Símbolos de violência no “trote” universitário: corrente e saudação nazista

August 2, 2017 | Autor: T. Yanagisawa Shi... | Categoria: Human Rights, Transitional Justice, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, Ditadura Militar
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VII REUNIÃO DO IDEJUST Congresso Internacional "Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988" Belo Horizonte, 23-25 de maio de 2013*.

Símbolos de violência no “trote” universitário Corrente e saudação nazista

Thelma Yanagisawa Shimomura

*Este artigo foi publicado no e-book Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988, organizado por Emílio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. 2ª edição ampliada, Belo Horizonte: Initia Via, 2014. 919p. Disponível em: . Acesso em: 04/03/2015.

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Resumo: O presente artigo parte da análise de duas fotos feitas durante o ‘trote’ na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FDUFMG), no dia 15 de março de 2013. Em uma das fotos, uma jovem aparece com a pele pintada de preto e tem as mãos atadas por uma corrente puxada por um veterano. Ela está com uma placa pendurada no pescoço com a inscrição “caloura Chica da Silva”, em referência a uma famosa ex-escrava que viveu em Diamantina no período colonial e um veterano (branco) segura essa corrente. Na outra imagem, três veteranos – sendo que um deles possui um bigode postiço em alusão ao “grande” ditador Adolf Hitler - divertem-se em torno de um calouro pintado de marrom e imobilizado, amarrado com fita em uma pilastra, enquanto os veteranos fazem gestos de saudação nazista. A partir do levantamento de material bibliográfico e da reflexão sobre tais imagens, propõe-se uma conexão entre a reaparição dos símbolos de violência e o tema direito à memória e à verdade. Partindo das ideias postuladas por Sigmund Freud sobre recalque, aponta-se que a amnésia forçada não é sustentada ao longo do tempo e necessariamente reaparecerá através de símbolos. O estágio inconsciente do trauma inviabiliza sua elaboração, fazendo com que o indivíduo ou a sociedade entre num ciclo-vicioso patológico de esquecimento e sintoma. Nota-se então, uma compulsão à repetição e o aparecimento dos sintomas seria uma forma de trazer à tona o material reprimido (recalque) para que, havendo possibilidades, esse material possa ser elaborado. Quanto ao ‘apagamento’ forçado da memória coletiva durante o período militar, percebemos suas repercussões na atualidade. E a partir da análise da importância da memória coletiva para a não repetição das violações aos Direitos Humanos, em especial no que tange a justiça de transição, aponta-se a necessidade de criação de Lugares de Memória na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como também investigações por uma Comissão de Memória e Verdade interna de documentos do AESI/UFMG, entrevistas com professores, alunos e funcionários que vivenciaram o período da Ditadura Militar e tornar público os atos de pessoas ligadas à FDUFMG que colaboraram com o regime ditatorial. Palavras-chave: Justiça de transição, Direito à Memória e à Verdade, Memória Coletiva.

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Abstract: This article presents the analysis of two photos taken during the 'hazing' at the Law School of the Federal University of Minas Gerais (FDUFMG), on March 15, 2013. In one of the photos, a young woman appears with her skin painted in black and has her hands tied by a chain pulled by a veteran. She has a plaque hanging in the neck with the inscription "freshman Chica da Silva" – in reference to a famous former slave who lived in Diamantina in the colonial period – and a veteran (white) holds the chain. In another image, three veterans - one of which has a false mustache in allusion to the "big" dictator Adolf Hitler - have fun around a freshman painted in brown and immobilized, tied with ribbon on a pillar, while veterans make gestures like a Nazi salute. From the survey on bibliographic material and the reflection on these images, we propose a connection between the reappearance of the symbols of violence and the theme of the right to memory and truth. Building on the ideas postulated by Sigmund Freud on repression, it is noted that the forced amnesia is not sustained over time and necessarily reappears through symbols. The unconscious stage of trauma impedes their development, causing the individual or the society entrance in a vicious cycle-forgetfulness and pathological symptom. Then, it is noticed a compulsory repetition and the onset of symptoms that would be a way of bringing out the repressed material (discharge) that, depending on the possibilities, this material could be prepared. As for the erasure of collective memory forced during the military period, then, we can realize its repercussions today. And from the analysis of the importance of collective memory for the non-repetition of human rights violations, particularly in regard to transitional justice, it is pointed out the need to create Memory Places at the Law School of the Federal University of Minas general, as well as to promote investigations by a Commission of Truth and Memory internal to the College thru the analyzes of documents from the AESI / UFMG and interviews with teachers, students and staff who experienced the period of military dictatorship, in order to make public the actions of people linked to FDUFMG who collaborated with the dictatorship period.

Keywords: Transitional Justice, Right to Memory and Truth, Collective Memory.

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Introdução O presente artigo tem como objetivo discutir a partir da análise de duas fotos, o aparecimento de símbolos de violência durante o ‘trote’ universitário ocorrido na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FDUFMG), no dia 15 de março de 2013. Essas fotos foram postadas em redes sociais e rapidamente repercutiram nacionalmente, causando indignação e notas de repúdio de Movimentos Sociais e de alguns órgãos ligados à própria UFMG, como a representação discente da FDUFMG dos cursos de Direito e Ciências do Estado. Em uma das fotos, aparece uma caloura com a pele pintada de preto e com as mãos atadas por uma ‘corrente’, que é puxada por um veterano. Ela também expõe uma placa pendurada no pescoço com a inscrição “caloura Chica da Silva”, em alusão à famosa exescrava que viveu em Diamantina/MG, no período colonial. Na outra foto, aparecem três veteranos, sendo que um deles ostentava um bigode postiço similar ao de Adolf Hitler. Eles ‘brincavam’ com um calouro pintado de marrom que tinha sido amarrado com fita adesiva a uma pilastra. Essa ‘brincadeira’ consistia em gesticular a saudação nazista perante o calouro imobilizado (TRAJANO; FREITAS, 2013, p.1). Frias (2013), no artigo intitulado “Todo trote é aceitável desde que seja divertido para quem assiste?”, diz que o trote tem função de dar boas-vindas aos calouros e promover a integração deles com os veteranos. Mesmo que algumas vezes haja festas, palestras e outras atividades, para algumas pessoas, infelizmente, se não houver jogos de humilhação com os calouros, essas atividades não seriam consideradas como trote. A imprensa veiculou que os envolvidos no trote da FDUFMG justificaram a ação como apenas uma “brincadeira”, evidenciando dessa forma, a banalização de práticas de violência (AZEVEDO et al,

2013, p.1). Pressupondo que calouros e veteranos tenham

conhecimento do sofrimento ocorrido nos períodos históricos decorrentes da escravidão no Brasil e do nazismo na Alemanha, percebe-se, portanto, a necessidade de reflexão sobre o processo educacional nas instituições de ensino e nas famílias, para um entendimento mais amplo do ocorrido. Porém, estes assuntos não serão abordados, como também, a especulação sobre o processo jurídico. Cabe aos envolvidos passarem pelo devido processo legal e serem responsabilizados na devida proporção do que fizeram. Nesse artigo, propõe-se uma conexão entre a aparição dos símbolos de violência no trote e o tema direito à memória e à verdade.Os fatos registrados nas fotos serão aqui analisados como um sintoma social. Sabendo que após

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três meses, esta mesma instituição sediou o “Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988”, haveria alguma ligação entre esses distintos temas? Inicialmente, será abordado o conceito psicanalítico de Recalque e como esse mecanismo pode ser entendido coletivamente diante de regimes repressores; depois será abordada a repressão militar na UFMG e FDUFMG durante o período ditatorial e; em seguida será apresentado o conceito de Justiça de Transição, as Comissões de Reparação no Brasil e dois tipos de reparação para crimes contra a Humanidade, a responsabilização judicial e os lugares de memória. 1- Recalque No livro ‘Vocabulário da Psicanálise`’ encontra-se a definição de recalque como: Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de causar prazer em si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências. O recalque é patente na histeria, mas ocorre também na psicologia normal. Pode ser considerado um processo psíquico universal, na medida em que estaria na origem da constituição do inconsciente como campo separado do resto do psiquismo. (LAPLANCHE, 2001, p.430)

KEHL (2013) no artigo ‘A verdade e o recalque - Os crimes do Estado se repetem como farsa’, contextualiza como o processo de recalque foi descoberto por Freud e como a psicanálise surgiu como tentativa de reverter seus sintomas patológicos. No século XIX, a sexualidade, principalmente para as mulheres, era duramente reprimida por imposições morais da nova classe europeia emergente.

Freud cria a hipótese de que as crises de

conversão das histéricas são tentativas de dizer com o corpo, a verdade que estas estavam impedidas de recordar em pensamento ou de falar. Então, a conversão seria a tentativa de expressar pelo corpo os fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias sexuais interditadas, que não conseguiam outra forma de expressão a não ser se tornando um sintoma. Além da conversão, Freud também observou o mecanismo de compulsão à repetição.

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Uma situação é compulsivamente repetida como tentativa inconsciente de promover em ato o que foi ‘esquecido’. O neurótico traz à consciência, de maneira enviesada, uma cena, uma fantasia ou um pensamento, que ficaram recalcados. E para sair desse ciclo -vicioso de esquecimento e sintoma, Freud propôs a psicanálise, que através da fala do paciente, torna possível revelar a verdade psíquica que foi silenciada. Ao expressar a fantasia que foi recalcada o neurótico consegue se libertar das repetições sintomáticas. Ou seja, a elaboração do trauma faz com que o neurótico consiga evitar a compulsão à repetição. Ainda no artigo de KEHL (2013) é apresentado um paralelo entre a repetição do sintoma neurótico e as repetições de fatos violentos e traumáticos nas sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica. Nos regimes autoritários há um silenciamento imposto com restrição ao direito à informação numa tentativa de ocultar as violações, abusos e violências do Estado contra os próprios cidadãos e por isso A elaboração dos crimes contra a humanidade nos regimes totalitários depende do acesso a informações, mesmo às mais tenebrosas, mesmo àquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida, a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos - a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados. Corre-se o risco de que o apagamento rápido e forçado dos crimes da ditadura militar seja similar aos efeitos perversos do esquecimento dos crimes ocorridos no período da escravidão (KEHL, 2013, pag.1).

Além disso, em culturas autoritárias, ocorre o processo de internalização da violência social, pois nestas sociedades há a permissão para que uma minoria possa agredir, enquanto a maioria dos indivíduos é obrigada a conter as suas agressividades, vivendo sob a "maisrepressão". Há uma proibição para reagir aos desagravos sofridos. O indivíduo tem de conter sua agressividade protetora (ligada à preservação da vida) e submeter-se à violência daqueles a quem a sociedade permitiu violentá-lo. A violência de Estado é utilizada para a manutenção de um tipo submisso de indivíduo. E essa violência se manifesta de forma materializada na destruição corporal (tortura, encarceramento e morte) e, também nas representações

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simbólicas que regurgitam na vida mental, individual e coletiva, como experiência traumática de horror. (CANIATO, 2008, p. 18). Nas fotos, pode-se inferir que os crimes contra a Humanidade ainda não foram elaborados socialmente e que as atitudes e os símbolos de violência mostrados representam uma compulsão à repetição e à internalização da violência social. O simbolismo de dois calouros supostamente restritos de suas liberdades (uma acorrentada e o outro amarrado) no “Território Livre José Carlos da Mata Machado”, contradiz a história de luta contra a Ditadura, não só dos Mata Machado (José Carlos e o professor Edgar 1) como também de outras pessoas que se indignaram com a repressão ditatorial. Numa tentativa de elaborar o acontecido, faz-se necessário resgatar a história de violações dentro da própria FDUFMG. O “Congresso Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988” parece ser uma oportunidade para sensibilizar os estudantes sobre o abuso de violência estatal contra, principalmente, o movimento estudantil durante o regime ditatorial. 2- Repressão Militar na UFMG e FDUFMG O ambiente acadêmico foi incisivamente monitorado durante a Ditadura. No artigo “Os olhos do regime militar brasileiro nos Campi: As assessorias de segurança e informações das universidades”, Rodrigo Patto Sá Motta (2008) fala como funcionavam as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI) durante o regime militar. As AESIs eram subordinadas a Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Educação e Cultura (MEC), órgão supervisor, que, por sua vez, era subordinada ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Ao realizar sua pesquisa, Motta (2008) constatou o desaparecimento de muitos documentos produzidos por essas Assessorias e que houve destruição proposital, pois as Universidades ocupavam lugar fundamental no planejamento estratégico dos militares, por seu papel na formação das futuras elites e de técnicos. Por isso o regime militar precisava obter a cooperação dos dirigentes universitários aproveitando-se que as Universidades, como instituições públicas, encontravam-se dentro da estrutura do próprio Estado. Na UFMG, das três pessoas que chefiaram as AESI, duas eram juristas. Mas, Motta (2008) não revela seus nomes.

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Para um aprofundamento sobre a vida de José Carlos e Edgar da Mata Machado, sugiro o livro “Zé – José Carlos Novais da Mata Machado, uma reportagem” de Samarone Lima. Belo Horizonte: Maza Ed., 1998.

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Na UFMG a documentação indica que houve alguma indefinição no momento de criar a AESI. De início, a Reitoria nomeou um professor para o cargo (16/3/1971), porém, poucos meses depois (junho de 1971) foi indicado o Procurador Jurídico da Universidade como responsável, sob a alegação de que o primeiro desistira para realizar pós-graduação no exterior. No início de 1973 foi nomeado um técnico da área jurídica da UFMG para chefiar a AESI, pois o Procurador não poderia mais acumular os dois cargos. Este funcionário, cuja nomeação a Divisão de Segurança e Informação (DSI) levou quatro meses para liberar (1/4/1973), permaneceria à frente do órgão até sua extinção (MOTTA, 2008, p.35). Desta forma, ainda segundo Motta (2008), as AESI universitárias atuaram principalmente: na contratação de funcionários, barrando a entrada de docentes considerados de esquerda; no controle de manifestações e ações políticas planejadas pelas lideranças estudantis, desde passeatas até solenidades de formatura; na aplicação mais intensa das punições previstas na legislação autoritária, como o Decreto nº 477/68 que controlava a circulação internacional de docentes; e na disseminação de material de propaganda produzido pelo governo. O controle exercido por meio das AESI universitárias ocorreu tanto nos casos previsíveis (atividades de natureza associativa e política no interior dos campi) como afetou atividades ligadas à natureza da vida universitária: pesquisas, eventos científicos e cerimônias acadêmicas. Existem exemplos dos mais diversos: proibição do Coral da UFMG (Ars Nova) de participar em festival de corais no Chile, pois era governada pelo socialista Salvador Allend; cancelamento de seminários de natureza acadêmica, devido à presença entre os conferencistas de intelectuais oposicionistas (como o do professor da faculdade de Direito, Edgar da Mata Machado) ou possuidores de ficha “suja” junto aos órgãos de informação; proibição de eventos organizados pelas entidades estudantis, como a Semana da Independência preparada pelo Diretório Central dos Estudantes/UFMG em setembro de 1972. A interferência nas cerimônias de colação de grau constituiu situação peculiar, pois foram se transformando em eventos de natureza política quando turmas de formandos escolhiam como paraninfos intelectuais oposicionistas, ou professores punidos pelo Regime

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Militar. Num momento de censura aguda, a intenção dos estudantes era mesmo usar a cerimônia para protestar contra a ditadura. Em outro artigo, “Incômoda Memória: Os arquivos das ASI universitárias”, Rodrigo Patto Sá Motta (2008) mostra que no início dos anos 70, com o declínio do estado autoritário e o início da transição democrática, o destino dos arquivos das ASI (Assessoria de Segurança e Informação) ou AESI (Assessoria Especial de Segurança e Informação) passou a causar preocupações aos gestores do sistema de informações, uma vez que poderiam revelar o que se desejava esconder. Desde 1975, apareceram as primeiras denúncias sobre a existência de critérios ideológicos na contratação de professores, apresentadas em eventos como os da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), porém essas denúncias ficavam restritas ao espaço dos eventos científicos e aos círculos acadêmicos. Em 1977, a imprensa paulista publicou pequenas notas e cartas de professores, que denunciavam a existência de tais práticas na Universidade de São Paulo (USP), e por isso o reitor daquela universidade foi chamado a depor em Comissão de Investigações da Assembleia Legislativa de São Paulo. Em seu depoimento, o reitor não fez revelações sobre a ASI e também não haviam provas concretas de sua existência. Nesse momento, não se sabia muito sobre a atuação das Assessorias, sequer seu nome correto. No ano de 1978, publicaramse textos jornalísticos mais consistentes sobre a existência dos serviços de segurança universitários. No ano seguinte, 1979, os responsáveis das ASI encontraram motivos mais sérios para preocupação, pois se tornaram alvo dos setores organizados da comunidade universitária, em meio a campanha pela redemocratização das instituições de ensino superior e por reparações aos perseguidos políticos. É difícil dizer qual grupo começou primeiro a reivindicar a extinção das ASI, o movimento docente ou o estudantil, pois manifestações de ambos apareceram quase simultaneamente. Durante o I Encontro Nacional de Associações Docentes, realizado em fevereiro de 1979 na cidade de São Paulo, entre os pontos aprovados para a pauta de lutas destacavam-se a democratização e o fim do “controle ideológico” nas universidades, mais precisamente a extinção das Assessorias de Segurança e Informação. A proposta de extinguir as ASI foi reafirmada nos encontros seguintes dos professores universitários e apresentada diretamente aos reitores por algumas associações docentes. Para uma melhor compreensão desse quadro, é importante destacar que, nos anos iniciais de luta contra as ASI, os agentes das denúncias e campanhas tendiam a ver os arquivos e documentos essencialmente como prova da repressão.

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Além disso, desejava-se anular ou desativar as ASI, e assim garantir a liberdade no interior dos campi. Porém, quanto ao destino a ser dado aos arquivos das ASI não se tinha muita clareza. Poucos foram os membros da comunidade universitária que defendiam a preservação desses acervos em benefício da memória e do conhecimento. Motta (2008) explica que no contexto inicial das lutas pela redemocratização, a preservação da memória para futuros estudos sobre o autoritarismo era um tema secundário, e isso é compreensível em função da presença de temas mais urgentes em pauta. No contexto da disputa pelo destino dos arquivos das ASI, ocorreram casos comprovados de destruição. Temse notícia de apenas duas administrações universitárias que preservaram integralmente os acervos: UFMG e UnB. No segundo semestre de 1986, os respectivos reitores, Cid Veloso e Cristovam Buarque, encaminharam os arquivos aos órgãos das universidades mais adequados para receberem sua guarda, com o compromisso de que seriam utilizados por pesquisadores e por pessoas em busca de reparação judicial. Não se sabe o motivo desses arquivos ainda se encontrarem nessas instituições em 1986, mas permitiu aos reitores recém-empossados a oportunidade de conservá-los e destiná-los a órgãos de memória. Em despacho anotado à margem de um dos informes produzidos pelo SNI sobre a “abertura” do arquivo AESI/UFMG, um anônimo agente de informações fez o seguinte registro, provavelmente no início dos anos 1980: “[...] determinou-se o recolhimento dos arquivos das ASI universitárias, mas, devido à reação do então diretor da DSI/MEC, a ordem não foi cumprida a contento, o que veio resultar em problemas em PE, Maranhão e agora, soube-se, BH/MG.” Tais arquivos guardam, de fato, memória incômoda para vários dos protagonistas, tanto para agentes da repressão e da administração universitária, como para militantes políticos e pessoas vigiadas. Percebe-se nesses dois artigos de Mota que pontos obscuros envolvendo juristas e a FDUFMG ainda permanecem sem conhecimento público e que há a possibilidade de realização de pesquisas nos documentos da AESI/UFMG que possivelmente revelariam algumas das incômodas verdades. 3 - Justiça de Transição A justiça de transição envolve um conjunto de medidas que permitem a superação de um regime autoritário para que se construa uma ordem democrática e garantidora de direitos humanos. A ONU (em seu Relatório S/2004/16 do Conselho de Segurança) define a justiça de transição como o conjunto de medidas e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade de lidar com um legado de abusos em larga escala no

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passado. Dentro de tais mecanismos, pode-se falar em busca pela verdade, reformas institucionais, expurgos no serviço público, reparações às vítimas e julgamentos individuais de abusos cometidos no período autoritário. 2 4 – Comissões de Reparação Abrão e Torelly (2012) apontam duas Comissões de Reparação no Brasil: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que funcionou entre 1995 a 2007, e a Comissão de Anistia, de 2001 até os dias atuais. A reparação por parte do Estado consiste no reconhecimento da existência das vítimas, das suas narrativas e que cometeu graves violações contra os direitos humanos. Ao desfazer as narrativas oficiais sobre os crimes de Estado contra os resistentes políticos da ditadura, as comissões efetivam o direito à verdade diante das violações de direitos humanos. Nesse processo de reparação produz-se um acervo de testemunhos e de registros de violência que compõem os arquivos das duas Comissões de reparação. Desta feita, as comissões iniciaram a implantação de projetos de resgate da memória histórica das vítimas. Coletivamente, contribui para a elaboração das atrocidades desse período de abuso de poder do Estado. 5 - Reparação de Crimes contra a Humanidade O Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, ratificado pelo Brasil em 2002, em seu artigo 7º define como crimes contra a Humanidade, entre outros, assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, encarceramento, tortura, violação ou violência sexual, desaparecimento forçado e a perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero. O Estado pode ser responsabilizado quando há uma linha de conduta que implique o cometimento múltiplo dos atos mencionados contra uma população civil, de conformidade com a política de um Estado ou de uma organização que ataca para promover essa política (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2002. DECRETO Nº 4.388). O sistema jurídico é um importante mecanismo de reparação, porém não deve ser utilizada de forma isolada. No Brasil, há o agravante de que a punição dos crimes durante o período de ditadura militar ficou comprometida pela própria interpretação da Lei de Anistia

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OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de et al. Cartilha Justiça de Transição, 2014. Para melhor compreensão do presente artigo, optou-se por inserir parte do conteúdo da cartilha no momento da revisão.

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do Brasil (ABRAÃO e TORELLY, 2012, p 10-47). Então, apesar do Brasil ter-se comprometido internacionalmente na investigação e punição dos crimes contra a humanidade, a responsabilização criminal individual desses atos no período referente à Ditadura não ocorreu. Foram realizadas tentativas de reparação jurídica no âmbito internacional, destacando-se o caso de Olavo Hansen, da “Guerrilha do Araguaia” (Gomes Lund e outros) e de Vladimir Herzog. Porém, Lei da Anistia foi o obstáculo alegado pelo Estado brasileiro para a não investigação e punição dos responsáveis por violações graves aos direitos humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados. No Peru (Caso Barrios Altos e Caso La Cantuta) e Chile (Caso Almonacid Arellano e outros), a CIDH sentenciou a invalidade dos decreto-leis de “autoanistia”, por implicar a denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-humanidade (PIOVEZAN, 2009, p. 181). Em 2010 essa mesma Corte condena o Brasil, no caso Gomes Lund, pelo desaparecimento forçado de cerca de 70 pessoas e reafirma a invalidade da Lei de Anistia brasileira.

6 - Lugares de Memória No artigo ‘A Memória e seus abrigos: considerações sobre os lugares de memória e seus valores de referência’, Soares e Quinalha (2011) refletem sobre a importância da memória para lidar com as graves violações de direitos humanos e, em especial, com o legado de violência deixado pela ditadura militar brasileira. Dentre diferentes objetos da memória coletiva, os momentos de extrema violência e de violação sistemática de direitos humanos se apresentam como uma perspectiva privilegiada para compreender as características e dilemas essenciais dos processos de rememoração, desta forma: [...] esses episódios [I e II Guerras Mundiais, regimes fascistas, Apartheid na África, as ditaduras militares na América Latina, etc] são lembranças, incômodas a toda a humanidade, que atingiram um ápice de horror e barbárie, qualitativa e quantitativamente, diferentes do que se vira até então. Por constituírem situações-limite, convocam, ao mesmo tempo em que dificultam, o ato de constituição da memória.

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Com efeito, a natureza intensamente traumática desses conflitos de alto potencial de desagregação social coloca, aos que sobre ele se debruçam, o desafio da representação do irrepresentável; para os que sofreram diretamente esses traumas, a recordação significa reviver a experiência da dor (SOARES e QUINALHA, 2011, p. 255). Soares e Quinalha (2011) pontam também que as lembranças precisariam ser representadas para acessar o presente. E a memória coletiva não é apenas composta por lembranças individuais, sendo um campo de permanentes disputas simbólicas em torno de versões e fragmentos sobre o passado, bem como de suas relações com o presente. Em alguns casos, como no período pós-ditatorial brasileiro, chega-se a falar em uma “guerra de memória”, pois há uma briga com o passado de várias formas. Uma delas é queimando ou escondendo provas documentais; criando silêncios em vários sentidos, reais ou metafóricos. O objetivo maior de enfrentar um passado bloqueado e liberá-lo para acesso da memória é a elaboração dessas experiências, mediante a construção coletiva. Com efeito, em se tratando da memória dos crimes contra a humanidade, tal qual a repressão política da ditadura brasileira, intensifica-se a tensão entre a memória e o esquecimento, sobretudo porque, nessas situações, este último é comumente instrumentalizado como estratégia de poder, a fim de garantir a perpetuação de determinada ordem e a impunidade dos que cometem esses crimes. A construção de memoriais, a proteção de um espaço como lugar de memória, o estabelecimento de datas comemorativas, a formação de museus com temas que busquem prevenir a repetição das atrocidades ou outras formas de homenagem de vítimas são iniciativas de memorialização. Os atos de memorialização são de grande importância para a sociedade por representarem o reconhecimento público do legado de violência (ou do passado violento). O Lugar de Memória é um espaço concebido para cumprir uma função específica no Estado democrático, com a participação da sociedade. Mas, para ser considerado bem cultural, deve exercer as funções democráticas atribuídas a essa categoria de bens. Assim, por exemplo, no caso de eventual tombamento de um DOI - CODI, far-se-ia a adaptação dessa delegacia em um Memorial, como já ocorreu em São Paulo na construção do Memorial da Resistência. Esses Lugares de Memória atingem também o Estado que por meio de sua implantação e gestão, expressa pública e oficialmente seu repúdio às violações cometidas por seus agentes.

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Conclusão: A partir da análise da importância da memória coletiva para a não repetição das violações dos Direitos Humanos, e em especial no que tange a justiça de transição, aponta-se a necessidade de criação e a concepção de Lugares de Memória na Faculdade na Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como também investigações por uma Comissão de Memória e Verdade interna de documentos do ASI/UFMG, entrevistas com professores, alunos e funcionários que vivenciaram o período da Ditadura Militar. Outra tarefa importante seria a de tornar públicas ações de pessoas ligadas à FDUFMG que contribuíram com o regime militar. No ‘Panteão dos sábios’, 2º andar – abaixo do Território Livre, há o busto de Pedro Aleixo, antigo professor da casa, que atuou junto ao regime militar. No 16º andar do prédio da pós-graduação há o auditório Francisco Luís da Silva Campos, autor do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, fato pouco divulgado dentro da FDUFMG. Desde o início da tarde de terça-feira, 7 de abril, o jurista Francisco Campos estava no gabinete do general. Autor da Carta de 1937, último instrumento ditatorial da República brasileira, Chico Ciência era um mineiro miúdo, autoritário, brilhante e extrovertido. [...] Reunido com Costa e Silva e um grupo de generais, Francisco Campos captou neles uma vontade de praticar a violência política, inibida pelo escrúpulo de atropelar a Constituição. Agitado, andando de um general para outro, atirou: “Os senhores estão perplexos diante do nada!”. E deu uma aula sobre a legalidade do poder revolucionário. Era o que eles precisavam ouvir. Perguntaram-lhe do que precisava para redigir uma proclamação: “Papel e máquina de escrever”, respondeu. (GASPARI, 2002, p. 123) Entre os jovens estudantes da FDUFMG, alguns conhecem a história de José Carlos da Mata Machado. O 3º andar, lugar onde são realizadas festas e também onde ocorreu o trote, leva seu nome. Também há, merecidamente, placas de homenagens com seu rosto bonito em vários cantos desta faculdade. Mas, dos outros resistentes, pouco se sabe. E, a história dos colaboradores da Ditadura que passaram pela FDUFMG - alguns homenageados - não foi devidamente investigada e revelada. Quem sabe poderiam ser encontrados registros nos arquivos da ASI? Desta feita, uma Comissão de Memória e Verdade interna poderia recolher

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informações através de pesquisa de documentos, como também realizar entrevistas, dando voz àqueles que foram silenciados pelo medo de serem perseguidos pelo Estado. A aparição dos símbolos de violência no trote, então, pelo diálogo com a psicanálise e ampliando para o conceito de Memória Coletiva, é interpretado como uma compulsão à repetição do material violento que ainda não foi elaborado e, ao mesmo tempo, também uma tentativa de elaboração e reparação com o passado. A aparição dos símbolos de violência revela que história de violação dos Direitos Humanos não foi superada. Para isso, faz-se necessária a desconstrução de uma verdade monolítica, do silenciamento imposto, a revelação das violências encobertas e a sensibilização das novas gerações sobre os abusos de violência estatal. É pela abertura para a escuta de ‘verdades’, reconhecimento da pluralidade, elaboração do passado e apropriação da própria história que se pode construir algo novo e sair do ciclo vicioso de repetições de situações traumáticas. Referências Bibliográficas: ABRAÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D..Mutações do conceito de Anistia na Justiça de Transição Brasileira: a terceira fase da luta pela Anistia. Revista da Anistia Política e Justiça de Transição - nº 7 Janeiro/Junho 2012. Pag10-47.Brasília : Ministério da Justiça, 2012. AZEVEDO, André Freire e col. CARTA ABERTA A COMUNIDADE ACADÊMICA ACERCA DO TROTE DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG. Disponível em: . Acesso em abril 2013. CANIATO, Angela Maria Pires. Violências e subjetividades: o indivíduo contemporâneo. Psicol. Soc. vol.20 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2008, pag 16-32. Disponível em: . Acesso em abril 2013. FERNANDES, Pádua. Setenta anos após 1937: Francisco Campos, o Estado Novo e o pensamento jurídico autoritário. Prisma Jurídico, núm. 6, 2007, pp. 351-370. Disponível em: . Acesso em abril 2013.

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