SIGNIFICADOS SOCIAIS DAS BIOTECNOLOGIAS∗ ∗ ∗

July 13, 2017 | Autor: Jalcione Almeida | Categoria: Rio Grande do Sul, Genetically Modified
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SIGNIFICADOS SOCIAIS DAS BIOTECNOLOGIAS∗

Cristiane Amaro da Silveira1 Jalcione Almeida2

RESUMO: Como se constitui o campo de disputas em torno das biotecnologias e quais são os principais agentes, seus interesses e orientações? O que está em jogo neste campo? Quais as tensões, oposições e alianças entre agentes que disputam os mesmos objetos? Este ensaio, motivado pela polêmica em torno das sementes transgênicas e pela reflexão dentro de uma linha de pesquisa acadêmica, tenta analisar as diferentes posições e significados sociais das biotecnologias, tendo como espaço privilegiado a agricultura e o “mundo rural” do estado do Rio Grande do Sul. ABSTRACT: How is constituted the arena of struggles around the biotechnologies and who are its key agents? Which are their interests and orientations? What is at stake? Which are the tensions, oppositions and alliances between the agents that dispute the same objects? This essay, motivated by the polemic around the genetically modified seeds and its reflexion within an academic research straw, try to analyse the distinct positions and social meanings of biotechnologies adopting the agriculture and the “rural world” of the State of Rio Grande do Sul (Brazil) as a privileged space.

A ascensão da temática das biotecnologias ao debate público guarda algo de paradoxal. Ao mesmo tempo em que abre grandes possibilidades para a radicalização (ou efetivação) dos ideais igualitários defendidos pelo Iluminismo, coloca em questão a base ontológica da ciência moderna, fruto do mesmo evento. Concebida como infalível, autônoma e neutra, a ciência moderna, fazendo uso da sua racionalidade e instrumentos – as tecnologias – tem como função estabelecer a prosperidade entre os homens. Mas, quando se desloca a mise en scène em torno dos avanços tecnológicos para além do esoterismo acadêmico, a própria existência do questionamento indica o rompimento do consenso em torno da legitimidade dos pressupostos originais, bem como da autoridade da “comunidade” de especialistas - que os defendem - em representar os cidadãos em escolhas que gestarão o seu futuro.



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Artigo apresentado no XXXVIII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 30 de julho e 02 de agosto de 2000. Engenheira Agrônoma, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). E-mail: [email protected] Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor e pesquisador do PGDR/UFGRS. E-mail: [email protected]

Embora o fenômeno de questionamento das biotecnologias tenha se estabelecido, com variações, em níveis globais, o estado do Rio Grande do Sul (Brasil) tem ocupado lugar de destaque na mídia internacional. Da mesma forma, sua determinação como “zona livre de transgênicos” – o que representa a primeira iniciativa dessa envergadura no mundo (Menasche, 1999) – abre oportunidade ímpar à apreensão da realidade e complexidade do debate atual, (re)posicionando o Estado como um centro referencial de contestação. Este ensaio, motivado pela polêmica em torno das sementes transgênicas e pela reflexão dentro de uma linha de pesquisa acadêmica, tenta analisar as diferentes posições e significados sociais das biotecnologias, tendo como espaço privilegiado a agricultura e o “mundo rural” do estado do Rio Grande do Sul∗∗. Antes de pretender esgotar o assunto, trata-se de um esforço preliminar na busca de determinar as posições, alianças e argumentos dos principais agentes que disputam as biotecnologias (e os transgênicos, em particular) no estado do Rio Grande do Sul. De forma complementar, procura-se identificar como a problemática ambiental influencia tal discussão. No âmbito da pesquisa acadêmica mais geral, o recurso à revisão documental (subsidiada pelo acompanhamento de palestras e debates públicos) e a entrevistas com agentes envolvidos no debate compõem as principais etapas na coleta de elementos a fim de que se possa responder aos seguintes questionamentos: quais as percepções dos diversos agentes em relação às biotecnologias (e os transgênicos, em particular)? como se constitui o campo de disputas em torno das biotecnologias e quais são os principais agentes, seus interesses e orientações? o que está em jogo neste campo? quais as tensões, oposições e alianças entre agentes que disputam os mesmos objetos?

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Este artigo representa a fase inicial de um trabalho de pesquisa que culminará com uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. (PPGR/UFRGS).

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De uma forma bastante sintética, este artigo se propõe a abordar i) a origem dos questionamentos em relação à ciência moderna e sua base ontológica; ii) a inserção do estado do Rio Grande do Sul neste contexto de questionamentos; iii) a configuração de um campo de disputas em torno das biotecnologias no estado do Rio Grande do Sul, seus principais agentes, posições, argumentos e alianças; e, finalmente, iv) algumas conclusões trabalhando as potencialidades e limitações apresentadas pelo debate atual.

A ciência moderna em questão A moderna biotecnologia tem sido considerada - depois da energia nuclear e da tecnologia de informação – a terceira tecnologia estratégica do período pós-guerra (Gaskel apud Menasche, 2000). Isto quer dizer que ela é percebida como portadora de potencial de transformar nossa vida futura. Ou ainda, como define Jeremy Rifkin em seu livro “O século da Biotecnologia” (1999), “afigura-se como uma barganha de Fausto”. No entanto, ao mesmo tempo em que “...praticamente pode tudo” (Garrafa, 1999), a ciência das biotecnologias torna-se alvo de questionamentos e críticas. Ainda sobre os louros acumulados pela secularização, os cientistas são chamados a revisar seu compromisso cívico e a capacidade de controle dos seus quase-objetos3, bem como sua capacidade de monitoramento das implicações que a liberação arbitrária destes quase-objetos tem sobre os espaços físico e social. Por outro lado, a diversidade de agentes - e interesses - presentes no debate em torno das biotecnologias pode ser tomada como indicativo de um estágio onde são incorporadas nova(s) consciência(s) de classe, bastante distintas daquelas originadas e consolidadas pela sociedade industrial e suas instituições. 3

Expressão empregada por Latour (1994) para denominar os objetos não-humanos, pertencentes à natureza, em contraponto aos quase-sujeitos, pertencentes à sociedade. Ambos constituem partes independentes e autônomas dentro do projeto ontológico moderno, sendo que os primeiros englobam o grande conjunto preenchido pelas “tecnologias”.

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De uma forma bastante simplificada, situa-se a origem destes questionamentos - e consciências - em dois grandes eixos de percepções. O primeiro deles, seguindo a perspectiva de Anthony Giddens, contrapõe a objetividade e a racionalidade pretendidas pelos ideólogos da ciência moderna - que previram que o conhecimento crescente da sociedade e da natureza resultaria em um maior controle dos seus processos - à condição atual da modernidade que nos coloca diante de “...um mundo de deslocamentos e incertezas, um ‘mundo descontrolado’ ”(Giddens, 1995). Para o autor, os avanços da interferência e da ação humana estão profundamente imbricados a um estado de “incerteza fabricada”, em que as ações intencionais são acompanhadas por conseqüências impremeditadas (Giddens, 1991). Em decorrência, quando se passa a considerar as conseqüências impremeditadas da ação humana como categoria analítica - o que representa uma novidade visto que, segundo o projeto ontológico da modernidade, tudo aquilo que não pode ser isolado e quantificado é ilegítimo enquanto objeto científico – torna-se mais fácil à compreensão dos “efeitos perversos das ações” (lado irracional de ações, supostamente, racionais); por exemplo, a grande maioria dos problemas que caracterizam a questão ambiental no mundo contemporâneo. Os eventos passam a ser considerados conseqüências de comportamentos e escolhas dos agentes. No entanto, os espaços vazios deixados pela perda da superioridade da ciência enquanto detentora de respostas universais e absolutas, permitem a emergência e legitimação de novos agentes, os indivíduos comuns. Estes, que têm sua rotina cotidiana intrinsecamente vinculada aos riscos decorrentes da socialização da natureza (crescente interferência a que esta é submetida pela ação humana), passam, gradativamente, a reivindicar participação na gestão dos processos sociais por meio de consensos criados em torno dos “riscos aceitáveis”, em um balanço ponderado dos benefícios e riscos. Para um conjunto de autores, este evento marcaria a transição da moderna sociedade industrial para uma sociedade de risco onde a menor unidade privada apresenta, ao mesmo tempo, caráter político e global.

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O segundo eixo de percepções contrapõe-se à pretensa neutralidade reclamada pela ciência moderna. Não obstante os incríveis progressos conquistados pelas ciências naturais e sua natureza, supostamente, despolitizada e autônoma - os quais não teriam ocorrido, de outra forma, na mesma intensidade -, tal compartimentalização da ciência é empiricamente insustentável (Callon, 1981; Goodman, 1999). De acordo com trabalho realizado por Almeida (1989), estudando o campo de lutas em torno da tecnologia na agricultura do sul do Brasil, a tomada de posição que defende a neutralidade em relação à ciência moderna e à tecnologia, e o distanciamento em relação à política por parte dos agentes da tecnologia moderna, opõe-se à representação dos agentes da tecnologia alternativa4 (no estudo em questão tais agentes estavam inseridos no campo específico das tecnologias), os quais reconhecem o íntimo comprometimento da ciência e da tecnologia com a política. Para estes, a tecnologia adquire uma importância de cunho marcadamente político, enquanto “instrumento de luta para afirmação de propostas políticas mais amplas e gerais” (Almeida, 1989). Neste contexto, a ciência e os seus avanços, antes de apresentarem a reivindicada neutralidade, fortalecem redes de relações sociais, políticas, econômicas e ideológicas, atribuindo poderes aos agentes com os quais estabelecem alianças. A cristalização (e legitimação) destas relações de favorecimento, as quais impedem o estabelecimento de um processo democrático substantivo5 ao atribuir poderes desiguais aos sujeitos, perpetua indeterminadamente as conseqüências sociais das ações humanas. Ao colocarem em xeque a infalibilidade da ciência enquanto controladora dos processos naturais e sociais, bem como o seu caráter “positivo” e benéfico, ambos os eixos de percepções acima

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Tais agentes ocuparam, durante a década de 1980, espaços marginais à organização social, contestando, fundamentalmente, a hegemonia dos padrões modernos e institucionalizados de desenvolvimento, bem como os poderes favorecidos por esta opção. Segundo Almeida (1999) “considera-se ‘alternativa’ ou ‘diferente’ a(s) agricultura(s) que tem (têm) características técnicas, econômicas, sociais e culturais de seu sistema de produção – e mais amplamente de seu modo de vida – que correspondem a uma certa combinação da divisão do trabalho, ou a uma transgressão (em níveis variados) dessa divisão tal como ela funciona hoje de maneira dominante”. Em contraponto à mera democracia eleitoral e normativa.

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mencionados (de cunho ambiental e social, respectivamente) contribuem para a redefinição e ampliação do campo onde se dão as escolhas quanto aos usos e benefícios dos avanços científicos. É o que ocorre para o caso específico das biotecnologias, pois as potencialidades e riscos associados à manipulação de genes, ao ultrapassarem as etapas de produção e consumo destas inovações, prometem afetar, de algum modo, a qualidade de vida de todos os cidadãos, provocando verdadeiras revoluções no modus vivendi das sociedades.

O “mundo rural” do Rio Grande do Sul como pano de fundo Embora a discriminação destes eixos mais gerais de percepções de caráter ambiental e social simplifique demasiadamente a pluralidade de novas formas de consciência que surgem a partir do questionamento da ciência moderna e, da mesma forma, delimite representações que muitas vezes podem conter os dois conjuntos de percepções, o que parece mais relevante é o fato de que o evento de questionamento das biotecnologias é uma conseqüência destes processos de sensibilização, bem como do capital social acumulado pelos agentes envolvidos nestes conflitos anteriores, os quais passam a integrar o campo de disputas em torno dos organismos geneticamente modificados e, particularmente, da soja transgênica. Corroborando com tal afirmativa tem-se o fato de ter sido este Estado aquele que, durante as décadas de 1970/80, desenvolveu com maior intensidade os dois eixos de percepções antes mencionados. Segundo Sirkis (1992), o “caso Carlos Dayrel”6, ocorrido em fevereiro de 1975, corresponde ao marco inicial do movimento ecologista brasileiro e sua contestação às conseqüências impremeditadas da ação humana, sendo que a ele se associam várias conquistas estaduais na mesma direção, como a fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (1971), o

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Quando um aluno de engenharia eletrônica e outros dois estudantes realizam ato de protesto contra o corte de árvores em Porto Alegre, impedindo sua derrubada para a construção de um viaduto.

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lançamento do livro “Manifesto Ecológico Brasileiro – o fim do futuro?” (1975), por José Lutzemberger, a primeira lei estadual de agrotóxicos (1983), entre outros. De igual forma, com o início da abertura política que se instaura a partir de 1979, o Rio Grande do Sul foi o Estado brasileiro que mais se destacou como palco de lutas sistemáticas, envolvendo contingentes populacionais marginalizados em torno da democratização. Neste sentido, tais agentes conquistam espaços de influência cada vez maiores, legitimando, também, suas “armas” de luta e instrumentos de pressão (como foi o caso do Movimento dos Sem Terra, do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, da[s] agricultura[s] alternativa[s], entre outros). Não obstante, segundo Almeida (1988),

“longe de serem homogêneas, as propostas

alternativas ao modelo dominante de agricultura encerram uma diversidade de concepções, de experiências e interesses socialmente identificáveis quanto ao lugar que ocupam, bem como quanto ao papel que desempenha a tecnologia (...)”. Conforme o mesmo autor, tais propostas começam a surgir a partir de reações à agricultura “moderna”, confundindo-se, muitas vezes, com a crítica mais geral à sociedade industrial. Criticam ao mesmo tempo o uso intensivo de capital, a centralização e o gigantismo das estruturas produtivas, o conhecimento técnico restrito aos especialistas, o impacto destrutivo no ecossistema, o grande gasto de energia e recursos não-renováveis e, entre outras críticas mais, a despreocupação com fatores éticos, morais e sociais (Almeida, 1988). A busca de autonomia, em diferentes formas, se encontra, na verdade, no coração das principais manifestações em favor da agricultura “alternativa” (Almeida, 1994), conciliando, em diversos níveis, os dois eixos de percepções antes descritos.

O campo agroalimentar e as biotecnologias Partindo do pressuposto de que a compreensão dos significados sociais assumidos pelas biotecnologias deve ser buscada além da oposição entre atores e argumentos, o presente trabalho 7

analisa as disputas em torno das biotecnologias no estado do Rio Grande do Sul a partir de situações concretas de enfrentamento entre agentes que defendem distintas representações das biotecnologias, as quais se apresentam como se estivessem em um campo de lutas. Ao se privilegiar este tipo de enfoque, deixa-se de lado o estudo dos elementos particulares do confronto, para percebê-los na sua interação, quando suas representações e posições a respeito das biotecnologias adquirem uma dinâmica própria e a posição ocupada por cada grupo de agentes no interior do campo, bem como o poder acumulado por estes, passam a ser decisivos na seleção de estratégias de ação e na determinação da relevância que seus argumentos ocuparão no debate. Antes de existir uma condição de competição perfeita ou, ainda, de pleno monopólio dos significados sociais das biotecnologias, a presença de agentes e argumentos com maior ou menor status no debate indicam a existência de uma relação de forças e poder. É importante enfatizar que embora a noção de campo tenha sido originalmente trabalhada a partir do conceito de campo científico (Bourdieu), propõe-se, pelo que foi apresentado anteriormente, uma abordagem das biotecnologias e suas representações dentro de uma estrutura de campo ampliada, o campo agroalimentar. Tal procedimento não se dá sem o reconhecimento de que as biotecnologias não são objeto de disputas exclusivo neste campo. Neste caso, a título de exemplo, considera-se perfeitamente possível que estas, em algum momento, sejam objeto de disputas entre agentes peculiares ao campo científico, entre outros. Logo, no momento em que se procura delimitar o campo agroalimentar, bem como definir seus agentes, não ocorre negar a existência ou legitimidade do campo científico enquanto arena de disputas atuais. Apenas, não se considera este um recorte satisfatório quando se tem como propósito contemplar as representações da diversidade de agentes envolvidos na disputa em torno das biotecnologias no estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, reestrutura-se o campo onde se dão as decisões a respeito da ciência e, mais especificamente, das biotecnologias. 8

Este, passa a incluir, também, uma pluralidade de agentes, oriundos de campos diversos ao campo científico, com as mais distintas representações a respeito das biotecnologias. O peso atribuído a cada um dos campos (científico, econômico, político, cultural, ambiental, social, religioso, etc.) que compõem o campo agroalimentar, dependerá, em grande parte, das representações dos agentes presentes nas disputas em torno das biotecnologias (bastante influenciados pelo campo de origem), das relações de poder existentes entre estes distintos agentes e, ainda, das alianças e oposições que entre eles se estabelecem. Para o caso específico do Rio Grande do Sul, se reconhece algumas conquistas em lutas anteriores por parte de agentes “dominados” e movimentos sociais no campo científico (caso da[s] agricultura[s] alternativa[s]), ou mesmo, agentes com origens em outros campos (o campo ambiental, por exemplo) considerando-se que estas conquistas legitimaram a configuração do campo agroalimentar enquanto esfera de lutas e decisões a respeito dos avanços científicos a serem aproveitados pela sociedade e, de igual forma, da regulamentação que irá gestar este uso. A partir deste quadro conclui-se que, em um horizonte próximo, é impossível conceber a estrutura de um campo de lutas em torno das biotecnologias, o qual contemple toda a extensão dos seus significados sociais, no estado do Rio Grande do Sul, sem se considerar tais agentes (e não apenas a “hegemonia” do campo científico) como componentes elementares. Pelo que se pode observar no debate atual, o campo agroalimentar é fortemente influenciado pelo campo científico. Não obstante os questionamentos existentes, os agentes da ciência moderna possuem autoridade e reconhecimento para atuarem no campo agroalimentar. Tais agentes constituem, por herança do capital específico acumulado no interior do campo científico, o que se pode denominar “pólo dominante” no campo agroalimentar. Logo, os argumentos que têm adquirido maior destaque são aqueles relacionados ao plano da racionalidade técnica (argumentos científicos, aspectos que dizem respeito aos riscos à biodiversidade, 9

considerações sobre biossegurança e análises de impacto econômico e social). Dessa forma, não obstante a conquista de um espaço maior de discussão em torno das biotecnologias (além do âmbito exclusivamente científico), conseqüência de vitórias anteriores de agentes com trajetória nos movimentos contestatórios de cunho social e ambiental no estado do Rio Grande do Sul em particular, o capital específico acumulado pelos agentes da ciência moderna ainda permite que estes, e da mesma forma os interesses a eles associados, atuem como pólo “dominante” no campo agroalimentar. Tais agentes mantêm sua legitimidade através do reconhecimento, por parte dos seus pares, de um capital científico transferido ao campo agroalimentar, e que se restringe a um “saber”. Para eles, a conservação do poder de decisão em relação ao uso das biotecnologias implica lançar mão de “armas” e estratégias que se restringem, no limite, a calcular riscos, controlar impactos, rotular produtos, bem como desenvolver novas técnicas e “cuidados” no manuseio das biotecnologias. A visão de natureza como algo “a serviço” da sociedade permanece, não sendo questionada a assimetria desta relação. Da mesma forma, tais agentes percebem as biotecnologias (e os avanços da ciência em geral) como progressos benéficos e igualmente aproveitáveis por todos os indivíduos; não questionam a neutralidade da ciência e a possibilidade desta estar favorecendo interesses específicos e dominantes. Além disso, não vêem as biotecnologias como ameaça aos direitos e recursos (genéticos, ambientais) de grupos que não podem ou não querem incorporar esta inovação. Rebuscados em argumentos que vêem nas biotecnologias a solução para o problema da fome, e considerando uma “infelicidade” o fato do debate concentrar-se no caso específico da soja transgênica (o que proporcionaria venda casada de produtos às multinacionais), os agentes dominantes adotam estratégias de conservação do seu poder simbólico pela reafirmação do seu “saber”, tendo no mercado de trocas (incluindo as biotecnologias) o meio de manter sua dominação. Tais agentes são mais corporativos, mantendo alianças já existentes entre cientistas modernos, agências oficiais de pesquisa que funcionam em nível federal e empresas de capital privado. 10

Se em um primeiro momento tais agentes procuraram evitar e reconhecer a legitimidade do debate no Estado, passam, agora, a modificar sua estratégia de conservação, a partir de um discurso reformista que assimila, em diferentes níveis, os “riscos” associados às biotecnologias e suas implicações, em uma incorporação da “questão ambiental”, sem deixar de acreditar, no entanto, na competência e autonomia da ciência moderna. Por outro lado, o pólo “dominado” do campo agroalimentar constitui-se, basicamente, de agentes com história em lutas em torno de outros objetos (os quais reconfiguram suas bandeiras de luta a partir do evento das biotecnologias). Embora tais agentes tenham origem em movimentos sustentados por distintos valores e crenças, os quais incorporavam em suas propostas uma nova abordagem ética das relações sociais e, da mesma forma, das relações sociedade/natureza, esta vertente tem, crescentemente, cedido espaço a uma perspectiva política que concebe as biotecnologias enquanto instrumento de lutas mais gerais e amplas no âmbito da sociedade. A ênfase nos aspectos sociais relacionados à “dominação” e à “dependência” tem contribuído para confinar o debate em um nível ideológico, o que atua limitando o avanço em profundidade. Devido à ênfase atribuída aos argumentos sociais e ideológicos, encobrindo os tácitos princípios fundadores, bastante relacionados com aspectos éticos de cunho social e ecológico, tal pólo acumula, nas disputas, um capital que pode ser denominado, exclusivamente, de “social”. Neste sentido, tais agentes têm marcado presença no debate em torno das biotecnologias, de uma forma geral, pelo contraponto à ciência das biotecnologias (ciência moderna e os interesses por esta fortalecidos), limitando-se à oposição dentro do plano dos argumentos técnicos. É o que se evidencia com a defesa da agroecologia, pretensa ciência que tem sido utilizada como contraponto à moderna, a qual tem provocado a convergência das propostas dos diversos agentes presentes na disputa (MST, MMTR, agricultura[s] alternativa[s], movimentos ambientalistas, e outros), em sua busca por sustentabilidade e autonomia (no contraponto à dependência). 11

Embora a agroecologia esteja encontrando bastante estímulo por parte do governo atual, o qual pretende “massificá-la” a partir de ações que vêm incorporando-a aos programas das instituições de pesquisa e extensão existentes em nível estadual, esta “ciência” tem sido abordada de uma maneira bastante superficial e ideológica, ainda não se mostrando capaz de acumular capital “social” suficiente para competir pelo domínio do mercado de trocas simbólicas. Adotando estratégias de subversão do campo agroalimentar, os agentes dominados têm recorrido a alianças com organizações nãogovernamentais, movimentos sociais, igrejas e partidos políticos de esquerda. Incitados a participar do debate a partir do evento das biotecnologias, muitos agentes “novatos” (novos no campo) têm ingressado nas disputas existentes no campo agroalimentar após terem suas relações de confiança e risco abaladas pela inserção de novos intermediários nas redes de produção e consumo das quais fazem parte. Composto majoritariamente por consumidores (neste caso, o agricultor também pode ser considerado consumidor) este grupo de agentes desenvolve uma percepção predominantemente ambiental. Dessa forma, estes novatos passam a representar um mercado potencial de bens simbólicos que incorporem a dimensão ambiental, o que permitirá um reequilíbrio nas suas relações de confiança e risco. A demanda criada por estes novos agentes tem permitido o acúmulo de capital específico por uma nova geração de cientistas, a qual ocupa uma posição dominada do pólo dominante. Tais agentes, gradativamente, passam a ser reconhecidos como sucessores dos cientistas modernos, ingressando no mercado de bens simbólicos pela oferta de produtos “ambientalmente corretos”. Adotando estratégias de sucessão, tais agentes disputam o poder com os dominantes (os agentes defensores da ciência moderna - sendo que no campo científico em particular, esta nova geração de cientistas disputa o poder com os cientistas modernos). Embora bastante influenciados pela percepção ambiental, muitos destes novos cientistas apresentam acentuada percepção social, concebendo a ciência e suas decisões como integrantes da esfera política. A maioria, no entanto, assim como os agentes “novatos”, não questiona a 12

organização atual da sociedade, bem como acredita que a criação de instituições (e instâncias) de biossegurança permitirá a incorporação adequada dos riscos. Não obstante as diferenças de posição, muitas conquistas têm sido efetuadas pelas alianças estabelecidas entre os agentes do pólo “dominado”, “novatos” e “novos” cientistas. Neste sentido, tais êxitos têm se constituído em torno dos argumentos comuns a ambos: o contraponto dentro da racionalidade técnica. A adoção do princípio de precaução em caso de risco, com suporte jurídico e constitucional, comprova esta convergência de argumentos.

Considerações finais A determinação do estado do Rio Grande do Sul como “zona livre de transgênicos” tem contribuindo intensamente no sentido de estimular os cidadãos a buscarem informações a respeito das biotecnologias de modo que estes possam desenvolver uma visão crítica. Para tanto, muitos debates, palestras e seminários têm sido organizados pelo governo estadual, ou mesmo, a partir de iniciativas de autoridades locais ou organizações independentes. Da mesma forma, a mídia tem dedicado atenção especial a esta temática. No entanto, o debate tem estado bastante marcado ideologicamente e poucos resultados práticos tem sido obtidos. Entre os pontos de consenso está a necessidade de se continuar pesquisando, a fim de que a tecnologia seja aperfeiçoada. Embora exista um aparente consenso a respeito dos riscos que estas tecnologias representam, muitos percebem a atitude do governo como imprópria, entre estes os agentes que constituem o pólo dominante. Por outro lado, uma grande parte dos agentes envolvidos no debate acredita que a ação do governo foi bastante coerente, pois se fundamenta na defesa dos direitos dos cidadãos a um ambiente saudável e sustentável. Estes, percebem a “moratória” como a ação mais adequada frente aos riscos associados às biotecnologias. 13

Pouco se tem evoluído, entretanto, em considerar os riscos como fenômenos que extrapolam a racionalidade científica. O debate tem ficado bastante limitado a reconhecer e delegar legitimidade a instituições e agentes que desenvolvam capacidades e habilidades para avalizar o uso das biotecnologias. Os agentes envolvidos nas disputas parecem ter tido pouca habilidade em desenvolver um capital “ecológico-social”, o qual reconheceria a íntima relação dos riscos associados às biotecnologias aos valores culturais e éticos, estimulando um fórum de decisões que contasse com a participação das diversas representações, além do reconhecimento dos cientistas, para uma efetiva garantia dos princípios democráticos. Em sua continuidade, este estudo pretende aprofundar o quadro inicial aqui apresentado, buscando conhecer mais a fundo a estrutura e a dimensão das representações sociais dos distintos agentes envolvidos no debate em torno das biotecnologias e, em particular, das sementes transgênicas no estado do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, considerando que estes agentes assumem distintas posições, estratégias e alianças em função do poder que exercem no campo de disputas em torno das biotecnologias, o que acaba interferindo na dinâmica e estrutura deste campo, entende-se que o encaminhamento dos debates e discussões a respeito dos organismos geneticamente modificados e sua possibilidade de inserção nas estruturas de mercado existentes passa por uma compreensão destes elementos. A esta seqüência que o presente trabalho se propõe.

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