SIM 78 Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias

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BELÉM, DOMINGO, 7 DE DEZEMBRO DE 2014

OLIBERAL

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

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Galáxia: Bilhões de estrelas semelhantes mas diferentes

Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias

E mesmo quando a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue e não eu que o busca.

singular e raro: ele não pode negar que tem raízes originadas em um autor original, mas por se recusar a deixar de procurar suas próprias raízes, a sua originalidade, se torna um outro tipo de escritor que chamaríamos de: original originado originante. Foi o caso da relação entre o francês Charles Baudelaire e o norte-americano Edgar Allan Poe, no século XIX. Sem ocultar sua identificação com o autor original que admirava, Poe, Baudelaire fez a apologia da obra de Poe e a fez repercutir em todo o mundo, permitindo que ela ecoasse em sua própria obra mas se mantendo profundamente ligada às suas próprias raízes. Com o que se tornou um originado original, O que é muito, muito diferente do que fazem os meros e falsos originados imitadores – que tentam se apropriar da obra de outro, original, e roubá-la para si. E a analogia com qualquer outra espécie de roubo não é gratuita, uma vez que o falso originado imitador oculta de todos o seu ato procurando apagar pistas que levem o leitor a rastrear as origens da sua pseudo-obra. E o mais grave: faz tudo o que pode para ocultar a obra do verdadeiro Autor e anulá-lo. O que permite fazer outra analogia com uma conduta tão sórdida quanto a dele, pois age:

SHITAO

S

erei eu um original, um originante ou um originado? Esta pergunta eu sempre me faço às vésperas de lançar um novo livro visível de Andara - como vou fazer nesta quinta-feira à noite, no IAP, lançando Breve é a febre da terra. E você, se considera uma pessoa original ou igual a todas as outras? Independentemente de como você seja, o que você acha que é melhor para a Humanidade: - Todos serem originais? – Todos serem diferentes? – Ou, como as coisas já são: uma mescla de diferenças e semelhanças alternadamente separando e unindo os homens? Essa pergunta – o que é melhor? – se nós a aplicamos à vida sendo vivida, não se aplica à vida sendo criada. E com isso entramos em nosso assunto desta Sim: a Originalidade & a Imitação na Literatura. Um exemplo do que chamo vida criada, como outras artes entre as quais o Cinema, o Teatro, a Pintura, a Música. No caso específico da Literatura, nem pensar em escrever igual a outros – se dizem os grandes escritores que criaram, cada um deles, um mundo novo através da imaginação verbal. Citemos alguns: Kafka, Beckett, Joyce, Bruno Schulz e o nosso Guimarães Rosa. E como você talvez não conheça alguns deles, é bom dar amostras de suas singularidades: - Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, se viu em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso./Kafka, A Metamorfose. - instantes passados velhos sonhos que regressam ou recentes os que passam ou coisa coisa sempre e recordações as digo como as ouço as murmuro na lama/Beckett, Como é. - Os senhores da lua, me disse Teósofos, um ignilarânjeo carregamento do planeta Alfa da cadeia lunar, não evocariam duplos etéreos e estes foram por conseguinte incarnados nos rubricoloridos egos da segunda constelação./Joyce, Ulisses. - Sentado, o ouço silêncio. O quarto está simplesmente calado. Às vezes aparece no teto branco o pé de galinha de uma fenda, às vezes uma pétala de reboco cai com um ruído. Bruno Schulz/Sanatório sob o signo da clepsidra. - Tinha vergonha de frente e de perfil, todo mundo viu, tinha também de alentar internas desordens no espírito./Guimarães Rosa,Tutaméia, Barra da Vaca. Para estes autores, a originalidade é fundamental, pois é através dela que podem ver, transcriar e transmitir aos leitores a vida vista com outros olhos.

Vejamos: andando na rua e vendo as outras pessoas, apesar das diferenças visíveis – existem infinitas semelhanças invisíveis. No campo da vida vivida o fenômeno tem seus estágios: primeiro se dá no parecermos iguais – depois, movidos por uma necessidade irresistível de sabermos quem de fato somos, alguns de nós buscam sua originalidade, sua identidade única, singular – e quanto mais cada um imerge nessa identidade própria, esses mais se diferenciam uns dos outros. Até atingirem o fundo, isto é: a originalidade única de cada um. E é nessa profundidade que se realiza o mais belo: cada um, agora – não mais sendo uma semelhança coletiva superficial – imerso em sua originalidade profunda, todos percebem que é justamente nela, Originalidade, que somos essencialmente iguais. É onde todos os homens se encontram e compõem verdadeiramente uma Humanidade. É nesse ponto, após fazerem suas descidas em busca de si mesmo, que Bach, na Música, Van Gogh, na Pintura, Kafka, na Literatura, por exemplo, compõem um fundo comum a todos os homens, e, justamente por isso, tocam bem profundamente cada um de nós, através de nossas superficiais diferenças.

Originais: Originantes: Originados O fenômeno das migrações literárias – de estilos & temas – de um escritor para os outros, passa pelas etapas

acima citadas. Mas, apesar de parecer deslizar como uma sequência, não se trata de um fenômeno simples e sim bastante complexo. Vejamos isso, agora: O irlandês Samuel Beckett é um original mas jamais um originante – porque ninguém conseguiria escrever como ele. O também irlandês James Joyce é um original originante – sua revelação de novas linguagens, que libertaram a

Literatura dos seus vícios estagnados e convenções, como que instiga outros autores a percorrer esses caminhos que ele, Joyce, abriu. Um exemplo, ainda que parcial, é o francês Michel Simon, que adotou abolir a pontuação como Joyce fez em Ulisses e sobretudo, posteriormente, em Finnegans Wake, e recebeu o Prêmio Nobel que Joyce jamais viu. Simon seria então um escritor originado de Joyce? Sim & não: a originação não depende apenas da linguagem usada, passa também por temas preferenciais, personagens típicos, ambientações pessoais e, por baixo disso tudo, principalmente pela natureza humana, como se diz, de cada escritor. Porque, apesar de tudo, um homem único adormece em cada um de nós, no obscuro oceano das semelhanças massificadoras e sempre luta para vir à tona. Na Arte como na Vida. Infelizmente, a relativizada interdependência de Michel Simon não é comum a todos os escritores originados. Imensa maioria se limita a copiar seus modelos, com o que todo mundo perde: o autor original, o escritor originado e principalmente o leitor – este, pois a vida sonhada da ficção se torna uma massa amorfa, sem revelações, surpresas, espantos, novas belezas e uma visão revitalizadora da Vida. Como se dão essas perdas nos outros dois? O autor original tem desgastada a sua originalidade pela vulgarização das repetições banalizantes. O escritor originado passa a viver sob a sombra de um outro, negando a sua própria possível originalidade.

Liberdade, Igualdade e Originalidade Tantos anos escrevendo & vivendo, eu creio que esse princípio deveria também ser aplicado não apenas nas Artes, mas ao nosso viver cotidiano.

Edgar Allan Poe

Elogios de admiração Charles Baudelaire

Este título, que remete à obra homônima do romeno-francês Cioran, nos introduz a um tipo de escritor bastante

- Como alguém que oculta um corpo que usava uma joia roubada para poder apresentá-la publicamente como sua.

Poe & Baudelaire Voltando à devoção de Baudelaire por Poe, podemos ver nela o destemor amoroso de Baudelaire por Poe, a quem ele admira e ao mesmo tempo protege das imitações dos outros escritores e até de si mesmo. Esse Baudelaire que se colocou aos olhos do mundo explicitamente em seu amor por Poe, sem temer ser apontado como um escritor dependente de Poe e sacrificou as Tentações de uma possível vaidade à plena revelação de Poe ao mundo. Essas suas condutas – a de Baudelaire e dos milhares de escritor falsificadores de obras originais – têm se revezado ao longo dos séculos, desde as origens da Literatura e da obra de arte como um todo, em todas as suas manifestações. É o que veremos na Sim do próximo domingo. Enquanto esperamos por ela, cito aqui, completa, para sua reflexão, a frase de Shitao, o Monge Abóbora Amarga, do século XVII:

Eu existo por mim mesmo e para mim mesmo. As barbas e sobrancelhas dos mestres da Antiguidade não podem crescer no meu rosto, nem as suas entranhas se instalar no meu ventre: tenho as minhas próprias entranhas e barbas. E mesmo quando a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue, e não eu que o busca.

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