreender porque a historiografia da educação brasileira ainda é um tanto restrita e refratária a inovações. Aliás, talvez até possamos estender esta característica à área da Educação como um todo, que não tem facilitado a inserção de novos campos nos Programas de Pós-Graduação em Educação. Neste contexto, inserimos a Educação Sexual enquanto campo específico do saber educacional que, contraditoriamente, tanto tem se fortalecido e consolidado como campo de investigação nas universidades brasileiras (Bedin, 2010) quanto tem sido discriminado e até evitado em várias tentativas de implementação nas escolas e como disciplina curricular nos cursos de graduação de Pedagogia e nas Licenciaturas (Leão, 2009). Mas a Educação Sexual tem uma história que, no Brasil, reconhece sua institucionalização a partir das primeiras décadas do século XX (Ribeiro, 2009) e tem em José de Albuquerque o seu pioneiro mais expoente que, em 1934, já publicava seu livro Educação Sexual. Para compreendermos este processo de institucionalização é importante fazermos um passeio até a Colônia e estudarmos a constituição da 154

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2. Sobre a constituição do saber sexual

(há) necessidade de estudos que resgatem algumas perspectivas sobre a história da educação sexual e sobre as tentativas históricas de institucionalizá-la. (...) A educação sexual no Brasil não conta com uma historiografia bem explicitada.

Se considerarmos que a educação sexual abrange toda educação recebida pelo indivíduo desde o nascimento referente à aquisição de concepções, valores e normas sexuais, inicialmente na família, posteriormente na comunidade, com seu grupo social e religioso; e que esta educação sexual é contínua, indiscriminada e decorrente dos processos culturais, influenciando a manifestação de comportamentos e atitudes sexuais, podemos dizer que desde a Colônia havia uma educação sexual no Brasil. De lá até nossos dias temos quinhentos anos de história, mas a história da educação sexual carece de estudos que resgatem sua especificidade, abrangência e importância. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.149-168, 2013

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Notas preliminares sobre historiografia da educação sexual brasileira: apontamentos de uma cronologia descritiva. 1) Atitudes e comportamentos sexuais no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII

Estudar as formas com que se lidava e como se concebia atitudes e comportamentos sexuais é essencial, portanto, para se entender a constituição do conhecimento sexual no Brasil, a institucionalização do saber médico e educacional para questões sexuais e a difusão de idéias que influenciaram conceitos, comportamentos e atitudes por gerações. Em seu cotidiano o indivíduo vai alicerçando o seu modis vivendi (que inclui concepções, atitudes e práticas sexuais) a partir da educação recebida desde o nascimento. Parker (1991) fala em uma cultura sexual brasileira cheia de contradições, fundamentada historicamente em uma ordem social patriarcal e dominada pela Igreja Católica, em que permissividade e proibição, práticas sexuais e culpa fazem parte do contexto sexual brasileiro desde a Colônia. Há, portanto, já na Colônia, um conhecimento sexual popular, aquele conhecimento que homens, mulheres, jovens, famílias tinham acerca de questões envolvendo atitudes e comportamentos sexuais em sua vida cotidiana, derivado de sua própria observação e experiência e da interpretação que faziam do saber religioso. As práticas e atitudes sexuais de então atendiam mais as necessidades dos habitantes do que a ordem pregada pela Igreja. Vamos, então, refletir sobre as concepções e práticas sexuais da Colônia, particularmente nos séculos XVI e XVII, período em que as visitações do Santo Ofício da Inquisição, indo além do combate e perseguição ao judaísmo,visaram descobrir e punir delitos e crimes sexuais. A documentação produzida pelos padres inquisidores pode ser considerada como os primeiros documentos oficialmente registrados sobre educação sexual no Brasil.

De fato, para um bando de brancos católicos educados sob a égide da ocultação da nudez, em que o pecado e a culpa faziam parte de seu imaginário e que ouvia dos padres que o corpo era o templo do demônio, índias nuas com certeza constituíram objeto de extrema surpresa. Este fascínio inicial precisava ser justificado e nada melhor do que a comparação com o Éden e a nudez de Adão e Eva. Como eles, também os índios eram inocentes em sua nudez. Mas Caminha e Cabral foram embora, e com eles a inocência das índias. Na medida em que chegavam os primeiros portugueses, as relações se estreitavam com algumas tribos, com outras hostilidades resultavam em guerra. Mas o português ia se instalando do litoral para o interior, fundando vilas, indo atrás do ouro e do apresamento de índios. Alianças são feitas e a falta de brancas européias levou os primeiros colonizadores a tomarem índias por mulheres. A nudez dos índios e índias e a relação sexual livre de interditos e impedimentos assustavam os padres. Os jesuítas tinham verdadeira aversão à nudez, a mesma nudez que era corrente e natural na Idade Média a ponto de até os santos serem retratados nus (USSEL, 1981). A índia não via o ato sexual com o pudor da mulher européia e isto era estímulo para os portugueses. De inocente ela não tinha nada, prevalecia à visão de propensa aos deleites sexuais, já que indistintamente se entregava com a maior naturalidade. Os jesuítas não aprovavam essa união indiscriminada e levantavam a voz contra práticas sexuais tão contrárias aos princípios da Igreja Católica, entre eles o Padre Manoel de Nóbrega. Vainfas (1997a, p. 232-233) descreve que

3. A Colônia dos jesuítas Quando os portugueses aqui aportaram em 1500 e se depararam com o nativo habitante da terra recém descoberta, chamou-lhes atenção à nudez das índias, que raspavam os pelos púbicos deixando a mostra os detalhes vaginais, detalhes estes que foram parar na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel e que constituíram a primeira impressão sexual que um europeu teve de nossos liberais costumes: (...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha... e certo era tão bem feita, e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (CAMINHA, 1939, p. 6).

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aos olhos dos jesuítas, sempre queixosos das dificuldades da catequese, do clima, e da falta de recursos, o frenesi sexual campeava, antes de tudo, entre os índios: sempre nus, poligâmicos, incestuosos. (...) em relação aos primeiros colonos... quase todos... não satisfeitos em fazer suas escravas de mancebas, lançavam-se às livres, pedindo-as aos índios por mulheres. E se os padres ousassem admoestá-los para que se casassem com uma só índia, como Deus mandava, eram ofendidos, ameaçados e até perseguidos pelos escandalosos colonos.

Da mesma forma, Freyre (1978, p.93) assinala os “riscos” sexuais que corriam os europeus que no Brasil aportassem: O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne... As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho.

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Temos, então, na Colônia, duas posições antagônicas em relação às práticas sexuais, uma relacionada à posição dos primeiros povoadores e outra a que os jesuítas queriam impor. O português recém-chegado seguia a natureza para a liberação do desejo: se havia mulheres disponíveis, porque não fazer sexo? O colono encontrava-se no Paraíso, no meio de índias que se apresentavam tais como Eva em sua inocência e deixava que aflorasse o desejo para que fosse saciado com tantos corpos quanto se apresentassem. A cultura sexual indígena, livre da culpa cristã e permitindo a liberação da energia sexual do branco, pode ser considerada a primeira condição para o favorecimento das práticas sexuais na Colônia. Terminado o período pré-colonizador, a agro-manufatura do açúcar e os engenhos deram um novo contorno à sociedade brasileira em formação, exigindo a vinda de mais colonos portugueses e de numerosos escravos africanos, ao mesmo tempo em que escasseavam os nativos do litoral. A população do Brasil aumentava e o objeto sexual do branco foi ampliado, sendo que negros e negras seriam submetidos aos desejos de seu senhor. E a educação sexual,passada informal e naturalmente, sem ninguém pensar que fosse de fato uma educação sexual, de livre que era, ia muito lentamente absorvendo o sentido de pecado que lhe atribui a Igreja Católica. A pregação dos padres não conseguia atingir o povo, que continuou licenciosamente ativo por todo o período colonial, não obstante muitos delitos sexuais terem sido julgadospelos tribunais do Santo Ofício durante a Inquisição, que, em Portugal começou em 1536 e se estendeu até à Colônia, porém aqui chegando após 1590. Portugal já era escravocrata quando aqui aportou. Os índios foram seus primeiros apresamentos. Índios com costumes sexuais livres do pecado cristão que estimulavam, por esta condição, o apetite sexual dos primeiros colonos. O africano que aqui aportava igualmente não considerava o sexo como pecado ou transgressão moral. Soma-se a isto o desejo sexual sem contenção do português e temos o espaço propício para a erotização do período colonial. Gilberto Freyre, embora opine a partir de seus valores e pareça sugerir que o comportamento sexual vigente na Colônia fosse corrompido e beirasse a perversão, chamando de depravação o que considera excesso de sensualidade, faz uma análise que pode ser a segunda das condições que tornaram favoráveis as práticas sexuais de então: Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos pro-

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prietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias. (...) Dentro de semelhante atmosfera moral, criada pelo interesse econômico dos senhores, como esperar que a escravidão ...atuasse senão no sentido da dissolução, da libidinagem, da luxúria? O que se queria era que os ventres das mulheres gerassem. Que as negras produzissem muleques (FREYRE, 1978.p. 316-317).

É preciso atentar, porém, para as diferentes formas de liberdade sexual existentes. Para a elite dominante da sociedade colonial agro-açucareira, a tendência pró-sexual era unilateral. O senhor de engenho, dono da terra, dos escravos, da mulher, das filhas, dos filhos, dos empregados, ocupava o topo de uma hierarquia em que somente os homens tinham voz e razão. As mulheres, brancas ou negras, eram submissas e a elas era negado qualquer direito. As primeiras seriam mães de seus herdeiros, estas últimas objeto de desejo. A autoridade sem limite do senhor do engenho servia de modelo para seus subordinados e até para as próprias crianças que lentamente formavam seu próprio caráter: Uma espécie de sadismo do branco e masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio. O Furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo... Isto quanto ao sadismo de homem para mulher  – não raro precedido pelo de senhor para muleque. Através da submissão domuleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado de leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico (FREYRE, 1978, p. 50).

Cercado de escravos, vítima do autoritarismo do pai, o menino branco transferia a opressão a que era submetido para o escravo companheiro, que sofria todo tipo de maus tratos. Adulto, tinha gosto em mandar bater, em torturar, em violentar. Freyre (1978, p. 51) fala de como este sadismo se manifestou tantas vezes nesse menino ou adolescente quando homem feito, no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho.

Voltando às mulheres, elas se casavam cedo, em torno de 12 anos, eram economicamente dependentes mas administravam a casa e eram responsáveis pelo que as escravas produziam, como roupas, geléias, licores, sabão e outros produtos domésticos. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.149-168, 2013

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A quase reclusão a que eram submetidas, porém, não impediu que várias mulheres fossem julgadas pelo Santo Ofício, acusadas de delitos sexuais da mesma forma que muitos homens, como mencionado anteriormente. Temos muitos exemplos de comportamento feminino que contrariavam o papel submisso atribuído à mulher branca da elite. A mulher do povo – branca em minoria, mameluca e negra – tinha maior independência e não limitava sua via à casa-grande e ao abrigo do marido. Como era, então, a vida sexual destes homens e mulheres da América portuguesa no final do século XVI e começo do século XVII? Sobre a mulher branca, Araújo (1997, p. 58-62) fala o seguinte: Bem que os homens do reino lusitano desconfiavam que suas mulheres não se conformavam, como eles tanto queriam, em aprisionar a sexualidade a ponto de só manifestá-la, com o recato possível, no leito conjugal. Os homens tinham vida mais solta, o que era admitido pela Igreja e pelo Estado, mas o paradoxo é evidente... Ora, se “corrompiam” as mulheres dos outros, como não desconfiar da própria mulher?

Com desconfiança e artifícios para impedira vida sexual das suas mulheres, o macho branco, porém, tomava para si a mulher do outro que quisesse. As mulheres, por sua vez, corriam risco, mas o adultério feminino não era raro na Colônia. Também as freiras davam vazão ao desejo sexual, e também os padres que, com trânsito livre nos conventos, secretamente chegavam às clausuras para encontros com as freiras. Araújo (1997, p. 68-73) bem explica estes fatos: Desenvoltas e muito bem informadas sobre o que se passava fora do convento, as freiras mantinham contato permanente e íntimo com o mundo externo. Demasiado íntimo, aliás, pois uma legião de homens, apropriadamente chamados de “freiráticos”, cultivava naquela época a vaidade de seduzir freiras. O costume vinha de Portugal, e a acreditar no português frei Lucas de Santa Catarina... elas é que seduziam os homens. Era um jogo com regras bem definidas e rebuscada etiqueta, além de caro... Isso porque, além de cumular a amada com presentes, havia que contribuir para a montagem de peças representadas no convento e para a realização das sucessivas festas religiosas no correr do ano.

Sobre a mulher índia, vale citar Vainfas (1997d, p. 116), que diz que as índias eram as “negras da terra”, nuas e lânguidas, futuras mães de Ramalhos e Caramurus, todas a desafiar, com seus parceiros lascivos, a paciência e o rigorismo dos jesuítas.

Sobre as negras, o mesmo Vainfas (1997d, p. 116) escreve que 160

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as crioulas, especialmente as da casa-grande, amantes dos sinhôs e sinhozinhos ... eram também as vítimas prediletas de sinhás tirânicas que não hesitavam em suplicá-las por ciúme ou simples inveja de “seus belos dentes ou rijos peitos”. E a predominar sobre todas em matéria de paixão e ardor, lá estava a mulata, exemplo recorrente de beleza e sedução no imaginário masculino relacionado à terra brasílica.

A conclusão que se tira, então, é que durante os séculos XVI e XVII, a sexualidade no Brasil manifestava-se de forma ambivalente. De um lado, a ótica masculina de liberdade para si e contenção para a mulher – a sua mulher, já que a mulher dos outros poderia ser sempre objeto de sua conquista. De outro, sob a ótica da mulher, três situações distintas: a branca, ainda em pequeno número, pronta para correr riscos para não deixar murchar seu desejo sexual pulsante e transgressor; a índia, sexualmente livre e pronta para amar inconteste o admirado branco; e a negra, oprimida e escrava, porém igualmente erótica e sensual. A Colônia dos séculos XVI e XVII era altamente erótica e nela as práticas sexuais se manifestavam das mais variadas formas, não obstante as diferenças de etnia e cultura que aqui encontramos. É o que mostra a farta documentação do Santo Ofício da Inquisição (Vainfas, 1997c; Mott, 1988), tanto nos autos dos inquéritos quanto em seus manuais de normas e regras. Neles se encontra rico material sobre a vida sexual e de relação na Colônia a partir das descrições dos delitos da carne e das normas que pretendiam controlar e conter os comportamentos e atitudes sexuais.

4. O sexo nos manuais da Inquisição A Inquisição, que inicialmente pretendia investigar os cristãos-novos da Península Ibérica, após o Concílio de Trento – convocado para fazer frente à expansão do protestantismo Pós-Reforma – amplia seu leque de ações com poderes para investigar qualquer denúncia que implicasse no não cumprimento das leis e normas da Igreja Católica relacionadas à vida cotidiana da população. Ocultação da nudez e contenção da vida sexual faziam parte da moralidade pregada pelos jesuítas, que não admitiam os vícios disseminados no Brasil, como explica VAINFAS (1997b, p. 48): Ameríndios luxuriosos, colonos insaciáveis, negros lascivos, mulatas desinquietas, senhores desregrados, sinhás enciumadas, o pecado estava emtodas as gentes e lugares. A todos, sem exceção, cabia portanto, intimidar, ameaçar, castigar  – foi o que pensaram os seguidores de Trento no ultramar português. Atendendo a tantas lamúrias e apelos, já no primeiro século nossos bispos enviariam visitadores a

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rastrear os pecados de todos e a puni-los com o rigor da lei eclesiástica. Não tardaria, ainda, paraque o já célebre Santo Ofício lisboeta, enviasse também ele o seu próprio visitador, acrescentando à intimidação jesuítica o pânico da fogueira inquisitorial.

Palco de extrema liberdade erótica e libidinosa, o Brasil precisava se submeter à orientação sexual e moral eclesiástica. A punição para os pecadores, ainda que nem sempre rigorosa, implicava em ter sua vida exposta ao domínio público. Os transgressores, acusados de crimes ou delitos sexuais, se tornariam personagens reais de uma história de horror e intolerância em que sua intimidade era devassada enquanto corria o processo, o julgamento e a condenação. A lista dos delitos sexuais pode ser vista nas célebres Confissões da Bahia, estudadas por Vainfas (1977b, 1977c), e em documentos variados sobre a Inquisição no Brasil, mencionados por Mott (1988): sodomia (pecado nefando da sodomia), bigamia, crime de solicitação (o padre utilizar-se da confissão para obter favores sexuais), masturbação (chamada de punheta), fornicação, sexo oral. Tão numerosos casos julgados pelo Santo Ofício, nem todos condenados, porém,nos dão a idéia de quão erótica era à sociedade brasileira na Colônia, aliás, erótica, autoritariamente hierarquizada, escravocrata e machista. Das visitações do Santo Ofício, a partir de 1591, resultaram documentos vários denominados denunciações e confissões, todos com descrições minuciosas dos crimes cometidos, que nos dão a idéia real das práticas, atitudes e comportamentos sexuais no cotidiano da Colônia. As Confissões (1935) e As Denunciações da Bahia (1925), As Confissões (Mello, 1970) e As Denunciações de Pernambuco (1929), assim como regimentos, autos, livros de visitação e documentos dispersos do Pará, Maranhão e Sergipe, além de registros sobre atitudes e comportamentos sexuais, constituem os primeiros documentos de educação sexual do Brasil. Neles percebe-se que as relações extraconjugais eram largamente praticadas. Separações e casamentos ocorriam sucessivamente sem a existência do estado de viuvez exigido pela Igreja. Relações anais, tanto entre dois homens como entre um homem e uma mulher, eram comuns na Colônia. Até o homoerotismo feminino fazia parte do comportamento sexual da mulher. Destas práticas, havia desde as que não eram consideradas como heresia, sendo toleradas e não sofrendo penas, até as mais perseguidas pela Igreja, como a sodomia. Considerada heresia e também denominada pecado nefando, englobava não só a relação sexual anal, mas também o sexo oral, a masturbação e até relações entre mulheres, embora a gravidade maior recaísse nos homens homófilos que praticavam o intercurso sexual contrário à “ordem natural”. 162

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Discutia-se e se codificava se o ato denunciado era erro, pecado ou crime; o grau da punição – por exemplo, morte na fogueira, castração, confisco de bens, degredo; e a extensão do ato – se havia derramamento de sêmen, se havia apenas carícias nos genitais, se apenas eram homens com jeito e trajes femininos, se era relação entre mulheres. Verificava-se se o crime ou pecado não consistia sodomia, mas molície (menos grave) – nome que se davaa enorme lista de atos sexuais que excluíam penetração anal ou vaginal, como masturbação, sexo oral e desvios sexuais. Os termos utilizados e a descrição dos atos instruíam o inquisidor. Se a penetração anal resultava em ejaculação, entre homens era denominada sodomia perfeita, entre um homem e uma mulher, sodomia imperfeita. O ânus era chamado de vaso posterior ou vaso preposterum, a vagina era o vaso natural ou vaso dianteiro. Sodomia foeminarum era a relação entre mulheres. O detalhamento era necessário para a distinção entre as práticas sexuais que a Inquisição considerava fora de sua alçada ou de menos gravidade. Vainfas (1997b, p. 199) explica que os pecados mortais da carne, os sonhos eróticos, o mero pensar em qualquer indecência, nada disso interessava aos inquisidores enquanto simples manifestações da fragilidade do corpo, da tentação fugaz do demônio e da corrupção geral da criatura humana resultante da primeira e irreversível queda. (...) não eram os pecados da carne ou os crimes morais que despertavam a atenção inquisitorial. Ao Santo Ofício interessavam ... os erros de doutrina passíveis de serem captados não apenas em afirmações ou idéias contestatórias à verdade oficial e divina, mas em atitudes ou comportamentos que, por sua obstinação desafiadora àquela verdade, implicavam suspeita de heresia, presunção de que o indivíduo pecava e insistia em fazê-lo, recusando-se a qualquer emenda e urdindo maneiras de burlar a disciplina normatizadora da Igreja. Interessavam-lhe, enfim, ainda que no campo das moralidades e do erotismo, os indivíduos que, por livre arbítrio – e não por eventual tentação demoníaca – escolhiam doutrinas ou modos de viver francamente hostis aos preceitos do catolicismo.

Esta distinção é importante para que não fique a idéia de que a Inquisição buscava punir os crimes sexuais apenas por serem sexuais. Era preciso que o crime sexual estivesse na esfera da heresia! Pouquíssimas mulheres praticantes da sodomia foeminarum foram condenadas na Colônia. O adultério e o concubinato não eram julgados pelo Santo Ofício, mas a bigamia, sim. Porém, independentemente de qual categoria pertencia o crime e de qual poder o julgaria – fosse o Santo Ofício, fosse a justiça eclesiástica, fosse a justiça civil – é essencial destacar que as práticas sexuais tinham especial atenção por parte Doxa, v.17, n.1 e 2, p.149-168, 2013

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das autoridades. Se havia essa atenção, além do controle e do regramento da vida sexual, tudo mostrado na minuciosa descrição dos processados, nos remetemos a uma simples e única conclusão: havia muito sexo na Colônia em confronto com os ditames da Igreja Católica.

ignorar seu discurso sexual – ainda que anti-sexual – e a exacerbada importância que dava ao sexo – ainda que no sentido de negá-lo. Ao habitante da Colônia cabia duas posições: acatar a normatização ou transgredi-la. Foi exatamente essa transgressão, fruto da rebeldia e da não aceitação do controle sexual, que possibilitou que chegasse até nossos dias o conhecimento da vida sexual e de relação vigente nos primeiros tempos de Brasil.

5. Considerações finais Este trabalho procurou demonstrar que podemos considerar que o primeiro momento histórico da educação sexual no Brasil ocorreu no período colonial (Ribeiro, 2004). As práticas sexuais eram variadas e livres. Não obstante autores como Gilberto Freyre (1978) e Capistrano de Abreu (1976) terem destacado a sensualidade das índias e negras como provocadoras da libido portuguesa, a leitura dos documentos da Inquisição nos remete a uma vida sexual livre também da mulher branca que não pertencia à elite econômica e ocupava um espaço intermediário entre as camadas mais altas e os escravos – filhas e esposas de artesãos, pequenos comerciantes elavradores, e também brancas sem ocupação recém chegadas de Portugal e mestiças. Contrapondo-se a esta liberdade, primeiramente pregaram os jesuítas, e em seguida, o Santo Ofício. Eram pregações que objetivavam condenar, ordenar e controlar as práticas sexuais e fundamentavam-se na doutrina da Igreja por meio de bulas papais e regimentos do Santo Ofício, que por sua vez, influenciavam o conteúdo das provisões, determinações régias, as famosas ordenações reais – Afonsinas, de 1446, Manuelinas, de 1512 e Filipinas, de 1603, com explicitação dos crimes sexuais – e outros documentos. Havia também os chamados Penitenciais, manuais de confessores em que se relacionava os pecados e as penitências aplicadas à transgressão de cada um deles. Finalmente, com riqueza nos detalhes, temos osautos do Santo Ofício, retratando todo o processo do acusado, constituindo descrição minuciosa dos costumes sexuais da Colônia. Considerando a utilização destes documentos por parte da Igreja para nortear as atitudes e comportamentos que desejava para os habitantes da terra brasileira e sendo estes, em grande número e com explícito conteúdo normatizador de práticas sexuais, podemos aceitá-los como a primeira tentativa de educação sexual que se tem registro na História do Brasil. Podemos não concordar com a posição da Igreja dos séculos XVI e XVII e até achar que seu objetivo era impor a moral católica vigente. Porém não podemos 164

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RESUMO

ABSTRACT

O objetivo deste trabalho é analisar o “Código do Bom-Tom ou regras da civilidade de bem viver no século XIX”, de J. I. Roquette, publicado em 1845. Com o objetivo de implantar e desenvolver um grau de civilidade no Império brasileiro, a circulação deste tipo de manual trazido da França foi importante para a época e constitui fonte documental primária para o estudo das atitudes e comportamentos ligados ao sexo, à afetividade e aos relacionamentos.

The objective of this paper is to analyze the “Código do Bom-Tom ou regras da civilidade de bem viver no século XIX” (Code of good manners or civility rules of good living in the nineteenth century) written by J. I. Roquette in 1845. Aiming to develop and implement a degree of civility in the Brazilian Empire, the circulation of this book brought from France was important and constitutes a document for the study of attitudes and behavior linked to sex, affection and relationships.

PALAVRAS CHAVE

KEYWORDS

História e historiografia da Sexualidade, Império Brasileiro, Manuais de Conduta, Civilidade.

History and Historiography of Sexuality, Brazilian Empire, Manuals of Conduct, Civility.

Foi se o tempo em que a história era escrita a partir de documentos oficiais somente. Foi se o tempo também que a história se restringia aos grandes heróis e suas guerras. Em 1929, a publicação da Revista Annales d’histoire économique et sociale inicia uma transformação completa dos estudos históricos. Uma revolução, no entender de Burke (2003).

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Universidade Federal do Espírito Santo-UFES-Vitória- ES- Brasil- 29075-910.

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A escola dos Annales, como ficou conhecida, criticou a temática dos grandes nomes, a história-relato, a história-batalha. Pôs em xeque a exclusividade dos documentos oficiais na escrita da história. Mas não parou por ai. Questionando temas e fontes questionaram também a intenção destas e a intenção do historiador na escrita do passado. O documento oficial não é neutro. O historiador não é neutro. Não pode ser neutra a história que este escreve. Os Annales foram o marco inicial de uma revolução historiográfica em muitos sentidos. A historiografia entendida como metodologia para estudo das fontes mudou. A verificação da autenticidade do documento, preocupação cara aos historiadores metódicos, foi substituída pela rigorosa crítica interna e externa do documento. Não basta ter o documento em mãos, mas saber quem escreveu, para quê e em que circunstância. Mudada a forma de tratamento das fontes muda-se também a historiografia entendida como escrita da história. Mas a escrita da história não mudou somente a partir do novo tratamento das fontes, mas também a partir dos novos objetos. A história metódica elegia os grandes feitos e a história política como a história em si. A escola dos Annales expandiu objetos. A história econômica e a história social passavam a ser objetos da história como o próprio nome da Revista sugeria. Muda-se por fim a historiografia enquanto teoria. Antes bastava a transcrição dos documentos de forma a criar uma história cronológica e verdadeira. Com os Annales a problematização da história passa a ser método e teoria. A história torna-se história-problema As lições dos Annales não foram esquecidas. Muito pelo contrário expandiram-se. Na França costuma-se nomear uma segunda e terceira geração dos Annales. Mas não se restringiu a França. A historiografia revolucionou-se no mundo inteiro. Quais os objetos da história? Robinson (apud BURKE, 1992, p. 17) explica: “tudo que o homem fez ou pensou desde seu primeiro aparecimento sobre a terra.” E as fontes? “qualquer vestígio da ação do homem” (VIEIRA, 1989, p. 15). A explosão dos estudos históricos no século XX confirma estes pressupostos. Novos objetos foram sendo vislumbrados. Para se acercar destes novos objetos novas fontes foram buscadas. Em certa medida o pesquisador tem que inventar suas fontes de acordo com seu objeto. Mais ainda, muitas vezes precisa reinventar suas fontes, ou seja, ler um determinado documento com outro olhar. A sexualidade seguiu este caminho. Segundo Foucault (1988) a definição mesmo de sexualidade é algo recente, do século XIX. Mais recente ainda é a história da sexualidade, que tem como ponto o próprio Foucault na obra História da Sexualidade de 1976.

A história da sexualidade no Brasil é ainda mais recente. Poderíamos mesmo dizer que se encontra engatinhando. Os pesquisadores vem ano após ano expandindo os questionamentos relacionados a este objeto de estudo, com vieses distintos e buscando alternativas de fontes capazes de responder a estas problematizações. Pensando nos marcos cronológicos usuais da Historiografia Brasileira, para a colônia uma fonte bastante rica são os autos da inquisição, muito embora não sejam os únicos. Cartas jesuíticas, literatura, relatos de viajantes, memórias e até canções já foram ou estão sendo utilizadas. A partir da primeira República o discurso higienista passa a ser hegemônico no que diz respeito ao morar, vestir-se, portar-se e com isto torna-se fonte privilegiada do estudo da sexualidade. Podemos encontra-lo “in natura” nas monografias da academia de medicina ou ainda em discursos oficiais, em periódicos de divulgação, em livros entre outros. Mas há um período em que o discurso médico não tinha ainda se tornado hegemônico e a inquisição deixara de atuar no Brasil. Este período que vai do final do século XVIII até o último quartel do século XIX e que compreende o final da Colônia e perpassa todo o Império carece destas fontes para o estudo da sexualidade. Existe, entretanto uma fonte extremamente rica para se compreender não só a sexualidade, mas também os costumes, a vida privada e a vida pública. De civilidade enfim. Trata-se dos códigos de conduta. Introduzidos no Brasil a partir da vinda da corte portuguesa estes códigos e tratados de conduta remontam ao século XVIII e em especial à França. A possibilidade do uso destes manuais de civilidade como fonte para o estudo da história da sexualidade está, portanto intimamente relacionada a sua introdução no Brasil. No início do século XIX, com a vinda para o Brasil da Corte Portuguesa fugida da Europa por causa das guerras napoleônicas, a cidade do Rio de Janeiro sofre diversas transformações. Capital do Reino, logo se fará sentir a proliferação da vida cultural junto à Corte com a construção de teatro, da Biblioteca Nacional e da Faculdade de Medicina. O cenário urbano começa a se transformar, principalmente com autilização da iluminação pública, possibilitando o trânsito também à noite pelas ruas. Não é difícil de imaginar o choque que se deu entre o Rio de Janeiro, cidade quase toda “negra”, e a corte. A corte e sua comitiva (fugitiva) eram compostas – além da família real – por comerciantes, artistas e naturalistas.

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Schwarcz (2002) diz que a população do Rio de Janeiro, à época, contava com aproximadamente 60 mil almas e a Corte se aproximava a 20 mil, ou seja, um terço da população da cidade. Essa “burocracia de arribação”, segundo Alencastro (2001), trouxe para o Brasil grande parte de seu aparato burocrático. Muitos vinham atrás da Corte e dos empregos e cargos por ela gerados. Funcionários públicos, padres, advogados e militares – mesmo após o término das guerras napoleônicas – vêm se juntar à Corte no Brasil. Karasch (2000) afirma que nos primeiros anos do século XIX, os cronistas não só ficavam fascinados com a beleza das paisagens naturais, como também pela enorme presença de negros (escravos ou não) que encontravam durante o percurso até o hotel e que se dirigiam ao viajante que aqui desembarcara. Ao sol do meio dia, quando poucos da pele clara se atreviam a sair, podia-se apreciar a paisagem das janelas e pensar que talvez se tivesse desembarcado na África. A presença da Corte na cidade do Rio de Janeiro lhe empresta uma fisionomia diferenciada do resto do país. Considerada centro de oportunidades torna-se atrativa, atraindo “gentes” de todas as regiões a procura de moradias e empregos, principalmente mineiros e fluminenses. (ALENCASTRO, 2000) Nesse período, início do século XIX, ainda é intenso o tráfico de negros, sendo o porto do Rio de Janeiro o maior ancoradouro de escravos da América. Apesar da maior utilização desse tipo de mão-de-obra ocorrer no campo, é notório a cada ano um investimento cada vez maior na escravidão urbana visando dar conta das demandas de serviços. Cada vez mais a cidade do Rio de Janeiro vai se transformando e assumindo novas feições. Alencastro (2000, p.35) comenta que:

Com a iluminação pública, também serão introduzidos, os relógios de algibeira, ou “cebolões”, marcando o tempo dos viventes do Império. Vendidos por ambulantes, por todas as partes impunham uma nova ordenação do tempo. Revistas para o público feminino dão o tom da moda européia. As lojas de roupas prontas anunciam, nos jornais, vestimentas para adultos e crianças. A Rua

do Ouvidor, famosa pelo seu comércio, aparece estampada nos jornais da época com propagandas da mais nova moda de Paris. As máquinas de costuras, modelo estadunidense, dão às mulheres livres e escravas maiores possibilidades de desenvolvimento do trabalho doméstico. O que podemos notar, pelos anúncios publicados nos jornais, é um forte afrancesamento, como aponta Alencastro (2000), por parte da elite brasileira. Construía-se, assim, uma sociedade à francesa, onde Paris era paradigma de civilidade para a sociedade escravista do Império. Porém, na verdade, o país precisava construir uma civilidade. Como? Por intermédio dos famosos Manuais de conduta ou aprendendo os códigos de condutas, símbolos da civilização que não tínhamos, ou que nos faltavam. Trazidos da França, escritos de forma didática e de fácil manuseio, os Manuais serão responsáveis, agora, pelo grau de civilização no espaço público. Como agir, como se portar frente às situações, tais como na Igreja, no Paço, no tratamento com as pessoas, nas Assembleias, nas situações sociais mais diversas. A cidade do Rio de Janeiro, que se transforma em Capital, com seus paradoxos raciais e “glamour” para inglês ver, tendo grande parte de suas “gentes” descalça, aprendendo a se portar à moda francesa e sua elite buscando a civilidade à mesa, com talheres, pratos e guardanapos, impondo regras cada vez mais “repressoras”, podemos ver aqui, os princípios da visão higienista que será hegemônica no final do século XIX e começo do XX. Reprimir é a palavra de ordem. Ser polido, não manifestar o mal-estar. Reprimir, principalmente os hábitos ligados à natureza. Reprimir a sexualidade. Regras de higiene, cada vez mais rigorosas, vêm se impondo. Logo haverá hora e lugar para manifestações da sexualidade. Resquício do animal no homem, este racional e civilizado, a sexualidade passa a ser somente tolerada, vigiada e regrada. Civilizar e reprimir. Civilizar é reprimir. O Código do Bom-tom ou Regras da Civilidade e de bem viver no século XIX foi escrito pelo cônego J. I. Roquette e publicado em Paris em 1845. Representando o papel de bom pai que sai de Portugal e vai para Paris educar seus dois filhos: Teófilo e Eugênia. Por ser Roquette cônego, podemos interpretar a sua obra como representações ligadas à Corte portuguesa e a necessidade de inserí-la no mundo das etiquetas e regras de civilidade. Teófilo e Eugênia representariam as diferenças entre o mundo de homens e mulheres. O esforço do cônego, travestido em pai, para convencer a Corte da necessidade dos códigos de conduta, foi sem precedentes. O objetivo do Manual é ensinar o ritual para que se torne natural.

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a Corte, as embaixadas estrangeiras, o comércio marítimo, as escalas contínuas de viajantes que cruzam o Atlântico Sul, a chegada de profissionais europeus, engendram no Rio de Janeiro um mercado de hábitos de consumo relativamente europeizado, num ultramar ainda pouco ocupado por essa ‘falsa Europa’ (a expressão de F. Braudel), pelas áreas de povoamento europeu mais tarde implantadas na Argentina, na África do Sul e na Austrália.

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É no exagero da norma e no sucesso do gênero literário dos Manuais que se pode perceber, não a etiqueta que se tem, mas a falta da mesma. Esses Manuais nos mostram os costumes praticados, nos dão pistas da vida cotidiana, das “gentes” do Império. Comedimento, regramento, moderação e dissimulação são algumas palavras que nos vêm à mente quando entramos em contato com o Código de Bom-tom. Um bom exemplo pode ser citado:

O moço que pede uma menina para casar deve mostrar-se por extremo obsequioso e recatado, parecer indiferente a todos os arranjos que as duas famílias devem fazer entre si sobre, dotes, arras, enxoval, etc.; não falar à sua futura esposa senão de seus divertimentos, do que lhe convirá escolher para o seu aposento, móveis, presente, etc.; evitando toda a familiaridade mal a propósito, chamando-lhe sempre ‘menina’ (mademoiselle) até que volte da igreja no dia do casamento, então lhe chamará ‘senhora’ (madame); deve acompanhá-la em todas as reuniões, onde se deve mostrar ser cavalheiro e servidor.

Se te divertides, não mostres senão uma alegria moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não o dês a conhecer; reprime os bocejos, o espirro, nunca te coces na cabeça, nem metas os dedos pelos cabelos, ainda menos no nariz. (ROQUETTE, 1997, p. 55)

O espaço de convívio social aos poucos vai se constituindo em espaço de simulacro. O importante são as aparências e o aparente equilíbrio de gestos e ações. Vários são os passos que se devem seguir. O não cumprimento das regras sofrerá a pena de ser considerado não civilizado ou sem educação. Enterros, batismos, casamentos, cumprimentos, tudo descrito detalhadamente, cada passo didaticamente. Um capítulo inteiro do manual de Roquette foi destinado aos modos de tratamento dentro dos diversos escalões do clero e da Corte, como forma de respeito e subordinação à ordem estabelecida. Eminência, Reverendíssimo Senhor, Ilustríssimo, Excelentíssimo Senhor, Senhoria, Senhor, são apenas alguns dos tratamentos apresentados pelo autor e a sua correta utilização no trato da vida social. Detalhando o comportamento de um cavalheiro em diversas situações, Roquette adverte quanto à relação com as más companhias. As boas companhias são aquelas que buscam ser agradáveis com os outros; que oferecem assento para as damas que se encontram em pé; que seguem as regras de civilidade. Caso esses códigos não sejam respeitados pelo sujeito, é preciso fugir dele, manter distância. É má companhia. Uma das tarefas consideradas mais difíceis de ser regrada, segundo o manual é o sentar-se à mesa. Por isso um número maior de advertências e ritos. Consequentemente, não molhar o pão no vinho, nem no molho, nem secar o prato com o pão. São apenas algumas das dezenas de regras apresentadas ao homem polido quando se põe à mesa: mudanças de pratos, garfos e facas, utilização de guardanapos ao invés da lamber os dedos sujos de molho são comportamentos esperados deste homem civilizado. É preciso treinar quando se está só para não passar vergonha em público:

Roquette (1997), preocupado com a educação de seus filhos – Teófilo e Eugênia, representantes da corte portuguesa – se põe a escrever o manual com vista a abri-los para a escola do mundo. Segundo ele não basta a educação formal oferecida pela escola para que se possa ser homem de bem, é necessário saber se portar em cada situação, local. E nas palavras de Roquette (1997, p. 59), apesar de se ter a melhor educação: Resta-vos, porém, ainda, meus filhos muito a aprender; uma nova escola vai abrir-se para vós, a escola do mundo, o trato dos homens, o comércio da sociedade; escola muitas vezes mais exigente e mais austera do que elas. A sociedade tem também sua gramática, que é necessário estudar, e os que desprezam suas regras, se não levam palmatoadas, ou outro qualquer castigo, são olhados como homens sem educação, e muitas vezes rejeitados de seu seio.

A boa criação ensina que o homem ao entrar numa igreja retire seu chapéu em respeito ao lugar onde se encontra, seja ele ou não pertencente àquela religião. Enquanto cavalheiro, é seu dever oferecer o lugar quando se encontrar mulher em pé, seja ela nova ou velha, bonita ou feia. Nos bailes deverá se por a mercê do senhorio e dançar com quem lhe for indicado. O homem polido, segundo Roquette (1997, p. 147) deve colocar-se: “à disposição da senhora da casa, que sem a menor dúvida, te pedirá que tires a dançar as abandonadas”. É grande a gratidão expressa por essas senhoras e não poupam elogios ao homem que com elas dançar. Nos casamentos, comenta Roquette (1997, p. 87): 174

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Se quereis, meus filhos, comer bem em público, adquiri o hábito de comer com o maior asseio e atenção possível quando estiverdes sós em vossa casa como se estivésseis no meio de muita gente, porque se não adquirirdes este hábito, tereis acanha-

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mento quando comerdes em público, e estareis sempre preocupados com a idéia de fazer desacertos e desazos (ROQUETTE, 1997, p.197).

Como convidar as pessoas, distribuir os talheres, arranjar a mesa, fazer as honras em um banquete, como devem se portar à mesa são regras destrinchadas no decorrer do livro, páginas e páginas consecutivas. Modelos de cartas e bilhetes também são apresentados e em que situações e momentos devem ser utilizados. Fechando o Código, Roquette (1997) apresenta dois capítulos específicos para a formação de Teófilo e Eugênia. Inicia explicando a necessidade de separá-los para que sejam dadas advertências específicas a cada um. Para Teófilo, detalha como deve se portar um homem de bem em relação aos seus bens e sua riqueza. Comedimento, cuidado, equilíbrio, são algumas qualidades que o homem de bem deve ter. Deve também cuidar de perto de seus negócios, não deixá-lo nas mãos de outrém. Quanto ao se vestir, aos negócios e à mobília deverá manter a mesma sobriedade: Ainda que tenhas muita riqueza, sê poupado e cuidadoso em teus vestidos; não por afetação, mas por hábito; andarás sempre asseado com menos despesas, farás a teu criado do quarto um bom presente quando lhe deres o fato usado (ROQUETTE, 1997, p. 360).

Sugere comedimento também no que se refere à utilização de perfumes e ornamentos: os homens não costumam trazer cheiros; uso mui acertado, que te observe escrupulosamente: pela mesma razão estimaria que não trouxesses anéis, cadeias de ouro, botões de diamantes, e outros enfeites que são próprios de senhoras, e ficam mal num homem. (ROQUETTE,1997, p.361)

Asseio com a barba, que deverá ser feita diariamente, também define o homem de bem. Banhos frios, logo ao amanhecer, sem utilizar muito tempo dentro da rotina semanal, são indicados Não percas o costume que adquiriste no colégio, de te lavares com água fria logo que te levantas da cama; toma todas as semanas um banho inteiro, ou pelo menos um banho aos pés; toma cuidado que a água não esteja muito quente, e gasta em toda está limpeza corporal o menos tempo possível; porque se é necessário ser asseado, não é permitido ser mole e afeminado (ROQUETTE, 1997, p. 363).

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Algumas articulações que aparecem no trecho acima merecem um comentário: a utilização da água fria em detrimento da quente, por ser considerada responsável por moleza e afeminação, bem como, o tempo excessivo que se gasta com os cuidados corporais. Ser limpo e asseado é preciso, mas sem com isso se tornar mole e afeminado. Quanto às advertências feitas à Eugênia, representante do mundo feminino, Roquette (1997, p. 378) pretende educar uma donzela recatada e comedida, como na frase que se segue: “A primeira coisa que te recomendo é o asseio constante”. Não ter medo da água fria, limpar os dentes diariamente, as orelhas e as unhas em dias de festas. Banho uma vez por mês, mas não muito demorado. Quanto aos perfumes, devem ser evitados, uma vez que servem para atrair os homens, o que faz com que a donzela caia na estima desse cavalheiro. São dotes de uma donzela ser sisuda, modesta e recatada. Mulheres que usam de cheiros e de cortejos são consideradas garridas ou namoradeiras. Também nunca devem andar descalças. Os sapatos devem ser feitos por bons sapateiros, a forma exata, sem sobrar ou faltar nada. As cores brancas – para bailes – e pretas – para as demais ocasiões. As mulheres não devem se poupar em relação aos calçados, pois o corpo se cobre se esconde com chalés, mas os pés estão sempre à vista. O estar calçado diferenciava a condição social do sujeito no Brasil. O escravo apresentava-se geralmente descalço. Os pés pequenos eram idealizados e bem calçados com seda quase que fetichizado por pais, maridos e amantes. Andando na rua logo seus sapatos se desmontavam. Era necessário comprar novos ou mandá-los ao sapateiro. Os calçados das iaiás coloniais eram coloridos: brancos, róseos e azuis. Depois da instauração do Império a moda verde-amarela – cores imperiais – é encontrada, modificando a moda da época. Os pés foram escondidos como parte íntima e sexual do corpo, mostrando só a pontinha, como aponta Freyre (2000, p. 543): E, sobretudo, idealizando os pés pequenos, bonitos e bem calçados das mulheres senhoris em objetos quase de culto ou de devoção da parte dos homens: culto social e sexual que assumiu aspectos francamente religioso, ao mesmo tempo que simbólico, na devoção pelos chamados ‘sapatos de nossa senhora.

Os pés foram deformados pela preocupação com os pés pequenos, que diferenciavam dos pés dos negros: largos e espalhados. Se o sapato não deverá ser apertado, muito menos deverá ser a roupa de se vestir. Para Roquette (1997, p. 387): “A roçagante túnica grega, o largo manto, o longo Doxa, v.17, n.1 e 2, p.169-181, 2013

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véu, parecem-me outros tantos emblemas do pudor que deve conduzir as donzelas e subtrair-se aos olhos curiosos e atrevidos do mundo”. Modéstia e honestidade são qualidades que se esperam de uma mulher bem educada. Como no trecho que se segue: “A câmara duma mulher honesta não deve trazer à memória esses templos pagãos cujos sacerdotes faziam notar as oferendas aos visitantes para que estes aumentassem o número delas” (ROQUETTE, 1997, p. 393). E o que se deve encontrar no quarto de uma donzela? Em lugar de todas essas futilidades, vejam-se em tua câmara teares de bordar, cestas de costura, lápis, pincéis e cavaletes, instrumentos de música, livros de piedade e de boa literatura; nem um só de novelas ai tenha lugar, porque tais livros pervertem o espírito e corrompem o coração; não serão demais o teu livro de missa, o teu ripanço e a Imitação de Cristo (ROQUETTE, 1997, p. 394).

Cultivar flores em vasos é uma inocente recreação e cai muito bem para moças e senhoras. A criação de pássaros, também uma atividade inocente, é considerada uma recreação feminina, principalmente por passar a vida inteira dentro de casa e de sua necessidade de se afeiçoar a algo. Por que não plantas e passarinhos? E por fim, Roquette (1997, p. 398) deixa um recado para Eugênia Lembra-te enfim, filha minha, que não tens mãe, e que por isso deves pôr mais esmero em reunir em tua pessoa todas as virtudes de uma donzela, e em preparar as que são próprias da mãe de família.

Apesar do aumento do número de alfabetizados e das publicações fica-nos a pergunta: quanto dessas regras efetivamente chegou à população em geral? Cada vez mais vão sendo impostos valores de uma classe em detrimento a outra. Uma visão de mundo particular vai se tornando hegemônica e solapando formas diferentes de viver. Aqueles que não seguem as regras de bom-tom não são considerados civilizados. Regrar a vida social, colocando as coisas nos seus devidos lugares, não deixa muito espaço para as questões da sexualidade. Se na colônia aprendemos a nos ver enquanto seres sexuados, no Império parece que nos tornamos assexuados. Um dos poucos espaços tolerados para o exercício da sexualidade era a prostituição. Prostituição que, desde a colônia, é vista como um mal necessário. Na cidade do Rio de Janeiro, para Freyre (2000, p. 322) a prostituição desenvolveu-se de tal modo, no Rio de Janeiro, depois da chegada de D. João VI, que em 1845 já havia na capital brasileira, em grande número, as 3

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ordens de prostitutas (...), as ‘aristocráticas’ ou de sobrados e até de palacetes; as de ‘sobradinho’ e ‘rótulas’; e a escória, que se espalhava por casebres, palhoças e mucambos. As prostitutas de primeira ordem, frequentadas pelos ‘homens sérios’, as de segunda pelos homens que ‘mediavam entre a pobreza e a abastança’, as de terceira, por homens de ‘uma baixeza indiscutível.

Por muito tempo foi grande a diferenciação entre a mulher honesta e a “mulher da vida” e esta separação foi apontada por Freyre (2000) como possível causa da demora da utilização dos chapéus para as senhoras no Brasil. O autor aponta que a utilização de chapéu era marca de “mulher da vida”. À mulher honesta, só resta resguardar-se com a mantilha. Quanto à prostituição negra, Karasch (2000, p. 388) afirma que: mulher e menino escravos sofriam as muitas influências de uma cidade portuária, onde há uma grande população transitória masculina em busca de parceiras(os) sexuais. Devido à demanda por prostituição de ambos os sexos alguns senhores chegavam a forçar suas escravas a vender favores sexuais.

Outras mulheres, buscando melhorar suas precárias condições de vida, acabaram se entregando à prostituição por livre e espontânea vontade, e muitas delas adquiriram sífilis e/ou gonorréia. Nos sobrados, a rua ainda continuava a ser vista como espaço perigoso, principalmente para as mulheres. Espaço de negros, escravos e ex-escravos. As mulheres não iam às compras, só lhes restando a missa. Dentro dos palanquins, e mais tarde de carro fechado, escreve Karasch (2000, p. 104-5) As escravas domésticas também enfrentavam muros semelhantes, uma vez que as casas e quintais eram freqüentemente os limites de sua existência. Se nascida numa família carioca, uma escrava decente jamais deixava a casa exceto para ir à missa com sua senhora, e sua visão do Rio era a de salas e quartos escuros, quintais reclusos e sacadas no segundo andar que davam para a vida excitante da rua abaixo.

Aos poucos vai se colocando a casa como espaço da intimidade, da privacidade e da mulher. Para comprar, só restavam os catálogos das lojas, e na ausência destes, os mascates. Personagens deste novo cenário que se instaura com o fortalecimento do espaço urbano e de seus sobrados, os mascates, com seus “baús de flandres cor-de-rosa e as caixas de papelões, se espalhavam diante dos olhos gulosos das mulheres dos sobrados” (FREYRE, 2000, p. 65). Doxa, v.17, n.1 e 2, p.169-181, 2013

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Como vimos com o próprio Roquette (1997) os pés são fetichizados através da utilização de sapatos feitos sobre medida. Sapato que ao tocarem o chão, em dia de missa, chão de pedregulho, se desmancham a olhos vistos. Endeusados, são marca de civilização. Ao escravo cabia andar descalço mesmo de terno. No sul, temos o indígena com seus pés espalhados no chão, disformes, dedos abertos. Não pensemos que só a mulher era triste e levava uma vida enfadonha, presa dentro dos sobrados. Meninos tristes e calados com ar de doentes e olhos fundos, quase como carneiros, sem vontade própria. O objeto da educação neste momento é que ele se torne homem antes do tempo. D. Pedro II talvez seja o maior exemplo dessa maioridade forçada. Apesar de ainda criança é pintado por retratistas, sempre de barba, muitas vezes dando a impressão de ser mais velho que seu pai, D. Pedro I. Resquício, talvez, da educação utilizada na colônia, cujo objetivo era buscar o amadurecimento da criança à força e animar a precocidade, o Império se vê as voltas com estas questões, afirma Freyre (2000, p.111)

KARASCH, M. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ROQUETTE, J.I. Código de bom-tom ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SCHWARCZ, L. M. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. VIEIRA, M. P. A. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.

No tempo do Império, passada já a época do colegial e de andar de batina, os meninos de colégio continuavam meninos tristes, agora de sobrecasaca preta, roupa de homem, alguns já viciados em fumo.

Enfim, os Manuais de conduta nos dão pistas sobre os possíveis caminhos que a sexualidade percorria e o que se queria – por parte da elite – fazer com ela. Regrar, impor normas de conduta e buscar civilidade é o que propõe.

Referências ALENCASTRO, L. F. de. História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, v. 2. BURKE, P. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: EdUnesp, 1992. BURKE, P. A Escola dos Annales: a Revolução Francesa da historiografia (19291989). São Paulo: EdUnesp, 2003. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 14ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FREYRE, G. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Record, 2000. 180

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO SEXUAL NO BRASIL: DOS GINÁSIOS VOCACIONAIS À NOVA LDB (1960 – 1980)1 HISTORY OF SEXUAL EDUCATION IN BRAZIL: FROM THE NEW GYMNASIUMS TO THE LDB (1960-1980)

Eliane Rose Maio2 RESUMO

ABSTRACT

Este trabalho é resultado de uma pesquisa sobre aspectos da historiografia sexual do Brasil, realizada a partir da coleta de informações extraídas em entrevistas com profissionais que atuaram nas décadas de 60 e 80 do século passado. Estes períodos justificam-se por marcarem um momento histórico brasileiro em que a Ditadura, fruto do Golpe Militar, ocorrido em 1964, corroborou para a repressão do que já vinha sendo realizado como projetos de Educação Sexual, principalmente no âmbito educativo. Desde então, a sexualidade, como objeto de estudo dentro da escola, tem ganhado um contorno de difícil mapeamento, já que poucos materiais historiográficos se encontram disponíveis para estudos, na literatura brasileira. Entrevistar profissionais que tenham trabalhado com a Educação Sexual nessas épocas se faz necessário, pois dessa forma é possível resgatar passagens importantes a respeito da constituição de ideias sobre sexo e sexualidade no Brasil, que foram levadas a cabo dentro da escola. A Educação Sexual, como tema de estudo na escola brasileira,

This work is the result of a research on aspects of the sexual historiography of Brazil, observed in interviews with professionals, who acted in the 60s and 80s of last century. These periods are justified by marking a historical moment in which the Brazilian dictatorship, that came with the military coup, occurred in 1964, contributed for the suppression of which was already being held as sexual education projects, especially in educational area. Since then, sexuality, as a subject of study within the school, has won a contour that is difficult to map, since few materials are available for historiographical studies in Brazilian literature. Interviewing professionals who have worked with the Sexual Education is needed in these times, because that way you can redeem important passages about the formation of ideas about sex and sexuality in Brazil, which were settled out in schools. The Sexual Education, as a subject of study in Brazilian school, has done a long way until become official pedagogical documents, such as the National Curriculum, since 1997.

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Este artigo é resultante da pesquisa de Pós-Doutorado da autora junto ao Núcleo de Estudos da Sexualidade – NUSEX, na UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, sob a supervisão do Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro. 2

Universidade Estadual de Maringá  – UEM  – Maringa  – PR  – Brasil. CEP: 87020-900. E-mail: [email protected]

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percorreu um longo caminho até se transformar em documentos pedagógicos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais, desde 1997. Apesar disso, essa temática ainda não é trabalhada de forma adequada nas instituições escolares, mesmo que a maioria dos/as professores/as a estuda, ainda não há políticas públicas que a garantam. Os cursos de formação, no ensino superior, também não priorizam em seus currículos disciplinas específicas que tratem do estudo da sexualidade humana, especialmente no âmbito educativo. Com esta pesquisa, pretendemos incentivar a elaboração de projetos de Educação Sexual, que sejam estudados, refletidos, pesquisados, questionados pelos/as profissionais da educação, em todas as instâncias da escola.

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Nevertheless, this issue has not been worked properly in schools. Even though most of the teachers are studying it, there are no public policies to ensure that. Training courses, in higher education, also do not give priority in their curriculum courses to the studies of human sexuality, especially in education area. With this research, we intend to encourage the development of sexual education projects, which can be studied, reflected, searched, questioned by the education professionals, in all levels of the school.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

História da Educação Sexual. Educação Sexual Escolar. Formação de Professores/as. Políticas Públicas Educacionais.

History of Sexual Education. Sexual Education School. Brazil. Teacher Training. Public Policy Education.

1. Introdução Apesar de existirem vários dados históricos sobre a trajetória da Educação Sexual Escolar no Brasil, estudados por diversos/as pesquisadores/as, nosso levantamento bibliográfico nos permite observar que não há relatos orais que registrem informações dessa época. Pesquisar e relatar histórias de vida nos intriga, na medida em que podemos, com isso, encontrar estas pessoas e resgatar uma história vivida, e ainda não explicitada, de momentos tão importantes para a história da Educação Sexual, muito especialmente no contexto escolar. Nossa primeira problemática foi definir quais os/as profissionais da área da Educação Sexual Escolar mais expressivos/as seriam ouvidos/as neste trabalho, para que pudéssemos constituir um banco de entrevistas orais sobre a historiografia da Educação Sexual Escolar, entre as décadas de 1960 e 1980, no Brasil. Junto a essa problemática, deparamo-nos, também, com outra: o acesso a estes/as protagonistas. Quanto à primeira questão, optamos por nomes de autores/as que publicaram materiais relativos à Educação Sexual Escolar nos períodos estudados nesta 184

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pesquisa. Passamos, então, a consultá-los/as sobre a disponibilidade de serem entrevistados/as. O contato deu-se por telefone, conseguido a partir da primeira professora entrevistada, a saber, Isaura Guimarães, de Campinas. Depois, se seguiram os outros encontros. Após o aceite, partimos para as entrevistas orais. Com muita alegria e surpresa que só um instrumento como este – a história oral e a história de vida – pode proporcionar. Para Portelli (1997), é a subjetividade do/a expositor/a que fornece às fontes orais o elemento precioso que nenhuma outra fonte possui. Além dos dados dos eventos, a história oral traz significados, “[...] nela, a aderência ao fato cede passagem à imaginação, ao simbolismo” (PAULINO, 1999, p. 137). Conforme nos indica Meihy (1994, p. 55), por meio da “história de vida podemos captar o que acontece na intersecção do individual com o social, ainda mais pelo sentido de que os elementos do presente fundam-se a evocações passadas”. Para o autor, é preciso ficar atento/a, pois nas entrevistas de histórias de vida se trabalha com a memória e, assim, o/a entrevistado/a pode selecionar alguns aspectos, priorizando-os e se esquecendo de outros. No entanto, “[...] o que interessa quando trabalhamos com história de vida, é a narrativa da vida de cada um, da maneira como ele a reconstrói e do modo como ele pretende seja sua, a vida assim narrada.” (BOSI, 1994, p. 25). É, pois, no conjunto dos depoimentos da história de vida que se cruzam vidas individuais com a vida social, e é por meio da entrevista, que conseguimos extrair e subtrair as melhores mensagens e memórias vivas. Quando se faz uso da entrevista em uma pesquisa qualitativa, podemos pensar em uma atividade unilateral. A própria palavra, no entanto, já nos remete ao seu primeiro significado: “entre” “vista”, que comporta muito mais do que somente uma perspectiva (PORTELLI, 1997). A entrevista pode ser concebida como um “encontro social”, em que encontramos diversas características ali presentes, tais como a empatia, a intuição, a imaginação, ocorrendo neste contexto o desenvolvimento de percepções, emoções e sentimentos, entre os/as envolvidos/as, tanto o/a entrevistado/a quanto o/a entrevistador/a (MARTINS; BICUDO, 1989). Dessa forma, as entrevistas realizadas nesta pesquisa nos instigaram e nos propuseram esclarecer fatos que não foram divulgados pelos meios midiáticos daquela época. Os entrevistados que contatamos trabalharam na década de 60, época em que o Brasil passava pelo processo político da Ditadura Militar. Em decorrência da repressão que se fez presente a partir daquele movimento, a Educação Sexual que era proposta em alguns colégios de São Paulo, tal como o Colégio de Aplicação PeDoxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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dagógica (CAP) de São Paulo, ligado à Universidade Estadual de São Paulo (USP), se tornou palco da nossa pesquisa. Por essa razão, julgamos fundamental relembrar este período político do Brasil. O movimento iniciado pelo Golpe Militar, de 1964 a 1989, conforme nos diz Codato (2005, p. 83), foi dividido em cinco grandes fases.

Iniciamos o trabalho com uma contextualização histórica da implementação da Educação Sexual no Brasil, enfatizando as décadas selecionadas. Na segunda seção, partimos para a metodologia, destacando a fundamentação teórica escolhida para as entrevistas realizadas, bem como os dados dos/as participantes. Na terceira seção, apresentamos as entrevistas e os detalhes dos momentos encantadores, fruto dos encontros com nossos/as personagens. Por último, as nossas considerações finais, destacando a importância e o valor que se é resgatar a história de vida de pessoas que nos trouxeram dados reais sobre projetos de Educação Sexual Escolar e sobre sua trajetória profissional em prol de propostas inovadoras e desafiadoras para o ensino.

Uma primeira fase, de constituição do regime político ditatorial-militar, corresponde, grosso modo, aos governos Castello Branco e Costa e Silva (de março de 1964 a dezembro de 1968); uma segunda fase, de consolidação do regime ditatorial-militar (que coincide com o governo Médici: 1969-1974); uma terceira fase, de transformação do regime ditatorial-militar (o governo Geisel: 1974-1979); uma quarta fase, de desagregação do regime ditatorial-militar (o governo Figueiredo: 1979-1985); e por último, a fase de transição do regime ditatorial-militar para um regime liberal-democrático (o governo Sarney: 1985-1989) (CODATO, 2005, p. 83).

Nossa pesquisa localiza-se na primeira fase desse movimento, entre 1964 e 1968. Neste período, os/as professores/as entrevistados/as, que trabalhavam no CAP/USP, foram impedidos/as de dar continuidade aos projetos que citaremos mais adiante, e foram chamados de aliciadores da inocência da criança (SAYÃO, 1997). Nesse contexto, Codato (2005, p. 82) afirma que Com o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança Nacional, instalou-se um complexo sistema repressivo para combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamente qualquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem.

As ações educativas foram repreendidas: professores/as, diretores/as, orientadores/as pedagógicas, da época, foram impedidos/as de darem seguimento às propostas sobre sexualidade na escola que vinham desenvolvendo. Ribeiro (2009, p. 137) destaca que [...] esta ação, no entanto, foi de curta duração, pois, a partir de 1968 houve um recrudescimento da censura e da repressão às liberdades individuais, decorrente do Golpe de Estado de 1964 que, em quatro anos, tornou-se mais rigoroso, e sufocou aquilo que poderia ter sido o início da implantação da educação sexual no Brasil.

Todo material coletado nesta pesquisa se propõe a trazer a tona essas memórias, e se propõe, principalmente, a reviver fatos que aconteceram e que nos deixaram como legado uma proposta de Educação Sexual emancipatória e importante para a comunidade educativa. 186

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2. Histórias de vida, histórias contadas A opção por esta metodologia, a história de vida, se fez por se tratar de um instrumento importante que privilegia a coleta de informações contidas na vida pessoal de um/a ou vários/as informantes. Chizotti (2000, p. 95-96) apresenta duas formas de pesquisas com histórias ou relatos de vida: a autobiografia e a psicobiografia. A autobiografia [...] é onde o autor relata suas percepções pessoais, os sentimentos íntimos que marcaram a sua experiência ou os acontecimentos vividos no contexto da sua trajetória de vida. Pode ser um discurso livre de percepções pessoais, os sentimentos íntimos que marcaram a sua experiência ou os acontecimentos vividos no contexto da sua trajetória de vida. Pode ser um discurso livre de percepções subjetivas ou recorrer a fontes documentais para fundamentar as afirmações e relatos pessoais. Outra forma dos relatos de vida é a psicobiografia, onde o autor se situa no interior de uma trama de acontecimentos aos quais atribui uma significação pessoal e diante dos quais assume uma posição particular. [...] reúne informações tanto sobre fatos quanto sobre o significado de acontecimentos vividos que forjaram os comportamentos, a compreensão da vida e do mundo da pessoa.

O uso dessas formas de pesquisa rompe com a ideologia da biografia modelar de outras vidas, para trabalhar os trajetos pessoais no contexto das relações pessoais, definindo-se como relatos práticos das relações sociais. De fato, as entrevistas são formas especiais de conversação são, portanto, interativas. No âmbito das representações e da produção de sentido, as entrevistas são tratadas como encontros sociais, nos quais conhecimentos e significados são ativamente construídos no próprio processo da entrevista; entrevistador/a e entrevistado/a são, naquele momento, co-produtores/as de conhecimento. Neste nível de interação, os/as participantes envolvem-se ambos/as em um trabalho de produção de sentido (CHIZOTTI, 2000). Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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Como já afirmamos anteriormente, por meio da história de vida captamos o que acontece na intersecção do individual com o social, permitindo, dessa forma, que elementos do presente fundam-se a evocações passadas. Podemos assim dizer que a vida olhada de forma retrospectiva faculta uma visão total de seu conjunto, e que é o tempo presente que torna possível uma compreensão mais aprofundada do momento passado. É importante lembrarmos que neste tipo de pesquisa deve-se estar ciente dos avanços e recuos, da cronologia própria, e da fantasia e idealização que costumam permear narrativas quando elas envolvem lembranças, memórias e recordações. Farias (1994) nos alerta que as entrevistas de história de vida trabalham com a memória e, portanto, com a seletividade, o que faz com que o/a entrevistado/a aprofunde determinados assuntos e afaste outros da discussão. No entanto, como nos diz Bosi (1994), o que interessa quando trabalhamos com a história de vida é a narrativa da vida de cada pessoa, da maneira como ela nos apresenta a sua versão, física e psíquica. Queiroz (1988) afirma que a história de vida pertence ao quadro amplo da história oral e, por isso, inclui, também, depoimentos, entrevistas, biografias, autobiografias. Considera que toda história de vida encerra um conjunto de depoimentos e, embora tenha sido o/a pesquisador/a que escolheu o tema, e é ele/a quem formula as questões ou esboça um roteiro temático, é o/a narrador/a que decide o que narrar. A autora vê na história de vida uma ferramenta valiosa por esta se colocar justamente no ponto onde se cruzam vida individual e contexto social. Cipriani (1988) considera que o livre fluir do discurso é condição indispensável para que vivências pessoais despontem profundamente entranhadas no social, nas colocações do que foi vivenciado, sentido, explorado pela pessoa. Nas palavras de Paulino (1999, p. 13)

dimento do componente histórico dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos fenômenos históricos. Ferreira (1994, p. 12) afirma que a história oral é um método de pesquisa que produz uma fonte especial, revelando-se, ainda, como “[...] um instrumento importante no sentido de possibilitar uma melhor compreensão da construção das estratégias de ação e das representações de grupos ou indivíduos em uma dada sociedade”. Os documentos escritos e as imagens são fontes que permitem uma melhor compreensão do passado e, ao lado das entrevistas, proporcionam o aprendizado do estudo da história mais concreto e próximo, facilitando a apreensão do passado pelas gerações futuras e. a compreensão das experiências vividas por outros/as (FERREIRA, 1994). A história oral possibilita uma (re)construção da história por meio de relatos individuais ou de grupos que trazem memórias, vivências, emoções que, confrontadas com os registros, acabam por nos trazer novos dados, ao vivo e em cores, reluzentes, vibrantes. Pelo exposto, é válido registrar que nosso trabalho fundamenta-se na pesquisa qualitativa. Chizotti (2000) distingue a pesquisa qualitativa da quantitativa, principalmente em relação aos métodos utilizados no processo de pesquisa. São eles: opção pelo método clínico, que é a descrição da pessoa em um dado momento e uma determinada cultura, e o método histórico-antropológico, que obtém os aspectos específicos dos acontecimentos e os dados no contexto em que eles acontecem. Outra diferença entre a pesquisa qualitativa e os métodos experimentais está na forma como estas apreendem e legitimam os conhecimentos.

Denzim (1984) nos diz que a temporalidade é básica no estudo das vidas e distingue duas formas de temporalidade. O tempo mundano relacionado ao presente, passado e futuro como horizonte temporal contínuo e o tempo fenomenológico que é o tempo como fluxo contínuo, é o tempo interior, contínuo e circular. Diz ainda que uma vida pode ser mapeada em termos de episódios cruciais de cujo manejo resultam os seus significados. E, contando delas, as pessoas contam mais do que uma vida, elas contam a vida de uma época, de um grupo, de um povo.

[...] a abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas ações (CHIZOTTI, 2000, p. 79).

A história de vida pode ser, desta forma, considerada instrumento privilegiado para análise e interpretação, na medida em que incorpora experiências subjetivas mescladas a contextos sociais. Ela fornece, portanto, base consistente para o enten-

O/A pesquisador/a que investiga pelo viés da pesquisa qualitativa se torna um/a ativo/a descobridor/a do significado das ações e das relações que se ocultam nas estruturas sociais e valoriza, sobretudo, a contradição dinâmica do fato observado. Nas palavras de Chizotti (2000, p. 82), o/a pesquisador/a é parte fundamental e necessita “[...] despojar-se de preconceitos, predisposições para assumir uma atitude aberta a

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todas as manifestações que observa, sem adiantar explicações nem conduzir-se pelas aparências imediatas, a fim de alcançar uma compreensão global dos fenômenos”. Cabe-lhe, no entanto, o cuidado e a capacidade de relativizar o seu próprio lugar ou de transcendê-lo de forma a poder colocar-se no lugar do/a outro/a. Mesmo assim, a realidade familiar ou inusitada será sempre filtrada por um determinado ponto de vista da pessoa pesquisadora, o que não invalida seu rigor científico, mas remete à necessidade de percebê-lo enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa. [...] o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais. Ele é, pois o único que pode superar a descontinuidade fundamental que costuma existir entre o aparato intelectual, afetivo e psíquico do historiador e o dos homens e mulheres cuja história ele escreve. [...] Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói (CHARTIER, 1996, p. 216).

Portelli (1997), discutindo a importância da história oral, nos diz que é a subjetividade do expositor que fornece às fontes orais o elemento precioso que nenhuma outra fonte possui em medida igual. A história oral, mais do que sobre eventos, fala sobre significados; nela, a aderência ao fato cede passagem à imaginação, ao simbolismo. Da Mata (1978, p. 35) igualmente endossa esta postura quando se refere à relação entre sujeito e objeto nos estudos etnográficos “[...] para distinguir o piscar mecânico e fisiológico de uma piscadela sutil e comunicativa, é preciso sentir a marginalidade, a solidão e a saudade. É preciso cruzar os caminhos da empatia e da humildade”. Como nos dizem Martins e Bicudo (1989), a entrevista pode ser construída como um “encontro social”, e suas características, entre outras, seriam a empatia, a intuição e a imaginação; nela, ocorre uma penetração mútua de percepções, sentimentos, emoções. Após as entrevistas realizadas, passamos a analisá-las, interpretá-las, pela Análise de Discurso e olhar com “olhos neutros”, porém contaminados de afeto, desejo de aprender e apreender conhecimentos e projetos que foram implementados no período estudado. Para Bardin (1979), a análise da enunciação parte de uma concepção de discurso como palavra em ato, considera a produção da palavra como um processo. 190

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[...] na altura da produção da palavra, é feito um trabalho, é elaborado um sentido e são operadas transformações. O discurso não é transposição transparente de opiniões, de atitudes e de representações que existam de modo cabal antes da passagem à forma linguageira. O discurso não é um produto acabado mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de incoerências, de imperfeições (BARDIN, 1979, p. 170).

Ainda para a autora, a análise da enunciação leva em consideração que, nas entrevistas, a produção da palavra é ao mesmo tempo espontânea e constrangida pela situação. E atenta para as condições de produção da palavra conformada pelos três pólos de um discurso  – locutor/a, objeto do discurso e interlocutor/a  –, se apóia, então, em três níveis de aproximação: as estruturas formais gramaticais, o arranjo do discurso e os elementos formais atípicos, como os silêncios, as omissões, os ilogismos. A concepção da comunicação como processo e o desvio das estruturas e dos elementos formais são duas grandes características que diferenciam a análise da enunciação de outras técnicas de análise de conteúdo. A partir de agora, passamos a fazer a interlocução com os momentos vividos, com as experiências contadas nas entrevistas de pessoas importantes na área da Educação Sexual Escolar e que se dispuseram a revelar suas trajetórias.

3. As vibrantes histórias Antes de iniciar as histórias, resultantes das entrevistas realizadas nesta pesquisa, faz-se necessário apresentar algumas informações sobre o Colégio de Aplicação da Universidade Estadual de São Paulo (CAP/USP), palco de nossas investigações. Para tanto, recorremos ao trabalho de Warde (1995), o qual explicita dados sobre a criação e sobre o regimento escolar da época. Ao longo de seus mais de quarenta anos de existência, a Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EA-FEUSP) caracteriza-se pela excelência educacional, buscando exercer o papel de centro de inovações e difusões de experiências pedagógicas. Desde a sua criação em 1959, quando pertencia ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais “Prof. Queiroz Filho”, do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), passando pela incorporação à Universidade de São Paulo em 1972, até o momento atual, a Escola de Aplicação sofreu algumas transformações. Disponibilizamos, a seguir, o regimento escolar. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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I.

Sediar e executar pesquisas de interesse próprio ou da Faculdade de Educação, de seus cursos e docentes, que visem ao aperfeiçoamento do processo educativo e da formação docente.

II. Oferecer oportunidades de estágio a alunos da Faculdade de Educação e a outras unidades da Universidade de São Paulo. III. Oferecer subsídios à Faculdade de Educação da USP ou outras agências públicas de formação do educador. IV. Divulgar experiências e contribuições resultantes de suas ações, prioritariamente para a rede pública de ensino. V. Assegurar aos educandos a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e o usufruto do trabalho oferecendo: i.

Segundo critérios estabelecidos neste Regimento para seleção de alunos, escolarização regular de ensino fundamental e médio a filhos e dependentes de professores e funcionários da Universidade de São Paulo;

ii. Segundo critérios estabelecidos neste Regimento para seleção de alunos, vagas nos ensinos fundamental e médio para a comunidade externa à Universidade de São Paulo.

3.1

Enfim, os saberes, as lutas e os desejos

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Utilizamos como instrumento de coleta entrevistas semiestruturadas, elaboradas a partir da leitura de Kidder et al. (1987). As questões do roteiro de entrevista agruparam três blocos temáticos, como mostra o quadro a seguir. BLOCO TEMÁTICO BLOCO 1 DADOS DE IDENTIFICAÇÃO BLOCO 2 HISTÓRICO DO TRABALHO SOBRE EDUCAÇÃO SEXUAL BLOCO 3 PERCEPÇÕES NO PERÍODO BLOCO 4 PERCEPÇÕES ATUAIS

ROTEIRO DE QUESTÕES 1. 2. 3. 4.

Sexo Idade Formação acadêmica Atuação profissional no período pesquisado e atual

1. Como foi a sua atuação com Educação Sexual no período estudado? 2. Quais dificuldades encontrou nessa área? Quais benefícios encontrou em seu trabalho? 1. Contextualização da Educação Sexual no Brasil, a partir da situação política e social no período pesquisado. 1. Qual a sua opinião sobre os PCN? E o volume 10? 2. Como vê a proposta da Educação Sexual Escolar atualmente? 3. Propostas

Quadro 1: Roteiro de questões

A nossa escolha em trabalhar com a proposta de história de vida foi efetivada a partir de muitas conversas e participações em eventos, em que os/as pesquisadores/as das épocas escolhidas nos contavam com ênfase, afeto e energia, momentos especiais que vivenciaram quando atuaram em escolas com projetos de Educação Sexual. Quanto aos aspectos éticos, o trabalho atendeu às normas éticas da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde no Brasil, que regulamenta as pesquisas com seres humanos. Inicialmente, o projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética, da Universidade de Bauru, UNESP, posteriormente foi aprovado e atestado pelo protocolo CAEE nº 8023/46/01/11 (Vide Anexo A). Os/As participantes foram convidados/as a participarem após receberem os esclarecimentos sobre a pesquisa e, ao concordarem em participar, assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Vide Apêndice A). Este documento esclarece que a pesquisa não coloca em risco a integridade dos/as participantes, não envolve danos morais ou físicos e não está relacionada à obtenção de benefícios ou pagamento monetário.

Ao encontrarmos algum/as profissionais que trabalharam no Colégio de Aplicação da USP, a saber, Noemi Silveira, Julieta Ribeiro, Isabel Ramires, Almenor Tacla, Bernadete Gatti e a professora Isaura Guimarães e, mesmo antes de encontrá-los/as pessoalmente, a receptividade foi imensa. Em cada encontro, cada telefonema, a beleza das palavras, do “brilho nos olhos” para falarem dos projetos educacionais e dos momentos vividos na época em que atuavam nas escolas, para nós, se fazia encantador. Para cada entrevista marcada, uma surpresa na acolhida. Ao confirmar um horário, éramos surpreendidas por um chá da tarde, almoço ou jantar, na casa das entrevistadas. O acolhimento físico e psíquico foi de extrema valia à nossa pesquisa e nos contagiou, tanto pela gentileza e afeto quanto pela contribuição aos nossos estudos. Mais adiante contaremos como foi cada encontro e cada relato de experiência. Salientamos, no entanto, que desde que tivemos a intenção de coletar este material, pensávamos em uma entrevista especial, mesmo antes de terminarmos o Doutorado,

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que ocorreu em 2008. Nosso desejo era de entrevistar a professora Maria José Garcia Werebe, já citada anteriormente. Mas seu falecimento ocorreu em 18 de setembro de 2006, em Paris. A presença desta profissional no cenário da Educação Sexual Escolar é muito expressiva e, por essa razão, decidimos descrever sua trajetória profissional, conforme publicada em um artigo especial no Cadernos de Pesquisa (2007), escrito pela equipe da Fundação Carlos Chagas, sem autoria aparente. Neste artigo, uma série de depoimentos de pessoas que com ela conviveram dão mostras da dimensão profissional e humana dessa grande educadora. O texto que segue não será disposto em formato de citação neste trabalho, mas será disponibilizado na íntegra, registrando e valorizando, assim, esta justa homenagem. Maria José Garcia Werebe, nascida em Franca, no interior de São Paulo, em 1925, formou-se professora pela Escola Normal da cidade, tendo ganhado a cadeira prêmio. Como não pôde ser efetivada na escola pública estadual por não ter ainda 18 anos, foi convidada a trabalhar no Serviço Social de Menores, na capital. Em 1943, ingressa no Curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo – USP – e, logo após concluí-lo, é convidada pelo Professor José Querino Ribeiro para ser sua assistente na faculdade. Em 1949, obtém uma bolsa de estudos para a França, onde aprofunda sua formação no Laboratório de Psicobiologia da Infância, criado por Henri Wallon. Retornando ao Brasil em 1952 é aprovada como livre-docente pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, com um trabalho sobre o projeto Langevin-Wallon de reforma do ensino do francês, e leciona no curso de Pedagogia até 1969. Teve participação ativa na campanha em defesa da escola pública e na criação do Colégio de Aplicação da USP em 1957, onde os estudantes de licenciatura passaram a fazer os estágios. Prestou valiosa contribuição às experiências pedagógicas inovadoras aí empreendidas e, sob sua responsabilidade, o Setor de Orientação Educacional do Curso de Pedagogia se ampliou, assim como o Curso de Especialização na área obteve grande reconhecimento. A atitude combativa em defesa dos valores democráticos no período da ditadura militar, cujo regime não poupou o Colégio de Aplicação, custou-lhe a perseguição política que a levou a deixar o Brasil com a família para radicar-se na França. Nesse país, trabalhou sob a direção de René Zazzo, tendo sido contratada como pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS –, onde permaneceu como tal até se aposentar, em 1990.

A convite da UNESCO, da qual passou a ser colaboradora, chefiou várias missões de intervenção em educação sexual e familiar em países africanos: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Senegal, e desenvolveu projetos de consultoria para o Fundo das Nações Unidas para Atividades de População – FNUAP –, bem como para o Benin, Ilhas Seychelles e Burundi. A seguir, disponibilizamos alguns depoimentos sobre essa exímia pesquisadora.

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3.1.1. Walter Esteves Garcia: e lá se foi nossa Mariinha... No final dos anos 50 e início da década de 60, estudantes de Pedagogia da USP, ainda sediados na Rua Maria Antonia, tinham grandes desafios pela frente. Um deles era lutar contra o substitutivo Carlos Lacerda – que defendia o direito do Estado de subsidiar as famílias para que pusessem os filhos nas escolas que bem desejassem – com engajamento na campanha estadual de defesa da escola pública. Além disso, havia que participar intensamente da vida estudantil alimentando as discussões acaloradas que se faziam no Grêmio da Faculdade em defesa da reforma universitária, bem como definir como os alunos iriam terminar o curso, tendo em vista a inserção profissional futura. O Centro de Estudos Roldão Lopes de Barros, “centrinho” dos estudantes da Pedagogia, do qual participei intensamente nesse período, envolveu-se em todas as grandes questões dessa época e uma das nossas referências permanentes para consulta e apoio foi Maria José Garcia Werebe. O “Roldão” sempre esteve presente nas sessões de cinema que ela nos incentivava a frequentar no cine Coral, à Rua Sete de Abril, e nos debates que promovia nas disciplinas de Orientação Educacional. Como no último ano do Curso de Pedagogia os estudantes podiam escolher disciplinas para completar os créditos, muitos, como eu, não tinham dúvidas. Fazíamos o curso de Orientação Educacional. Líamos e discutíamos em seminários autores como Kafka, Makarenko, Sartre, para só mencionar alguns deles. Werebe me confessaria, anos depois, que a disputa acadêmica interna, acirrada pelo fato de que mais de 70% dos estudantes optavam pelos cursos por ela oferecidos, acabaria por criar a incompatibilidade que, durante o regime militar, em 1968, fez com que fosse declarada persona non grata da área de Educação da USP. Não quero reabrir feridas, pois ainda espero que algum dia a USP se redima dessa injustiça que, infelizmente, não teve a grandeza de resgatar perante a sua própria história. Neste momento vale a pena lembrar-se da grande obra que Werebe deixou como exemplo de educadora sagaz, estimuladora de potencialidades adormecidas e Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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de profunda integridade moral. Tive o privilégio de ter sido convidado a trabalhar com ela, logo que me formei, juntamente com Fanny Abramovich e Ligia Todescan. Nossas reuniões de trabalho eram momentos de trocas que certamente não esqueceremos jamais. A saída de Werebe da USP representou a mudança de rumo para toda uma geração que vinha sendo formada nos ideais de escola pública para todos e de construção de uma nova cidadania. O grupo que gravitava em torno dela se dispersou por várias instituições e felizmente encontrou forças para seguir lutando pelos ideais que ela ajudou a construir. Neste momento só me resta dizer, mais uma vez, obrigado... Mariinha.

apartamento em Chicago. Divertimo-nos muito, até quando éramos alvo do humor mordaz do Samuel, que tentamos imitar sem muito sucesso. Guardamos na memória aqueles momentos como algo precioso, entre as suas muitas dádivas.

3.1.3. Helena Hirata

Mariinha Werebe foi mais que uma intelectual de destaque e uma professora exemplar. Para mim, ela foi um modelo de integridade, de compromisso com as causas sociais e, importante também, de bem viver. No começo dos anos 60, quando cheguei ao Curso de Pedagogia da USP, ela e sua equipe eram a maior fonte de inspiração para os jovens idealistas que buscavam a faculdade, querendo se preparar para a criação de um novo Brasil, onde reinasse a justiça e a liberdade de pensamento. Não vou me deter nesta fase, que tantos conhecem tão bem. Basta dizer, como dizem os mexicanos de alguém que muito admiram, que era ela um sol! Exilada em Paris, soube tirar o máximo proveito de uma situação que muitos só souberam deplorar. Pesquisadora do CNRS, sempre manteve seu interesse pelo Brasil, procurando contribuir para aumentar suas grandezas e dirimir suas misérias, para emprestar os termos tão eloquentes de seu livro mais festejado e que tanta influência teve no Brasil. No meio de uma esquerda economicista, resistiu às modas intelectuais, persistindo fiel ao seu interesse pela sexualidade e pela educação sexual. Consultora destacada da UNESCO, levou ideias inovadoras a vários países da África, onde também abriu as portas para que nós, suas discípulas, continuássemos seu trabalho criativo. Praticante devota do bem-viver e cozinheira de mão-cheia, publicou em francês um erudito livro de culinária brasileira, repartindo com outros os segredos culinários com que deliciava amigos em seu lindo apartamento na Rue des Grands Degrées. Foi uma das pessoas que mais marcaram minha vida. Ensinou-me muitas coisas, sobretudo a ter coragem e independência, e a dedicar-me a uma causa com paixão. Derli e eu tivemos o privilégio de hospedá-la, junto com Samuel, em nosso

Maria José Garcia Werebe foi professora livre-docente do Curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo. Perseguida no período da Ditadura Militar no Brasil escolheu morar na França, onde pesquisou sobre educação sexual na escola, na qualidade de pesquisadora do Centre National de Recherches Scientifiques, entre 1972 e 1990. Realizou missões de trabalho para a UNESCO e para o FNUAP em numerosos países da África e da América Latina, como perita em sexualidade e planejamento familiar. É autora de uma obra clássica sobre a educação no Brasil: “Grandezas e misérias do ensino no Brasil”, publicada pela Difel em 1963, já 5ª edição em 1986. Em 1994, a Ática volta a publicar o texto, agora com dados atualizados, com o título “Trinta anos depois: grandezas e misérias do ensino no Brasil”. Seu último livro, Pouvoir, politique, religion et sexualité, no prelo, constitui uma análise em profundidade das perspectivas normativas das três grandes religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – sobre o papel das mulheres, do casamento, da sexualidade e da família. Ele dá continuidade aos principais eixos de pesquisa da obra da autora, desenvolvidos principalmente em L’éducation sexuelle à l’école, publicado pela Presses Universitaires de France em 1977, e Sexualidade, política e educação, Campinas, Autores Associados, 1998. Nessa obra póstuma, o exame das relações entre as três religiões permite melhor compreender as regras por elas enunciadas e suas implicações para as práticas sexuais e a organização social, com destaque para a organização da família contemporânea. A sexualidade humana tem seu fundamento na aprendizagem, na transmissão do saber: aprender o proibido e o permitido, o preço do prazer, as regras relativas aos contatos sexuais na sociedade. Da diversidade dessas aprendizagens e desses saberes, da diversidade histórica e cultural derivam configurações contrastadas que são analisadas na dimensão das crenças e das práticas do universo da religião. A apresentação em perspectiva histórica das três religiões permite responder à indagação sobre se a política pode determinar uma moral sexual, demonstrando que transformações políticas e sociais contribuíram para avanços importantes em matéria de sexualidade apesar das proibições religiosas.

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3.1.2. Carmen Barroso

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Para a família e para os amigos que não esquecerão sua alegria, convivialidade e seus dons de grande cozinheira, deixa a herança de suas receitas brasileiras mais apreciadas em um livro, escrito em colaboração com a amiga Clelia Pisa, Cuisine brésilienne en France, editado por Actes Sud em 2003.

Quando fomos aprovados no Baccalauréat (Lia Zatz  – outra egressa do Aplicação – Vera e eu), Mariinha fez uma comemoração em sua casa, à qual dois professores de Filosofia estavam convidados, e a festa acabou se transformando num “desafio” em francês, português e “filosofês” que, mais uma vez, nos trazia para o que o Brasil tem de melhor. Quando a família Werebe, talvez conformada de que o exílio seria longo, comprou um imóvel e mudou-se para o Quartier Latin, lá por 1972, Mariinha organizou outra festa inesquecível que foi até o raiar do dia e onde brasileiros e franceses foram apresentados ao disco da Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas a festa de Mariinha ia além de música e palavra. Meu outro motivo de gratidão é também brasileiro. Cozinheira de mão-cheia, a penúltima obra de Mariinha (Cuisine brésilienne en France, Actes Sud, em co-autoria com sua grande amiga Clelia Pisa) é baseada naquilo que ela própria viveu: a aventura de descobrir nossos ingredientes, temperos e até os nomes do que comemos nas barracas dos feirantes vietnamitas e marroquinos que festejavam, presenteando a freguesa por resgatar as raízes de cada um, neste cosmopolitismo de entidades alimentares de locais comuns. Os jantares na casa de Mariinha e Samuel são inesquecíveis pelo gosto, pelo aroma e pelas histórias que os alimentos traziam, às vezes de longe, às vezes do mercado ao lado. Liberdade, graça, humor, leveza, são os termos que me vêm ao espírito quando penso nesta figura tão importante em minha formação – indiretamente, por meio do Colégio de Aplicação – e tão marcante em minha vida pessoal, tanto nos anos de juventude que passei em Paris, como em outras ocasiões em que lá estive. Há pouco tempo, numa estada de alguns meses na cidade, liguei para Mariinha e ela logo foi avisando: desculpe, mas não posso mais fazer um jantar para vocês. Mas os outros banquetes, de casos deliciosos e bem-humorados, nos foram servidos até o final e, para mim, ficam para sempre.

3.1.4. Ricardo Abramovay Eram muito especiais e particulares as condições que fizeram do Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da USP, nos anos 1960, mais que uma boa escola, um pólo de aglutinação cultural da juventude, um centro de agitação política e uma referência inesquecível para toda uma geração. Ali se reuniam filhos de uma burguesia esclarecida, de intelectuais, mas também jovens de famílias de baixa classe média que, juntos, foram colocados em contato com o que o conhecimento tem de mais apaixonante, tanto nas ciências como nas humanidades. As vidas desses jovens foram marcadas de forma definitiva por essa escola que soube educar valorizando a paixão pelo conhecimento clássico e contemporâneo, juntando nisso encantamento e rigor. Uma lição universal, cuja atualidade não podia ser maior, num momento em que – no mundo todo – a sociedade pergunta com apreensão qual o sentido do que se ensina aos jovens e qual a viabilidade do tipo de organização dedicada a esta tarefa. A marca do Aplicação em nossas vidas é um primeiro motivo pelo qual minha geração e todos os que vivemos aquela experiência extraordinária somos gratos a Mariinha Werebe. Foi do Aplicação que saí, no final de 1969, para um exílio de quatro anos e meio em Paris, onde conheci pessoalmente Mariinha, na qualidade de mãe de minhas colegas e amigas Irene e Vera. E esta convivência me dá o privilégio de exprimir mais dois motivos de gratidão. Mariinha foi minha primeira caipira, numa extirpe que, posteriormente, vim a reconhecer em Douglas Teixeira Monteiro e José de Souza Martins. Sua capacidade de ilustrar as ideias com casos deliciosos, que sempre traziam à tona raízes profundamente brasileiras, era impressionante. Mariinha gostava de violão – eu também gosto – e foi ela que me ensinou “a lua girou, girou, traçou no céu um compasso” muito antes que fosse gravada por Milton Nascimento. Ela me passou também a lição que lhe deu sua amiga Inezita Barroso: não guarde o violão dentro da caixa, senão mofa. Um conselho de mãe, de amiga ou uma paródia? Certamente a mistura das três coisas. Mariinha foi a primeira a me apresentar ao “desafio”, este gênero musical praticado pelos que têm o dom da palavra. 198

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3.1.5. Vera Werebe Minha mãe era alguém. Minha mãe era alegre, minha mãe era forte, teimosa, muito teimosa. Minha mãe era bonita, ela era o centro de tudo. Quando eu era pequena eu a via em toda parte. Era alguém importante. Escrevia artigos, fazia discursos, aparecia na televisão, eu ficava muito orgulhosa. Minha mãe tinha muitos amigos, muitos mesmo. A casa estava sempre cheia de gente. Ela cozinhava tão bem. Seus pratos eram famosos. Eu ficava tão orgulhosa... Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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E então ela pegava o violão e cantava. Ela cantava muito bem. Ela era mais uma vez o centro do mundo. Ria, contava piadas e dançava. E eu a admirava tanto... Minha mãe era uma revolucionária. Era meu Che Guevara particular. Por causa dela tive que fugir do Brasil. Era triste, mas apesar disso era importante ser perseguida pela junta militar. Eu me orgulhava de ter de me exilar porque tinha o nome dela. Depois chegamos à França. Não era pouco para um brasileiro. O país da Revolução Francesa, de Piaf e de Montand, o país de Sartre e de Simone de Beauvoir. E aí também minha mãe era alguém. Eu a via falando tão bem essa língua estrangeira, conhecendo tanta gente! Aqui também minha mãe não era qualquer pessoa. Eu me orgulhava. Então vieram o CNRS, mais livros e todas as viagens com meu pai pelo mundo inteiro, suas missões pela UNESCO para tantos lugares. Minha mãe era mesmo alguém. Um dia, pouco a pouco, minha mãe começou a adoecer. Cada vez mais doente. Com os anos, sua vida encolheu. Saía menos, eles viajavam menos. Minha mãe continuava sempre teimosa, sempre revolucionária, sempre bonita e se tornava cada vez mais minha mãe. Sempre fui próxima de meus pais, mas tinha uma ligação especial com minha mãe. Eu a admirava tanto, porque minha mãe era alguém! Diante dessas manifestações, finalizamos nossa homenagem a esta pioneira, uma profissional batalhadora pela Educação Sexual no espaço da escola. Os/As nossos/as entrevistados/as fizeram muita referência ao seu trabalho, porque estiveram juntos/ as no Colégio de Aplicação, sempre incentivando e trazendo inovações pedagógicas em um momento histórico que se mostrar diferente, ainda mais em se tratando de sexualidade, levaria ao exílio – exatamente o que aconteceu com Werebe. Ao lermos estes depoimentos, fica-nos a essência de uma mulher à frente de sua época, em todos os sentidos. Tê-la entrevistado seria uma honra, uma oportunidade vibrante, seria um registro enriquecedor desta pesquisa. Desde o final da década de 70, do século passado, Werebe (1978, p. 27) argumentava a dificuldade em se implantar um projeto de Educação Sexual nas escolas. A autora finaliza seu texto assim, [...] em conclusão, parece-nos que não há ainda, no país, condições propícias à implantação efetiva de uma educação sexual que contribua para o desenvolvimento harmonioso e integral da personalidade da criança e do adolescente. Os obstáculos institucionais a uma tal implantação são inúmeros e dificultam, em consequência, a

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preparação adequada – e indispensável – dos educadores que deverão encarregar-se do trabalho nesta área.

Pois é, Mariinha, ainda temos muito a fazer. Entrevistá-la não foi possível, mas fizemos questão de destacar a sua importância na luta pela implantação de projetos de Educação Sexual, em uma época que não se podia falar ou estudar sobre sexualidade no espaço educativo.

3.2

As entrevistas, as falas, os registros emocionantes

Passemos, então, às entrevistas que fizemos com os/as seguintes profissionais: Isaura Rocha Figueiredo Guimarães e Isabel Ramires, ambas de Campinas; Julieta, Almenor Tacla e Bernadete Angelina Gatti, ambos/as de São Paulo, e Noemi Silveira Wrege, de Ribeirão Preto. As transcrições das entrevistas estão na íntegra, conforme os/as participantes comentaram, escreveram, arrumaram, respeitando, assim, a maneira como gostariam de ser citados/as.

3.2.1. Isaura Rocha Figueiredo Guimarães Começamos com a pedagoga Isaura Rocha Figueiredo Guimarães, que mora em Campinas. Encontramo-nos em sua casa. Isaura está com 71 anos de idade. Graduou-se na Pontifícia Universidade Católica (PUC), Campinas. Fez o Mestrado na School of Education, George Washington University, Washington DC, USA, em 1975, e o Doutorado, no Departamento de Metodologia de Ensino, Faculdade de Educação, da Universidade de Campinas (UNICAMP), em 1989, com a tese Mitos e Realidade da Educação Sexual nas Escolas. Em 1963, iniciou a carreira na Escola Normal Luiz Zacharias de Lima, de Monte Alto-SP, tendo permanecido na cadeira de Prática de Ensino, com 48 horas semanais de trabalho, até o final de 1964. De 1963 a 1970, no trabalho com a Escola Normal, nas cidades de Monte Alto, Taquaritinga e Franca, as questões ligadas ao sexo não eram tidas como pertinentes ao seu trabalho, a sexualidade ainda era vista como tabu, um assunto doméstico sob a orientação dos pais, ou um problema a ser resolvido por clérigos ou médicos. Nas escolas, surgiam palestras quando da gravidez de alguma aluna, geralmente feitas por médicos – uma vez ao ano no máximo – em que se Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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trabalhavam mais direitos e deveres do que informações sobre o comportamento sexual sadio. Mesmo entre os/as professores/as, nada se dizia de modo explícito, tudo permanecia velado, misterioso, os olhares, as expressões faciais e as posturas tinham poderes controladores, algo hoje desconhecido. Os comportamentos de proximidade amorosa entre os jovens eram bastante policiados e, se eles transgrediam as normas, eram punidos. Em 1964, fez um Curso de Férias na Secretaria de Educação de São Paulo, sobre o Behaviorismo de Skinner – uma novidade na época. A autora Mary Pipher de “Resgatando Ofélia” menciona que essa aprendizagem sexual mais velada, que implica em um acesso ao sexo por etapas graduais de descoberta do prazer em si mesmo e no outro, seja desejável para o amadurecimento de uma sexualidade sadia e feliz. Compara a jovem que hoje é estimulada a transar nos primeiros encontros com namorados à personagem Ofélia, de Shakespeare, jovem ingênua que seduzida por um parente rico engravida e é abandonada por ele. Depois, tendo que enfrentar a vergonha e condenação de todos se suicida nas águas de um riacho. Em 1964, lecionou também na cidade de Taquaritinga-SP, na cadeira de Psicologia Educacional, na Escola Normal do Instituto de Educação. Em 1965/1966, lecionou em Franca-SP, no Instituto de Educação Torquato Caleiro, no Curso de Aperfeiçoamento, destinado às alunas que haviam concluído o Curso Normal, nas cadeiras de Metodologia de Ensino e Metodologia do Ensino de Ciências Naturais. Em 1967, trabalhou em Lençóis Paulista-SP, na Escola Normal Virgílio Capuani, onde ministrou as disciplinas de Prática de Ensino e Recursos Áudio-Visuais, tendo assumido também as aulas de Filosofia, no curso Clássico. Em 1968, iniciou o concurso para Orientadora Educacional na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tendo tomado posse do cargo em 1970. Vale ressaltar que as provas desse concurso ocorreram ao longo de dois anos, porque foi necessário impetrar Mandato de Segurança por parte dos candidatos aprovados na primeira parte do concurso, para garantirem a continuidade de outras etapas dos trabalhos, a saber, provas de Psicologia, Filosofia e Sociologia, pois naquele momento histórico a política repressora recém-instalada entendia que a Orientação Educacional poderia ser um meio subversivo à ordem no Sistema de Educação. Esse concurso foi planejado pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenado por professores/as como Maria José Garcia Werebe, Oswaldo de Barros, Madre Cristina, Maria Alice Forack, educadores/as tidos/as como de esquerda. Mais tarde, Maria José Werebe

foi banida do país pelo AI-5 e retirou-se para a França, lá se tornou pesquisadora educacional de renome, inclusive na área de Educação Sexual. Em 1970, vai para Pirassununga-SP e toma posse do cargo de Orientadora Educacional do Instituto de Educação de Pirassununga. Já em 1973, se transfere para Washington-DC, nos Estados Unidos, onde fez o Mestrado na School of Education da George Washington University, tendo recebido o titulo de Máster in Arts of Education, Guidance and Counseling, em 1975. Em 1978, ingressa na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (UNICAMP), com carga horária de apenas 12 horas semanais, atuando no Curso de Pedagogia, Departamento de Psicologia Educacional (DEPE). A Profª Maria Amélia Azevedo Goldemberg foi sua colega no DEPE, em 1982, época em que o país retomava a discussão sobre Educação Sexual. Nessa época, Isaura escreveu o livro “Educação Sexual: uma proposta, um desafio”. Em 1982, volta a reassumir seu cargo de Orientadora Educacional, na Escola Barão Geraldo de Rezende, em Campinas e, de 1983 a 1984, atuou na Divisão Regional de Ensino de Campinas (DREC), no cargo de Assistente Técnica de Orientação Educacional, sendo responsável pelo projeto de Implantação de Educação Sexual nas Escolas, que envolvia 900 escolas de 80 Municípios da atual Região Metropolitana de Campinas. Em 1989, recebe o título de Doutora pelo Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação da UNICAMP. De 1993 a 2007, orienta dissertações e teses em nível de Pós Graduação na Faculdade de Educação da UNICAMP. Aposentou-se em 1996, embora permanecesse como Professora Voluntária durante 10 anos. Uma de suas orientandas foi a Dra. Claudia Maria Ribeiro, autora do livro “A Fala da Criança sobre Sexualidade Humana, o dito, o explícito e o oculto”. Isaura orientou vários/as alunos/as nas temáticas de Sexualidade, Educação Sexual, Gênero e Questões Femininas. A partir de 1993 atua em nível de Extensão à Comunidade, tendo sido Presidente do SOS Mulher, ONG de defesa da mulher violentada, que hoje completa 35 anos de fundação; mais tarde, em dois períodos entre 2001 e 2006, se torna Presidente do SOS Adolescente, ONG em prol do desenvolvimento do adolescente com poucas oportunidades na escola e na sociedade. A entrevistada acredita que adolescentes dos anos 60 viviam as mesmas ansiedades e angústias dos/as de hoje, quanto ao processo de enamoramento, casamento, vida sexual, porém tinham menos informações e oportunidades para experiências de descobertas vivendo romances idealizados. Mas, por outro lado,

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eram mais protegidos pelo coletivo social das pressões e invasões de intimidade precocemente, assim como não eram expostos ao escancaramento de comportamentos íntimos na infância. A partir dos anos 70, quando empossada Orientadora Educacional, em Pirassununga, tem como meta realizar educação integral que compreendia a orientação vital ou pessoal, tratando de aspectos peculiares da vida do/a aluno/a, sobretudo dos aspectos afetivo-emocionais, incluindo os relacionamentos de namoro, noivado e casamento, como se denominava na época. Os interesses dos/as alunos/as foram sondados por ela nas salas de aula e alguns temas foram sugeridos nas 5ª séries: amor, sexo, problemas sexuais, namoro, noivado, casamento, valores, escolha, conhecimento do outro. Juntamente com o Professor de Educação Física, que abordava as informações sobre o corpo sexuado para os meninos, a Orientação Educacional tratava de menstruação, gravidez e namoro, com as meninas. O livro “De Onde Vêm os Bebês” causava alvoroço com imagens de animais transando, cenas de aproximação física entre os pais, parto, embora essas imagens fossem montagens em papel, como dobraduras. Como Orientadora Educacional fez reuniões com os pais sobre o assunto, pois em uma classe de 5ª série foi interceptada uma troca de bilhetes entre um menino e uma menina, falando de favores sexuais e, como a menina era filha de militar, este ameaçou o Diretor e a Orientadora Educacional para saber o nome do ingênuo e imprudente menino, para que o castigasse. A escola permaneceu alarmada algumas semanas com o caso. Também se lembra que surgiu uma aluna solteira grávida no curso noturno, sendo que o namorado era um cadete, aceito como marido dela pela família, mas proibido de oficializar o casamento antes do término de sua capacitação militar. Causou muito impacto na escola, por ser uma grávida sem o casamento oficializado. Nessa época, surgiram dois livros que discutiam os fenômenos físicos, emocionais e sociais da adolescência, tratavam do despertar das emoções para a intimidade com o outro, a descoberta do amor etc. “O Diário de Dany e o Diário de Ana Maria”, do francês Michel Quoist foram muito lidos. Os livros foram montados após a leitura de centenas de diários reais de adolescentes franceses e atendiam bem as necessidades dos/as jovens da época. Colocar 10 volumes de cada um deles na biblioteca da escola foi um marco para a Orientação Educacional. Nos Estados Unidos, a entrevistada ampliou muito sua visão de sexualidade após aceitar a maneira racional e direta dos comportamentos sexuais naquele país.

No início das discussões sobre Orientação Sexual nos PCN, já experiente no contato com educadores/as do Programa de Educação Sexual da Prefeitura Municipal de Campinas, questionou a inserção da Educação Sexual na transversalidade do contexto escolar e não como aulas previstas, sabendo bem da estrutura funcional dos sistemas escolares com grades pautadas no tempo, fator mais controlado na remuneração dos/as professores/as. No contexto desse sistema o/a professor/a não tem abertura para trocas pessoais, nem sempre cultiva afetos entre si ou com os/as alunos/as, poucos/as conversam sobre suas matérias específicas e o entrosamento entre elas. Aquilo que se pensou para ser ensinado como transversalidade (educação informal) não foi mostrado como execução. Como os/as professores/as assumiam que deviam tratar das matérias especificas nas quais foram habilitados/as, se sentiam descompromissados/as com temas de sexualidade. Precisariam escolher lidar com isso, naturalmente se preocupariam com tempo gasto e com a competência para tal. A professora, então se pergunta: como fazer a transversalidade? Isso não aparece nos PCN. Deveriam ser mais pontuais quando a novidade surgiu. Ela acredita que hoje algo tão artificialmente pensado esteja já desaquecido.

3.2.2. Noemi Silveira Wrege

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A segunda entrevistada é a pedagoga Dra. Noemi Silveira Wrege, que mora em Ribeirão Preto. Nosso encontro foi em sua casa. Noemi está com 78 anos. Graduou-se em Pedagogia, na USP (Universidade de São Paulo), entre 1957 a 1960. Fez especialização em Orientação Educacional, em 1961, também na USP. O Mestrado foi realizado na UNICAMP (Universidade de Campinas), em 1989, em Educação, na área de Administração e Supervisão Escolar, com a temática: “A supervisão de ensino num contexto de administração participativa”. Fez seu Doutorado em Educação na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), em 1997, com o seguinte título: “A orientação educacional no ensino paulista: da (re)visão de uma experiência vivida às propostas para uma nova praxeologia em educação”. Atualmente reside em Ribeirão Preto, local onde a entrevista foi realizada. Trabalhou no Colégio de Aplicação da USP, como orientadora educacional. A professora Maria José Werebe, professora da USP, a convidou para trabalhar lá, logo após o término do curso de Pedagogia. Ficou por nove anos como orientadora educacional, realizando função dupla: orientação e um trabalho de orientadora vocacional, com quinze orientadoras. 205

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Entre 1969 a 1970, o DOPS realiza o Golpe Militar, e assim a escola (Colégio de Aplicação), juntamente com os Ginásios Vocacionais, acaba. O trabalho de Educação Sexual na escola era assim desenvolvido: havia os grupos de trabalho, com os/as alunos/as. Trabalhava com a 5ª série (crianças entre 10 e 12 anos). Discutiam assuntos que eles/as desejavam e apareciam temas relacionados à sexualidade. Na caixinha de perguntas aparecia a temática, estando escrito, anonimamente, assim: “E aquele assunto?” Ao ser levado o tema para a equipe de orientadoras, a professora Werebe disse: “Vamos montar o curso”. As orientadoras assistiam às aulas de Ciências (do professor Almenor Tacla) e elas percebiam que a todo o instante apareciam indagações individuais sobre sexualidade. Nos grupos, existiam as caixinhas de perguntas, e, quando possível, se davam respostas grupais e depois individuais. Temas que apareciam: homossexualidade, relações sexuais antes e fora do casamento. Havia muita repressão relacionada à sexualidade. Buscavam não dirigir para a moralidade. O objetivo era discutir com eles/as, sem dirigir, num processo democrático, sem apontar o que era certo ou errado. Para as famílias havia seminários bem participativos. O médico Gaiarsa tinha dois filhos nestas turmas e se propôs a contribuir. Levou assuntos importantes e polêmicos e ajudou muito. Esse trabalho foi realizado por cinco anos, com os grupos. Em 1967, inicia-se o processo da Revolução. Já em 1969, institui-se o AI5 e junto ao Vocacional foi realizada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Os jornais da época falavam do Colégio de Aplicação e do trabalho de Educação Sexual, dizendo que os/as professores/as seguiam a orientação de pessoas subversivas, que no caso era a professora Werebe. Eram vistos/as como “inocentes úteis”. Um general declarou que estavam tirando a “inocência” das crianças.

Em 1966, inicia seu trabalho no Colégio de Aplicação da USP, junto à equipe da professora Maria José Werebe. Seu trabalho era de Orientação Educacional, com ênfase na Orientação Profissional, com alunos/as de 11 a 12 anos. Em 1966, inicia um trabalho de orientação com grupos, direcionado às 5ª séries, o qual abordava vários assuntos: masturbação, namoro, virgindade, relação sexual, hermafroditismo, métodos anticoncepcionais. Surgiam fatos relacionados à sexualidade, como por exemplo, o fato de uma aluna de Ensino Médio estar grávida, revelando, então, que uma mulher tinha desejo erótico, ou um menino, também do Ensino Médio, assumindo sua homossexualidade. Questões polêmicas para a época. Entre 1986 a 1993, realizou um programa na TV Cultura, intitulado “Qual é o grilo?”, em conjunto com 30 professores/as. Neste programa, vários assuntos eram debatidos, entre eles, a sexualidade na adolescência. E por quatro anos, de 1989 a 1993, nesta mesma emissora, fazia um programa voltado à orientação aos/às vestibulandos/as, com a finalidade de informar e transmitir conhecimentos relacionados à profissão. Estes foram alguns benefícios, apontados pela professora, do programa realizado no Colégio de Aplicação: dar oportunidade às crianças em um espaço livre para colocar seus sentimentos; falar sobre seu desenvolvimento; ficar à vontade. Era trabalhado o que eles/as já sabiam sobre revistas pornográficas, palavrões (o que eles significavam), catecismo, oportunidades, benefício pessoal, amadurecimento sexual. As dificuldades encontradas eram relacionadas à questão dos métodos que a Secretaria de Educação enviava para que o tema fosse trabalhado nas escolas. Assim, reuniões eram feitas com os pais e as mães, e eles/as assinavam um termo de compromisso, autorizando as reuniões dos grupos, sem nenhuma reclamação. Os/as alunos/as faziam avaliações das discussões grupais e sentiam-se respeitados/as, em situação de partilha.

3.2.3. Isabel Ramires Nossa terceira entrevistada é a pedagoga Isabel, que mora em Campinas. Nosso encontro ocorreu em sua casa. A conversa se deu em volta de uma mesa de café da tarde, regada de histórias divertidas, intensas, chá, café, pães, bolos e afeto. Isabel está com 71 anos. Fez Pedagogia na USP, em 1959. Especializou-se entre 1963 e 1964, na USP, em Orientação Educacional. Um de seus primeiros trabalhos foi desenvolvido no SENAI, entre 1960 a 1964, realizando atividades de Orientação e Seleção Profissional. Antes deste período foi professora, em São Caetano do Sul. 206

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3.2.4. Julieta Ribeiro Leite A quarta entrevistada foi a pedagoga Julieta Ribeiro Leite, em sua casa. Ela nos convidou para um almoço regado a muitas conversas, histórias e delicadeza. Julieta está com 72 anos. Fez o curso de Pedagogia, Curso Normal, em 1951. Trabalhou na Secretaria em Caetano de Campos. No curso de Pedagogia, fez uma Doxa, v.17, n.1 e 2, p.183-219, 2013

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matéria optativa: Orientação Educacional, com a Profª Maria José Werebe. Nessa época, os colégios vocacionais estavam em implantação. Trabalhou como Orientadora Educacional no Ginásio Vocacional. Em São Paulo, trabalhou na Coordenação Geral, como orientadora pedagógica. As atividades desenvolvidas consistiam em: treinamento de professores/as; atividades extraclasses; conselhos de classe semestrais; estudos do meio; reuniões com pais/mães; hora atividade; aulas fora do período normal (reforço); receber os/as estagiários/as. Na época, havia convênios entre as universidades e a Secretaria de Educação. Os/as pais/mães se uniam para formar uma associação de Amigos das Classes Integradas, com o objetivo de captar recursos para que o trabalho docente fosse realizado de forma adequada. Trabalhou nessa instituição entre 1963 e 1968, com o componente curricular. A Equipe de trabalho era formada por Orientadoras Educacionais, tais como: Bernadete Gatti, Isabel Ramires, Noemi Wrege, Guiomar Namo de Mello, Dirce Barros, Maria Amélia Campos Netto, Renata Melchior, Conceição Aparecida Santini. Nesse contexto, era atribuída uma orientadora por série. Aplicava-se um Teste Sociométrico para distribuir os/as alunos/as por equipes de trabalho. Um dos temas que apareciam para ser trabalhado nos grupos era a Educação Sexual. Inclusive, o médico José Ângelo Gaiarsa, pai de alunos da escola, contribuiu muito nesta área, dando cursos para os/as professores/as. Nas aulas de Ciências, trabalhava-se a reprodução de micro-organismos, plantas, escala filogenética e a evolução das espécies. A orientadora assistia às aulas, para entender da parte informativa e depois trabalhava essa temática nos grupos. Havia a caixinha de perguntas, e algumas perguntas, como masturbação, eram recorrentes, principalmente nas turmas de 7ª séries. Projetavam-se slides coloridos tratando de assuntos relacionados à sexualidade. Na época da Ditadura, alguns/mas profissionais não conseguiram aceitar que a política entrasse na escola. Houve invasão policial na escola e alguns/mas alunos/ as acampavam por lá. A escola “rachou” quando houve a troca da direção, a partir da escolha feita pelo Conselho Deliberativo. A professora saiu da escola em 1968 e foi para a Escola Estadual Fidelino de Figueiredo.

3.2.5. Almenor Tacla

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A entrevista com o professor Almenor Tacla se deu na casa da professora Julieta Leite, após o almoço. Nossa conversa se deu a três: Julieta, Almenor e eu. Almenor está com 70 anos. Fez o curso de biologia na USP, em 1962, especializando-se em História Natural. Sua atuação no CAP foi junto à equipe de Orientação Educacional. Como era o professor de Biologia das 5ª séries, sua temática era sempre em torno do fisiológico, do aparelho reprodutor, dos nomes científicos das áreas sexuais. A sua participação nos encontros semanais das 5ª séries era realizada juntamente com a Profª Isabel. Assim que se deu a entrada dos integrantes da Repressão Militar no CAP, o trabalho sobre Educação Sexual teve de ser extinto. No entanto, ele continuou seu trabalho na área de biologia, por mais um tempo, aposentando-se há poucos anos. Hoje, atua na área de viagens pedagógicas, em escolas.

3.2.6. Bernadete Angelina Gatti Encontramos Bernadete Angelina Gatti em São Paulo, em seu local de trabalho. Ela trabalha na Fundação Carlos Chagas há 40 anos. A acolhida foi vibrante. Foram quase duas horas de conversa. O acolhimento e as lembranças do passado profissional foram contagiantes. Atualmente está com 70 anos de idade e teve a sua formação em Pedagogia, na USP, entre os anos 1959 e 1962. Nesta época, o curso de graduação em Pedagogia era voltado à formação de especialistas e pesquisadores/as em educação e professores/as para a Escola Normal. O curso contava com disciplinas como: Matemática, Biologia, Biologia Educacional, Estatística, Filosofia, Filosofia da Educação, Psicologia Geral, do Desenvolvimento Humano e da Educação, História da Educação, entre outras, além da Metodologia e da Prática de Ensino. No 4º ano havia disciplinas optativas e ela escolheu Planejamento de Experimentos e Orientação Educacional, que na época era ministrada pela professora Maria José Garcia Werebe. Enquanto estava cursando os anos finais do curso, participava no Colégio de Aplicação da USP, de sessões de estudo e estágio, com discussões englobando aspectos pedagógicos estudados no curso de Pedagogia, envolvendo teoria, prática, questões de desenvolvimento dos/as alunos/as e orientação pessoal e profissional. Quando terminou o curso de Pedagogia foi convidada, pela professora Maria José Garcia Werebe, para trabalhar no CAP, no Setor de Orientação Educacional. 209

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Já era professora da rede estadual de ensino, da qual foi alfabetizadora e professora de matemática. Após o término da graduação fez uma especialização em Educação, na USP, com ênfase em Orientação Educacional e Estatística. Na época, não havia Mestrado. A pós-graduação stricto sensu foi implantada no formato atual somente em 1970. Foi convidada em 1964 para trabalhar, em tempo parcial, no Departamento de Estatística da USP, para atuar nas áreas de Ciências Humanas, tendo se candidatado e entrado. Afastou-se, então, de seu cargo na rede estadual, mantendo o trabalho no CAP, em meio período. No CAP, no Setor de Orientação Educacional, trabalhou com um projeto de orientação em grupo com os/as adolescentes que frequentavam o que seria hoje o segundo ciclo do ensino fundamental. O trabalho era feito com base em dinâmicas de grupos, em uma hora semanal, no horário geral das aulas, os/as alunos/as escolhiam os temas que queriam trabalhar. Muitas questões apareciam: relação com os pais, professores, colegas, atualidades, namoro etc. A temática da sexualidade era sempre trazida pelos/as participantes. O professor Almenor Tacla e a professora Noemi Wrege tinham especificamente um trabalho com o grupo de Educação Sexual no CAP, no qual se discutia aspectos da sexualidade, as partes fisiológica, emocional e social. Essas atividades tinham o devido consentimento dos/as pais/mães, o trabalho era totalmente apresentado e discutido com eles/as. Mas, em seus grupos, também era discutido assuntos de sexualidade dos/as adolescentes, tais como a masturbação, tema polêmico, pois na época era disseminado que se alguém a praticasse ficaria fraco/a e/ou doente, e o medo permeava as mentes dos/as adolescentes. Discutiam-se mitos, preconceitos, estereótipos, medos, homossexualidade e relacionamentos. Para que estes grupos funcionassem, então, os pais/mães participavam de uma reunião, organizada pela professora Noemi Wrege, explicando a funcionalidade dos encontros e eles/as precisavam autorizar a participação dos/as filhos/as. Quase todos/ as os pais/mães autorizavam. Em 1968, o CAP foi invadido pelos integrantes do Governo Militar que imperavam no Brasil. A professora Maria José Werebe foi considerada comunista e teve de fugir para Paris, com sua família, principalmente por organizar e coordenar este trabalho de Educação Sexual. Assim, acabaram-se o trabalho de grupos da Orientação Educacional, e a temática da sexualidade não pôde ser mais discutida. Em 1967, Bernardete deixou o trabalho no CAP, pois ganhou uma bolsa de estudos para realizar estudos especiais em Rennes na França e, um ano depois, uma

bolsa para realizar o Doutorado em Psicologia, na Universidade de Paris VII. Sua tese, intitulada “Le conseil en situation de groupe et le approche non directive: étude analytique et critique sur une experience au niveau de l’enseignement sécondaire”, foi orientada por Paul Arbousse-Bastide e, defendida, em 1972. Trata-se de um trabalho desenvolvido no próprio CAP sobre situações de grupos em atividades não-diretivas, com adolescentes de 12, 13 anos de idade. Em 1971, tendo voltado da França, no aguardo da defesa de sua tese, reassume seu trabalho na USP, continuando em tempo parcial, e inicia seu trabalho na Fundação Carlos Chagas, como pesquisadora, no Departamento de Pesquisas Educacionais. Em 1973, faz seu primeiro estágio Pós-Doutoral, na Pennsylvania State University (USA) e, em 1974, o segundo Pós-Doutorado, na Université de Montreal (Canadá). Em 1986, aposenta-se da USP e passa a trabalhar na PUC, na Pós-Graduação, ministrando, entre outras, a disciplina de Metodologia de Pesquisa no Mestrado e, depois, os Seminários Avançados de Pesquisa, no Doutorado. Trabalhou nesta instituição até 2007. Quanto aos trabalhos em Educação Sexual no espaço das escolas, ressalta que o Colégio Vocacional também tinha projetos na área, mas após a intervenção do regime militar, estes se extinguiram. A partir da década de 70, os projetos de Educação Sexual em escolas, saem de pauta. Mas, com a emergência dos Movimentos Feministas, tomam fôlego, a partir das discussões sobre os direitos da mulher ao seu próprio corpo, principalmente discussões dentro dos espaços das universidades de ponta e instituições, como a Fundação Carlos Chagas, na qual o assunto era pesquisado. Na década de 80, várias iniciativas a respeito da Educação Sexual foram desenvolvidas. Eram realizados projetos com e para mulheres na periferia da cidade, tratando de assuntos como: gravidez na adolescência, Doenças Sexualmente Transmissíveis. Outros projetos com adolescentes também eram desenvolvidos. Na Fundação Carlos Chagas foram elaborados diversos materiais e folhetos sobre Educação Sexual, coordenados pelas pesquisadoras Cristina Bruschini e Carmem Barroso. Esses materiais durante muitos anos foram reproduzidos e utilizados por inúmeras entidades sociais. Mas, no início houve tentativa de proibição desses materiais por parte dos vereadores, atitude essa que não vingou. Quanto à edição dos PCN, a professora comenta que foi uma orientação geral. Tentou-se uma abertura entre 1996 e 1997. A implementação do assunto Orientação Sexual nos PCN foi um diferencial, mas não significou avanço no que diz respeito

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aos projetos propriamente ditos de Educação Sexual nas escolas. Houve, apenas, iniciativas isoladas em algumas escolas, como palestras (em geral por pessoal da saúde) sobre DST. A professora acredita que, no século XXI, ainda não existam projetos de Educação Sexual nas escolas, seja pública ou particular. Talvez alguns casos isolados, mas não se configuram como projetos articulados, duradouros e com estudos apropriados para tanto.

O enriquecimento que as entrevistas realizadas nos trouxeram, com as histórias vivas contadas, são recursos importantes e oportunidades únicas para o entendimento social e histórico. Há de se dizer que foram pequenas histórias que compuseram um projeto maior e nos trouxeram dados valiosos para a realização deste trabalho. Nas falas apresentadas, foram compartilhadas tentativas de realizar projetos sobre Educação Sexual Escolar, que a priori, não foram intencionais, mas acabaram tornando-se primordiais para um trabalho adequado dentro do CAP. Esses projetos foram, e ainda são, um marco na história de um trabalho organizado, no espaço da escola, sobre a sexualidade – tema considerado de difícil abordagem. As falas, por si, se bastam. Não necessitariam de análises, explicações, arguições etc. Louro (1990, p. 28) nos traz uma colocação importante, quando diz que “[...] estou convencida de que no encaminhamento de algumas problemáticas, a história oral pode ser um ponto de apoio fecundo, a lançar luz sobre sujeitos e temas ensombrecidos”. A temática estudada – Educação Sexual dentro do espaço educativo – pode (e deve!) se fazer presente no currículo escolar da atualidade. Ela deve ser integrada e entrelaçada às várias disciplinas. Deve, sobretudo, envolver toda a comunidade escolar: pai/mãe, professores/as, direção, equipes pedagógica e administrativa, alunos/ as e funcionários/as, possibilitando, assim, um olhar menos preconceituoso, que vem sempre permeado (infelizmente!) de tabus e repressões. Dessa forma, pensamos ser possível um trabalho sistematizado que traga conhecimentos e esclarecimentos adequados para o bom desenvolvimento da sexualidade, desenvolvimento este que precisa ser pleno e saudável, em todas as etapas da vida. A escola pode deixar de ser um espaço de opressão e repressão na questão da sexualidade, para se tornar um ambiente efetivamente seguro, livre e educativo para todas as pessoas (MAIO, 2011). E, hoje, não é mais possível que questões relativas à sexualidade passem despercebidas ou que sejam tratadas com deboche ou indignação moral. As histórias aqui trazidas corroboram com nossos estudos em nível de Mestrado e Doutorado, no momento em que afirmamos que a escola tem um papel primordial em relação ao estudo da sexualidade. É preciso, no entanto, uma discussão permanente e que diálogos possam modificar preconceitos e estereótipos. É preciso hoje, e cada vez mais, projetos interligados que favoreçam a comunidade educativa, como aqueles que foram realizados pelos/as nossos/as entrevistados/as, no passado.

3.3.

Interpretar estas histórias

Interpretar falas, analisar enunciações são momentos em um trabalho como este que se fazem importantes, como nos diz Bardin (1979), em uma análise de discurso. A interpretação, como afirmam Caregnato e Mutti (2006, p. 681) [...] é um gesto, ou seja, é um ato de nível simbólico. [...] a interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideologia e é materializada pela história. [...] é importante lembrar que o analista é um intérprete, que faz uma leitura também discursiva influenciada pelo seu afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências, portanto a interpretação nunca será absoluta e única, pois também produzirá seu sentido (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 681).

As falas que conseguimos nas entrevistas são tão vibrantes, tão intensas de esclarecimentos, emoção e detalhes importantes à nossa pesquisa, que interpretá-las, poderia ser um equívoco. Confessamos que nossos olhos ficaram “contaminados” pela leveza das palavras, do encontro e da receptividade. As histórias contadas vão além dos relatos do que aconteceu nas escolas. O momento da entrevista proporcionou uma “retrospectiva em nossas vidas”, como nos disse uma entrevistada, carregada de emoções. Trabalhar com a técnica da história oral, conforme nos diz Louro (1990, p. 22) [...] pode e deve ser realizada não só para pesquisar sujeitos ou temas aos quais não se teria outra forma de acesso, mas também, e com destaque, para responder a novas perguntas sobre antigos temas, provocar novos temas, abrir outras perspectivas de análise, estabelecer relações e articulações entre fatos, sujeitos e dimensões de um estudo. Estas preocupações podem, algumas vezes, ser atendidas através do exame de registros escritos, mas ainda assim a análise de fontes orais representará um enriquecimento significativo.

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Considerações finais O trabalho com histórias de vida nos faz refletir como essas experiências são intensas, quando se vibra e acredita no que se faz. As histórias que ouvimos e relatamos neste material nos trouxeram a riqueza da experiência de pessoas que mergulharam em seus projetos profissionais, com entusiasmo e dedicação ao trabalho docente. Enfatizar a questão da Educação Sexual Escolar e dá-la uma posição de destaque implica em estudos e sapiência, como quaisquer enfoques trabalhados dentro do espaço educativo (ALVARENGA, 2004). Louro (2001, p. 541) declara que Nos dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores passando a se constituir, efetivamente numa questão. Desde então, ela vem sendo descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada, normatizada, a partir das mais diversas perspectivas. Se nos dias de hoje ela continua alvo da vigilância e do controle, agora se ampliaram e diversificaram-se suas formas de regulação, multiplicaram-se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhes as normas, a definir-lhe os padrões de pureza, sanidade ou insanidade, a delimitar-lhe os saberes e as práticas pertinentes, adequadas ou infames. Ao lado de instituições tradicionais, como o Estado, as igrejas ou a ciência agora outras instâncias e outros grupos organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e sua ética. Foucault (1993) certamente diria que, contemporaneamente, proliferam cada vez mais os discursos sobre o sexo e que as sociedades continuam produzindo, avidamente, um “saber sobre o prazer” ao mesmo tempo em que experimentam o “prazer em saber”.

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A sexualidade vai além do corpóreo. Ela é um constructo histórico, produzida na cultura, que se modifica constantemente, com visões múltiplas e provisórias (MAIO, 2011). Voltando a atenção mais diretamente para a sexualidade, fica ainda mais evidente a diversidade de conceptualizações que aí são assumidas. A ancoragem da sexualidade na biologia costuma ser mais resistente do que ocorre em relação ao gênero. A aceitação da existência de uma matriz biológica, de algum atributo ou impulso comum que se constitui na origem da sexualidade humana persiste em algumas teorias. Quando isso ocorre, opera-se com uma noção universal e trans-histórica da sexualidade e, muitas vezes, remete-se ao determinismo biológico. O construcionismo social, já mencionado, contrapõe-se a essa ótica. Melhor seria dizer, no plural, que as perspectivas construcionistas opõem-se às perspectivas essencialistas e deterministas, uma vez que, como foi salientado, há um leque de compreensões distintas sobre o que vem a ser ou como se dá essa construção social. (LOURO, 2007, p. 218)

As entrevistas aqui apresentadas contemplam essa concepção histórica do aspecto da sexualidade. Elas traduzem um momento especial na questão da educação brasileira. Os anos 60, da década passada, trouxeram caminhos para a implantação de uma proposta de Educação Sexual Escolar, porém, com o Regime Militar, [...] a ditadura impôs um regime de controle e moralização dos costumes, especialmente decorrente da aliança entre os militares e o majoritário grupo conservador da Igreja Católica, a educação sexual foi definitivamente banida de qualquer discussão pedagógica por parte do Estado e toda e qualquer iniciativa escolar foi suprimida com rigor (CÉSAR, 2009, p. 40).

Atualmente, muitos trabalhos, grupos de pesquisa, de estudo, encontros científicos, dissertações, teses, palestras etc., podem ser encontrados em relação à sexualidade. São materiais excelentes, com pesquisadores/as envolvidos/as e interessados/ as em discutir um tema tão envolvente e apaixonante (MAIO, 2011). Estes saberes colaboram no sentido de se propagar a proposta de projetos de Educação Sexual Escolar, que tenham consistência e olhares apurados no sentido da cientificidade. É válido compreender o estudo da sexualidade na concepção biológica, tal como temos acompanhado (BRAGA 2002, 2008). Mas a Biologia não a esclarece em sua totalidade. A sexualidade implica mais do que corpos e nela estão envolvidos valores, fantasias, linguagens, comportamentos, rituais e “[...] representações mobilizados ou postos em ação para expressar desejos e prazeres” (LOURO, 2007, p. 219).

Assim, o que vinha sendo produzido no Colégio de Aplicação Pedagógica, da USP, foi abortado, extinto e proibido de retornar. Os/as professores/as entrevistados/as que tinham se envolvido com o que consideravam um projeto importante e adequado para se trabalhar com Educação Sexual, tiveram que desistir, por causa da repressão política. Como eles/as relataram, nas entrevistas, o que acreditavam que estava sendo um projeto inovador e, também, libertador, não pôde mais ser efetivado. Os projetos, trabalhos em grupos, parcerias e cumplicidade em um trabalho inovador, tiveram de ser catapultados, à custa de repressão e até de prisões. Nosso projeto inicial previa a busca por relatos de experiências de educadores/ as das décadas de 60 a 80. Mas, na coleta do material, algumas pessoas não apresentaram disponibilidade em nos atender. Priorizamos, assim, a década de 60, que nos foi mais oportuna, pela disponibilidade dos/as entrevistados/as.

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Como já afirmamos anteriormente, as histórias, os encontros e o carinho foram intensos. Os fatos narrados trouxeram fatos que, talvez, não tinham sido exteriorizados com tanta intensidade e, tão menos, publicados. Enfim, como diz Marilena Chauí (1973, p. 25) “lembrar não é re-viver, é re-fazer”. Certamente, relembrar estas histórias nos fez e nos faz reviver imensas colaborações e emoções a respeito do tema. Acreditamos, finalmente, que a relevância deste trabalho se faz no sentido de trazer ao presente estes fatos e que estes registros possam contribuir aos/às pesquisadores/as da área da sexualidade e de gênero na escola, dados importantes que ampliem uma história tão rica e profícua.

CÉSAR, M. R. A. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma “Epistemologia”. Educar, Curitiba, n. 35, p. 37-51, 2009.

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BREVE HISTORIOGRAFÍA DE LA EDUCACION SEXUAL EN EL CONTEXTO EDUCATIVO ESPAÑOL BRIEF HISTORIOGRAPHY OF SEX EDUCATION IN SPANISH EDUCATIONAL CONTEXT

Eladio Sebastián Heredero1 RESUMEN

ABSTRACT

En este artículo se ha tratado de hacer un repaso por la educación en valores, y dentro de ella específicamente la educación sexual, en el contexto de educativo español a lo largo de los últimos años. En la revisión por el contexto de la enseñanza obligatoria y los desarrollos legislativos relativos al currículo la educación sexual, como temática específica, vemos que ha sido desarrollada de forma muy diferente en los últimos cuarenta años, desde propuestas que lo dejaban en el denominado currículo oculto hasta propuestas más explícitas y curriculares. Sin embargo, podemos afirmar que la forma más generalizada que ha adquirido es la de programas concretos que se incluían en la programaciones didácticas o en los contenidos de la acción tutorial.

This article has tried to do a review of values education, and within sex education specifically in the context of Spanish education over recent years. The review by the context of compulsory education and legislative developments relating to the curriculum of sex education as a specific subject, we see that it has been developed very differently in the past forty years, from proposals that left him in the so-called hidden curriculum to more explicit and curriculum proposals. However, we can say that the most widespread form you purchased is the specific programs that were included in the teaching programs, or the contents of the tutorial.

PALABRAS-CLAVE

KEYWORDS

Educación sexual. Sexología. Educación en valores. Transversalidad, Currículo.

Sexual Education. Sexology. Values education. Mainstreaming, Curriculum.

1. Introduccion Cuando se habla de educación en general siempre aparece el debate sobre el tratamiento del componente de la misma denominado educación en valores. 1

Universidad de Alcalá - Alcalá - España. E-mail: [email protected]

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La educación sexual y educación afectivo-sexual ha constituido un campo propio y singular dentro de este continuo que es la educación frente a la mera instrucción. Investigadores y universidades, además de médicos y psicólogos, han tratado de aportar luz tanto en el capítulo de lo conceptual como en el de su tratamiento pedagógico. La educación sexual y afectivo-sexual es un derecho de todas las personas y que se construye desde todas las edades, para ello hace falta la colaboración de las familias pero no se debe depositar en ellas toda la responsabilidad. Debemos ser conscientes de que en la sexualidad y sus relaciones, influyen agentes sociales, políticos y profesionales que hacen necesario que las administraciones públicas pongan los medios necesarios para que se cumpla ese derecho. Por tanto, y para evitar la aparición de currículum oculto, hay que favorecer políticas educativas que sean algo más que “planes sobre papel” y que tengan en cuenta a toda la comunidad educativa y la experiencia de los distintos profesionales que llevan años trabajando en este tema. Mediante la educación sexual se pretende que todas las personas alcancen una información sexual suficiente y científica, y consoliden, como actitudes básicas, la aceptación del propio cuerpo y la naturalidad en el tratamiento de los temas relacionados con la sexualidad, los hábitos de higiene y el respeto a las diferentes manifestaciones de la misma. Por educación afectivo-sexual se incluyen además los temas referidos a las emociones y la relación que entre dos personas se da, incluyendo todo lo anteriormente dicho. Es por tanto un concepto más amplio y por el que se opta en el currículo español.

Los estudios y análisis de los valores tienen una tradición de muchos años en la universidad española, de la misma manera, en las etapas educativas anteriores a la universidad, bachilleratos y cursos preuniversitarios por su corte humanista siempre han aparecido las disciplinas filosóficas y el tratamiento de los valores, aunque apenas hay referencias de su abordaje explícito en la educación básica y menos aún de la educación sexual. En 1843, se cita como punto de partida en las diferentes Historias de la Filosofía, se crea la Facultad de Filosofía con entidad propia y la misma categoría del resto de las facultades existentes y tradicionales; aunque va a ser en 1857 con la Ley Moyano cuando se crea la Facultad de Filosofía y Letras que perdurará como tal hasta épocas bien recientes y la educación en valores referenciada siempre a la Moral.

La Institución Libre de Enseñanza (1876) marcó una referencia en educación en valores se apoyaron en grandes pensadores como Tolstoi, Unamuno, Ramón y Cajal, Juan Ramón Jiménez, Sanz del Río, etc… y revolucionaron el sistema educativo español situándolo a la vanguardia europea. De este movimiento, encabezado por Giner de los Ríos, surgieron talentos como los hermanos Machado, Ortega y Gasset, Marañón, la Generación del 27, … y en ella uno de los principios de referencia es la igualdad entre hombres y mujeres y el acceso total de éstas a la educación. Quizás sea durante esta época cuando aparece el primer referente claro en educación relacionado con el sexo. La Asociación para la Enseñanza de la Mujer, y la Escuela de Institutrices imparte dentro de las clases de Psicología, dadas por Giner de los Ríos, las teorías de Krause, Ahrens, Tiberghien y Sanz del Río y destaca dentro del temario las referencias a las diferencias individuales relativas al sexo y de estos antagonismos se deriva un diferente modo de entender la vida por ambos sexos. Esta concepción del sexo como oposición primaria entre los individuos, divergente y a la vez complementaria, muy deudora de Krause y Sanz del Río, es desarrollada con mayor amplitud por Giner en sus Principios de Derecho Natural. En estos albores del siglo XX a nivel de enseñanza superior destaca la obra de Ortega y Gasset, profesor de Metafísica en la Universidad de Madrid. Otro de los metafísicos españoles que han venido tratando el tema de los valores, ha sido el profesor Alfonso López Quintás y debemos destacar, así mismo, un discípulo eminente de Ortega y Gasset como es el catalán Joaquín Xirau, quien tiene una importante obra sobre los valores y la educación. Con la llegada de la II República, la Institución Libre de Enseñanza releva a los Jesuitas, que hasta entonces ostentaban el monopolio educativo y los principios de educación en valores presentes en la forma de entender la educación. Durante la época de la dictadura (1939-1975), la educación en valores se daba por supuesta en nuestro sistema educativo preuniversitario, ya que se creía garantizada por la enseñanza de la religión y por la disciplina escolar denominada “Formación del espíritu nacional” con carácter general para todos los alumnos y la materia de Filosofía en algún curso del Bachillerato Superior. La asimilación de los valores y la ética con el ámbito de la religión y, a veces, con unos determinados comportamientos sexuales, era la forma frente a la necesidad de educar en los valores de la ética civil. Por esta causa a partir de los setenta, los estudios de los valores perdieron vigor e importancia entre los filósofos españoles. Ricardo Marín ha sido uno de los máximos representantes en España de los estudios sobre los valores en su doble dimensión filosófica y pedagógica publicó la obra “Valores, objetivos y actitudes

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2. Antecendentes

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en educación” (1976); en ella aparece la confluencia de la tradición pedagógica de los valores que encarnaban Zaragüeta, Tusquets y Xirau y la tradición filosófica en Europa. Un hito importante lo marca el VI Congreso Nacional de Pedagogía de 1976 en Madrid, bajo el lema “Crítica y porvenir de la educación”, siendo presidente el profesor Víctor García Hoz, en cuya sección primera del Congreso se trabajó “La educación en función de los valores”. A partir de este momento son muy pocas las referencias en el panorama español a la educación en valores. Aunque no se aborda el tema de educación sexual a pesar de que la Organización Mundial de la Salud (OMS) había llamado la atención en 1973 sobre la falta de formación sobre sexualidad de personas capaces de ejecutar los programas educativos donde se pretendía dar información. Por fortuna, la Constitución Española de 1978, en su artículo 27, prescribe las finalidades del sistema educativo y los valores que han de regir la convivencia entre los españoles. En 1981 se inicia la andadura del Seminario Interuniversitario de Teoría de la Educación, constituido por un grupo representativo de profesores de las universidades españolas dedicados a la enseñanza e investigación en este campo de conocimiento. En los años setenta se publicaron informes prestigiosos de instituciones internacionales como “Aprender a ser” UNESCO: 1972, “Aprender, horizontes sin límites” CLUB DE ROMA: 1979. La Conferencia General de la UNESCO, en 1980 hace un estudio2 sobre “la evolución del conjunto del contenido de la educación a la luz de las exigencias del mundo del trabajo y del progreso de la ciencia, de la tecnología y de la cultura”, en todos ellos se aconseja explícitamen la necesidad de trabajar en valores en la educación obligatoria.

3. Tratamiento de la educacion sexual en la ordenacion educativa basica Estas orientaciones van a ser seguidas por los redactores de las leyes de educación y va a ser en la reforma educativa propuesta por la Ley Orgánica General de Sistema Educativo (LOGSE) donde se introduce en educación la enseñanza en valores en el sistema educativo español y por primera vez se aborda en la educación básica la educación sexual.

3.1. Ley organica general del sistema educativo El Sistema Educativo de la LOGSE de 1990 propone entender la acción educativa en un sentido amplio, incluyendo los valores y las actitudes como una parte esencial, al considerar que la educación tiene entre sus finalidades “la integración de niños/as, jóvenes en la cultura del grupo social y también la formación ético cívica en aquellos valores que sería deseable defender y/o aspirar en nuestro mundo actual y futuro”. La educación está configurada por los aspectos conceptuales, habilidades o procedimientos y por pautas de conducta, normas sociales, valores morales. Por eso los Decretos de Enseñanza planteaban la necesidad de reafirmar la función moral de la escuela, de modo que todo el curriculo esté impregnado de valores morales y cívicos en forma transversal a todas las materias. La escuela debe intervenir explícitamente, sin delegar, aunque sí compartiendo en la producción de valores y actitudes sociales ético-cívicos. En su preámbulo se explicita: El objetivo primero y fundamental de la educación es el de proporcionar (...) a los jóvenes de uno y otro sexo una formación plena que les permita conformar su propia y esencial identidad, así como construir una concepción de la realidad que integre a la vez el conocimiento y la valoración ética y moral de la misma. Tal formación ha de ir dirigida al desarrollo de su capacidad para ejercer de manera crítica y en una sociedad axiológicamente plural, la libertad, la tolerancia y la solidaridad. En la educación se transmiten y se ejercitan los valores que hacen posible la vida en sociedad, singularmente el respeto a todos los derechos y libertades fundamentales, se adquieren los hábitos de convivencia democrática, y de respeto mutuo, se prepara para la participación responsable en las distintas actividades e instancias sociales. La madurez de las sociedades se deriva, en muy buena medida, de su capacidad para integrar, a partir de la educación y con el concurso de la misma, las dimensiones individual y comunitaria.

Principios: a) La actividad educativa será una formación personalizada, que propicie una formación integral en conocimientos, destrezas y valores morales de los alumnos en todos los ámbitos de la vida, personal, familiar, social y profesional. c) La efectiva igualdad de derechos entre los sexos y el rechazo a todo tipo de discriminación, y el respeto a todas las culturas. e) El fomento de los hábitos de comportamiento democrático.

2

El informe se publica con el título “Les contenus de l`éducation. Perspectives mondials d`ici à l´an 2000” UNESCO (1987).

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k) La formación en el respeto y defensa del medio ambiente(Art 2).

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3.1.1. La logse y los temas transversalES

f ) Analizar los principales factores que influyen en los hechos sociales y conocer las leyes básicas de la naturaleza.

Esta concepción hace que las enseñanzas o temas transversales impregnen el currículum establecido en sus distintas áreas, hasta el punto de que carece de sentido que el profesorado se plantee si está desarrollando un área determinada o un tema transversal concreto. La impregnación tiene que ser recíproca: los temas transversales están presentes en las áreas y éstas se hallan presentes en los Temas Transversales. Hablar de enseñanzas transversales no es hablar de contenidos nuevos que no estén ya reflejados en los contenidos de las áreas, sino que simplemente se trata de organizar algunos de esos contenidos alrededor de alguno de los temas transversales. Sus características singulares, por tanto, son:

h) Conocer las creencias, actitudes y valores básicos de nuestra tradición y patrimonio cultural, valorar críticamente y elegir aquellas opciones que mejor favorezcan su desarrollo integral como personas.

La “filosofía” curricular de la transversalidad puede aportar innumerables ventajas y puede mejorar la calidad de la educación3 en varios frentes:

“e) Apreciar los valores básicos que rigen la vida y la convivencia humana y obrar de acuerdo con ellos. g) Conocer las características fundamentales de su medio físico, social y cultural y las posibilidades de acción en el mismo. h) Valorar la higiene y la salud de su propio cuerpo, así como la conservación de la naturaleza y del medio ambiente. i) Utilizar la educación física y el deporte para favorecer el desarrollo personal”. Art 13

e) Conocer, valorar y respetar los bienes artísticos y culturales.

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Conocer el medio social, natural y cultural en que actúan y utilizarlos como instrumentos de formación.

“c) Analizar y valorar críticamente las realidades del mundo contemporaneo y los antecedentes y factores que influyen en él. e) Consolidar una madurez personal, social y moral que les permita actuar de forma responsable y autónoma. f ) Participar de forma solidaria en el desarrollo y mejora del entorno social. j) Utilizar la educación física y el deporte para favorecer el desarrollo personal” Art 26.

3) La ineludible carga en valores (de índole predominantemente moral), que su tratamiento conlleva y el hecho de que esta aparezca en forma explícita en el currículo.

d) Comportarse con espíritu de cooperación, responsabilidad moral, solidaridad y tolerancia, respetando el principio de la no discriminación entre las personas.

j)

Asimismo, respecto al Bachillerato, podemos considerar relacionados cuatro de los nueve que desarrolla:

2) La indudable relevancia social de las cuestiones o problemas que integran esta temática.

En la Educación Secundaria Obligatoria, siete de estos objetivos generales que se consideran para desarrollar en el alumnado de un total de los once propuestos están en clara relación también con la educación en valores y los temas transversales

Valorar críticamente los hábitos sociales relacionados con la salud, el consumo y el medio ambiente.

k) Utilizar la educación física y el deporte para favorecer el desarrollo personal”. Art. 19.

1) Su propio carácter transversal decide el hecho de que no aparezcan asociadas a algunas áreas de conocimiento, sino a todas ellas y a todos sus elementos prescriptivos (objetivos, contenidos y criterios de evaluación).

Cuatro de los objetivos generales que se pretenden desarrollar en el alumnado en la Educación Primaria, de un total de nueve propuestos, se pueden considerar claramente relacionadas con la educación en valores y los TEMAS TRANSVERSALES.

i)



Diversifica el desarrollo curricular, lo enriquece y actualiza incluyendo otros muchos elementos: los medios de comunicación, las nuevas tecnologías, etc.



Actúa como elemento aglutinador del conocimiento científico, incorporando sistemas extradisciplinares que permiten la creación de invariantes culturales.



Permite el desarrollo de contenidos de alta funcionalidad y utilidad social, actuando de puente entre el conocimiento científico codificado y las aportaciones más recientes.



Desarrolla fórmulas alternativas de organización escolar para el desarrollo curricular.

Esta ampliación de las funciones son de la Escuela como agente socializador, cuando el ascenso de demandas sociales se corresponde paralelamente con el hecho de que otras instancias (como la familia) se inhiben de su primaria labor educativa. Esta dejadez ha hecho que cualquier problemática social relevante sea considerada

3

Cfr. Reyzábal y Sanz, (1995)

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contenido curricular, como se pone de manifiesto en el campo abierto de los TEMAS/ EJES TRANSVERSALES.

“educación para la sexualidad y la afectividad” que se incardina dentro del concepto de Salud indisolublemente, porque sexualidad es ante todo aceptación de uno/a mismo/a: no existe individuo sano con autoestima dañada; y por tanto una afectividad sana generará siempre relaciones saludables con uno mismo y con los demás. Se opta por esta forma de abordarlo siguiendo las corrientes dimanadas de la Organización Mundial de la Salud que define la salud sexual como: “La integración de los elementos somáticos, emocionales, intelectuales y sociales del ser humano, por medios que sean positivamente enriquecedores y que potencien la personalidad, la comunicación y el amor” En consecuencia la “contingencia educativa” en este terreno debe ser explícitamente democrática, y evitar con cuidado el neutralismo del currículum oculto (prejuicios incluidos), y por supuesto un exquisito respeto de los/as otros/as, y desde el campo de la afectividad. Por la escolarización obligatoria hasta los 16 años, la escuela se convierte en el agente socializador por excelencia en la época en que despierta su interés por estos temas. En ella se forman los grupos de iguales, dónde las decisiones, las posturas ante situaciones, los valores, se han ido formando y haciéndolas propias. En este currículo se contemplan los siguientes objetivos:

3.1.2. Ambitos de la educación en valores – temas transversales Toda acción educativa es ya una actividad cargada de valor, por lo que, en cierto modo, es redundante hablar de “Educación en Valores”, salvo que se quiera hacer hincapié en una educación explícitamente cargada de valores educativos, debidamente planificados en conjunción con las restantes áreas y tareas del centro. El Curriculum de la LOGSE propone inscribir la educación en valores y actitudes en todos los ámbitos de la acción educativa. De este modo los contenidos actitudinales forman parte de los componentes curriculares de todas las áreas/materias de la educación obligatoria y la educación moral y cívica queda como tarea de la acción conjunta del Centro Escolar por el Proyecto de Centro, y más ampliamente: LAS ENSEÑANZAS TRANSVERSALES COMPLETARÍAN ESTA FORMACIÓN EN CAMPOS ESPECÍFICOS: –

La educación moral y cívica,



La educación para la paz,



La educación para la salud,



La educación para la igualdad de oportunidades entre los sexos,



La educación ambiental,



La educación sexual,



La educación del consumidor y



La educación vial.

1º Formarse una imagen ajustada de sí mismo, de sus características y posibilidades y desarrollar actividades de forma autónoma y equilibrada, valorando el esfuerzo y la superación de las dificultades. 2º Relacionarse con otras personas y participar en actividades de grupo con actitudes solidarias y tolerantes superando inhibiciones y prejuicios, reconociendo y valorando críticamente las diferencias de tipo social y rechazando cualquier discriminación basada en diferencias de raza, sexo, clase social, creencias y otras características individuales o sociales.

3.1.3. Educacion para la salud – educacion afectivo-sexual

3º Conocer y comprender los aspectos básicos del funcionamiento del propio cuerpo y de las consecuencias para la salud individual y colectiva de los actos y las decisiones personales y valorar los beneficios  que suponen los hábitos del ejercicio físico, de la higiene y de una alimentación equilibrada, así como llevar una vida sana

La Educación para la Salud – Educación afectivo sexual se relaciona con otros temas transversales en cuanto favorezcan o participen de cuestiones saludables. Así un medio ambiente saludable, invade el aspecto físico, pero también el cultural y el social, pero además existen otros temas transversales que se consideran implícitos en la Educación para la Salud, como es el concepto de la “coeducación” o de la “educación para la Igualdad” y sobre todo la llamada

Los argumentos hasta ahora expresados  para educar en la escuela sobre educación afectivo sexual son:

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Mejorar la calidad de la enseñanza



Potenciar la investigación desde la práctica educativa, favoreciendo actitudes creativas, novedosas que permitan una mejora educativa



Desarrollar este tema transversal utilizando un vocabulario correcto, ofreciendo información clara, concisa y completa, desarrollando valores como la tolerancia y solidaridad, eliminando actitudes discriminatorias hacia ciertas conductas y enfermedades



Educar para formar un proyecto de vida a los alumnos, un proyecto que guíe su conducta, que le identifique en todo momento



Ayudarles a configurar la sexualidad en esta época especialmente conflictiva de su vida como es la adolescencia



Eliminar mitos y tabúes de los alumnos detectados por los profesores al analizar los conocimientos previos



Evitar posibles frustaciones debidas a un falso entendimiento del tema



Formar personas desarrollando todas las capacidades, personas crítica, maduras.

La educación sexual como tal va a constituir además contenido del currículo de determinadas áreas y en algunos casos el desarrollo de programas específicos con este fin. Dedicaremos un capítulo específico a ver algunos de estos programas tan interesantes.

3.2. Ley organica de calidad de la educación En 2002 se inicia una nueva reforma educativa, se promulgó la llamada Ley Orgánica de Calidad de la Educación (LOCE) que finalmente no llegó a desarrollarse en el aula y que eliminó la concepción de la LOGSE tanto de concepción curricular diferenciado como de tratamiento transversal en el tema de educación en valores. El objetivo primero a lograr en las etapas educativas continúa siendo “conocer los valores y normas de convivencia, aprender a obrar de acuerdo con ellos y respetar el pluralismo propio de la sociedad democrática” pero su tratamiento queda difuso. Aparece un vacío, dejado para el currículo oculto, para que los alumnos adquieran las normas de convivencia, los valores sociales y los hábitos de autonomía personal que les permitan madurar en su autogobierno y participar en su medio social de forma libre y responsable, ya que se fija la directriz de trabajar en valores pero no se concreta. Por supuesto que con ello hay una desaparición total a lo relativo a la educación afectivo-sexual, que pasará a tener un desarrollo a través de programas puntuales y de exclusiva dependencia y responsabilidad del profesorado. 230

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Los comportamientos sociales, como todos los hábitos, sólo se adquieren a través de una metodología basada en el diálogo y la participación en experiencias compartidas, en las que los pequeños ciudadanos, en edad de aprender, pongan en práctica la autodirección de su vida y los hábitos de convivencia social; los contenidos de una formación cívica son, prioritariamente, de carácter actitudinal y procedimental, por lo que los valores y normas de comportamiento social deben adquirirse de forma estable y permanente a lo largo de toda la educación básica, hecho que no llegó a concretarse, como hemos dicho. Va a ser a través de la asignatura de Sociedad, Cultura y Religión, como materia con entidad propia, mediante al análisis de los valores estéticos, culturales y sociales, con la que se trabaje este tema de forma general para todo el alumnado, además de la opción puramente confesional. Aparece también en un curso de la Educación Secundaria Obligatoria la materia de Ética en la que se incluye un tema de valores y normas sociales y una parte específica en el temario relativa a problemas derivados del mundo personal: “relaciones personales: amor, amistad y sexualidad”. La formación cívica que había adquirido carta de naturaleza en el currículo con la LOGSE, la primera ley constitucional que reconoce una moral y una ética de carácter laico basada en los Derechos Humanos, que opta por una educación en valores vivencial y práctica, cambia de formato y se desarrolla en forma de materia complementada con la enseñanza de la Religión Católica. En el currículo de mínimos de la LOCE, en principio, no aparecen los temas transversales, algunos objetivos de la educación cívica se incluyen como contenidos conceptuales de las materias de enseñanza, el valor que se resalta es el esfuerzo individual.

3.3. Ley organica de educación Un nuevo giro se da a la educación afectivo sexual con la publicación de la LOE, Ley Orgánica de Educación (2006). A partir de este momento el sistema educativo español se orientará a la consecución de valores en general como los expresados en los siguientes fines: b) La educación en el respeto de los derechos y libertades fundamentales, en la igualdad de derechos y oportunidades entre hombres y mujeres y en la igualdad de trato y no discriminación de las personas con discapacidad.

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c) La educación en el ejercicio de la tolerancia y de la libertad dentro de los principios democráticos de convivencia, así como en la prevención de conflictos y la resolución pacífica de los mismos. e) La formación para la paz, el respeto a los derechos humanos, la vida en común, la cohesión social, la cooperación y solidaridad entre los pueblos así como la adquisición de valores que propicien el respeto hacia los seres vivos y el medio ambiente, en particular al valor de los espacios forestales y el desarrollo sostenible.

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3.3.1. Educación para la ciudadania En uno de los cursos del tercer ciclo de la etapa de primaria, se cursa “Educación para la ciudadanía y los derechos humanos”. En el se prestará especial atención a la igualdad entre hombres y mujeres, y de una forma amplia la educación afectivo sexual. Es por tanto una forma de ver la introducción de este tema dentro del currículo y dentro de una materia en concreto.

Más concretamente la educación primaria contribuirá a desarrollar en los niños y niñas las capacidades que les permitan desarrollar valores en general pero con la inclusión del componente afectivo-sexual:

La Educación para la ciudadanía y los derechos humanos en esta etapa tendrá como objetivo el desarrollo de las siguientes capacidades: –

a) Conocer y apreciar los valores y las normas de convivencia, aprender a obrar de acuerdo con ellas, prepararse para el ejercicio activo de la ciudadanía y respetar los derechos humanos, así como el pluralismo propio de una sociedad democrática. k) Valorar la higiene y la salud, aceptar el propio cuerpo y el de los otros, respetar las diferencias y utilizar la educación física y el deporte como medios para favorecer el desarrollo personal y social.

Desarrollar la autoestima, la afectividad y la autonomía personal y utilizar habilidades emocionales, comunicati vas y sociales con uno mismo y en las relaciones con los demás demostrando actitudes generosas y constructivas.



Conocer y apreciar los valores y normas de convivencia y aprender a obrar de acuerdo con ellas.



Según la LOE, en la educación secundaria obligatoria contribuirá a desarrollar en los alumnos y las alumnas las capacidades que les permitan:

Reconocer la diversidad como enriquecedora de la convivencia, evitar los estereotipos y prejuicios y mostrar respeto por las costumbres y modos de vida de personas y poblaciones distintas a la propia.



Identificar y rechazar situaciones de injusticia y de discriminación, mostrar sensibilidad por las necesidades de las personas y grupos más desfavorecidos y desarrollar comportamientos solida rios y contrarios a la violencia”4.

a) Asumir responsablemente sus deberes, conocer y ejercer sus derechos en el respeto a los demás, practicar la tolerancia, la cooperación y la solidaridad entre las personas y grupos, ejercitarse en el diálogo afianzando los derechos humanos como valores comunes de una sociedad plural y prepararse para el ejercicio de la ciudadanía democrática. c) Valorar y respetar la diferencia de sexos y la igualdad de derechos y oportunidades entre ellos. Rechazar los estereotipos que supongan discriminación entre hombres y mujeres. d) Fortalecer sus capacidades afectivas en todos los ámbitos de la personalidad y en sus relaciones con los demás, así como rechazar la violencia, los prejuicios de cualquier tipo, los comportamientos sexistas y resolver pacíficamente los conflictos.

Sigue la propuesta curricular de diferenciación de contenidos y las actitudes, normas y valores van a constituir un bloque, no diferenciado, pero significado en el conjunto de los contenidos. Desaparece el tratamiento transversal de temas, incorporándose como novedad la necesidad de alcanzar ciertas competencias y entre ellas están las de valores y ciudadanía o la emocional con toda su carga de afectos y relaciones. Pero además se da un tratamiento diferenciado en la educación en valores mediante la incorporación de una materia específica. 232

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Y para ello se organiza de forma que los contenidos a desarrollar se concreten entre otros en los siguientes, entre los que sí aparece relación con la educación afectivo sexual. Bloque: Autonomía y responsabilidad. –

Valoración de la identidad personal, de las emociones y del bienestar e intereses propios y de los demás. Desarrollo de la empatía.

Bloque: Diversidad natural, cultural o religiosa y desigualdad social. –

Reconocimiento de las diferencias de sexo. Identificación de desigualdades entre mujeres y hombres. Valoración de la igualdad de derechos de hom bres y mujeres en la familia y en el mundo laboral y social”.

En uno de los tres primeros cursos todos los alumnos cursarán la materia de educación para la ciudadanía y los derechos humanos en la que se prestará especial atención a la igualdad entre hombres y mujeres. 4

Las referencias se hacen a partir de los Decretos de Curriculum de Castilla-La Mancha

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La materia de Educación para la ciudadanía y los derechos humanos en esta etapa, tendrá como objetivo el desarrollo de las siguientes capacidades:

3.3.2. Educacion sexual



Conocer la condición humana en su dimensión individual y social, aceptando la propia identidad y respetando las diferencias con los otros y desarrollando la autoestima.



Expresar sentimientos y emociones; desarrollar actitudes de iniciativa personal; asumir responsabilidades; tener un criterio propio; utilizar las habilidades comunicativas y sociales, el diálogo y la mediación para practicar formas de convivencia y participación basadas en la solidaridad, el respeto, la tolerancia, la cooperación y abordar los conflictos, desde la defensa de la postura propia y el respeto a las razones y argumentos de los otros

Los contenidos de Educación Sexual5 afectan áreas del currículo como Conocimiento del Medio, Ciencias Naturales, Biología,… incluso se han abordado desde las acciones desarrolladas en las programaciones de Tutoría. En muchos casos se ha optado por hacer un desarrollo técnico para lo que se recurre a materiales publicados por diferentes organismos e instituciones con gran competencia en la materia. Facilitamos a continuación un listado de los más relevantes:





Defender la igualdad de derechos y oportunidades de todas las personas, rechazando las situaciones de injusticia y las discriminaciones existentes por razón de sexo, origen, creencias, diferencias sociales, orientación afectivo-sexual o de cualquier otro tipo, como una vulneración de la dignidad humana y causa perturbdora de la convivencia. Reconocer, especialmente, los derechos de la mujer, valorar la diferencia de sexos y la igualdad de derechos entre ellos y rechazar los estereotipos y prejuicios que supongan discriminación entre hombres y mujeres.

Los contenidos a desarrollar son: Bloque 1. Relaciones interpersonales y participación –



Diversidad y Desigualdad. Igualdad de derechos y diversidad. Valoración crítica de la división social y sexual del trabajo y de los prejuicios sociales racistas, xenófobos, sexistas y homófobos. Respeto y valoración crítica de las opciones personales de los ciuda danos. Opiniones y juicios propios con argumentos razonados y capacidad para aceptar las opiniones de los otros. Práctica del diálogo como estrategia para abordar los conflictos de forma no violenta. Análisis comparativo y evaluación crítica de informaciones proporcionadas por los medios de comunicación sobre un mismo hecho o cuestión de actualidad.



AA.VV. (1993). Programa de Coeducación. Sevilla: Consejería de Educación y Ciencia, Junta de Andalucía.

Trabajo llevado a cabo por las/los coordinadoras/es de coeducación de las distintas delegaciones de la Consejería de Educación. Contiene ponencias muy interesantes que resumen muy bien lo que sabemos sobre sexismo, roles de género y su situación en el ámbito educativo. También se presentan, en varios volúmenes, medidas de acción positiva para la igualdad: ejemplos de cómo desarrollar un centro de interés, materiales para trabajar la orientación profesional coeducativa, un enfoque coeducativo de las CC. de la Naturaleza, y cómo desarrollar el Proyecto de Centro desde una perspectiva coeducativa.

Bloque 4. Ciudadanía en un mundo global –

López, Félix (1990). Educación sexual. Urruzola, Mª José (1991). ¿Es posible coeducar en la actual escuela mixta? Una programación curricular de aula sobre las relaciones afectivas y sexuales. BARRAGÁN, F. (1991). La educación sexual. Guía teórica y práctica. Barcelona: Paidós.

Para educadores/as, libro de referencia obligatoria, ya que se analizan los mitos sobre educación sexual y se propone una metodología para trabajar este campo desde una perspectiva constructivista. Se ejemplifican cuatro temas de enseñanza aprendizaje, desarrolladas en los distintos niveles educativos: identidad sexual, orientaciones a la respuesta sexual, reproducción y autoestimulación. Contiene una bibliografía comentada por temas e instrumentos de diagnóstico y evaluación.

Autonomía personal y relaciones interpersonales. Afectos y emociones. Las relaciones humanas: relaciones entre hombres y mujeres y relaciones intergeneracionales. Exposición de opiniones y juicios propios con argumentos razonados.

Bloque 2. Deberes y derechos ciudadanos –

– –

– –

Un mundo desigual: riqueza y pobreza. La “feminización de la pobreza”. La falta de acceso a la educación como fuente de pobreza. La lucha contra la pobreza y la ayuda al desarrollo.

Abenoza, Rosa (1994). Sexualidad y juventud: historias para una guía. VVAA del Programa Harimaguada (1994). Carpeta didáctica de educación afectiva-sexual.

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Como ya se ha indicado anteriormente estos programas han servido desde la publicación de la LOGSE para poder desarrollar estos contenidos.

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Breve historiografía de la educacion sexual en el contexto educativo español

Materiales curriculares, contienen indicaciones sobre sexualidad evolutiva, metodología y ejemplos de recursos didácticos de ayuda en el desarrollo de los principales centros de interés del alumnado de los distintos niveles: Educación Infantil, Primaria y Secundaria. Se presentan anexos para trabajar con madres y padres, e indicaciones metodológicas para el profesorado.

desarrollo de bloques temáticos y ejemplificaciones. De especial interés tanto las programaciones, para conocer la metodología constructivista, como el módulo “La Organización de un Proyecto de Centro”, donde viene desarrollada una propuesta educativa, paso a paso, en un centro de secundaria.



Marinis, Diana; Colman, Ondina (1995). Educación sexual: Orientaciones didácticas para la educación secundaria obligatoria.



Ansa, Ana; Begué, Charo; Cabodevilla, Iosu; Echauri, Margarita et al. (1995) Guía de salud y desarrollo personal para trabajar con adolescentes.



SAVALL, A., MOLINA, M.C., CABRA, J., SARASÍBAR, X. y MARÍAS, I. (1998). Yo, tú, nosotros. Educando la sexualidad y la afectividad. Barcelona: Ediciones Octaedro.

Manual elaborado por un equipo de profesionales de la enseñanza para alumnado de Educación Secundaria. Con actividades y recursos grupales para trabajar, desde una perspectiva interdisciplinar, la sexualidad y la afectividad humanas con personas adolescentes, integrando de una manera amena y vivencial los diferentes aspectos de la sexualidad humana (biológicos, antropológicos, históricos, éticos, legales, psicológicos...). Más información sobre metodología y recursos documentales se puede consultar en la web de los autores y autoras www.xtec.es/~imarias/sexaf.htm –

González, María del Mar; Gutiérrez, Beatriz; Sánchez, Ylansa . (1998). Familias diversas, familias felices.



Paniza, Reyes; Durán, Matilde; Fernández, Mª José; López, Mercedes (1998). Mía, tuya, nuestra sexualidad.

Cuaderno para el alumnado acompañado de una Guía para el Profesorado, es de lo más atractivo y fresco que se ha publicado este año para trabajar este tema con personas adolescentes. Contiene recursos y programaciones sobre cada uno de los temas que se aborda, con una edición muy elaborada y atractiva. –

Comisión de Educación de COGAM (Colectivos de Lesbianas y Gays de Madrid). (1999). La orientación sexual: 25 cuestiones sobre la orientación homosexual.



BARRAGÁN, F. et al. (1999). Programa de Educación Afectivo Sexual. Educación Secundaria (Vols. I-VI). Materiales Curriculares. Sevilla: Consejería de Educación y Ciencia e Instituto de la Mujer, Junta de Andalucía.

Materiales curriculares para la Educación Secundaria. Consta de varios volúmenes donde se desarrolla la fundamentación, objetivos, la metodología constructivista, 236

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Bolaños, Mª Carmen; González, Mª Dolores; Jiménez, Manuel; Ramos, Mª Elena. (1999). Educación afectivo-sexual.



HAFFNER, D.W. (2001). De los pañales a la primera cita. La educación sexual de los hijos de 0 a 12 años. Madrid: Alfaguara.

Guía que recoge la experiencia de la autora como técnica de SIECUS, “Sex Information and Education Council of the United States”, organización norteamericana dedicada al estudio y difusión de la Sexualidad Humana y la Educación Sexual. A partir de una buena revisión de la sexualidad evolutiva y de las diversas situaciones e intereses que surgen en las distintas edades del desarrollo, propone pautas de actuación así como elementos para revisar nuestras actitudes y habilidades de comunicación en el quehacer educativo. Especialmente recomendada para madres y padres, así como para personas educadoras que trabajen con este colectivo. –

Salas, Begoña; Serrano, Inmaculada; Urruzola, Mª José (2001). Educar desde la igualdad: la aventura de ser personas: guía para llegar a ser padres y madres creativas y sin culpa.



Alonso, Julián; Brugos; Valentín; González, José Manuel; Montenegro, Manuel (2002). El respeto a la diferencia por orientación sexual.



Azaguirre, Felisa; Eguren, Edurne; Etxebarria, Nerea; González, María Victoria; Rodríguez, Ana María; Sarrionandia, María Nieves (2003). Afecto y coeducación en educación primaria.



Fernández-Peña, Liliana; Sampedro, Pilar (2003). Educación afectivo-sexual: adolescencia y violencia de género.



Hernández, Graciela; Jaramillo, Concepción (2003) La educación sexual de la primera infancia. Guía para madres, padres y profesorado de Educación Infantil.



Urruzola, Mª José (2004) Cómo construir tu propio modelo de belleza. Serie: Guía para chicas, 3.



Urruzola, Mª José (2005) Cómo vivir las relaciones afectivas y sexuales. Serie: Guía para chicas, 4.



Hernández, Graciela; Jaramillo, Concepción. (2006). La educación sexual de niñas y niños de 6 a 12 años. Guía para madres, padres y profesorado de Educación Primaria.

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Breve historiografía de la educacion sexual en el contexto educativo español

4. Instituto de la mujer



Favorecer la elaboración y difusión de materiales didácticos que muestran y valoran la experiencia y los conocimientos de las mujeres.

Traemos en este apartado una Institución creada como consecuencia de todo este devenir en materia de igualdad que hemos visto y que tiene una especial relevancia a la hora de la formación y del diseño de materiales educativos y programas sobre educación sexual y afectivo sexual. El Instituto de la Mujer es un organismo autónomo dependiente del Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, a través de la Secretaría General de Políticas de Igualdad. Su finalidad es, por un lado, promover y fomentar las condiciones que posibiliten la igualdad social de ambos sexos y, por otro, la participación de la mujer en la vida política, cultural, económica y social. Por tanto, es el organismo del Gobierno central que promueve las políticas de igualdad entre mujeres y hombres. En Diciembre de 1978, la promulgación de la Constitución Española supuso el reconocimiento de la igualdad ante la ley de hombres y mujeres como uno de los principios inspiradores de nuestro ordenamiento jurídico. Para que las mujeres accedan a la igualdad no bastan los cambios legislativos. Hay que remover los obstáculos para que éstas participen en la cultura, el trabajo y la vida política y social. Así, se creó por Ley 16/1983, de 24 de octubre, el Instituto de la Mujer como organismo autónomo, que se reestructuró en mayo de 1997. Las directrices actuales que guían las políticas del Instituto de la Mujer desde 1997 hasta el año 2006 aparecen en el: “ IV Plan para la Igualdad entre Mujeres y Hombres “. Todas la Comunidades Autónomas españolas en su ámbito de competencias han creado sus organismo autónomos de Institutos de la Mujer, por tanto se trata de una institución totalmente consolidada. Este Instituto de la Mujer del Ministerio de Trabajo ha desarrollado un programa específico de educación cuyos objetivos6 son los siguientes:



Participar en sesiones de trabajo y en foros de debate con el profesorado para reflexionar sobre la práctica docente.



Promover el ejercicio físico y la práctica deportiva femenina.



Colaborar con los medios de comunicación para que ofrezcan un tratamiento adecuado de la imagen de las mujeres en las noticias y en los programas de radio, televisión y prensa.





Colaborar con otras instituciones en proyectos de investigación, de formación y de debate dirigidos a promover la igualdad de oportunidades entre ambos sexos y a prevenir la violencia contra las mujeres desde la educación. Promover la investigación sobre usos lingüísticos que nombran la diferencia sexual femenina y masculina.

4.1. Recursos educativos Todos los recursos relacionados han sido elaborados y publicados por el Instituto de la Mujer y están disponibles desde su página web.

4.1.1. MATERIALES DIDÁCTICOS DEL IM DEL ESTADO –

Prevención de la violencia contra las mujeres



Lenguaje no sexista



Deporte



Educación de personas adultas



Sistema educativo



Educación afectivo-sexual



Unidades didácticas



Orientación escolar y profesional



Interculturalidad



Recursos audiovisuales y multimedia



Créeme y Páralo

4.1.2. PROGRAMAS EDUCATIVOS DEL IM DEL ESTADO –

Formación a profesionales: Proyecto RELACIONA.



Lenguaje no sexista

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Estos objetivos prácticamente coinciden con los de sus homólogos de las diferentes Comunidades Autónomas.

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4.1.3. Escuela virtual de la igualdad del im Es una escuela abierta a todas las personas, que por su configuración on-line, permite el acceso libre y donde las materias que se imparten tienen que ver tanto con nuestra construcción individual, como con la construcción de una sociedad igualitaria para mujeres y hombres y que te darán las pautas para ver la realidad con otra mirada. –

http://www.migualdad.es/mujer/escuelavirtualigualdad/

Referências ABENOZA, R. Sexualidad y juventud. Historias para una guía. Madrid: Editorial Popular, 1994. ACUÑA, S. Coeducación y tiempo libre. Madrid: Editorial Popular, 1995. ALTABLE, C. Educación sentimental y erótica para adolescentes. Madrid: Niño y Davila Ediciones, 2001. BARRAGÁN, F. La construcción colectiva de la igualdad. 1 y 2, ¿Cómo nos enseñan a ser diferentes?. Materiales para la Formación, 7. Sevilla: Consejería de Educación y Ciencia, Junta de Andalucía, 1996ª. BARRAGÁN, F. Educación en valores y género. Sevilla: Diada Editora, 2002. BARRAGÁN, F., DE LA CRUZ, J.M., DOBLAS, J.J. y PADRÓN, M.M. Violencia de género y currículum. Un programa para la mejora de las relaciones interpersonales y la resolución de conflictos. Málaga: Aljibe, 2001. BARRAGÁN, F., DE LA CRUZ, J.M., DOBLAS, J.J. y PADRÓN, M.M. Violencia, género y cambios sociales. Un programa educativo que [sí] promueve nuevas relaciones de género. Málaga: Aljibe, 2005. BLEICHMAR, E.D. La sexualidad femenina, de la niña a la mujer. Barcelona. Paidós, 1997. BUSQUETS, M.D. et al. Los temas transversales. Claves de la formación integral. Madrid: Aula XXI/Santillana, 1993.

Breve historiografía de la educacion sexual en el contexto educativo español

CAMARERO, C. et al. Sexualidad en la escuela. Manual para educadores/as. Barcelona: LaSal, 1985. DIAMOND, J. ¿Por qué es divertido el sexo? (¡Por qué los amantes hacen lo que hacen ?. Un estudio de la evolución de la sexualidad humana). Barcelona: Debate, 1999. FARRÉ J. M. Enciclopedia de la sexualidad. Barcelona. Océano, 1998. FEMINARIO DE ALICANTE. Elementos para una educación no sexista. Guía didáctica de la Coeducación. Valencia: Victor Orenga Editores, 1987. FERNÁNDEZ, L, INFANTE, A., BARREDA, M., PADRÓN, M.M. y DOBLAS, J.J. Educasex Málaga. Jóvenes, sexualidad y género. Estudio cualitativo sobre la sexualidad de las personas jóvenes del ámbito rural. Málaga: Área de Juventud, Deportes y Formación – Centro de Ediciones de la Diputación de Málaga, 2006. FERRER, F. Cómo educar la sexualidad en la escuela. Barcelona: CEAC, 1986. GARCÍA-SÁNCHEZ, I., PINZÓN PULIDO, S.A. y RIVADENEYRA SICILIA, A. Sida y mujer. Buenas prácticas en prevención. Granada: Escuela Andaluza de Salud Pública, Consejería de Salud de la Junta de Andalucía, 2002. HITE, S. Informe Hite. Sexualidad masculina. Barcelona. Plaza y Janes, 1992. FONT, P. Pedagogía de la Sexualidad. Barcelona: Graó – ICE Universitat de – Barcelona, 1990. LÓPEZ SÁNCHEZ, F. Educación sexual de adolescentes y jóvenes. Madrid: Siglo XXI, 1995. LÓPEZ SÁNCHEZ, F. Sexo y afecto en personas con discapacidad. Madrid: Biblioteca Nueva, 2002. LÓPEZ SÁNCHEZ, F. La educación sexual. Madrid: Biblioteca Nueva, 2005. LÓPEZ SÁNCHEZ, F. La educación sexual de los hijos. Madrid: Pirámide, 2005. MARTÍNEZ, L.; ALBERDI, I. Guía didáctica para una orientación no sexista. Madrid: Ministerio de Educación y Ciencia, 1988.

CALVO ARTÉS, M. Trampas i claves sexuales. 3ªed. Barcelona. Icaria, 1991.

MASTERS, W. H.; JOHNSON, V.E. El vinculo del placer. Barcelona. Grijalbo, 1988.

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MASTERS, W. H.; JOHNSON, V.E. Eros. Los mundos de la sexualidad. Barcelona. Grijalbo, 1996. NIETO, J.A Cultura y sociedad en las prácticas sexuales. Madrid. U.N.E.D. Fundación Universidad Empresa, 1990.

Breve historiografía de la educacion sexual en el contexto educativo español

-VV.AA. Elementos de una educación no sexista. Valencia: Ensayo, 1991. -VV.AA. Orientación profesional coeducativa. Sevilla: Consejería de Educación de la Junta de Andalucía, 1993. -VV.AA. Los contenidos transversales del currículum. Madrid: Santillana, 1993.

OLIVA, A., SERRA, L., VALLEJO, R., LÓPEZ, M.;LOZOYA, J.A. Sexualidad y contracepción en la adolescencia. Un estudio cualitativo. Sevilla: Consejería de Salud, Junta de Andalucía, 1993. OLIVEIRA, M. Educación sentimental. Barcelona: Icaria, 1998. OLMEDA, A.; FRUTOS, I. Teoría y Análisis de Género. Guía Metodológica para Trabajar con Grupos. Madrid: Asociación Mujeres Jóvenes, http://www. mujeresjovenes.org. Acesso em 30 out. 2012. PÉREZ LARA N. Educación sexual. In: Enciclopedia práctica de Pedagogía. Barcelona. Planeta, 1988. REYZÁBAL, M.; SANZ, A. Los ejes transversales. Aprendizajes para la vida. Madrid: Escuela Española, 1995. SANTOS GUERRA, M.A. Coeducar en la escuela: por una enseñanza no sexista y liberadora. Madrid: Zero, 1984. SANZ, F. Psicoerotismo femenino y masculino. Barcelona. Kairos, 1990. SUBIRATS, M. Con diferencia. (Las mujeres frente al reto de la autonomía). Barcelona: Icaria, 1998. URRUZOLA, M.J. Educación de las relaciones afectivas y sexuales, desde la filosofía coeducadora. Bilbao: Maite Canal Editora, 2000. URRUZOLA, M. J. Guía para chicas. Cómo prevenir y defenderte de las agresiones. Bilbao: Maite Canal Editora – Instituto Andaluz de la Mujer, 2003. USSTLER, J. La psicología del cuerpo femenino. Madrid. Arias Matanol, 1991. VALLS, J. Taller de trabajo corporal y educación sexual” (monográfico). Revista de Sexología, 37, 1989. VICENT MARQUÉS, J.; OSBORNE, R. Sexualidad y sexismo. U.N.E.D. Fundación Universidad Empresa, 1991. 242

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PERSPECTIVA EVOLUTIVA DAS POLÍTICAS E PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO SEXUAL NA COMUNIDADE ESCOLAR EM PORTUGAL EVOLUTIVE PERSPECTIVE OF POLICIES AND PRACTICES OF SEX EDUCATION AT THE COMMUNITY SCHOOL IN PORTUGAL

Teresa Vilaça1 RESUMO

ABSTRACT

Este artigo descreve a trajetória das políticas públicas e das práticas educativas em educação sexual na comunidade escolar em Portugal a partir de sete marcos sociopedagógicos registrados em sua implementação nacional desde os anos 1970: a emergência da educação sexual na pré-democracia (início da década 70); a educação para a saúde e sexualidade no despertar do estado de direito democrático (meados da década 70); a emergência da educação sexual na comunidade escolar como um direito do cidadão (década 80); a consolidação do programa de promoção e educação para a saúde na comunidade escolar (década 90); a acelerada evolução da legislação sobre educação sexual como uma componente da promoção da saúde (transição para o ano 2000); e a consolidação da educação sexual na comunidade escolar (primeira década após a viragem do milénio).

This article describes the trajectory of public policies and educational practices in sex education in Portugal schools from seven landmarks recorded in their national implementation since the 1970s: the emergence of sex education in the pre-democracy (early 1970 ); education for health and sexuality in the wake of the democratic rule of law (middle of 1970), the emergence of sex education in the school community as a citizen right (the 80th years), the consolidation of the program of health education and promotion in the school community (the 90th years), the accelerated development of legislation on sex education as a component of health promotion (transition to the year 2000), and the consolidation of sex education in the school community (the first decade after turn of the millennium).

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Educação sexual. História da educação sexual em Portugal. Escola. Legislação educacional.

Sex education. History of sex education in Portugal. School. Educational legislation.

1. Introdução Em Portugal, apesar de no início da década 80 ter surgido o primeiro documento legal sobre educação sexual nas escolas, apenas nos finais da década 90 surgiram 1

Instituto de Educação da Universidade do Minho – Braga – Portugal. E-mail: [email protected]

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alguns sinais de debate público sobre sexualidade e educação sexual. Nessa altura, as expectativas sociais na área da educação sexual adquiram um impacto maior após o primeiro referendo sobre a despenalização do aborto, em 1998, onde a maior parte dos/as cidadãos/ãs portugueses/as votou contra a lei, mas ficou motivada para a continuação de um intenso debate público nessa área. Por um lado, este debate tornou a sociedade portuguesa mais consciente sobre a necessidade de definir estratégias globais face à educação sexual, ao planeamento familiar e à saúde reprodutiva, por outro lado, criou uma maior responsabilidade do Estado nesta matéria, nomeadamente dos Ministérios da Educação e da Saúde. Uma análise evolutiva da legislação portuguesa sobre as políticas e práticas de educação sexual na comunidade escolar, fez emergir até à atualidade sete marcos sociopedagógicos na sua implementação nacional. Esses marcos serão apresentadosem seguida ao longo de uma revisão crítica da evolução da legislação portuguesa que evidencia: a emergência da educação sexual na pré-democracia (início da década 70); a educação para a saúde e sexualidade no despertar do estado de direito democrático (meados da década 70); a emergência da educação sexual na comunidade escolar como um direito do/a cidadão/ã (década 80); a consolidação do programa de promoção e educação para a saúde na comunidade escolar (década 90); a acelerada evolução da legislação sobre educação sexual como uma componente da promoção da saúde (transição para o ano 2000); e a consolidação da educação sexual na comunidade escolar (primeira década após a viragem do milénio). Por fim, para terminar, serão tecidas algumas considerações finais com implicações para o futuro da educação sexual no âmbito das escolas promotoras de saúde.

restabelecimento da coeducação em Portugal, que deu origem ao ensino misto nas escolas públicas a partir do ano lectivo 1973-1974, visando não só a mistura dos sexos, mas também a coeducação: É de salientar que não se trata apenas de constituir turmas mistas, mas de realizar uma verdadeira coeducação. A turma mista, só por si, limita-se a uma disposição material, enquanto a coeducação é um ambiente, possibilitando a franca camaradagem entre rapazes e raparigas, tanto nas aulas como nos recreios e nas restantes atividades. (...) Além disso, o regime coeducativo, permitindo uma maior aproximação entre as crianças, que assim mutuamente se enriquecem, deve ainda supor uma maior aproximação entre mestres e alunos, bem como entre a escola e as famílias (PORTUGAL, 1972, p.1785).

Nessa década, a principal função da escola era a instrução.O desenvolvimento nos/as alunos/as de atitudes, valores e comportamentos adequados, nomeadamente os relacionados com a sexualidade, eram explicitamente tratados na disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica ou eram deixados ao critério dos/as professores/ as das outras disciplinas que, de uma maneira geral, se sentiam inibidos/as para essa abordagem educativa.

3. Meados dadécada 70: educação para a saúde e sexualidade no despertar do estado de direito democrático

Em Portugal, na década 70, durante o Estado Novo (1935-1974), com a reforma educativa de Veiga Simão, foi criada em 1971, e pouco depois extinta, em 1973, por ser considerada ideologicamente avançada para a época, uma Comissão Interministerial, responsável pelo estudo da sexualidade e educação, composta por membros da igreja e por profissionais de saúde, que defenderam a necessidade dos manuais escolares versarem sobre a anatomia humana e do sistema educativopromover o debate sobre sexualidade,incluindo não só os comportamentos genitais, como também a forma de estar no mundo enquanto homem e mulher (VAZ, VILAR; CARDOSO,1996). Esta Comissão participou ainda na preparação da lei sobre o

As profundas alterações políticas e sociais que ocorreram na sequência do 25 de abril de 1974 (início da 3ª República), desencadearam profundas mudanças nas escolas portuguesas relevantes para a educação sexual. A Constituição da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976, criou a base jurídica para o início da promoção e educação para a saúde sexual no país (VILAÇA, 2006). A Constituição surgiu como consequência do 25 de abril de 1974, onde o Movimento das Forças Armadas derrubou o regime fascista, originando uma transformação social que tinha como objectivo restituir aos/às portugueses/as os direitos e liberdades fundamentais que lhes tinham sido retirados pela ditadura. No exercício destes direitos e liberdades, os/as legítimos/as representantes do povo reuniram-se para elaborar uma Constituição que correspondesse às aspirações do país, e a Assembleia Constituinte afirmou a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos/as cidadãos/ãs, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista,

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2. Início da década 70: emergência da educação sexual na prédemocracia

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no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno (PORTUGAL, 1976). A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de abril de 1976, aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa (Portugal, Assembleia da República, 1976), nomeadamente, no ponto um do seu artigo 64º, que afirma que todos/as têm o direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover. O ponto dois desse artigo define que o/a cidadão/ã pode realizar a proteção da sua saúde por dois meios: a) através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos/as cidadãos/ ãs, tendencialmente gratuito; b) pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular e, ainda, pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável. O artigo 64º, ainda define o papel que é atribuído ao Estado para assegurar o direito à proteção da saúde dos/as cidadãos/ãs: a) garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; b) garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; c) orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos; d) disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade; e) disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico; f ) estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência. Neste contexto, a escola passou a ser encarada como um espaço educativode promoção da participação dos/as alunos/as e do desenvolvimento do seu pensamento crítico,envolvendo simultaneamente a construção do conhecimento científico e o desenvolvimento pessoal e social do/a aluno/a.

4. Década 80: emergência da educação sexual na comunidade escolar como um direito do/a cidadão/ã A evolução sociopolítica anterior abriu portas ao debate sobre sexualidade2 e,no início de 1984, surgiu o primeiro documento legal sobre educação sexual nas escolas, a Lei nº3/84, de 24 de março (PORTUGAL, 1984)3, designada Educação Sexual e Planeamento Familiar,onde se estabeleceu que é da responsabilidade do Estado Português “garantir o direito à educação sexual como componente do direito fundamental à educação” (artigo 1º). Este documento definiu no artigo 2º, Educação Sexual dos/as Jovens,as seguintes responsabilidades governamentais para garantir a educação sexual: 1. O dever fundamental de proteger a família e o desempenho da incumbência de cooperar com os pais na educação dos filhos cometem ao Estado a garantia da educação sexual dos jovens através da escola, das organizações sanitárias e dos meios de comunicação social. 2. Os programas escolares incluirão, de acordo com os diferentes níveis de ensino, conhecimentos científicos sobre a anatomia, fisiologia, genética e sexualidade humanas, devendo contribuir para a superação das discriminações em razão do sexo e da divisão tradicional de funções entre homem e mulher. 3. Será dispensada particular atenção à formação inicial e permanente dos docentes, por forma a dotá-los do conhecimento e da compreensão da problemática da educação sexual, em particular no que diz respeito aos jovens. 4. Serão ainda criadas também condições adequadas de apoio ao país no que diz respeito à educação sexual dos filhos. (PORTUGAL, 1984, p. 981-982)

No ano seguinte, foi publicada a Portaria 52/85 de 26 de janeiro, do Ministério da Saúde(1985) que aprova o regulamento das consultas de planeamento familiar e centros de atendimento para jovens, regulamentando a Lei 3/84 em 2

A primeira vez que se falou sobre educação sexual na Assembleia da República em Portugal foi em 1982, quando o Partido Comunista Português (PCP) apresentou o Projeto de Lei 308/II, sobre Garantia do direito de planeamento familiar e educação sexual, que foi rejeitado na generalidade, com o seguinte resultado: 120 votos contra, do PSD e CDS; 105 votos a favor do PCP, PS, MDP, UEDS, UDP e 1 da ASDI; 9 abstenções, sendo 6 do PPM, 2 da ASDI e 1 do PSD. Em 1984, foi mais uma vez rejeitado na generalidade o Projeto de Lei 6/III, do PCP, sobre Garantia do direito ao planeamento familiar e educação sexual, com o seguinte resultado: 189 votos contra, do PS, PSD e CDS; 44 votos a favor do PCP, MDP e UEDS; 2 abstenções da ASDI. 3

IX Governo Constitucional: em funções de 09/06/1983 a 06/09/1985; Presidente da República  – António Ramalho Eanes; Primeiro Ministro – Mário Soares; Ministro da Educação – José Augusto Seabra sucedido por João de Deus Pinheiro.

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relação aos serviços de saúde e, especialmente, em relação ao planeamento familiar. No entanto, no artigo 4º, ao definir as atribuições dos Centros de Atendimento para Jovens nesses serviços foi definido que deveriam desenvolver as seguintes atividades: “a) Prestação de informações sobre a anatomia e fisiologia da reprodução; b) informação sexual; c) preparação dos jovens para uma vivência correta da sua sexualidade; d) fornecimento de contraceptivos em situações de risco” (PORTUGAL, 1985, p.219). Na prática, esta legislação constituiu-se como o ponto de partida da interação entre os Serviços de Saúde e Educação para a educação sexual dos/as jovens. Um ano depois, a Lei de Bases do Sistema Educativo Português (LBSE) (Lei nº 46/86) (PORTUGAL, 19864), ajudou a concretizar nas escolas a lei anterior ao atribuir ao sistema educativo a responsabilidade de incluir nos currículos e nos quotidianos escolares a abordagem de temas relacionados com acontecimentos e com problemas específicos da vida e o processo de desenvolvimento pessoal e social das crianças e jovens (Artigo 2º – Princípios Gerais, pontos 4 e 5). Nos Princípios Organizativos (Artigo 3º), a Lei definiu que o sistema educativo devia organizar-se de forma a: “b) contribuir para a realização do educando, através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania, preparando-o para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e proporcionando-lhe um equilibrado desenvolvimento físico; c) assegurar a formação cívica e moral dos jovens; d) assegurar o direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projetos individuais da existência, bem como da consideração e valorização dos diferentes saberes e culturas” (PORTUGAL, 1986, p. 3068). Estes princípios estão refletidos nos objectivos da educação do ensino básico e secundário. No artigo 7º, pode ler-se que são objectivos do ensino básico: “h) proporcionar aos alunos experiências que favoreçam a sua maturidade cívica e sócio-afectiva, criando neles atitudes e hábitos positivos de relação e cooperação, quer no plano dos seus vínculos de família, quer no da intervenção consciente e responsável na realidade circundante; i) proporcionar a aquisição de atitudes autónomas, visando a formação de cidadãos civicamente responsáveis e democraticamente intervenientes na vida comunitária” (Portugal, Assembleia da República, 1986, p. 3069). No artigo 9º, estabelece-se que o ensino secundário tem por objectivos: “b) Facultar aos jovens conhecimentos necessários à compreensão das

manifestações estéticas e culturais e possibilitar o aperfeiçoamento da sua expressão artística” (PORTUGAL, 1986, p. 3070). Este documento também definiu algumas formas de integração da educação sexual na escola. Por um lado, estabeleceu no Artigo 28º, “Apoio de saúde escolar”, que será realizado o acompanhamento do saudável crescimento e desenvolvimento dos/as alunos/as, o qual é assegurado, em princípio, por serviços especializados dos centros comunitários de saúde em articulação com as estruturas escolares. Por outro lado, no artigo 47º, “Desenvolvimento curricular”, a educação sexual foi colocada numa nova área educativa transversal, chamada Formação Pessoal e Social, que poderá ter outras componentes tais como a educação familiar, educação para a saúde, educação para a participação nas instituições, serviços cívicos e outras áreas educativas similares. O Decreto  – Lei nº 286/895, de 29 de setembro (Portugal, Ministério da Educação, 1989),publicado na sequência da Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovou os planos curriculares dos ensinos básico e secundário, determinando no artigo 6º, nº1, como forma de concretizar a formação pessoal e social, a criação da Área-Escola nos planos curriculares desses níveis de ensino, que compreende uma área curricular não disciplinar, com a duração anual de 95 a 110 horas, competindo à escola ou à área escolar decidir a respectiva distribuição, conteúdo e coordenação. O objectivo desta área foia concretização dos saberes através de atividades e projetos multidisciplinares, a articulação entre a escola e o meio e a formação pessoal e social dos/as alunos/as. O mesmo decreto (PORTUGAL, 1989), no artigo 7º, criou para todos os/as alunos/as dos Ensinos Básico e Secundário a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, de formação transdisciplinar, “onde se concretizam de modo especial as matérias enunciadas no nº 2 do artigo 47º, da Lei de Bases do Sistema Educativo” (p.3640),estabelecendo que em alternativa à disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, os/as alunos/as poderão optar pela disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras confissões (nº 4). Embora sendo obrigatória afrequência de uma das disciplinas referidas no número anterior (nº 5), a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social só será proporcionada pelas escolas à medida que o sistema dispuser de docentes para tal habilitados (nº 7).Também foi criado nesse decreto, no artigo 8°, as Atividades de Complemento

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X Governo Constitucional: em funções de 06/09/1985 a 17/08/1987; Presidente da República – Mário Soares; Primeiro Ministro – Aníbal Cavaco Silva; Ministro da Educação e Cultura – João de Deus Pinheiro.

XI Governo Constitucional: em funções de 17/08/1987 a 31/10/1991; Presidente da República – Mário Soares; Primeiro Ministro – Aníbal Cavaco Silva; Ministro da Educação – Roberto Carneiro.

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Curricular, de carácter facultativo e natureza eminentemente lúdica e cultural, visando a utilização criativa e formativa dos tempos livres dos educandos.

172/ME/936, de 27 de julho (Portugal, Ministério da Educação – Gabinete do Ministro, 1993). Este Programa, que teve início no ano letivo 1993-1994, com uma duração prevista de cinco anos para permitir estudar o eventual alargamento a todo o sistema educativo, integrou o Projeto-Piloto de Prevenção Primária de Toxicodependências em Meio Escolar, Projeto Viva a Escola (PVE), iniciado três anos antes (ano lectivo 1990/1991), e transformou as equipas do PVE em Equipas de Promoção e Educação para a Saúde7. Desde 1993, que o PPES constituiu-se como apoio e instrumento de recurso às escolas, principalmente nas respostas a problemas e necessidades no âmbito das toxicodependências, SIDA, sexualidade e desenvolvimento de competências pessoais e sociais, entre outras áreas da educação para a saúde. Entre 1993 e 1996 conceptualizaram-se as práticas, procurando-se um modelo de intervenção mais consentâneo com a promoção da saúde. Em 1994, Portugal aderiu à “Rede Europeia de Escolas Promotoras de Saúde” (REEPS). Das 277 escolas das várias Direções Regionais da Educação que faziam parte do Projeto Viva a Escola (77 na DRE Norte, 72 na DRE Centro, 76 na DRE Lisboa, 33 na DRE Alentejo e 19 na DRE Algarve), integraram-se formalmente na fase inicial da Rede Europeia de Escolas Promotoras de Saúde (REEPS) dez escolas e quatro centros de saúde, selecionados através de critérios definidos pelos Ministérios da Educação e da Saúde, embora a maioria das escolas PVE estivesse a desenvolver projetos com os mesmos objectivos (Vilaça, 2006). Em 19958, o projeto Viva a Escola foi apresentado nas escolas que o integravam como um projeto de investigação/ ação/ formação.O/A professor/a operador/a da

5. Década 90: consolidação do programa de promoção e educação para a saúde na comunidade escolar A Assembleia da República, através da Lei nº 48/90 de 24 de agosto de 1990, estabeleceu nos princípios gerais da Lei de Bases da Saúde (PORTUGAL, 1990) que: 1. A proteção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade que se efetiva pela responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados, nos termos da Constituição e da lei. 2. O Estado promove e garante o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis. 3. A promoção e defesa da saúde pública são efectuadas através da atividade do Estado e de outros entes públicos, podendo as organizações da sociedade civil ser associadas aquela atividade. 4. Os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado, ou sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades privadas, sem ou com fins lucrativos. (p.3452)

Esta lei assumiu como política pública de saúde que a promoção da saúde e a prevenção da doença fazem parte das prioridades do Estado, com o objectivo fundamental de obter a igualdade dos/as cidadãos/ãs no acesso aos cuidados de saúde e garantir a equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços. Neste sentido, esta lei também defendeu como políticas públicas a educação para a saúdedas populações, estimulando nos indivíduos e nos grupos sociais a modificação dos comportamentos nocivos à saúde pública ou individual, e a formação e investigação para a saúde com o envolvimento dos serviços, dos/as profissionais e da comunidade. As crianças e os/as adolescentes foram considerados como grupos sujeitos a maiores riscosnecessitando, por isso, de medidas especiais. Esta reorganização do sistema educativo criou as condições necessárias para uma abordagem integrada da educação para a saúde em meio escolar e, três anos mais tarde, surgiu uma iniciativa governamental para assegurar, no âmbito do Ministério da Educação,ações de promoção e educação para a saúde, nomeadamente as de prevenção da toxicodependência e da SIDA, através do Programa de Promoção e Educação para a Saúde (PPES), criado pelo Despacho 252

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6 XII Governo Constitucional: exerceu funções de 31/10/91 a 28/10/95; Presidente da República – Mário Soares; Primeiro Ministro – Aníbal Cavaco Silva; Ministra da Educação – Diamantino Durão, substituído por António Couto dos Santos, substituído por Manuela Ferreira Leite. 7

O projeto Viva a Escola, surgiu no âmbito do projeto VIDA, que é o Programa Nacional de Combate à Droga, criado em 1987 pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 23/87, de 21 de abril (Portugal, Presidência do Conselho de Ministros, 1987), como um plano integrado de combate às drogas ilícitas, com medidas relativas à prevenção, tratamento, reinserção, e redução da oferta e da procura. O seu principal objectivo foi o desenvolvimento de uma política integrada destinada a promover um estilo de vida saudável onde não exista lugar para o consumo de drogas ilícitas, através do envolvimento da sociedade e na promoção das suas ações no sentido de resolver o problema das toxicodependências. Para atingir este objectivo o Projeto VIDA sofreu algumas modificações em 1990 [Resolução do Conselho de Ministros n.º 17/90, de 21 de abril (Portugal, Presidência do Conselho de Ministros, 1990)], para fortalecer o comprometimento político em relação ao Programa de Combate à Droga, e para mobilizar a sociedade civil no mesmo combate.

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XIII Governo Constitucional: em funções de 28/10/1995 a 25/10/1999; Presidente da República – Jorge Sampaio; Primeiro Ministro – António Guterres; Ministro da Educação – Eduardo Marçal Grilo.

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Direção Regional de Educação (DRE) a que pertencia cada uma das escolas, deslocou-se às escolas e explicou aos/àsprofessores/as em que consistia este projeto (ver, Portugal, Ministério da Educação – PPES, 1995). O projeto “Viva a Escola”ficou assim caracterizado por uma dupla dinâmica. Por um lado, concretizava-se através de um conjunto de ações (subprojetos) integradas no “Plano de Atividades” de cada escola, ações essas que surgiam como respostas adequadas aos problemas/ necessidades diagnosticadas. Por outro lado, concretizava-se como um projeto que permitia a formação contínua de professores na modalidade de projeto. O público-alvo do PVE, agora integrado na dinâmica do PPES,incluía todos os elementos da comunidade escolar (alunos/as, professores/as, auxiliares de ação educativa e pais/ mães/ encarregados de educação) e restantes elementos da comunidade educativa (médicos/as, psicólogos/as, autarcas e outros intervenientes). Os objectivos principais consistiam em: desenvolver nos jovens comportamentos de autonomia, responsabilidade e sentido crítico; proporcionar-lhes a vivência de sentimentos de prazer, emoção e risco (controlado); criar condições para o desenvolvimento da autoestima dos/as alunos/as, facilitando-lhes a aquisição de sentimentos de pertença a um grupo; e construir climas de escola cooperativos, dinâmicos e estimulantes (PORTUGAL, PPES, 1995). As estratégias propostas para atingir esses objectivos incluíram os seguintes aspectos: a introdução e generalização de metodologias participativas e ativas nas atividades curriculares; a distribuição pelos/as alunos/as de responsabilidades na organização e gestão escolares em todas as situações possíveis; e a concepção e realização, com os/as alunos/as, de atividades curriculares e de extensão curricular que sejam criativas e variadas, constituindo um desafio organizativo, físico, estético e cognitivo para os/as professores/as e alunos/as (PORTUGAL, 1995). O PVEseria organizado na escola por uma Equipa do Projeto, constituída por todos os elementos dos subprojectos e coordenada por um/a professor/a na escola. Para dar resposta aos problemas/ necessidades diagnosticados, a equipa elaborava, executava e avaliava o projeto em articulação com entidades públicas e privadas da respectiva comunidade educativa. Cada equipa do projeto era apoiada por um/a Professor/a Operador/a que estava adstrito ao Centro da Área Educativa respectiva. Os/as professores/as operadores/as constituíam, com outros técnicos/as,a equipa regional do PPES coordenada por um/a responsável regional. Em cada escola o projeto articulava-se com: outros projetos do PPES (e.g., projetos de férias, projetos de prevenção da SIDA); outros projetos do Ministério da Educação (e.g., PEPT, Entre Culturas); projetos de outros

Ministérios, nomeadamente os que integravam o Projeto VIDA; e outras entidades (e.g., Centros de Saúde, Autarquias, ONGs, IPSS). As atividades desenvolvidas dentro dos subprojetos, eram o conjunto articulado das atividades planeadas como resposta às necessidades/ problemas detetados em cada escola e na sua comunidade envolvente. Essas atividades foram classificadas em onze categorias: melhoramento do espaço escolar; património e tradições; extensão curricular; promoção da saúde (promover a saúde no sentido alargado e abrangente que lhe é atribuído pela OMS); atividades físicas e de exploração da natureza; atividades de animação da comunidade; intervenção em órgãos de comunicação social; produção artística; ambiente e ecologia; formação; outros (PORTUGAL,PPES, 1995). A formação contínua de professores/as, na modalidade de projeto, do “Projeto Viva a Escola” (Portugal, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário& PPES, 1995) integrou-se no Programa de Promoção e Educação para a Saúde (PPES) com os seguintes objetivos principais: assegurar no âmbito do Ministério da Educação, as ações de promoção e educação para a saúde, nomeadamente as de prevenção de toxicodependência e da SIDA; melhorar o clima das escolas onde se desenvolve, envolvendo, de uma forma ativa, o maior número possível de protagonistas do processo educativo – professores/as, pais/mães, alunos/as, técnicos/ as de saúde, vizinhos/as, psicólogos/as e todos/as aqueles/as que revelam alguma disponibilidade para a construção da escola e da comunidade educativa alargada; melhorar a qualidade de vida de cada aluno/a e de cada professor/a como pessoas, na riqueza da sua diversidade, na complexidade de cada história de vida; melhorar a formação de cada professor/a, através da aquisição de novos saberes, da consciencialização dos porquês das práticas, da análise crítica da realidade educativa onde desenvolvem a sua atividade profissional e da definição das estratégias e objectivos necessários à sua melhoria. Como em Portugal, a partir de 1992 se tornou obrigatória a formação contínua de professores/as, este modelo de formação contínua do PPES,com os objectivos anteriormente referidos, era adequado à natureza do trabalho dos/as professores/ as neste projeto educativo e satisfazia as suas necessidades quotidianas de formação e aperfeiçoamento no ambiente específico de cada escola. Como já referido, a modalidade de formação de professores/asselecionada foiamodalidade de Projeto, por permitir ligar de modo mais particular a ação e a reflexão, a prática e a teoria, valorizando a reflexão/ ação sobre o ambiente escolar e profissional quotidiano e próprio de cada profissional ou conjunto de profissionais. Na perspectiva do Ministério da Educação – DES e PPES (1995), os/as adultos/as em exercício profissional formam-se sobretudo através das experiências, dos contextos, da reflexão sobre os

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acontecimentos, das ações e dos projetos em que se envolvem e participam. Como consequência, nesta perspectiva cada vez se torna mais evidente que é necessário interligar, ao longo de toda a vida escolar e profissional, tempos de reflexão e tempos de ação, tempos de estudo e tempos de trabalho, num modelo interativo de vai-e-vem contínuo entre os momentos e os contextos de formação e de trabalho. Segundo o Ministério da Educação – DESe PPES (1995), nesta ótica, o ponto de partida básico da própria formação é o/a adulto/a que se forma e a organização em que ele/a atua. Os/As professores/as colocados/as em processo de autoformação contínua são adultos/as em formação que se preocupam mais em melhorar as suas práticas profissionais do que em investir em “decorar” novos conteúdo e técnicas, no abstrato. As pessoas no seu contexto constituem um núcleo importante de um projeto de formação de professores/as, por isso, neste documento fala-se em eco-formação. A Equipa Nacional apoiou os/as professores/as operadores/as (os/as formadores/as) para eles/as exercerem com eficiência o seu papel de apoio técnico aos/às formandos/as. As modalidades de apoio incluíram, por exemplo: formação como formadores/as; o fornecimento de materiais de apoio à formação e a elaboração de módulos temáticos de formação, com base nos pedidos das equipas de professores/as. Em síntese, os projetos de formação contínua apresentados no âmbito do PPES valorizaram as seguintes dimensões (PORTUGAL,DES; PPES, 1995, p. 8):

pelo acompanhamento de um conjunto de projetos e escolas. Esse acompanhamento foi feito mensalmente a cada escola, pelo/a professor/a-operador/a e, em cooperação com o/a coordenador/a da escola de cada equipa de professores/as, realizaram o apoio técnico ao grupo de formandos/as, fomentaram a cooperação entre eles/as, procuraram verificar o cumprimento rigoroso dos objetivos de formação que o grupo e cada professor/a se propôs realizar e avaliaram com cada professor/a, trimestralmente, os progressos formativos entretanto conseguidos. Em 1996, as conclusões das Jornadas Regionais do Projeto Viva a Escola, que ocorreram em todas as Direções Regionais de Educação (PORTUGAL, PES, 1996), deixaram bem claro que é função da escola proporcionar condições para que os/ as alunos/as: adquiram informação e se motivem para a aumentar/ reformular ao longo da sua vida e desenvolvam a capacidade de tomar decisões, a autonomia, a responsabilidade e o sentido crítico e o desejo de ultrapassar dificuldades e frustrações. Para cumprir essas funções foram referidos os seguintes aspectos: a escola tinha que desenvolver condições de bem-estar para toda a comunidade educativa; a finalidade do trabalho das escolas deveria consistir, essencialmente, em garantir o sucesso educativo dos/as alunos/as; a escola tinha que assumir que as reflexões que conduziram à designação de EPS, não tendo acrescentado nada de novo ao conceito de escola, tinham o mérito de permitir um tipo de reflexão, organizada a partir das dimensões curricular, psicossocial, ecológica ecomunitária, que deveriam ser tidas em conta quando se pretendia rever/ melhorar o funcionamento interno de cada escola.A reflexão nas Jornadas Regionais sobre os Projetos Viva a Escola, tendo como referência as dimensões daEPS, também serviu para se tomar consciência de que qualquer trabalho “nas” escolas e “com” as escolas, devia potenciar as condições para que estas cumpram melhor a sua função, ou, por outras palavras, devia influenciar positivamente alguma, ou algumas, das dimensões funcionais da escola. Os participantes nestas Jornadas chegaram à conclusão que as principais linhas de força que deviam orientar o trabalho do PVE nas escolas eram (PORTUGAL, PES, 1996): a participação, que implicava entre outros comportamentos, os de parceria, negociação e assunção de responsabilidades; e reflexão conjunta sobre as práticas e os factos da vida dos/as alunos/as. Para além do PVE e de todas as atividades curriculares e extracurriculares que se desenvolveram, foi referida a Área – Escola como um espaço privilegiado de exercício dessas linhas de força. De acordo com as sínteses/ conclusões destas Jornadas, criou-se um instrumento de trabalho para a continuidade do Projeto, tornando-o mais eficaz nas respostas aos problemas e necessidades diagnosticadas no âmbito da Escola Promotora de Saúde e em articulação com as diferentes entidades. Esse instrumento consistiu num Relatório com o objectivo de



O exercício profissional do professor e a intervenção na escola são espaços privilegiados de formação contínua dos professores;



A constituição de equipas de professores, profissionais que exercem a mesma atividade, tendo em vista reforçar a componente institucional do processo de formação contínua dos professores;



O entrosamento do projeto na organização escolar visando também a reflexão e a ação sobre a instituição escolar, sobre o sistema educativo e sobre a profissionalidade docente;



A integração no projeto de formação de instrumentos de avaliação multiformes que ajudem o formando a proceder a uma autoavaliação rigorosa das situações de formação/ reflexão, das situações de trabalho/ intervenção e das situações de análise do próprio projeto de formação.

Como os/as professores/as-operadores/as, isto é, os/as professores/as que acompanhavam os projetos de formação nas escolas nessa altura, usufruíram do curso de especialização de formação (Curso de Formação de Formadores/as), exclusivamente para o PPES, cada projeto de formação tinha um sistema de acompanhamento sustentado no/a formador/a (professor/a-operador/a), responsável pela orientação e 256

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descrever e avaliar o trabalho realizado no ano letivo, devendo expressar a reflexão da equipa da escola sobre os resultados PVE e o processo que a eles conduziu. Em 1997, o Ministério da Educação – PPES (1997) desenvolveu a ação de formação “O professor como agente de prevenção pelo VIH/ SIDA”, durante quatro dias, para professores/as do 8º ano do ensino básico (nível de ensino com alunos de 13-14 anos). O objetivo foi capacitar os/as participantes para o desenvolvimento de um projeto específico de prevenção da infecção pelo VIH/ SIDA na comunidade escolar. Os/As formadores/as foram técnicos/as de educação, saúde, psicologia e assuntos sociais e a metodologia de trabalho foi baseada em trabalho de grupo e subgrupo. Durante esta formação foi explorado o Kit “O VIH/ SIDA na Comunidade Escolar”constituído por: manual para o/a professor/a, designado “O VIH/ SIDA na Comunidade escolar: Educar para prevenir a infecção pelo VIH”(QUINTANA et al.,1996 a); caderno de atividades e livro informativo para os/as alunos/as, designado “O VIH/ SIDA na Comunidade Escolar: Aprender a Prevenir – Informação para Alunos” (Amigo Quintana, Cid Galante, Chas Brínquez, Conde Cid, Cotelo Amado, Fernández Arribas, et al., 1996b); livro informativo para pais/mães, designado “O VIH/ SIDA na Comunidade Escolar: Educar para prevenir – Informação para Pais” (DIAS, REIS; MAGRO, 1996); slides sobre a infecção pelo VIH /SIDA efilmes vídeo. No manual do professor/a, Catalina Pestana, como Coordenadora do PPES (QUINTANA et al., 1996 a) salientou que a comunidade escolar constitui, como grupo, um elo prioritário na cadeia das ações de prevenção. Como consequência, o “VIH/ SIDA na Comunidade Escolar” é um programa de carácter preventivo que pretende responder à necessidade de manter informados e educados os/as alunos/ as que frequentam as nossas escolas, por forma a impedir que se deixem infectar, e a despertar-lhes sentimentos de aceitação e solidariedade face a seropositivos/as e doentes. Catalina Pestana, ainda acrescentou que a equipa está consciente de que este programa só resultará com a colaboração dos/as professores/as, como agentes indispensáveis de saúde, tanto no que respeita à simples transmissão de informação como também, e sobretudo, para o desenvolvimento de valores, na ausência dos quais toda a educação para a prevenção cai pela base. Por sua vez, Odette Ferreira, como Coordenadora da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA (CNLCS) (QUINTANA et al., 1996a), assumiu como objectivo prioritário da CNLCS conseguir para a nossa comunidade escolar a adoção de comportamentos e atitudes saudáveis e, como consequência, assumiu a responsabilidade de projetar e implementar programas de promoção de saúde no âmbito da prevenção do VIH/ SIDA na escola. Na sua opinião, “o Programa de Prevenção do VIH/ SIDA na comunidade

escolar”, elaborado conjuntamente por profissionais da Saúde e Educação, pretende contribuir para a informação e educação dos/as jovens com idades entre os 13 e os 14 anos, com o objectivo de impedir a propagação da infecção e, simultaneamente, fomentar um espírito de tolerância para com seropositivos e doentes” (QUINTANA et al., 1996a, p.5). Em maio de 1997, em reunião dos/as coordenadores/as nacionais dos países que integram a REEPS, e com base na avaliação positiva das diferentes experiências, foi decidido o alargamento da Rede, nas modalidades que cada um entendesseser convenientes e oportunas. Assim, em setembro de 1997, foi lançado o desafio às escolas para aderirem ao processo de alargamento da RNEPS, de acordo com os critérios definidos na Circular nº 2/97 (PORTUGAL, PPES, 1997),do programa de Promoção e Educação para a Saúde (2007): democracia, equidade, “empowerment” e competência de ação, ambiente escolar, currículo, formação de professores/as, avaliação do sucesso, colaboração, comunidades e sustentabilidade.Os Ministérios da Educação e da Saúde tinham como grande objetivo organizar o trabalho conjunto dos dois setores no âmbito da promoção e educação para saúde, duma forma geral, e da RNEPS, especificamente. Assim, definiram que no âmbito deste alargamento deveria garantir-se uma articulação adequada e eficaz entre os Ministérios envolvidos. Nesses termos determinaramno Despacho Conjunto nº 271/ 98, de 15 de abril que (PORTUGAL, 1998, p. 4922):

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1. O Ministério da Educação e o Ministério da Saúde comprometem-se a fomentar o desenvolvimento sustentado do processo de alargamento da Rede Nacional de Escolas Promotoras de Saúde (RNEPS), garantindo que as escolas ou agrupamentos de escolas e os centros de saúde assumam responsabilidades complementares na promoção da saúde da comunidade educativa alargada. 2. Constitui objectivo central do referido alargamento a criação de condições para a promoção da saúde das crianças e dos jovens e a prevenção de acidentes e doenças nestes grupos etários, implicando os diferentes agentes do sistema educativo e assegurando uma rede de atendimento a crianças e adolescentes a nível da saúde física e mental nas áreas das escolas promotoras de saúde. 3. As ações a desenvolver inscrevem-se nas seguintes áreas de intervenção prioritária: alimentação, saúde oral, sexualidade, segurança, vacinação (hepatite B), uso e abuso de substâncias lícitas e ilícitas, SIDA. 4. Compete ao Programa de Promoção e Educação para a Saúde e à Direcção-Geral da Saúde a definição de modelos de intervenção aptos a uma partilha funcional de responsabilidades que potencie a rentabilização dos recursos disponíveis e a mobilização de outros parceiros, designadamente pais e encarregados de educação e autarquias

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locais, articulando as ações a nível local e central, com respeito pela autonomia e competências dos diversos intervenientes.

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Em março de 1998, a Portaria nº 370-A/98, de 25 de março(PORTUGAL, 1998), criou no Instituto Português da Juventude uma linha telefónica para informar os/as jovens na áreada educação sexual e planeamento familiar. Cerca de três meses mais tarde, o Despacho nº 12 782/98 de 24 de julho desse mesmo ano (PORTUGAL, 1998, p. 10332), definiu que a saúde reprodutiva constituía uma das áreas de cuidados de saúde consideradas prioritárias no quadro da estratégia de saúde, contemplando “o reforço das atividades no âmbito do planeamento familiar e da saúde materna, assim como as atividades de educação, dirigidas aos adolescentes e às mulheres jovens, nas áreas da sexualidade e reprodução, baseadas nas escolas e nos serviços de saúde”.

Dois meses depois, foi aprovado com a Resolução do Conselho de Ministros nº 124/98 de 21 de outubro (PORTUGAL, 1998), o Relatório Interministerial para a elaboração de um plano de ação em educação sexual e planeamento familiar, para dar cumprimento aos princípios consignados na Lei nº 3/84 de 24 de março, já referida, e acompanhar mais eficazmente as populações mais vulneráveis. Neste Relatório Interministerial, elaborado por representantes dos Ministérios da Justiça, da Educação, da Saúde e do Trabalho e da Solidariedade e da Secretaria de Estado da Juventude,a educação sexual é entendida como uma componente essencial da educação e da promoção da saúde e deve atingir os seguintes objectivos, entre outros (PORTUGAL, 1998): promover a saúde sexual e reprodutiva, tendo como alvo prioritário os/as adolescentes e as populações especialmente vulneráveis; proporcionar condições para a aquisição de conhecimentos na vertente da educação sexual que contribuam para uma vivência mais informada, mais gratificante, mais autónoma e logo mais responsável da sexualidade; estimular o desenvolvimento de referencias éticas, de atitudes, de afetos e de valores na família, na escola e na sociedade; criar condições que permitam desenvolver as capacidades de cada cidadão/ã para perceber e lidar com a sexualidade na base do respeito por si próprio/a e pelos/ as outros/as e num clima de aceitação dos valores de tolerância, da não-discriminação e da não violência, de abertura à diversidade e da capacidade crítica de debate e da experiência de responsabilidade e autonomia; promover as capacidades individuais que ajudem a construir uma consciência clara da importância da tomada de decisão, de recusa de comportamentos não desejados e do conhecimento dos recursos para ter apoio quando este for considerado necessário e valorizar as atividades de educação e informação dirigidas a crianças e adolescentes. Este Relatório também propôs algumas linhas de ação a adoptar pelo Ministério da Educação sobre a metodologia de ensino, o envolvimento dos pais/ mães e da comunidade e as parcerias a estabelecer com o centro de saúde e com a comunidade. No mês seguinte, através da Resolução nº 51/98 de 2 de novembro (Portugal, Assembleia da República, 1998), foi recomendado ao Governo que na falha da regulamentação do artigo 2º da Lei nº 3/84 para a introdução da educação sexual nos currículos escolares, se recorresse aos meios de comunicação social, particularmente ao serviço público de televisão, como suportes de uma ampla campanha nacional informativa, envolvendo entidades públicas e privadas, e à promoção de programas de formação de pessoal devidamente habilitado para reforçar as equipas pluridisciplinares a nível da educação e da saúde e ação social. Esta Resolução, no âmbito da regulamentação do artigo 10º da Lei nº 3/84 estabeleceu, entre outros aspectos, a gratuitidade das consultas sobre planeamento familiar e dos meios con-

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O desafio lançado às escolas e aos centros de saúde superou todas as expetativas, chegando a contabilizar-se cerca de 3500 escolas na rede nacional. A estas, somaram-se muitas outras escolas que, não querendo integrar a Rede Nacional de Escolas Promotoras de Saúde (RNEPS), desenvolveram atividades de promoção da saúde e tiveram, por parte das equipas do Ministério da Educação, o apoio e acompanhamento possível. Com o fim do PPES, em Agosto de 1999, atravésdo Despacho n.º 15 587/99, de 12 de agosto (PORTUGAL, 1999), as estruturas nacionais e regionais do programa foram assumidas pelo Ministério da Educação e foram criados:a nível regional, os Grupos Técnicos de Promoção e Educação para a Saúde (GTPES) os quais, para além das competências que transitaram do referido programa e do apoio à RNEPS, assumiram outras de âmbito global e para o universo de todo o sistema educativo; a nível nacional,no âmbito do Ministério da Educação e na dependência da Secretaria de Estado da Educação e da Inovação, a Comissão de Coordenação da Promoção e Educação para a Saúde (CCPES), que deu continuidade às iniciativas anteriores do PPES, nomeadamente a nível das ações a desenvolver no âmbito da parceria entre as estruturas da educação e da saúde, em especial nas áreas de intervenção definidas como prioritárias no despacho conjunto nº 271/98 de 23 de março, já referido: alimentação, saúde oral, sexualidade, segurança, vacinação, prevenção do uso e abuso de substâncias lícitas e ilícitas e da SIDA.

6. Transição para o ano 2000: acelerada evolução da legislação sobre a educação sexual como uma componente da promoção da saúde

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tracetivos que no âmbito das mesmas fossem prescritos. Também foi estabelecida a implementação de programas especiais conjuntos dos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Solidariedade para grupos de risco, onde foram incluídos/as os/as adolescentes que deveriam ter consultas próprias de ginecologia e obstetrícia nos centros de saúde e hospitais. No Plano para uma Política Global de Família, descrito na Resolução do Conselho de Ministros nº 7/99, de 19de fevereiro (PORTUGAL, 1999) previu-se a aplicação de medidas que criem condições para uma maior participação das famílias na vida escolar através da organização e da colaboração em iniciativas que visem a melhoria da qualidade do ensino e a humanização das escolas e prevê-se, ainda, a articulação interinstitucional e multiprofissional para assegurar com maior igualdade o acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva dos/as adolescentes e jovens. Também foi definido que é função das Direções Regionais da Educação e do Ministério da Educação, dentro das suas competências na área da educação para a saúde, acompanhar e apoiar as escolas, devendo para isso estabelecer parcerias com os Centros de Saúde e as Administrações Regionais de Saúde. Em Agosto desse mesmo ano, a Lei nº 120/99, de 11 de agosto, designada por Lei de Reforço às Garantias do Direito à Saúde Reprodutiva (PORTUGAL, 1999), introduziu de forma generalizada a educação sexual prevista quinze anos trás pela Lei 3/84, definindo,no artigo 2º,que nos ensinos básico e secundário “será implementado um programa para a promoção da saúde e da sexualidade humana, no qual será proporcionada adequada informação sobre a sexualidade humana, o aparelho reprodutivo e a fisiologia da reprodução, SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis, os métodos contracetivos e o planeamento da família, as relações interpessoais, a partilha de responsabilidades e a igualdade entre os géneros” (PORTUGAL, 1999, p.5232). Esta Lei estabeleceu que a educação para a saúde sexual e reprodutiva deverá adequar-se aos diferentes níveis etários, consideradas as suas especificidades biológicas, psicológicas e sociais, e envolvendo os agentes educativos (artigo 2º, ponto 3) e os conteúdos tratados serão incluídos nas diferentes disciplinas vocacionadas para a abordagem interdisciplinar destes conteúdos (artigo 2º, ponto 2). Esta Lei, no artigo 3º, definiu, que a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis deverá ser feita através da criação de um gabinete de apoio aos/às alunos/as, que entre outras finalidades a definir pela escola, ouvida a associação de pais/mães, realizará ações diversas para a promoção da educação para a saúde, particularmente sobre a sexualidade humana e saúde reprodutiva, em articulação com os serviços de saúde. Neste âmbito, estabeleceu que “será disponibilizado o acesso a preservativos através de meios mecânicos, em todos os estabelecimentos de ensino superior e nos

estabelecimentos de ensino secundário, por decisão dos órgãos diretivos ouvidas as respectivas associações de pais e alunos” (PORTUGAL, 1999, p.5233). No artigo 5º, no âmbito do planeamento familiar, ainda determinou que os/as jovens podem ser atendidos em qualquer consulta de planeamento familiar, ainda que em centro de saúde ou serviço hospitalar que não seja na área da sua residência. Em síntese, a Lei nº 120/99 criou a dinâmica necessária para o desenvolvimento sustentável da educação sexual na comunidade escolar. Por um lado, como já referido, responsabilizou as escolas, em colaboração estreita com os serviços de saúde da respetiva área e as associações de estudantes/as e de pais/mães e encarregados de educação, pela operacionalizaçãodas formas de integração da educação sexual na comunidade escolar,por outro lado, atribuiu aos centros de formação de professores/as de associações de escolas dos ensinos básico e secundário, a responsabilidade de incluir nos seus planos de formação ações sobre educação sexual e reprodutiva.

XIV Governo Constitucional: em funções de 25/10/1999 a 06/04/2002; Presidente da República – Jorge Sampaio; Primeiro Ministro – António Guterres; Ministro da Educação – Júlio Pedrosa

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7. Primeira década após a viragem do milénio: consolidação da educação sexual na comunidade escolar A Lei nº 120/99 foi regulamentada no ano seguintepelo Decreto  – Lei nº 259/ 20009, de 17 de outubro (PORTUGAL, 2000), que reforça a abordagem metodológica curricular transdisciplinar da educação sexual, ao definir no âmbito da promoção da educação sexual em meio escolar que (artigo 1º): A organização curricular dos ensinos básico e secundário contempla obrigatoriamente a abordagem da promoção da saúde sexual e da sexualidade humana, quer numa perspectiva interdisciplinar, quer integrada em disciplinas curriculares cujos programas incluem a temática (ponto 1). O projeto educativo de cada escola (…) deve integrar estratégias de promoção da saúde sexual, tanto no desenvolvimento do currículo, como na organização de atividades de enriquecimento curricular, favorecendo a articulação escola – família, fomentando a participação da comunidade escolar e dinamizando parcerias com entidades externas à escola, nomeadamente com o centro de saúde da respectiva área, de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 2.º da Lei nº 120/99, de 11 de Agosto (ponto 2). O plano de trabalho de turma, (…) deve ser harmonizado com os objetivos do projeto educativo de escola e compreender uma abordagem interdisciplinar da promoção da saúde sexual, por forma a garantir uma intervenção educativa integrada (ponto 3). 9

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No ano lectivo 2000/2001, a maior parte das escolas Portuguesas não incluía, ainda, a educação sexual no seu projeto educativo. No início do ano, o Estado distribuiu às escolas um livro designado “Linhas Orientadoras: Educação Sexual em meio escolar”10 (MARQUES et al., 2000), que repetiu as orientações da legislação em vigor salientado, na metodologia geral da educação sexual, que “os alunos devem assumir um papel predominantemente ativo e participativo” (p. 33), participando na planificação, pesquisa e recolha de informação, condução de debates e momentos de síntese e avaliação. Este livro defendia que o ponto de partida da educação sexual devia ser o que já é conhecido ou foi vivenciado pelos/as alunos/as, para ter em atenção o grau de desenvolvimento e os interesses do grupo-alvo. Além disso, o livro argumentava que é importante que se estabeleça uma boa relação pedagógica entre os/as profissionais e os/as alunos/as, por causa da componente de intimidade que a sexualidade envolve, sendo, nesse sentido, as metodologias ativas e participativas consideradas as mais adequadas. A educação sexual foi entendida neste livro (MARQUES et al., 2000),como uma vertente do processo global da educação, bem como uma das componentes da promoção da saúde e representa uma das áreas em que a colaboração entre os setores da educação e da saúde se torna indispensável. Nessa medida, a educação sexual constitui parte integrante do processo de promoção da saúde em meio escolar, nas suas diferentes dimensões(curricular, psicossocial, ecológica, comunitária e organizacional), salientando, por um lado, que a sexualidade pode estar associada a acontecimentos negativos como problemas de ordem emocional, ocorrência de gravidezes não desejadas, recurso ao aborto, contágio de doenças de transmissão sexual, violência e abuso sexual e, por outro lado, que a sexualidade é das características humanas mais determinadas e moldadas pelo processo de socialização. Neste sentido,os/as autores/as deste livro defenderam que (MARQUESet al., 2000, p.23): 10 Em setembro de 1998, o Programa de Promoção e Educação para a Saúde (PPES) publicou o Relatório de Avaliação Externa do Projeto Experimental de Educação Sexual e Promoção da Saúde na Escola (Portugal, Ministério da Educação – PPES, 1998), no fim do 3º ano de implementação do projeto, desenvolvido em regime experimental em cinco escolas (uma do primeiro ciclo, duas EB2,3 e duas do ensino secundário). Esta fase experimental visava “a identificação quer das necessidades da população escolar nesta matéria quer dos eventuais problemas que a implementação de tal temática poderia levantar e das prováveis soluções para obviar aos constrangimentos detetados” (p.1). Com base na experiência adquirida proceder-se-ia ao alargamento da educação sexual a todo o sistema educativo. Nesta sequência, em fevereiro de 1999 o programa de Promoção e Educação para a Saúde, a Direção Geral de Saúde e a Associação para o Planeamento da família publicou o documento Orientações Técnicas sobre Educação Sexual em Meio Escolar. As atuais linhas orientadoras nacionais resultam da atualização, reformulação e adaptação do documento anterior, que procuraram “contemplar as opiniões críticas e sugestões contidas em pareceres de diversos organismos e personalidades de reconhecida credibilidade nos domínios da Educação, Saúde, Sexologia, Medicina e Saúde Mental, entre outros, formulados a propósito daquela publicação” (Marques et al., 2000, p.11)

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Todas as sociedades, com os seus recursos e instrumentos de socialização, procuram, de uma maneira formal ou informal, transmitir os seus valores fundamentais e as suas regras de conduta no campo da sexualidade. A escola, enquanto espaço de grande importância na socialização das crianças e dos jovens, tem, portanto, um papel a desempenhar neste âmbito.

Estas linhas orientadoras nacionais também referiram que a articulação escola família é amplamente defendida e justificada. Neste âmbito, consideraram que a educação sexual nas escolas Portuguesas exige (MARQUESet al., 2000): a formação de agentes educativos (educadores/as, professores/as, profissionais de saúde, psicólogos/as escolares, auxiliares de ação educativa, etc.) para serem capazes de agir de forma adequada e coerente face às dúvidas e manifestações dos/as alunos/as sobre a sua sexualidade; a abordagem pedagógica de temas de sexualidade humana, feita em contextos curriculares e extracurriculares, numa lógica interdisciplinar, privilegiando o espaço turma e as diferentes necessidades dos/as alunos/as; o apoio às famílias na educação sexual dos/as filhos/as, proporcionando condições para o seu envolvimento no processo de ensino/ aprendizagem e/ou da promoção de atividades específicas de formação dirigidas aos/ às encarregados/as de educação ou dinamizadas por eles/as; e o estabelecimento de apoio individualizado e específico aos/às alunos/as que precisam dele, através da criação e manutenção de parcerias no interior da escola e com outros serviços da comunidade (e.g., serviços de psicologia e orientação nas escolas, articulação com os centros de saúde, etc.). Neste livro (MARQUES et al., 2000), os objectivos da educação sexual foram definidos a partir de um quadro ético de referência que explica a impossibilidade da “neutralidade moral” na educação sexual. Foi considerado que os valores definidos para a educação sexual devem respeitar a individualidade de cada um/a ou, por outras palavras, os valores pessoais, familiares e culturais, desde que não colidam entre si. Por isso, defenderam uma plataforma ética e conceptual, unificadora da diversidade das famílias e dos indivíduos, e um quadro filosófico e prático, partilhado pela cultura Portuguesa, organizador de conteúdos, valores, atitudes e comportamentos. De acordo com estas linhas orientadoras para a educação sexual nacional (MARQUES et al., 2000), os conteúdos do 2º ciclo(para adolescentes dos 10-11 anos) e 3º ciclosdo ensino básico (12-14 anos) e do ensino secundário (15-16-17 anos) incluem: as dimensões anátomo-fisiológicas, psicoafectiva e sociocultural da expressão da sexualidade; o corpo sexuado e os seus órgãos internos e externos; as regras de higiene corporal; a diversidade dos comportamentos sexuais ao longo da vida Doxa, v.17, n.1 e 2, p.245-293, 2013

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e das diferenças individuais; os mecanismos da reprodução; o planeamento familiar e, em particular, os métodos contracetivos; as infecções de transmissão sexual, formas de prevenção e tratamento; os mecanismos da resposta sexual humana; as ideias e valores com que as diversas sociedades foram encarando e encaram a sexualidade, o amor, a reprodução e a relação entre os sexos; os recursos existentes para a resolução de situações relacionadas com a saúde sexual e reprodutiva; os tipos de abuso sexual e das estratégias dos/as agressores/as. Segundo as mesmas linhas orientadoras (MARQUES et al., 2000), as etapas essenciais para a integração da educação sexual na escola são dez: 1) identificação e constituição da equipa responsável na escola; 2) elaboração das linhas gerais do projeto (objetivos, estratégias e avaliação) e dos modos da sua integração no Projeto Educativo da Escola; 3) identificação dos/as professores/as interessados/ as em participar; 4) procurar e identificar os apoios indispensáveis (e.g., formação, materiais, agentes exteriores à escola); 5) comunicação do projeto aos pais/mães e identificação de possíveis atividades a eles/as dirigidas ou por eles/as dinamizadas; 6) formação inicial de professores/as e outros profissionais que desejem envolver-se no projeto; 7) desenvolvimento de trabalhos de projeto com cada professor/a, na base da identificação dos momentos curriculares em que seja possível a abordagem de temas relacionados com a sexualidade, articulando-se com os outros profissionais se necessário; 8) identificação de momentos interdisciplinares e/ou extracurriculares para a abordagem conjunta dos mesmos temas, por exemplo, a comemoração de “Dias Mundiais”; 9) realização de atividades; e 10) avaliação e preparação dos anos letivos seguintes. Ainda em 2000, o Decreto-lei nº 259/2000 de 17 de outubro (PORTUGAL, 2000), reforçou as garantias do direito à saúde reprodutiva. No âmbito da promoção da educação sexual em meio escolar (artigo 1º), estabeleceu que a organização curricular dos ensinos básico e secundário contempla obrigatoriamente a abordagem da promoção da saúde sexual e da sexualidade humana, quer numa perspetiva interdisciplinar, quer integrada em disciplinas curriculares cujos programas incluem a temática. Além disso, legislando as Linhas Orientadoras Nacionais, estabeleceu que o projeto educativo de cada escola, a elaborar nos termos do regime de autonomia, administração e gestão das escolas (Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio), deve integrar estratégias de promoção da saúde sexual, tanto no desenvolvimento do currículo, como na organização de atividades de enriquecimento curricular, favorecendo a articulação escola-família, fomentando a participação da comunidade escolar e dinamizando parcerias com entidades externas à escola, nomeadamente com o centro de saúde da respectiva área (de acordo com aLei nº

120/99, de 11 de agosto). Também foi estabelecido que o plano de trabalho de turmadeve ser harmonizado com os objetivos do projeto educativo de escola e compreender uma abordagem interdisciplinar da promoção da saúde sexual, por formaa garantir uma intervenção educativa integrada. No âmbito desta Lei, a instalação de dispositivos mecânicos para acesso a preservativos em estabelecimentos de ensino secundário (prevista na Lei nº120/99), deve decorrer de um amplo consenso na comunidade escolar, competindo aos respectivos órgãos de direção executiva desencadear o processo de audição das associações representativas dos pais/mães e encarregados de educação e dos/as alunos/as, fazendo incluir tal medida, se for caso disso, nos planos anuais de atividades das suas escolas (artigo 3º). A formação de docentes nesta área também foi contemplada. Foi definido que os serviços competentes do Ministério da Educação devem integrar nas suas prioridades a concessão de apoios à realização de ações de formação contínua de professores/as no domínio da promoção da saúde e da educação sexual (artigo 5º). Os adolescentes foram considerados um grupo de intervenção prioritária no âmbito da saúde reprodutiva e da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, e foi definido que devem ser tomadas medidas que permitam adequar e melhorar as condições de acesso e atendimento dos/as adolescentes nos centros de saúde e hospitais, quer sejam do sexo feminino quer sejam do sexo masculino. O Despacho Conjunto nº 734/2000 de 18 de julho (PORTUGAL, 2000), veio formalizar o compromisso mútuo dos Ministérios da Educação e Saúde para fomentarem o desenvolvimento sustentado do processo de alargamento da Rede Nacional de Escolas Promotoras de Saúde (RNEPS), sendo cometidas competências ao Programa de Promoção e Educação para a Saúde (PPES) e à Direcção-Geral da Saúde (DGS) para a definição de modelos de intervenção adequados à partilha funcional de responsabilidades, de molde a serem potenciados os recursos disponíveis e a serem mobilizados outros/as parceiros/as, articulando as ações de nível local e regional, no respeito pela autonomia e competências dos diversos intervenientes. De acordo com o mesmo despacho conjunto, cabia ao PPES incentivar a participação das escolas da rede, competindo à DGS a dinamização das administrações regionais de saúde (ARS) no sentido de garantirem o apoio por parte dos centros de saúde a estas escolas. Por forma a assegurar o processo de alargamento, foi determinada a reorganização do Centro de Apoio Nacional da RNEPS (CAN), bem como a elaboração do respectivo plano de atividades e orça- mento, e a definição das formas de ligação entre os serviços envolvidos e as equipas locais, das necessidades de formação, dos modos de acompanhamento das experiências no terreno e dos tipos e fases de avaliação.

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A aprovação da reorganização curricular do ensino básico (Decreto-Lei nº6/2001 de 18 de janeiro),veio facilitar a implementação das Linhas Orientadoras de Educação Sexual em Meio Escolar. No âmbito da reorganização do ensino básico, para além das áreas curriculares disciplinares, o diploma determinou a criação de três áreas curriculares não disciplinares, de natureza transversal e integradora – Área de Projeto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica (Portugal, Ministério da Educação, 2001).O artigo 9º, sobre as atividades de enriquecimento do currículo, ainda definiu que as escolas, no desenvolvimento do seu projeto educativo, devem proporcionar aos/às alunos/as atividades de enriquecimento do currículo, de carácter facultativo e de natureza eminentemente lúdica e cultural, incidindo, nomeadamente, nos domínios desportivo, artístico, científico e tecnológico, de ligação da escola com o meio, de solidariedade e voluntariado e da dimensão europeia na educação. Nesse mesmo ano foi aprovada a lei nº 12/2001 de 29 de maio (PORTUGAL, 2001), sobre a contraceção de emergência, que visougarantir o recurso atempado à contraceção de emergência, reforçar o direito à informação sobre o significado, a natureza e as condições de utilização da contraceção de emergência e garantir o acesso às consultas de planeamento familiar subsequente. Os/as adolescentes, tal como os/as adultos, passaram a ter acesso livre, inclusive nas farmácias, à pílula de emergência para a mulher tomar nas primeiras setenta e duas horas após uma relação sexual não protegida, não consentida, ou não eficazmente protegida por qualquer outro meio anticoncecional regular. Entre 2001 e 200311, o Ministério da Educação assinou protocolos com três organizações não governamentais – Associação para o Planeamento da Família (2001 e 2003), Fundação Portuguesa “A Comunidade contra a Sida” (2003) e Movimento de Defesa da Vida (2003) – com o objectivo de participarem nas atividades de formação a realizar pelas estruturas do Ministério da Educação, colaborarem na implementação e desenvolvimento da educação sexual nas escolas, nomeadamente, na sensibilização e promoção: do envolvimento dos pais/mães nos projetos da escola; de ações com os/as alunos/asde sensibilização e formação nesta vertente; do apoio às estruturas da escola na concretização dos projetos; do apoio técnico e disponibilização de materiais aos/às professores/as com formação específica; na conceção e desenvolvimento de projetos futuros. Em 2004, foi criada a possibilidade de implementar a educação sexual também no ensino secundário, pois embora não existisse nenhuma das áreas anteriores,

o Decreto – Lei nº 74/2004 de 26 de março estabeleceu que a educação para a cidadania deveria ser transversal em todas as componentes curriculares (PORTUGAL, 2004, artigo 4º, alínea e). Além disso, definiu que em complemento das atividades curriculares do nível secundário de educação, competia às escolas organizar e realizar, valorizando a participação dos/as alunos/as, ações, entre outras, de formação cultural, de formação cívica de inserção e de participação na vida comunitária, visando especialmente a utilização criativa e formativa dos tempos livres, e orientadas, em geral, para a formação integral e para a realização pessoal dos/as alunos/as (artigo 7º). Acrescentou, ainda, que tendo especialmente em vista a promoção do sucesso escolar dos/as alunos/as devem realizar-se em meio escolar: “ações de apoio ao crescimento e desenvolvimento pessoal e social dos alunos, visando igualmente a promoção da saúde e a prevenção de comportamentos de risco” (artigo 8º, c). Também em março de 2004, quando na Assembleia da República se discutiu, mais uma vez, a interrupção voluntária da gravidez (IVG) e foram aprovadas medidas de prevenção nesse âmbito através da Resolução da Assembleia da República nº 28/ 2004 de 19 de março (PORTUGAL, 2004), definiu-se a educação sexual, como uma componente da educação para a saúde que deve ser desenvolvida nas escolas numa área curricular ou disciplina autónomade formação e desenvolvimento pessoal, dirigida especificamente aos/às alunos/as do 3º ao 9º ano de escolaridade. Esta área curricular, ou disciplina, a partir do 7º ano, deve ser obrigatória, salvaguardando a responsabilidade dos pais/mães, nos termos da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sujeita a avaliação, e vocacionada para a educação dos comportamentos nos domínios da civilidade e da saúde física e mental, com especial prioridade para a saúde sexual e reprodutiva. Também deve dotar cada Centro de Apoio Social Escolar (CASE) dos recursos indispensáveis à promoção da saúde, bem como ao apoio, acompanhamento e rastreio dos/as alunos/ as em situação de risco (ex. da alimentação, do consumo de substâncias aditivas que geram dependências e da saúde sexual) e instituir a figura do/a tutor/a escolar vocacionado/a para a ajuda e o aconselhamento e para a primeira abordagem no despiste e identificação de situações de risco entre os/as alunos/as, bem como na articulação com a intervenção especializada ao nível dos CASE. Para terminar, deve promover ações de informação, formação e prevenção junto das comunidades educativas visando a circunscrição das condutas e práticas de agressão e violência sobre e entre menores e criar condições de flexibilização de horários escolares e de exames com vista a que os mesmos se adeqúem à continuação do percurso escolar das mães ou grávidas adolescentes e jovens.

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XV Governo Constitucional: em funções de 06/04/2002 a 17/07/2004; Presidente da República – Jorge Sampaio; Primeiro Ministro – José Manuel Durão Barroso; Ministro da Educação – David Justino

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Em setembro de 200512/13, foi criado pelo Ministério da Educação, através do Despacho nº 19 737/2005 de 13 de setembro (PORTUGAL, 2005), o Grupo de Trabalho de Educação Sexual (GTES), “com o objectivo de estudar e propor os parâmetros gerais dos programas de educação sexual em meio escolar” (Portugal, Ministério da Educação-Gabinete da Ministra, 2005, p.13348). O GTES apresentou, a 31 de outubro de 2005, um Relatório Preliminar que esteve em discussão pública até novembro de 2005. Simultaneamente, perante o amplo debate que tinha vindo a acontecer na sociedade sobre a educação sexual na escola, e face à polémica em torno de um programa e de materiais curriculares para a educação sexual, a Ministra da Educação solicitou um parecer ao Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre o modelo de educação sexual nas escolas, em vigor desde o ano de 2000. O Relatório Preliminar do GTES (SAMPAIO, BAPTISTA, MATOS; SILVA, 2005), descreveu o que tem sido feito na área da educação sexual/educação para a saúde em meio escolar e propôs uma série de medidas para a tornar mais efetiva, nomeadamente, que a educação sexual devia ser integrada numa nova dinâmica curricular de promoção e educação para a saúde, devendo esta área ser considerada prioritária pelo Ministério da Educação, passando a assumir carácter obrigatório, onde a participação dos/as alunos/as e a sua capacitação permanente deveriam estar presentes em todas as fases de aprendizagem e os pais/mães e encarregados/as de educação deviam estar em contacto permanente com a planificação e execução desta área, numa perspetiva de colaboração com a escola. Também sugeriram que em cada agrupamento/escola, o aproveitamento das áreas curriculares não disciplinares (Área de Projeto, Estudo Acompanhado, Formação Cívica e a opção de escola), fosse feito para a abordagem da educação para a saúde, em função das características da escola e dos/as docentes disponíveis com formação adequada. Para implementar as medidas anteriores, cada agrupamento/escola deveria eleger um/a professor/a responsável pela área de Educação para a Saúde, que deveria ter redução de serviço na componente lectiva. Recomendaram também a criação de um “espaço tutorial”, onde os/as alunos/as pudessem ter atendimento individualizado por parte de um/a professor/a com formação e disponibilidade pessoal, recomendaram o recurso a jovens mais velhos/as para intervenções na área de educação para a saúde, após formação adequada, recrutados/asno ensino superior em áreas relevantes (Medicina, Enfermagem, Psicologia, Farmácia, Biologia, entre outras). No ensino secundário,

dada a dificuldade de aproveitamento curricular para esta área, recomendaram a criação de um gabinete de atendimento para as questões de saúde, em articulação com o centro de saúde da área. No parecer nº 6/2005, de 24 de novembro (PORTUGAL, 2005), sobre a educação sexual nas escolas, o CNE defendeu que, de acordo com Pacheco, a educação sexual em meio escolar poderá concretizar-se nos seguintes modelos de integração curricular (p. 16464): a) organização curricular pluridisciplinar, em que existe uma relação entre duas ou mais disciplinas, sendo os conteúdos da educação sexual estudados no mesmo horizonte temporal; b) integração de competências transversais, na perspectiva de uma abordagem transdisciplinar, que são reforçadas por todos os docentes em todas as atividades educativas e curriculares; c) integração de temas, através da construção de unidades de aprendizagem globalizantes, numa síntese que deriva de vários campos disciplinares; d) integração de questões nas atividades curriculares e não curriculares que são decididas no âmbito dos projetos educativo e curricular; e) integração focalizada em projetos de trabalho com a consideração de questões que constituem situações problemáticas para os alunos e que requerem múltiplas fontes de informação.

XVII Governo Constitucional: em funções de 12/03/2005 a 26/10/2009; Presidente da República – Aníbal Cavaco Silva; Primeiro Ministro – José Sócrates; Ministro da Educação – Maria de Lurdes Rodrigues.

Este parecer sobre a educação sexual nas escolas (PORTUGAL, 2005), referiu ainda que apesar das diferentes interpretações que o artigo 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo tem suscitado em termos de orientações, a função social da escola é prevalecente, como foi reconhecido no Parecer nº 4/94 do CNE (Portugal, Conselho Nacional de Educação, 1995), que defendeu que a discussão sobre a integração da educação sexual na organização curricular se faz numa lógica de desenvolvimento pessoal e social, cujas componentes integram o que globalmente se designa por educação para a cidadania. Segundo o CNE (Portugal, Conselho Nacional de Educação, 2005), nesse sentido “qualquer decisão relativa à curricularização da educação sexual não tem sentido desligada das outras componentes educativas enunciadas na LBSE, imediatamente associadas à transdisciplinaridade, ou seja, à existência de uma formação global que interseta todas as áreas, disciplinas e atividades educativas e instrucionais“ (p.6). Segundo o Conselho Nacional de Educação (PORTUGAL, 2005), de acordo com os olhares críticos de entidades com as quais realizaram contactos e reuniões (e.g. APF, CNLCS, Confederação Nacional de Associação do Ensino Básico e Se-

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12 XVI Governo Constitucional: em funções de 17/07/2004 a 12/03/2005; Presidente da República – Jorge Sampaio; Primeiro Ministro – Pedro Santana Lopes; Ministro da Educação – Maria do Carmo Seabra. 13

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cundário, Confederação Nacional da Associação de Pais, Direção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, Direção Geral de Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Instituto Português da Juventude) a educação sexual em meio escolar não pode posicionar-se “em relação a qualquer atitude ou quadro de valores que não sejam consensuais, pois o que está em causa é o desenvolvimento psicoafetivo da criança, jovem e adolescente, a autoestima, o respeito pelos outros, o envolvimento pessoal, o lado dos afetos, do prazer, das emoções, da alegria, da angústia” (Portugal, Conselho Nacional de Educação, 2005, p.16466). Como consequência, neste Parecer defendeu-se que como a sexualidade é transversal à vida, é uma área aberta ao pensar, ao diálogo e ao questionamento que integra a formação pessoal, social e moral, o modelo curricular mais congruente é a transdisciplinaridade, sem que exista um compromisso da escola em seguir um modelo impositivo, mas compreensivo: “defender a transversalidade como modelo curricular é porque a sexualidade não pode fragmentar-se no desenvolvimento da personalidade. A educação sexual é uma educação para os afetos e quando se sai da informação científica será necessário pensar devidamente o que se vai fazer, já que é uma área aberta ao pensar e aos valores” (PORTUGAL, 2005, p. 16466). Nesta sequência, acrescentaram que a educação sexual integrada numa área curricular não disciplinar decorreu das realidades escolares relacionadas com a Área-Escola (19892001) e com a Área de Projeto que a substituiu depois de 2001, e sugeriramque a educação para a sexualidade integre, juntamente com a educação para a saúde, a área curricular Educação para a Cidadania ou Educação Humana e Cívica, ou Relações Interpessoais. A justificação apresentada para esta proposta é a seguinte (PORTUGAL, 2005, p.16467):

tidisciplinares que conjugam os seus esforços para responder aos desafios colocados pelo projeto educativo de escola. Cada escola deve pensar o que fazer, organizando as atividades num programa de intervenção, a médio prazo, que contemple dimensões da formação pessoal e social, incluindo a da educação sexual. Com a Reforma Curricular do ensino secundário[enquadrada pelo Decreto-Lei nº 74/2004, de 26 de março (PORTUGAL, 2004), com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 24/2006, de 6 de fevereiro(PORTUGAL, 2006) e a Portarias nº 550D/2004 de 21 de maio (PORTUGAL, 2004) com as alterações introduzidas pela Portaria nº 259/2006 de 14 de março (PORTUGAL, 2006)], a Área de Projeto, área curricular não disciplinar de frequência obrigatória no 12º ano, passou a integrar no ano letivo 2006-2007, o desenho curricular dos cursos Científico-Humanísticos (Ciências e Tecnologias, Ciências Socioeconómicas, Línguas e Humanidades e Artes Visuais), para mobilizar e integrar competências e saberes adquiridos nas diferentes disciplinas. Neste contexto, surgiucomo uma área de“natureza interdisciplinar e transdisciplinar, visando a realização de projetos concretos por parte dos alunos, com o fim de desenvolver nestes uma visão integradora do saber, promovendo a sua orientação escolar e profissional e facilitando a sua aproximação ao mundo do trabalho” (Portugal, Ministério da Educação-Direção-Geral de Inovação e Desenvolvimento curricular/DGIDC, 2006, p.5), sendo recomendado pelo Grupo de Trabalho em Educação Sexual, no seu relatório final de 2007, a utilização desta área curricular não disciplinar para a dinamização do projeto de educação para a saúde, nomeadamente da sexualidade. Entre as Orientações de Área de Projeto, aquelas que mais diretamente se relacionam com a educação sexual são as seguintes:

Numa área curricular não disciplinar, a integração do conhecimento processa-se através de situações dinâmicas de trabalho, isto é, de práticas curriculares em que os problemas são questionados e as atividades são discutidas a partir das identidades dos alunos. É uma área onde o aluno pergunta, investiga, problematiza, questiona, valoriza, partilha, duvida, decide e constrói. Os conteúdos não estão predeterminados. Resultando de um processo aberto, os conteúdos curriculares são explorados na relação com o quotidiano dos alunos, de modo que estes compreendam cognitiva, emocional e relacionalmente os fenómenos do mundo que os rodeiam. Trata-se ainda de um espaço curricular de aprendizagem integrada de temas, questões e problemas.

promover uma cultura de liberdade, participação, reflexão, qualidade e avaliação que realce a responsabilidade de cada um nos processos de mudança pessoal e social; […]

desenvolver atitudes de responsabilização pessoal e social dos alunos na constituição dos seus itinerários e projetos de vida, sob uma perspectiva de formação para a cidadania participada, para a aprendizagem ao longo da vida e para a promoção de um espírito empreendedor. (PORTUGAL, DGIDC, 2006, p.8)

Para terminar, consideraram que como a educação sexual não é uma obrigação unicamente da escola, mas também de toda a comunidade educativa, deve corresponder a um conjunto de atividades centradas na escola, dinamizadas por equipas mul-

Nesta ótica, a Área de Projeto surge como um espaço apropriado para a abordagem da sexualidade humana, como foi sublinhado em 2000 nas Linhas Orientadoras da Educação Sexual em Meio Escolar, isto é, através da integração curricular de forma transversal e interdisciplinar, já que a maioria das áreas curriculares apresentam

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pontos de correspondência, paralelismo ou complementaridade com os objetivos da educação sexual. Na sequência da publicação do relatório preliminar do GTES e do relatório do Conselho Nacional de Educação, o Despacho nº 25995/2005 de 16 de dezembro (PORTUGAL, 2005) aprovou e reafirmou os princípios orientadores das conclusões do Relatório Preliminar do GTES e do Parecer do Conselho Nacional de Educação no que se refere ao modelo de educação para a promoção da saúde. Para reforçar estes princípios, a 7 de fevereiro de 2006, houve a celebração de um protocolo entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde (PORTUGAL, 2006), para promover o desenvolvimento de atividades de promoção e educação para a saúde em meio escolar e as opções tomadas peloMinistério da Educação para clarificar as políticas educativas de educação sexual e as opções tomadas pelo Ministério da Saúde no sentido da dinamização da promoção da saúde na escola. Através do Despacho Interno nº 15987/2006 de 27 de setembro (PORTUGAL, 2006), o Secretário de Estado da Educação identificou e veiculou aos agrupamentos/ escolas algumas linhas de orientação e temáticas no âmbito da educação para a saúde, a integrar no projeto educativo de cada agrupamento/escola, considerando como obrigatório a inclusão no projeto educativo da escola das temáticas relacionadas com a promoção e educação para a saúde, enunciando como áreas prioritárias as seguintes: alimentação e atividade física; consumo de substâncias psicoativas; sexualidade/ ISTs, nomeadamente SIDA e violência em meio escolar/ saúde mental. Este Despacho, também estabeleceu que o plano educativo da escola devia ser concebido de acordo com as prioridades identificadas e em articulação com as famílias dos/as alunos/as. Para permitir atingir estes objetivos, o corrente Despacho, definiu que cada Agrupamento/ Escola devia nomear um/a coordenador/a responsável na escola e articular-se com os centros de saúde para desenvolver ações conducentes à proteção e promoção da saúde global. Posteriormente, o Despacho nº 2506/2007, de 20 de fevereiro (PORTUGAL, 2007), definiu as linhas de orientação para esse professor/a coordenador/a da área temática da saúde. Ficou definido quea Direção Executiva de cada agrupamento/ escola com programas/projetos de trabalho na área da educação para a saúde, deveria designar um/a docente dos 2º ou 3º ciclos do ensino básico para exercer as funções de coordenador/a da educação para a saúde, tendo em conta a sua formação bem como a experiência no desenvolvimento de projetos e ou atividades no âmbito da educação para a saúde. A direção executiva, caso o entendesse necessário, podia atribuir a esse/a coordenador/a três horas de redução da componente letiva. Este Despacho também definiu que as ações de formação realizadas no âmbito da educação para

a saúde por docentes que no agrupamento/escola dinamizam projetos de educação para a saúde são consideradas, para todos os efeitos legais, como efectuadas na área correspondente ao seu grupo de recrutamento. Nesse mesmo ano, em abril, através da Lei nº 16/2007 de 17 de abril (PORTUGAL, 2007), houve a legalização da interrupção voluntária da gravidez, ficando estabelecido quenão é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico/a, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida nas condições definidas na Lei14. Em junho,a Assembleia da República através da Resolução nº 27/2007 de 21 de junho (PORTUGAL, 2007), recomendou ao Governo medidas no sentido de prevenir a gravidez na adolescência, nomeadamente a recolha e sistematização da informação considerada relevante sobre a gravidez na adolescência, que proporcione um diagnóstico real da situação para elaborar um programa nacional sobre prevenção da gravidez na adolescência de acordo com as realidades concretas. Este plano devia ser elaborado por um grupo de especialistas ao nível da saúde e educação, que devia avaliar as poucas experiências já realizadas nesta área. Também foi recomendado ao Governo que deveria garantir, no imediato, pelo menos um serviço de atendimento e aconselhamento a jovens em cada concelho, articulando os serviços de saúde, o Instituto da Juventude, as estruturas municipais de informação e as organizações não governamentais e, deveria criar (tal como já definido na Portaria nº 52/85) centros de atendimento para jovens nos centros de saúde e hospitais, a implantar inicialmente a nível regional e progressivamente nas restantes estruturas de saúde, na medida em que a preparação dos/as profissionais necessários/as ao seu funcionamento o permitisse, e garantir que os/as jovens podiam ser atendidos em qualquer consulta de planeamento familiar, ainda que em centro de saúde ou serviço hospitalar que

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14 Segundo a Lei nº 16/2007 [alteração do artigo 142º Código Penal, com a redação que foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (Portugal, Assembleia da República, 1995), e pela Lei nº 90/97, de 30 de Julho (Portugal, Assembleia da República, 1997)] não é punível a interrupção da gravidez quando: a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida; b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, em caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo; d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas. e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez(Portugal, Assembleia da República, 2007, p. 2417).

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não fosse da área da sua residência (fazendo cumprir o disposto na Lei nº 120/99), garantindo a divulgação destes serviços de forma acessível nas escolas e outros locais frequentados por jovens. O Grupo de Trabalho em Educação Sexual, no seu relatório final de7 de setembro de 2007 (SAMPAIO, BAPTISTA, MATOS; SILVA, 2007b), na sequência do Relatório de Progresso apresentado a 4 de janeiro de 2007 (SAMPAIO, BAPTISTA, MATOS; SILVA, 2007a)15, reafirmou a importância da promoção e educação para a saúde nas escolas do 1º ao 12º ano de escolaridade. Tal como já defendido nos Relatórios Preliminar e de Progresso, continuaram a defender que a educação para a saúde deve ser considerada obrigatória em todos os estabelecimentos de ensino e integrar o Projeto Educativo da escola, contemplando as seguintes áreas de acordo com as especificidades da escola: alimentação e atividade física; consumo de substâncias psicoativas, tabaco, álcool e drogas; sexualidade e infecções sexualmente transmissíveis, com relevância para a prevenção da SIDA; violência em meio escolar/ saúde mental. Nesta perspetiva, a educação sexual deverá existir em todas as escolas, em articulação com as estruturas da saúde, abordada de acordo com a idade dos/as alunos/as, através de ações com continuidade, organizadas segundo a metodologia de projeto. Este Relatório, propôs um programa mínimo e obrigatório de educação sexual para todos os/as estudantes, consoante a fase dos estudos,com avaliação de conhecimentosobrigatória, onde a participação ativa dos/as estudantes e a opinião e colaboração dos/as encarregados/as de educação são essenciais. O Relatório (SAMPAIO et al., 2007b), também descreveu que os resultados que obteve na avaliação da educação para a saúde nas escolas (1082 membros dos

Conselhos Executivos, que equivaleu a uma taxa de resposta de 89%), indicaram um aumento dos gabinetes de saúde, um aumento da promoção e educação para a saúde nas áreas curriculares (no projeto educativo nas aulas regulares de Educação Física e Biologia), bem como nas áreas curriculares não disciplinares, em especial na Área de Projeto e na Educação Cívica, explicando que estas áreas, sendo de frequência obrigatória e estando integradas no funcionamento regular da escola, dão garantias da sustentabilidade das medidas desenvolvidas até esse momento. Em julho de 2007, uma Comissão Independente nomeada pelo GTES (DINIS, ALBERGARIA; GUERREIRO, 2007),analisou 43livros/manuais e nove videogramas, com destaque para as publicações na área da sexualidade, tendo considerado a maioria de grande qualidade.Opróprio GTES promoveu a publicação de referenciais para três dos temas propostos na educação para a saúde: “Educação Alimentar em Meio Escolar: Referencial para uma Educação Alimentar Saudável” (BAPTISTA, 2006); “Consumo de Substâncias Psicoativas e Prevenção em Meio Escolar” (SOUSA et al.; 2007) e “Prevenção da Violência em Meio Escolar” (MATOS, SIMÕES, GASPAR, NEGREIROS; BAPTISTA, 2010). A 21 de julho de 2008, o Despacho nº 19 308/2008 (PORTUGAL, 2008), determinou que ao longo do ensino básico, em Área de Projeto e em Formação Cívica, sejam desenvolvidas competências no domínio da educação para a saúde e sexualidade. No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação (PORTUGAL, 2009), responde,com seis pontos de análise, à solicitação da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência da Assembleia da República (Parecer nº 2/2009 de 22 de abril), tendo em vista a recolha de contributos sobre o Projeto de Lei nº 634/X-4.a (Partido Comunista Português, 2009) que estabelece o regime de aplicação da educação sexual nas escolas, e o projeto de lei nº 660/X (Partido Socialista Português, 2009) que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar, apresentados, respetivamente, pelo Partido Comunista Português (PCP) e pelo Partido Socialista (PS). Noseu parecer,o Conselho Nacional de Educação (2009), constatou que no âmbito da educação sexual a tendência paraa incluirno âmbito da educação para a saúde tem sido a mais valorizada e implementada em escolas portuguesas, privilegiando a dimensão biológica, em detrimento de outras dimensões, igualmente importantes, como as de natureza afectiva, cultural, social, ética e jurídica. Em relação à natureza curricular da educação sexual, tem persistido a ideia de que a educação sexual em meio escolar é uma componente da área de formação pessoal e

15 Este Relatório resumiu as atividades do Grupo de Trabalho de Educação Sexual/Saúde (Sampaio, Baptista, Matos, & Silva, 2007 a), realizadas durante o ano de 2006 e definiu as suas principais linhas de ação até final de julho de 2007. Neste Relatório GTES assumiu que durante 2006 os seus objetivos fundamentais foram os seguintes: apoiar e dinamizar o trabalho de educação para a saúde realizado pelas 186 escolas/ agrupamentos que concorreram ao Edital do Ministério da Educação, cujo objetivo era a apresentação de projetos fundamentados de trabalho na área, a realizar nos estabelecimentos de ensino; estender os projetos de Educação para a Saúde ao maior número possível de escolas, promover uma articulação entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde; definir as principais áreas de intervenção em Educação para a Saúde, de modo a contribuir para a não dispersão de projetos por parte das escolas; garantir o apoio de uma bibliografia atualizada para as ações em curso nas escolas; publicar textos/manuais que possam servir de referencial teórico/prático para o trabalho nas escolas; continuar a sensibilização das famílias dos alunos para a importância do trabalho na área de Educação para a Saúde, promovendo a participação crescente das Associações de Pais nos projetos das escolas; iniciar a preparação dos instrumentos que servirão de base para uma avaliação criteriosa dos projetos em curso nas escolas, de modo a consolidar a proposta de trabalho do GTES, enunciada no Relatório Preliminar. Este Relatório também deu conta da perspectiva do GTES em matéria de Educação para a Saúde e Educação Sexual, das iniciativas realizadas e em curso e das medidas a tomar.

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social, segue uma abordagem interdisciplinar e inscreve-se no projeto educativo de escola, tendo vindo a ser implementada de acordo com um modelo transdisciplinar que usa os diversos espaços curriculares no interior das escolas dos ensinos básico e secundário (áreas curriculares disciplinares, áreas curriculares não disciplinares e áreas de complemento/enriquecimento curricular). Por outro lado, o Ministério da Educação estabelece, para o ensino básico, que na área de projeto e na formação cívica devem ser desenvolvidas competências da componente da formação pessoal e social, com a inclusão obrigatória da educação para a saúde e sexualidade, de entre mais dez domínios. Este Parecer (PORTUGAL, 2009), também descreveu que a coordenação da educação sexual em meio escolar, dada a sua natureza transdisciplinar, diz respeito a muitos intervenientes, logo carece de um/a responsável direto pela sua implementação na escola, por isso, reforça que deve ser seguido o parecer nº 6/2005 do Conselho Nacional de Educação e ancorá-la no projeto educativo das escolas, sendo estas obrigadas a integrá-la num projeto de intervenção, que deve ser elaborado, realizado e avaliado com a participação da comunidade educativa. Torna-se necessário atribuir competências a um coordenador no quadro das funções intermédias de gestão existente nas escolas. Nas recomendações finais deixadas pelo Conselho Nacional de Educação (2009), após a análise crítica efetuada aos projetos de lei apresentados pelo partido comunista e pelo partido socialista em função do parecer nº 6/2005 do Conselho Nacional de Educação, manteve-se a ideia de que se devem clarificar as finalidades da educação sexual, repensar a sua natureza curricular, definir eixos temáticos e consagrar estratégias participativas, que se enquadrem no trabalho de equipas interdisciplinares e nas dinâmicas de autonomia dos agrupamentos/escolas. OConselho Nacional de Educação partilha a ideia de que a educação sexual não se reduz à educação para a saúde, mas deve abranger as várias dimensões da sexualidade(biológicas, afectivas, culturais, sociais, éticas, jurídicas) e a sua implementação em meio escolar deverá beneficiar de um tempo e um espaço curricular próprio, cuja concretização poderá vir a ser equacionada no contexto da reestruturação das atuais áreas curriculares não disciplinares, abrangendo quer o ensino básico, quer o ensino secundário. Segundo este Parecer (PORTUGAL, 2009), as estratégias de implementação e coordenação da educação sexual em meio escolar devem alicerçar-se na observação da autonomia dos agrupamentos/escolas, bem como na aceitação de que se trata de um conjunto de atividades, dependendo de uma coordenação efetiva e de recursos humanos e financeiros adequados. Relativamente ao acompanhamento e formação, o Conselho Nacional de Educação subscreve a posição de que o desenvolvimento da educação

sexual através da conceção, realização e avaliação de um programa de atividades, que abranja os/as alunos/as do 1º ao 12º ano de escolaridade, requer uma política congruente de formação inicial e contínua de professores/as.No entanto, como os/as professores/as não são os únicos/as com essa tarefa, não deverá excluir-se a necessidade de uma formação de carácter multidisciplinar e devidamente adaptada às funções que pertencem a uma equipa articulada, no âmbito da comunidade educativa. Em seis de agosto de 2009, a Lei nº 60/2009 (PORTUGAL, 2009), estabeleceu a modalidade e a carga horária a atribuir à educação sexual em meio escolar e reforçou a inclusão desta área no Projeto Educativo do Agrupamento. A Lei definiu que o diretor/a de turma é o/a professor/a responsável pela educação para a saúde e educação sexual e possui a responsabilidade de elaborar, no início do ano escolar, o projeto de educação sexual da turma. Também estabeleceu que os agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas do 2º e 3º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, devem disponibilizar aos/às alunos/as um gabinete de informação e apoio no âmbito da educação para a saúde e educação sexual, que deverão ser assegurados por profissionais com formação nestas áreas, devendo funcionar, obrigatoriamente, pelo menos uma manhã e uma tarde por semana. O atendimento e funcionamento do respetivo gabinete de informação e apoioassegurado por profissionais com formação nas áreas da educação para a saúde e educação sexual funciona, obrigatoriamente, pelo menos uma manhã e uma tarde por semana, articulando a sua atividade com as respectivas unidades de saúde da comunidade local, ou outros organismos do Estado, nomeadamente o Instituto Português da Juventude, e deve garantir um espaço na Internet com informação que assegure, prontamente, resposta às questões colocadas pelos/as alunos/as e ter um espaço condigno para o seu funcionamento, organizado com a participação dos/as alunos/as, que garanta a confidencialidade aos seus utilizadores e assegure o acesso aos meios contracetivos adequados. Este gabinete entrou legalmente em funcionamento no ano letivo 2009/2010. No ano seguinte, em abril de 201016, a Portaria nº 196-A/2010 de 9 de abril (PORTUGAL, 2010), procedeu à regulamentação da Lei nº 60/2009. Ficou legislado que a educação sexual é aplicada nos ensinos básico e secundário, no âmbito da educação para a saúde, a ser desenvolvida nas áreas curriculares não disciplinares. No ensino profissional, integra-se igualmente na área da educação para a saúde, sendo atribuída ao/à diretor/a de escola a competência para, em concertação com XVII Governo Constitucional: em funções de 26/10/2009 a 21/06/2011; Presidente da República – Aníbal Cavaco Silva; Primeiro Ministro – José Sócrates; Ministro da Educação – Isabel Alçada.

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o/a professor/a coordenador/a da área da educação para a saúde e os/as diretores/ as de turma, definir quais os temas que devem ser abordados nas áreas curriculares disciplinares, sem prejuízo da atuação dos gabinetes de informação e apoio ao/à aluno/a (previstos na Lei nº 60/2009). Os conteúdos da educação sexual são desenvolvidos no quadro das áreas curriculares não disciplinares e devem respeitar a transversalidade inerente às várias disciplinas, integrando-se igualmente nas áreas curriculares disciplinares. Os conteúdos curriculares da educação sexual devem respeitar objectivos mínimos que foram definidos do 1º ao 12º ano de escolaridade, por exemplo PORTUGAL ( 2010, p. 1170 (3)-1170(4)):

por professores/as da escola, representantes dos pais/mães e representantes co-optados de instituições locais) e, nos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas onde seja leccionado o ensino secundário, representantes dos/as estudantes. O conselho pedagógico deve assegurar que os pais/mães e encarregados/as de educação sejam ouvidos em todas as fases de organização da educação sexual e a carga horária não pode ser inferior a seis horas para os 1º e 2º ciclos do ensino básico, nem inferior a doze horas para o 3º ciclo do ensino básico e secundário, distribuídas de forma equilibrada pelos diversos períodos do ano letivo.São ainda imputados à educação sexual tempos letivos de disciplinas e de iniciativas e ações extracurriculares que se relacionem com esta área. Ficou ainda definido (PORTUGAL, 2010), que cada agrupamento de escolas e escolas não agrupadasdesignam, através do/a diretor/a de escola um/a professor/a coordenador/a da educação para a saúde, na qual se inclui a educação sexual, e constitui uma equipa de educação para a saúde, na qual se inclui a educação sexual, coordenada pelo/a professor/a coordenador/a da educação para a saúde e educação sexual e constituída, preferencialmente, por diretores/as de turma do agrupamento ou professores/as de escolas do 1º ciclo. Também cabe ao/à diretor/a de escola, ouvida a equipa de educação para a saúde, definir a organização bem como as normas de funcionamento dos gabinetes de informação e apoio ao/à aluno/a, que são, igualmente, articulados com os gabinetes de saúde juvenil e unidades móveis, ao dispor das escolas pelo Instituto Português da Juventude, assegurando os serviços competentes do Ministério da Educação o apoio técnico e o enquadramento de referência para a organização dos gabinetes de informação e apoio ao/à aluno/a. Neste enquadramento, ficou legislado que a formação dos/as professores/as é assegurada pela Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação. No ano seguinte, através do Decreto-Lei nº 18/2011 de 2 de fevereiro (PORTUGAL, 2011 a), o programa do XVIII17 Governo Constitucional assumiu como um dos objectivos em matéria de educação, a consolidação da organização curricular da educação básica, introduzindo, melhorias e aperfeiçoamentos na organização do currículo e das aprendizagens, do mesmo modo que nesta área se desenvolve a autonomia das escolas. Neste sentido, e decorrente da experiência da sua aplicação, consagra-se ainda a eliminação da área de projeto do elenco das áreas curriculares não disciplinares. Por outro lado, conferiu-se nova ênfase ao Estudo Acompanhado com

1º ciclo (1º ao 4º anos): noção de corpo;o corpo em harmonia com a natureza e o seu ambiente social e cultural; noção de família; diferenças entre rapazes e raparigas; proteção do corpo e noção dos limites, dizendo não àsaproximações abusivas. Ensino secundário: compreensão ética da sexualidade humana.Sem prejuízo dos conteúdos já enunciados no 3º ciclo, sempre que se entenda necessário, devem retomar-se temas previamente abordados, pois a experiência demonstra vantagens de se voltar a abordá-los com alunos que, nesta fase de estudos, poderão eventualmente já ter iniciado a vida sexual ativa. A abordagem deve ser acompanhada por uma reflexão sobre atitudes e comportamentos dos adolescentes na atualidade: –



compreensão e determinação do ciclo menstrual em geral, com particular atenção à identificação, quando possível, do período ovulatório, em função das características dos ciclos menstruais; informação estatística, por exemplo sobre:idade de início das relações sexuais, em Portugal e na UE; taxas de gravidez e aborto em Portugal; métodos contracetivos disponíveis e utilizados; segurança proporcionada por diferentes métodos; motivos que impedem o uso de métodos adequados



consequências físicas, psicológicas e sociais da maternidade e da paternidade de gravidez na adolescência e do aborto;



Doenças e infecções sexualmente transmissíveis (como infecção por VIH e HPV) e suas consequências;prevenção de doenças sexualmente transmissíveis; Prevenção dos maus tratos e das aproximações abusivas.



Também ficou legislado (Portugal, Ministérios da Educação e da Saúde, 2010), que a gestão curricular da educação sexual enquadrada na área de formação cívica deve ser estabelecida pelo professor/a coordenador/a da educação para a saúde, em articulação com os/as diretores/as de turma. A inclusão da educação sexual nos projetos educativos dos agrupamentos de escolas e das escolas não agrupadas é definida pelo respetivo conselho pedagógico e depende do parecer do conselho geral (constituído 280

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XVIII Governo Constitucional: em funções de 26/10/2009 a 21/06/2011; Presidente da República – Aníbal Cavaco Silva; Primeiro Ministro – Pedro Passos Coelho; Ministro da Educação e Ciência – Nuno Crato.

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o objetivo de promoção da autonomia da aprendizagem e melhoria dos resultados escolares e àFormação Cívica, orientada para o desenvolvimento da educação para a cidadania, para a saúde e sexualidade.Nesse mesmo ano, o Conselho de Ministros, através do Decreto-lei nº 50/2011, de 8 abril (PORTUGAL, 2011b),decidiu criar a disciplina de Formação Cívica no 10º ano de escolaridade, com vista a reforçar a formação nas áreas da educação para a cidadania, para a saúde e para a sexualidade e acabar coma Área de Projeto no 12º ano da matriz dos cursos científico-humanísticos, tendo em conta a experiência da aplicação da disciplina de Área de Projeto e o benefício pedagógico que se espera obter da utilização das metodologias de projeto em cada uma das disciplinas do currículo, e não como uma disciplina autónoma.

que foram sendo cada vez melhor operacionalizadas no interior da escola. Como ponto de partida para esta reorganização a nível de escola surgiu o Decreto – Lei nº 190/91, de 17 de maio(PORTUGAL, 1991), que atribuiu aos Serviços de Psicologia e Orientação, enquanto unidades especializadas de apoio educativo, integradas na rede escolar, o papel de contribuir para o desenvolvimento integral dos/as alunos/as e para a construção da sua identidade pessoal e apoiar os/as alunos/as no seu processo de aprendizagem e integração no sistema de relações interpessoais da comunidade escolar. Não menos importante, foi a emergência na Lei da criação de Gabinetes de Apoio aos/às Alunos/as nas escolas (Lei nº 120/99), onde se pode ler, no primeiro documento oficial que:

8. Considerações finais

deve ser promovida a criação de um gabinete de apoio aos alunos, que entre outras finalidades a definir pela escola, ouvidas as associações de pais, realizará ações diversas para promoção da educação para a saúde, particularmente sobre sexualidade humana e saúde reprodutiva, em articulação com os serviços de saúde (artigo 3º).

Numa visão retrospetiva, pode constatar-se que os/as alunos/asforam sempre os atores principais na educação sexual em Portugal, aceitando-se a sexualidade como uma área da vida e como um espaço de diálogo, onde os/as alunos/as deverão colocar os seus problemas ou os da comunidade e colaborar, individual ou coletivamente, na procura de soluções para esses problemas. Nesta lógica, só a participação ativa dos/as alunos/as nas atividades escolares lhes permitirá dizer que a educação sexual é algo que lhes diz diretamente respeito. Durante a mesma evolução das políticas e práticas nacionais, o papel dos/as professores/as nunca foi considerado menos fundamental do que o dos/as alunos/as ou pais/mães, pois foi sempre reconhecido que a educação sexual requer conhecimentos específicos, sensibilidade, atitudes e bom senso que fazem emergir a necessidade da existência formal de formação inicial e contínua dos/as professores/as nesta área, como évárias vezes referida na Lei (ex: Lei nº 3/84; Lei nº 120/99; Decreto – Lei nº 259/ 2000). Por exemplo, a Lei nº 120/99, de 11 de Agosto estabeleceu que nos planos de formação de docentes, nomeadamente os aprovados pelos centros de formação de associações de escolas dos ensinos básico e secundário, deverão constar ações específicas sobre educação sexual e reprodutiva. A família, com um papel tão importante como o dos/as alunos/as e professores/ as, foi desde o início descrita na Lei Portuguesa como a pedra angular da educação sexual na escola (ex:Lei nº 3/84; Lei nº 120/99; Decreto – Lei nº 259/2000). Também esteve sempre bem explícito na Lei que não se pode descurar o papel das co-parcerias, especialmente com o centro de saúde da localidade da escola, e das estruturas de apoio à educação para a saúde e sexualidade na comunidade escolar,

As parcerias estabelecidas para a educação sexual a nível central ou local também foram sendo incentivadas pelas políticas nacionais. Primeiro, o Ministério da Educação criou os programas de promoção e educação para a saúde desenvolvendo nas escolas o Projeto Vida e o Projeto Viva a Escola e, mais tarde, o Programa de Promoção e Educação para a Saúde (PPES), que acabou com a entrada de Portugal, em 1994, para a Rede Europeia de Escolas Promotoras de Saúde (REEPS), atualmente designadas por Escolas para a Saúde na Europa. No ano lectivo de 1995/1996, o Ministério da Educação, através do PPES, implementou o Projeto Experimental de Educação Sexual e Promoção da Saúde nas Escolas em parceria com a Associação para o Planeamento da Família (APF) e com o apoio da Direção Geral de Saúde (DGS). Como consequência, apareceu o “Relatório Interministerial para a Elaboração do Plano de Ação sobre a Educação Sexual e Planeamento Familiar”. Este documento foi elaborado por uma comissão constituída por elementos dos Ministérios da Educação, Saúde, Justiça, Trabalho e Solidariedade e pela Secretaria de Estado da Juventude e tornou-se um guia nacional para a educação sexual, porque delimitou os papéis do Estado, definidos no primeiro documento legal sobre educação sexual nas escolas, e definiu uma estratégia nacional baseada em três princípios:a promoção do desenvolvimento da educação sexual como uma componente da educação global e também como uma componente da promoção da saúde;a coordenação entre os vários Ministérios para atingir os objetivos principais da educação sexual;a identificação de ações particulares já desenvolvidas nas escolas, com o objetivo de desenvolver o seu potencial.

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Os objetivos prioritários identificados neste relatório, criaram uma excelente base para a planificação da educação sexual no futuro. Em primeiro lugar, porque criaram condições para promover o desenvolvimento da “competência de ação” nos/ as alunos/as, uma vez que não restringem a educação sexual apenas aos aspectos biológicos e médicos, mas também referem as dimensões pessoal e social do desenvolvimento das crianças e dos jovens. Em segundo lugar, identificaram os três elementos característicos da “participação individual e social”, que são a “participação ativa”, a “tomada de decisões” e “fazer as escolhas potencialmente corretas” para resolver os problemas individuais e sociais. Esses objetivos apresentaram razões para o desenvolvimento da competência de participação nos/as alunos/as, porque referem que a educação sexual deve integrar o desenvolvimento das capacidades do indivíduo para viver a sua própria sexualidade e para tomar decisões pessoais sobre o seu próprio comportamento sexual, nomeadamente para a recusa de coerção sexual. Clarificam que esta tomada de decisão pessoal tem que ser uma responsabilidade pessoal e uma atividade da sua própria autonomia. Quando esta tomada de decisão pessoal não é possível, os objectivos contemplaram que têm que existir outros meios dentro da comunidade para ajudar o indivíduo a tomar as suas próprias decisões. Finalmente, esses objectivos clarificaram o alcance da educação sexual porque definiram a educação sexual como uma componente do processo de educação global e uma componente da promoção da saúde no ambiente da escola, nas suas várias dimensões: curricular, psicossocial, ecológica e comunitária. Em síntese, o quadro legislativo atual torna obrigatória a inclusão da educação sexual no ensino básico e secundário (do 1º ao 12º anos de escolaridade), num programa para a promoção da saúde e da sexualidade humana,no âmbito do conceito de uma escola promotora de saúde, na qual será proporcionada informação adequada sobre a sexualidade humana, o aparelho reprodutivo e a fisiologia da reprodução, SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis, os métodos contracetivos e o planeamento da família, as relações interpessoais, a partilha de responsabilidades e a igualdade entre géneros. Esta área da formação global dos/as alunos/as, deve ser integrada no Projeto Curricular da Escola e das Turmas. O modelo curricular dominante preconizado é transdisciplinar e poderá ser desenvolvido integrado nas disciplinas e de forma interdisciplinar (áreas curriculares disciplinares) ou na Área de Projeto, (recentemente extinta) e Formação Cívica (áreas não disciplinares). O quadro normativo, reforça o papel das famílias na educação sexual na comunidade escolar, o papel dos/as alunos/as como atores/as genuínos/as e participantes

ativos/as na seleção dos problemas e resolução dos problemas individuais e colectivos de saúde sexual e reprodutiva, o papel dos/as professores/as no desenvolvimento dos projetos nas escolas e na procura de formação contínua em educação sexual e o desenvolvimento de coparcerias. Os centro de saúde locais são os coparceiros mais reforçados. Para terminar, é reforçado o papel do desenvolvimento de infraestruturas de apoio à saúde sexual e reprodutiva dos/as alunos/as na escola, nomeadamente, o gabinete de apoio aos/às alunos/as, cujas finalidades devem ser definidas pela escola, ouvidas as associações de pais. Além disso, considerando a importância do uso do preservativo na prevenção de muitas das doenças sexualmente transmissíveis, nomeadamente a sida, está preconizado o acesso a preservativos através de meios mecânicos, nos estabelecimentos de ensino secundário, por decisão dos órgãos diretivos, ouvidas as respetivas associações de pais/mães e de alunos/as.

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Teresa Vilaça

Perspectiva evolutiva das políticas e práticas de educação sexual na comunidade escolar em portugal

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SEXUALIDADE ROMANA: PARA ALÉM DOS PARADIGMAS ATUAIS ROMAN SEXUALITY: BEYOND CONTEMPORARY PARADIGMS

Lourdes Conde Feitosa1

“[...] a sexualidade envolve “rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções... profundamente culturais e plurais” (LORO, 2000, p. 04)

RESUMO

ABSTRACT

As relações de gênero e sexualidade têm sido temas de interesse, discussão e pesquisa em diversas áreas do conhecimento científico. A partir de uma perspectiva histórica, o intento desse texto é o de apresentar outras experiências sobre modos e sentidos de se relacionar com o corpo e a sexualidade, que poderão estimular reflexões a respeito de nossas próprias acepções em relação a esses temas. Para isso, serão analisados como os conceitos de sexualidade, gênero e masculinidade ganham contornos diferenciados na sociedade romana do I séc. d.C.

The relations of gender and sexuality have been interesting aims for discussion and research in several areas of scientific knowledge. From a historical perspective, this paper try to present new experiences about modes and meanings involved in the relation with own body and sexuality. These experiences can stimulate reflections on our acceptations about these topics. For that, we analyze how the concepts of sexuality, gender and masculinity get different conceptions in the Roman society of the I century b. C.

PALAVRAS-CHAVE Sexualidade, Gênero, Antiguidade Romana

KEYWORDS Sexuality, gender; Roman Antiquity

Nas últimas décadas, a sexualidade tem aflorado como tema de interesse, discussão e pesquisa em áreas como a História, a Antropologia, a Psicologia, a Sociologia, Arqueologia, dentre diversas outras ciências. Há um constante interesse e esforço em compreender as variadas práticas e experiências sexuais em um momento em que as identidades de gênero desconectam-se do biológico e a diversidade sexual torna-se 1

Doutora em História Cultural. Professora da Universidade Sagrado Coração, Bauru/SP. Líder do grupo de pesquisa “Gênero, sexualidade e sociedades”, endereço: http://dgp.cnpq.br/diretorioc/fontes/detalhegrupo.jsp?grupo=08157050AHR2CJ

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multifacetada, em que conceitos como hetero, homo, bi e transexual integram um universo cada vez mais complexo e desafiador. Embora os estudos sobre a sexualidade venham desenvolvendo-se com mais intensidade desde a década de 1960, não sobejam discussões sobre o grau de influência biológica ou cultural, social e histórica nessas definições, sem um consenso sobre a questão. O intento desse texto não é o de propor soluções para tão intricado debate, mas apresentar outras experiências históricas sobre modos e sentidos de se relacionar com o próprio corpo e a sexualidade, que poderão estimular reflexões a respeito de nossas acepções em relação aos temas de gênero e sexualidade. Para isso, serão analisados como os conceitos de sexualidade, gênero e masculinidade ganham contornos diferenciados na sociedade romana do I séc. d.C.

mesma razão que seu ventre está sob o governo do esperma dele”. O importante aqui é que o esperma representava não apenas a força para gerar uma nova vida, mas era o responsável pelo poder racional superior do cidadão e do seu direito de governar, diferente da incapacidade feminina. Para Laqueur, essa hierarquização da “carne única” foi construída na Antiguidade para valorizar a afirmação “extraordinariamente” cultural do patriarcado, do pai, sobre a mãe e demais membros (2001, p. 30). Entretanto, uma questão se põe é se essa afirmação pode ser interpretada como a imposição generalizada dos homens sobre as mulheres. Em um universo no qual o corpo de sexo único era idealizado, para a análise da própria definição de corpo, sexualidade e, por conseguinte, das diferenças estabelecidas entre os indivíduos no campo social, é fundamental procurar compreender o significado que adquiriam na tradição cultural romana3. A sociedade romana da Antiguidade circundava todo o mar Mediterrâneo e integrava inúmeras regiões, com povos diversos anexados ao longo do processo de conquista. Esse “povo romano” era composto por um emaranhado de latinos, gálatas, egípcios, capadócios, terraconenses, béticos, germanos, dácios, gregos, entre tantos outros, com variedades jurídicas, econômicas, étnicas, de idade, sexo, profissão e língua que interferiam, de modo profundo, no lugar social ocupado pelos indivíduos e nas relações de gênero e de poder estabelecidas no século I d. C., período de nossa análise (FUNARI, 1995, p. 180; MONTSERRAT, 2000, p. 165). Diante dessa diversidade e do acesso às fontes do período, faz-se necessário enfatizar que o olhar apresentado corresponde àquele da “elite de Roma”, que mais do que uma denominação geográfica significava a composição de uma identidade de classe e cultura. Os documentos analisados evidenciam um discurso que tinha a finalidade de representar, publicamente, o pensamento dessa elite, o que não significava que todos, em sua vida cotidiana e familiar, acatassem e respeitassem tais idéias, mas era isso que assinavam em termos públicos, como destaca Walters (1997, p. 29).

Dentre os inúmeros desafios que permeiam o tema da sexualidade, um deles é o confronto com uma arraigada idéia de senso comum de que as motivações sexuais são e sempre foram iguais, “instintivas” e “naturais”, seguindo a máxima de que “o Homem sempre fez, faz e fará sexo”. Todavia, ampliam-se as pesquisas e se fortalece, no universo acadêmico, a concepção de que as percepções em relação ao sexo, à sexualidade e às definições de gênero variam em tempos e espaços históricos, segundo suas tradições, costumes e valores (Wyke, 1998; Feitosa, Rago, 2008; Funari et al, 2003). Diversos conceitos usados para a reflexão de gênero e sexualidade em sociedades modernas são inapropriados para o estudo da Antiguidade, que exige ferramentas específicas de análise2. A primeira delas é a ideia da existência de dois sexos: o masculino e o feminino. A minuciosa análise feita por Laquer (2001, p. 16; 41) do “mais poderoso e exuberante” modelo de identidade estrutural dos órgãos reprodutivos de homens e mulheres, desenvolvido pelo anatomista romano Galeno de Pérgamo no século II d.C., enfatiza a existência de apenas um sexo, na qual as mulheres eram essencialmente homens, resultantes da falta de calor vital – de perfeição – durante a gestação, que provocava a retenção interna da genitália masculina. Ou seja, mulheres eram vistas como homens invertidos. Dois gêneros, o masculino e o feminino, derivados de um único sexo cuja forma mais perfeita era o homem. Nessa ordem hierárquica, a procriação era um trabalho feminino, mas era o esperma masculino o responsável pela alma atribuída à matéria. Galeno (apud Laqueur, 2001, p. 72) enfatiza que “o espírito e o útero da mulher são interpretados como áreas equivalentes para o princípio do macho; sua pessoa está sob o governo e a instrução racional do marido pela

Em relação à organização social romana, a condição jurídica poderia representar um significativo distanciamento entre a liberdade individual gozada pelo homem livre por nascimento e cidadão (ingenuus), ou o manumitido (libertus) e o cativo (seruus). Ou seja, as pessoas eram divididas entre livres  cidadãs e não cidadãs, 3

Cf., como exemplo, as obras de Kevin P. Murphy, Jennifer M. Spear, Historicising gender and sexuality, 2011; Kim M. Phillips e Barry Reay, Sex before sexuality. A premodern History, 2011.

Isso não significa desconsiderar o caráter patriarcal da sociedade romana e o monopólio das relações públicas e dos cargos políticos por determinados homens, mas é preciso cuidado em não transferir, para o passado, sentidos atuais, formulados para diferentes conceitos. Essa transposição e a conclusão de uma inferioridade e opressão social feminina romana, tomada como “natural” em uma sociedade “falocêntrica”, há anos vem sendo questionada. A respeito dessa questão ver Lourdes C. Feitosa, 2005, cap 1.

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libertas e escravas. Entretanto, além das diferenças jurídicas, dois vocábulos latinos eram frequentes para a análise da composição social romana  honestiores e humiliores. A tradução literal de honestus (honor  honra, respeito) corresponde àquele que é “honrado”, “virtuoso”, “nobre”; e humilis, “o que está no chão” (humus), “o de baixa condição”, “o comum”, “o modesto”. Whittaker (1992, p. 230-1) observou que a palavra humiliores, utilizada em textos aristocráticos, era associada a vocábulos diversos como plebs (classes inferiores, populacho), vulgus (massa obscura), turba (desordem, agitação) e multitudo (multidão), e denota juízos depreciativos e de conotações políticas atribuídos pelas elites às pessoas que não pertenciam ao seu meio, aspecto que dificulta compreender quem seriam essas pessoas e o status. Nessa sociedade de sexo único, com grande complexidade social e linguística, o fato de um “homem” fazer sexo com outro “homem” ou “mulher” não era suficiente para identificar a sua categoria sexual, como ainda é pressuposto pelo senso comum em dias atuais. Longe de fundar uma espécie, o “homossexual”, a relação sexual entre dois homens era considerada uma prática erótica, compatível com o casamento com o gênero oposto, não excludente, pois, da relação com as mulheres. A grande fronteira moral que demarcaria os indivíduos e a sua masculinidade seria a posição do sujeito como ativo ou passivo, e não a preferência hetero ou homossexual. A virilidade seria definida pela consonância entre o papel de comando social e de autocontrole emocional e sexual, que garantiria ao aristocrata a ação de penetrar, independente do gênero sexual do penetrado. Nesse comportamento sexual idealizado por essa elite romana, era humilhante ser penetrado pelo ânus (Cinaedus era o vocábulo usado para aqueles que assumiam o papel passivo na prática entre homens, e Pathicus o termo usado para as mulheres, tidas como passivas na relação com os homens). Também era vexatório receber o pênis em suas bocas (Irrumare, atividade desempenhada por homens, e Fellare, exercita por mulheres) (Parker, 1997, p. 51). A prática da felação era ainda mais repugnante, como lembra os epigramas eróticos do autor romano Marcial, em meados do século I d.C: “Por que não te beijo, Filenes? Porque és calva. Por que não te beijo, Filenes? Porque teu rosto avermelha. Por que não te beijo, Filenis? Porque és torta... Beijar-te, Filenes, é exatamente o mesmo que chupar um falo” (Epigramas eróticos, XXIV)4 Se a prática sexual ativa tanto com homens quanto com mulheres era aceita, a justa medida seria respeitar a norma social estabelecida para os aristocráticos, que

indicava a não penetração de outro cidadão, jovem ou adulto, e de mulheres aristocráticas, casadas, solteiras ou viúvas (CANTARELLA, 1999; WALTERS, 1997, p. 30). A violação a essa regra resultaria no stuprum, que não significava uma relação sexual forçada, imposta, como crível em dias atuais, mas relações ilícitas, que punham em perigo a pudicitia – honra/virtude – do sangue romano (CANTARELLA, 1991, p. 140-141). Para não incorrer no stuprum, a mulher aristocrática casada (domina, diferente de mulier, termo usado para as mulheres em geral e signo de fraqueza e timidez) deveria ter relações sexuais apenas com o seu marido, o que garantia a sua inviolabilidade física. Já a prática entre dois indivíduos do sexo masculino era moralmente aceita se acontecesse entre um cidadão e um rapaz ainda pueril, imberbe e de estrato social inferior (livre não cidadão, liberto ou escravo), que deveria ser o passivo, segundo as prescrições morais, como afirma Sêneca: “a indecência (passividade sexual) é crime para o livre, fatalidade para o servo e obrigação para o liberto” [impudicitia in ingenuo crimen est, in servo necessitas, in liberto officium] (Des Controverses, IV, 10). Tal situação é ilustrada em outro epigrama de Marcial: “Jovem Hylo, por que me negas o que ontem me outorgavas? Por que tanta crueldade depois de tanto amor e doçura? Mas tens razão: tua barba, teus anos, teus pelos nos impedem de ressuscitar o passado. Oh, tu, noite malévola, que hás trocado por um velho ao suavíssimo rapaz de outros dias, quão triste e longa és! O tempo, Hylo, zomba de minha aflição. Tu que ontem foste um garoto, diga-me: por que és homem hoje?5

O jovem amado que se transformou em “homem” já não está mais disponível ao amor de um varão, como ilustra Marcial. Embora essa relação tenha sido vivenciada por dois indivíduos de mesma constituição física, socialmente eles são muito distintos. Além da condição jurídica, outra diferença está no vocábulo latino usado para referenciá-los: Vir (Homem ilustre, de bem, guerreiro – do qual derivam as palavras viril, virilidade, varão) caracterizaria um aristocrático romano como homem em sua plenitude, diferente de outros termos usados para apresentar indivíduos biologicamente semelhantes, mas com idades e categorias sociais variadas como, por exemplo, puer ou juvenis (menino, criança, rapaz solteiro, jovem – dos quais derivam pueril, puberdade) usados para indicar os filhos da aristocracia ainda menores, e homines ou

“por qué no te beso, Filenis? Porque eres calva. Por qué no te beso, Filenis? Porque tu rostro bermejea. Por qué no te beso, Filenis? Porque eres tuerta... Besarte, Filenes, es exactamente lo mismo que chupar un fallo” (Epigramas, XXIV). Tradução da autora.

5 “Joven Hylo, por qué me niegas hoy lo que ayer me otorgabas? Por qué tanta crueldad después de tanto amor y dulzura? Mas, ah, tienes razón: tu barba, tus años, tus pelos nos impiden resucitar lo pasado. Oh, tu, noche malévola, que has trocado en un viejo al suavísimo doncel de otros días, cuán triste y larga eres! El tiempo, Hylo, se burla de mi afán. Tù que ayer fuiste un niño, dime: por qué eres hombre hoy?” (LXI). Tradução da autora.

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puer (ser humano), para adultos escravos, libertos, não cidadãos e mesmo cidadãos de classes mais baixas (Walters, 1997, p. 30). Desta maneira, o jovem Hylo, quando adulto, não seria considerado um Vir, mas um Homo, marca da sua posição social. A integridade física do homem aristocrático romano estava na garantia da não violação de seu corpo6. Quando esse infringia as normas, seria punido por meio de multas, com o exílio ou uma morte rápida, mas não com castigos físicos, tidos como um insulto a sua dignitas. O corpo desse ingenuus não deveria ser violado ou objeto de desejo e satisfação para outros, como acontecia com o corpo de artistas ou gladiadores. Também a integridade sexual assegurar-lhe-ia o papel de ser o ativo em toda e qualquer relação sexual, à medida que a atividade “lícita”, “normal”, seria aquela que lhe caberia a ação de penetrar. Integridade física e autodomínio (controle sobre a paixão e a volúpia) resultariam no comando que esse ‘homem romano’ deveria exercer sobre as mulheres, libertos e escravos; ou seja, sobre os indivíduos considerados passivos, que não tinham em suas mãos o seu controle pessoal e social. Essa seria a grande distinção estabelecida entre os indivíduos e não ter um parceiro do gênero masculino ou feminino. Possuir características biológicas semelhantes não tornava os seus portadores em iguais, “homens”. As diferenças daqueles que pertenciam ao universo masculino eram marcadas pelo campo social e discursivo e não biológico. Portanto, a noção de que sexo é um termo biológico e que sexualidade e gênero correspondem a duas categorias analiticamente distintas precisa ser relativizada para a Antiguidade romana. A demanda cultural sobrepõe-se à concepção de sexo biológico (de masculino e feminino para o sexo-único) e o gênero e sexualidade se superpõem. Nesse contexto, os termos “identidade”, “orientação” ou “homossexualidade” para referenciar comportamentos sexuais tornam-se inoperantes para aquela sociedade (Murphy, Spear, 2011; Phillips, Reay, 2011).

em 227 a.C. com o objetivo de punir com a morte todo aquele que submetesse um cidadão ao estupro violento, era aplicada apenas aos casos de tentativas e/ou estupro de rapazes livres (stupro cum pueri), incidindo sobre o adulto responsável pelo estupro e sobre o cidadão romano que assumisse o papel passivo. Em ambos a penalidade era o pagamento de dez mil sestércios, o que leva Eva Cantarella a afirmar que a Lex Scatinia “não era absolutamente respeitada” (1991, p. 162)7. O desrespeito à prática sexual ativa para a aristocracia romana é sugerido em vários textos literários romanos. No epigrama 46, Marcial enseja um desonroso comentário ao pênis de Febo que é sugestivo sobre o seu papel sexual: “Te deitas, Febo, com jovens escravos cheios de virilidade e o que neles está firme e potente, aparece em ti frouxo e imperceptível. Sabia que amavas aos homens, mas ignorava o teu minguado papel”8. Essa frase põe na berlinda Febo, pois além de insinuar a inoperância de seu membro “frouxo e imperceptível”, sugere a sua sujeição à virilidade dos jovens escravos. Libieno não teve melhor sorte na indagação perniciosa de Marcial (epigrama 36): “Depilas o teu peito, teus braços, tuas pernas; se o teu depilado púbis só oferece pelos curtos e ásperos, Libieno, é porque assim pretendes agradar ao teu amante. Mas, diga-me, para quem depilas o teu traseiro?”9. Também Petrônio (séc. I d.C.) lança a seguinte provocação: “extravio-se nos banhos públicos um garoto com cerca de dezesseis anos, cabelos crespos, delicado, formoso, de nome Giton (97, 2)... que tinha os órgãos genitais de tamanho peso que provocava, por si, uma ponta de admiração dos mais respeitosos” (92,9). Essas frases de Petrônio podem ser interpretadas de duas maneiras: a admiração dos mais respeitosos cidadãos romanos pelo avantajado falo do Giton e certa “inveja” por não possuírem um membro com tal envergadura, ou, também, cobiça pelo prazer que ele poderia lhes proporcionar! Diferente do grafite registrado em Pompéia:

Do legal ao real

Hysocryse puer Natalis verpa te salutat (CIL, IV, 1655) Jovem Hisócriso, o falo de Natális te saúda10.

Embora haja legislações e inúmeros outros registros literários a respeito do comportamento sexual e moral idealizado, alguns apresentados acima, há outras referências antigas de que esse modelo de prática sexual e social era burlado. No final da República e início do Principado (final séc. I a.C.), a Lex Scatinia, criada 6

A intensidade e o método da punição deveriam ser diferentes de acordo com o status jurídico do transgressor: cidadãos livres, libertos, não cidadãos e escravos não recebiam o mesmo castigo ao infligirem às leis (Alföldy, 1984). No caso do cumprimento da pena capital, que eventualmente poderia ser aplicada, a morte deveria ser rápida, pela espada e sem suplícios corporais.

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Segundo Cantarella, no início da lei era punido com morte todo aquele que submetesse ao estupro violento um cidadão. A repressão à prática homossexual será retomada gradativamente a partir do século III d.C., mas nesse momento já ampliada para qualquer tipo de relação pederástica (Cantarella, 1991, p. 142 e 187). 8 “Te acuestas, Febo, con esclavitos llenos de virilidad, y lo que en ellos está tieso y potente aparece en ti flojo é imperceptible. Sabía que amabas a los hombres; pero ignoraba tu menguado papel” (XLVI). 9 Si depilas tu pecho, tus brazos, tus piernas; si tu afeitado pubis sólo ofrece cortos pelos ásperos, es, Libieno, porque así pretendes complacer à tu amante. Pero di, para quién depilas tu trasero?” (XXXVI). 10

Aqui sigo a interpretação de Pedro Paulo Funari (2003, p. 322). Sentido diferente é apresentado por

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Esses exemplos não são inusitados. A literatura do período apresenta frequentes menções a respeito do comportamento sexual passivo da aristocracia romana e, embora com exageros característicos do estilo literário, parece descrever uma prática corrente no final da República e início do Império11. Para Cantarella, a relação entre aristocratas não se apresenta, nesse momento, como prerrogativa de poucos desviados, mas como prática comum e coletiva (Cantarella, 1991, p. 210). Enfatiza, ainda, que o exemplo de Júlio César, dentre outros12, comprova a possibilidade de serem considerados VIRI mesmo aqueles que se submetiam sexualmente, como cantava a multidão no triunfo de César à Gália (séc. I d.C): Agora é César, que sujeitou a Gália, o que triunfa, e não Nicomedes, que submeteu a César. Os soldados, então, zombavam do Rei da Bitínia, e não de César, pondo em evidência que ter sido marido de César não havia dado a glória a Nicomedes; era César o verdadeiro homem (Cantarella, 1991, p. 211)13

Na sociedade romana, passividade ou atividade não seria o grande divisor entre ser homem ou não no final da República e início do Império. A marca do Homem aristocrático romano estaria definida em sua autoridade, força e domínio advindos da prática militar e menos por sua atividade sexual ativa, como demonstrou a tolerância social à passividade sexual, visto acima. Essa era a imagem idealizada pelo discurso aristocrático. Ainda outro aspecto que merece a cautela dos estudiosos da Antiguidade é o uso do conceito de efeminado, pressuposto em dias atuais como um homem mais sensível, terno, com gestos delicados e trejeitos que seriam referências femininas e não masculinas. Os exemplos dos grafites abaixo:

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Julius cinaedus (CIL, IV, 4201 Julio, efeminado; Eros cinedae (CIL, IV, 4602) Eros efeminado, não deixam claro se são referências literais a essas características ou menções desonrosas e ofensivas direcionadas a Júlio e a Eros. Segundo Della Corte (1954, p. 84) e Cartelle (1981, p. 139), esses comentários eram injuriosos, e para Varone, a maior parte dessas referências tinha o desejo de por na berlinda as pessoas citadas (Varone, 1994, p. 126). Para Cantarella, a relação homoerótica não se apresenta, no início do Império, como prerrogativa de poucos desviados, mas como prática comum e coletiva (1991, p. 210).

Representações “eróticas” romanas Discussões permeiam, do mesmo modo, as representações eróticas romanas. Em dias atuais indaga-se o que simbolizaria as inúmeras e variadas posições sexuais representadas em pinturas, gravuras, esculturas e escritos da Antiguidade. Quais teriam sido as razões delas terem sido disseminadas em livros, cavernas, quartos, salas, varandas, lupanares, muros, plantações e em uma vasta gama de objetos de uso comum, como louças, lamparinas, sinetas, fontes, louças de luxo e moedas, como ilustrado abaixo:

Cartelle “Isocrise, muchacho, Natal, tu méntula, te manda saludos” (1981, p. 117, n. 76). 11

Catullo – Poesias, capítulos 15, 30, 80, 81; Ovídio: Obras – Os Amores I. Cf. também menção a outros autores feita por Cantarella, 1991, p. 202 a 212. Suetònio assim se refere ao famoso cônsul Júlio César: “Júlio César era mulher de todo homem e homem de toda mulher” [omnium mulierum uirum et omnium uirorum mulierem] (De vita duodecim Caesarum, I, 1, 52). 12 Segundo Cantarella, a lista de imperadores que possuíam comportamentos sexuais que não correspondiam aos cânones da antiga moral poderia ser praticamente sem limites. Cf, 1999, p. 208. 13 “Ahora es César el que ha sometido la Galia, el que triunfa: no Nicomedes, que ha sometido a César. Los soldados, entonces, no se burlaban de César, se burlaban del Rey de Bitinia, poniendo en evidencia que haber hecho de marido de César no le había dado la gloria; era César el verdadero hombre”. Releitura de Cantarella da passagem de Suetônio, Div. Iul., 49.

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Lamparinas de Pompéia com projeções fálicas. Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Fotos da autora.

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Também a análise de Thomas McGinn (2002) apresenta críticas às variações e falta de clareza dos pesquisadores nas definições dos bordéis pompeianos, cujos números oscilam entre 25, 35 e 46, segundo o princípio usado por cada um; números significativos para uma cidade de população estimada entre 10 a 12 mil pessoas. Um dos autores, por exemplo, estabelece um bordel a partir da presença de camas de alvenaria, de artes eróticas e de grafites com o mesmo teor (2002, p. 9). Assim como Jacobelli, McGinn considera que os materiais “explícitos” têm sido encontrados indiscriminadamente pelo sítio, o que significa um forte indício de seu uso decorativo, humorístico, religioso, afrodisíaco ou simplesmente mostravam-se como um componente agradável e natural da vida. Peças pompeianas com representações fálicas. Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foto da autora.

Esse repensar sobre as referências do passado que tenham conotações sexuais – falos e cenas de atos sexuais – é ainda muito recente e só há pouco tempo mostrou ser viável e produzir resultados consistentes. Embora os debates sejam acalorados sobre os possíveis significados que teriam na sociedade romana, ganham repercussões as reflexões mais críticas em relação às acepções de que seriam um estímulo ao desejo ou um sinal da ‘devassidão’ de nossos antepassados (Meskell, 1998; Funari, 2003; Feitosa, 2008; Gomes, Feitosa, 2013), como ainda interpretado14 e presente no imaginário ocidental. A presença destas pinturas em diversos locais das casas como no cubiculum, no triclinium, no peristylum e no tablinum, bem como a maciça presença de explícita representação sexual em uma vasta gama de peças decorativas, objetos de uso comum, comprovam que a pintura erótica não era confinada ao lupanar ou quarto de dormir, o que leva a deduzir que o seu uso não era limitado ao lugar ou situação especificamente sexual. Segundo Luciana Jacobelli (2008), a presença de inúmeras pinturas com cenas de práticas sexuais encontradas na grande Terma Suburbana do sítio arqueológico da Pompéia Romana não é uma prova de seu uso como prostíbulo, como banalmente interpretado anteriormente. Parece-lhe natural que muitas cenas eróticas tinham a intenção de estimular a libido, mas que não se pode afirmar que todos os objetos de representação sexual fossem reservados a circunstâncias exclusivamente eróticas, sendo necessário estabelecer uma relação do tema figurativo com a função do ambiente. 14

Ver, como exemplo, o documentário produzido pela History.com – Prostituição em Pompéia, disponível no endereço http://www.youtube.com/watch?v=ziR0jhXiUdM. Acesso em 12/01/2014.

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Considerações finais Os estudos sobre a sexualidade e gênero têm propiciado avanços consideráveis no conhecimento do corpo e nos variados sentidos e prescrições estabelecidos à prática sexual e às suas emoções, segundo valores socialmente constituídos em grupos, tempos e espaços históricos estabelecidos. Também mostram-se como importantes referenciais para identificarmos as tensões entre os comportamentos idealizados e aqueles vivenciados na sociedade romana do início do Império, e os embates discursivos nas definições de masculinidade propostas para e pela aristocracia romana. É certo que urge a criação de novos conceitos e vocábulos para dar conta da singularidade e da multiplicidade de atitudes, práticas e experiências sexuais e de gênero existentes na Antiguidade. Também a arte “erótica” – contemporaneamente assim definida, quando analisada em seu contexto cultural, não deve ser passiva de uma única interpretação. A partir de uma perspectiva histórica, foi proposto uma análise de outras vivências, modos e sentidos de se relacionar com o corpo e a sexualidade e verificar os vínculos de gênero e de poder idealizados por grupos aristocráticos da Antiguidade romana, com o intento de ampliar os nossos conhecimentos sobre essas questões, estimular reflexões a respeito de nossas próprias concepções e julgamentos e, principalmente, contribuir para desnaturalizá-las. Esperamos ter tido êxito! Agradecimentos: Agradeço ao professor Paulo Rennes M. Ribeiro, pelo convite para a escrita desse artigo, a Pedro Paulo Funari, Rinaldo Correr, Florêncio Mariano da Costa Junior e demais colegas do grupo de pesquisa “Gênero, sexualidade e socidades”, pelas discussões e partilhas acadêmicas realizadas. Doxa, v.17, n.1 e 2, p.295-308, 2013

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RESUMO

ABSTRACT

Esse artigo visa discutir sobre a mulher e suas relações conjugais ao longo da história e em diferentes culturas. Para isso, foram selecionados três temas norteadores para facilitar a compreensão, quais sejam (1) A função da família na história, o qual discorre de forma sintetizada sobre as transformações dos modelos familiares desde as sociedades primitivas até a sociedade atual; (2) A mulher sexuada em outras culturas, o qual discute sobre diferentes visões a cerca da virgindade feminina; (3) Arranjos conjugais: a mulher, o casamento e o divórcio; o qual discorre sobre as formas de relacionamento nas diferentes culturas, bem como a fidelidade sexual da esposa no casamento. A discussão desse tema traz visibilidade ao descompasso

This article discusses about women and their marital relations throughout history and across cultures. For this, three guiding themes were selected for ease of understanding, namely (1) the role of the family in the story, which discusses a synthesized form of the transformations of family models from primitive societies to modern society, (2) woman sexually in other cultures, which discusses different views about female virginity, (3) marital arrangements: women, marriage and divorce, which discusses the relationships in different cultures, and the wife´s sexual fidelity in marriage. The discussion of this topic brings visibility to the mismatch of the feminine position in relation to men throughout history and across cultures.

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Psicóloga. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa “Sexualidade, Educação e Cultura” – GEPESEC. Faculdade de Ciências. UNESP. Campus de Bauru. E-mail: [email protected] 2

Psicóloga. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa “Sexualidade, Educação e Cultura” – GEPESEC. Faculdade de Ciências. UNESP. Campus de Bauru. E-mail: [email protected] 3

Doutora em Educação. Docente junto ao Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem. Faculdade de Ciências de Bauru. UNESP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa “Sexualidade, Educação e Cultura” – GEPESEC. E-mail: [email protected]

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da posição feminina em relação à masculina ao longo da história e em diferentes culturas. No entanto, a construção política da sexualidade feminina faz parte de um processo histórico e cultural na qual vem sendo transmitida de geração em geração e moldando padrões sobre homens e mulheres e suas relações conjugais.

However, the political construction of female sexuality is part of a historical and cultural process in which has been transmitted from generation to generation and shaping men and women and their marital relationships .

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

Casamento, família, feminino, história da sexualidade

Marriage, family, woman, history of sexuality

Introdução Ao longo do processo histórico e em diferentes civilizações, a questão do gênero delineou possibilidades ou entraves no desenvolvimento social e definição de papéis dos seres humanos. A mulher, na maioria dos casos, teve uma condição de submissão ao homem, sujeitando suas volições e funções às expectativas e desejos masculinos. Seu papel limitado à família e educação e desfavorecido nas decisões políticas bem como as exigências em relação a um comportamento impecável com severas punições não aplicáveis aos sujeitos do sexo masculino são exemplos do servilismo a manutenção de uma ordem social imperativa. A instituição do casamento expressa essas relações em elementos como o adultério, o divórcio e a escolha do próprio parceiro. Este texto apresenta uma discussão, a partir da literatura, sobre a mulher e relações conjugais ao longo da história e em diferentes culturas. Pretende-se discorrer brevemente sobre: (1) A função da família na história, (2) A mulher sexuada em outras culturas, (3) Arranjos conjugais: a mulher, o casamento e o divórcio.

1. A função da família na História A família já se reorganizou ao longo da história de diversas maneiras. Em sociedades primitivas, a prioridade era satisfazer as necessidades materiais do grupo: os homens se encarregam de trazer alimentos e, as mulheres, aos serviços domésticos. Na sociedade hebraica, grega e romana, o marido era única autoridade e a influência do cristianismo acentuou a concepção machista da família e do casamento. Na Europa, até o século passado, não havia divisão entre família e aldeia, lar e trabalho, o casamento era uma engrenagem na manutenção e transmissão do patrimônio. Com a Revolução Industrial, a família burguesa passa a ser modelo, o pai vai trabalhar 310

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representando o poder socioeconômico, a comunicação com o mundo externo, a referência das regras e da lei enquanto que a mulher permanece na casa, cuidando da casa e zelando pela educação dos filhos. Os filhos obedecem aos pais como símbolo inquestionável de autoridade. A partir do século XIX, com o novo modelo burguês e com as ideologias individualistas, o casamento se resumia a união do homem com uma mulher. Com a modernização dos setores sociais em meados do século XX, aumenta-se a participação da mulher da produção e sua progressiva emancipação. Assim, novos valores surgem para orientar a relação entre os sexos, criança e a família (COLIN, 1999; SEIXAS, 1998). Atualmente há novas reorganizações do que chamamos de família. Com a ocorrência de divórcios e novos casamentos, o modelo padrão familiar composto por pai, mãe e filhos legítimos está variando ou sendo substituído, mas a função da família continua a mesma, a de haver certa estabilidade que organiza a sociedade. Cabe a ela transmitir produções da humanidade através de reproduções de ideologias que podem se transformar em valores e práticas individuais, além de situar o indivíduo em seu espaço social. Os novos arranjos familiares explicitam novos papéis de homens e mulheres em função também de novas mudanças nos padrões amorosos. A família atual extrapola a função reprodutiva e abrange funções de educação e transmissão de valores sociais (FARIAS; MAIA, 2009; MELLO, 2005; SEIXAS, 1998). Na sociedade moderna, a diferença entre os papéis sociais dentro da família tendem a confundir-se, pois a necessidade da mulher de entrar no mercado de trabalho faz com que a função político-econômico do homem desapareça. Porém, muitas das famílias aparentemente “modernas”, apesar de viverem em aparente igualdade entre os sexos, convivem de forma angustiante com o modelo de relacionamento arcaico no que diz respeito à submissão e à passividade das mulheres (SAMARA, 2002; SEIXAS, 1998). A família é produto de um processo dialético, entre aspectos convencionais e conservadores, que repetem e mantêm a ideologia e os aspectos afetivos e criativos que promovem mudanças e transformações. Dentro de uma família, cada membro influencia o outro: o indivíduo constrói sua própria singularidade através de relações com as outras pessoas. A família também contribui para a formação da estrutura psíquica do indivíduo, pois é nela que os sexos definem suas diferenças e relações de poder. A repetição dos padrões interacionais da família em diferentes gerações ocorre devido a fatores absorvidos na convivência familiar, tais como regras, mitos e hierarquias. Essa repetição pode ocorrer exatamente como se deu no passado, ou também como antimodelo, ao adotar regras e limites diferentes da dos pais, o antimodelo pode ser tão rígido quando o próprio modelo (SEIXAS, 1998). Doxa, v.17, n.1 e 2, p.309-321, 2013

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A família é uma instância social importante de socialização (PRADO, 1981) e de educação sexual. Nela se oferecem padrões de comportamentos sexuais. Na família, a criança recebe influência dos valores e comportamentos do pai e da mãe, e por isso, desde pequeno a criança já tem a concepção do que é de “menino” e o que é de “menina”. A educação alienante da menina que é ensinada a perceber o desejo do outro e não o seu próprio é que a treina para o casamento, maternidade e a dependência. Porém, a transformação da estrutura sócio-econômica vem alterando algumas definições antes incorporadas do que é ser feminino, como a necessidade de se trabalhar para complementar ou até sustentar a renda da casa ((RIBEIRO, 1990; SEIXAS, 1988). Diferenças biológicas existentes tornam-se suficientes para impor comportamentos e sentimentos diferentes entre homens e mulheres. Desde a primeira infância, nossa cultura desenvolve padrões entre os sexos, de maneira a dificultar a distinção entre o que é natural e o que é cultural entre homens e mulheres. Sendo assim, historicamente a feminilidade é associada à passividade, fragilidade, sensibilidade; e a masculinidade à agressividade, racionalidade, competitividade (WHITAKER, 1995). A compreensão de gênero, portanto, decorre de uma construção histórica em diferentes sociedades (VAITSMAN, 1994).

Por muito tempo, o hímen não é percebido como algo que pertencesse à mulher, mas é algo que lhe atribuísse maior ou menor valor no mercado. Na Idade Média, uma das formas primordiais da virgindade era a de manter a filha virgem e então “trocá-la” por uma aliança comercial ou econômica; o lençol manchado de sangue testemunhal exibido na janela depois da noite de núpcias era uma forma de controle da sociedade e, nesse sentido, não havia a rigidez sobre da virgindade para as classes sem propriedades (NUNES, 1987). Em oposição a essa idéia, a sociedade Inca considerava a virgindade uma desvantagem para a mulher, pois se entendia que se a mulher fosse virgem era porque nenhum homem quis amá-la (MIRANDA; ARAÚJO, 2006). Na sociedade de Sakalaves, em Madagascar, também é desonroso que a mulher chegue virgem ao casamento e entre os Pucapucãs, da Polinésia, uma mulher que teve filho antes do casamento é estimada, pois deu prova de sua fertilidade (MUSEU DO SEXO). Segundo Ribeiro (2005), na antiguidade, o Egito dava destaque à figura da mulher e a palavra virgem não existia no vocabulário egípcio, pois virgindade não

lhes fazia sentido e ter relações sexuais antes do casamento não era motivo para sua desonra. Uma das bases do casamento egípcio era a fidelidade, por isso havia os contratos de casamento temporário, podendo tornar-se definitivo ou não. Com a miscegenação da cultura helênica e a dominação de Alexandre, o Grande, a mulher sofre influência discriminatória grega, onde em Atenas a mulher era submissa – embora o tabu da virgindade também não existisse. No Período Clássico, no entanto, as mulheres deveriam permanecer virgens até o casamento que era voltado para a procriação. Em contrapartida, em Esparta o status da mulher era muito diferente do das atenienses: as crianças eram educadas juntas, as espartanas deixavam as pernas à mostra, enquanto que as atenienses usavam longas túnicas. Em Roma, por ser uma sociedade escravocrata e hierarquizada, esperava-se que o homem fosse o dominador, enquanto que as mulheres, crianças e escravos fossem passivos e submissos, modelo aplicado tanto à sociedade quanto às práticas sociais, inclusive as sexuais. Na sociedade franco-germânica, a essência do matrimônio consiste em sua consumação, sendo assim, na manhã seguinte ao casamento o marido faz uma doação suplementar à jovem esposa; trata-se de um agradecimento do marido por havê-la encontrado virgem e, portanto, ele tem a garantia de que as crianças que nascerão dela serão dele. Somente se a mulher estiver intacta ela será protegida, importa a esses povos mais que o casamento em si, a descendência e a sucessão. Nos tempos de violência torna-se necessário evitar o estupro e o rapto das mulheres, bem como o incesto e o adultério; no entanto, mulheres vítimas de tais atos eram ditas “corrompidas” e, uma das únicas saídas para essas mulheres era a prostituição que, embora proibida, era usual (VEYNE, 2009). Durante a Idade Média, com as invasões bárbaras, misturavam-se costumes bárbaros, romanos e cristãos. Sendo assim, houve uma demora pelas pessoas em assimilar valores da Igreja Católica que estava se consolidando. Era comum as pessoas tomarem banhos juntas e amas de leite masturbarem as crianças para acalmá-las. Foram São Paulo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino que fundamentavam a doutrina da Igreja e regras cristãs passaram a ser incorporadas: o sexo só ocorrer dentro do casamento com o único objetivo de procriação; e os pecados contra o corpo – prostituição, adultério, homossexualidade, auto-erotismo (CUNHA, 1981; RIBEIRO, 2005; USSEL, 1980). Segundo Monteiro (2010), no século XIV surge o cinto de castidade e em algumas culturas antigas, as jovens costumavam exibí-los com orgulho, até que os noivos os desatassem – era o símbolo da virgindade. Porém seu uso durante as cruzadas e na época das grandes navegações representava uma possibilidade de controle à distância e garantia de posse em uma sociedade bastante primitiva nas questões

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das liberdades individuais e direitos da mulher, pois com a ausência dos homens por anos, o uso do cinto de castidade evitava que suas esposas, concubinas, filhas ou prometidas ficassem desprotegidas e disponíveis ao pecado ou a outros pretendentes. Segundo a Bíblia, a mulher foi pretensamente a causadora de todo o mal recebendo a culpa por atentar contra a pureza da criação. Não era papel do homem se educar e conter seus desejos sexuais, mas a mulher deveria se sacrificar para evitar a consumação de atos libidinosos. Dessa forma, o uso do cinto poderia ser justificado e não poderia ser contestado, seu uso foi aceito socialmente com aval religioso e aceitação em conventos, mosteiros e outras instituições religiosas e sociais (CLASSEN, 2007). O puritanismo espalhou-se pela Europa e chegou à América. Com ele ocorreu a inserção de uma ideologia médico-social de controle e normatização de atos, atitudes e comportamentos sexuais e, a ética moral. No final do século XX e início do século XXI, o padrão normativo juntamente com os hábitos de uma cultura capitalista – consumismo e individualismo, nos deixa como legado uma concepção de sexualidade ainda limitada e geradora de culpa, angústia e ansiedade, devido a essa herança moral antissexual rígida e austera (RIBEIRO, 2005). De acordo com o site Museu do sexo, nas sociedades nativas das Américas o conhecimento da relação sexual era através da observação dos pais, pois as habitações eram coletivas, sem divisórias. Eram nas cerimônias que marcavam a transição da infância à idade adulta que ocorriam uma instrução formal sobre o sexo. A masturbação nos povos nativos americanos, desde a infância, fazia parte da experimentação masculina, assim os meninos manipulavam os pênis uns dos outros, como entre os Kwakiutls (do Canadá). Os jovens Crows (de Montana) praticavam um jogo erótico de tocar a vagina de uma mulher adormecida, seguindo de uma masturbação em grupo. Para as mães Pilagás (do Chaco argentino) era normal que seus filhos pré-púberes se masturbassem roçassando seus corpos contra o delas. Nem todos os povos tinham essa naturalidade com a masturbação, os jovens Chiricahuas Apaches (do Novo México e de Arizona) e os Tepoztecas (do México) que praticassem a auto estimulação eram repreendidos severamente. No Brasil, entre os índios Tucanos, havia a tradição de romper o hímen das adolescentes introduzindo um dos dedos de um ancião impotente. Já os adolescentes tinham a primeira relação sexual com a própria mãe, na presença do pai. Em contraponto a essa sociedade, para o povo Manu, da Nova Guiné, o ato sexual é considerado vergonhoso e a maioria das mulheres sofre de disfunção sexual. Para elas as relações são dolorosas e humilhantes, submetendo-se a elas apenas para a

reprodução a fim de permitir a continuidade do grupo. A comunidade Inis Beag, na zona rural da Irlanda, preserva tradições ortodoxas católicas: meninos e meninas são separados para evitar qualquer intimidade sexual e a masturbação é proibida.

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3. Arranjos conjugais: a mulher, o casamento e o divórcio Como pôde ser observado, a mulher foi vista de diferentes formas ao longo da história e inclusive nos dias atuais, em diferentes culturas. Isso também ocorreu em relação ao casamento. Historicamente, o processo de escolha do parceiro matrimonial também parece ter sido fundamentado por questões de ordem ideológica, política, religiosa ou econômica, atribuindo ao homem a escolha da parceira que mais adequadamente supriria suas necessidades e de sua prole. Oliveira Filho (200?) cita como formas mais usuais de estabelecimento matrimonial nas diferentes culturas: o casamento por rapto ou captura, compra ou troca, determinação paterna e consentimento mútuo. Ainda nos dias de hoje, as primeiras formas permanecem entre tribos africanas e indígenas, povos germânicos e islâmicos ou na tradição chinesa, por exemplo. Entre os Incas havia ainda a prática institucionalizada do “Sirvinakuy”, que consistia na união temporária por um ano de jovens casais. Durante esse tempo o casal deveria morar na mesma habitação passando por todas as situações de uma vida a dois, poderia, inclusive, ocorrer o nascimento de um filho. Ao final dessa união, se o casal não se separasse, o casamento era consolidado. No caso de separação, o homem devolvia a mulher à casa de seus pais. (MUSEU DO SEXO). Deste modo, nota-se que na maioria das vezes, a mulher é transferida das propriedades masculinas, do pai para o marido, como bem funcional, um utensílio utilizado na manutenção da propriedade e bem-estar do homem. Por outro lado, o casamento por consentimento mútuo, que de certa forma é o que menos reprime a opinião da mulher em relação à escolha do parceiro, ainda pode estar sendo motivado por questões de outra ordem. A desigualdade entre gêneros é ainda percebida em relação à quantidade aceitável de parceiros sexuais e matrimoniais. Segundo Nogueira (2008), a monogamia é entendida como invenção humana, é encontrada em apenas 3 a 5% das espécies animais. Por sua característica biológica de uma elevada capacidade reprodutiva, os processos poligâmicos também seriam favoráveis ao Homem e a manutenção de sua espécie. De acordo com Pepper Schwartz, socióloga da Universidade de Washington, para o homem “a monogamia é inventada para haver ordem e investimento, mas 315

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não necessariamente porque é natural.” Contudo, são as relações monogâmicas as predominantemente instituídas como práticas “normais”. Kipnis (2005) reforça que a monogamia é uma prática cultural e que as escolhas amorosas são permeadas por relações “econômicas” que não têm nada de “natural”. Segundo Gregersen (1983) na cultura greco-romana a poligamia é evitada pelos interesses na manutenção legítima da propriedade privada. Assim, a monogamia era a forma prevalente de casamento na Era Cristã, tendo sido declarada ofensa civil no Império pagão Dioclesiano. “Os cristãos, que não tinham sanção bíblica para a monogamia, separaram-se do costume judeu, seguindo a monogamia” (p.281). Como conseqüência, na prática judaico-cristã, o casamento é quase sempre monogâmico – com exceção dos Mórmons dissidentes e dos judeus muçulmanos (com restrição talmúdica). O Alcorão permite expressamente o homem ter até quatro esposas, desde que isso não seja imposto a elas. A poligamia é pensada como uma preocupação social com excesso de mulheres, viúvas e crianças. É preferível em relação ao divórcio e às relações extraconjugais, e por isso o islamismo é considerado fundamentalmente “honesto”. No Extremo Oriente a maioria das culturas permite ao homem ter mais de uma esposa, excluindo-se apenas os japoneses, coreanos, okinawans, shantung e ket; e nas ilhas do Pacífico, a monogamia é encontrada em apenas 30 de suas 127 culturas (GREGERSEN, 1983). Quando as relações poligâmicas são encontradas, por sua vez, tendem a apresentar em números significativamente maiores a poliginia sobre a poliandria. Segundo Gregersen (2006), apenas 4% do Atlas Etnográfico permite essa prática contra 44% que praticam ou permitem a poliginia. As culturas poliândricas mais conhecidas e estudadas são as do Tibete e da Índia bem como do Butão, do Sri Lanka e algumas sociedades esquimós (DEMARTINS, 2006). Tal prática, contudo, era comum entre irmãos visando a garantir a riqueza da família e possivelmente nunca foi forma natural de casamento em alguma civilização (GREGERSER, 1983) e Engels (1974) as aponta como privilégios, em especial de ricos e grandes, indicando como única exceção a ser estudada mais profundamente a poliandria da Índia e do Tibet. Apesar de relações poligâmicas não serem predominantes dentre as culturas, a monogamia parece ter motivações variadas. O não incentivo à poligamia na cultura judaico-cristã é, por exemplo, segundo Engels (1974), motivado por interesses sociais e, acima de tudo, políticos e econômicos. A manutenção da propriedade privada é garantida de forma mais eficiente se houver uma distribuição controlada de bens exclusivamente àquele que é herdeiro natural do proprietário. A fidelidade sexual da

esposa, portanto, como já mencionado, é elemento essencial desta configuração, uma vez que sem um controle rígido do comportamento feminino, não haveria meios suficientes para garantir a paternidade do homem. Neste sentido, o adultério, que é uma prática condenada pela maioria dos povos ao longo da história, é seriamente agravado quando praticada pela mulher. No Egito, Grécia e Roma Antiga, somente o adultério feminino era condenado, por contestar a autoridade do marido e levantar a possibilidade de filhos ilegítimos. O pai da adúltera podia matar a filha e o amante. Ela também podia perder seus dotes, ser exilada e rebaixada à prostituta (VRISSIMTZIZ, 2002). Para os Católicos, a Bíblia previa apedrejamento e fogueira. O castigo dado para o adultério nas cartas de Paulo é a exclusão ou a disciplina na Igreja, segundo I Co 5:1-6, além de perda da salvação conforme I Co 6:9-10. (VILAR, RIBEIRO, SANTANA E BRAUN, 200?). Países muçulmanos também podem punir adúlteros com a morte. Gregersen (1983) cita que a exigência da fidelidade da noiva é uma maneira importante de perceber o controle masculino sobre a sexualidade feminina no Oriente Médio. O adultério feminino é grave e, embora seja equiparado ao do homem no Alcorão, “é a mulher que mais sofre”. No Judaísmo, novamente, somente a mulher casada pode ser punida por adultério. Além disso, as incitações ao adultério são em algumas culturas, necessariamente atribuídas às mulheres, já que é dela a incumbência sobre o dever de zelar pelo pudor e exclusividade sexual. Fica evidente que, nos poucos casos onde as mulheres não são as únicas a terem o adultério punido, recebem punições extremamente mais árduas do que as destinadas aos homens (SANTOS, 1997). Em relação às punições contra crimes como o adultério, por exemplo, Gregersen (1983) articula que “no período mais recente a posição das mulheres parece ter melhorado, e o divórcio veio substituir a morte.” (p. 186). Cindir laços matrimoniais que garantiam a segurança da família e do esposo, contudo, não era um processo simples e trazia consigo desastrosas conseqüências sociais. Na Grécia, o divórcio existia como simples repúdio do homem pela mulher, pedido somente pelo marido e motivado por adultério, envenenamento dos filhos ou roubo de chaves para adega; e o divortium, com consentimento mútuo (VRISSIMTZIZ, 2002). Um novo casamento era permitido de imediato para homem, que também ficava com os filhos, e somente após doze meses para mulheres (GREGERSEN, 1983). Ainda de acordo com o autor, no Antigo Egito o divórcio só era permitido em caso de adultério e esterilidade. Na China antiga, admitia-se a separação, mas o marido que abandonasse a esposa, sem justa causa, recebia oito chibatadas e na

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Índia o Código de Manu permitia o repúdio da mulher pelo marido por moléstia, vício em álcool e esterilidade. O Código de Manu declara: A mulher, durante a infância, depende do pai; durante a mocidade, de seu marido; morto o marido, dos filhos ou, na falta destes, dos parentes próximos do marido, pois uma mulher nunca deve governar-se por si só (OLIVEIRA FILHO, 200?).

O Islamismo prevê que homem e mulher podem pedir o divórcio, mas para a mulher as vias para este processo são consideravelmente mais abstrusas (GREGERSEN, 1983). Motivações particulares não eram toleradas e aceitas para legitimar a separação de uma união já consagrada. Nas condições cujo processo era concluído, os pretextos eram em sua maioria relativos à traição de algum ideal, como o religioso ou político. Logo, também em relação aos rompimentos, o traço machista prevalece em detrimento das vontades femininas. Se em algumas culturas já houve épocas onde só o homem tinha esse direito garantido, em outras, embora a mulher o tivesse, o caminho era mais complexo. Por fim, ainda nas que permitem a prática e vêem-na como igualitária, é somente a mulher que sucumbe à discriminação social pós-ato.

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Considerações Finais É possível perceber no estudo da história da sexualidade que as relações de união e prática sexual são um tanto quanto mais liberais quando relacionadas ao homem do que quando à mulher. Estas limitações são sugeridas, por exemplo, na grande diferença entre culturas com práticas poliândricas e poligínicas, estas últimas em números significativamente maiores. A transgressão da mulher em relação aos deveres estabelecidos matrimonialmente, por sua vez, também foi menos aceita socialmente que a do homem, tal qual mencionado em relação ao adultério e divórcio. Conclui-se que há evidências históricas que colocam a posição feminina em constante descompasso com a masculina ao longo da história e em diferentes culturas. Por motivações ideológicas, políticas ou econômicas, diferentes civilizações moldaram seus preceitos de forma a limitar ao homem o direito a participação e conseqüente construção política de seus costumes. Constata-se por fim, foi um processo histórico e cultural onde a desigualdade era imprescindível, social ou politicamente, e os direitos e deveres eram atribuídos ao sexo e não à pessoa do gênero humano. Isso traz conseqüências históricas que se reproduzem no modo como homens e mulheres e suas relações conjugais se configuram até hoje. 318

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ÍNDICE DE ASSUNTO

SUBJECT INDEX

Adolescentes, p.53 Antiguidade Romana, p.295 Artigos de jornal, p.71 Brasil, p.149 Bruner, p.35 Capacitação de gestores escolares, p.81 Casamento, p.309 Civilidade, p.169 Comunicação, p.133 Corpo, p.61 Cultura Corporal, p.61 Cultura e Psicologia, p.35 Currículo, p.221 Direito, p.71 Educação Especial, p.133 Educação Física, p.61 Educação Sexual Escolar, p.183 Educação sexual, p.13, p.53, p.97, p.245 Educación en valores, p.221 Educación sexual, p.221 Ensino de direito constitucional, p.71 Ensino primário, p.13 Escola, p.97, p.245 Família, p.309 Feminino, p.309 Formação de Professores/as, p.183 Gênero, p.295 Gestão educacional, p.81 Gestão estratégica e participativa, p.81 História da educação sexual em Portugal, p.245 História da Educação Sexual, p.183 História da Educação, p.149 História da sexualidade, p.309

Adolescents, p.53 Adult education, p.115 Body Culture, p.61 Body, p.61 Brazil, p.149, p.183 Brazilian Empire, p.169 Bruner, p.35 Civility, p.169 Communication, p.133 Constitutional right teaching, p.71 Culture and Psychology, p.35 Curriculum, p.221 Deaf-Blind, p.133 Didactic resource, p.71 Education History, p.149 Education Management, p.81 Educational legislation, p.245 EJA, p.115 Family, p.309 Gender, p.295 Geografia, p.115 Geography, p.115 Hierarchy of subjects, p.115 Hierarquia de disciplinas, p.115 História, p.115 Historiography of Education, p.149 History and Historiography of Sexuality, p.169 History of sex education in Portugal, p.245 History of Sexual Education, p.183 History of sexuality, p.309 History, p.115 Mainstreaming, p.221

História e historiografia da Sexualidade, p.169 Historiografia da Educação, p.149 Império Brasileiro, p.169 Legislação educacional, p.245 Manuais de Conduta, p.169 Mediação, p.133 Políticas Públicas Educacionais, p.183 Prática Pedagógica, p.61 Psicanálise, p.97 Recurso didático, p.71 Sexología, p.221 Sexualidade, p.13, p.97, p.295 Surdocegueira, p.133 Telenovela, p.53 Televisão, p.53 Transversalidad, p.221 Vigotski, p.35

Manuals of Conduct, p.169 Marriage, p.309 Mediation, p.133 Newspaper articles, p.71 Pedagogical Practice, p.61 Physical Education, p.61 Primary schools, p.13 Psychoanalysis, p.97 Public Policy Education, p.183 Right, p.71 Roman Antiquity, p.295 School, p.97, p.245 Sex education, p.13, p.97, p.245 Sexology, p.221 Sexual Education School, p.183 Sexual education, p.53, p.221 Sexuality, p.13, p.97, p.295 Soap operas, p.53 Special Education, p.133 Strategic and participatory management, p.81 Teacher Training, p.183 Television, p.53 Training of school managers, p.81 Values education, p.221 Vigotski, p.35 Woman, p.309

ÍNDICE DE AUTORES /AUTORS INDEX ASSIS, M. DE F. P. DE, p.97 BEDIN, R. C. , p.149 BONA, L. DE, p.115 CADER-NASCIMENTO, F. A. A. A., p.133 CARDOSO, D. R. DO A. , p.97 CARVALHO, G. M. D. DE, p.53 CASTRO, A. DE, p.71 CASTRO, R. M. DE, p.71 COSTA, M. P. R. DA, p.133 FEITOSA, L. C., p.295 FERREIRA, L. S. A. , p.115 FREITAS, S. F. DE, p.97 HEREDERO, E. S., p.221 MACHADO, M. C. DA S. , p.81 MAIAA, A. C. B., p.309 MAIO, E. R., p.183 MARTINS , L. M., p.35 MELO, S. M. M. DE, p.53 MIRANDA, J. B. , p.81 MORILA, A. P. , p.169 MUZZETI, L. R. , p.61 NOTA , J. M., p.13 PELLEGRINO, B. R. , p.115 RABATINI , V., p.35 REINA, F. T. , p.61 RIBEIRO, A. L. P. M. , p.115 RIBEIRO, P. R. M., p.149 ROMANATTO, M. J. , p.61 SANTOS, F. C. DOS, p.97 SENATORE, R. C. M. , p.169 SILVA, M. P. DA, p.309 TEIXEIRA, L. H. DAS N., p.97 TERRA, B. M., p.309 VILAÇA, T., p.245

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