Silviano comove ao atar as pontas de sua escrita em \'Machado\'

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ILUSTRADA – FOLHA DE S. PAULO – 13/12/2016 CRÍTICA

Silviano comove ao atar as pontas de sua escrita em 'Machado' JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA

Em carta de 10 de janeiro de 1881, Capistrano de Abreu endereçou a Machado de Assis uma pergunta que o leitor poderia fazer a Silviano Santiago: "O que é Brás Cubas em última análise? Romance? Dissertação moral? Desfastio humorístico?". Em primeiro lugar, o que é "Machado"? Resposta direta: um dos mais importantes lançamentos da última década. Contudo, o leitor, desorientado, insiste: "Mas o que é?" A proposta de um exercício que denominaríamos "romance crítico" ou "ensaio imaginativo". Cuidado: esqueça o lugar-comum: livro híbrido, gênero indefinido, mescla de ensaio e ficção –etc. "Machado" é muito mais perturbador do que essas cômodas etiquetas pós-tudo. Um desvio esclarece a radicalidade do experimento. Em 1981 Silviano Santiago lançou "Em Liberdade", romance inovador no panorama da época. Cinco anos depois, escreveu o influente ensaio "O Narrador Pós-Moderno". Aqui, ficção e crítica ainda mantinham dicções autônomas. Eis a força incomum de "Machado", pois o texto produz um constante curto-circuito pelo atrito permanente entre imaginação de romancista e acuidade de crítico; consulta de fontes e interpretações ousadas; recuperação de fatos pouco valorizados e acasos objetivos; associações históricas e

coincidências inventadas; respeito (relativo) à cronologia machadiana e subversão (completa) da temporalidade cultural. Recordo a epifania que estrutura o romance: "Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 19051908". MOEDA ÚNICA Mais: Silviano vai além e ensaia o salto mortal que não ocorreu a Rimbaud: "O Machado viúvo e o bebê provinciano, os dois eleitos pela mão do acaso setembrino [...] transfigurará os dois na cara duma moeda única chamada Literatura". Assim: Machado/Silviano. Transfiguração, de fato, é palavra-chave desse particular laboratório, que repõe em circulação –anacronismo deliberado!– um gênero clássico, aperfeiçoado por Filóstrato: a écfrase. Sua obra maior, "Imagens", consistia na minuciosa descrição de quadros célebres. Ora, Silviano escreveu um denso e surpreendente comentário da tela "Transfiguração", de Rafael. Em diversos níveis: retratada no quadro, surge a epilepsia que alinhava Flaubert, Machado e Mário de Alencar. O bovarismo reúne a todos e define o perfil do "mímico do Cosme Velho" –notável achado crítico. As "ausências" frequentes provocadas pela enfermidade, essas pequenas mortes nada prazerosas. Mas –outra ousadia do autor– metamorfoseadas em quebras estilísticas que conformam "as contraditórias qualidades convulsivas do enviesamento". A "beleza convulsiva" propicia uma eternidade, digamos, provisória, que transforma a quem toca.

Exatamente como promete o verso de Stéphane Mallarmé, no poema dedicado a Edgar Allan Poe, e que, epígrafe às avessas, remata o rumo da prosa. Bento Santiago a contrapelo, Silviano comove o leitor ao atar com maestria as pontas de sua escrita. "Machado" é um livro definitivo.

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