Situações de risco: jovens sem projeto de vida, construção de um objeto de estudo

July 7, 2017 | Autor: M. Dias | Categoria: Social Work, Psicología Social, Educacion
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Estatuto Editorial A publicação designada por «Cadernos de Pedagogia Social» é propriedade da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa e visa contribuir para a consolidação de uma cultura científica no domínio da Pedagogia Social através da publicação de trabalhos de investigação de reconhecido valor académico segundo uma perspectiva que, integrando dialecticamente teoria e prática, procura promover a cooperação activa entre profissionais e investigadores, nacionais e estrangeiros. Esta publicação contempla três tipos de colaboração, com aceitação prévia pelo Conselho Editorial, que funcionará como comissão de leitura e revisão (peer-review): - Artigos originais (original articles) que se debrucem sobre investigações realizadas no domínio científico da Pedagogia Social. - Revisões bibliográficas (contemporary reviews) que proporcionem uma leitura compreensiva sobre tendências recentes e relevantes no domínio científico da Pedagogia Social. - Relatórios (reports) sobre o trabalho realizado por instituições nacionais e internacionais dentro do domínio científico da Pedagogia Social, podendo integrar entrevistas, relatos de visitas e/ou de reuniões científicas. A publicação de «Cadernos de Pedagogia Social» acontece uma vez por ano. © Universidade Católica Editora, Sociedade Unipessoal, Lda | Faculdade de Educação e Psicologia Director Isabel Baptista Conselho Editorial Joaquim Azevedo, Isabel Baptista, Américo Peres, Adalberto Dias de Carvalho, Roberto Carneiro Propriedade Universidade Católica Portuguesa Concepção gráfica LabGraf Execução gráfica LabGraf Dep. legal 258356/06 ISSN 1646-7280 Assinaturas bi-anuais Portugal e países africanos de expressão oficial portuguesa: 15,00 € Europa: 19,00 € Brasil: US$25 avulso: 8,50 € Toda a correspondência destinada à revista, incluindo pedidos de assinatura, pagamentos e alterações de endereço, deve ser dirigido a: Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Educação e Psicologia | Palma de Cima | 1649-023 Lisboa - Portugal | tl. +351 217 214 060 fx. +351 217 266 160 [email protected] www.ucp.pt Universidade Católica Editora | Palma de Cima | 1649-023 Lisboa - Portugal | tl. +351 217 214 020 fx. +351 217 214 029 [email protected] | www.uceditora.ucp.pt

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2 (2008) ANO II

5 Nota de apresentação

Isabel Baptista

7 Pedagogia Social: Uma ciência, um saber profissional, uma filosofia de

acção Isabel Baptista

31 Estatuto antropológico e limiares epistemológicos da educação social

Adalberto Dias de Carvalho

45 Educadores Sociais: Quem são? O que fazem? Como desejam ser

reconhecidos? Joaquim Azevedo | Isabel Baptista Mesa de Discussão: Maria Ferreira; Maria Guerra; Sofia Rodrigues; Fernanda Cachada; Rui Amado

61 O Perfil Profissional do Educador Especializado (Social): Uma leitura sócio-

-histórica Fernando Canastra | Manuela Malheiro

81 A Educação Intergeracional no horizonte da Educação Social: compromisso

do nosso tempo Cristina Palmeirão

101 Espaço, universo de relações e a questão da alteridade: Uma reflexão

sobre a cidade de São Paulo/ Brasil Marielys Siqueira Bueno | Maria do Rosário Rolfsen Salles | Sênia Bastos

117 Porque necessitamos de um modelo bioecológico – transaccional para

pensar o futuro? Maria Raul Lobo Xavier

125 Intervenção Social da Ald No Gúruè

Adérito Gomes Barbosa

151 Direito ao trabalho e cidadania social: A educação ao serviço da

solidariedade Maria Helena Magalhães da Silveira Ribeiro

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163 Situações de risco: jovens “sem projecto de vida”, construção de um

objecto de estudo Dulce Helena Penna Soares | Maria Sara de Lima Dias

179 Resiliência num grupo de adolescentes de risco de uma escola secundária do

grande Porto Maria Raul Lobo Xavier | Mariana Andresen Abreu

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Nota de apresentação

Ancorados na dinâmica investigativa desenvolvida no seio da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (FEP/UCP), há um ano atrás lançávamos o primeiro número desta publicação que escolhemos designar por «Cadernos de Pedagogia Social», na expectativa de que pudesse constituir um espaço plural de partilha de conhecimento nesta área de trabalho. É, pois, com enorme satisfação que apresentamos um segundo número composto por textos de vários autores, provenientes de instituições nacionais e estrangeiras e dando testemunho sobre experiências de estudo muito diversas, evidenciando assim a consistência de uma racionalidade sócio-pedagógica «hospitaleira», firmemente estribada no acolhimento de múltiplas abordagens disciplinares e profissionais. Ao referir-se a uma ingerência propositada no projecto antropológico, a educação não pode alhear-se dos problemas humanos respeitantes à chamada «questão social», sobretudo no quadro de uma sociedade educativa que se deseja justa, cosmopolita e solidária. O tema de capa deste número, «Educação e Solidariedade Social», surge no seguimento desta intenção, visando salientar os objectivos de humanidade e de cidadania social que balizam o tipo de educação que constitui objecto de estudo da pedagogia social. Daí a ênfase dada à educação social, enquanto domínio privilegiado nesta área, relativo à atenção prioritária a pessoas e grupos humanos que se encontram em manifesta situação de sofrimento e vulnerabilidade, ainda que sem perder a referência essencial aos múltiplos lugares de realização antropológica numa «sociedade de todos, com todos e para todos». Valorizando a ligação orgânica entre os universos de fundamentação e aplicação, os textos apresentados expõem preocupações de ordem teórico-prática relacionadas com o estatuto epistemológico da pedagogia social e com a

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diversidade de saberes e contextos que configuram esta ciência da educação, desde a definição do perfil formativo dos agentes de intervenção sócio-educativa, em particular dos educadores sociais, passando pela compreensão do espaço público como «universo de relações de alteridade», até a questões especificas levantadas nos vários relatos de investigação e de acção. Sublinham-se ainda os contributos vindos de outras áreas de conhecimento, como a psicologia, por exemplo, testemunho de um diálogo interdisciplinar imprescindível em termos de construção solidária do saber.

Isabel Baptista Porto, Abril 2008

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Pedagogia Social: Uma ciência, um saber profissional, uma filosofia de acção Isabel Baptista Docente da Faculdade de Educação e Psicologia, UCP

Resumo A disciplina científica que dá pelo nome de «pedagogia social» ocupa hoje um lugar fundamental no seio das ciências da educação, respondendo por um universo conceptual específico, alicerçado num património histórico próprio e num campo de problematização-acção de confirmada relevância na nossa contemporaneidade. É justamente em torno do conceito de pedagogia social, da sua história e da sua especificidade epistemológica que procuro reflectir neste texto, tentando evidenciar a pertinência socio-política desta área de conhecimento num quadro de renovação do «espaço público da educação», em conformidade com a utopia do humano preconizada pelas Nações Unidas para a sociedade do século XXI.

Educação, desenvolvimento humano e cidadania solidária Definido em termos gerais, o objecto de estudo da pedagogia social remetenos para uma realidade antropologicamente densa, complexa e multifacetada – a praxis sócio-educativa numa perspectiva de «cidadania social». Ao mesmo tempo que se promove a capacitação subjectiva e cívica das pessoas, trata-se de procurar «fazer sociedade» num mundo que nos surge como fragmentado, incerto, vulnerável e «líquido», apostando para tal na ligação orgânica entre aprendizagem, vida e experiência comunitária. Estamos, pois, perante um

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conhecimento construído na interface entre as áreas da educação e da solidariedade social, num contexto de mutação paradigmática dos respectivos campos de referência. De um lado, temos o ideal de uma educação para todos e ao longo da vida como o grande princípio orientador da mudança desejada. Pretende-se que nos diferentes planos de acção política – mundial, nacional, regional – sejam forjados compromissos sociais audaciosos em torno da criação de oportunidades educacionais contextualizadas, diferenciadas, flexíveis e permanentemente acessíveis a todas as pessoas, seja qual for a sua situação existencial. O que, desde logo, se afigura como uma tarefa hercúlea, conforme admitiu o Director Geral da UNESCO, Koichiro Matsuura (2000), mesmo se encarada apenas em ternos de universalização e diversificação da oferta formativa. Porque, na verdade, o desafio em causa transcende largamente esta meta, implicando uma profunda transformação dos modos de pensar e viver a educação enquanto interferência propositada no processo de desenvolvimento humano. Reconhece-se hoje que a educação constitui o sustentáculo basilar «de uma evolução consciente, de uma socialização ao longo da vida e do exercício de uma cidadania activa no plano dos direitos e deveres de cada pessoa» (Carneiro, 2004). E é neste sentido que a promoção de processos intencionais de aprendizagem deixa de ser uma responsabilidade exclusiva dos sistemas escolares, passando a ser equacionada em função de uma pluralidade de tempos, de lugares e de exigências de conhecimento. Do lado das políticas sociais, considera-se que o desafio passa pela regeneração do Estado providência clássico e por práticas de cidadania ancoradas em laços humanos que, não sendo definitivos e indissolúveis, possam, todavia, ser consistentes e significativos. Conforme notou Zygmunt Bauman (2000;2004), denunciando o que classifica de «modernidade líquida». Os cidadãos contemporâneos tendem a desenvolver conexões episódicas, «desesperados por se relacionarem» mas ao mesmo tempo cada vez mais «desconfiados da condição de estar ligado». Daqui resultam laços fortuitos e frouxos, atados com «insustentável leveza» e numa «tentação de inocência» incompatível com os desígnios de uma cidadania solidária, recorrendo assim a expressões utilizadas, respectivamente, por Milan Kundera e Pascal Brukner. Os efeitos do «mundo líquido» reflectem-se igualmente no plano das mediações institucionais e nas formas de organização do compromisso social. 8

Citando Joaquim Azevedo (2006), cresce a desconfiança em relação às mais variadas formas de governo da res pública, com reflexo evidente nas condições de representação e acção das instituições sociais. É a própria democracia que assim fica em causa, «esse ideal permanentemente traído e desfigurado», como afirma Pierre Rosanvallon (1998) ao lembrar que sem perseverança no aperfeiçoamento da democracia não há progresso social. Nessa medida, ao mesmo tempo que propõe a reconceptualização da noção de «cidadania», o sociólogo argumenta em favor da renovação «intelectual e moral» do Estado como condição indispensável para a afirmação de uma «nova era do social» que, na sua perspectiva, deverá também, e forçosamente, corresponder a uma nova era da política. Com Rosanvallon, associo a necessária transformação dos modelos de intervenção pública a uma redefinição filosófica do Estado providência, mas considero que é num plano de questionamento ainda mais radical, em termos de «refundação antropológica e ética», que a questão deve ser colocada (cf. Baptista, 2007, 2008). Interrogarmo-nos sobre os mecanismos da justiça, sobre as garantias de equidade, sobre práticas de cidadania, sobre a violação sistemática de direitos humanos ou sobre novos «direitos sociais», significa reflectir sobre padrões de conduta pessoal, sobre dinâmicas identitárias e sobre estratégias de vida. Antes de mais, estas são questões de natureza antropológica e ética no centro das quais estão perguntas como: Quem somos? Quem queremos ser? O que é que faz a diferença dos nossos dias e dos nossos caminhos? Que tipo de relação estabelecemos connosco próprios, com os outros e com o mundo? O que é que caracteriza, ou deve caracterizar, a nossa presença no mundo? É, pois, nesta base de questionamento essencial que deve ser inserida a exortação de Rosanvallon no sentido de um regresso ao ponto de origem, lá onde o laço social e o laço cívico se confundem e onde a justiça descobre que, afinal, é bem mais antiga do que o regime de direitos que a serve. Isto não significa que se procure substituir o Estado providência por «comunidades providência» ou ainda muito menos por «indivíduos providência», como por vezes se sugere. O que se deseja é que a um «Estado social» forte e iluminado correspondam dinâmicas de «cidadania social» apoiadas na implicação dos próprios cidadãos enquanto «sujeitos capazes» (Ricoeur, 1988), que o mesmo é dizer enquanto cidadãos aptos a actualizar os seus direitos/deveres no espaço de vida em comum, na convicção de que só aí é que eles ganham a forma de «poderes». Assinala-se 9

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deste modo uma demarcação crítica relativamente às perspectivas de intervenção comunitária subordinadas à noção de «empowerment» ou «empoderamento» se optarmos pela tradução portuguesa. Os processos de capacitação não podem ser reduzidos ao desenvolvimento de competências de domínio e de controlo, individuais ou grupais, confundindo os modos de participação cívica com o exercício de uma influência «eficaz» e credora de reconhecimento. No lugar de organizações e contextos sociais «empoderados» e «empoderantes», opto por falar em «lugares de hospitalidade, justiça e solidariedade social» (Baptista, 2006,2007;2008). Recuperando uma noção cara a António Nóvoa (2005), podemos afirmar que nesta nova era da política, a pedagogia social ocupa um lugar decisivo na reconfiguração do «espaço público da educação», tendo em conta a valorização dos múltiplos lugares de realização antropológica e a necessidade de investir em respostas educacionais de base sócio-comunitária. Interpreto neste sentido o apelo feito por Joaquim Azevedo (2007) em relação ao actual movimento de territorialização das medidas educativas que, do seu ponto de vista, deverá ser encarado como possibilidade de profunda reformulação política e não apenas como um fenómeno administrativo ou jurídico-legal. Justamente, é necessário inscrever as preocupações de solidariedade social no coração dessa mudança política. Ao referir-se a uma intervenção intencional no projecto antropológico, a educação não pode ficar de fora do debate público sobre a «questão social», expressão com que aprendemos a nomear o conjunto de problemas que, em determinada época histórica, afectam os processos de desenvolvimento humano

Ciências da Educação e sociedade educativa Equacionado no quadro de uma educação para todos e ao logo da vida, o universo de estudo das ciências da educação alarga-se substancialmente, tornando-se muito abrangente, complexo, incerto e, em muitos aspectos, impreciso e ambíguo. Assim, privadas de um horizonte objectual estável e facilmente reconhecível que, de um modo algo artificial, elas haviam tentado impor a si mesmas, as ciências da educação experimentam hoje um certo 10

desnorteamento, conforme notou Adalberto Dias de Carvalho (1996). Os paradigmas de cientificidade adoptados por estas ciências numa primeira fase do seu processo de legitimação epistémica carecem de uma reflexividade ético-antropológica considerada fundamental. Parafraseando Hannah Arendt (2000), podemos dizer que, no caso concreto das ciências da educação, a dificuldade em encontrar resposta para as situações problemáticas resulta, em boa medida, da amnésia em relação às perguntas de origem. De que falamos quando falamos em educação? Que concepções de subjectividade, de humanidade e de cidadania, sustentam, ou devem sustentar, os objectivos sociais do novo milénio? O que é que realmente entendemos por «desenvolvimento humano»? Como, com que meios e de que forma, podemos intervir pedagogicamente nesse processo? Na verdade, este tipo de interrogações sobre as prioridades do humano no tempo que nos couber viver constitui uma exigência incontornável de toda a racionalidade científica. Será esta a lição a retirar das críticas feitas à tradição ocidental por Michel Foucault, Louis Althusser, Jacques Lacan, entre outros. Mais do que anunciar o «fim do humanismo», a reflexão protagonizada por estes autores veio lembrar que os ideais de humanidade requerem uma actualização histórica contínua e que a razão científica não está fora deste esforço. Num mundo tão complexo como o nosso, numa sociedade «ela própria revolucionada pela ciência», é preciso reaprender a fazer perguntas «simples, elementares, mas profundas, perguntas que tragam luz nova à nossa perplexidade» (Sousa Santos, 1989). Os quadros conceptuais que outrora suportavam a confiança epistemológica têm vindo a desmoronar-se, provocando uma experiência colectiva de dúvida geradora de um clima de incerteza e ambivalência sem precedentes. A única lucidez possível parece ser agora a da consciência da própria incerteza, conforme ensina Edgar Morin. Sem abandonar os princípios da ciência clássica – ordem, separabilidade e razão –, pelo contrário, inserindo-os em esquemas de combinação dialógica onde ordem, desordem e organização se entrelaçam produtivamente, Morim (2000) desafia a ciência contemporânea a assumir os factores complexidade e imprevisibilidade como seus traços constitutivos. O espírito cartesiano passa assim a estar ao serviço de perspectivas sistémicas que acolhem as tensões subjectivas inerentes ao movimento pendular entre universal e singular, entre o todo e a parte ou entre previsto e imprevisto. 11

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Tal como tenho vindo a tentar fundamentar no quadro de uma reflexão ética sobre «pedagogia e políticas de alteridade» (Baptista, 2006; 2007; 2008), o paradigma da complexidade advogado por Edgar Morim é indissociável de uma concepção antropológica vinculada à alteridade, segundo a perspectiva relacional proposta por Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida. Remeto assim para uma «leitura filosófica» da obra levinasiana apresentada noutro texto (Baptista, 2007a), esclarecendo que, por definição, a «leitura filosófica» corresponde ao processo de fundamentação racional de uma determinada interpretação subjectiva, assumindo criticamente todas as «infidelidades» e transgressões conceptuais que tal exercício implica. Emmanuel Lévinas fez questão de se demarcar de qualquer teorização de carácter socio-político, sem que tal diminua a força reflexiva das suas teses a este respeito. Foi o que então se procurou sustentar, recorrendo para tal às interpelações de outros filósofos, como Paul Ricoeur e Jacques Derrida. É sobretudo a este último que devo a possibilidade de ter compreendido «Totalidade e Infinito», talvez a obra mais conhecida de Lévinas, como um «imenso tratado sobre hospitalidade» quando na verdade o seu autor quase nunca usa esse termo, preferindo o de «acolhimento». O uso, neste texto, de expressões como: «hospitalidade interdisciplinar e interprofissional» «auto-hospitalidade» ou «razão hospitaleira» insere-se, pois, numa reflexão tributária dos autores referidos. Só uma consciência capaz de se deixar interromper e ensinar por verdades nascidas fora de si mesma poderá servir de suporte a uma «racionalidade hospitaleira», optando por designar assim o tipo de pensamento que aceita, sem receio, a energia desconstrutora que advém da experiência de afecção intersubjectiva. Essa energia é o que, na verdade, alimenta os sistemas impedindo a sua obsolescência, como verdades situadas fora de todos os cânones e de todo o cálculo, mas que por isso mesmo se apresentam à consciência «grávidas de uma aceitabilidade possível» (Derrida, 2006). De acordo com este alinhamento conceptual, mais do que substituir um paradigma por outro, trata-se hoje de admitir a pluralidade paradigmática como condição da prática investigativa. Sem que, todavia, tal signifique o estilhaçamento da razão científica, a sua fragmentação ou dispersão. Bem pelo contrário, a confiança epistemológica fortalece-se na exacta medida em que se renova, deixando-se entranhar por factores como complexidade e incerteza o que, no contexto da reflexão que proponho, é o mesmo que dizer capacidade de «paixão» e «compaixão». 12

Pressupondo uma «aprendizagem social» assente na relação de intimidade com a vida e orientada para o desenvolvimento de laços constitutivamente sólidos em termos de identidade pessoal e cívica, o tipo de educação que constitui objecto de estudo da pedagogia social obriga-nos a desenhar linhas de uma «geografia humana» mais permeável à entrada do outro que, sendo outrem, dá testemunho de realidades que excedem, perturbam e intrigam a razão que as acolhe. Tentando definir «os seus outros», a razão escolhe muitas vezes nomes como sentimento, emoção ou sensação quando pretende referir-se a esse seu lado perturbante «clamoroso e ameaçador, a esse atravessar e ser atravessado, a essa súbita abertura ao Outro, a essa explosão não planeada de não-indiferença, a essa busca de proximidade da distância» (Bauman, 1995). Ora, desejando dar atenção – fazer justiça – à dimensão subjectiva dos processos de devir humano, é necessário aprender a escutar e a traduzir os sinais que vêm desse «outro lado da razão». De novo com Boaventura Sousa Santos (1989), há que ter em conta que «as condições epistémicas das nossas perguntas estão muitas vezes inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta». Os termos a que a razão se habituou a recorrer, sobretudo quando se trata de designar os «seus outros», estão «viciados», constituindo em si mesmos obstáculos à tradução racional. Explica-se deste modo o facto de, entre as prioridades de trabalho actualmente privilegiadas no contexto investigativo da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, concretamente no domínio da pedagogia social, se encontrarem os estudos centrados no questionamento de tipo nocional e a procura de novas linguagens científicas. A sociedade complexa do século XXI requer um pensamento novo, ele próprio complexo e alternativo. Ora, um pensamento deste tipo precisa ser servido por uma linguagem ela também nova, aberta, complexa e alternativa – hospitaleira.

Pedagogia Social – especificidade epistemológica É, pois, num horizonte de mudança paradigmática e no espaço amplo e impreciso das ciências da educação que surge hoje a pedagogia social, trazendo consigo a inevitável interrogação sobre a legitimidade científica da própria 13

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pedagogia, uma área tradicionalmente prestigiada no seio dos saberes educacionais mas que entretanto foi sendo desacreditada em virtude da sua reconhecida ligação ao mundo filosófico e metafísico. Todavia, «expulsa pela porta», a pedagogia parece agora querer «entrar pela janela» por força da necessária resubjectivação do discurso científico. Remetendo para outro contexto o adequado tratamento académico da questão de saber se podemos ou não chamar ciência à pedagogia, situo o lugar científico da pedagogia social neste retorno da pedagogia que, na verdade, é um «retorno das pedagogias», conforme salienta Adalberto Dias de Carvalho (1992). Durante muito tempo confundida com a sociologia da educação (Quintana Cabanas, 1988), a pedagogia social tende hoje a ser aparentada à filosofia da educação, disciplina com a qual, todavia, mantém relações fortes que guardam a memória crítica de uma relação umbilical originária. Sem menosprezar ou temer o contágio da filosofia, muito pelo contrário, desejando-o, recuso aceitar que, enquanto ciência da educação, a pedagogia social seja tomada por uma espécie de teoria geral sobre a intervenção sócio-educativa, funcionando como um saber super-substantivado, gerador de múltiplas especializações susceptíveis de adjectivação indiscriminada e confusa, como se estivéssemos perante uma «espécie de saco sem fundo» para onde podem ser lançadas todas as aprendizagens ditas «não-escolares». Neste sentido, e antes de mais, privilegio o recurso à expressão «aprendizagem social», evitando a designação de «não-escolar», por considerar pouco pertinente nomear uma realidade tão específica e relevante a partir de uma identidade negativa, ou seja, tendo por referência aquilo que ela não é, nem pretende ser. Chamar de «não-escolar» à aprendizagem social faz tanto sentido como denominar a aprendizagem escolar de «não-social». Na realidade, ao ignorar a especificidade distintiva dos universos em referência, acabamos por obscurecer os núcleos de fecundidade produzidos nas zonas de intersecção entre as duas culturas de aprendizagem – escolar e social. O que está em causa é a valorização da educação em todas as suas dimensões e durante toda a caminhada existencial. Nesta medida, o aprender «na e com escola», experiência fundamental e preciosa em qualquer aventura de vida, passa a coexistir em regime de articulação dinâmica com outras formas de educar e aprender, distintas nos tempos e nos modos. O que distingue então estas formas 14

de aprender, justificando a «mútua hospedagem» ou cooperação activa? Que implicações sociais, políticas e organizacionais decorrem dessa ligação? Qual a relação entre a aprendizagem social e o sucesso escolar, por exemplo? São precisamente questões como estas que estão na base de muitos dos projectos de investigação e de acção actualmente em desenvolvimento na área de especialização da pedagogia social no contexto da FEP/UCP. Projectos como: «Escola e Comunidade»; «Mediação Escola-Família»; «Escola e educação ao longo da vida»; «O Educador Social na Escola»; «O Professor Mediador»; «Organização escola e comunidades de aprendizagem», «Inclusão Social da Escola» ou «A Escola como lugar de hospitalidade social». Aceitando as definições veiculadas no documento produzido pela Comissão Europeia – «Tornar o Espaço Europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade» (2001) – sobre os conceitos de «aprendizagem formal», «aprendizagem não-formal» e «aprendizagem informal» e reafirmadas recentemente no plano nacional através do Despacho sobre Reconhecimento, Creditação e Certificação de Competências (cf. IPP/P-098/2007), pode dizer-se que as intervenções enquadradas pela pedagogia social tendem a privilegiar as modalidades de educação não-formal e informal, dado que estas modalidades se referem a uma aprendizagem que não é, necessariamente, dispensada por um estabelecimento de ensino ou de formação e que nem sempre conduz a uma certificação reconhecida nos moldes tradicionais. Contudo, em rigor, estamos perante uma perspectiva bem mais abrangente e complexa, assente no acolhimento de diferentes dimensões de educação e formação, segundo uma lógica compreensiva de «lifewide learning» orientada por objectivos de solidariedade social.

Campo de hospitalidade interdisciplinar e interprofissional Ancorada no reconhecimento da dimensão subjectiva e valorativa que é intrínseca ao conhecimento humano, a pedagogia social apresenta-se no espaço plural das ciências da educação e, de um modo geral, da ciência contemporânea, com uma identidade científica apoiada em dinâmicas de hospitalidade 15

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interdisciplinar e interprofissional. Como vimos, o seu objecto de estudo configura uma variedade infinita de tempos e espaços, em consonância com a pluralidade de exigências que suportam o existir humano. O que em termos epistemológicos faz com que uma das tarefas fundamentais da razão sócio-pedagógica seja, obrigatoriamente, a da interrogação sobre as suas próprias ambições, sobre os seus limites e os seus limiares de hospitalidade. Assumem-se, portanto, como interrogações internas à pedagogia social as que se prendem com a sua ligação a outras disciplinas, a outras pedagogias e a outros domínios de intervenção sócio-educativa. Qual a relação da pedagogia social com a «pedagogia intercultural», a «pedagogia dos tempos livres», a «pedagogia do imaginário», a «pedagogia institucional», a «pedagogia ambiental» ou a «pedagogia intergeracional»? Prolongando as questões levantadas atrás, a propósito da cultura escolar, e tendo em conta o caminho a fazer na realização da utopia de uma educação ao longo da vida, até que ponto, e de que modo, faz sentido articular a pedagogia social com a «Educação de Adultos», por exemplo? Reside justamente aqui uma das características fundamentais da pedagogia social e um dos seus contributos mais interessantes para o debate epistemológico contemporâneo, particularmente no seio das ciências da educação. Ao instituir-se como um saber matricialmente dependente da qualidade das interfaces produzidas na relação com outros saberes, a pedagogia social oferece um capital de conhecimento decisivo na construção de novos modelos de inteligibilidade, traduzidos, forçosamente, em novos esquemas de acção. Com isto não se pretende, de modo algum, pôr em causa a validade e a pertinência do saber disciplinar. Se assim fosse, como poderíamos falar ainda em interdisciplinaridade? O que acontece é que estamos perante um modelo de racionalidade que, dada a natureza transdisciplinar do seu objecto de estudo é incompatível com a existência de «mentalidades fortaleza», próprias da lógica positivista. As mentalidades fortaleza tendem a produzir um conhecimento segmentado por especializações de ordem disciplinar que, por sua vez, favorece intervenções sectoriais e parcelares, desenhadas para «populações» tipificadas e sinalizadas como «alvo» tendo por base o «diagnóstico» de «défices» ou carências psicossociais. Numa espécie de efeito em cadeia, esta cultura de acção «em fragmentos» acaba por alimentar atitudes profissionais de carácter corporativista, gerando o fenómeno a que Meirieu (1993) chama de «associação mole», 16

referindo-se a ambientes de equipa pobres em diálogo interprofissional, onde, em nome da pretensa «harmonia» do grupo, se evitam os incómodos inerentes à verdadeira interacção, sacrificando assim os valores de autenticidade e coerência. As respostas públicas à «questão social» passarão sempre, e necessariamente, por uma atenção privilegiada à situação concreta das pessoas identificadas como especialmente vulneráveis e carentes de ajuda. Os seus sofrimentos, dramas e anseios pessoais apelam a medidas de urgência. Mas estaremos a hipotecar a mudança social positiva se nos mantivermos no quadro de respostas sociais de assistência, circunscritas a zonas de atenção prioritária. Como mostrou Robert Castel (2007), «se nada mais for feito, a luta contra a exclusão corre o risco de se reduzir a um pronto-socorro social», intervindo «aqui e ali» sem chegar a atender aos processos que produzem as situações de urgência. Só um processo de construção solidária do conhecimento, apoiado em dinâmicas de hospitalidade interdisciplinar e interprofissional permite gerar leituras adequadas à multidimensionalidade dos fenómenos educativos e sociais. Este esforço depende muito da forma como, no plano da realização prática, os saberes teóricos forem sendo «incorporados», vividos e conceptualizados pelos sujeitos que protagonizam a intervenção sócio-educativa. Salientando, porém, que as percepções dos técnicos são importantes e decisivas, mas na medida em que elas resultam de um diálogo reflexivo, e comprometido, com as pessoas e as situações.

Pedagogia e Social e Educação Social A história da pedagogia social é uma história viva e, como tal, permanentemente reactualizada e reescrita por investigadores-actores, na sua qualidade de herdeiros conscientes – simultaneamente fiéis e infiéis – de um passado, de um património e de uma tradição. Tomando apenas como referência o contexto europeu, onde se pode dizer que nasceu a pedagogia social enquanto disciplina explicitamente autónoma, mais precisamente na Alemanha recém industrializada do século XIX, são múltiplos e imensamente ricos os contributos que alimentam hoje a cultura científica da pedagogia social. De tal modo que um 17

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dos desafios de estudo mais pertinentes nesta área de conhecimento se prende, justamente, com o levantamento da história e pré-história da pedagogia social. Sem qualquer pretensão a este respeito, e sem querer desvalorizar a pluralidade de experiências internacionais, escolho destacar o caso da vizinha Espanha. Não só pela qualidade e diversidade da respectiva produção científica, desenvolvida em décadas de trabalho, mas também pela forma como esta tradição tem marcado o panorama nacional que podemos considerar ainda em fase de emergência. Os autores espanhóis parecem convergir para a definição da pedagogia social como ciência da «educação social», identificando como tal todo o universo prático da educação dita «não-escolar» (Caride, 2005; Nunez, 2002). É esta também a linha de pensamento inicialmente assumida por Maria João Couto, autora de um dos primeiros trabalhos académicos produzidos nesta área em Portugal – «Da Comunicação entre diferenças, reflexões em torno da educação social e do seu sentido» (Tese de Mestrado em Filosofia de Educação, FLUP, 1996). Por razões que transcendem a divergência terminológica, considero pouco adequado identificar como «educação social» a totalidade do campo empírico da pedagogia social. A meu ver, a educação social corresponde a uma área muito específica dentro do universo vasto e multifacetado da pedagogia social, referindose à praxis educativa desenvolvida no campo tradicionalmente identificado como de «trabalho social», onde hoje é chamada a conviver com outros saberes. Assim o atesta o processo de afirmação histórica da profissão de educador social em Portugal, em particular na última década, e que a este nível tem vindo a evidenciar a tendência para uma maior aproximação à tradição europeia de matriz anglosaxónica onde temos «Escolas Superiores de Educação Social e Trabalho Social». As análises produzidas no âmbito dos programas de investigação e formação desenvolvidos pelo projecto de pesquisa «European Social Ethics Project», promovido pela rede europeia ESEP/FESET2 actualmente dirigida por Helene

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FESET – Formation d’Educateur Sociaux Eurpéens; European Social Educator Training (www. Feset.dk). Sob o patrocínio desta federação europeia e enquadrados pelas actividades da rede ESEP (European Social Ethics Project), os estudantes da turma de Mestrado de Pedagogia Social UCP (2007-09) e os técnicos UCP/TCA (Trofa Comunidade de Aprendentes», participam de uma pesquisa sobre «ética intercultural», coordenada internacionalmente por Anne Liebing, University College Sealand, Faculty of Social Education and Social Work, Roskilde, Dinamarca.

Petterson (Universidade de Kalmar, Suécia), permitem-nos concluir igualmente pela pertinência dessa aproximação. Este ambicioso projecto de investigaçãoformação-acção, centrado no «ethos dos trabalhadores sociais», encontra-se em desenvolvimento desde 1998, por proposta e coordenação inicial de Sarah Banks (Universidade de Durham, Reino Unido), reunindo desde então docentes e investigadores de vinte instituições e envolvendo dezenas de estudantes e profissionais de diversas nacionalidades europeias, incluindo Portugal (cf. FESET, 1999; Carvalho & Baptista, 2003, 2004; Banks, 2003). Todos os estudos realizados neste contexto convergem para o reconhecimento da pertinência, e diferença, da mediação pedagógica no interior das dinâmicas de protecção e apoio social. Por outro lado, e pelas razões já indicadas, a intervenção sócio-educativa não é redutível a uma «pedagogia de socorro», inserida naquilo a que se convencionou chamar «área de exclusão social». Numa sociedade «vulnerável e precária» (Castel, 1995) onde o trabalho deixou de funcionar como o grande factor de integração e coesão, é necessário promover uma outra lógica de acompanhamento das trajectórias de vida. A experiência contemporânea associada ao fenómeno de exclusão evidencia a necessidade de uma intervenção mais a montante, reencaminhada para o coração da vida social onde começam os complicados processos de vulnerabilização humana. Aliás, é a própria categoria de «exclusão» que se revela insuficiente e, a muitos níveis, inadequada para descrever o carácter enredado e labiríntico destes processos. Por esta razão, a especificidade do contributo da educação social no seio da «acção social» deve medir-se também, ou principalmente, pela sua filiação conceptual e metodológica a um universo mais vasto de problematização e acção que dá pelo nome de pedagogia social. Recordando palavras de Pierre Ceyrac, padre jesuíta laureado com o grande prémio da Academia Universal das Culturas, num testemunho sobre a sua imensa experiência no plano das organizações humanitárias apresentado num debate promovido pela UNESCO (Paris, 2003), a interpelação vinda do rosto dos «pobres e excluídos», em consequência da sua dramática experiência de vida, tem o poder de nos lembrar o sentido fundacional da humanidade – ou vulnerabilidade – comum. Para que aconteça verdadeira solidariedade é necessário que algo venha despertar o mais fundo da consciência humana, provocando «compaixão». E, 19

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nessa medida então, são de facto «eles», os nus e os famintos, que nos ensinam a arte do encontro e da partilha, o segredo da verdadeira salvação. O sentido da vida em sociedade é indissociável do respeito pelo mistério que define ontologicamente cada pessoa justificando a necessidade, e a fecundidade, da prática intersubjectiva. É essa separação ontológica que, explicando a unicidade de cada ser humano, nos permite entender o pluralismo enquanto princípio de democracia, paz, justiça e solidariedade. As pessoas – todas as pessoas – são seres únicos, misteriosamente em trânsito e em desenvolvimento e, nessa condição, partilhando «o mesmo barco» na aventura de ser mais, melhor, diferente. Ou, evocando Lévinas, mais exactamente na aventura de procurar ser «para lá do simplesmente ser». Isso significa que ninguém está livre da ameaça de naufrágio mas também, e sobretudo, que o sucesso, a felicidade e a «boa sorte» da viagem, pessoal e colectiva, dependem de uma estratégia comum. Somos todos «sujeitos de ajuda». Precisamos todos de «ser salvos». E, importa não o esquecer, ninguém se salva sozinho.

Esteios de racionalidade sócio-educativa Como notou Paciano Fermoso (1994), basta pesar a polissemia dos termos em conjugação – «pedagogia» e «social» –, para compreender a dificuldade de fundamentação de uma ciência como esta. Considerados isoladamente ou em articulação, os dois vocábulos remetem-nos para uma teia de significados muito intrincada, urdida numa malha histórica com raízes na antiguidade clássica. As remissões mais frequentes reconduzem-nos à tradição greco-latina, começando pelo ideal pedagógico da «polis» expresso na «paideia» grega e prolongado na «civitas» romana. Mas há que considerar igualmente a riquíssima experiência das escolas populares e o extraordinário capital de conhecimento produzido pelos movimentos sociais que animaram as lógicas de desenvolvimento sóciocomunitário durante século XX, na sua maioria, tributários da Doutrina Social da Igreja e das correntes socio-políticas de inspiração marxista. São efectivamente múltiplos os veios que alimentam a corrente de sentido que suporta a pré-história e a história da pedagogia social. Contudo, é possível, e pertinente, identificar nesta corrente algumas das fontes de inspiração que melhor ajudam a entender as configurações contemporâneas: 20

a) A ligação entre educação e solidariedade, originariamente associada às práticas de beneficência e de «ajuda» a pessoas e grupos humanos considerados como excluídos ou susceptíveis de exclusão, como a infância e a juventude. Uma orientação especialmente notória na última metade do século XX, numa época profundamente marcada pelos cenários de urgência que caracterizaram o «pós-guerra». b) A proximidade às ideologias e às doutrinas sociais, vocacionadas para a preparação moral e cívica dos indivíduos, dando neste caso especial atenção à formação do ser humano numa perspectiva de desenvolvimento de competências de vida em sociedade. c) O reconhecimento da função educadora da própria sociedade, girando em torno do potencial pedagógico das cidades e das suas comunidades, dos seus lugares públicos e institucionais e valorizando também os chamados tempos livres e as modalidades informais de aprendizagem. Os dois últimos aspectos correspondem curiosamente à dualidade proposta por Paul Natorp, um dos reconhecidos fundadores da pedagogia social, que sublinhava o papel socializador da educação e simultaneamente o papel educador da sociedade (Quintana Cabanas, 1988; Fermoso, 1994; Cólon, 1988). Procurando acolher criticamente estes contributos num esforço de reconceptualização configurado pelas interpelações vindas da sociedade educativa, atrevo-me a indicar as acepções de pedagogia social que me parecem mais pertinentes na actualidade, assumindo para o efeito os riscos inerentes a uma sistematização inevitavelmente redutora. Quando usamos a expressão «pedagogia social» podemos estar a referirmo-nos a: 1) Uma ciência – Inserida no campo epistemológico das ciências da educação e tendo como objecto de estudo a aprendizagem social, em conformidade com o ideal de uma educação ao longo de toda a vida num cenário de religitimação histórica do Estado providência. Forçosamente indexada a uma perspectiva humanista, hospitaleira, sensível e capaz de heterodoxia, a racionalidade sócio-pedagógica assume a exigência de circularidade 21

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epistémico-antropológica como condição de inteligibilidade interdisciplinar, ocupando, nessa medida, um lugar incontornável na definição de novos paradigmas e linguagens científicas. 2) Uma disciplina académica – A ser incluída nos currículos de ensino superior, em todos os seus ciclos de formação, tendo em conta as exigências de uma aprendizagem social no seio de uma sociedade que pretende ser educativa. Em particular, nos cursos que à partida se apresentam como explicitamente vocacionados para a intervenção pedagógica, escolar ou social. Considerando, todavia, que o campo de acção enquadrado pela razão sócio-pedagógica tende hoje a abarcar múltiplos cenários educacionais, procedentes das mais diversas áreas de conhecimento, desenvolvidos numa pluralidade de contextos de intervenção e, como tal, reclamando um quadro muito vasto e diferenciado de perfis formativos. 3) Um saber técnico-profissional – Um conhecimento de carácter teóricoprático que pode funcionar como saber profissional de referência para uma pluralidade de actores sociais. Nalguns casos, a pedagogia social pode mesmo ser assumida como saber matricial, nomeadamente em áreas com maior autonomia técnica, como acontece hoje em Portugal com a Educação Social e a Animação Sóciocultural. 4) Uma filosofia de acção – Uma cultura de trabalho orientada para a promoção de laços sociais significativos entre pessoas, instituições e comunidades, funcionando nesta medida como uma antropologia prática associada a valores de humanismo de carácter relacional. Nesta acepção, a pedagogia social tem tendência a aparecer adjectivada de múltiplas formas, de acordo com a dimensão axiológica privilegiada. A opção conceptual por uma antropologia da alteridade encaminha-nos para a defesa de uma «pedagogia de proximidade humana» ou «pedagogia de hospitalidade social».

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Como se disse, estamos perante facetas de uma mesma realidade, todas elas válidas e pertinentes, sendo que nenhuma é redutível à outra. Também aqui, a parte nunca poderá ser confundida com o todo que é pedagogia social, sob pena de desvirtuarmos a sua cientificidade, conforme alerta José António Caride. «Não podemos confundir a construção do estatuto epistemológico de uma ciência ou de uma disciplina científica – neste caso a pedagogia social – com o que muitas vezes não é mais do que um dos modos de pensá-la e praticá-la» (2005). Daí que seja necessário vertebrar a pedagogia social em eixos de inteligibilidade claros e precisos, traduzidos em domínios de acção igualmente bem identificados. .

Áreas e domínios estratégicos de acção O processo de desenvolvimento humano corresponde a um caminho sempre em aberto, marcado por incontornáveis factores de incerteza e complexidade, como se disse, mas isso só contribui para reforçar a necessidade de decisão e de aposta estratégica. Neste sentido, e considerando as interpelações vindas da nossa contemporaneidade, podemos identificar como áreas e domínios estratégicos da pedagogia social os seguintes: I) Educação Social – Intervenção educacional especificamente direccionada para o apoio a pessoas e grupos humanos identificados como vulneráveis e carentes de atenção prioritária. Situada no interior da chamada «acção social», a intervenção pedagógica assume exigências de especialização muito próprias, em conformidade com a singularidade dos problemas e das situações, mas funcionando sempre como mais do que «uma pedagogia de urgência», de acordo com um sentido integrado e integrador do processo de desenvolvimento humano. II) Educação, trabalho e emprego – Promoção de condições de realização laboral dos sujeitos num contexto de inserção socioprofissional marcado por factores de complexidade e precariedade associados à mutação permanente de lugares, papéis e funções. Subordinadas a princípios de uma racionalidade hospitaleira, isto é, inscritas num quadro prospectivo 23

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irredutível a lógicas circunstanciais de carácter meramente economicista, as estratégias de formação para o emprego equacionadas no âmbito da pedagogia social visam ampliar o horizonte de possibilidades das pessoas, consideradas na integralidade da sua condição humana e não como meros «recursos», contribuindo desse modo para a criação de oportunidades de vida e de trabalho originais e empreendedoras. Entendido como parte fundamental, mas não exclusiva, do «direito social de inserção», o direito ao trabalho surge neste contexto obrigatoriamente articulado com outros direitos sociais. III) Educação e formação de adultos – Apoio e incentivo a processos intencionais de formação ao longo da vida, desenvolvidos «na e com a vida», acessível a todos os cidadãos segundo princípios de hospitalidade cívica, cultural, geracional e profissional. Explorando linhas de intersecção entre a pedagogia escolar e a pedagogia social, assume aqui especial importância a especificidade de uma mediação pedagógica vocacionada para a «construção da procura» de aprendizagem. Trata-se não só de detectar e gerir assistenciamente necessidades de formação, mas também, ou sobretudo, de ajudar a despertar «fomes de invisível» em pessoas de todas as idades. IV) Educação e Ambiente – Consciencialização para a sustentabilidade enquanto condição de desenvolvimento solidário, inscrevendo o ambiente no seio de uma cultura de responsabilidade cívica que procura ter em conta a hospitalidade do próprio mundo natural – fonte de alimento, de sustento e fruição mas não recurso inesgotável. Na defesa da qualidade ambiental está em causa a qualidade de vida das gerações contemporâneas mas também a das gerações ainda por nascer, dando assim expressão ao respeito pelo futuro enquanto tempo de alteridade por excelência. A pedagogia social pode neste aspecto desenvolver uma colaboração profícua com o que hoje se designa por «educação ambiental», sem, todavia, se confundir com ela. V) Educação e Cidade – Uma pedagogia desde e para a cidadania, considerando a miríade de conexões que envolvem a relação entre a 24

educação e a cidade. Valorizada simultaneamente como contexto, como conteúdo e como agente de educação, em consonância com o ideal das «cidades educadoras», mas na consciência de que o direito à cidade educadora se cumpre, antes de mais, como direito à cidade. O que implica dar atenção aos processos de apropriação pessoal e cívica dos lugares urbanos, alinhado o «fazer cidade» com um «fazer sociedade». VI) Educação e políticas públicas – Pela relevância socio-política do saber a que se reporta, a pedagogia social ocupa um lugar decisivo na definição e regulação das medidas que configuram o espaço público da educação e da solidariedade social, concretamente no desenho de modelos integrados de intervenção, segundo uma lógica que procura evidenciar o papel do Estado no apoio à acção dos próprios técnicos, instituições, comunidades, movimentos cívicos e cidadãos em geral. Reconhecendo a pluralidade de preocupações de natureza antropológica que hoje configuram a chamada «questão social», a pedagogia social pode ainda assumir a forma de uma medida política específica. Indicadas sem obediência a qualquer ordem hierárquica e na consciência dos factores de subjectividade e ambivalência inerentes à responsabilidade de uma escolha, estas áreas não esgotam, evidentemente, o universo de intervenção da pedagogia social. Por outro lado, e tal como foi sublinhado, importa reter que a pedagogia social intervém em todos estes domínios numa postura de compromisso com o diálogo interdisciplinar, apresentando-se com espírito de identidade nos territórios comuns e, dessa forma, aventurando-se em espírito de hospitalidade nas zonas de encontro, de fronteira ou de limiares científicos.

Autoridade pedagógica e formação contínua: a interprofissionalidade como exigência ética Indexado a uma matriz epistemo-antropológica de carácter humanista, o exercício prático da pedagogia social apoia-se em iniciativas originais e contextualizadas, desenvolvidas em ambientes relacionais muito complexos e 25

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variados. Um trabalho desta natureza requer espaços de autoridade pedagógica de elevada exigência técnica e ética. Por «autoridade pedagógica» entende-se a capacidade para, em situação educativa, nos afirmarmos como sujeitos de decisões tecnicamente sustentadas. O que nos conduz à questão de saber quais os valores e as competências que devem balizar o espaço de autoridade pedagógica dos «pedagogos sociais». Na verdade, quem são, ou quem podem ser, os autores de mediação sócio-pedagógica? Tomando como referência privilegiada a experiência da FEP/UCP nesta área de formação3, pode afirmar-se que, exigindo profissionalidade e preparação, o saber sócio-pedagógico não remete para uma autoridade profissional exclusiva, podendo constituir referência normativa para uma pluralidade de agentes de desenvolvimento humano. Sem que, todavia, tal obste a que muitos profissionais possam, legitimamente, reclamar a pedagogia social como um saber matricial. Em Portugal o caso dos educadores sociais e dos animadores socioculturais parece-me emblemático a este respeito, estes dois grupos têm vindo a adoptar a pedagogia social como seu saber profissional de referência ao mesmo tempo que pugnam pelo reconhecimento público da sua identidade distintiva. Tal como tem vindo a ser estudado e concretizado no seio da UCP, o processo de apoio à definição do ethos dos «pedagogos sociais» privilegia modelos de actuação próximos dos actores e das situações experienciais, segundo uma lógica de «problem-oriented project work» alicerçada numa preparação académica exigente, do ponto de vista cientifico, técnico e ético. Enunciado em termos sintéticos este processo passa por: - Projectos de investigação-acção promovidos no âmbito de parcerias institucionais ou inseridos nos cursos de mestrado e doutoramento. - Promoção, acompanhamento, acreditação cientifica e certificação de «comunidades de prática» ou «núcleos de aprendizagem cooperativa». 3

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Desde 2004 que a FEP/UCP, dirigida por Joaquim Azevedo, vem promovendo programas de formação pós-graduada na área da Pedagogia Social (cursos de especialização, mestrados, doutoramentos), projectos individuais de formação-acção (tutoriado pedagógico) e dinâmicas de formação contínua ligadas aos vários projectos de intervenção sócio-educativa que decorrem sob a supervisão cientifica da UCP, abrangendo mais de duas centenas de técnicos, oriundos de diferentes áreas de actividade, detentores de perfis académicos diversos e que, por sua vez, actuam como mediadores de formação numa pluralidade de contextos sociais. (Cf. Revista Cadernos de Pedagogia Social. (1). UCP. 2007; www.porto.ucp.pt; www.trofatca.pt)

- Dinâmicas de tutoriado pedagógico, dirigidas a partir da equipa de «tutores académicos» e replicadas numa pluralidade de contextos através de redes e sub-redes de tutores e mediadores de aprendizagem, tendo por base protocolos específicos com projectos e instituições. - Participação activa em associações, redes e parcerias científicas, nacionais e internacionais. - Produção de guias didácticos, cadernos pedagógicos e publicações científicas. - Oferta permanente de cursos de especialização em regime de formação pósgraduada, centrados em áreas de interesse emergentes dos contextos de investigação e acção. 4 Em termos de supervisão científico-pedagógica, conceptualização e formalização de experiências, este esquema articulado de formação-acção é dinamizado pela equipa de investigadores da FEP, formalmente enquadrada pelo Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano (CEDH/UCP). Apela-se aqui, portanto, para o carácter normativo e, em boa medida, prescritivo que caracteriza o saber pedagógico mas na medida em que se trata de saber intimamente ligado a uma prática, da qual se alimenta e à qual fornece alimento. Procurando aliar as qualidades de inteligência reflexiva a uma sabedoria ética capaz de enlaçar os universos de fundamentação e de aplicação, procura dar-se especial atenção à promoção de aptidões subjectivas e cívicas dos próprios técnicos, atendendo à sua responsabilidade enquanto agentes de subjectivação e de proximidade humana. Valorizada como conteúdo curricular ou como preocupação subjacente e norteadora de todos os projectos, seja ao nível da orientação de itinerários pessoais ou da dinamização de equipas de supervisão pedagógica, a Ética ocupa neste sentido um lugar central em todas as práticas formativas. Retomando a questão levantada por Philipe Meirieu sobre as «associações moles», considera-se que a sensibilidade relacional dos pedagogos sociais 4

No que se refere a cursos, no ano de 2007 o plano de formação contínua correspondeu à seguinte oferta: «Mediação Social» (Porto); «Gestão de projectos de intervenção comunitária» (Porto); «Ética e intervenção» sócio-educativa» (Porto); «Acção sócio-educativa» (Évora); «Hospitalidade e Pedagogia Social» (São Paulo, Brasil).

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constitui uma aptidão profissional inseparável das suas próprias competências de interioridade ou «auto-hospitalidade». Parafraseando Meirieu (1993), a intervenção pedagógica não pode constituir um exercício solitário e a gestão da complexidade requer, cada vez mais, hábitos de cooperação. Acontece, porém, que esta só é possível, só tem sentido, entre sujeitos livres, capazes, enquanto tal, de hospitalidade intersubjectiva. Como tal, associando a existência de princípios éticos comuns, condição de referência identitária, ao desenvolvimento de uma consciência individual marcada por valores de hospitalidade, responsabilidade e bondade, aposta-se na interprofissionalidade como exigência ética resultante da necessidade de trabalho «em rede» mas também, ou fundamentalmente, do imperativo de construção solidária do saber. A essência de uma equipa multiprofissional de sucesso reside na mistura de objectivos e valores partilhados ao mesmo tempo que se abre espaço para a revelação da contribuição pessoal e distintiva (Banks, 2004). A interprofissionalidade surge-nos, pois, como algo que precisa ser trabalhado, como um valor ou ideal a atingir, e não como um bem preexistente e previamente garantido. Ou, muito menos ainda, como algo que possa ser burocraticamente decidido e imposto de fora. Também aqui, a grande prova de afirmação de identidade, neste caso profissional, reside no modo como os valores próprios são colocados «à disposição» de outros, produzindo comunidade. Em suma, a inserção da pedagogia social no quadro de prioridades da investigação e acção educacionais constitui hoje um factor crucial para a concretização de políticas sócio-educativas capazes de dar expressão aos ideais de humanidade e cidadania num tempo cheio de dificuldades, de ameaças e «sombras negras», mas também muito auspicioso e desafiante. Este esforço pede uma mentalidade académica e científica forte, capaz de hospedar diferentes culturas disciplinares e profissionais.

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Estatuto antropológico e limiares epistemológicos da educação social Adalberto Dias Carvalho

Resumo O presente artigo desenvolve a temática do estatuto da educação social enquanto disciplina de confluência e síntese de vários saberes e enquanto prática de intervenção. Para o efeito questiona a sua relação com as ciências da educação e com a pedagogia social, a par das suas conexões com a ética e a política. Numa perspectiva essencialmente hermenêutica indaga-se ainda o complexo desafio que as situações-limite e o contrato social colocam à sociedade civil impondo que esta promova o exercício de uma cidadania responsável, dimensão em que a educação social tem um papel fundamental.

1. A educação social como praxiologia e os desafios da ética A Educação Social é uma prática que, enquanto tal, tem incorporada uma teoria. Poderá também ser olhada como uma acção teoricamente estruturada. Numa palavra, poderemos defini-la como uma praxiologia, termo que foi

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Gabinete de Filosofia da Educação do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Colaborador no Mestrado de Pedagogia Social FEP/UCP.

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amplamente utilizado pelas ciências da educação ou pelas ciências pedagógicas enquanto estas se perfilaram, após a emergência daquelas, como expressões do discurso reflexivo da prática. Entretanto, se é verdade que as ciências da educação adoptaram os paradigmas de ciências humanas pioneiras como a psicologia e a sociologia, daí tendo tirado algumas vantagens, em termos de afirmação, e outros tantos prejuízos, em termos de identidade, eis que a educação social tende a reeditar o mesmo modelo de subsidiariedade epistemológica, mas tendo agora como referência as próprias ciências da educação. Por esse facto, se, sem mais, permanecer nesse estádio, tende a reeditar alguns daqueles problemas. Paralelamente, os desafios da prática colocam-se com uma especial acuidade, solicitando e rejeitando, num mesmo e contraditório movimento, a racionalidade teórica. Este fenómeno ocorre porque, precisamente como no domínio da educação formal, o saber científico da educação social, quando procura construir uma prática decorrente da configuração do seu objecto teórico, confronta-se com toda uma realidade tecida por um saber empírico já constituído, institucionalmente organizado e consolidado pela tradição. Tratando-se de um saber intimamente ligado a actividades profissionais, o poder em causa integra ainda, por vezes, uma dimensão corporativa. A tendência é então para o tribunal da verdade se instalar no senso comum, aceitando este da ciência apenas o que pode acatar sem pôr em jogo a sua lógica e o seu poder. Deste modo, implanta-se um jogo de lógica e de poder – ou a lógica de um poder – em que, pela rotina, se sedimentam valores morais, contudo, hoje em dia, frequentemente desafiados pelos limiares críticos da inovação científica e da falência de vários dos modelos sociais historicamente prevalecentes. Perante a crise que assim emerge, apela-se à reconfiguração dos códigos de ética, por vezes, para se dar lugar à possibilidade de referenciais axiológicos consentâneos com as novas realidades e paradigmas gerados pela ciência, pela técnica bem como por representações e práticas sociais alternativas; outras vezes, pura e simplesmente para, através da estratégia de uma nova legitimação, se suster o que é visto como uma ameaça aos valores tradicionais entretanto identificados como detendo a própria essência dos valores. Trata-se de uma autêntica ontologia axiológica. Acresce que num quadro como este em que o relativismo ganha espaço não só a fundamentação ética aparece como sendo relevante como, em estreita 32

articulação com ela, se impõe a urgência de cartas deontológicas. Simplesmente, se a transcendentalidade da Razão permitia a Kant radicar a deontologia no âmago da ética – a ética era aí imperativa -, contemporaneamente, essa co-emergência da ética e da deontologia – ou apenas de uma ética deontológica – é impossível. A imperatividade, ainda que procurada mediante a falência, ou crise, dos sistemas normativos tradicionais, é mal aceite por uma ideologia dominante que tende a valorizar a individualidade das pessoas numa óptica individualista que é, assim, reducionista. Concomitantemente, o “sono dogmático”, para cujo despertar apelou Foucault em As Palavras e as Coisas, não é mais aceitável, abrindo-se por esta via campo, enquanto último reduto da possibilidade de uma ética universal, às éticas dialógicas em que o papel dos argumentos – e dos acontecimentos aí situados – é privilegiado, preterindo-se a solidez e a anterioridade metafísica dos fundamentos que permitiram a enunciação das grandes declarações, fossem estas políticas, sociais ou profissionais. No fundo, é também de uma crise de fundamentação – tradicionalmente remetida para o direito natural, podendo este assentar na natureza divina, humana ou material, natureza esta entretanto questionada em todas as suas dimensões – de que padecem actualmente as próprias declarações dos direitos humanos, elas mesmas sendo, em última análise, as grandes cartas deontológicas da modernidade. O que está então verdadeiramente em causa? Pensamos que a viabilidade e a legitimação da responsabilidade entendida como suporte das relações sociais, responsabilidade a plasmar sob a forma de contratos sociais que vinculem as pessoas e as organizações a princípios decisivos para a coexistência e coesão sociais. Será aqui, aliás, que ganha força o reconhecimento de uma sistemática conceptual que gradue as noções de indivíduo (sem mais), de indivíduo na sociedade e de indivíduo social, indo, portanto, de uma concepção estritamente individualista que destaca sobretudo a independência daquele, até à de um indivíduo cuja autonomia se tece nas próprias relações sociais, passando por uma perspectiva monadológica que crê na regulação natural e a priori das conexões indivíduo-sociedade. O que se vai esboçando cada vez com mais força é a questão da esfera normativa - da sua emergência, estatuto e abrangência – entendida como cimento da identidade social pela imposição de espaços axiológicos e referenciais comuns e consequente retracção da liberdade individual. 33

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No quadro das “morais da convicção”, assim identificadas por Max Weber, claro que tudo era bem mais simples neste aspecto pois a partilha da mesma crença religiosa assegurava, por inerência, a partilha em termos de consciência moral, dos mesmos valores e da homogeneidade das respostas individuais – de todos os indivíduos – perante o mesmo Deus, com igual grau de implicação e de responsabilidade. Ou seja, a responsabilidade não pressupunha nenhum acordo prévio – como tal, discutível e susceptível de ser ou não assumido – mas antes a obediência à própria raiz inalienável da dignidade da natureza humana. Tudo estava no domínio do verdadeiro e do falso, sendo que correspondendo o falso à falta moral e a verdade à virtude e à beatitude, não restavam alternativas antropológica e humanamente válidas para opções fora do domínio da Verdade. A responsabilidade decorria então da assunção plena da dignidade humana, a qual, ao ser de natureza religiosa, era por inerência moral e, portanto, imperativa relativamente às consciências cuja unidade se fazia pela comum filiação divina e nunca por uma liberdade individual socialmente reconhecida. É que a coesão da sociedade assentava, como vimos, na homogeneidade moral e antropológica das consciências individuais sem que houvesse lugar a uma consciência social intersubjectivamente construída. Mesmo em Rousseau, a noção de “vontade geral” expressava justamente isso mesmo, designadamente na ideia de indivíduo genérico que, na sua natural comunidade intra-individual, viabilizava o contrato. Estávamos aqui muito longe, apesar de algumas semelhanças terminológicas, da perspectiva democrática de responsabilidade social, a qual vê o contrato como o resultado de um acordo que surge num segundo momento da edificação das organizações – que admite, por isso, as oposições, as negociações e os dissensos - e não como a simples emanação da similitude das pessoas, de um seu desdobramento metafísico, que, pelo encontro e pela obediência às suas consciências, comungavam do mesmo fundamento – transcendente ou transcendental – divino ou racional. As éticas da discussão, tal como expressamente o assume J. Habermas em De l’Éthique de la Discussion (trad. franc.), afirmam-se “contra o cepticismo axiológico”, em nome de um “consenso racionalmente motivado” e na sequência da “busca de um universal que, não ignorando os contextos reais, não seja também abstracto”. Deste universal, designado por “universal pragmático”, diz o autor ironicamente que não é “um ponto de vista de Deus” mas antes “o ponto de vista de nós”. 34

Esta posição de Habermas representa uma tentativa de superação das dificuldades que se levantam à reflexão moral com a desconstrução dos fundamentos – cosmológicos, teológicos, ontológicos ou racionais a priori – dos princípios da liberdade e da responsabilidade e consequentes riscos de relativismo ou até de niilismo que, aliás, Nietzsche protagonizou, entre outras obras, em Assim Falava Zaratustra e em A Genealogia da Moral. Em todas as circunstâncias, a verdade é que a responsabilidade, mediante as desconfianças instauradas em relação às éticas da convicção, não pode mais ser encarada numa reduzida dimensão subjectiva para exigir uma articulação desta com a vertente objectiva da ética, isto é, considerando, a par das crenças de cada um, as consequências dos actos. Isto é tanto mais exacto quanto, hoje em dia, se impõe a necessidade de conciliação entre os espaços privado e público, ao mesmo tempo que a emergência das chamadas tecnociências cria enormes dificuldades a que se imponha uma definição simbólica do homem – e da eticidade -, a qual autorizava anteriormente que o dever-ser fosse colocado dentro dos limites do ser, fenómeno que as convicções cristalizavam e exprimiam na normatividade das regras morais. Ora, a tentativa de legitimação de novas formas de acordo normativo através do diálogo e da discussão – atitudes consideradas normais no contexto das relações interpessoais – traz consigo a questão da justiça e não tanto a da “vida boa”, a par da valorização da aplicação sobre a problemática dos fundamentos. Privilegiado o caminho que parte do ponto de vista de cada um para os consensos e os acordos, eis que a nova “moral deontológica” – preocupada com a legitimação da validade prescritiva - remete principalmente para uma “teoria do juízo” e não para uma “teoria da obrigação”. As questões práticas são, pois, susceptíveis de uma “verdade encontrada argumentativamente”. Diferentemente de Kant, a razão teórica coincide em Habermas com a razão prática e não a precede. Em Kant, importa recordá-lo, a razão pura proporcionava-nos a lei sobre a qual repousava toda a moralidade, a qual implicava a subordinação, em nome da autonomia e da liberdade do Homem, da vontade relativamente a essa mesma lei (racional). O dever decorria deste respeito pela lei, o qual impunha paralelamente a rejeição das tendências sensíveis.

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2. Configuração do estatuto antropológico da educação social É neste novo quadro paradigmático que a educação social – enquanto matéria científica intradisciplinar na confluência de contributos investigativos diversos e enquanto prática multidimensional - ganha especial acuidade. Isto porque, com a falência dos sistemas axiológicos dogmáticos e o reconhecimento das prerrogativas e responsabilidades das pessoas enquanto sujeitos dotados do direito – e do dever - de estabelecer acordos e contratos de alcance social que a todos afectam, se impõe que todos usufruam das necessárias condições e competências para tal. Trata-se assim de uma perspectiva a partilhar por todas as frentes do trabalho social. É que, ao assumir-se a incontornável dimensão educativa das intervenções sociais, rejeita-se liminarmente a óptica assistencialista, a qual permitia e favorecia até a ideia de que o trabalho social era uma decorrência ou uma emanação das lógicas das ideologias sociais e políticas. O Estado providência comportava e assumia isso mesmo pelo que o trabalho social se apresentava aí, no seu conjunto, como um braço da democracia social de que ele era autor e onde era actor o poder político que o representava. Acontece que a educação social se tenta apresentar hoje como usufruindo de uma autonomia que, perante a recusa de uma qualquer sacralização do Estado providência – que acompanhou o seu apogeu – e a inerente valorização da chamada sociedade civil, carece de uma legitimação diversa da estritamente política. Entretanto, com a crise dessa concepção de Estado e a constatação das suas contradições e limiares, ganham especial relevo as situações-limite e os percursos que a elas conduzem, ou seja, situações sociais como a pobreza, o desemprego e todo o tipo de discriminações, bem como os itinerários de ordem económica, laboral, educativa e política que nelas desembocam. Por outras palavras ainda, a educação social está particularmente atenta não tanto à exclusão como um estádio negativo mas provisório no seio de uma sociedade politicamente coerente e progressivamente realizada pelas utopias democráticas, mas sobretudo aos mecanismos perversos que, nas nossas sociedades, produzem uma exclusão endémica e, por isso, sempre iminente. A atenção efectiva às situações-limite exige a capacidade de cada um ser protagonista dos seus projectos de vida e, dessa maneira, gerir a precariedade antropológica das 36

organizações sociais para que deve contribuir, a quem deve exigir mas de quem não deve esperar uma protecção tutelar. A cidadania, como aliás todos os direitos que a constituem, para além de ser, em concreto, universalmente alargada – e não apenas por abstracção – , abandonou contemporaneamente e em definitivo a ideologia feudal, não mais sendo por isso outorgada ou simplesmente reconhecida, para ser antes edificada por sujeitos que procuram assim construir as condições da sua própria identidade, impondo o seu reconhecimento enquanto pessoas. A pessoa - entendida na sua dupla relação consigo mesma e com a sociedade - é, afinal, o conceito central que a sociologia, tentando escapar ao vínculo humanista que esse termo acarreta, actualmente traduz pela designação de indivíduo social. Ao serviço desta nova cidadania - mais lockeana (porque mais atenta à salvaguarda dos círculos da liberdade individual) do que hobbesiana (porque menos extasiada com as virtudes do Estado) -, a educação social aspira a uma certificação científica que a liberte das teias políticas e ideológicas que, em vez de serem olhadas como podendo sustentar o seu estatuto (intra)disciplinar, agora surgem como verdadeiros obstáculos epistemológicos. Entretanto, no plano prático, a militância é substituída pela profissionalidade. Aquela servia ideais utópicos e transcendentes. Implicava, em primeira instância, convicção e adesão aos mesmos, em nome de ideologias de todo o tipo. A profissionalidade exige principalmente saber e capacidade de interpretação crítica das situações e das aspirações dos destinatários das intervenções, no âmbito de uma inalienável independência em relação a qualquer tutela doutrinária e em resposta às necessidades de coesão e justiça reguladas pela sociedade civil, mesmo que o seu exercício seja da responsabilidade do Estado. Uma profissionalidade justamente ao serviço dos cidadãos que, sendo-o por direito, podem o não ser de facto por obstruções no espaço de uma contratualização que, enunciada, pode igualmente não se cumprir por défices de execução de qualquer uma das partes envolvidas. Se, quando o défice em causa é do Estado, a denúncia e sua superação é de ordem política, já quando a ruptura aparece da parte do cidadão ou grupo de cidadãos, a questão, desde que tal tenha a ver com a incapacidade destes (porque se não o tiver é do foro do direito), passa para o terreno do trabalho social e aqui, como vimos, com uma filiação cada vez mais nítida na educação social por força das exigências de afirmação da autonomia e dignidade de todos 37

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os seres humanos. No campo estritamente assistencial, ficarão somente os que, por deficiência ou precariedade social extremas, carecem da possibilidade de exercício efectivo da cidadania. O reconhecimento da condição cidadã não é mais, pois, uma dádiva mas a assunção contínua e continuadamente renovada da dialéctica liberdaderesponsabilidade cuja consumação perante a sociedade e o Estado passa pelo exercício, assumido, consequente e adaptado às circunstâncias e às pessoas, dos direitos, traduzidos - ou a traduzir com o apoio da educação social - sob a forma de competências de iniciativa, de negociação e de participação solidária.

3. Educação social e pedagogia social Uma vez descartada a legitimidade da sua filiação ideológica e constatada a debilidade do seu acantonamento linear nas ciências da educação, onde radica então a propalada fundamentação científica da educação social, decisiva para o seu reconhecimento desde que entendida na sua dupla e indissociável acepção intradisciplinar e prática? Na pedagogia social, será hoje a resposta mais óbvia, logo acrescentando-se que a pedagogia social representa a teoria da educação social. Como esquema epistemológico esta resposta parece ser satisfatória. Resta saber como resiste a uma crítica epistemológica mais radical. Vejamos, em síntese, que questões importantes aqui se podem e devem colocar. A primeira, reporta-se à própria separação entre teoria e prática. Como poderemos aceitar a existência de uma deambulação teórica pura após a declínio do racionalismo que lhe deu resguardo e que, designadamente em Kant, como já aqui vimos, lhe permitia partir da “razão pura” para a “razão pura prática”, fundamentando-se esta naquela? Com o pragmatismo, por exemplo, a validade das proposições teóricas constata-se já através das suas consequências práticas. Em segundo lugar, coloca-se a questão do próprio estatuto da pedagogia. Como sabemos, a pedagogia está ainda estigmatizada com o anátema de ser uma configuração ideológica. Foi contra ela que se ergueram as ciências da 38

educação - após o fracasso das “pedagogias científicas” de Montessori ou de Durkheim - precisamente na ânsia de obviarem à intuição e cristalização características do senso comum, ou seja, das convicções não sujeitas ao crivo dos critérios de rigor e de contrastação empírica. Em terceiro lugar, importa considerar que o adjectivo “social” reforça, pelo menos em termos de estatuto formal, o carácter aparentemente doutrinário de uma acção persuasiva que a ela assim parece ligada. Pedagogia social pode fazer recordar quer as campanhas de regimes autoritários como as da própria democracia nas fases históricas da sua implantação e desenvolvimento: o estalinismo, as reformas napoleónicas da educação, os movimentos do socialismo utópico e do positivismo, todos fizeram, de uma forma ou de outra, pedagogia social... Enfrentando as questões acabadas de esquematizar, adiantamos as reflexões seguintes: Como o afirma José Ortega, a pedagogia social, enquanto “ciência e tecnologia do fenómeno e da intervenção sócio-educativa ou pedagógico-social”, aspirou a ser uma simbiose da vertente onto-lógico-empirista da realidade sócioeducativa e da vertente práxico-lógico-tecnológica das intervenções sócioeducativas propriamente ditas, resultando daqui constituir-se como um “conjunto simbiótico de conhecimentos nomológicos e nomopragmáticos relativos aos fenómenos e às intervenções sócio-educativas”. Por outro lado, Paciano Fermoso e Sáez, colocam a pedagogia social, respectivamente, no interface entre a teoria e a prática ou, em simultâneo, como um campo de conhecimento teórico e como uma prática educativa Todos estes autores pretendem fazer confluir as dimensões teórica e prática num mesmo espaço epístemo-antropológico, evitando deste modo dicotomias difíceis de gerir bem como a subsistência de práticas estranhas ao filtro das indagações científicas. Fenómeno epistemológico importante nesta postura é o afastamento dos preconceitos positivistas das pedagogias científicas acima assinaladas enquanto exigiam, bem ao sabor dos discursos positivistas, um ilusório mas vincado hiato, em nome da objectividade, entre o tecido teórico das representações científicas e o sincretismo das práticas educativas, crendo-se que, graças ao virtuosismo do método, aquelas explicavam e podiam orientar estas. A partir daqui, a pedagogia social, implicando-se, vivendo a tumultuosidade do vivido, está em condições de 39

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superar o risco de se impregnar de autoritarismo. Este surge muitas vezes apoiado numa ortopraxia, isto é, numa normalização das práticas a partir de uma aparente independência teórica que, no fundo, enquanto tal, serve apenas para formatar um real que desta maneira se confirma, se reitera e reitera a própria teoria no seio de um infindável e intricado círculo vicioso. Ora, se a pedagogia social – situando-se num limiar teórico-prático epistemologicamente instável e por isso aberto à crítica e à regulação dos processos - assumir o estatuto não de uma teoria da prática mas de uma teoria prática, pode reivindicar o seu papel de substrato da educação social sem a condicionar a priori a preconceitos externos. A educação social, essa, reforça assim o seu desempenho enquanto uma prática profissional autêntica porque, interpelando a teoria que a suporta, não deixa de ganhar consistência científica ao mesmo tempo que se liberta dos círculos doutrinários que continuamente a ameaçam e tendem a restringir.

4. A especificidade antropológica e hermenêutica da educação social Com a educação social, temos de o perceber e aceitar, estamos perante novas práticas, novos quadros teóricos, novas relações entre ambos e, mais do que isso, diante de novas realidades epistemológicas que, emergindo do humano e tocando-o, assumem na sua plenitude a dimensão hermenêutica deste cruzamento epístemoantropológico. Um cruzamento em que, criticamente, o sentido brota da ameaça da sua extinção porque o que nos assalta é o grito que vem das fracturas, dos abismos em que as sociedades envolvem as pessoas mas para que também as despertam. Esse grito, mais do que a voz da exclusão, tem de ser genuinamente o grito dos excluídos para quem a inclusão – e a revolução – perderam dramaticamente sentido. Quais têm de ser, neste espaço antropológico, as funções do educador social percepcionado enquanto hermeneuta do trabalho social e profissional da condição humana? Em nosso entendimento, sobretudo as seguintes, as quais decorrem de uma oscilação entre competências formais – cientificamente suportadas – e competências informais de natureza eminentemente relacional e afectiva: 40

- acompanhamento compreensivo das pessoas em dificuldade ou em risco mais ou menos dilatado, considerando nomeadamente a sua irredutível singularidade; - assunção de uma posição comprometida e implicada que procure, em todas as circunstâncias, a aferição de uma distância solidária que seja susceptível de favorecer uma autonomização integrada dos destinatários; - dinamização de uma interacção mutuamente vantajosa entre os projectos individuais e colectivos; - aprofundamento do espaço-tempo da quotidaneidade, o que implica o respeito e fortalecimento regulado das esferas do íntimo e do privado na sua dialéctica com o espaço público; - gestão dos acontecimentos que, irrompendo frequentemente ao arrepio dos processos e das tendências, geram o efeito psicológico do inesperado sem poderem, por isso, ser subalternizados; - indução de alternativas de modo a evitar que os impasses e as indecisões – normais na vida – degenerem em bloqueamentos da interpretação e da acção; - mediação de relações interpessoais e intergrupais, a par das relações identitárias entre o passado e o devir do presente e do futuro, em todas as suas dimensões evolutivas, de continuidade ou conflito; - avaliação de constrangimentos e possibilidades de acção no quadro da formação de uma consciência dos limites e das suas potencialidades; - valorização de uma consciência positiva acerca da fragilidade antropológica das pessoas e grupos especialmente considerados; - disponibilização de uma grande capacidade de escuta enquanto manifestação consequente e interactiva do sentido de disponibilidade, acolhimento e receptividade perante o outro; - exercício continuado da hetero e auto-avaliação de personalidades, de interrelações, de contextos, de evoluções e das conexões múltiplas entre as imagens pessoais idealizadas e as projectadas. Da compilação destes itens depreende-se que o educador social deverá encontrar ele mesmo, num processo extraordinariamente exigente e idiossincrático, a distância óptima que lhe permita conjugar racionalidades e 41

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sensibilidades, ser um autêntico indutor da (re)construção do eu junto de pessoas e grupos em situação de fragilidade potencial ou efectiva e ainda, como pano de fundo para esta complexa trama sócio-educativa, assumir a relação interpessoal como um encontro, o que implica a valorização racional e afectiva das expectativas, das representações e dos jogos psicológicos. Compreende-se também, por seu turno, que a educação social, numa óptica mais hermenêutica do que estritamente epistemológica, ou seja, mais tributária de preocupações antropológicas do que de preocupações de coerência e validação científicas, tenha como objectivo central não tanto a conceptualização das práticas mas sobretudo a inteligibilidade de uma realidade complexa, visando com esta intervenção clarificadora auxiliar o trabalho do educador social, retirando-o do domínio do senso comum mas sem o utilizar segundo lógicas estranhas ao urgentismo de que o mesmo se reveste. Lógicas que, obedecendo aos cânones positivistas que frequentemente adquire a epistemologia, acabariam por, neutralizando os sujeitos em nome da objectividade, destruir a incessante remissão subjectiva inerente à vivência humana que perpassa os encontros antropológicos entre educadores e educandos, dimensão que é finalmente matricial nas intervenções de todos os trabalhadores sociais. A educação social, na pujança da sua autonomia prática e intradisciplinar, importa destacá-lo com clareza, é expressão de um novo humanismo, o qual pretende ser uma resposta às filosofias do conceito, às filosofias da ausência, que, transformadas em ideologias, alimentaram – na educação e no trabalho social os impasses historicamente recentes do estruturalismo, do sistemismo e de todos os tipos de holismos. Impasses que se traduziram numa trágica desresponsabilização dos actores - dos indivíduos, das pessoas! – que, nas sociedades, constituem e constroem os seus êxitos e os seus fracassos..

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Referências bibliográficas Carreras, Juan Sáez (1997). “La construcción de la pedagogía social: algunas vías de aproximación”, in Petrus, António (coord.), Pedagogía Social, Barcelona, Ariel Educación Esteban, José Ortega (coord.) (1999), Pedagogia Social Especializada, 2 vols., Barcelona, Arel Educación Fermoso, Apciano (1994). Pedagogía Social: fundamentación científica, Barcelona, Herder Foucault, Michel (1981). As Palavras e as Coisas (trad.), São Paulo, Martins Fontes Habermas, Jürgen (1992). De l’Éthique de la Discussion (trad. franc.), Paris, Cerf

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Educadores Sociais: Quem são? O que fazem? Como desejam ser reconhecidos? Joaquim Azevedo | Isabel Baptista Mesa de Discussão: Maria Ferreira 1 | Maria Guerra 2 | Sofia Rodrigues 3 | Fernanda Cachada 4 | Rui Amado 5

Resumo O presente texto corresponde ao relato crítico de um debate em torno da «identidade profissional dos educadores sociais» que contou com a participação de três educadoras sociais, uma professora e um antropólogo, todos especializados em pedagogia social e colaboradores da Universidade Católica Portuguesa nesta área de investigação-acção. Tomando como referência empírica o universo experiencial de cada um dos participantes, pretendeu-se colocar em confronto – em diálogo – diferentes concepções e percepções sobre o contributo específico dos educadores sociais no seio das dinâmicas de intervenção sócio-educativa, numa perspectiva de explicitação e valorização da sua identidade profissional.

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Educadora Social, Equipa pedagógica do Projecto Raiz /Programa Escolhas Educadora Social, Equipa pedagógica de Centro de Dia/IPSS Educadora Social, Equipa pedagógica do projecto Trofa Comunidade e Aprendentes (TCA) Professora/ Coordenadora da rede de Mediadores TCA

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Uma profissão qualificada de «social» deve poder dar um conteúdo preciso a este termo, sob pena de se ver privada de conteúdo funcional, balizada por fronteiras fluidas e com uma missão reduzida a nada. Lia Sanicola, 1994

Introdução Quem são os educadores sociais? Que valores e que competências balizam o seu espaço de autoridade pedagógica? Como é que os educadores sociais conceptualizam e verbalizam o seu exercício profissional? O que é que os distingue de outros técnicos com quem são chamados a constituir equipas de trabalho? Como são, ou desejam ser, profissionalmente reconhecidos? Foram estas, no essencial, as questões que nortearam o diálogo desenvolvido neste pequeno grupo de discussão, composto por três educadoras sociais com experiências profissionais diferentes: mediação de aprendizagem e intervenção comunitária; mediação junto de famílias em risco; práticas de acolhimento social a idosos e contando ainda com o contributo de outros dois técnicos que desempenham tarefas de coordenação em dinâmicas protagonizadas por educadores sociais, estando, nessa medida, em posição de dar um testemunho privilegiado sobre a matéria em debate. Tendo por base sessões presenciais, realizadas durante o mês de Janeiro de 2008 e intercaladas por acertos de comunicação feitos no chamado ciberespaço, o debate decorreu sob a moderação de Joaquim Azevedo e Isabel Baptista que assumiram também a difícil tarefa de relatores. Enquanto intervenção sócio-pedagógica especificamente vocacionada para o trabalho de proximidade com pessoas e grupos humanos em situação de vulnerabilidade e exclusão social, a educação social constitui um dos domínios de investigação privilegiados pela Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, o que justifica o número de projectos de pesquisa cientifica realizados e em curso neste contexto investigativo tendo como objecto de estudo a realidade da educação social em Portugal, a maior parte dos quais da autoria de educadores sociais. É, pois, para esses e para outros trabalhos académicos que remetemos no sentido de uma análise mais abrangente, aprofundada e rigorosa sobre os 46

problemas, desafios e dilemas que hoje se colocam no caminho da construção identitária dos educadores sociais, em especial no nosso país. O objectivo deste pequeno círculo de discussão não teve essa ambição, visando sobretudo abrir um espaço informal de «escuta atenta e activa» sobre as percepções desses mesmos investigadores-actores, na intenção de perceber de que forma é que eles sentem e conceptualizam os valores que caracterizam – que «enchem de carácter» – o seu «rosto profissional». Assim, sem prejuízo do rigor conceptual exigido pela inserção deste tipo de narrativa numa publicação académica como a revista «Cadernos de Pedagogia Social», tentou-se ter em «devida conta» a riqueza das expressões pessoais, optando por um registo de escrita centrado nos testemunhos dos participantes e apresentados de acordo com a ordem discursiva seguida durante as sessões de debate. Pretendeu-se deste modo honrar o poder da linguagem enquanto estrutura de mediação normativa que, ao permitir inscrever o vivido na esfera do inter-humano, ajuda a instituir um mundo comum. É assim, afinal, que as coisas e as ideias adquirem «identidade», funcionando como «temas» ou conteúdos partilháveis no seio de um processo de construção de conhecimento racional. Neste sentido, tentando enquadrar racionalmente os elementos de análise sem trair a memória dos «dizeres» que lhes deram origem, expomos as questões agrupando-as em três eixos de reflexão fundamentais: 1) profissão de educador social – uma identidade em construção; 2) prática profissional – problemas e desafios; 3) valorização e reconhecimento socioprofissional. O texto termina com reflexões finais da inteira responsabilidade dos relatores e com recomendações de carácter bibliográfico.

1) Profissão Educador Social – uma identidade em construção Para começar, gostávamos que nos falassem um pouco sobre como chegaram à profissão. Que caminhos e experiências de vida vos trouxeram até aos contextos laborais onde exercem actualmente? O que é que fazem? Onde? Como? Com quem? 47

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Maria Guerra Este é o meu primeiro «posto de trabalho» desde que me licenciei há quatro anos, exactamente os mesmos que a instituição onde exerço tem de vida. Todavia, quando iniciei actividade foi como técnica da valência de tempos livres (ATL). Depois, com a alteração da política educacional no 1º Ciclo Ensino Básico e o começo da «escola a tempo inteiro», fizeram-me a proposta de iniciar um trabalho no Centro de Dia com a finalidade de humanizar esse espaço criando um lugar de proximidade especialmente dirigido à comunidade sénior, acompanhado de um projecto sócio-pedagógico próprio. Desafio que aceitei de imediato! … Maria Ferreira O meu primeiro emprego foi num ATL. Depois fui contratada para um projecto de Apoio Familiar e Acompanhamento Parental – CAFAP, financiado pela Segurança Social e onde desempenhava funções de mediadora familiar. Actualmente, integro a equipa pedagógica de um projecto sócio-comunitário, o Projecto Raiz financiado pelo Programa Escolhas que tem como entidade promotora o Colégio Nossa Senhora do Rosário mas que envolve outras instituições em consórcio, como a Universidade Católica. Nesta equipa, cabe-me principalmente acompanhar as famílias dos jovens que constituem a «populaçãoalvo» do projecto. Sofia Rodrigues No começo, em 2003, ano em que terminei a licenciatura em Educação Social, a minha experiência profissional desenvolveu-se no âmbito da acção social, em colaborações pontuais, com vínculos laborais muito precários ou mesmo numa base de voluntariado. Saliento aqui a experiência ligada a uma CPCJ, onde percebi o que significa trabalhar com jovens que vivem em estado de exclusão social, tentando fomentar mais integração e um novo sentido de cidadania. Fui muitas vezes à «casa» deles, à sua associação de moradores, tentando entender bem a sua situação e conhecer as pessoas que fazem parte da sua vida. Posso dizer que todos os dias, durante cerca de sete meses, vivenciei histórias de «horror humano», de violência e violação de direitos de crianças, seres desprovidos de defesas em relação aos comportamentos agressivos daqueles que lhes eram próximos e a quem, à partida, cabia o papel de protecção. Em Maio de 48

2005, quando estava a terminar a parte curricular do mestrado em Pedagogia Social, chamaram-me para uma dinâmica de trabalho comunitário no Concelho da Trofa – Trofa Comunidade de Aprendentes (TCA). Nunca antes teria imaginado, sequer, ter acesso a uma experiência destas. A minha vida mudou para sempre. Obrigada por esta breve apresentação. Mas seria importante tentar especificar um pouco mais, talvez dando exemplos sobre o conteúdo funcional do vosso trabalho. O que é que, afinal de contas, faz a diferença da actuação do educador social? Maria Guerra Actualmente coordeno a equipa que trabalha na valência de Centro de Dia e as minhas funções centram-se em todas as tarefas inerentes a esta valência como a planificação, construção, implementação e avaliação do projecto pedagógico que inclui actividades de mediação familiar, institucional e comunitária, envolvendo unidades de saúde, instituições parceiras e autarquia. Vejo o educador social como um profissional multifacetado que tem como objectivo, em qualquer contexto de trabalho, promover o desenvolvimento humano através da educação. Sofia Rodrigues Hoje sou «técnica TCA» com responsabilidade pela coordenação da rede de Voluntários e formadora/tutora de outras colegas, mas a actividade que exerci desde sempre neste projecto foi a de «mediadora de aprendizagem». A dinâmica TCA visa criar oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos os cidadãos do município, mobilizando as 8 freguesias da Trofa e apoiando-se num modelo de intervenção que articula sete redes sociais – instituições, mediadores, formadores voluntários, técnicos e centros de aprendizagem ou Centros TCA como lhes chamamos. Faço portanto equipa com muitas outras pessoas, de diferentes formações. Como mediadora de aprendizagem com formação de educação social (porque há no projecto outros mediadores), a minha função é a de atender, escutar e orientar as pessoas que nos procuram para saber mais ou para descobrir algum caminho para a sua vida. Sobretudo aquelas que nem sabem dizer bem o que pretendem ou que se encontram sozinhas e pedem ajuda. Tem sido incrível 49

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acompanhar a forma como tantas pessoas mudaram e ganharam ânimo. É o que estou a tentar estudar na minha tese de mestrado, esta ligação entre educação social, aprendizagem e desafios de vida. Maria Ferreira O educador social orienta a sua intervenção através da definição de um conjunto de acções de carácter sócio-pedagógico. Por outro lado, a «escuta» é o meio pelo qual o educador “sente” as pessoas permitindo-lhe colocar-se na óptica de quem vive o problema para que possam, juntos, assumir um compromisso, uma implicação no processo de construção de um “EU” e na elaboração de um projecto de vida. Ou seja, o educador social define-se através da mediação e pela forma como estabelece relações de proximidade com os educandos, olhando-os como pessoas únicas e com potencialidades, de modo a ajudar a produzir mudanças e a alterar comportamentos. É isto essencialmente o que tento fazer junto das famílias que estão «ao meu cuidado» e que são, à partida, muito destruturadas. Quase todos os membros destas famílias, adultos e crianças, são abrangidos por outras intervenções. No nosso caso, tentamos ver a família como um todo, intervir junto de cada um dos seus elementos e ligar as redes de proximidade para maior apoio. Ou seja, a «mediação familiar» aqui não é para gerir conflitos mas para actuar na educação da família e das pessoas, discutindo modelos parentais e aproximando mais estes «encarregados de educação» das escolas que os jovens frequentam e ao mesmo tempo promover a formação deles próprios.

Proximidade com as pessoas e as comunidades, mediação, cooperação interprofissional e interinstitucional, parecem ser valores em evidência. Mas o que dizem os outros, a Fernanda e o Rui? Tendo em conta a vossa experiência de convívio profissional com educadores sociais, o que pensam sobre o acaba de ser dito? Rui Amado Os educadores sociais abordam a realidade social numa perspectiva humanista, o que os faz ter um “olhar” completamente novo sobre as pessoas, sobre a sua cultura e contextos de vida específicos. Isto faz toda a diferença na forma como se encara o próprio conceito de trabalho social, as suas práticas e 50

valores. Eles desenvolvem o trabalho social a partir do lado positivo das pessoas e da crença plena na educabilidade do ser humano, através de uma prática profissional baseada numa relação de proximidade, no primado das relações afectivas, numa relação de igualdade entre técnico e pessoa. Fernanda Cachada O maior contributo dos educadores sociais, ou pelo menos aquele que eu tendo a valorizar mais, é a efectiva promoção da proximidade humana. A prática diária de olhar e estar com cada uma das pessoas de uma forma única é algo que, ainda hoje passados alguns anos de trabalho com os educadores sociais, me causa admiração. Mais do que fazer planificações, preencher e elaborar relatórios e diagnósticos, o que admiro nos educadores sociais é a disponibilidade para o encontro com outros seres humanos de um modo tão profissional e ao mesmo tempo tão intimista, é a mais-valia que vejo nos educadores sociais, pelo menos no TCA.

As vossas respostas são interessantes e muito expressivas das preocupações humanistas que partilham. Mas é justamente por isso que se impõem as seguintes perguntas: não acham que o objectivo de «promoção de proximidade humana» é comum a todos os educadores e, de uma forma geral, a todos os agentes de desenvolvimento humano? Em que é que o domínio de competências relacionais define o conteúdo funcional da profissão de educador social? Fernanda Cachada Sim e não. Embora identifique um conjunto de deveres diferenciados entre os dois registos de actuação, o conjunto de compromissos, sobretudo os compromissos morais, são comuns. Nós na escola também tentamos respeitar e valorizar cada pessoa e como mediadora TCA é essa também a minha preocupação, seja com os alunos, com os pais ou com qualquer elemento da comunidade. Mas o que vejo no TCA, e não sei explicar muito bem, é que as educadoras sociais fazem isso de modo diferente, elas não só acolhem e atendem bem, mas conseguem ir ter com as pessoas, mesmo as mais «difíceis», de uma maneira que nós não conseguimos. 51

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Rui Amado Como disse, a mais valia/diferença destes profissionais é que são formados para lidar especificamente com as problemáticas inerentes às pessoas e populações em situações de vida complicadas e numa perspectiva não-assistencialista, orientada para a mudança e transformação positiva. De facto, no seu quotidiano, o educador social, mais do que planear, planificar e cumprir as calendarizações, tem um papel imprescindível na escuta e na observação atenta do que o educando diz e executa. Muitas vezes o que o educando necessita é de alguém que lhe dê atenção, perceba as suas inquietações e dúvidas não para receber uma solução, mas para sentir que alguém acredita no seu potencial, dando-lhe sentido.

Dirigindo esta pergunta a todos, que aspectos comuns encontram entre a actividade dos educadores sociais e a de outros profissionais? Maria Ferreira O primeiro aspecto que nos distingue é o carácter sócio-pedagógico das intervenções. O segundo aspecto prende-se com o facto de a educação social se equacionar no âmbito da pedagogia social, o que permite situar a nossa conduta noutra filosofia de acção. Os educadores sociais tentam despertar as pessoas para novas aprendizagens sociais, para além de trabalharem a auto-estima e a vontade de definir trajectos para o futuro. O técnico de serviço social, por exemplo, tem uma função mais pautada pelo assistencialismo. O educador social assume uma intencionalidade pedagógica muito marcada por valores humanistas e pauta a sua acção pelas mais diversas estratégias de mediação. Sofia Rodrigues A minha experiência está muito marcada pelo TCA que é um projecto de pedagogia social onde trabalham muitos outros que partilham as mesmas preocupações sócio-pedagógicas. A nossa tarefa mais específica como educadores sociais está ligada ao atendimento de pessoas e grupos mais «sensíveis» ou menos habituados a entrar nas acções de aprendizagem e formação que propomos. A coordenação do projecto encarrega-nos sobretudo da 52

atenção especial que é preciso dar a pessoas que, seja por que motivo for, pedem um acompanhamento mais pessoal. Outra das nossas missões é ir directamente ao encontro dessas pessoas que andam mais alheadas da aprendizagem. Mas tudo o que fazemos é em articulação com os outros membros da equipa ou das redes, professores ou outros. No TCA temos até serviços de educação nas escolas, como na escola da Fernanda Cachada, EB23 de S. Romão do Coronado, que actuam as minhas colegas educadoras sociais, Renata Machado e Cindy Ribeiro Vaz. Maria Guerra No meu caso, acho que existe uma autoridade pedagógica reconhecida pelos outros profissionais mas que, ao mesmo tempo, me distancia das funções deles. Todavia, nem sempre foi assim, como fui a primeira funcionária da IPSS, inicialmente fazia um pouco de tudo. Com o tempo e também com argumentos certeiros fui convencendo a entidade empregadora de que quando trabalhamos com as pessoas idosas há aspectos determinantes a ter em conta que vão muito para lá da produção artística do técnico e dos educandos. Ainda mais quando as pessoas se encontram numa situação de vulnerabilidade em que não estão disponíveis para ninguém. Há que fazer um caminho para nos abeirarmos delas, tornando-nos próximos e tentando sentir os seus problemas. Por outro lado, há que transformar o espaço, ou os ambientes de trabalho, num local com diversos cheiros e rostos onde cada um faz voar a sua singularidade. Há que transmitir-lhes confiança de modo a que aceitem da melhor forma o processo de envelhecimento e outros factores determinantes. Há que envolver as famílias em todas as dinâmicas e não apenas nas “visitas”. Há que despertar a comunidade para a participação. Isto é, há que desenhar com as pessoas um trajecto individual mas também grupal onde todos se sintam únicos. E claro… isto não é fácil. Porém, possível! Rui Amado Reconheço como valores comuns a perspectiva humanista de encarar a realidade social; uma perspectiva profissional fundada nos direitos, valores e dignidade da pessoa humana e uma perspectiva de encarar o trabalho social como uma prática interprofissional. Como valores diferentes, reconheço a 53

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educação social como uma ciência humana essencialmente virada para uma prática profissional enquadrada na área do trabalho social, enquanto a antropologia tende a ser mais uma ciência humana de produção de teoria sobre as especificidades sociais e culturais das populações e sociedades humanas e, neste sentido, ser uma ciência que tem uma maior abrangência no seu campo de estudo e prática profissional. Fernanda Cachada A educação sempre foi, para mim, uma paixão que se traduzia no acto de «ensinar coisas», de ajudar os alunos a serem um pouco mais, sobretudo na sua capacidade crítica sustentada num raciocínio bem elaborado e fundamentado no conhecimento. Sempre associei a educação aos professores, domínio exclusivo daqueles que aprendem a ensinar. Agora no TCA descobri outros educadores. Muito concretamente, a actividade profissional dos educadores sociais ganhou aos meus olhos pertinência e sentido, não beliscando as competências e as funções dos professores. Acho até que os educadores sociais podem ajudar muito os professores e a contribuir de modo decisivo para melhorar a educação, seja dentro da escola e fora dela.

2) Prática profissional – problemas e desafios Tomando como referência o que conhecem da situação portuguesa, na vossa perspectiva quais são os maiores constrangimentos e desafios que a profissão de educador social enfrenta actualmente? Ou, quais acham que são as dificuldades mais sentidas pelos profissionais? Sofia Rodrigues Os meus maiores constrangimentos são o tempo e a dificuldade em encontrar resposta imediata e adequada às solicitações e expectativas das pessoas que vêm ao nosso encontro. Apesar de todo o apoio que recebo da coordenação TCA, tenho dificuldade em gerir o meu tempo e as minhas ansiedades. No dia a dia deste projecto de intervenção comunitária deparo-me também com processos de acção muito estandardizados e sujeitos a directrizes político54

-económicas. As pessoas que aparecem nos Centros TCA e que tentamos encaminhar para os colegas de outras instituições e de outros projectos, muitas vezes não «cabem» nas tabelas, nos gráficos, na categorização de «populações» e nos regulamentos que eles têm que respeitar. Com muita conversa e mediação, conseguimos ultrapassar estes obstáculos, mas normalmente é á custa da boa vontade dos técnicos que nos atendem e que tentam «dar a volta» ao sistema. Outro problema que acho que é comum a todos os que trabalham nesta área é o financiamento dos projectos e a estabilidade salarial. Isso afecta muito a nossa motivação. Maria Guerra Vejo como grande problema e desafio a formação. Confesso que, inicialmente estava apenas treinada/preparada para a tarefa que me entregaram na valência ATL. Mas como a intervenção sócio-pedagógica não se faz sem ser através da “sensibilidade e bom senso”, rapidamente percebi que teria que fazer uma especialização que me permitisse reflectir sobre a minha prática e que ajudasse a lançar-me em novos rumos. Encontrei o que precisava aqui na UCP e na formação em pedagogia social, disciplina que, estranhamente, não tinha tido na licenciatura. Digo estranhamente porque agora vejo que, de facto, sem noções de pedagogia social é difícil entender a nossa actividade como educadores. Hoje, sinto-me mais segura na minha intervenção e com mais maturidade profissional, assumindo a prática de relação e de mediação social como os principais propulsores do meu trabalho. Mas penso que são necessários mais encontros e espaços de formação onde os educadores sociais possam partilhar ideias, problemas, saberes e experiências. Maria Ferreira Para mim o maior desafio é ser capaz de identificar as potencialidades dos indivíduos capacitando-os de modo a serem autónomos e responsáveis. É nesta óptica que o educador social consegue fazer com que o educando seja o protagonista do seu processo de mudança. Isto é um grande desafio. A maior dificuldade é conseguir transmitir estas ideias aos outros técnicos, de forma a aceitarem e a entenderem a nossa maneira específica de trabalhar. 55

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Rui Amado O grande desafio da educação social em Portugal é o da afirmação da sua identidade científica e profissional no âmbito do trabalho social. Esta afirmação deve ser, sobretudo, em relação a outras áreas e disciplinas do trabalho social, nomeadamente, o serviço social, mas, não numa perspectiva de se impor como alternativa, mas sim para trabalhar em complementaridade, numa perspectiva de trabalho em conjunto e de união de esforços para tornar o trabalho social mais reconhecido, com técnicos e profissionais altamente qualificados e competentes, e para, em última instância, ajudar a promover as mudanças sociais tão necessárias a um país com cerca de dois milhões de pessoas a viver na ameaça de pobreza eminente. Fernanda Cachada Usando de alguma franqueza e confessando desde já a minha ignorância, assumo que não posso generalizar a partir da minha experiência, mas penso que o grande desafio dos educadores sociais se prende com o conhecimento e reconhecimento da sua profissão. Até ao momento em que comecei a trabalhar no TCA como mediadora e que integrei uma equipa com educadores sociais, não sabia nada dessa profissão.

3) Valorização e reconhecimento socioprofissional Atendendo à forma como identificaram a questão do reconhecimento socioprofissional como um dos problemas ou constrangimentos na actividade dos educadores sociais, pedimos que falem um pouco mais sobre isso. O que, na vossa perspectiva, poderia ser feito no sentido de melhorar a situação? Maria Guerra Penso que temos que fazer um esforço conjunto. Temos uma identidade profissional ainda jovem; trabalhamos em contextos partilhados por muitos profissionais e possuímos competências próprias. Apesar de todas as contrariedades, trabalhamos diariamente na construção de uma sociedade mais justa onde existe lugar para todos e penso que é sobretudo a nós, educadores sociais, que cabe o grande esforço de conseguir reconhecimento. 56

Graças ao trabalho que venho desenvolvendo na IPSS, pessoalmente, sinto que o meu trabalho é reconhecido. Tanto as pessoas que servimos como os meus colegas de equipa reconhecem as competências (ao nível do saber fazer, ser e estar) que impõem um cunho à profissão que eu tento honrar. Maria Ferreira A questão do reconhecimento é bastante complicada, por dois motivos. Por um lado, a própria comunidade profissional está a passar por momentos de crise de identidade. O facto de ainda não se ter conseguido afirmar perante as entidades competentes a um nível salarial e de competências específicas, não ajuda. Não temos ainda um estatuto regulador da profissão. Por outro lado, concordo que têm de ser os próprios profissionais nos seus locais de trabalho, através das suas intervenções, projectos e convicções a definir a categoria profissional de uma forma precisa e clara. Sofia Rodrigues Eu tenho uma experiência privilegiada, em todos os sentidos. Sobretudo ao nível do respeito e do acompanhamento pedagógico da minha actividade. Sintome apoiada, respeitada e reconhecida. Mas tenho consciência de que a realidade do trabalho social em Portugal não é essa. Ultrapassar os constrangimentos ligados às questões logístico-financeiras e à padronização de mecanismos de acção será o maior desafio do técnico de Educação Social, mas também dos outros colegas que, com ele, trabalham as questões que envolvem as situações de maior vulnerabilidade social. Fernanda Cachada A este respeito só posso reafirmar o que já disse sobre a necessidade de maior conhecimento desta profissão que, baseando-me na experiência de trabalho com as colegas do TCA, reconheço como muito importante. Sustentada numa prática diária, a minha percepção é de que todos os que lidam comos educadores sociais, aprendentes, colegas de equipa e entidades promotoras/empregadoras, reconhecem e valorizam muito o trabalho deles. Aliás, tenho mesmo a certeza disso. O que é preciso é alargar esta percepção e o conhecimento desta realidade, divulgando mais o que os educadores sociais fazem. 57

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Rui Amado Pelo que conheço, considero que os educadores sociais são respeitados pelas suas entidades empregadoras, membros das suas equipas, educandos/utentes e outros profissionais como são os diversos técnicos e profissionais da área do trabalho social. Considero ainda que a educação social está perfeitamente reconhecida e validada enquanto área científica e profissional entre as diversas disciplinas das Ciências Sociais e Humanas. Todavia, há muito caminho a fazer pelos próprios profissionais. Apesar das qualificações e competências técnicas e científicas adquiridas na sua formação, não basta aos educadores sociais dominarem os conhecimentos, teorias, conceitos, práticas, etc. adquiridos na sua formação universitária, nos seus estágios, etc. Penso que o educador social deve ser, ele mesmo, um humanista, e basear a sua própria vida nos valores da dignidade da pessoa e da vida humana. Pois, de outra forma, corremos o risco de ter profissionais bastante qualificados, com o perfeito domínio das práticas e teorias do trabalho social, mas sem a “alma” e o “coração” que fazem olhar para o outro como um seu verdadeiramente igual. Esta é a questão mais difícil, pois, exige um conhecimento de si mesmo bastante grande, uma capacidade de autocrítica permanente e disponibilidade para aprender mais com os outros, de melhorar sempre, de estar receptivo à mudança, à dos outros mas também à sua própria mudança pessoal.

Muito obrigada a todos. É grande a responsabilidade que nos confiaram, a de tentar transformar em texto o conjunto de testemunhos de uma reflexão tão rica e partilhada como foi esta. Julgamos que estamos todos de acordo, os tempos e os espaços desta discussão acabaram por funcionar como mais uma das nossas dinâmicas de formação-acção. Nesse sentido, da nossa parte, o maior compromisso será o de procurar dar seguimento, em termos científicos e académicos, a muitas das preocupações e desejos que manifestaram, sobretudo no que se refere às exigências de maior preparação técnica e valorização socioprofissional.

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Reflexões finais Confirmando muitas das constatações feitas nos últimos anos, concretamente no acompanhamento das equipas de projecto que actuam sob a supervisão da FEP/UCP, podemos dizer que o processo de discussão informal aqui relatado evidenciou o embaraço que os técnicos de intervenção sócio-educativa experimentam com frequência quando se trata de verbalizar o seu «saber ser e saber fazer». Mas, como muito bem notou Jean Brichaux (2001) a propósito das profissões sociais, esta dificuldade em precisar em que consiste exactamente a sua função não nos autoriza a concluir sobre a inexistência de um saber específico. Por outro lado, e ainda com o mesmo autor, há que admitir que definir um determinado território de intervenção teórico-prática é uma coisa, convencer a sociedade da sua pertinência é outra. No essencial, o que fica dito contribui para reforçar a convicção comum quanto ao sentido e valor deste espaço de autoridade profissional, sobretudo num contexto de sociedade educativa. Tanto do ponto de vista individual como colectivo, alguns dos passos que reconhecemos necessários dar na direcção de uma maior valorização socioprofissional surgiram apontados pelos próprios intervenientes, desde os imperativos de formação inicial e continua, passando pela promoção de escrita profissional, pela necessidade de espaços de debate e divulgação pública e indo até às exigências de natureza ético-profissional que começam na consciência de cada um. Estas preocupações estão muito presentes nas nossas dinâmicas de formação-acção, onde a educação social surge como domínio de eleição dentro do universo vasto e multifacetado da pedagogia social. Neste aspecto, registamos com apreço a forma como todos os participantes se reconheceram nos valores que classificam de «proximidade humana» e que, a nosso ver, constitui condição obrigatória de uma «cidadania social», de acordo com a noção proposta por Rosanvallon e desenvolvida por outros sociólogos contemporâneos que nos lembram que a «solidariedade» é um valor e não uma técnica, sendo, portanto, irredutível aos mecanismos de «segurança social» que alegadamente a servem. Falar em «social» não é, de facto, o mesmo que falar em «exclusão social». Esta «marca» de «proximidade humana» ligada a um humanismo relacional, onde a centralidade da Pessoa e a importância dos laços de solidariedade social 59

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se impõem em toda a sua grandeza cívica, corresponde ao «ethos» da pedagogia social, tal como vem sendo trabalhada no seio da FEP/UCP. Reafirmamos, neste sentido, o compromisso em relação ao processo de desenvolvimento profissional dos educadores sociais.

Bibliografia recomendada BANKS, Sarah (org). 2003. Teaching Ethics for the Social Professions. ESEP/FESET. BRICHAUX, Jean. 2001. L’éducateur spécialisé en question(s). La professionnalisation d e l’activité socio-éducative. Éditions Érès. Ramonville Saint-Agne. CASTEL, Robert. 1995. Les Métamorphoses de la question sociale. Éditions Fayard. Paris. CAPUL, Maurice; LEMAY, Michel. 2003. Da Educação à Intervenção Social Porto Editora, Porto. CARNEIRO, Roberto. 2001.Fundamentos da Educação e da Aprendizagem. Fundação Manuel Leão. Vila Nova de Gaia CARVALHO, Adalberto; BAPTISTA, Isabel. 2004. Educação Social, Fundamentos e Estratégias. Porto Editora GARCIA MOLINA, José (org.). 2003. De nuevo, la Educación Social. Dykinson, Madrid. NUNEZ, Violeta (org.). 2002. La educación en tiempos de incertidumbre: las apuestas de la Pedagogia Social. Editorial Gedisa. Barcelona SANICOLA, Lia (org.). 1994. L’Interventions de réseaux. Bayard Éditions. Paris RAVON, Bertrand, ION, Jacques. 2005. Les travailleurs sociaux. La Découverte. Paris. ROSANVALLON, Pierre. 1995. La nouvelle question sociale. Seuil. Paris VÁRIOS. Cadernos de Pedagogia Social. UCP Editora.

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O Perfil Profissional do Educador Especializado (Social) - Uma leitura sócio-histórica Fernando Canastra1 | Manuela Malheiro2

Resumo O presente artigo tem como propósito realizar uma aproximação à problemática do Perfil Profissional do Educador Especializado (Social). Partindo da revisitação de alguns elementos genealógicos em torno da “educação especializada”, no contexto francófono, e convocando alguns contributos sociológicos no âmbito das mudanças ou transformações que se estão a operar quer na realidade social, quer nas modalidades de intervenção social, os autores procuram realçar algumas das implicações históricas e sociológicas. Neste quadro interpretativo, sugerem-se alguns elementos reflexivos e interpretativos que possam contribuir para a clarificação conceptual do perfil profissional, no campo socioeducativo. O artigo termina com a apresentação de uma proposta relacionada com a emergência da figura do Educador Social, que tende a configurar-se a partir do seguinte perfil profissional: (a) a mobilização de uma escuta clínica; (b) a promoção de um tacto pedagógico; e (c) a convocação de uma postura ética.

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Docente na área de Ciências da Educação da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Leiria [email protected] Professora Associada na área de Ciências da Educação da Universidade Aberta [email protected]

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Nota de Apresentação A Educação Social3, enquanto actividade profissional, tende cada vez mais a afirmar-se numa via profissionalizante. Hoje, são já muitos os cursos existentes nesta área, particularmente no ensino superior público - politécnico (para além do ensino privado). É neste contexto que sugerimos uma aproximação ao perfil profissional dos Educadores Sociais, tendo como entrada privilegiada a articulação entre as genealogias históricas relacionadas com a figura do Educador Especializado e alguns contributos sociológicos, a partir dos quais se pode compreender e interpretar os processos de profissionalização desta actividade, tradicionalmente associada ao sector do Trabalho Social. Numa primeira secção deste artigo, procuramos revisitar alguns dos elementos genealógicos que, na nossa perspectiva, tendem a (re)configurar a figura profissional do Educador Especializado. Este, no contexto francófono, constitui-se como uma referência histórica que importa convocar, de modo a compreendermos o papel que esta figura teve e ainda continua a ter (no quadro da nossa interpretação) no contexto actual, embora com denominações distintas (ANECA, 2005; Carvalho e Baptista, 2004; López Noguero, 2005). Numa segunda secção, partindo das implicações produzidas no quadro desta breve incursão sócio-histórica (entre outros, Castel, 1995, 2003; Dubet, 2002; Ion e Ravon, 2005; Karsz, 2004; Nègre, 1999; Ravon, 2005; Rouzel, 1997; Touraine, 2005), procuraremos problematizar e articular os contributos evidenciados. Finalmente, numa terceira secção, propomos alguns elementos reflexivos e interpretativos em torno do processo de profissionalização do Educador Social. Assim, retomando de uma forma crítica a abordagem realizada ao longo das duas primeiras secções deste artigo, apresentamos a nossa perspectiva relacionada com alguns dos traços específicos que poderão estar na base do processo de

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A problemática que tem vindo a debater-se em torno da distinção entre educação escolar versus educação social ou entre trabalho social versus pedagogia social não será objecto de discussão no âmbito deste artigo. Para aprofundar estas questões remetemos o leitor para (entre outras) duas obras (Caride, 2005; Molina, 2003). No sentido de facilitar o sentido da nossa leitura, optamos por considerar que a expressão “educação especializada” (contexto francófono) tende a reconfigurar-se na expressão “educação social” (López Noguero, 2005; Ortega, 1999).

(re)configuração do perfil profissional destes actores, inscritos na actividade socioeducativa em vias de profissionalização (Molina, 2003; Sáez, 1997, 2003, 2005).

Educação Especializada (Social): Alguns Elementos Genealógicos A Educação (especializada), no contexto francófono, teve as suas origens no passado séc. XX, mais concretamente a partir da Segunda Guerra Mundial (Ion & Ravon, 2005). A sua afirmação foi progressivamente ganhando uma certa autonomia, sobretudo em relação às suas origens confessionais. Neste sentido, como referem alguns autores (Fabre, 2004; Gauchet, 1985, 1998), a “educação” é o resultado de um longo processo de secularização (por vezes, com marcas acentuadas de conflitualidade) que, numa certa interpretação laico-republicana, procurou “converter” o ideal do humanismo cristão num ideal utópico, recontextualizado e reinterpretado no quadro do movimento da modernidade. É neste contexto que François Dubet (2002) considera que o “programa institucional”4 tinha como propósito legitimar a acção socioeducativa que vários profissionais (no campo da Saúde, da Educação e do Trabalho Social) desenvolviam no quadro da socialização (ou ressocialização) dos indivíduos. No entanto, esta acção inscrevia-se numa postura paradoxal: pretendia-se (re)socializar os indivíduos em torno da norma vigente, mas ao mesmo tempo preconizava-se um ideal de liberdade e de autonomia (ideal de emancipação). Procurava-se, deste modo, socializar com o intuito de emancipar. Esta acção ficou conhecida como o “paradoxo republicano” (Dubet, 2002). Neste tipo de interpretação, a “educação” era entendida como uma determinada forma de socialização que procurava promover uma articulação entre a necessidade de uma liberdade individual e a exigência de uma igualdade entre 4

Este “programa institucional”, segundo Dubet (2002), reveste o seguinte significado: (a) “o programa considera o trabalho sobre (o sublinhado é nosso) o outro como uma mediação entre valores universais e indivíduos particulares; (b) afirma-se como um trabalho de socialização baseada nesses valores e pressupõe uma vocação; (c) este programa de socialização visa inculcar normas que conforme o indivíduo e, ao memo tempo, o torne autónomo e livre”.

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todos os indivíduos (integração social). Esta combinação pressupunha que estes progredissem para um ideal de autonomia, a partir de valores universais transmitidos numa determinada sociedade. A legitimidade deste “trabalho sobre o outro” assentava naquilo que François Dubet (2002) chamou de “programa institucional”. É esta concepção republicana que, segundo este autor, parece estar em “crise”. Para compreendermos algumas das implicações deste “declínio do programa institucional” (Dubet, 2002), no quadro da emergência de uma profissão social e educativa (a figura do Educador social) (Molina, 2003), importa revisitar alguns elementos genealógicos (educação especializada) que, em parte, poderão estar na base do processo de (re)configuração do actual perfil profissional dos Educadores Sociais. Contudo, a aproximação mobilizada no âmbito deste artigo não pretende ser exaustiva, mas tão-somente esboçar alguns elementos de compreensão de uma problemática deveras complexa e com contornos disciplinares próprios5. Numa primeira fase6 (Nègre, 1999), o Educador Especializado, assumindo ainda uma certa “postura militante” e num “registo tipo-vocacional” (Dubet, 2002), desempenhava uma função essencialmente correctiva (moral), no âmbito da chamada “infância inadaptada” (Chauvière, 1980). Trabalhando em contexto institucional fechado (internatos, casas de correcção ou reabilitação, etc.), a sua actividade centrava-se na reabilitação (ou reinserção) de indivíduos classificados como “difíceis”, “anormais” (deficientes) ou, ainda, como portadores de “comportamentos desviantes” (Ravon, 2005). O trabalho com o handicap deste tipo de indivíduos baseava-se nos pressupostos pedagógicos inscritos na ideia de uma “pedagogia da essência” (Suchodolski, 2000). Nesta concepção, cada indivíduo era portador de “dons potenciais” que deviam ser desenvolvidos (actualizados) no decurso da sua existência. Porém, nalguns casos, como esse tipo de socialização não produzia os 5

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O nosso propósito não é o de realizar a história da Educação Especializada, mas, apenas, identificar alguns dos elementos genealógicos que podem estar na base da composição actual do perfil profissional dos educadores sociais. Quanto às diversas fases, embora se demarquem no tempo (leitura diacrónica), na prática, acabam por coexistirem nas várias lógicas de acção, e que por isso mesmo são incorporadas em determinadas posturas profissionais. Esta fase, do ponto de vista cronológico, abrange um período que vai dos anos 40 até meados dos anos 60 (séc. XX).

efeitos devidos, por razões que estavam associados a um diagnóstico com “défices” (físico, mental ou sociocultural) (Ravon, 2005), então recorria-se a uma “intervenção psicopedagógica” 7 (Ravon, 2005). Este tipo de intervenção desempenhava um papel decisivo, uma vez que era percepcionado como um dispositivo que visava “formar a natureza corrompida do homem” (Suchodolski, 2000: p. 18). Esta visão veio reforçar a ideia de que cada ser humano é portador de uma essência que permanece para além das vicissitudes da contingência humana. Acreditando neste ideal de perfeição, o Educador Especializado era chamado a “corrigir” os possíveis desvios que pudessem ocorrer na vida destes indivíduos (Ravon, 2005). Nesta primeira fase, a Educação Especializada tende a ser entendida, sobretudo como “reeducação” ou “ressocialização” das crianças (jovens), com o propósito de as restaurar do ponto de vista moral (Durkheim, cit. em Ravon, 2005). Neste quadro interpretativo, a “educação” revestia uma função de controlo social e de normalização dos comportamentos tipificados como “desviantes”. Nesta concepção educativa a actividade tende a ser perspectivada no domínio da “moral” (actividade normativa) (Nègre, 1999). O perfil do Educador Especializado era predominantemente definido a partir da mobilização de técnicas ou de instrumentos de diagnóstico - importados do sector médico (Nègre, 1999: p. 39), recorrendo à observação (quase-experimental), este assumia-se como um técnico de “intervenção psicopedagógica” (Ravon, 2005). Numa segunda fase8 (Nègre, 1999), o Educador Especializado, sob a influência quer da psicologia (mais concretamente da psicanálise) (Rouzel, 1997), quer das “pedagogias não-directivas” (Rogers, 1978), tende a entender-se como um mediador de uma relação centrada no sujeito. A sua acção, inscrevendo-se numa relação de “face-a-face” e de “aceitação incondicional” (Rogers, 1978) do indivíduo, tinha como propósito ajudar o mesmo a emancipar-se das lógicas de “dominação social” ou dos “determinismos culturais alienantes” (Ravon, 2005).

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O termo de “intervenção psicopedagógica” (Alfred Binet,1897, cit. em Ravon, 2005) reporta-nos para a relação que passou a estabelecer-se entre os contributos da Psicologia Experimental e as suas repercussões no quadro da pedagogia (escolar e, mais tarde, social). Que se situa entre as décadas de 70-80 (séc. XX).

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O Educador Especializado, nesta fase, auferindo dos contributos da psicanálise, centrava a sua actividade na sua capacidade relacional com o intuito de criar um espaço de expressão dos sentimentos, a partir do qual cada criança (jovem) pudesse adquirir a sua autonomia individual (ideal de emancipação). A sua ferramenta privilegiada passa a ser a “qualidade da sua relação” (qualidades psicológicas e morais) que se configura como uma “actividade auto-simbólica” (Dubet, 2002). Embora a sua acção estivesse legitimada pelo “programa institucional” (Dubet, 2002) no qual estava inscrito, cada Educador tendia a incorporá-lo um pouco à sua maneira, “psicologizando” o dispositivo de intervenção socioeducativa (Ion e Ravon, 2005). A relação educativa (distanciando-se, criticamente, do programa institucional) corporizava-se de tal forma no estilo pessoal do educador que a eficácia simbólica tende estar indexada às suas características sociais e psicológicas, em detrimento da sua capacidade propriamente técnica (Nègre, 1999). Entre outras razões, esta visão psicologizante da sua postura profissional, leva os Educadores Especializados a definirem-se mais “por aquilo que são” (saber-ser) do que “pelas técnicas mobilizadas” (saber-fazer) (Ion & Ravon, 2005, p. 83). Finalmente, numa terceira fase 9 (Nègre, 1999), num contexto social atravessado: (a) pela erosão do “edifício simbólico colectivo” (Touraine, 2005); (b) pela queda dos “ideais educativos e republicanos” (integração versus emancipação) (Dubet, 2002); (c) pela assunção do “indivíduo negativo” (Castel, 1995) - expressando esta figura uma cada vez maior vulnerabilidade (de massas); o Educador Especializado confina-se cada vez mais ao “acompanhamento social personalizado” (Nègre, 1999). Esta postura de acompanhamento inscreve-se numa concepção dum indivíduo portador de “sofrimento psíquico” de origem social (como por ex., a perda de objectos sociais: emprego, casa, protecção laboral, segurança social…) (Ravon, 2005). Tendo como ferramenta a relação que se constrói nas “situações concretas” (cada vez mais complexas), o trabalho do Educador Especializado enquadra-se numa postura de “escuta clínica” (Rouzel, 1997) com vista à compreensão deste novo indivíduo, portador de um “sofrimento sócio-psíquico” (Ravon, 2005). Neste contexto, o trabalho educativo (ou psico-pedagógico) tende a ser percepcionado 9

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Esta última fase enquadra-se no contexto dos anos 90 e seguintes (séc. XX).

como “acompanhamento clínico”10 (Ravon, 2005), uma vez que o seu objecto de intervenção são as situações singulares (experienciais) de cada indivíduo. O propósito desta clínica educativa visa restabelecer a capacidade de acção dos indivíduos (e não corrigir, orientar ou modificar a sua personalidade) ou a sua capacidade para se “tornar sujeito” (Touraine, 2005). O Educador (especializado) trabalha com um “Sujeito pessoal” (Touraine, 2005) que sofre, mas que é capaz de agir (empowerment) (Ion e Ravon, 2005), ainda que necessitando de um acompanhamento num determinado momento de transição (perda de emprego, rupturas familiares, situações várias de risco: violência doméstica, toxicodependências, imigrantes, etc.). A “ajuda” prestada reorienta-se a partir do reconhecimento dos recursos de acção mobilizados pelo próprio sujeito, que tendencialmente é chamado a responsabilizar-se e a constituirse como actor do seu próprio desenvolvimento pessoal, social e profissional (Ion & Ravon, 2005). O objectivo da acção socioeducativa tende a deslocar-se do seu papel de “orientação moral”, para se recentrar paulatinamente na criação de condições favoráveis à apropriação da sua “capacidade para agir” (empowerment) sobre a sua vida (Ion e Ravon, 2005). Quanto ao papel do Educador, este focaliza-se predominantemente numa postura de “acompanhamento social personalizado” do indivíduo, uma postura propícia à co-produção do sentido da sua experiência singular e concreta (Nègre, 1999). Num contexto de “ruptura de laços sociais” (Castel, 1995, 2003), a acção socioeducativa deixa de se centrar na promoção (prevenção) de um ideal de autonomia individual, para se focalizar na co-produção de sentido, no quadro da própria trama experiencial da vida. Nesta terceira fase, o perfil do Educador Especializado, num contexto marcado de forma acentuada por situações de “vulnerabilidade estrutural” (Joubert, e Louzoun, 2005), tende a ser perspectivado como um “clínico” (Ravon, 2005) que procura escutar, reconhecer e acompanhar um sujeito singular, “capaz de se 10

O termo “acompanhamento clínico”, no âmbito da nossa análise, refere-se à articulação de contributos oriundos de duas disciplinas: a Psicologia e a Sociologia. A expressão “clínica psicossocial” (ver, entre outros, De Gaulejac, 1993; Ravon, 2005) tende a catalizar estes vários contributos. No entanto, neste caso concreto, quando se está a utilizar esta noção, o significado da mesma está associado ao posicionamento “psicanalítico” (Rouzel, 1997).

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tornar sujeito” da sua existência (Touraine, 2005). Todavia, este processo, em vez de gerar uma maior autonomização (ou emancipação), tem como estratégia promover uma “cultura de subjectivação” (Autès, 1999). Nesta interpretação da realidade social, em que tendem a desaparecer os “sistemas de intermediação” clássicos (Dubet, 2002), será que ainda há necessidade de um Educador (pedagogo)? Que papel é chamado a desempenhar este Educador, numa sociedade em processo de “decomposição” (queda das utopias modernas) (Touraine, 2005)? Que legitimidade tem o educador para realizar um “trabalho sobre o outro”, num contexto de declínio do “programa institucional” (Dubet, 2002)? Estas várias interrogações colocam-nos perante a relevância de que se reveste o debate que se tem vindo a fazer em torno do papel da figura do Educador social, em vias de profissionalização (Sáez, 2003).

O Perfil Profissional do Educador Social: Alguns Elementos de Compreensão Recuperando os elementos de análise convocados anteriormente, consideramos que o perfil profissional do Educador Especializado, numa primeira fase, se erigiu numa autoridade moral, legitimada pela missão que lhe era confiada e tendo por base um Programa Institucional. A sua função centrava-se essencialmente numa actividade prescritiva, orientando as crianças (ou jovens) “inadaptadas” para um processo de integração social. O Educador (Especializado) era entendido como um técnico de intervenção psicopedagógica, no campo da ressocialização ou da reeducação, tendo como finalidade integrar indivíduos portadores de um “défice individual”. Este “controlo social” veio a ser posto em causa, nomeadamente com a influência da psicanálise representada pela corrente rogeriana, que preconizava uma “pedagogia não-directiva”. Esta postura crítica, mobilizada no quadro de uma “clínica psicanalítica” (Rouzel, 1997), procurava ajudar as crianças (jovens) no seu processo de autonomização (ou emancipação). O perfil profissional do Educador Especializado, nesta segunda fase, constituiu-se a partir de uma contradição fundamental: embora a sua legitimidade assentasse num programa institucional, a sua eficácia simbólica residia fundamentalmente na indexação das suas 68

características psico-relacionais. Entre outros aspectos (como já foi referido), isto aconteceu devido à “crise” de uma certa concepção de autoridade e ao “declínio” do programa institucional. Neste sentido, a função do Educador tendia a estar associada à sua própria capacidade subjectiva (as suas qualidades pessoais), isto, à sua capacidade para mobilizar as suas disposições pessoais (características sociais e morais). Podemos, desta forma, concluir que o seu perfil se foi psicologizando (afastando-se do registo vocacional de origem confessional). Finalmente, numa terceira fase, o perfil profissional do Educador Especializado, confrontado com as implicações do que pode ser considerado, por alguns (Touraine, 2005), como o “fim da sociedade” ou da educação como uma “certa forma de socialização”, tende a reequacionar-se numa vertente clínica (psicossocial) (Ravon, 2005). Reabilitando a escuta empática rogeriana, e combinando-a no quadro da problemática da vulnerabilidade (de massas), o perfil profissional do Educador (especializado) reconfigura-se como um “clínico” que procura escutar e acompanhar um “indivíduo negativo” (Castel, 1995). O paradoxo republicano (integração social versus emancipação individual) (Dubet, 2002) começa a ser posto em causa, dando origem a uma nova figura de integração (inclusão): os “direitos culturais” (Touraine, 2005). Para Touraine (2005, p. 238), “hoje, o paradigma coloca em primeiro plano a reivindicação de direitos culturais. Tais direitos exprimem-se sempre pela defesa de atributos particulares, mas conferem a essa defesa um sentido universal”. Este novo paradigma, proposto por este autor (Touraine, 2005), inaugura um novo ciclo: a emergência de uma “cultura do sujeito”. Todavia, a valorização desta cultura da subjectivação esconde por detrás uma outra preocupação: a assunção de um “sujeito livre” está inscrita (como face da mesma moeda) na emergência de um indivíduo “desligado” da sua condição sócio-histórica (Honneth, 2000). Em certa medida, esta dissolução do sentido entendido como um “sistema homogéneo e unificador” (Touraine, 2005), a par de uma crescente precarização laboral e enfraquecimento das “protecções colectivas” (Estado-providência), contribuiu para que cada indivíduo se tenha constituído como “responsável pela sua vida” (tanto em relação aos êxitos, como em relação aos fracassos) (Castel, 1995, 2003). As repercussões desta tendência para a responsabilização individual, quando em muitos casos a responsabilidade é também colectiva, levaram alguns 69

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sociólogos a criarem uma nova figura para traduzir e expressar este mal-estar sócio-psíquico: a figura do “sofrimento social” (por ex., Joubert & Louzoun, 2005; Ravon, 2005). Esta nova figura sociológica induz-nos numa nova interpretação dos “problemas sociais”: a interiorização subjectiva das problemáticas oriundas de um contexto social gerador de “insegurança social” (Castel, 2003). O papel do Educador Especializado (Social), neste contexto social, começa progressivamente a ser percepcionado numa “óptica de acompanhamento” (Nègre, 1999). Trata-se de preconizar uma acção profissional que reconheça a “capacidade de acção” do indivíduo (Honneth, 2000), mas no quadro de uma mediação institucional (suporte social) (Castel, 2003). Este tipo de acompanhamento profissional, mais do que tentar resolver os problemas das pessoas, procura reabilitar um “espaço de intersubjectividade” (Autès, 1999), a partir do qual se possa co-produzir uma resposta com os implicados. Importa por isso mesmo valorizar o papel da “escuta” do sofrimento deste novo “indivíduo negativo” (Castel, 1995; Ravon, 2005). A “escuta clínica”, perspectivada a partir da concepção veiculada por alguns autores (por ex., Karsz, 2004; Ravon, 2005), tende a ser convocada a partir da articulação entre os vários contributos oriundos quer da psicologia, quer da sociologia. Esta visão integrada – configurada a partir do conceito “psicossocial” (Ravon, 2005) ou “transdisciplinar” (Karsz, 2004) - procura superar uma certa visão estreita da perspectiva “clínica”, na sua versão psicanalítica (Rouzel, 1997), e que se centra quase exclusivamente na dimensão intrapsíquica do sujeito. A “postura clínica” (De Gaulejac, 1993) salienta o papel da dimensão relacional (a relação), a partir da qual se pretende “escutar” (sensivelmente) o sujeito, portador de uma condição sócio-histórica e de uma inscrição simbólico-cultural. Esta “escuta clínica”, para Vincent de Gaulejac (1993: p.14), “tem por objecto deslindar os nós complexos entre os determinismos sociais e os determinismos psíquicos, tanto nas condutas dos indivíduos e dos grupos, como em relação às representações que estes se fazem daquelas. Esta (clínica) inscreve-se no coração das tensões entre objectividade e subjectividade, entre estrutura e acção, entre indivíduo produto sóciohistórico e indivíduo criador de história, entre reprodução e mudança, entre dinâmicas inconscientes e dinâmicas sociais…”. Partindo destes pressupostos, brevemente esboçados, regressamos ao nosso questionamento inicial: num contexto social atravessado pela “insegurança”, pela 70

“vulnerabilidade” (de massas) ou pela “dessocialização” (Castel, 1995, 2003; Dubet, 2002), mas ao mesmo tempo, quase de forma paradoxal, num tempo em que se tende a reivindicar uma cultura da subjectivação ou reabilitar o “Sujeito pessoal” (Autès, 1999; Honneth, 2000; Touraine, 2005), que tipo de perfil profissional é exigido ao Educador Especializado (Social)? Reconhecendo o “sujeito social aprendente” (Dumazedier, 2002) como “agente de educação”11, qual poderá ser o papel do profissional? Que tipo de mediação pode vir a exercer? Que elementos (re)configuram a composição do seu perfil quer ao nível das suas genealogias históricas, quer ao nível das transformações sociais com que se vê confrontado no campo da sua acção profissional? Como conciliar a sua dimensão técnica (requisito de qualquer profissão) com a sua dimensão ética (dimensão específica do acto educativo)? Em nome de quê ou de quem legitima a sua acção profissional, num contexto de “declínio do programa institucional” (Dubet, 2002)? Este questionamento indica-nos o tipo de debate que se tem vindo a fazer em torno da figura do Educador Especializado ou como prefere López Noguero (2005) do “Educador Social Especializado”. A expressão “Educação Social” (no quadro da perspectiva) corresponde uma tentativa de incorporar tantos os contributos oriundos das suas genealogias históricas (Educador Especializado), como os contributos provenientes da reflexão sociológica, no quadro da reconceptualização do Trabalho Social (clássico) (Chopart, 2000). A reconceptualização do Trabalho Social (clássico) convoca novos pressupostos sociológicos. Já não se trata de “reparar” ou “integrar” um indivíduo com “problemas de inadaptação” (social) ou um indivíduo que necessita de se “emancipar” dos seus determinismos sociais ou culturais, mas de nos confrontarmos com um indivíduo que é chamado a “produzir-se a si próprio” e ao mesmo tempo a co-produzir os seus “laços sociais” (Castel, 2003; Dubet, 2002; Ravon, 2005) 11

Esta ideia de que o “sujeito de educação” é agente de si próprio inscreve-se no debate que se tem gerado em torno do conceito de “autoformação” (Pineau, 2000). Com efeito, o educador ou o pedagogo, apenas, trabalha com as “condições”, quanto e aos processos de aprendizagem, estes são de “autoria” do próprio sujeito (Meirieu, 2001. Neste sentido, o conceito de “educação” reveste-se de um duplo significado: a educação como uma acção pilotada pelo sujeito de educação; a educação como uma relação de acompanhamento que visa gerar condições para que este se torne “sujeito social aprendente” (Dumazedier, 2002).

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É a partir deste enquadramento que, na secção seguinte, procuramos sugerir alguns dos traços específicos que podem estar na base da configuração do perfil profissional associado a esta nova figura: o Educador Social.

A Construção de um Perfil Profissional: Alguns Traços Específicos Em relação à evolução do perfil profissional do Educador Especializado, desde as suas origens confessionais (numa óptica de militância e num registo vocacional), passando pela fase mais radicalizada (crítica) - na qual esta figura profissional sofreu uma psicologização da sua função pedagógica, sendo esta quase reduzida a uma mera relação empática (rogeriana) - culminando na revalorização do papel da relação de acompanhamento inscrita numa “postura clínica”, percepcionada e interpretada a partir da articulação entre os contributos da psicologia (psicanálise) e o papel da sociologia (do sujeito), o perfil profissional do Educador Especializado foi-se (re)configurando a partir de vários contributos disciplinares (Nègre, 1999; Ravon, 2005; Rouzel, 1997). Procurando evitar tanto o psicologismo, como o sociologismo, a tentativa de querer conciliar estas duas áreas disciplinares, levou Bertrand Ravon (2005) a conceber esta “postura clínica” como uma retro-alimentação mútua: a sociologia tende a recentrar-se no “sujeito singular” e a psicologia passa a focalizar-se na problemática da “ruptura de laços sociais” (Ravon, 2005, p. 56). A psicologia começa ocupar-se do sofrimento psíquico, mas atribuindo-lhe uma origem social: (entre outros) os efeitos do “declínio do programa institucional”, da “decomposição social”, da “erosão do edifício simbólico colectivo”, do “enfraquecimento do Estado-providência”, etc. (Dubet, 2002; Castel, 1999; Touraine, 2005). Quanto à sociologia, partindo do reconhecimento da experiência singular dos actores que se inscrevem a partir de um ambiente social atravessado pelo “sofrimento sócio-psíquico”, procura reabilitar a figura do “Sujeito pessoal” ou do “Sujeito ético” (Canastra, 2005; Joubert e Louzoun, 2005; Ravon, 2005; Touraine, 2005). Desta forma, a psicologia privilegia uma leitura da realidade social do sujeito, para além da sua dimensão intrapsíquica; a sociologia tende a reabilitar o papel da “experiência singular” do sujeito ou de uma “cultura da subjectivação” (Autès, 1999; Le Gaulejac, 1993). 72

É partir da articulação entre estas duas disciplinas (psicologia e sociologia) e da sua recontextualização no campo da pedagogia-educação (social), que nos propomos realizar uma aproximação conceptual em torno da figura profissional do(a) Educador(a) Social, tendo como quadro referencial a articulação entre esta “leitura transdisciplinar” (Karsz, 2004) e algumas das implicações (provisórias) evidenciadas no âmbito de uma Investigação Empírica12 . Os Educadores Sociais, hoje, deparam-se com um “público-alvo” diferente daquele com o qual trabalhavam há uns anos atrás os Educadores Especializados. Com efeito, começa-se a reconhecer que os “problemas sociais” (a partir dos quais o profissional exercia a sua actividade) tendem a ser interpretados e compreendidos como “problemas de acção” (Ion e Ravon, 2005). Isto significa, entre outras coisas, que o tipo de “ajuda” prestada aos indivíduos se centra cada vez menos nos seus défices (sejam eles físicos, mentais ou socioculturais) e cada vez mais nas suas potencialidades (empowerment), na sua capacidade para “se tornar sujeito”, tendo como mediação as “transacções simbólico-culturais”, a partir das quais cada indivíduo “se produz a si próprio” (Dubet, 2002; Ion e Ravon, 2005; Molina, 2003; Touraine, 2005). Por conseguinte, para além do papel da “clínica psicossocial” (Ravon, 2005), que destacamos como essencial na construção do perfil profissional do Educador Social, importa ter presente que a “educação é um acontecimento ético” (Bárcena e Mélich, 2000) que, ainda que não prescinda da sua dimensão técnica (métodos, didáctica, tecnologia…), é preferencialmente uma questão de “arte”, de “tacto”, de “sensibilidade”, numa palavra, de “ética” (Van Vanen, 1998). Por outro lado, ao convocar o papel da “pedagogia”, não o fazemos nem na lógica psicopedagógica ou na vertente de uma pedagogia não-directiva, mas sim no sentido que lhe dá Philippe Meirieu (2001), designando-a por uma “pedagogia das condições” (e já não uma pedagogia normativa ou uma pedagogia do modelo). Este tipo de pedagogia procura reabilitar o sujeito enquanto capaz de se autoproduzir (autoformar) a partir de uma “autorização pessoal” das suas

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Esta investigação (em fase de conclusão) inscreve-se no âmbito de um Doutoramento em Ciências da Educação, especialidade Educação Pessoal, Social e Comunitária. Tem como problemática central os dilemas (tensões/contradições) a partir dos quais um grupo de futuros(as) Educadores(as) Sociais tende a (re)apropriar-se do sentido de que se revestem os seus processos de profissionalização.

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ressonâncias simbólico-culturais, que o constituem e através das quais procura tornar-se “sujeito-autor”13. Neste sentido, o papel da pedagogia tende a deslocar-se da sua “postura normativa” para se assumir numa “postura de acompanhamento” (Nègre, 1999). Trata-se, deste modo, de sugerir, mais do que impor; de escutar, mais do que diagnosticar; de acompanhar, mais do que conduzir (dirigir ou orientar); de reconhecer, mais do que intervir (sobre ou outro) (Dubet, 2002; Honneth, 2000; Van Manen, 1998). É no quadro global desta interpretação que apresentamos a nossa proposta relacionada com a construção do perfil profissional do Educador Social e que combina, de forma dinâmica e dialógica, três elementos configurativos: (a) uma escuta clínica (transdisciplinar) (Karsz, 2004); (b) um tacto pedagógico (Van Manen, 1998); e (c) uma postura ética (Paturet, 1995; Charlier, 1998). A “clínica transdisciplinar” (Karsz, 2004) procura mobilizar uma escuta baseada numa desconstrução das “configurações ideológicas mobilizadas” nas situações, nos problemas, nas experiências, nas concepções dos indivíduos ou nos dispositivos de intervenção dos próprios actores profissionais. Com este tipo de clínica (transdisciplinar), o Educador Social começa por fazer um trabalho de elucidação com o sujeito, de forma a objectivar (distanciamento) o mais possível a situação ou o problema que o afecta. Esta “postura clínica transdisciplinar” tenta explicitar o que, muitas vezes, reside na sombra, está oculto ou não é verbalizado; ou o que, com alguma frequência, não é tido em conta: o inconsciente, o desejo, as motivações; ou, ainda, o que em muitos casos está por detrás das situações (ou problemas) dos indivíduos: os valores, os interesses, os 13

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Ferreira-Alves e Gonçalves (2001: p. 66-67) estabelecem, de uma forma clara, a distinção entre os conceitos de “autonomia” e de “autoria”: “Na noção de autonomia como objectivo educativo para o nosso tempo repousam, provavelmente, dois grandes equívocos: em primeiro lugar, uma epistemologia absolutista (positivista), proveniente da crença na superioridade máxima das operações formais na construção do indivíduo e, em segundo lugar, uma visão que concentra no sujeito individual e descontextualizado a fonte do seu sucesso no mundo, proveniente do conceito de identidade que lhe está associado. À autonomia queremos contrapor e propor um novo conceito que nos parece conciliar em si as exigências pessoais e sociais de uma sociedade pós-moderna: a Autoria. Promover a autoria é procurar fazer de cada indivíduo um autor da sua história. Só que, por contraponto ao sujeito formado pela escola da modernidade, a quem se procurou promover a autonomia, o autor é alguém comprometido e envolvido com as circunstâncias familiares, sociais, culturais e históricas do seu tempo”.

posicionamentos (parciais, mas percepcionados como absolutos), numa palavra, as “ideologias”14. A “clínica transdisciplinar” (Karsz, 2004) visa desconstruir (explicitar) as omni-explicações produzidas no campo da intervenção social. Seja qual for a leitura, a interpretação ou a intervenção, estas são sempre parciais, locais ou provisórias, implicando uma “postura de abertura” para outras dimensões, registos ou lógicas (Karsz, 2004). O “tacto pedagógico” (Van Manen, 1998) propõe-nos uma outra abordagem do papel que deve desempenhar a pedagogia, no contexto actual. Depois da crise do “trabalho sobre o outro” (Dubet, 2002), entendido no quadro de uma concepção pedagógica centrada numa acção normativa (orientar, dirigir, aconselhar, educar…), importa, mais modestamente, encarar a actividade do pedagogo como alguém que, no “terreno”, nas “situações” ou na própria “acção profissional”, procura mobilizar uma “sensibilidade ética”, a par de uma “inteligência situacional” (Larrosa, 2000, Meirieu, 2001). O tacto pedagógico inscreve-se num trabalho que incide nas “temporalidades subjectivas” (Pineau, 2000) de cada sujeito singular (concreto) e tem como propósito sugerir-lhe condições (recursos), interpelá-lo nas suas disposições (implicação pessoal, desejo, responsabilidade) e procurar induzi-lo na elaboração do seu próprio projecto de vida (Van Manen, 1998). O tacto pedagógico justificase pelo facto de o educador se confrontar com um sujeito (agente de educação) que, para além de ser produto e portador de uma “história”, de uma “cultura”, uma de “memória”, de uma “tradição”… é, também, produtor (recriador) destas (Larrosa, 2000). Todavia, devido em grande parte à erosão do sentido colectivo - entendido como um sistema unitário e homogéneo – e ao tipo de implicações que este fenómeno tem gerado, a “figura de acompanhamento” (Nègre, 1999) tende a constituir-se na nova ferramenta dos Educadores Sociais, confrontados cada vez mais com indivíduos que “sofrem” determinadas perdas, rupturas ou dissociações (psico-sociais). O papel do(a) Educador(a) Social tende a estar associado à sua 14

Saül Karsz (2004: 146) considera que a actividade educativa é, eminentemente, normativa e, por isso, ideológica. O autor estabelece, deste modo, uma distinção entre as noções de “objectividade” e a “neutralidade”. Em relação à primeira, reporta-se ao registo científico; quanto à segunda, remete para à dimensão ideológica. Na verdade, o autor considera, que a pretensa neutralidade, não passa de uma ideologia que atravessa quer os discursos quer as práticas da actividade profissional dos trabalhadores (educadores) sociais.

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capacidade para mobilizar Dispositivos de Acompanhamento que facilitem a emergência de um Sujeito que seja capaz de “se produzir a si próprio” e ao mesmo tempo de co-produzir os seus “laços sociais” (Dubet, 2002; Joubert e Louzoun, 2005; López Noguero, 2005; Ravon, 2005; Touraine, 2005). A “ética” (Charlier, 1998; Meirieu, 2001; Paturet, 1995), sendo uma das dimensões específicas de qualquer profissional enquadrado numa “actividade relacional” (por ex., os trabalhadores sociais ou educadores) (Dubet, 2002), constitui-se como um dos eixos estruturadores das profissões sociais (Autès, 1999). Importa, não obstante, clarificar o que pretendemos expressar com a utilização deste conceito (ética)15. Trata-se de reconhecer que as profissões enquadradas no “relacional” (Dubet, 2002), desde as suas origens (confessionais), tiveram como preocupação realçar o papel que revestiam os valores ético-morais, no âmbito da sua actividade profissional. Se considerarmos que estes profissionais se confrontam sempre com um “rosto humano irredutível” (Lévinas, cit. em Charlier, 1998), então o Sujeito nunca deve ser reduzido a um mero “objecto” de intervenção. A Ética coloca-nos perante um imperativo: reconhecer a singularidade de cada Sujeito. Um sujeito que se constitui como “autor-produtor” das suas escolhas, das suas decisões ou das suas acções. A Ética, nesta concepção, reabilita o Sujeito como responsável da sua vida pessoal e social (ou profissional) e como portador de “alteridades” (as configurações simbólico-culturais) que o formam e a partir das quais “simboliza” a sua relação consigo, com os outros e com o seu meio-envolvente (Charlier, 1998; Pineau, 2000). Partindo destes pressupostos, consideramos que o perfil profissional do(a) Educador(a) Social obedece a uma lógica “construtivista”, uma vez que se vai construindo na trama da própria acção profissional e a partir de um “trabalho sobre si próprio” (Dubet, 2002). 15

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Paul Ricouer (1990) distingue a moral da ética. Enquanto que a primeira se reporta ao comportamento ou à conduta concreta dos indivíduos em relação às “normas”; a ética inscreve-nos numa postura reflexiva relacionada com o sentido de que se reveste essa mesma conduta. Por isso, mais do que saber se uma determinada conduta é correcta ou justa, a ética procura mobilizar um questionamento permanente sobre os motivos que levam alguém a construir o sentido do seu posicionamento no quadro de determinadas normas.

O perfil profissional do(a) Educador(a) Social tende a configurar-se em torno da sua capacidade para mobilizar (e integrar) uma escuta clínica, um tacto pedagógico e uma postura ética. Assim, a sua principal ferramenta de trabalho é a “escuta sensível” e o “tacto pedagógico”; o seu “objecto” de intervenção é a própria “relação educativa” que se joga nas situações singulares e concretas; a sua finalidade é contribuir para a emergência de um Sujeito ético, que se coproduz a partir das ressonâncias das suas “configurações simbólico-culturais” de que é portador (Autès, 1999; Canastra, 2005; Molina, 2003).

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A Educação Intergeracional no horizonte da Educação Social: compromisso do nosso tempo Cristina Palmeirão 1

Resumo O artigo que agora se apresenta enfatiza a Educação e intervenção Intergeracional e fundamenta-se a partir de um projecto – Redes de Encontro Intergeracionais – especialmente criado e desenvolvido, no âmbito do nosso trabalho de doutoramento, com a finalidade de aferir a validade sócio pedagógica de práticas de educação e intervenção intergeracional, em contexto escolar (1ºCiclo). Cada sessão (semanal) exaltava princípios de partilha, saberes e competências entre gerações. A análise dos documentos/testemunhos (quantitativos e qualitativos) indicam que o projecto ajudou a criar um quadro de ideias mais positivas sobre o envelhecimento e promoveu atitudes igualmente positivas entre gerações.

Introdução No desenvolvimento das sociedades, a mulher e o homem têm vindo a conquistar uma maior longevidade e, embora a ritmos diferentes, a esperança média de vida continua a crescer (Nazareth, 2004), o que aviva a necessidade de pensar as políticas de natalidade (cf. Decreto-Lei nº 308-A/2007) e a reflectir a

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Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/UCP

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problemática da educação e da solidariedade intergeracional. Se é verdade que as actuais unidades familiares vivem tempos de grande transformação, é igualmente verdade que a complexidade das actuais relações sociais (Giddens, 2005), demandam outro tipo de interacções e de cooperação capazes de possibilitar a construção de alicerces comunicacionais e relacionais adequados às sociedades do nosso tempo. Em termos cronológicos, as raízes de uma mensagem mais científica e, naturalmente, mais esclarecida a propósito do envelhecimento mundial dos povos e a necessidade de uma atitude mais participativa, surgem nos anos oitenta do século passado. Da I Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento (1982), germinaram princípios orientadores para a construção colectiva de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Sementes vigorosas e profícuas porquanto fizeram nascer uma outra consciência e uma atitude mais coerente com os direitos da pessoa e, em especial, da pessoa idosa. Interdependência, participação e dignidade, foram máximas expressas na Primeira Assembleia e reiteradas - de forma peremptória -, em Madrid, durante a Segunda Assembleia Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento (2002), no sentido de invocar um novo olhar sobre a velhice e o acesso a «ambientes de humanidade» (Azevedo, 2007, p.15) que propiciem viver melhor. A deslocalização das famílias associada ao rápido processo de urbanização, ao número crescente de famílias multigeracionais e a institucionalização da velhice (Fernandes, 1996) apelam a uma intervenção e inclusão social de maior latitude e, principalmente, à assunção de uma atitude mais positiva de interdependência e intercâmbio de comunicação e de convivência intergeracional. Obviamente, a provisão natural de interajuda deve ser, sempre que possível, de natureza familiar e alimentada por afectos e por uma ética que transcende a obrigatoriedade do «velho» pacto geracional. Todavia, há factores que inviabilizam a existência de vínculos de proximidade naturais e a razão é, na maioria das vezes, o modus vivendi das actuais composições familiares. Do «Plano de Acção Internacional sobre o Envelhecimento (2002) ressalta um compromisso que valoriza, fundamentalmente, o “acesso ao conhecimento, à educação e à capacitação” e a premência de “fortalecer a solidariedade mediante a equidade e a reciprocidade entre as gerações”. A intenção é clara, o que se pretende é reflectir e accionar todas as estruturas de maneira a desenvolver nas pessoas (e 82

nas instituições) competências relacionais, cognitivas e afectivas que permitam olhar o futuro de forma esclarecida e confiante e, assim, aumentar a qualidade e a satisfação de vida. Mais, para que estes princípios se concretizem há que criar «instrumentos» consistentes com a especificidade das sociedades multigeracionais. Nessa perspectiva, há anos que se valoriza a dimensão educativa, porquanto se acredita ser esta a melhor «bússola» para facilitar o diálogo entre gerações e, evidentemente, valorizar aspectos éticos e culturais, enquanto esteios para edificar a sociedade presente e futura.

A partir da educação… intergeracional Num tempo em que as sociedades vivem momentos de grande ambiguidade e insegurança (Baudrillard, 2002; Bauman, 2005; Fraga, 2001; Gil, 2005; Hobsbawn, 2008) a prática dos princípios que «modelam» a sociedade do aprender e do conhecimento é um exercício complexo, mais ainda quando a multiplicidade de situações de debilidade, de pobreza extrema e de histórias de vida que se perdem no vazio de um universo carregado de acontecimentos de destruição e violência se cruzam e coexistem com um universo fulgente e de um colossal desenvolvimento científico e tecnológico (Castells, 2005). O que se exige é o comprometimento e o esforço do próprio indivíduo na sua relação com os outros (Carvalho, 1994, p.19). De resto, um desafio e um requisito das culturas integradas, onde “o valor do respeito pela vida de todas as pessoas evidencia a função sociopedagógica da educação, no sentido de realçar a orientação e a cooperação intergeracional” (Palmeirão, 2007b, p. 85). De facto, a sociedade contemporânea, requer atitudes enérgicas e um caminhar comprometido cuja meta é a de construir uma sociedade plural que “não tem sentido sem uma referência ao educativo” (Caballo Villar, 2001, p.14), porquanto, explica a autora, “a educação não é só uma preocupação do sistema educativo mas sim um instrumento social e cultural imprescindível para a coesão comunitária e pessoal (idem). Uma sociedade para todas as idades pressupõe uma pedagogia e uma educação, cuja matriz se fundamente no conhecimento e na interacção enquanto estratégia educativa para o desenvolvimento de competências relacionais e onde o afecto é a «essência» para uma efectiva participação. 83

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A evolução do mundo requer uma educação ao longo da vida e uma actualização permanente, de forma a responder eficazmente às problemáticas da nossa contemporaneidade (terrorismo, violência, solidão, desemprego, discriminação, …). Sendo assim, o desafio é actuar segundo uma lógica que carece ainda de um melhor conhecimento do processo de desenvolvimento do ser humano e dos actuais modelos de inserção social a partir da perspectiva humanista. A par de um cenário pouco optimista e, sobretudo, muito exigente no que respeita à necessária demolição de preconceitos e estereótipos, erguem-se esteios no sentido de fazer germinar novos espaços de participação e de intercâmbio geracional e, obviamente, oportunidades alternativas para fazer brotar percursos de vida edificados na vontade do indivíduo, enquanto «fazedor» do seu trajecto de vida e onde o sentido deve seguir o traçado desenhado pela educação, enquanto «meio» capaz de gerar «lugares de densidade antropológica» (Augé, 2005) e, naturalmente, um rumo e uma «territorialização» singular em prol de uma maior dignidade e valorização humana.

A pensar nos dias futuros A necessidade de pensar novas redes de solidariedade tem feito despoletar um modelo de actuação interactivo e de natureza sócio-pedagógica, onde o que se deseja é facilitar o contacto intergeracional através do conhecimento efectivo do processo de desenvolvimento e envelhecimento do indivíduo e pela aprendizagem recíproca enquanto estratégia capaz de fazer germinar uma consciência que encoraja o respeito pela diferença e valoriza a história de vida de cada um dos actores (Aday, McDuffie e Sims, 1993; Bales, Eklund e Siffin, 2000; Lohman, Griffiths, Coppard e Cota, 2003; Newman, Karip e Falso, 1995). O mundo presente desfruta de uma capacidade científica e tecnológica sem precedentes, o que possibilita extraordinárias oportunidades de capacitação para a mulher e para o homem chegarem à velhice com mais saúde e maior bem-estar. Mesmo assim, o número de pessoas idosas a viverem sozinhas (INE, 2001) ou em situação de institucionalização é uma realidade inquietante. A participação dos idosos nas sociedades implica, antes de mais, reconhecer que todas as idades são complementares e que cada estádio acontece na sequência das 84

aprendizagens e experiências precedentes. “Todas as pessoas, sem excepção, possuem valor e potencial a desenvolver, independentemente das experiências negativas que marcam a sua história de vida” reitera Isabel Baptista (Baptista, 2007).

Uma experiência de Educação Intergeracional O contacto entre pessoas de diferentes idades tem sido uma prerrogativa estimulada desde meados do século passado e o «território» favorecido é frequentemente a escola (Palmeirão, 2007, p.79-119), enquanto “lugar” ideal para aprender a compreender e agir em conformidade com o desenvolvimento e a interacção solidária entre gerações. Incitar a mudança de paradigma de comunicação e de entendimento social são, de facto, contributos reconhecidos às práticas de intervenção intergeracional (Goff, 2004; Klein, Councill e McGuire, 2005; Visser e Mirabile, 2004), já que possibilitam e enfatizam a componente formativa e socializadora (Middlecamp e Gross, 2002; Marx, Pannel, Parpura-Gill e Cohen-Mansfiel, 2004; Zeldin, Larson, Caminho e O’Connor, 2005) e, nesse sentido, facilitam a aprendizagem ao longo da vida. “Os homens [e as mulheres] não podem viver juntos sem se entenderem e, por consequência, sem fazerem sacrifícios mútuos, sem se ligarem uns aos outros de maneira forte e durável” (Durkheim, 1977, p. 261) o que requer uma relação e uma proximidade centrada na prevalência da interajuda e na assunção de uma qualidade de vida ancorada no desenvolvimento da sua pessoalidade. Em cada cultura existem códigos e rituais específicos de cooperação e o pressuposto é, num horizonte possível, conquistar o direito à felicidade, um desiderato e um desafio permanente à nossa humanidade. A vida diária é um exercício constante de costumes, práticas, saberes e memórias que misturados de forma consistente são a essência para viver mais e melhor. Nesse sentido, o importante é valorizar experiências, saberes e o potencial humano de cada geração enquanto recursos para criar espaços de comunicação e participação e assim fazer nascer uma cultura gerontológica que nos permita viver de forma digna todos os anos da nossa vida. Redes de Encontro Intergeracionais (REI’S) inscreve-se no projecto do nosso doutoramento – A interacção geracional como estratégia educativa: um contributo 85

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para o desenvolvimento de atitudes, saberes e competências entre gerações - e tem como finalidade averiguar em que medida um projecto socioeducativo, no domínio da educação intergeracional, pode contribuir para o desenvolvimento pessoal e social dos cidadãos, qualquer que seja o grupo etário em que se integra. Activar a participação entre gerações; criar momentos de partilha de saberes e experiências; diminuir atitudes negativas e estereótipos sobre adultos mais velhos e fazer despertar uma nova consciência multigeracional, foram os pressupostos de partida para justificar a nossa acção.

Participantes/Amostra O grupo de pessoas participantes foi de cerca de cinquenta pessoas de ambos os sexos e cujas idades variavam entre os 8 e os 91 anos. O grupo júnior contava 20 crianças - 9 raparigas e 11 rapazes. Relativamente à idade, todos completaram 10 anos até ao final de 2006. Quanto ao grupo das pessoas idosas, trata-se de um grupo de indivíduos, residentes num lar na cidade do Porto e a média de idades era de 76,2 anos. Do grupo de comparação contamos 23 crianças – 11 meninas e 12 meninos, do 4º ano de escolaridade e cujas idades não ultrapassaram os 10 anos. Os restantes elementos participantes, são pessoas adultas, doze do sexo feminino e duas do sexo masculino, em termos de grupo etário têm entre os 25 e os 60 anos.

Estratégias de Desenvolvimento O presente estudo foi concretizado numa Escola Básica do 1º Ciclo (EB1) e num Lar para Pessoas Idosas (Lar). Relativamente ao modelo de actuação, o percurso resulta da acção de um grupo de trabalho, da cooperação interinstitucional e de um plano de actividades edificado numa metodologia de natureza mista (Braud & Anderson, 1998; Creswell, 2002, Patton, 1980), activa e participativa (Trilla, 1997). Especificamente, arquitectamos um projecto de intervenção com a finalidade de modificar e melhorar a forma de pensar e representar a velhice, o papel do idoso no mundo actual e as relações sociais. 86

Em termos de procedimentos, a recolha de informações foi realizada durante todo o período de desenvolvimento do Redes de Encontro Intergeracionais e durou cerca de um ano. Uma vez por semana, preferencialmente, à sexta-feira, o grupo de crianças e pessoas idosas juntam-se e «trabalham» conforme o articulado na sessão anterior e tendo em atenção o definido no Projecto Curricular de Turma (PCT) e o Plano de Actividades do Lar (PAL). É, tendo por base estas matrizes, que articulamos e implementamos uma série de acções - construção de materiais, visitas interinstitucionais, encontros e grupos de discussão focalizada - e coligimos um «corpus» de informações muito diversificado. A heterogeneidade dos materiais gerados, forçou a aplicação de «ferramentas» de análise e interpretação diversas - análise de conteúdo, inquéritos, grupos de discussão e observação participante. No caso das composições escritas e porque se trata de documentos pessoais, recorrermos à análise do acordo e da fiabilidade correlacional entre juízes, aferida pelo coeficiente de Kappa de Cohen (Pestana e Gageiro, 1998, 208). Quanto aos inquéritos por questionário, aplicado a alguns elementos da comunidade educativa e do lar (pais/mães, professores/professoras e colaboradores do Lar) utilizamos a análise descritiva. Para aferir a «impressão» do projecto, a técnica usada foi o grupo de discussão focalizada e, de forma transversal, a observação participante, foi o «dispositivo» sempre presente, por via presencial e de registos audiovisuais (Figura 1). Figura 1 Cronograma Estratégias do Projecto REI’S Leitura, declamação, visitas, teatro, dança, celebração Direitos da Criança, entretenimento, … Inquéritos

Documentos Pessoais Composições Desenhos Poemas …

Análise/2 juízas Medida/ Kappa

Pais Mães 14

Grupos Discussão

Prof.

Lar

4

4

Análise descritiva

Pessoas Idosas

Análise impacto

Crianças

Observação Participante Registos Audiovisuais

Portfólio digital

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Sobre as Iniciativas O desenho inicial do Redes de Encontro Intergeracional contemplava apenas o 1º trimestre do ano lectivo. Mas, por vontade expressa dos principais actores (crianças e pessoas idosas), prolongou-se até final do ano lectivo. O grupo de trabalho reunia, frequentemente, e redesenhava as acções conforme a dinâmica escolar e o plano de actividades do Lar, visando: 1) articular as actividades com os conteúdos curriculares definidos no PCT, no sentido de promover a aprendizagem significativa e cooperativa; 2) propiciar a interacção entre as pessoas, principalmente, pessoas idosas e crianças, através da realização de tarefas colaborativas e interactivas; 3) permitir o diálogo e demonstração de competências e 4) propiciar o diálogo de relações de proximidade emocional.

Entre visitas... Logo no primeiro encontro e, através de um jogo interactivo - “o encontro” (Becattini, 2004, p. 29), os participantes (crianças e pessoas idosas) entrevistaram-se mutuamente. Estimular o diálogo e a comunicação entre pessoas que mal se conhecem foi o objectivo pensado, juntamente com o convite para criar o logótipo do REI’S. Das visitas, as crianças e as pessoas idosas, comentam o entusiasmo e o gosto de conhecerem e partilharem momentos da vida quotidiana e um tempo diferente de interacção e de aprendizagem. Da observação, ressalta a forma (quase) natural como se desenvolvem as interacções e o tipo de afectos que se geram entre grupos. Iniciativas que permitiram desenvolver conhecimentos e competências de diálogo e de interacção intergeracional. “Porto Sentido” de Carlos Tê, “Barco Negro” de David Mourão Ferreira e “Uma Casa Portuguesa” de Reinaldo Ferreira, foram alguns dos poemas declamados pelas crianças com a colaboração dos participantes mais velhos. Encontro após encontro a disponibilidade para «bem receber» no lar e na escola é uma realidade que conta com a cumplicidade de todos. O tempo foi passando e em vez de se pensar o fim do projecto, foi necessário repensar as acções e adiar a festa final. O dia 6 de Janeiro foi a data escolhida 88

para celebrar formalmente o fim dos «encontros» e associar a nossa festa à festa de REIS. A partir daqui nasce a oportunidade de criar outros momentos de interacção e de aprendizagem, desta vez, no «mundo das novas tecnologias» em que as crianças assumem o papel de “professores”.

Festa dos REI’S Finalmente o dia de REI’S chegou e a festa aconteceu, entre canções de natal, visionamento do filme gerado durante os encontros - “Entregerações” e um poema feito (pelos senhoras e senhores idosas) especialmente para celebrar e homenagear as meninas e os meninos da escola. A Escola de Costa Cabral É uma escola exemplar Tem meninos muito lindos Que se fartam de estudar. Refrão Os Reis vimos festejar Neste dia especial Queremos continuar A alegria de Natal Professores sempre a ensinar Português e Matemática Sempre sempre, sem parar Inglês e Informática.

Refrão Os Reis vimos festejar Neste dia especial Queremos continuar A alegria de Natal. Netos vimos conhecer Com grande satisfação Estamos sempre a aprender Com a nova geração. Refrão Os Reis vimos festejar Neste dia especial Queremos continuar A alegria de Natal

Um lanche convívio antecedeu novos momentos de interacção e culminou com a entrega das lembranças feitas no lar para celebrar o REI’S - bonecas de trapos, cintos de cabedal e porta-chaves. As crianças fizeram também as suas ofertas (luvas, livros, lenços).

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Celebrar o Dia Mundial da Criança 1 de Junho de 2006 foi um dia muito especial para as crianças e para as pessoas idosas participantes no Redes de Encontro Intergeracionais. A ideia cresceu e desenvolveu-se durante os muitos momentos de convívio e resulta da «história» destas crianças a propósito da amizade. Do lar o compromisso para organizar, juntamente com as pessoas idosas, os jogos intergeracionais (jogo do saco, dança das cadeiras, jogo da patela, jogo das latas, …) e da escola o desafio de organizar e ensaiar uma peça de teatro - “No País das Fábulas”. O grande dia chegou! A peça começa, o silêncio “ouve-se”. Depois, o bater das palmas anuncia o fim da peça e breves minutos de intervalo. Ao som da música “I Like To Move It” as crianças dançam e lançam confetis. No lar, a satisfação e a alegria é uma realidade. A seguir ao lanche (um momento sempre presente em todas as sessões) começam os «jogos intergeracionais». O Dia Mundial das Crianças termina num ambiente de grande alegria (e euforia) onde a idade não é barreira para a «arte de bem receber», conviver e aprender a ser mais pessoa. Já quase no final do ano lectivo e, ainda a propósito do «nosso projecto», foi lançado um outro desafio. “Ler nos joelhos do Tempo” foi o mote para solicitar a cada criança uma reflexão sobre o «Redes de Encontro Intergeracional». Mais tarde e numa iniciativa da escola e da Rede Escolar de Bibliotecas, o grupo sénior é chamado a participar num evento a realizar na Biblioteca Almeida Garrett. Lá, as crianças apresentam os trabalhos (poemas) desenvolvidos no âmbito deste desafio.

Dos Resultados Fazer a análise dos documentos construídos no percurso deste trabalho composições, desenhos, poemas escritos, registos audiovisuais, … - foi uma tarefa complexa, dado tratar-se do pensamento e imagens da memória de crianças e pessoas com uma história e experiência de vida longa. Porém, a “arte de interpretar os textos (…) é uma prática muito antiga” (Bardin, 1979, p.14; Sousa, 2005, p.264) que requer uma atenção cuidada e um sentido crítico que possibilite 90

cumprir não só os propósitos do estudo, no caso, averiguar de que forma um projecto de intervenção socioeducativa influência e altera o quotidiano destas pessoas e destas instituições, mas também, reproduzir fielmente os que narram os «actores» de forma a preservar a palavra dita. Das composições «retiramos» o perfil e a representação social e gráfica destas crianças em relação às pessoas maiores de sessenta e cinco anos de idade. Traços que permitem desenhar com alguma facilidade um «rosto» ímpar de cada uma das pessoas idosas imaginadas. A necessidade de um olhar isento fez-nos recorrer a uma avaliação por juízes independentes, privilegiando assim um olhar descomprometido e aferir, através de uma «medida» – Kappa Cohen (1960), o valor e consistência do estudo. Os registos apresentam níveis crescentes de concordância: actividades (75%), características de personalidade negativas (80%), dimensões relacionais (86%), personalização física (92%) e personalização social (96%) e para as dimensões “pessoais” e “cronológica” o acordo observado atinge a pontuação máxima (100%), circunstância que sugere a fiabilidade das avaliações e uma impressão diferente (no sentido positivo) à medida que o projecto acontece. O que parece dizer que as crianças estão mais despertas para as questões relacionadas com o envelhecimento, com a velhice e com a institucionalização do idoso. No que respeita à representação gráfica, as juízas salientaram: 1) as cores utilizadas para animarem os desenhos - vermelhos, verdes e azuis; 2) o facto de a pessoa idosa estar (quase) sempre a sorrir; 3) a circunstância de a pessoa idosa estar, normalmente, “provida” de bengala, óculos e 4) os homens serem “carecas”. Da apreciação global das composições ressaltam ainda características e preconceitos herdados do passado e o facto de ser o grupo de comparação quem adjectiva de forma menos positiva – vagarosos, rabugentos, frágeis, deixando uma imagem redutora e estereotipada da pessoa idosa. Os escritos do grupo de crianças participantes, traçam um novo perfil da pessoa idosa, menos dependente (sem bengalas, sem doenças, sem corcundas), mais positivas e mais comunicativas (alegres, conversadoras, participativas, interessadas em aprender), mais bem-humoradas e sobretudo mais dinâmicas. A pessoa idosa ganha expressão e a representação traduz uma imagem nova (pelo menos para este grupo), quando comparamos os escritos dos «encontros» iniciais. É verdade que os desenhos traçam uma figura fragilizada e, normalmente, «presa» a situações de debilidade física: de bengala; em cadeira de rodas; acamadas. 91

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Para mim o idoso é quando uma pessoa tem bastante idade. O idoso chega a uma certa idade que já não fala e também já não anda. Alguns idosos quando já não conseguem andar tem que ficar na cama ou às vezes os vão passear. Os idosos têm os ossos muito frágeis, por isso quando caem têm que ir logo para o hospital (…) (Doc. 14C_10_05).

Ou, o idoso é muito doente e têm dores de costas ou tem dores de cabeça (…). O idoso tem que ir ao médico, os novos não têm esse problema, porque tem um corpo saudável e os idosos não porque já têm muita idade (Doc 22C_10_05).

Apesar disso, a análise dos documentos pessoais permite observar que as crianças caracterizam de forma mais positiva as pessoas idosas à medida que o processo de educação e de intervenção acontece.

Do inquérito aos pais e mães/Encarregados de Educação Do inquérito aplicado aos pais/mães sobressai, essencialmente, uma resposta positiva e o facto de «os encontros» terem possibilitado o conhecimento e o diálogo intergeracional. Os testemunhos referem que “aconteceu com bastante frequência o meu filho interessar-se por continuar a visitar as pessoas mais velhas dizendo que se aprende muito com elas”. Inquiridas sobre as mudanças verificadas no contexto familiar e a forma como as crianças percepcionam a figura das pessoas mais velhas, as respostas foram igualmente positivas. A maioria dos pais/mães, afirmam existir uma “melhor aceitação dos familiares idosos” e “mais conhecimento e compreensão”. Quanto à natureza e ao interesse deste tipo de intervenção os comentários foram absolutos. Na opinião destes pais/mães trata-se, antes de mais, de “um bom complemento da educação (…) e um bom exercício para “aprender a respeitar e amar os mais idosos”. Seguindo o mesmo questionário, inquirimos os professores que connosco laboraram mais assiduamente na execução do projecto. Questão a questão, os registos são essencialmente positivos e de estimulo à prossecução deste tipo aprendizagens e de interacções. 92

A turma ficou mais unida, mais compreensiva entre si, mais afectiva e carinhosa (…) Em termos pessoais, para professores e para algumas pessoas da comunidade escolar foi muito gratificante e contagiante esta nova forma de abrir as portas da escola aos outros (…) (Doc. 4_P_06).

Das potencialidades deste tipo de acção os professores inquiridos declararam que os aspectos foram positivos, porquanto, “estes projectos incentivam os idosos a serem mais activos e participativos na comunidade, desenvolvendo a autonomia e a personalidade de cada indivíduo” (Doc. 1_P_06), ao mesmo tempo, facilitam a transmissão de valores em idades precoces. No lar, os elementos inquiridos, referem que a «impressão» do REI’S é muito positiva. Primeiro, porque os «encontros» estimularam a mudança, principalmente, em termos de satisfação pessoal e aumentaram a auto-estima dos participantes. Segundo, porque proporcionaram um agradável clima institucional e pessoal que se estendeu à restante comunidade do lar. De facto, “foi um importante contributo para a melhoria dos sentimentos de auto-estima e integração social (Doc. MIR_2007) e um bálsamo para o “envelhecimento activo e envolvimento intergeracional (…)”(Doc. CP_2007).

Dos Grupos de Discussão Da sessão com o Grupo Sénior e depois de explicado o teor da reunião, organizamos a sessão com a colaboração dos oito participantes. Motivação para a participação foi a questão de partida para melhor compreendermos a dimensão privilegiada pelos “actores” seniores implicados. Do diálogo sobressai o forte sentimento de satisfação, de alegria e de surpresa face à atitude e receptividade das crianças. A resposta foi unânime. Tratava-se de uma oportunidade diferente de se relacionarem com outras pessoas e de «fugir» à rotina. De início não queria participar. Depois, pensei melhor e achei que devia dar-me uma oportunidade (…). Sempre saía um bocadinho! E assim, passava melhor o tempo. Habitueime a estes encontros, a estas crianças, era com grande satisfação (e até ansiedade) que aguardava a chegada das crianças e a ida à escola. Foi muito bom e importante para mim (Q1-Sr R). 93

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Um outro elemento do grupo, apressa-se a explicar que: fomos convidados a participar. Achei que era interessante e uma coisa diferente. Por isso aceitei. Não me arrependo. Era muito agradável. Às sextas-feiras lá íamos nós (…). Ou vinham cá eles (…).O carinho que recebi e a relação que criamos com as crianças e com as senhoras professoras é o aspecto mais importante a registar (Q1-Sra O).

Dos relatos transparece o grau de satisfação conseguidos pela quebra das rotinas e pela “forma calorosa” (Q1 – Sra. I) como eram recebidos. Sobre as aprendizagens, falaram da ideia que tinham em relação aos mais novos. Uma atitude de distância, diziam. Imagem que os «REI’S» ajudaram a repensar e a modificar. As crianças amaciaram-me (…). O que não é fácil. Sou uma pessoa pouco acessível [os presentes concordaram]. Não gosto de convívios, nem de festas (…). Mudei (…). Noutros tempos não sei se admitia fazer este convívio (…). Mas, um miúdo em particular fez-me repensar certas atitudes adoptadas no passado (…). Noutros tempos (…) eu era uma pessoa diferente (…). Diria que este miúdo me conquistou (…) [olhando para os outros … que acenaram a cabeça em sinal de confirmação]. É verdade (…) durante a minha participação, mudei (…) (Q2 - Sr. R).

Todos comentaram o quão importante foi fazer parte do projecto. A razão evocada foi quase sempre a questão da relação e a possibilidade de partilharem histórias, conhecimento e experiências. Um dos aspectos interessantes (várias vezes focado), foi a questão da relação entre professores/as e alunos/as. Um dos senhores estava particularmente satisfeito “com a forma como as senhoras professoras falam com os meninos e com as meninas (…). Antes, os professores não eram tão simpáticos. Tão carinhosos. Hoje há mais comunicação, mais carinho, mais à vontade” (Q2 - Sr. J). Outra senhora dá conta que: uma das maiores aprendizagens sentidas tem a ver com os afectos, com o carinho que aprendemos a ter por aquelas crianças e elas por nós. A relação que se criou é o que de mais importante aprendemos (Q2 – Sra. L).

A propósito das mudanças sentidas, responderam de forma positiva e que havia sido uma oportunidade valiosíssima de convívio com pessoas muito mais 94

jovens e, sobretudo, a possibilidade de conseguirem percepcionar de forma diferente a escola, os meninos e a própria educação. No final, o grupo refere que gostava de continuar com os «encontros». Foi um tempo muito bom. Até me esquecia das doenças. Não me doía nada (…) A sério (…). A vinda das crianças ao lar e nós à escola, fez-me olhar diferente. Deixar algumas coisas para traz (…). Como as crianças se divertiam! Corriam (…) temos muito espaço (…) fartavam-se de correr e brincar (…). Não era (…). Se pudesse, gostava de continuar… (Q4 – Sra. L).

Viver os seus dias de forma agradável, onde o convívio pode ser uma importante estratégia de «bem viver» e de mais aprender são as dimensões dominantes. O jeito de falar e a troca de olhares permite elaborar um outro «retrato», onde as emoções, os sentimentos e a esperança «brilha» nos olhos de cada um. As viagens à escola (…) a visita das crianças ao lar, (…) as entrevistas que as crianças nos faziam (…) tão engraçadas! A boa disposição (…) o carinho com que nos tratavam e nos abraçavam (…). Foi um tempo muito bom (…). Foram momentos inesquecíveis (Q4 – Sra. I).

Tal como aconteceu com o grupo sénior, também no grupo juvenil começou-se por fazer referência ao projecto e aos propósitos da “reunião”. No caso, toda a sessão foi orientada pelo “moderador convidado”. Explicado o âmbito da sessão, as crianças concordaram em participar. Numa linguagem muito singular, começaram a dar nota dos aspectos mais significativos deste envolvimento intergeracional. Todos gostaram muito do contacto que se estabeleceu com as pessoas do lar. O que mais recordam foi a forma como foram recebidos e o facto de no lar, “haver um lago com peixinhos, um cão e muito espaço para brincar” (Q1 - V). Ao princípio, dizia um dos meninos, “parecia uma casa pequenina, mas era muito grande” (Q1 - MT), até havia “oficinas, onde trabalhavam, de um lado os homens e do outro as mulheres. Os homens faziam molas, tapetes, …As senhoras faziam bordados e “bonequinhas muito giras, que nos ofereceram na festa” (Q1 – Mar). Todos foram falando dos dias que passaram junto e do que fizeram no dia mundial da criança – jogos – sentar no balão, jogo do saco, teatro, dança, … 95

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Apurar de que forma a interacção entre os diferentes indivíduos provocou mudanças na sua forma de ser e estar foi outro desafio. As respostas foram no sentido de pensarem de forma diferente, para melhor, o convívio entre as pessoas mais velhas e a própria velhice. Sobre as aprendizagens, responderam que tinham sido sobretudo ao nível dos conhecimentos e da percepção de como vivem as pessoas mais velhas e as “coisas” que fazem e que podem fazer. Sobre a representação da pessoa idosa, pedimos que usassem quatro palavras – duas positivas e duas menos positivas, para caracterizar a pessoa idosa. O consenso é geral, na opinião destas onze crianças, as pessoas idosas são, sobretudo amigas, inteligentes2 e simpáticas3. Relativamente ao futuro, a maioria respondeu que gostava que o projecto se repetisse e, se possível, com as mesmas pessoas.

Conclusão Para que qualquer sociedade prospere, cada pessoa tem que ser responsável e comprometida com o devir do seu trajecto de vida e, naturalmente, com o futuro das novas gerações. Nesse sentido há que «cultivar» uma nova mentalidade e assim fazer nascer uma solidariedade que responsabilize e possibilite a cada um sonhar um horizonte germinado por sementes de altruísmo, ética e educação. É nesse horizonte que interessa reflectir a Educação Social e, evidentemente, a Educação Intergeracional enquanto eixo imprescindível para “criar condições diferenciadas para que grupos etários diferentes possam ter acesso e exercer o poder e o controlo sobre as suas próprias vidas, de forma a potenciar o bem estar das suas comunidades” (Menezes, 2007, p. 63) e, naturalmente, abrir «lugares» numa sociedade que se deseja para todas as idades. «Aprender a ser» é um exercício que nos acompanha desde que nascemos até que morremos e, nesse sentido, a pedagogia social enquanto ciência preocupada e voltada para o desenvolvimento do ser humano facilita e promove a inclusão social, a cooperação e a solidariedade. Por outras palavras, a Pedagogia Social

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Nesta categoria, agregamos as seguintes subcategorias: esperto, sábio, génio, criativo. Nesta categoria, agregamos as seguintes subcategorias: amoroso, querido.

enquanto saber enfatiza todas as dimensões do saber (informal, formal, não formal), porquanto é da articulação e da complementaridade entre saberes que nasce “uma filosofia de acção” (Baptista, 2008, p. 15) específica e cuja aprendizagem aponta a «estrada» que garante o acesso ao crescimento e propicia uma atitude mais positiva e mais feliz. Nesta perspectiva, a Educação Intergeracional aproxima-se dos propósitos da sociedade educativa, onde a interacção e as aprendizagens são ocasião para desenvolver e aprender a estruturar uma sociedade mais esclarecida, mais justa e mais responsável. No futuro fica a esperança de um diálogo saudável e uma atitude mais positiva e menos preconceituosa para com as pessoas de diferentes idades da vida e uma cultura consistente e coerente com os ideais de uma sociedade plural onde a aprendizagem ao longo da vida não negligencia ninguém e onde o objectivo final é “o de encontrar estratégias de mediação humana que ajudem a «fazer sociedade» (Baptista, 2008, p. 15).

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Espaço, universo de relações e a questão da alteridade. Uma reflexão sobre a cidade de São Paulo/ Brasil Marielys Siqueira Bueno1 | Maria do Rosário Rolfsen Salles2 | Sênia Bastos3

Resumo Este artigo tem por objectivo caracterizar as relações de alteridade na dinâmica do espaço e da população dos Bairros centrais da cidade de São Paulo, destacando os diferentes aspectos de sua modernização no quadro da evolução capitalista, que intensificaram o seu ritmo de actividades, bem como as desigualdades espaciais entre áreas urbanas. Esses factores têm consequências directas sobre as diferentes formas de hospitalidade que a cidade vem adquirindo através dos tempos. Estereótipos se criaram em função de sua imagem de “selva de pedra”, e portanto, de inospitalidade, ao lado de outras que se constituíram no processo de acolhimento aos imigrantes estrangeiros e aos migrantes internos, de uma cidade que oferece oportunidades, que acolhe sem discriminação. Resulta dessa reflexão a constatação da possibilidade de criação de formas de solidariedade e de espaços ou lugares de hospitalidade na vida colectiva dos Bairros e das festas comunitárias.

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Docentes do programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São Paulo / BRASIL Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São Paulo / BRASIL Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São Paulo / BRASIL

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Em todas as esferas do quotidiano, no plano da vida institucional ou na diversidade de territórios de sociabilidade humana, nos locais de trabalho ou de lazer, nos espaços privados num tempo assustadoramente complexo, importa conseguir promover práticas de cidadania assentadas no valor de acolher a diferença no respeito ao outro enquanto outro (Baptista, 2005).

Este trabalho resulta das reflexões levadas a efeito pelo grupo de pesquisa: Socioantropologia da Hospitalidade, do Mestrado em Hospitalidade, da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, Brasil. A proposta do trabalho é reflectir sobre as relações de alteridade no contexto da hospitalidade urbana, tomando-se como referência o espaço urbano como universo de relações sociais. A reflexão centra-se num projecto de pesquisa intitulado “São Paulo recebe”, levado a efeito pelo grupo de pesquisadores com o objectivo de entender a dinâmica do espaço e da população dos Bairros centrais da cidade de São Paulo, percorrendo seus arredores (arrondissements), inspirando-se em grande parte, na pesquisa efectuada por Michel et Monique Pinçon-Charlot para a cidade de Paris. (Cf. Pinçon e Pinçon-Charloy, 2001) e na reflexão de outros autores que serão mencionados no decorrer do artigo. O projecto em curso, objectiva levantar situações de acolhimento e inospitalidade na região central da cidade de São Paulo. Para tanto, são necessárias algumas informações sobre a cidade e seus bairros centrais: centro de comércio e de serviços, intensamente verticalizada, o Centro de São Paulo caracteriza-se por uma ocupação de intenso dinamismo no horário comercial, grande adensamento populacional e baixo índice de moradias em condições subnormais. Concentrando importante património histórico cultural, destacam-se nessa área, as tradicionais ruas de comércio especializado: 25 de Março (bijutarias, papelaria e tecidos), Santa Efigénia (equipamentos eletroeletrónicos e computadores), São Caetano (vestido de noiva), José Paulino, Oriente e Maria Marcolina (vestuário popular e enxovais). Parte das edificações (muitas tombadas pelo Conselho Municipal de Preservação do Património Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp) encontra-se em um processo de alteração de uso, transformando-se em centros culturais (prédio dos Correios do Vale do Anhangabaú, Caixa 102

Económica Federal da rua Roberto Simonsen, entre outros), bem como abrigando secretarias dos governos municipais e do estado de São Paulo, acções que visam revitalizar a região por meio de investimentos no mercado imobiliário com a conversão de edificações comerciais em prédios residenciais (como a conversão dos hotéis Britânia e Central em prédios de apartamentos) e programas de renovação ambiental e paisagística. Iniciativas no sentido de demarcação de espaços legais para a realização do comércio ambulante redundam em fracassos subsequentes. Existe uma permanência histórica da actividade na região. Inicialmente comercializavam-se produtos de consumo imediato nas vias de acesso e área externa do Mercado Municipal, então localizado na rua Vinte e Cinco de Março, nas proximidades da rua General Carneiro. Carrocinhas circulavam pelas ruas, entregando géneros de porta em porta. Demolido o edifício, o terreno foi convertido em uma praça ajardinada, hoje intensamente ocupada por vendedores que comercializam toda sorte de produtos típicos das diferentes regiões brasileiras, bem como artigos importados e/ou pirateados, que sugerem a prática de contrabando, sonegação fiscal e ausência de obrigações trabalhistas. Reunidos principalmente nas ruas de comércio popular, o uso desorganizado do espaço, com a presença de coberturas improvisadas, ausência de sistema de depósito do lixo e o grande número de vendedores em áreas restritas comprometem a circulação dos pedestres, tornando-se uma verdadeira batalha a circulação por esses locais. Nas brechas de encerramento das actividades formais, as ruas são ocupadas por moradores das habitações colectivas, que usam-nas como extensão de suas casas, mediante instalação de churrasqueiras e aparelhos de som, que divertem adultos e crianças. Vai-se ao centro, mesmo quando não há intenção de ir, em virtude de um sistema de transportes pouco objectivo que mantém linhas de ónibus centralizadas na região desde o período imperial, quando não havia vias de ligação entre os bairros e todos os caminhos conduziam ao triângulo histórico.4 Apesar do metro, o circuito dos ónibus de passageiros reproduz o mesmo traçado, sem objectivar a distribuição das linhas, que em concorrência com os veículos

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O triângulo histórico é formado pelas ruas Direita, XV de Novembro, São Bento e adjacências.

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particulares, congestionam as principais vias de circulação a qualquer hora do dia. Os pontos iniciais localizam-se, sobretudo, nos arredores das praças da Sé e República, e nos terminais urbanos no parque Dom Pedro e praças da Bandeira e Princesa Isabel, ou seja, presentes na área delimitada pelo estudo. A diversidade cultural da cidade materializa-se na constituição de áreas de forte concentração étnica, como é o caso dos judeus (Bom Retiro) e árabes (25 de Março), que gradativamente vão sendo influenciados por nordestinos, mineiros, nortistas e, recentemente, coreanos e bolivianos, alterando a tessitura social e arquitectónica. Identidades diferenciadas permeiam a trama urbana, configurandose em recurso actualmente valorizado pelos programas de exploração turística. Desta forma, o que se pretende ressaltar e discutir, são os diferentes aspectos da modernização da cidade de São Paulo no quadro da evolução capitalista, que intensificam o seu ritmo de actividades e causam uma expansão da divisão de trabalho. Isso provoca, como consequência natural, um desdobramento em diferentes núcleos urbanos que, por sua vez, determinam desigualdades espaciais entre áreas urbanas. Nessa imensa malha de relações e contradições contínuas, a cidade de São Paulo se organiza criando espaços para ordenar as relações sociais. Desta forma, a verdadeira compreensão da cidade passa pela forma de apropriação de seu espaço e o uso desse espaço pela população. A imagem de São Paulo aliada ao progresso ou como a locomotiva que conduz o restante do país, construída ao longo do processo cujas origens remontam ao desenvolvimento da economia cafeeira e à industrialização, nos remete necessariamente à história e à trajectória da cidade. É bastante difundida hoje a imagem de São Paulo como uma “selva de pedra”, uma cidade preferencialmente voltada aos serviços, aos negócios, aos investimentos financeiros, num processo de desindustrialização, ainda que assumindo a liderança sobre uma série de actividades fundamentais do país, no sector financeiro, no aspecto cultural etc., mas passando visivelmente por uma desaceleração do seu ritmo de crescimento. Esse “movimento” tem consequências directas sobre as diferentes formas de hospitalidade que a cidade vem adquirindo através dos tempos. Estereótipos se criaram em função dessa imagem de “selva de pedra”, e portanto, de inospitalidade, ao lado de outras que se constituíram no processo de acolhimento aos imigrantes estrangeiros e aos migrantes internos, de uma cidade que oferece oportunidades, que acolhe sem discriminação. 104

Consequências do desenvolvimento urbano para a sociabilidade O desenvolvimento urbano, como bem mostra Morin (1978), não somente trouxe o florescimento individual, liberdade e lazer, mas atomização como consequência das coerções organizacionais. Isso aponta para a importante função da hospitalidade. Aqui se adopta a noção de hospitalidade descrita por Camargo (2002) como “um conjunto de leis não escritas que regulam o ritual social e cuja observância coloca em marcha o vínculo humano e cuja violação remete os indivíduos e as sociedades ao campo oposto, da hostilidade”. Aborda-se a hospitalidade no sentido de uma abertura para a alteridade, enquanto o primeiro grau de compromisso e de alianças que ampliam, fortalecem ou rompem vínculos sociais. As modalidades de Hospitalidade que sempre acompanharam o homem na sua trajectória histórica perduram até hoje mas agora, ultrapassaram as suas fronteiras tradicionais e permeiam instâncias sociais colectivas, políticas e económicas. O espaço pensado como uma construção social, um espaço-tempo historicamente definido, construído, (Castells, 1983) tem uma função social primordial como lugar de sociabilidade, pois é o lugar que confere sentido de pertença e dá ao cidadão a seiva que nutre sua identidade, embora dentro da diversidade que está subjacente às diferenças no espaço e na estrutura social. A organização desse espaço, com suas formas de expressão e características de expansão, determina desigualdades espaciais entre as áreas urbanas. Assim, como diz Lynch, (1982, p.12) “a cidade é uma construção no espaço, mas uma construção em grande escala, algo perceptível no decurso de longos períodos de tempo”. Cada momento encerra muito mais do que é possível uma geração apreender, uma cadeia de acontecimentos e constructos historicamente trabalhados por sujeitos sociais diferentes, convivendo num “mesmo palco”. É por isso que a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas parcial e fragmentária, porque é uma realidade em constante construção. As cidades surgem num determinado espaço e, enquanto produto social, surgem ocupando-o progressivamente, dotando-o de uma estrutura de dimensões sociais estratégicas e simbólicas. Morar numa cidade significa trabalhar, recrear, compartilhar espaços urbanos, e principalmente supõe interacção, sociabilidade. 105

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M. Maffesoli (1984, p. 27) faz interessantes considerações sobre o espaço urbano como suporte da sociabilidade, quando afirma que a cidade é “potencialmente, rica em aventuras e através do jogo da diferença, pode provocar situações, encontros, e momentos particularmente intensos”. Mas, esse aspecto da sociabilidade no quadro da modernização e da evolução capitalista em seus diferentes aspectos, intensifica o ritmo e a expansão da divisão do trabalho, o que provoca naturalmente, um desdobramento em diferentes núcleos urbanos que determinam as desigualdades espaciais entre as áreas urbanas. Os indivíduos estão claramente delimitados num espaço, - espaço esse que se confunde com sua identidade. O espaço não é o reflexo da sociedade, mas sua expressão, como lembra Léfèbvre (2001) a respeito da produção do espaço urbano. Baptista e Carvalho, (2004), lembrando Bourdieu, salientam que a Sociologia deve considerar a importância do fato do individuo estar “acantonado num lugar e num momento”, enquanto propriedade essencial do seu objecto, pois para Bourdieu, há uma correspondência entre os espaços sociais e os espaços urbanos. Essa noção está implícita nos conceitos de habitus, que Baptista e Carvalho (2004, p. 27) resumem como “a incorporação que cada um de nós faz do social e que condiciona as nossas acções e reacções, assim como nossas preferências, gestos, aversões e maneiras de pensar, de perceber e de sentir”. Isso reforça as diferenças entre grupos sociais relacionadas às diferenças entre as áreas habitacionais. Para Regina Prosperi Meyer (1979) o regulador dessa ocupação é o valor do solo urbano e, enquanto a produção do espaço é obra de um trabalho colectivo, seu consumo tem sido sempre privilégio de classes. As reflexões sobre como se desenvolve, se ordena e se controla o espaço numa cidade, tocam portanto, não somente na questão do solo e do trabalho, mas principalmente no significado dos valores que regem a sociedade em que vivemos. A cidade, diz Paul Singer (1973) é a sede do poder e, portanto, da classe dominante. Talvez por isso, as cidades passem por um processo de contínua destruição e reconstrução, num esvaziamento da região urbana central e desalojamento do cidadão para regiões periféricas, num processo de “espoliação urbana” (Kowarick, 2003, p. 81 e segs.). Este autor trabalha com o conceito de cidadão privado e sub-cidadão público, na análise da noção de exclusão social e económica. Trata-se de alargar essa noção, diz ele: 106

[...] ela não é apenas a materialidade objectiva que decorre primordialmente do processo de venda da força de trabalho e do seu desgaste, que no caso das cidades supõe também o acesso aos bens de consumo colectivo [...] As condições materiais objectivas, de per si, não constituem o motor das transformações sociais, pois o que importa é o processo de produção de experiências do qual decorrem os significados que ele passa a ter para múltiplos e frequentemente opostos actores sociais (Kowarick, 2003, p.83).

Nesse processo, residências passam a ser utilizadas comercialmente ou são destruídas e substituídas por prédios, shoppings–centers etc. Tudo isso em nome da modernidade. A função social do espaço urbano é de extrema importância, pois é o lugar de passagem comunicação, informação e integração. Dessa forma, um espaço fragmentado se reflectirá na qualidade de vida e nas relações inter-humanas. Segundo Maurice Godelier, (2002) vivemos num contexto social cujo modelo económico exclui, em seu processo de produção, um grande número de seus membros em função do progresso tecnológico, e, além disso, nos países desenvolvidos a principal fonte de exclusão dos indivíduos é a economia. Mas, a incapacidade manifesta do mercado e do estado em resolver a amplitude dos problemas sociais, conduz à busca de formas de uso do espaço urbano que permitam uma sociabilidade participativa, o que representa as condições objectivas, socialmente necessárias para a reconstituição da sociabilidade fundamental à vivência da alteridade. Assim, na diversidade de espaços de sociabilidade, é importante criar condições de proximidade que ajudem a consolidar as relações de convivialidade para superar as condições de isolamento, injustiça e exclusão. O enraizamento, o sentido de pertença a um grupo social, confere identidade aos indivíduos e isso lhes dá, em função do uso colectivo e participativo do espaço público, condições de superação das tendências de desintegração devido à fragmentação do processo de urbanização. Espaços que criam vivências de convivialidade são particularmente importantes para o homem contemporâneo pelos riscos do individualismo que compromete o equilíbrio entre o publico e o privado. Jacques Godbout (1999, p. 252) aponta para o fato de que “o homem moderno se liberta dos vínculos com as pessoas substituindo-os por vínculos com as coisas”. Mas, diz ele, “o efeito perverso desse processo é que a acumulação 107

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não só não liberta, como também aumenta nossa dependência em relação às coisas e cria uma infinidade de necessidades”. Assim “o moderno pseudoemancipado do dever de reciprocidade, desmorona-se sob o peso da acumulação do que ele recebe sem retribuir, torna-se doente, e sua sensibilidade o torna incapaz de suportar as relações humanas”. O fato da cultura moderna estimular a emancipação dos vínculos sociais concebidos como fardos a serem desvencilhados, aponta para a relevância do espaço público como suporte para a geração de relações sociais, num tempo social que resulta da inserção do indivíduo em actividades participativas e inclusivas.

Espaço, alteridade e hospitalidade Richard Sennet (1989, p. 21), diz que “o triunfo da liberdade individual de movimento, simultaneamente ao surgimento das metrópoles do século XIX, levou ao dilema específico e que ainda persiste: cada corpo move-se à vontade, sem perceber a presença dos demais”. Ou seja, o estilo de vida da sociedade moderna acarretou o esvaziamento do espaço público. A passagem de uma convivialidade pública e comunitária para um processo de privatização decretou o que Sennet chamou de o ‘declínio do homem público’. Para ele, o espaço urbano transformouse numa área de passagem, não de uso e isso empobreceu o tecido relacional da sociedade, com consequências, evidentemente sobre a hospitalidade. Balandier (1979, p.256), na mesma linha de argumentação, afirma que na sociedade de indústria avançada encontram-se tendências contraditórias. Há uma aproximação, uma redução do isolamento devido aos meios de comunicação, conferindo aos acontecimentos, uma espécie de ‘ubiquidade’ que assegura um conhecimento do ‘outro’. No entanto, o desenvolvimento das sociedades de massa, forma, por assim dizer, anticomunidades, cujas complexas organizações têm funções que ocultam a pessoa, contribuindo para a solidão individual. Citando P. Schaffer diz: “numa sociedade cada vez mais ‘comunicante’, o individuo se sente cada vez mais sozinho”. Atento à disfuncionalidade urbana, Richard Sennet (1989, p. 21), aponta para os problemas psicológicos decorrentes dessa separação do indivíduo do processo participativo e de acção em grupo. Ocorre, como consequência, um aumento com 108

as questões relativas ao ‘eu’ à medida que a participação em actividades com finalidades sociais diminui. Nessa sociedade, diz ele, ‘’as energias humanas básicas do narcisismo são mobilizadas de modo a penetrarem sistemática e perversamente nas relações humanas”. Para ele, a energia básica do narcisismo, no sentido restrito de ser a “preocupação consigo mesmo, que impede alguém de entender aquilo que é inerente ao domínio do eu e da autogratificação e aquilo que não lhe é inerente’’ está mobilizada de modo a “penetrar sistematicamente e perversamente nas relações humanas’’. Quando uma sociedade mobiliza os sentimentos subjectivos amplia a preocupação privada em detrimento da preocupação pública, ou seja “a visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público é abandonado, por estar esvaziado” (Sennet, 1989, p.26). A ideia básica da alteridade está na noção do ‘outro’, da diferença que constitui a vida social e só pode ser efectiva na construção de relações empáticas em práticas de cidadania em espaço plural e diversificado. Há, portanto um consenso entre os estudiosos sobre a correspondência entre a forma e qualidade do uso de espaço urbano e a sociabilidade e relações de alteridade. Há, também, um consenso de que a modernidade fragmentou o uso desse espaço provocando isolamento social, formas de exclusão e múltiplos obstáculos para os relacionamentos comunitários. Tudo isso se soma aos males do mundo contemporâneo da globalização e urbanização crescente – desemprego, emprego precário, exclusão etc. e ninguém questiona sobre a repercussão desses factores nos aspectos sociais e igualmente nos aspectos psicológicos do indivíduo. No entanto, há, igualmente um consenso quanto à existência de espaços alternativos nos quais grupos sociais, apesar das dificuldades, dos obstáculos, da fragmentação e violência urbanas, criam e experimentam novas unidades sociais, novos estilos e através deles, multiplicam possibilidades de engajamento social. Os indícios dessas reacções são numerosos. Dentro desse quadro surgem importantes possibilidades que se contrapõem à deterioração da sociabilidade. São dinâmicas socioculturais nas quais os atores sociais são portadores de projectos que imprimem aspirações de actuar, interferir no sentido de provocar mudanças para uma sociedade mais justa e mais equilibrada. A emergência desses grupos se situa fora dos sectores tradicionais - o público e o privado – por isso mesmo é comummente chamado de terceiro sector. Para 109

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Ruth Cardoso (1997, p.8) trata-se de algo novo que está mudando a sociedade e que não quer “se submeter nem à lógica do mercado nem à lógica governamental”. Há uma grande diversidade de atores. Entre essas organizações o denominador comum é o carácter voluntário e o compromisso com a comunidade. Esse novo espaço de iniciativas sociais se abre para a experimentação de novos modos de actuar, agir na comunidade e interagir com ela. É o que Isabel Baptista (2005, p.12) chama de “dimensão ética ligada à responsabilidade de existirmos em sociedade. Esse largo campo de iniciativas representa um aspecto importante na moderna concepção de solidariedade com função redistributiva e sua proliferação se explica pelo fracasso do modelo económico em reduzir as desigualdades e assimetrias sociais e pela impotência do estado em atender às necessidades básicas da cidadania.

Hospitalidade: O Dom do espaço A proliferação dos movimentos ancorados no voluntariado e no engajamento associativo e na criação de solidariedades novas só pode funcionar na opinião de Alain Caillé (2004), no registo do dom. Allain Caillé faz parte de um grupo de intelectuais franceses contemporâneos fundadores do grupo M.A.U.SS (Movimento antiutilitarista em Ciências Sociais), que tem como núcleo de reflexão, a teoria da dádiva de Marcel Mauss e que se empenha em apontar o alcance dessa teoria para as sociedade modernas. Esse grupo, como mostra Martins (2004, p.11) “vem chamando a atenção sobre o fato de que a dádiva não constitui uma teoria social a mais, na moda, mas a modalidade específica da produção da convivência não apenas entre os homens mas entre os seres vivos em geral”. Ao rever a teoria de Mauss, Jacques Godbout (1999) assegura que a dádiva não é apenas uma característica das sociedades primitivas mas está presente igualmente nas modernas e contemporâneas e não se refere apenas a momentos isolados e descontínuos mas, enquanto matriz dos vínculos sociais, é a instauradora da sociabilidade. Godbout (1999, p. 252) ainda salienta que “a dádiva é a alternativa à dialéctica do senhor e do escravo. Não se trata de dominar o outro nem de ser 110

dominado, mas de pertencer a um conjunto mais amplo, de restabelecer a relação, de se tornar membro”. A reflexão sobre a permanência da dádiva entre os modernos, juntamente com a questão da hospitalidade e seus desdobramentos são os temas centrais do Grupo M.A.U.S.S e de todos os outros que se uniram a eles seguindo, sem reservas essa linha teórica que Caillé chama de “terceiro paradigma” visando superar os dois grandes paradigmas das Ciências Sociais: o individualismo e o holismo. Caillé (2002, p. 11) justifica a sua proposta: “como o dom é por natureza aquilo que permite superar a antítese entre o eu e o outro, entre obrigação e liberdade, entre a parte do herdado e a parte do legado a receber, compreenderse-á facilmente que pensar segundo o dom implica aprender a superar a tensão não resolvida entre os dois grandes paradigmas em que se dividem as Ciências Sociais”. Nesse sentido, entende-se a hospitalidade como uma abertura para a alteridade enquanto o primeiro grau de compromisso e de alianças que ampliam, fortalecem ou rompem vínculos sociais. Definindo hospitalidade como um modo privilegiado de encontro interpessoal marcado pela atitude de acolhimento, Isabel Baptista (2002, p.158), dimensiona toda a sua importância ao afirmar: Ao tentar sublinhar a dimensão ética da hospitalidade procura-se evidenciar a necessidade de criar e alimentar lugares de hospitalidade, onde, do nosso ponto de vista, surgem a consciência de um destino comum e o sentido de responsabilidade que motiva a acção solidária.

Ao sublinhar a necessidade de criar lugares de hospitalidade, Isabel Baptista confirma a importância que os estudiosos dão às festas populares, consideradas como um espaço privilegiado para o acolhimento, para a hospitalidade, lugar por excelência da expansão da sociabilidade. Realmente, a festa supõe o acolhimento do ‘outro’, numa expansividade colectiva e a hospitalidade que ela supõe, implica a dádiva do espaço e a doação de si mesmo, estabelecendo assim, uma dinâmica de reciprocidade que se identifica com a base da teoria de Mauss. Rita de Cássia Amaral (1998), aponta em seu trabalho sobre a festa Brasileira, seu poderoso papel mediador entre as estruturas económicas bem como entre as diferenças sociais, estabelecendo pontes entre grupos. Segundo a autora, a festa 111

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é capaz de apreender o sentimento de cidadania, contendo uma tríplice importância: Cultural, por colocar em cena valores, projectos, arte e devoção como modelo de acção cultural e como produto turístico capaz de revigorar as cidades. O ciclo de festas italianas na cidade de São Paulo: Nossa Senhora da Acchiropita, São Genaro, São Vito Mártir, Santo Emidio e Nossa Senhora de Casaluce, demonstra a relevância e o valor de actividades festas no cenário urbano por dispor de lugares e ocasiões para promover o potencial de inserção do indivíduo na comunidade. A mobilização da comunidade através das actividades e funções para a realização da festa, atesta a responsabilidade de pertencer a um grupo comunitário e tem como função reafirmar o sentimento de comunhão, pertença e identidade enquanto grupo. Mulheres se juntam para a preparação de caneloni, pizzas, lasanhas e molhos variados para oferecerem durante a festa. Casais se reúnem para arrecadar dinheiro através de doações, bingos, rifas etc. cujos recursos auferidos é redistribuído em assistência social no próprio bairro. Isso demonstra que o espaço aberto a práticas sociais e expressão cultural, além de conferir a qualidade de património cultural e integração social e étnica, oferece a possibilidade de vivência da sociabilidade. Na festa, a comunidade existe, acontece e indivíduos de diferentes estratos sociais e étnicas se integram e, num clima de espontaneidade, comungam as diferenças. Carlos Rodrigues Brandão (1989, p.30), também identifica a festa como um acontecimento social de efeito identificador, quando ressalta: “A festa é um tipo de ritual e os limites do ritual podem ser alargados a todas as acções que objectivam e produzem comunicação social”. Assim, ele confirma que a festa permite a afirmação social através do seu papel de aglutinadora de esforços e com isso, mostra sua força social. Igualmente, Roberto Cipriani (1988), acredita que a “festa coloca em evidência a reapropriação ou, pelo menos o desejo de recuperação, de uma solidariedade, de uma vivência intensa, de um exercício de fantasia, que as mutações das condições sociológicas parecem tornar cada vez mais impossíveis” e que a festa parece possuir condições ideais para a convivialidade e para o acolhimento do ‘outro’.

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Considerações finais O trabalho procurou mostrar a convergência das discussões clássicas sobre a cidade com as recentes preocupações das discussões sobre as condições de vida nas cidades contemporâneas em que as questões de identidade, hospitalidade e alteridade convivem com as discussões sobre as dimensões espaciais e os condicionantes das relações sociais, tomando-se por base, a cidade de São Paulo. Procurou-se trabalhar, em primeiro lugar, com autores clássicos do universo de discussão sobre a cidade, a hospitalidade e os vínculos sociais, e com autores brasileiros e portugueses preocupados com temas afins e que contribuem para a constatação de que pouco a pouco se desenvolvem em maior ou menor escala, situações de convivialidade no universo das contradições próprias ao mundo urbano e situações de hospitalidade e solidariedade que se contrapõem à lógica do interesse e do desenvolvimento económico. Ao constatar, no caso paulista, por exemplo, a possibilidade de criação de formas de solidariedade e de espaços ou lugares de hospitalidade, caminha-se no sentido de aprofundar as evidencias sobre as possibilidades de actuação de movimentos voluntários, no caso de ONGS e mesmo de espaços e lugares de hospitalidade dentro das situações da vida colectiva dos Bairros e das festas comunitárias. Espera-se assim, contribuir para ampliar ou mesmo estimular o debate em torno de alternativas possíveis de visualizar as possibilidades de criação de um paradigma da hospitalidade em contraposição ao paradigma utilitarista em relação ao futuro das relações em sociedade.

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Porque necessitamos de um modelo bioecológico–transaccional para pensar o futuro? Maria Raúl Lobo Xavier1

Resumo Com este trabalho procuramos justificar como o modelo bioecológico de Urie Bronfenbrenner e o modelo transaccional de Sameroff e colegas poderão ser utilizados como guias úteis para evidenciar a necessidade de uma atenção especial para com as crianças e suas famílias.

Consideramos que o maior desafio de uma sociedade – da nossa sociedade é o de ser capaz de trabalhar (n)o presente a pensar no FUTURO. E quem melhor que as crianças para corporizar esta ideia? Todos os envolvidos directa ou indirectamente nas práticas do cuidar da infância têm um lugar cativo na tarefa de cumprir este desafio com o máximo de sucesso. Para fundamentar a necessidade desta atenção sobre a infância – no sentido de promover o interesse dos profissionais e de quem intervém em situações de decisão que envolvem famílias e crianças – defendemos que dois modelos de desenvolvimento são de grande importância: O modelo bioecológico de Bronfenbrenner e o modelo transaccional de Sameroff e colaboradores.

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Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/ UCP

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Modelo bioecológico de desenvolvimento Nos finais da década de 70, Urie Bronfenbrenner (Universidade de Cornell) publicou um livro com o título “A ecologia do desenvolvimento humano” (1979) em que não só pôs em causa as correntes mais em voga na psicologia do desenvolvimento, como sublinhou – de uma forma inovadora – a importância do estudo do contexto/ambiente em que o desenvolvimento decorre. O modelo organiza-se em torno do seguinte princípio: o desenvolvimento humano consiste na acomodação progressiva e bidireccional entre o ser humano activo e as características dos contextos em que este age, pensa e sente (Bronfenbrenner, 1979). Estes contextos são descritos em termos de quatro tipos de sistemas que se organizam de um modo que o autor descreve metaforicamente como uma espécie de conjunto de bonecas russas (Bronfenbrenner, 1979): o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema é o sistema ecológico mais próximo, onde acontecem os padrões de actividades, papeis, relações interpessoais e experiências que envolvem o próprio indivíduo e outras pessoas com características diferentes quanto ao temperamento, personalidade ou sistema de crenças (Bronfembrenner, 1979). Integra a família, a escola, a igreja, a vizinhança, a associação recreativa onde tem actividades de tempo livres, etc. Quando a criança passa de um microssistema conhecido, como por exemplo a família, integrando outro microssistema, como por exemplo quando entra na escola, acontece aquilo que Bronfenbrenner definiu como “transição ecológica”. Estas transições são ao mesmo tempo consequências e promotoras do desenvolvimento. Ao mesossitema correspondem as inter-relações entre dois ou mais contextos próximos em que o indivíduo participa, como por exemplo a relação entre a escola e a família ou entre igreja e a família. Os exossistemas são constituídos por um ou mais contextos que indirectamente afectam o indivíduo e em que pelo menos num deles o indivíduo está inserido. Podem ser estruturas sociais formais ou informais que influenciam o que acontece no ambiente mais próximo: por exemplo as características e experiências de emprego dos pais de uma criança ou as características e funcionamento do bairro onde uma criança vive. Quanto aos macrossistemas, são sistemas de crenças e padrões institucionais de cultura que influenciam os outros 3 sistemas. 118

Uns anos mais tarde, Bronfenbrenner (1995, 1999) introduziu mudanças significativas no seu modelo ecológico do desenvolvimento humano, recombinando-o com novos elementos numa organização que classifica como mais dinâmica. Três novos factores deverão ser tidos em conta naquilo que definiu como o modelo bioecológico: a ênfase nas características fenotípicas e genotípicas dos indivíduos, a ênfase nas relações do indivíduo em desenvolvimento com as pessoas e situações com que se relaciona e a introdução de uma dimensão essencialmente temporal do desenvolvimento. O modo como alerta para a necessidade de ter em atenção as características dos indivíduos é marcado pelos avanços, por exemplo, da genética, não traduzindo uma vontade de dar menos atenção aos sistemas que envolvem o indivíduo, mas sim, o sublinhar da necessidade de integrar as suas características genotípicas e fenotípicas nas leituras sobre o desenvolvimento. Quanto às relações que o indivíduo em desenvolvimento estabelece com o seu entorno, Bronfenbrenner descreveu-as como Processos Proximais – formas de interacção participativa/relações funcionais, entre o organismo e o meio que se desenvolvem ao longo do tempo. Quanto mais ricos são os processos proximais, maiores as probabilidades das potencialidades genéticas dos indivíduos em desenvolvimento se tornarem realidade. A nova dimensão temporal, cronossistémica, que Bronfenbrenner defende permite um olhar sobre as influências das mudanças e das continuidades no desenvolvimento humano, considerando-se o microtempo, mesotempo e macrotempo (Bronfenbrenner & Morris, 1998, 1999) e, portanto, abordando o indivíduo e as suas relações com os acontecimentos presentes, e também uma perspectiva histórica. No âmbito do microtempo, as interacções devem ser caracterizadas pela reciprocidade e complexidade gradual. O mesotempo diz respeito à maior periodicidade destes episódios, assumindo-se o significado desenvolvimental da sua cumulatividade. Assim, consideram-se intervalos de tempo mais alargados, como por exemplo dias ou semanas. O macrotempo perspectiva as mudanças no âmbito da sociedade mais alargada, em cada geração e entre gerações, enquanto influenciando e sendo influenciadas pelos indivíduos em desenvolvimento ao longo das suas vidas.

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Modelo transaccional do desenvolvimento Partindo de estudos descritivos sobre a relação pais-criança realizados na década de sessenta, Sameroff e Chandler (1975) defendem que os processos transaccionais são parte central do desenvolvimento. Sublinharam o carácter recíproco das influências, dando importância às características individuais da criança na organização do seu ambiente. Consideramos então que estamos no domínio do modelo transaccional do desenvolvimento. Este modelo entende o desenvolvimento da criança como o produto da interacção contínua, dinâmica e bi-direccional entre a criança e a experiência fornecida pela família e o contexto social em que está inserida, dando idêntico peso, quer aos efeitos produzidos pela criança, quer pelo meio envolvente (e.g. Sameroff e Fiese, 1990; Samerof e MacKenzie, 2002). Ou seja, a própria criança é agente activo do seu desenvolvimento, modelando e regulando as experiências do meio, tal como este regula e modela as experiências da criança. O que é inovador nesta conceptualização é a ênfase no efeito da criança sobre o meio ambiente e vice-versa, de forma a que as experiências possibilitadas pelo ambiente não lhe são independentes. “O resultado da criança em qualquer ponto do tempo, não é nem em função do estado inicial da criança, nem do estado inicial do ambiente, mas uma função complexa da acção combinada da criança e do ambiente ao longo do tempo” (Sameroff & Fiese, 1990, 122-123). O desenvolvimento não deverá então ser apenas visto como o resultado das características da criança ou de quem dela cuida. A passagem do tempo e as experiências que se vão sucedendo, assim como a leitura que cada um faz dessa experiências e características têm que ser analisados para a sua compreensão. Pensando na intervenção, Sameroff e MacKenzie (2003, 21) escreveram: “a complexidade do sistema transaccional abre a possibilidade de muitos caminhos de intervenção que facilitem o desenvolvimento saudável das crianças e das suas famílias”

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Um olhar bioecológico-transaccional sobre a infância Somos assim da opinião que um olhar bioecológico-transaccional - ao assinalar que o indivíduo e o ambiente se influenciam reciprocamente, mudando ambos ao longo do tempo e adaptando-se às alterações um do outro, e que este ambiente ou contexto pode ser mais próximo ou mais distante - é imprescindível para entender o desenvolvimento. Este varia de indivíduo para indivíduo, tendo em conta as suas próprias características e necessidades e o modo como a sociedade lhes responde. As oportunidades e/ou os riscos para o desenvolvimento que cada um enfrenta dependem assim das suas características individuais e dos contextos em que vive. As oportunidades resultam das relações que cada criança estabelece com os elementos dos contextos mais próximos ou mais distantes que lhe possibilitam suporte material, emocional e social (educação e saúde), respondendo às suas necessidades e capacidades, em cada momento do desenvolvimento. Os riscos estão relacionados quer com ameaças directas, quer com a ausência de oportunidades para o desenvolvimento (e.g. Garbarino e Abramowitz, 1992). Quando o mundo da criança não disponibiliza experiências e relacionamentos essenciais, referimo-nos a factores de risco socioculturais ou ambientais. Consideramos que os dois modelos apresentados são da maior importância para alterar o nosso olhar sobre a infância, dando-lhe mais atenção e assumindo a urgência de pensar cada criança juntamente com a sua família e os contextos de desenvolvimento mais alargados. A sua principal contribuição poderá ser vista no modo como salienta a necessidade de articular os apoios funcionais, sociais, políticos e culturais que podem responder às famílias e às crianças. Em pleno sec XXI, a sociedade tem que responder às necessidades que estas apresentam: Investir na prevenção, na ênfase sobre os pontos fortes e na robustez das famílias, no desenvolvimento dinâmico de pais e filhos, na relação entre a família e uma escola que cumpra no saber, saber/ser e saber/estar, na importância dos valores culturais e nas redes de apoio social (na comunidade) é investir no FUTURO. A investigação científica, em várias áreas, tem demonstrado claramente a importância dos primeiros anos de vida naquilo que será a continuação do percurso desenvolvimental (e.g. Gomes-Pedro, Nugent, Young e Brazelton, 2005; 121

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Karr-Morse e Wiley, 1997; Shonkoff e Phillips, 2000). Há também, pelo mundo fora, evidência acumulada sobre as vantagens económicas de investir na infância (e.g. Shonkoff e Phillips, 2000). O desafio agora é traduzir estes dados em estratégias práticas e sustentáveis, em situações em que isto compete com outros investimentos e com as limitações de recursos que se sentem – esta deve ser a tarefa de todos.

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Bibliografia Bronfenbrenner, U. (1979). The ecology of human development: Experiments by nature and design. Cambridge, MA: Harvard University Press Bronfenbrenner, U. (1995). Developmental ecology through space and time: A future perspective. In P. Moen, G.H. Elder e K. Luscher (Eds.), Examining lives in context: perspectives on the ecology of human development. Washington, DC: APA Books Bronfenbrenner, U. e Morris, P.A. (1998). The ecology of developmental processes. In W. Damon e R.M. Lerner (Eds), Handbook of Child Psychology. Vol I, Theoretical models of human development (6ª Ed.). N. Y.: Wiley & Sons. Bronfenbrenner, U. e Morris, P.A. (1999). The ecology of developmental processes. In J. Gomes-Pedro (Ed.), Stress e violência na criança e no jovem. Lisboa: Departamento de Educação Médica e Clínica Universitária de Pediatria da Faculdade de Medicina de Lisboa. Garbarino, J. e Abramowitz, R.H. (1992). The Ecology of Human Development. In J.K. Whittaker (Ed), Children and Families in the social environment. N.Y.: Aldine de Gryter Gomes-Pedro, J., Nugent, K.J., Young, J.G e Brazelton, T.B. (2005). A criança e a família no século XXI. Lisboa: Dinalivro. Karr-Morse, R. e Wiley, M.S. (1997) Ghosts from the nursery. Tracing the roots of violence. N.Y: Atlantic Monthly Press. Sameroff e Chandler (1975). Reproductive risk and the continnum of caretaking casualty. In F. D. Horowitze, M. Hetherington, S. Scarr-Slapatek, e G. Siegel (Eds.), Review of child development research. Chicago: University of Chicago Press. Sameroff, A.J. e Fiese, B.H. (1990). Transactional regulation and early intervention. In S.J. Meisels e J.P. Shonkoff. Handbook of early childhood intervention. Cambridge: Cambridge University Press. Sameroff e MacKenzie (2003). A quarter-century of the transactional model: How have things changed?. Zero to Three, 24, 14-22 Shonkoff, J.P. e Phillips, D.A. (2000). From neurons to neighbourhoods. Washington, D.C.: National Academy Press. 123

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Intervenção Social da Ald No Gúruè Adérito Gomes Barbosa1

Resumo O presente texto procura apresentar, antes de mais, o distrito do Gúruè2 e o Centro Polivalente Leão Dehon3, considerado um dos mais organizados e eficientes em Moçambique, pelas instituições governamentais, não governamentais e educativas. A ALVD4 como entidade e a sua intervenção em Moçambique constituem o segundo ponto do nosso desenvolvimento. Em terceiro lugar, salientamos os princípios pedagógico-sociais desta Associação.

GÚRUÈ 1. Situação em geral O distrito do Gúruè localiza-se a Norte da Província da Zambézia (Moçambique), também chamada Alta Zambézia, zona montanhosa, tendo como limites o distrito de Malema ao Norte, a Sul com o Distrito de Mamarrói, Ile a Este com o Distrito de Alto Molócué, ao Oeste com os Distritos de Milange e Cuamba. É no Distrito do Gurúè que se localiza o ponto mais alto da província, o Monte Namúli, com 2.419 metros de altitude. Este distrito é composto por 22

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Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/ UCP Os anciãos, classe do povo, que veicula a tradição, referem que a palavra Gúruè (em lomwè) significa javali, porque, em tempos idos era uma região avassalada por estes animais. João Leão Dehon, francês, fundou a Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus em 1978. Associação de Leigos Voluntários Dehonianos.

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localidades, e 2 postos administrativos. As localidades são: Gurúè com 22 bairros; Muaquia com 8 bairros; Mucunha com 7 bairros; Murrimo com 13 bairros; Vehiua com 10 bairros. Um dos postos Administrativos é o Lioma, do qual fazem parte as seguintes localidades: Muximua com 4 bairros, Lioma, Magige, Nintulo, Mualijane, Tetete. Um outro posto administrativo é o de Mepuagiua, do qual fazem parte as seguintes localidades: Mepuagiua, Incize, Nicoropale, Nipive, Mugaveia. O bairro com um maior número de população é o Bairro Mepuariua com 3.869 habitantes, seguido do Bairro Cooperativo com 3.239 habitantes. Tem uma superfície de 5.688Km2 e uma população de 241. 303 habitantes em 2005, o distrito do Gúruè tem uma densidade de 42.6 habitantes por Km2. A percentagem de mulheres é menor que a percentagem de homens na cidade do Gurúè. As mulheres constituem 49% enquanto para os homens constituem 51% da população. A população é jovem com 46% abaixo dos 15 anos. Com 74% da população analfabeta, predominantemente mulheres, a taxa escolarização no distrito é baixa, constatando-se que só 41% dos habitantes frequentam ou já frequentaram a escola Só 2% das casas têm água canalizada, 14% já tem casa de banho, só 1% tem electricidade e 19% têm rádio. O quadro epidémico do distrito é dominado pela malária, diarreia, DTS e SIDA que, no seu conjunto representam quase a totalidade dos casos de doenças no distrito. Só 24% das mulheres tem o conhecimento da língua portuguesa. A taxa de analfabetismo na população feminina atinge os 85%. Das mulheres com mais de 5 anos, só 69% frequentaram a escola. O tipo de habitação modal do distrito é a palhota, com pavimento de terra batida, tecto de capim ou colmo e paredes de caniço ou paus5.

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Ministério da Administração Estatal (2005). Perfil do Distrito do Gúruè. Província da Zambézia. Moçambique. Série: Perfis Distritais.

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Mapa 1

Mapa2

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2. Caracterização da população “Miyo Kokhuma oNamuli”. (Eu saí do monte Namúli) Segundo alguns historiadores modernos, o povo Macua não é mais do que um dos inumeráveis braços do grande delta das migrações bantas fixadas na África Austral, depois de terem chegado das savanas camorenesas nos primeiros cinco séculos da nossa era. No entanto, existe o grande mito macua, que diz que “todos os homens foram criados no monte Namúli...”. Segundo a lenda, os macuas multiplicaram-se tanto que se tornou necessário abandonar a montanha e espalhar-se pelo vale. O que é certo é que as migrações se deram ou atravessando as montanhas, de nascente, ou fixando-se em locais pantanosos, desde que a água estivesse assegurada. Entre o povo Macua, existem grupos bem diferenciados. Os principais são os Lómwè, na Província da Zambézia e também do Niassa, os Meto (Cabo Delgado e Niassa) e os Macuas, propriamente ditos, que coincidem com a Província de Nampula, estendendo-se também em parte para Cabo Delgado e Niassa. A mulher tem um papel fundamental e segundo o povo, a mãe é tudo. Isto porque todo o indivíduo, homem ou mulher é integrado desde o nascimento no clã da mãe (nihimo), a quem por essência pertence. Todo o nihimo tem uma avó comum (apipi). Todos os indivíduos com a mesma avó são portanto parentes entre eles. Os homens não podem procurar mulher no seio do próprio clã. A mulher que ele desposar continuará a ficar estreitamente ligada ao clã a que pertence e também os filhos do matrimónio serão exclusivamente do clã da mulher. O marido é um mero agente de procriação de todos os elementos para a descendência da mulher. Sendo a mulher a essência do clã, é-lhe exigida fidelidade ao lugar de nascimento, à terra em que habitam os espíritos dos seus antepassados. Por isso, o casal vai morar para perto dos pais da mulher. Desde pequena, a mulher começa a ser preparada para a sua missão de maternidade. Muitas são as suas tarefas orientadas para o bem – estar familiar, amanhar a terra, fazer panelas, ir à água e à lenha, ao mesmo tempo que, evidentemente, aprende a cuidar dos filhos. Sujeita a numerosas responsabilidades e a trabalhos pesados, a mulher aparece numa situação de inferioridade: a sociedade é certamente matrilinear, 128

mas não matriarcal. Contudo, é grande o respeito com que a tratam, sobretudo, quando velha é rodeada de numerosa descendência. As tarefas do homem são, entre outras, construir a casa, preparar e proporcionar as alfaias agrícolas, abater árvores e vegetação para a preparação de novos campos, fornecer roupa (capulana) e miçangas à mulher, providenciar a comida nos momentos mais críticos do ano. A economia macua é essencialmente agrícola, quase uma agricultura de subsistência. Os produtos básicos de antiga tradição são: os cereais, milho e mapira. No entanto, a mandioca, em termos de alimentação quotidiana, prevalece por toda a parte. À agricultura, junta-se a caça que é uma tarefa do homem e a recolha de frutos silvestres que é uma tarefa da mulher. A pastorícia não faz parte do estilo de vida do macua. Limitam-se à criação doméstica de animais de pequeno porte, tais como galinhas, porcos, cabras. A agricultura poderá ser considerada de semi – nómada, pois não conhece a rotação dos terrenos, nem o revolvimento da terra. Para a eliminação das ervas daninhas, utilizam as queimadas, o que, por sua vez, hoje, origina o desequilíbrio ecológico. A economia do Distrito do Gurúè depende da produção de milho e da produção de chá. Neste distrito, existem 12 unidades de produção (UP) de chá. O sistema comunitário africano está baseado sobre a propriedade privada como meio de iniciativa para participar activa e livremente na vida comum. ”O meu trabalho é meu. Não trabalho para a comunidade. Trabalho para mim mesmo, para poder, por mim próprio, participar do bem comum e ser alguém”. A pessoa nunca é um instrumento da sociedade, mas um membro que participa da vida comum executando o melhor possível a sua própria função, para obter grandeza e consideração.

3. Carências da comunidade Há falta de cuidados de saúde em geral, nomeadamente na saúde maternoinfantil, na adolescência, na educação para a saúde como higiene, sida e educação sexual entre outras. Há a necessidade de uma educação-formação em geral em todos os sectores. 129

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Sendo a agricultura uma “agricultura de subsistência”, há a necessidade de formar a mentalidade neste sector em ordem a uma auto-gestão na família e nas estruturas comunitárias. Há que preparar e formar recursos humanos. Há que formar ao Desenvolvimento Sócio-Cultural.

4. O Centro Polivalente Leão Dehon

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O Centro Polivalente Leão Dehon abarca fundamentalmente a Escola, a fábrica e a residência dos directores7. O sector da formação assenta na Escola Básica e Industrial do Gurúè e na organização de cursos profissionais mais breves. Os alunos matriculados recebem livros de texto de apoio que a própria escola policopia gratuitamente para todas as disciplinas teóricas bem como o material escolar necessário. O facto de ser gratuito possibilita o acesso aos estudos dos alunos sem recursos económicos. Os cursos leccionados integram três especialidades; A electricidade, mecânica auto; serralharia mecânica. É necessário referir que esta escola envolve cerca de 80 alunos, num horário das 7 horas às 17.00 horas, com um intervalo para almoço de uma hora e meia. O plano curricular abrange as disciplinas de História de África, Português, Matemática, Inglês, Higiene e Segurança no Trabalho, Física, Química, Educação Física, Educação Cívica. As disciplinas de Formação Específica circunscrevem-se à Serralharia, à Mecânica Auto, à Electricidade. Pode elencar-se ainda a Informática como disciplina opcional. O sector da produção inclui várias oficinas: Serração de madeira; Carpintaria; Escultura; Serralharia; Sapataria; Alfaiataria; Fotografia; Moagem; Extracção de Óleos Vegetais. Este é um centro com 150 trabalhadores na parte industrial. É o único centro da região, onde existe uma escola de carácter técnico.

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Este centro situa-se mesmo à saída da cidade do Gúruè, incluindo a escola e a fábrica. Os Directores são religiosos da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, italianos ou moçambicanos, também conhecidos por SCJ ou dehonianos.

O Centro Polivalente apresenta algumas necessidades, tais como, a aquisição de máquinas para as oficinas e voluntários tecnicamente qualificados. O Centro necessita de professores e técnicos para as aulas teóricas e práticas, para a preparação de pessoal local que num futuro possa vir a trabalhar no próprio Centro. O sector da agricultura tem como princípio actuar de uma forma que possa beneficiar um maior grupo da população. Os objectivos deste sector são: contribuir para o melhoramento das infra-estruturas existentes no distrito; estimular a economia, a produção agrícola e a comercialização; cooperar com as autoridades locais e administrativas e apoiar o desenvolvimento regional descentralizado e o fortalecimento das estruturas locais8. Os responsáveis da escola procuram ainda promover encontros de formação para a família dos alunos e dos trabalhadores, sobretudo na área da higiene, saúde, alimentação e outros aspectos da formação humana (dignidade, direitos, deveres, trabalho, cidadania, educação, família, responsabilidade, valores).

ALVD 1. Estatutos A ASSOCIAÇÃO DOS LEIGOS VOLUNTÁRIOS DEHONIANOS, designada por ALVD (Artigo 1º) é uma associação privada voluntária, sem fins lucrativos, e tem por objecto o Apoio Humanitário e o Desenvolvimento Comunitário (Artigo 3º). A ALVD tem por objectivos: intervir em situações de necessidade; cooperar, em regime de voluntariado, na formação humana, cultural e social nos países em desenvolvimento; contribuir para o aprofundamento do sentido da vida humana; implementar o espírito associativo (Artigo 4º). Desta forma, a ALVD procura desenvolver projectos de solidariedade para diminuir as desigualdades sociais. Procura responder também às necessidades onde está inserida, de uma forma gratuita e solidária, através do trabalho dos voluntários9. 8 9

Segundo o relatório de actividades da ALVD (2000). A partir do ano 2000, a ALVD já preparou e enviou cerca de 70 voluntários, a maior parte com intervenções de um ano e os outros com intervenções durante um mês em Moçambique.

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No cumprimento dos seus objectivos, a ALVD desenvolverá, entre outras, as seguintes actividades:  realização de projectos no âmbito da promoção humana, cultural e social;  desenvolvimento de acções de formação no âmbito da educação para a saúde;  promoção da educação e formação das crianças, adolescentes, jovens e adultos;  promoção da educação para a cidadania (Artigo 5). São requisitos necessários para ser membro da ALVD:  ser maior de idade, com espírito de voluntariado;  ter capacidade de trabalho em equipa;  possuir uma adequada formação humana e profissional;  manifestar estabilidade psicológica e emocional;  disponibilizar-se para um compromisso temporário ao serviço da Associação;  comprometer-se em pleno no cumprimento do projecto assumido;  participar nas acções de formação indicadas no artigo 7º dos presentes Estatutos (Artigo 6º). Os candidatos a membros da ALVD estão sujeitos a um período de formação, de cerca de um ano, repartida em duas fases: a) formação geral: discernimento e integração; b) formação específica: técnica e cultural (Artigo 7º)10. Em 2008, a ALVD prepara grupos de candidatos a voluntários em Moçambique em Lisboa, na Madeira e no Porto para intervirem em 2009, 2010 e 2011.

2. Objectivos gerais da intervenção Minorar as carências sentidas pela população: saúde, educação, agricultura e outros; elaborar um programa de desenvolvimento e integração que valorize os 10

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As intervenções da ALVD circunscreveram-se ao Centro Polivalente Leão Dehon do Gúruè de 2000 a 2007. A partir de 2007, há voluntários da ALVD a intervirem no Centro Juvenil de Alto Mólocuè e em 2008 voluntários da ALVD em Nampula, no Centro Cultural Napipine.

recursos locais; priorizar a formação profissional nomeadamente nos cuidados da saúde, na educação e noutras preocupações que se considerem no Desenvolvimento Social e Cultural; implementar a cultura do povo através de criação de bibliotecas locais de apoio às estruturas de ensino e à população em geral.

3. Áreas de intervenção O Centro Polivalente do Gurué é um centro que emprega 150 trabalhadores na parte industrial e tem uma escola básica industrial. É o único centro da região, onde existe uma escola de carácter técnico. Dada a carência de meios humanos (educadores, professores e outro pessoal auxiliar para a escola), materiais (livros e todo o material didáctico para a escola), assim como apoio cultural para a referida cidade e para a região do Gurué, a ALVD sentiu necessidade de intervir no sentido de ajudar a responder às necessidades locais. Área de intervenção (educação). Um primeiro contexto de intervenção na área da educação, é a Escola Técnico Profissional. O local de intervenção tem como designação “Escola Básica Industrial do Gúrùe” (EBIG). A escola abrange um total de 80 alunos, divididos pelas áreas curriculares de Electricidade Geral, Mecânica - Auto e Serralharia Mecânica. Estes cursos têm a duração de 3 anos, tendo uma componente prática muito forte. Os currículos destes cursos têm disciplinas como o português, matemática, higiene e segurança no trabalho. Pretende-se investir nos recursos humanos, ou seja, enviar professores especializados nas áreas referidas. Para além das disciplinas curriculares, existe uma outra componente de disciplinas como o Inglês a Informática e Secretariado. Objectivos nesta área:  Enviar professores especializados nas disciplinas curriculares de carácter geral.  Contribuir para aquisição de novos conhecimentos.  Colaborar para a consolidação das disciplinas curriculares e extra curriculares.  Permitir a entrada e a frequência de alunos na escola sem recursos económicos. 133

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Área de intervenção (educação). Um segundo contexto de intervenção foi o apetrechamento de uma Biblioteca que abrange os alunos da Escola Básica Industrial e os alunos das diferentes escolas. Objectivos nesta área: Dinamizar a biblioteca através:  Da aquisição de livros científicos e de aventuras.  De fomentar o gosto pela leitura.  De jogos didácticos. Área de intervenção (educação). Um terceiro contexto é o da Alfabetização e Formação Humana e Técnica. Os destinatários são a população em geral do distrito. Tem como objectivos: continuar e desenvolver o curso de informática já iniciado em anos anteriores; permitir a redução do analfabetismo; desenvolver acções de formação ao nível da educação, na promoção da dignidade humana; possibilitar o conhecimento e valorização dos recursos locais; formação dos trabalhadores do Centro Polivalente Leão Dehon. Objectivos na área:  Continuar e desenvolver o curso de informática já iniciado em anos anteriores  Permitir a redução do analfabetismo.  Desenvolver acções de formação ao nível da educação, na promoção da dignidade humana.  Possibilitar o conhecimento e valorização dos recursos locais.  Dar formação aos trabalhadores do Centro Polivalente Leão Dehon. No sector da educação, o distrito possui 100 escolas. No entanto, este número diz respeito às escolas primárias, escola do ensino básico e uma escola do nível médio, tendo ainda a escola técnico profissional já anteriormente referida. O sector da primeira infância fica totalmente fora de qualquer plano de intervenção ao nível do país. Daí pretender-se criar um jardim-de-infância, pois as crianças desta idade passam o dia na rua, sem qualquer projecto. Nesta área, as carências são enormes; desde a falta de pessoal à falta de material. No entanto, a formação e informação da população é uma necessidade sentida na realidade, pois não existe uma informação adequada e clara à população. 134

O projecto de intervenção e desenvolvimento, criou uma linha de prevenção. No entanto, é necessário manter essa mesma linha para que possa fazer frente à propagação de várias doenças como a SIDA, a Malária, a Cólera. Pretende-se trabalhar com o hospital distrital, na área da formação e informação, no sentido de educar para a saúde. Objectivos na área:  Colaborar com o hospital distrital, na área da formação e informação.  Educar para a saúde na linha da prevenção.

Princípios pedagógico-sociais desta Associação Educação Educação e sociedade Qualquer pessoa, medianamente sensível ao contexto social, detecta que é o modo completo da vida que educa. O contexto social, no seu conjunto, educa-nos e cria um espaço em que as nossas escolas operam. Uma genuína sociedade educadora significa mais do que uma sociedade com boas escolas. Significa, entre outras coisas, uma sociedade com um sentido do que é bom para a comunidade, com uma moral social e com uma memória do próprio passado. As escolas podem contribuir para isto, mas não podem criá-lo fora de todo o contexto. Alguns poderão pensar que só uma transformação democrática das instituições tornará possível a sociedade educadora. A educação só pode ter êxito quando, na escola, os professores tiverem o conceito solidário da sua missão e também quando outras comunidades implicadas ajudarem as famílias na organização das escolas. As implicações no âmbito da educação são múltiplas, diversas e são de grande interesse as questões que se colocam: a noção de liberdade e a relação do indivíduo com a sociedade tem implicações educativas; as funções da família, da escola e a lei na formação moral; os direitos no terreno educativo: a dimensão social, humana forma parte da essência do homem? Que repercussões tem na educação? O que é hoje a educação e qual é o seu futuro? Que imagem de pessoa ou que conceito de sociedade se mantém ou fomenta? Como educar hoje numa sociedade com tão grande variedade de tradições culturais? Tradição ou 135

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criatividade é uma alternativa adequada em educação? Como fomentar essas comunidades de aprendizagem e onde é possível transmitir uma tradição? Que importância tem a tradição na formação da personalidade humana? Há uma conexão grande entre educação, pessoa e sociedade. O ensino é uma prática social realizada de acordo com uma tradição social e não simplesmente como uma transacção entre indivíduos isolados. Uma prática social é guiada por um modo de ver a tradição. Sublinhar a tradição não é negar a possibilidade de criação ou mudança. Sem tradição não haveria nada que mudar. Na tradição, podemos distinguir dois elementos: habilidades ou técnicas e os modelos de ver o mundo. O problema da educação é um problema ético que alcança uma dimensão política. A educação é a área onde mais se podem apreciar as diferenças entre endoutrinamento e uma potenciação da dignidade humana. Como deveria ser entendida e realizada a educação, sobretudo na sua vertente social, para seja um catalizador neste processo de crescimento vital? O desenvolvimento de uma série de estratégias educativas pode potenciar ou dificultar a realização de uma educação plena e afectar a dignidade que o homem possui. Esta dignidade é algo aberto a possibilidades que manifestam a capacidade de autodeterminação e de projecto, que o homem possui, já que humanidade, dignidade e liberdade co-implicam-se. Enquanto o animal está imerso no seu meio e indiferenciado dele, o homem está livre frente a um mundo ao qual é irredutível. É digno e livre; deve ser tratado como um fim e não como um meio. Assim, aparecem a liberdade e a dignidade, na abertura essencial do homem, enquanto ser que se supera e está aberto ao universal. Os efeitos mais característicos são dois: incremento da qualidade do carácter humano e a construção de um mundo à medida do homem. A qualidade de vida, autenticamente humana, não tem o seu centro de gravidade no exterior da sociedade; parece residir na decantação vital da liberdade razoável. E que papel tem em tudo isto a educação, a escola, as instituições e a sociedade? A educação pode ser uma ajuda para crescer na liberdade e na dignidade. Será educativo tudo o que favorecer o aperfeiçoamento da pessoa. 136

A educação pode ser considerada como uma iniciação dos jovens, membros de uma sociedade nas tradições públicas.

Educação do cidadão O conceito de educação individualista deve ser completado junto da polis. Já Platão aponta uma definição de educação, que pode situar a questão, como aquela que desde a infância exercita o homem à virtude e inspira o vivo desejo de chegar a ser um cidadão perfeito que saiba governar e ser governado de acordo com a recta justiça. A educação deve formar o cidadão. O carácter social da educação está sempre presente na tradição e no pensamento grego. O homem é um animal político, diz Aristóteles. A virtude colectiva é a consequência necessária da virtude individual. A educação do indivíduo identifica-se com a formação política. O problema educativo que era para os gregos o problema da vida, devia ser o problema da vida política. Toda a cidade está empenhada em educar e organizar diversas actividades com a finalidade de formar as consciências, mediante o contacto directo e a participação imediata na vida política comunitária. A educação ateniense na escola e na cidade tinha duas finalidades precisas: o desenvolvimento do cidadão fiel ao Estado e também a formação do homem como pessoa que adquiriu plena harmonia e domínio das próprias actividades. O problema da educação é um problema ético, mas a dimensão política é uma actividade de cidade. O homem é, por natureza, um animal político; nele a tendência de viver em sociedade com os seus próprios semelhantes, não só porque tem necessidade dos outros para a sua conservação, mas também porque não poderia ser virtuoso sem as leis e a educação. A sociedade não é uma formação artificial, mas uma necessidade natural das diversas formas de vida associada; a de Estado é, cronologicamente, a última a formar-se, mas logicamente é a primeira: defender os cidadãos e educar física e moralmente a quem participa na vida pública. Em Aristóteles, ética e política completam-se11.

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Neste princípio da educação, seguimos de perto Naval (1995).

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2. Responsabilidade Pode dizer-se que o objectivo da responsabilidade é educar o sujeito para que adquira a capacidade de tomar decisões responsáveis. Nesse sentido, deve entender-se a responsabilidade como ser e sentir-se autor dos próprios actos, como capacidade de presença pessoal, racional e livre para responder, dar-se conta de si e dos outros; levar para a frente os empenhos que se assumem; e assumir as consequências pessoais e em grupo da própria acção. Há também que responsabilizar para a decisão. Esta é o acto pelo qual acabamos com a indeterminação. Enquanto não decidirmos continuamos na indecisão. Decidir é acabar com a própria indeterminação a partir de uma energia que não vem do exterior, mas daquele que decide. Qual é a responsabilidade face ao outro? O essencial aqui é que a presença do outro no campo da acção provoca um descentramento radical da existência: é uma outra existência que vem como apelo concreto, singular, impondo-se de maneira irrevogável. A missão que é imputada ao existente vem-lhe de uma alteridade, não de uma instituição, mas de um outro concreto que a requer precisamente como singularidade, dirigindo-se a uma singularidade. E ela a requer sob a forma de um apelo que a constitui como indispensável por relação a uma impotência, relativo a um desejo de ser. O apelo que vem doutro é reconhecido num sentimento com repercussão imediata na afectividade, de uma presença que se impõe como requerente e como estabelecendo uma responsabilidade. 3. Solidariedade Dizia Tamaro (2002, p. 134-136) que “a nossa sociedade está doente, considerando o outro como um risco, como um perigo. Eu possuo. Sou proprietário do meu tempo, da minha casa, dos meus afectos, dos meus êxitos e não tenho vontade de os partilhar. A vida já não visa a relação com os outros, mas com as coisas. A gratuitidade que está na base da vida, já não existe ou é olhada com desconfiança. O desejo torna o homem cada vez mais escravo, já que em vez de se servir das coisas, passa o tempo atrás e dependente delas. É que mal se satisfaz um desejo aparece logo outro. É como uma sede que nunca se poderá saciar”.

Fala-se de solidariedade entre as pessoas e os grupos da sociedade do bem-estar, mais sensíveis ao sofrimento e ao drama humano. Muitas pessoas no 138

primeiro mundo praticam-na de forma espontânea. Nas sociedades mais pobres, pratica-se a solidariedade como sobrevivência. Nestas sociedades, a solidariedade é urgente. Torna-se ainda mais urgente quando falta a justiça. Quando falta a justiça, só a solidariedade é resposta à sobrevivência. No mundo actual, cresce cada vez mais a sensibilidade frente ao problema da justiça, frente às injustiças e às suas consequências. Cada vez são mais as pessoas excluídas dos bens e dos serviços do progresso. Cada vez há mais vítimas da injustiça. Enquanto há vítimas, todos somos responsáveis pela injustiça, mesmo não sendo directamente culpáveis. Diante da injustiça, muitas pessoas, grupos, organizações assumem o compromisso da solidariedade, para exercer esse “mais” da humanidade e da generosidade, apesar dos esforços dos organismos oficiais e mesmo não. Portanto, a solidariedade cresceu entre os muitos sectores da humanidade nos últimos tempos. Pode dizer-se até que esta projecção global e universal é uma característica da cultura moderna. Os Meios de Comunicação Social têm contribuído para este espírito de solidariedade nas pessoas sensíveis ao sofrimento e à necessidade alheia, porque nos tiraram do nosso pequeno mundo, da nossa casa cercada. Abriram-nos uma janela para fora, para outros povos, para outros continentes, para outras situações sociais. Pode então apontar-se que os Meios de Comunicação Social nos aproximaram das vítimas de dramáticas situações que padece a maioria da humanidade: a pobreza mundial, fosso entre países pobres e países ricos, conflitos bélicos, terrorismo, os deslocados, os exilados, os emigrantes, a agressão às etnias indígenas e a expropriação das terras, exploração laboral das crianças, processos de marginalização, exclusão das mulheres e de outros grupos humanos, conflitos étnicos e religiosos, os genocídios, a desertificação, a poluição, as inundações, os fogos, os terramotos. Surgem-nos algumas questões: não devemos ser solidários com as vítimas, mesmo que estejam longe? Não somos responsáveis colectivamente por aquilo de que não somos culpados directamente? A nossa humanização não depende da humanização e da dignificação de todas as vítimas? Podemos estar tranquilos, enquanto contemplamos situações dramáticas? São perguntas para desafiar a nossa consciência (Díez, 2004).

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Não existe o “eu” isolado. Para que haja o “eu”, este deve projectar-se para um “tu” que leva ao compromisso entre ambos12. O homem é chamado a construir um mundo mais humano em que os homens se compenetram como irmãos. Como base e fundamento da solidariedade, há que colocar o amor, que passa por cima de todas as diferenças, que se faz solidário com as necessidades dos demais. O amor ao próximo deve ser um amor efectivo que se manifesta nas obras de solidariedade, porque as obras são expressões de amor e não boas razões. Escreve João Paulo II13: “a solidariedade não é um sentimento superficial e vago para os males que sofrem tantas pessoas próximas e ao longe. É a determinação firme e perseverante de trabalhar para o bem comum, para o bem de todos e para o bem de cada um, porque todos somos responsáveis de todos”.

A solidariedade é o próprio esforço ao serviço da colectividade. Desde o começo da humanidade, o homem sempre necessitou da ajuda dos seus semelhantes. Nessa altura, as famílias uniram-se para se defenderem dos animais e dos outros povos. Ao longo dos séculos, os povos uniam-se em vista de interesses comuns. O homem como ser social não pode viver isolado. Não pode fazer tudo. Por isso, precisa da ajuda dos outros. Hoje em dia há muitos movimentos de solidariedade. Em cada 10 europeus, 5 pertencem a uma das quase 3.000 organizações de voluntários. As Nações Unidas têm 60.000 Organizações Não Governamentais (Moral, 1997, p.3).

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A etimologia de solidariedade começa na palavra latina solidus que significa moeda forte, estabilidade económica forte. Posteriormente, o termo passou do campo económico para o jurídico: in solidum é a obrigação contraída com outros, mas que afecta cada um. Pode também dizer-se que solidariedade é o modo de direitos ou obrigação in solidum, adesão circunstancial à causa ou à empresa de outros. No Direito Romano, a solidariedade tem o sentido de obrigação moral, in solidum, de vários sujeitos em relação a um objecto único e idêntico (por exemplo vários padres párocos in solidum da mesma paróquia). Actualmente, o termo solidariedade tem um sentido ético para designar a convicção de que cada ser humano deve sentir-se responsável pelos outros. SRS, nº 38. Este documento de João Paulo II, A solicitude social da Igreja, apresenta-nos os nºs 38, 39 e 40 sobre a solidariedade.

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Se definimos a cultura como modo de pensar, sentir e actuar, há que fazer a solidariedade no pensar, no sentir e no actuar. Hoje, as principais instâncias de formação dos modos de pensar, sentir e actuar são a família, o grupo de amigos e os meios de comunicação social. A cultura da solidariedade vai-se tornando possível com uma nova cultura da acção, da participação, da militância e do compromisso específico. A solidariedade não surge do nada, mas de um determinado cultivo de mentalidades, sentimentos e vontades. É preciso impulsionar o associativismo infantil e juvenil de carácter solidário, dado que os valores básicos do indivíduo cristalizam no período de formação da adolescência e da juventude, antes de entrar na vida adulta. 4. Voluntariado Podemos afirmar que os valores mais salientes do voluntariado são a gratuitidade, a solidariedade, a responsabilidade, espírito de colaboração perante o ser humano necessitado. Os jovens e os adultos não têm em geral dificuldade em serem voluntários; não têm dificuldade em dedicarem parte do seu tempo aos que mais necessitam. O ser humano possui a capacidade de dar-se com alegria e entusiasmo, ajudando a dar sentido e razão de viver a quem das mais variadas formas necessita. O voluntariado é mais do que uma acção. É um movimento. É um estilo de vida animado pelo amor ao próximo e pela solidariedade com o mais necessitado e desprotegido. O voluntário procura criar espaços de solidariedade, a fim de contribuir para a promoção humana integral do outro e favorecer a mudança pessoal e social na perspectiva da justiça e da solidariedade. Nanni (1999) afirma que o voluntariado está a assumir um papel cada vez mais preponderante, sobretudo na escola, porque os jovens têm a necessidade de propostas novas, de estímulos convincentes e o voluntariado é uma resposta de empenho. Ser voluntário é essencialmente uma vocação, porque envolve todo o ser da pessoa, antes de uma intervenção concreta. O voluntário não é aquele que faz, mas aquele que é, que está num caminho progressivo de estruturação da sua personalidade para a oblatividade, para o dom de si. É um processo de crescimento que se reforça e se orienta para uma nova ocasião de serviço. Este 141

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crescimento é fruto da educação e de escolhas queridas, de modelos e de experiências. A liberdade pessoal tem um papel fundamental aqui. O voluntariado, como facto social organizado, é o primeiro fruto visível desta maturação porque possibilita várias pessoas num projecto comum. É um modelo social, donde emergem novos valores, de relações humanas caracterizadas pelo assumir responsável de situações humanas, de soluções solidárias. Característica principal do ser voluntário é o envolvimento pessoal, profundo e progressivo num estilo de partilha e de serviço. O voluntariado apela normalmente a uma ideia de acção, de laborosidade e de eficiência. Quando o voluntário é verdadeiro, a sua parte substancial está nas profundas convicções que constituem a consciência de uma pessoa. No chamado voluntariado internacional, o elemento caracterizante é a qualidade da pessoa do voluntário que decide viver alguns anos da sua vida em serviço desinteressado, numa cultura diferente, em ordem ao crescimento humano de outras pessoas ou grupos sociais. A gratuitidade, como atitude para um serviço altruísta e desinteressado, como tendência a esquecer-se a si mesmo para o bem dos outros, é o aspecto mais evidente e mais construtivo deste estilo de vida. A gratuitidade não exclui que para o voluntário esteja previsto um tratamento económico, sobretudo quando é a tempo inteiro e por muitos anos. Porque, se assim não for, só os reformados, os consagrados e os que têm bens podem fazer o voluntariado. Seja como for, o serviço não pode ser fonte de rendimento pessoal. 5. Gratuitidade A gratuitidade não está, por si, ausente das relações sociais e muitos grupos humanos praticam-na. Há, no entanto, uma espécie de lógica do intercâmbio. Ao colocar-se a restituição no interior do intercâmbio, perde-se a dimensão da gratuitidade. Procura-se a reciprocidade e a equivalência. Presta-se um favor na intenção de ser recompensado. No âmbito das actividades económicas, a matriz é o intercâmbio, e nos chamados mundos vitais14, a gratuitidade funciona como a regra. Na família, há um cuidado desinteressado pelos outros e, sobretudo, pelos membros mais 14

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Os mundos vitais são espaços de experiências gratuitas como a família, voluntariado e outras instituições com estas características.

débeis, sem esperar nada em troca. A comunidade religiosa funda-se sobre a livre pertença e sobre a adesão a um património de valores ideais e espirituais fora do intercâmbio. Assim, os mundos vitais elaboram uma cultura e uma lógica da gratuitidade, representam uma espécie de constante apelo à sociedade, para que não se torne prisioneira exclusivamente da lógica do intercâmbio, sobretudo, nas relações interpessoais, mas permaneça sempre aberta à lógica do dom. A gratuitidade indica um dom imprevisto e imprevisível que gera, na relação com o outro, sentimentos de apreço, de reconhecimento e de gratidão. As grandes e fortes experiências da vida (da relação de amor à transmissão da vida, da relação com a beleza natural) são ou devem ser dimensões da gratuitidade. Nesta dimensão de gratuitidade, coloca-se a vida da família, nas suas dimensões constitutivas: a relação do casal e a relação pais e filhos; uma e outra experiência são incompreensíveis fora da lógica do dom, que é o fundamento da gratuitidade. A experiência da gratuitidade está na base de uma autêntica experiência de amor. A maravilha, a surpresa fazem parte da gratuitidade. Às vezes, o amor parece longínquo. O amor está no horizonte da gratuitidade. Ama-se sem nada pedir em troca. Quando algo dado é retribuído, esta retribuição aparece como uma surpresa e como um dom gratuito. A persistência do amor é a permanência desta atitude de maravilha e de surpresa pelo dom de um outro, sempre novo e diferente, e que nunca acaba de revelar aspectos até agora inexplorados da sua pessoa. A sociedade moderna exclui, do próprio horizonte, a gratuitidade. A vida da sociedade contemporânea está carregada de direitos e de deveres. Desenvolve-se um trabalho e recebe-se uma retribuição. As próprias relações interpessoais são substituídas por especialistas de relação. No entanto, fora da esfera da lógica, há áreas como a beleza, a arte, a contemplação da natureza, a religiosidade e a família. Esta nasce da experiência da gratuitidade do amor oferecido, aceite e partilhado. A lógica da família roda à volta da gratuitidade: amor, serviço e partilha15. A gratuitidade adquire relevo na sociedade. Há que organizar a

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Há valores éticos fundamentais: a liberdade, como tendência a realizar-se plenamente a si mesmo, no que se refere à liberdade dos outros; a relacionalidade como tendência a realizar-se, em modo cooperativo e competitivo, em relação aos outros; a historicidade da existência como tendência a realizar-se no presente, num diálogo fecundo com o passado, já constituído e herdado, e com um futuro aberto a novidades e a novas responsabilidades.

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sociedade de tal modo que a natureza social e amante do homem não seja separada da sua existência social, mas seja uma coisa só. Se o amor é verdadeiro, é a única solução válida para o problema da existência humana. A sociedade que exclui o desenvolvimento do amor mais tarde ou mais cedo perece. O amor, cuja expressão mais alta é a gratuitidade, não pode ser relegado para a esfera dos sentimentos, mas para a transformação de toda a sociedade. A ideia de gratuitidade está oculta há muito tempo na sociedade ocidental contemporânea, mas pouco a pouco vai emergindo. A família é um dos lugares desta imersão. Para salvaguardar o espírito da gratuitidade, numa sociedade dominada pela cultura tecnológica, é necessário defender os espaços de fantasia, de criatividade e de liberdade, tirados ao dia, que está programado e predeterminado16. Para Baccharini (2001, p.67-68), o ser humano é constituído segundo uma lógica de radical gratuitidade. É gratuito. O ser humano é auto-significativo. A gratuitidade assume-se como sinónimo de totalidade de sentido. A gratuitidade da pessoa indica uma originalidade, uma principialidade, que a tornam única. A unicidade e a irrepetibilidade são significativas a partir da lógica da gratuitidade. A gratuitidade é singularidade. Na gratuitidade ontológica, manifesta-se uma autosignificatividade absoluta que é o pressuposto da dignidade.

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A sociedade conhece o momento da alegria, da descontração, do divertimento. Em geral, o princípio da sociedade não é representado pelo prazer, mas pelo dever e toda a vida social é concebida como um conjunto de deveres e de obrigações. Nos mundos vitais, esta dimensão de alegria, de espontaneidade, de liberdade está constantemente presente e constitui a sua alma profunda. Basta pensar na dimensão do prazer, de alegria, de intercâmbio emocional que caracteriza a relação entre o homem e a mulher, não só sob o aspecto da sexualidade, e também, a relação entre pais e filhos. Quando a família é fiel à sua profunda vocação, as relações homem-mulher, pais-filhos são colocadas no sentido do amor, numa linha de espontaneidade, de liberdade de relações e, não só em direitos e deveres, obrigações. Na família e na comunidade religiosa, o que conta é a atitude de espontaneidade nas relações, um contexto de vida relacional, onde há o humor, o riso, aspectos recusados pela sociedade tecnológica para a qual isto não é útil. Não se entende como a sociedade não conhece a dimensão da convivialidade. Esta é uma excepção na sociedade, mas uma regra na família. Nesta atitude à convivialidade, está a força da família. Também a comunidade religiosa é marcada pelas dimensões de alegria, de criatividade, da espontaneidade de relações que nunca devem ser sufocadas pela ritualidade da instituição.

6. Educação para os valores Rokeach (1973) divide os valores finais em valores de dimensão pessoal e de dimensão social. Os valores pessoais ou intrapessoais são centrados na própria pessoa, e os sociais ou interpessoais são centrados na sociedade. Valores de orientação pessoal:  Amor adulto (intimidade sexual e espiritual);  Dignidade (respeito por si próprio);  Felicidade (satisfação);  Harmonia interior (ausência de conflitos internos);  Igualdade (fraternidade, oportunidades iguais para todos);  Liberdade (independência, liberdade de escolha);  Prazer (uma vida agradável e despreocupada);  Reconhecimento social (admiração e prestígio);  Sabedoria (conhecimento profundo da vida);  Salvação (vida eterna);  Sentido de realização (contributo importante, duradouro);  Uma vida apaixonante (uma vida activa e estimulante);  Uma vida confortável (uma vida próspera);  Verdadeira amizade (companheirismo, camaradagem). Valores de orientação social:  Segurança familiar (preocupação com os entes próximos);  Segurança nacional (protecção contra ataques externos);  Um mundo de beleza (beleza natural e artística); Um mundo de paz (sem guerras, nem conflitos). Os valores instrumentais dividem-se em valores de orientação moral e de orientação de competência. Os valores de orientação moral referem-se principalmente a modos de comportamento e não incluem, necessariamente, valores que dizem respeito à dignidade de cada existência; são os que têm foco interpessoal e que, quando violados, provocam peso na consciência. Os valores de orientação de competência ou auto-realização têm um foco pessoal e não parecem estritamente ligados à moralidade (Rokeach, 1973). 145

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Valores de orientação de competência:  Ambicioso (trabalhador, com aspirações);  Capaz (competente e eficaz);  Controlado (autodisciplinado e contido);  Espírito aberto (mentalidade aberta);  Imaginativo (criativo e ousado);  Independente (auto-suficiente, autoconfiança);  Intelectual (inteligente, ponderado);  Lógico (coerente, racional);  Responsável (confiança, seguro).  Valores de orientação moral:  Afectuoso (terno, carinhoso);  Alegre (bem disposto, jovial);  Corajoso (defensor das suas convicções);  Educado (cortês, com boas maneiras);  Honesto (sincero, verdadeiro);  Limpo (metódico, arrumado);  Obediente (respeitador, cumpridor);  Prestável (pronto a ajudar);  Tolerante (tendência para perdoar os outros)17. Quando se trata de referir outros valores, como proposta da ALVD, não presentes na escala de Rokeach, predominam os valores, tais como: a solidariedade, a justiça e a gratuitidade o voluntariado, a partilha, o serviço, a cooperação, a fraternidade, o diálogo e a disponibilidade, o trabalho, a saúde, a economia e o sucesso, entre outros. Os valores encontram-se na família, nos colegas, nos amigos, nos grupos, e nos conhecidos. É necessário ver de outra maneira, resgatar o carácter quotidiano do valor. Torna-se necessário descobrir os valores de cada um, tomar consciência deles e ver até que ponto orientam a própria vida. Se uma pessoa não descobre o positivo em si, também não o vai descobrir nos demais. A educação para os valores concretiza-se na experiência e na realização do valor. O destino do ser humano é, antes de mais, acção. A acção é a forma fundamental da existência social do homem. Não se dá educação separada da 146

acção, da práxis. A apropriação do valor passa, necessariamente, pela sua descoberta, através da experiência, na realidade imediata e significativa para o educando. Só quando o valor é posto em prática pelo próprio sujeito, quando ele tem experiência da sua realização pessoal, desse valor, pode dizer-se que se dá a apropriação do valor. Assim, os valores aprendem-se e praticam-se. Além de uma clarificação do valor, há que propor aos educandos o compromisso para um determinado valor, para assim perceber a vinculação entre este e práxis e fazer da práxis o meio privilegiado da educação ou apropriação do valor (Ruiz & Vallejos, 2001), com o apoio imprescindível do educador.

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Bibliografia Baccharini, E. (2001). Pressuposti antropologici di una cultura della solidarietà. In C. Bucchiarelli (Coord.). Ética e solidarietà. Per una fondazione ética della cultura della solidarietà. Roma: Fondazione Italiana per il Volontariato, 65-86. Barbosa, A. G. (1999). Jovens do futuro. Lisboa : Paulus. __. (2000). Jovens com valores. Lisboa: Paulinas. __. (2001). Jovens com projecto de vida. Lisboa: Paulinas. __. (2007). O valor da gratuitidade na educação dos jovens. Lisboa: UCP. Campanini, G. (2002). Le parole dell’etica. Il senso della vita quotidiana. Bolonha: EDB. Díez, F. M. (2004). El compromiso cristiano. Cristianos en el mundo. Salamanca: Editorial San Esteban. Direcção Provincial da Educação da Zambézia. Relatório de Actividades de 2004. João Paulo II. (1988). A solicitude social da Igreja. Lisboa: Rei dos Livros. __. (1991). Centesimus Annus. Porto: Perpétuo Socorro. Ladrière, J. (1997). L’éthique dans l’univers de la rationalité. Namur : Artel. Lickona, T. (1991). Education for Carácter. How our schools can teach respect and responsibility. New York: Bantam Books. Ministerio da Administração Estatal. República de Mozambique. (2005). Perfil do Distrito do Gúruè. Maputo: Série Perfis Distritais de Moçambique. Moral, J. L., Entrañas Humanas: sentimiento en la razón, razón en los sentimientos. Misión Joven, 240-241, 1997, 3-4. Nanni, C. (1997). Formazione. In J.M. Prellezo (Coord.). Dizionario di Scienze dell’educazione. Torino: LDC, 432-435. Naval, C. (1995). Educar ciudadanos. La polémica liberal-comunitarista en educación. Pamplona: Eunsa. Quintas, A. L. (1998). Manual de formación ética del voluntariado. Madrid: Rialp. Rivas, M. D. R., La solidaridad como respuesta: el cauce de las ONG. Misión Joven, 240-241, 1997, 15-27. Ruiz, P.O. e Vallejos, R.M. (2001). Los valores de la educación. Barcelona: Ariel. 148

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Direito ao trabalho e cidadania social – A educação ao serviço da solidariedadel1 Maria Helena Magalhães da Silveira Ribeiro2

Resumo Neste artigo procuramos reflectir sobre o direito ao trabalho e os novos desafios que se colocam à integração socioprofissional num cenário de precariedade e vulnerabilidade, tentando evidenciar as possibilidades de intervenção sócio-pedagógica a este nível. Assumindo uma perspectiva direccionada para a mudança positiva, entendemos que é urgente promover dinâmicas sociais conducentes a uma (re)configuração das políticas de «protecção» social, em conformidade com as exigências de flexibilidade vindas de uma sociedade laboral em constante mudança. Esta reflexão insere-se numa investigação em curso sobre o direito ao trabalho num quadro de cidadania solidária, realizada no âmbito do Mestrado em Pedagogia Social e tendo por base a nossa experiência profissional na área de promoção da empregabilidade, concretamente na Associação Metropolitana de Serviços, no desenvolvimento e implementação de projectos com vista à promoção da empregabilidade na área metropolitana do Porto, encerrando tipologias diversas: desde as acções de diagnóstico, à formação profissional e à gestão de redes institucionais e de parcerias estratégicas na prossecução destes objectivos.

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Este artigo surge no âmbito do mestrado em Pedagogia Social, como trabalho de avaliação na Disciplina de Politicas Sociais, leccionada pela Professora Isabel Baptista. Socióloga, Mestranda em Pedagogia Social na UCP, técnica dinamizadora de um projecto de intervenção na Associação Metropolitana de Serviços.

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Introdução Consideramos que uma estratégia de combate à precariedade do emprego, subordinada a princípios de desenvolvimento humano obriga a reflectir hoje sobre a própria natureza dos laços sociais. Neste sentido, o nosso estudo procura lançar pistas e hipóteses na concepção de propostas, tendo sempre em conta que a intervenção só ganha sentido num contexto em que se promove a capacitação humana para a construção de uma cidadania solidária, em que a participação constitui uma das vertentes. Esta reflexão parte da identificação de três fenómenos de vulnerabilidade social, que surgiram naturalmente das inquietações profissionais sentidas: a “precariedade laboral”, associada ao desemprego e ao emprego precário, a “discriminação social”, fruto de uma sociedade discriminadora e fragmentada, e as “dificuldades no acesso a uma educação plural”, associada a práticas educativas pré-formatadas e desajustadas. No seguimento destas preocupações, os direitos sociais que identificamos passam por três vectores fundamentais nos percursos de vida de cada um de nós: o direito ao trabalho, o direito à diferença e o direito a uma cidadania solidária. Num terceiro momento, passamos a identificar três desafios de cidadania de acordo com um enquadramento sócio-pedagógico que busca, antes de mais, o respeito pelos direitos acima enunciados: a “promoção de desenvolvimento humano sustentável”; a “construção de uma relação social solidária” e a “construção de comunidades educadoras e aprendentes”. É pois a partir destes enunciados que procuramos sustentar algumas “possibilidades de intervenção sócio-pedagógica”. Importa também clarificar este conceito a que nos referimos ao longo do artigo: a intervenção sócio-pedagógica pretende antes de mais uma mudança positiva, ancorada no postulado da aprendizagem ao longo da vida e na perfectibilidade das pessoas. Intervindo nas “zonas de interacção humana” (Baptista: 2007), ela aposta na capacitação das pessoas e no respeito pela especificidade de cada um. Uma intervenção sóciopedagógica assume desde logo a importância do laço social e toma como referência base os valores de proximidade, cidadania, alteridade e comunidade.

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Direito ao trabalho e desafios de cidadania No que toca aos desafios de cidadania a assumir na garantia do direito ao trabalho, a intervenção sócio-pedagógica poderá actuar em dois níveis: por um lado, o reforço (ou mesmo redefinição) das políticas sociais no que concerne os apoios e acompanhamento das pessoas em situação de desemprego que estão neste momento fortemente direccionados para quem possuía uma integração dita estável, (i.e., apenas os contratos de trabalho com um limite mínimo de duração garantem a protecção social no desemprego por um período igualmente limitado). Segundo Joaquim Azevedo e António Fonseca, o esbatimento da noção de compromisso salarial e de vínculo tem sido tão significativo que chega mesmo a desaparecer. Zygmunt Bauman fala mesmo de um “rompimento irreparável” do eixo da vida que girava em torno do trabalho e da decadência acelerada da experiência de comunidade (Bauman em Azevedo e Fonseca: 2007). No cruzamento deste cenário com as politicas sociais promovidas pelos poderes públicos, Gilbert Clavel (2004) aponta também contradições claras. É que “a iniciativa dos poderes públicos, paradoxalmente, e em nome da luta contra o desemprego e a exclusão, desenvolveu uma série de medidas que são, tanto formas precárias, como atípicas de emprego.” Os poderes públicos, numa tentativa remediativa, acabam por reforçar os ciclos da precariedade, propondo respostas insuficientes e insatisfatórias. A questão central é que as politicas sociais nesta área apenas se resumem a uma intervenção institucional que enceta uma contratualização com as pessoas em situação de desemprego, contratualização essa que apenas as inscreve em deveres, ignorando os seus objectivos de vida, a sua realização pessoal através do trabalho, buscando antes mais uma colocação rápida e descaracterizada, assente no primado económico. Robert Castel, um dos investigadores de referência nas questões da exclusão, propõe ele mesmo o “repensar da protecção social” no sentido de inverter a tendência de uma organização social em que as pessoas “não dispõem de um mínimo de recursos, de apoios e de direitos para conduzir a sua existência social com um mínimo de independência” (Castel: 2006). Esta reflexão pode levar-nos um pouco mais longe, na medida em que lança pistas para a compreensão de um novo conceito de exclusão; é que “sujeitos integrados tornam-se vulneráveis, 153

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particularmente devido à precarização das relações de trabalho, e as vulnerabilidades oscilam quotidianamente para aquilo que chamamos de exclusão” (Castel: 1995). A percepção empírica que temos do fenómeno é que a perda do emprego resulta muitas vezes na perda das protecções e que quanto menor for a força desta relação, mais fracas se tornam as redes de sociabilidade das pessoas e se vão reduzindo as possibilidades e as condições para uma nova integração sócioprofissional. Esta percepção é também balizada pelo estudo levado a cabo pelos autores Joaquim Azevedo e António M. Fonseca sobre “os imprevisíveis itinerários de transição escola-trabalho” em 2007, no qual é possível constatar que, em situação de desemprego, o recurso a redes sociais e informais de apoio é bem mais expressivo do que o recurso ao IEFP, o que coloca a tónica na importância das redes de contactos e solidariedades, às quais os desempregados vão tendo cada vez menos acesso, com o avançar do tempo. Retomando a perspectiva de Robert Castel, segundo a qual, as medidas de protecção social do Estado-Providência se refugiam sobretudo nos imperativos de natureza sócio-económica ditados pela instabilidade do mercado de emprego, isso leva-nos a ponderar a necessidade de repensar o próprio conceito de EstadoProvidência, da mesma forma que o autor propõe o repensar das protecções sociais, balizadas até agora num conceito de pobreza residual, mas que se tem vindo a modificar ao longo dos anos, e para o qual já não servem as respostas ditas tradicionais. A “nova pobreza” refere-se, na maioria dos casos, a “situações que traduzem uma degradação relacionada com um posicionamento anterior. Assim é a situação de quem vive um trabalho precário ou que ocupa uma moradia de onde pode ser expulso se não cumprir com os seus compromissos” (Castel: 1995). Deste modo, as novas políticas poderão ser concebidas num quadro de mais e melhor desenvolvimento humano, dotando os cidadãos de competências e capacidades necessárias a uma definição conjunta dos novos lugares sociais (Dortier: 2001), e sobretudo para que possam ser agentes activos na construção de uma cidadania solidária.

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Emprego e compromisso social das empresas Ora, por outro lado, se é um facto que as políticas sociais para o emprego se encontram fortemente condicionadas pelo mercado de trabalho e pelas oportunidades que dele vão surgindo, também é verdade que as entidades empregadoras se habituaram a instrumentalizar as pessoas enquanto recursos humanos, buscando incessantemente o super-trabalhador detentor de todas a competências pessoais, sociais e técnicas humanamente possíveis. Num estudo levado a cabo pela Associação Metropolitana de Serviços entre 2005 e 2006, junto das entidades empregadoras da Área Metropolitana do Porto, as características consideradas decisivas para a admissão de um novo funcionário passam por uma bateria de competências que vão desde a Seriedade/Lealdade como a mais decisiva até ao Domínio da Função a desempenhar, passando pelo empenho, a pontualidade e assiduidade, bem como o bom relacionamento com os outros (Cf. «Entre empresas e trabalhadores: o mercado de trabalho na grande área metropolitana do Porto», A:M:S: 2006)3 Esta não deixa de ser uma situação paradoxal: o nível de exigência das entidades empregadoras coloca a tónica em perfis pessoais e sociais, ligados a valores de integridade e respeito pelo humano, mas também é verdade que temos assistido, e muito concretamente a partir do final dos anos 90, a uma série de iniciativas empresariais que “recorrem a modos muito diferenciados de aproveitamento do conhecimento, da inteligência, e da capacidade criativa dos seres humanos, e que se cruzam num ambiente social marcado pela cada vez mais difícil articulação harmoniosa entre o mundo da educação e da formação, e o mundo da trabalho e do emprego” (Azevedo e Fonseca: 2007). Neste cenário de aproveitamento e precariedade, o desafio que se coloca à Pedagogia Social poderá passar por uma intervenção junto das entidades empregadoras no sentido destas desempenharem um papel relevante na promoção da empregabilidade, muito concretamente na promoção da educação e 3

Este estudo foi desenvolvido pela Associação Metropolitana de Serviços, no âmbito do PAFE (Plano Assistido para a Formação e Emprego, financiado ao abrigo da medida 5121 do POEFDS. A questão relativa às qualidades dos trabalhadores consideradas decisivas para a sua contratação, foi concebida sob a forma de uma escala de atitudes, na medida em que os inquiridos se posicionavam perante as competências (variáveis) pré-estabelecidas.

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no combate ao emprego precário, invertendo a forte tendência de desfiliação da sociedade salarial, recorrendo assim a uma expressão utilizada por Robert Castel. Trata-se de traçar um caminho de compromissos mútuos, envolvendo as entidades geradoras de emprego na concepção de novas estratégias que, acompanhando as transformações do mercado de trabalho e das novas competências por ele exigidas, assegurem a protecção das pessoas “em situações de mobilidade, alternância entre dois empregos, mudança de emprego, de reciclagem…”, em suma, que “associe novas protecções a novas situações” (Castel: 2006). Trata-se também de combater a degradação do modelo de sociedade salarial tradicional e promover a urgente humanização das novas relações de trabalho. Sendo admissível que as empresas buscam o lucro, e que dele depende a sua sobrevivência, é também um facto há muito balizado pela sociologia das organizações, pela psicologia do trabalho e mesmo pela gestão de recursos humanos, que a promoção de um ambiente de trabalho propício ao desenvolvimento das pessoas, e as estratégias de motivação individual para as tarefas (intrínseca e autónoma), contribuem decisivamente para o sucesso empresarial. De acordo com o estudo acima mencionado, “é possível que as empresas possam realizar uma gestão mais consciente e clara, conseguindo um melhor ambiente de trabalho e obtendo um maior comprometimento dos seus funcionários, com relações mais consistentes com os seus fornecedores e clientes e uma melhor imagem face à comunidade” (A.M.S: 2006). A assumpção deste tipo de comprometimento conduz a uma mudança cultural, de valores e atitudes, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Mas a introdução de certas premissas éticas nos negócios pressupõe o respeito pelo direito, os valores, princípios e interesses de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, são por ela afectados, isto é, “valores e transparência direccionados para os públicos internos, meio ambiente, fornecedores, consumidores e clientes, comunidade, governo e sociedade” (ibidem), que muitas das vezes não são “considerados compatíveis” com a sustentabilidade económica das entidades empregadoras. Se nas dinâmicas de contratação, as empresas inquiridas pela A.M.S. manifestaram claramente uma atitude positiva face à prioridade que dão à contratação de pessoas em situação de desemprego (55,3%), o mesmo não 156

acontece em relação às pessoas em situação de desemprego de longa duração (agregando apenas 18,2% de respostas). Por seu turno, nas dinâmicas de modalidade contratual, e estabelecendo aqui uma ponte com os dados presentes no estudo levado a cabo pelos autores Joaquim Azevedo e António Fonseca, estes, apontam precisamente para o crescimento da precariedade dos vínculos laborais: em Portugal, “entre 1994 e 2004, quase duplicou a percentagem de activos com contrato de trabalho não permanente” (Azevedo e Fonseca: 2007), passando de 12% para 21%. Ora, neste quadro de precariedade (contratos de trabalho de curta duração, estágios profissionais que não se concretizam em empregos, a chamada moda dos recibos verdes, e o trabalho temporário) as empresas cada vez menos se constituem como espaço de realização pessoal, de acolhimento da diferença, de enriquecimento humano, mas antes como um espaço de promoção da precariedade laboral, de insegurança e de instabilidade, o que, em última análise, conduz as pessoas a um estado de precarização da existência e de gestão do incerto (na medida em que a instabilidade laboral, como fenómeno macro, afecta todas as outras dimensões da vida das pessoas). Gilbert Clavel interpela-nos também neste sentido: “se este movimento da precarização do trabalho é sintomático da degradação do modelo de sociedade salarial tradicional, cria as condições que possibilitam um processo de exclusão de maior amplitude do qual o desemprego representa um termo problemático.” (Clavel: 2004). Este não é um contexto desejável para nenhum sector da sociedade, pelo que o segundo desafio para a Pedagogia Social será então o trabalho com as empresas na constituição destas como espaço de realização pessoal para os trabalhadores, na consciencialização de que a segurança profissional conduz à motivação e satisfação individual dos trabalhadores e que esta constitui um factor de produtividade e diferenciação estratégica. Para além disso, é necessária a tomada de consciência de que são as pessoas que fazem as empresas - capital humano em detrimento do capital-máquina, e que estas são sobretudo o reflexo do humano, que o acolhimento da diferença e a relação humana solidária dentro de uma estrutura organizacional produtiva podem ser também factores de diferenciação estratégica num quadro de competitividade. 157

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Independentemente das questões de ordem económica e estratégica já referidas anteriormente, permanece o ponto central: é que a estabilidade profissional das pessoas que constroem a empresa, e o respeito pelos direitos que lhes assistem enquanto trabalhadores são igualmente decisivos, pois é a partir deles que a empresa se constitui como espaço de acolhimento, de construção de valores e espaços comuns, em suma, de criação de cultura organizacional. Neste sentido, qual é a missão da empresa? “Podemos dizer que se trata de gerar lucro. Ponto Final. Podemos insistir na performance, na tecnologia… mas também podemos considerar que a empresa é uma forma de vivermos juntos e de construir sociedade” (Sainsaulieu em Cabin: 2001). Partindo deste pressuposto, só a permanência potencia a dinamização das relações de sociabilidade, de construção e partilha de espaço e valores comuns, em suma, da construção da relação laboral solidária ancorada num conceito de empresa como “comunidade com lugar à mesa para todos” (Marques em Baptista: 2007) da qual nos fala Rui Marques, e na qual “se partilha desde logo a tarefa de pôr a mesa, promovendo-se assim a capacidade de se gerar história conjunta” (Baptista: 2007).

Capacitação das pessoas: o sentido da intervenção sócio-pedagógica No que concerne o “direito à diferença” e à “cidadania solidária”, os desafios passam por dois vectores fundamentais: por um lado, o fomento das comunidades educadoras e aprendentes como resposta à situação de vulnerabilidade decorrente de práticas e respostas educativas pré-formatadas (prontas a consumir) e desajustadas dos objectivos de vida e de realização pessoal de cada um. É importante, antes de mais, “perceber no terreno como é que os homens e mulheres que trabalham e aprendem ao longo da vida estão a ser capazes na sociedade do conhecimento, de se adaptar a essa sociedade, de desenvolver as suas capacidades e de se realizar enquanto pessoas” (Azevedo e Fonseca: 2007). Por outro lado, a construção de uma relação social solidária só é possível num quadro de acolhimento, partilha e comunhão da diferença, i.e., das características 158

de cada um de nós que nos demarcam enquanto seres humanos únicos, que enriquecem a dinâmicas das comunidades e das relações entre as pessoas, e que, em última análise, constroem identidade comum. No cerne destas questões estão então as práticas educativas (ancoradas no já referido paradigma da aprendizagem ao longo da vida) e a capacitação humana para a participação cidadã. Se por um lado, e partindo dos pressupostos advogados por Isabel Baptista, a comunidade aprendente deve funcionar como uma “zona de encontro inter subjectivo” e partilha de saberes, talentos e experiências, tendo por base a relação solidária, em que as pessoas não se encontram pelas suas similaridades, mas sim pela riqueza que reside nas suas diferenças – é esta a alquimia da relação humana. Por outro lado, ela só ganha sentido num contexto de participação cidadã responsável. O desafio que se coloca é então a construção de uma intervenção sóciopedagógica ancorada numa multidisplinariedade e num conjunto de saberes, abertos à diferença e ao diálogo. Não se trata apenas da necessária “capacitação subjectiva” (Baptista: 2007) das pessoas para a participação cidadã, mas também, e acima de tudo, de “cuidar do espaço relacional” (ibidem) onde as interacções se desenvolvem e onde as intervenções fazem sentido. Atrevemo-nos até a ir um pouco mais longe, considerando que o fundamental num projecto de intervenção é a construção com e não a construção para. Não se trata de acolher e “consumir” a diferença do outro, mas de construir uma nova identidade com ela. Concretizando um pouco mais, o objecto da intervenção social (no quadro da Pedagogia Social) não são as pessoas, nem os lugares (território), mas sim a zona de interacção entres eles – aquilo que designamos por terceiro lugar e que podemos aproximar do conceito que Giddens (num enquadramento de alternativa politica mais solidária) designou por Terceira Via. É neste espaço que a organização das solidariedades sociais ganha sentido, tendo em conta que todos somos sujeitos de vulnerabilidade: basta pensar nos fenómenos potenciadores de vulnerabilidade social como a saúde, o emprego, os afectos, a solidão. Ora esta ideia não deixa de contrariar a visão clássica dos projectos de intervenção assentes numa espécie de discriminação positiva, pautados por uma filosofia de intervenção guiada pelo défice (por aquilo que as pessoas não são, não detêm e não possuem), mas esta ruptura é tão urgente como necessária, precisamente 159

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porque se quisermos construir novos lugares sociais em prol do desenvolvimento humano (e sustentável), temos de partir de uma base positiva, e não de um enunciado de fragilidades. Podemos partir da mesma ideia na análise do fenómeno da exclusão: “de tanto se repetir a ladainha da ausência, oculta-se a necessidade de analisar positivamente no que consiste a ausência. Isto por uma razão de fundo: os traços constitutivos das situações de exclusão, não se encontram nas situações em si mesmas” (Castel: 1995). Ainda no seguimento do que nos é proposto por Isabel Baptista, não podemos deixar de concordar que é partindo deste pressuposto que se constrói a verdadeira cidadania solidária, ancorada nos valores de proximidade e comunidade, mas também defendemos que a via é a participação cidadã, pelo que um dos desafios que se coloca à Pedagogia Social é a capacitação das pessoas para a participação activa num “projecto de sociedade” ao longo de toda a sua vida. Daí a necessidade do construir com, e da criação de condições para a participação cidadã responsável - uma educação para a cidadania ancorada em três vectores: mostrar às pessoas os seus direitos e os seus deveres, desenvolver as suas capacidades, estimular o trabalho em equipa e o sentido de comunidade, ancorados em dois paradigmas fundamentais – a educação ao longo da vida e a relação social solidária.

Considerações Finais No final deste texto, e como matéria de reflexão que tencionamos prolongar num projecto de investigação conducente ao grau de Mestrado em Pedagogia Social, importa lançar algumas possibilidades de aprofundamento sóciopedagógico às inúmeras inquietações aqui levantadas: desde o repensar as novas formas de actuação política no que concerne as protecções sociais, à situação de precariedade laboral que nos obriga a uma quotidiana gestão do incerto. Importa reflectir sobre o lugar das entidades geradoras de emprego na concepção destas respostas, e a possibilidades de intervenção que advêm da aprendizagem ao longo da vida, que pode assumir aqui novos contornos, reforçando o sentido de empresa-comunidade. O desafio maior talvez seja ainda a promoção da capacitação das pessoas para o exercício de uma cidadania solidária quando a nossa vivência está tão 160

fortemente marcada por lugares de incerteza. Reconhecendo a importância da educação no processo de desenvolvimento humano, concretamente na promoção de mudanças positivas, pensamos que estas são questões fundamentais para a Pedagogia Social.

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Bibliografia de referência Azevedo, Joaquim e Fonseca, António; (2007). Imprevisíveis itinerários de transição escola-trabalho, Vila Nova de Gaia, Edição da Fundação Manuel Leão. Baptista, Isabel; 2007. Políticas de alteridade e cidadania solidária - As perguntas da Pedagogia Social In Cadernos de Pedagogia Social. UCP Editora. Cavaco, Paula e Ferreira, Hélder (coord.). 2006. Entre empresas e trabalhadores: o mercado de trabalho na grande área metropolitana do Porto, Participação de Cristina Novo, Elvira Lopes, Helena Ribeiro e Hélder Ferreira. A.M.S; Porto. Cabin, Philippe ; 2001. Les relations de travail à l’épreuve, na Revista Sciences Humaines, Hors Série, n. º 33, Junho – Agosto de 2001. Castel, Robert; 2005. As armadilhas da Exclusão, In Y a-t-il dêem exclus? L’exclusion en Debat, Lien Social et Politiques – RIAC, 34, Paris, Montreal. 2006. Repenser la protection sociale, na Revista Sciences Humaines, n.º 168, Fevereiro de 2006. Clavel, Gilbert; 2004; A sociedade da Exclusão, Porto Editora Delors, Jacques. (Org.), 1996. Educação, um tesouro a descobrir, Porto, ASA. Dortier, Jean François ; 2001. Aux sources du lien social, In Revista Sciences Humaines, Hors Série, n.º 33, Junho – Agosto de 2001. Giddens, Anthony; 1999. Para uma Terceira via. Lisboa: Editorial Presença.

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Situações de risco: jovens “sem projecto de vida”, a construção de um objecto de estudo Maria Sara de Lima Dias2 | Dulce Helena Penna Soares3

Resumo O presente texto procura articular as temáticas do risco e da vulnerabilidade social como condições pensadas sob o pano de fundo da inserção profissional dos jovens universitários. Com a intenção de revelar aproximações possíveis entre as áreas da Psicologia e da Pedagogia Social sobre um mesmo objecto de estudo, a vida dos jovens recém-formados e suas expectativas de futuro profissional, pretende-se evidenciar a trama humana que acompanha percursos existenciais marcados pela ausência de «projecto de vida».

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Este artigo surge no âmbito do mestrado em Pedagogia Social, como trabalho de avaliação na Disciplina de Politicas Sociais, leccionada pela Professora Isabel Baptista e insere-se numa pesquisa de doutoramento em curso desde o ano de 2005, conforme Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina – Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina – Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

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“O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anuncia aquilo para que o ser humano foi essencialmente criado, e denuncia os esquemas que atentam contra o seu destino.” Leonardo Boff

Introdução Ao reflectir sobre as chamadas situações de «risco», somos remetidos para um conjunto de dificuldades que atingem o ser humano e o colocam em uma situação de vulnerabilidade social. Do ponto de vista ético é preciso ressalvar que o uso da expressão «jovens sem projecto de vida» não contempla qualquer avaliação negativa sobre as trajectórias existenciais e referência. Actualmente a projecção de si mesmo no tempo e no espaço futuro esvai-se sob a condição de insegurança vivida por muitos jovens recém formados, traduzindo-se numa falta de perspectivas de futuro, um viver “sem projecto”. É a partir desta constatação que desenhamos o nosso objecto de estudo, configurando um campo de possível acção e intervenção da pedagogia social em interface com a psicologia. Segundo o dicionário Michaellis, a palavra “risco” deriva do latim resecare que significa “cortar”. Está ligada à condição de estar em risco, ou seja, à possibilidade de perigo, incerto, mas previsível, que ameaça de dano a pessoa ou a coisa. Existe uma abordagem problematizadora das teorias do risco, integrando os debates mais recentes sobre estas condições sociais. De uma maneira ampla, as situações de risco são condições de vulnerabilidade social (Castel, 1998), que se constituem como percepções mais ou menos previsíveis de insegurança quanto ao futuro. Os sujeitos em risco, geralmente são pessoas, que podem estar de alguma forma excluídas de seus direitos sociais. Sofrem, pois, de diversos modos de exclusão social: do direito ao abrigo, a comida ao trabalho à escola ou à saúde. Para Robert Castel (1998), o tipo de formação social que conheceu seu apogeu ao redor dos anos 70, caracteriza-se por uma condição salarial sólida, ligada aos direitos sociais consistentes como: o direito ao trabalho e à protecção social. Para este autor falar da sociedade salarial é falar de suas protecções, constituídas a partir das conquistas históricas dos trabalhadores. Actualmente o capitalismo encontra-se numa fase muito mais agressiva e individualista, devido à concor164

rência mundial e a falta de trabalho ou à precarização do mesmo, o que afecta os indivíduos na sua subjectividade, culpabilizando-os pela sua condição de «seres em falta». O discurso do desemprego desloca-se para uma justificativa individualista, que recai sobre as pessoas que acabam reafirmando suas incapacidades para ocuparem postos de trabalho. Permite, portanto a possibilidade de se acusar a vitima, com um retorno da condição de exclusão e da culpa do desemprego, sobre a mesma. Diante deste quadro, como nos aponta Castell (1998) o indivíduo, encontra-se em risco de perder seu estatuto de segurança social, ou de ser capaz de conduzir sua vida, com um mínimo de recursos materiais necessários Assim sendo, de certa forma mesmo as pessoas que não se sentem excluídas socialmente podem estar vivendo diversos tipos de ameaças de riscos sociais.

Da exclusão à vulnerabilidade No contexto da sociedade contemporânea, o conceito de exclusão social parece cada vez mais desprovido de significado, uma vez que todos estão imersos na mesma realidade, conforme alerta Robert Castel (1997), tornando necessário então explicitar a forma como se vai abordar o conceito. O termo «exclusão» é aqui usado para descrever processos de degradação de relações sociais de maneira ampla e de relações referentes ao mundo do trabalho de maneira mais específica. Remete aos problemas decorrentes da insuficiente oferta de serviços pelo Estado, como educação, saúde, transporte, saneamento, denunciando a desigualdade implícita na distribuição destes serviços públicos. Neste trabalho, usamos o conceito de “exclusão” relacionando-o à retracção do número de postos de trabalho e em relação a perdas de direitos políticos e direitos sociais dos trabalhadores, considerando que esta perda ocasiona situações de vulnerabilidade. Assim, se a propriedade social permitiu ao indivíduo construir a partir do trabalho uma certa autonomia pessoal, condição da sua independência, hoje em dia as pessoas têm dificuldade em encontrar espaços onde possam exercer sua autonomização por razões derivadas do fenómeno do desemprego. “Para a maioria dos indivíduos o trabalho, é de todas as actividades, a que ocupa a maior parte das suas vidas (Giddens, 2007). O trabalho, ou mais exactamente o «emprego», funciona como elemento estruturador na constituição psicológica das 165

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pessoas e no ciclo das suas actividades diárias funcionando como condição de sua autonomização. A vinculação laboral cria condições de vida que permitem aos sujeitos serem actores e autores de sua história pessoal. Como podem as pessoas em situação de desemprego conduzir a sua existência de forma positiva? É na resposta a esta questão que procuramos delinear a interface entre a pedagogia social e a psicologia. Tendo em consideração os pressupostos conceituais da pedagogia social, de que somos todos os sujeitos do presente e, nessa condição, autores de futuro (Baptista, 2008), pensamos que a presença da acção sócio-pedagógica se torna cada vez mais necessária para compreender e enfrentar os desafios provocados pelas novas relações de trabalho. Durante muito tempo a via do emprego inscrevia o sujeito num universo de estabilidade e cultura comum. Actualmente vários problemas afectam o trabalhador, desde a condição de desemprego ou precariedade, mas também a própria necessidade de mobilidade dos indivíduos (Cabin, 2001). Os trabalhadores estão submetidos a formas de remuneração obscuras e flexíveis, ocasionando um enfraquecimento do compromisso dos indivíduos dentro das empresas e também dentro da sociedade. O trabalhador encontra-se cada vez mais isolado, tanto no que se refere ao trabalho em equipa dentro das empresas quanto no que refere à luta por seus direitos. Consequentemente, encontra-se cada vez mais desprotegido ou em situação de vulnerabilidade. De certa forma, toda a humanidade está exposta a situações de risco, desde as que se referem a dimensões globais como a escassez de alimento no mundo ou as transformações do ecossistema até às dimensões pessoais. Especificamente ao pensar no trabalho numa economia globalizada, as pessoas desprovidas dos meios de produção, aquelas que têm de viver da venda de sua força de trabalho, não encontram condições de segurança social. Para Sennett (1998) mesmo as pessoas que hoje se encontram empregadas, sentem a falta de controlo sobre seu tempo e sobre o seu espaço, devido ao tipo de trabalho flexível e de curto prazo que tem sido a forma mais privilegiada de contrato. O debate sobre assuntos de interesse comum relacionados com a vivência ou a expectativa do risco eminente, constitui um campo de acção da pedagogia social com a mediação da psicologia e de demais áreas afins. Principalmente no que diz respeito à possibilidade ou impossibilidade do sujeito trabalhar ou tecer 166

expectativas em torno de sua empregabilidade e, a partir daí, se projectar plenamente como sujeito de perfectibilidade (Baptista, 2007a). O grande desafio da sociedade actual passa pela aprendizagem de novas formas de ser, estar, conviver e fazer de modo a tornar-se capaz de transformar o seu meio social. Esta é uma questão fundamental para a pedagogia social, considerando a necessidade de investir na capacitação dos sujeitos e ao mesmo tempo aprendendo a lidar com o sentimento de vulnerabilidade permanente a que todos estamos sujeitos.

Sobre a vulnerabilidade do trabalhador Entre os riscos relativos ao trabalho, temos o trabalho precário, em penosas condições, insalubre, mal remunerado, ou ainda a própria ausência do trabalho, que pode gerar consequências danosas para o sujeito (Castells, 2002). A vivência em constante situação de desemprego pode levar à pobreza, à perda de status, à perda de disciplina temporal e rotina diária, à desagregação da vida familiar. Em geral, o desemprego contribui ainda para aumentar os índices de criminalidade e violência. Uma forma de compreender como as mudanças do trabalho afectam a vida das pessoas em sociedade é confrontar as perspectivas de carreira actuais com as do passado e compreender que as trajectórias profissionais são radicalmente diferentes, no espaço de uma única geração (Sennett, 1998). Estas mudanças de carreira e trabalho posicionam o sujeito num campo de extrema complexidade, criando contrariedades no que diz respeito a traçar perspectivas de futuro ou definir um projecto de vida. Neste artigo, o conceito de «projecto de vida» será analisado na perspectiva da antropologia, considerando que “a noção de projecto pode ajudar na análise de trajectórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades” (Velho, 1994) A par dessas considerações, utiliza-se o conceito de projecto de vida como uma orientação colectiva, sempre produzida por reflexões que o sujeito pode ou não tecer sobre as condições e o contexto em que se encontra inserido. O que resulta em dificuldades de toda a ordem (Castel, 1998), pois para pensar o futuro, o sujeito necessita de certa estabilidade no presente. Portanto se os direitos constitutivos da sociedade salarial é que permitiam ao sujeito planejar a sua vida e se isto não é possível, podemos dizer que encontraremos jovens sem projectos 167

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de vida, uma vez que a insegurança social é uma condição geral da grande maioria das pessoas no século XXI. Neste contexto, como podem os jovens reflectir ou o pensar o seu futuro na sociedade? Para Edgar Morin (2003) “a dificuldade em compreender o Estado-Nação reside no seu carácter complexo”. Para pensar o Estado-Nação, o autor incita-nos a pensá-lo como uma entidade ao mesmo tempo territorial, político, cultural, histórico, místico e religioso. Associando as noções de comunidade e de sociedade, valorizamos este carácter cultural/histórico das dinâmicas sociais. Toda a sociedade é cultural pelos seus valores, usos e costumes, normas e crenças comuns; é histórica pelas transformações e provações sofridas ao longo do tempo. A trajectória profissional desde o início da carreira até a aposentadoria (termo que no português de Portugal significa estar reforma/aposentação) deixou de ser algo linear, um caminho seguro a ser percorrido ao longo da vida (Dubar, 2001). Tanto é que a variável “objectivo” da intervenção pública mais importante desde a Segunda Guerra nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) é o desemprego. O pós-guerra presencia o reino das “políticas de pleno emprego” (Gautiê, 1998), como forma de manter o equilíbrio entre o capital e o trabalho, voltado para produzir e manter a riqueza das nações. Portanto existe uma preocupação com a questão do desemprego que passou a ser chamada de uma nova “questão social”. (Castel, 1998). A questão social do desemprego está directamente relacionada com o conceito de vulnerabilidade. Conceito este desenvolvido por Robert Castel a partir de uma concepção de sociedade salarial francesa, para explicitar os factores de ordem social que influenciam na vulnerabilidade pessoal, representando uma zona de precariedade e fragilidade dos sujeitos. Esta fragilidade atinge principalmente os jovens em início de carreira, para quem a principal questão social é a da sua inserção profissional, conforme corroboram diversas pesquisas (Pochmann, 1999, 2000, 2001, 2003; Dupas, 1999; Harvey, 2005; Antunes, 2005; Castel, 1998). Inúmeras medidas de políticas sociais são desenvolvidos pelos governos de todo o mundo, no sentido de facilitar a inserção do jovem no mercado de trabalho. Tendo em conta que o trabalho é fundamento do desenvolvimento humano e permite a inscrição do sujeito como um ser produtivo na sociedade, tais políticas têm um carácter 168

positivo, actuando sobre os possíveis riscos sociais que podem advir do desencanto e falta de esperanças no futuro que o desemprego juvenil pode causar. Vários estudos, nos diversos campos do conhecimento mostraram como o trabalho ocupa um lugar central na vida das pessoas (Antunes, 1995; 1999; Bauman, 1998; Beck, 1999; Castells, 1999; Harvey, 1993; Rifkin, 1995; Sennet, 1999). Além de ser fonte de identificação social e profissional (Dubar 1998, 2001) permite ao homem ao desenvolver uma actividade e aprimorar a sua capacidade de criar. Permite situar o lugar de quem fala e afirmar-se por meio de sua acção. Ao falar daquilo que se é como pessoa humana, o referente do trabalho, constituise como um dos principais processos de identificação do homem. Por esta razão, mesmo em países considerados desenvolvidos, existe uma grande preocupação com a inserção de jovens no mundo do trabalho. Segundo a OIT - Organização Internacional do Trabalho (2006), hoje existem cerca de 70.000.000 milhões de jovens no mundo em situação de desemprego. Ora, do ponto de vista da pedagogia social, importa que nos preocupemos com o «quanto», mas principalmente com o «como», com a forma como o desemprego afecta os jovens. Será que a economia consegue gerar novos empregos, na mesma proporção do número de jovens que pretendem entrar ao mercado de trabalho anualmente? Como dissemos, as condições desfavoráveis relacionadas com o desemprego representam uma propensão para a adopção de comportamento de risco, ocasionando o aumento nos índices de criminalidade e violência. E para além dos aspectos sociais globais, existem aspectos psicológicos que afectam directamente o sujeito. Entre os efeitos psicológicos ligados ao desemprego incluem-se: resignação, auto-estima negativa, desespero, vergonha, apatia, depressão, desesperança, sensação de futilidade, perda de objectivos, passividade, letargia e indiferença. Além da perda dos valores morais que a hiper-competitividade pode trazer para as pessoas, conceito que Sennett (1998) descreve como a “corrosão do carácter”.

O trabalho e a promoção do indivíduo positivo Foi através dos suportes sociais garantidos pela condição de assalariado que o indivíduo moderno se um indivíduo positivo, ou seja, cuja existência não é assegurada 169

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somente pela capacidade de vender a sua força de trabalho, mas também pelo quinhão de propriedade social ao qual tem acesso. (Castel, 1998). Deste modo, o indivíduo, num tempo não muito remoto, possuía certa segurança em relação ao seu futuro. A existência de um contrato de trabalho permitiu o aparecimento do indivíduo positivo, justificando as lutas pelos direitos sociais enquanto «classe-que-vive-dotrabalho» (Castel, 1998; Antunes, 2005). Questiona-se como hoje o jovem vive sem a expectativa de conseguir um trabalho digno e repleto de sentido. Houve um tempo no qual, a inserção do homem no processo produtivo, dependia essencialmente dele mesmo, de quanto plantaria no seu campo e de iniciativas pessoais. No Brasil vivese hoje uma realidade das mais difíceis, nalgumas capitais o desemprego atinge 40% dos jovens em idade produtiva, segundo o IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2007). Assim, o jovem candidato a trabalhar, fica em uma situação muito precária, as poucas oportunidades de trabalho tendem a ficar dominadas por sistemas integrados em rede (Castells, 2002) num universo de mercado de trabalho globalizado/globalizante. Advogamos em favor do trabalho enquanto fonte de identificações e de inscrição social (Sennett, 1998; Castel, 1998; Dubar, 1998, 2001), tentando problematizar a situação de risco social a que estão submetidos os jovens, focando ao mesmo tempo a necessidade de construção de redes sociais de suporte, construídas a partir de diferentes áreas de saber e de diferentes olhares sobre a transição entre a vida universitária e o mundo do trabalho.

Os sentidos do trabalho ou o trabalho sem sentido Quais os novos sentidos do trabalho na sociedade complexa e vulnerável de hoje? Segundo Antunes (2005) o trabalho perdeu seu sentido na actual fase do capitalismo por vários motivos, em primeiro lugar pela distância promovida entre o trabalhador e os meios de produção, ou seja, pela alienação produzida no processo de trabalho. A questão que orienta a nossa pesquisa prende-se com esta procura de novos sentidos, concretamente em relação ao sentidosdo trabalho para os jovens. Partindo de uma perspectiva pedagógica, como poderemos apoiar os jovens enquanto sujeitos de aprendizagem, aptos para a participação social livre e responsável? 170

Sobre os sentidos do trabalho, desde meados dos anos 50 que se tem procurado compreender o significado atribuído pelas pessoas ao trabalho. Os pesquisadores do grupo Meaning Of Work (MOW, 1987) apresentam resultados que mostram que o trabalho pode assumir desde uma condição de neutralidade até de centralidade na identidade pessoal e social. Segundo Morin, Toneli e Pliopas (2007), o trabalho é essencial na vida das pessoas. Temáticas como a reestruturação produtiva, as relações de trabalho, a competitividade e o desemprego, são objecto de reflexão ao discutir-se o significado que o trabalho vem assumindo (Tolfo, 2005). A questão do trabalho para os jovens está envolta em realidades múltiplas que delineiam sentidos distintos operando na sua polissemia (Baktin, 2004). Uma das hipóteses levantadas é de que os jovens formandos estão mais susceptíveis a aceitar qualquer tipo de trabalho, aceitando contratos mais precários e com baixas remunerações. O que se observa no caso dos formandos no Brasil, sobretudo no contexto da universidade federal pública e gratuita, é que são os jovens de classes economicamente favorecidas que, geralmente, acedem ao ensino superior. Para estes jovens, que à partida têm maiores oportunidades, observa-se uma demora em termos de inserção profissional. Uma outra hipótese que se levanta é de que esta demora seria mobilizada por distintas configurações contextuais entre elas: o medo de saírem da universidade e não encontrarem emprego ou aceitarem um emprego e depois serem demitidos ou não gostarem de suas actividades. Uma das possibilidades a ser investigada é a de que o trabalho para esta população de formandos parece estar destituído de sentido pessoal. Ou pelo menos de que o trabalho não corresponde às expectativas, valores e intenções profissionais que foram sendo construídas. Junta-se aqui a necessidade de indagar sobre a existência de uma escolha ou orientação profissional adequada. Existe, portanto a possibilidade de que a escolha pelo curso superior não tenha sido uma escolha pessoal do sujeito. De facto, muitos entram na universidade e procuram fazer cursos, para cumprir com os desejos de seus pais, amigos ou familiares, ou para buscar o status de uma determinada profissão. Neste caso, e conforme nos propomos demonstrar, justificase a intervenção dos serviços de Orientação Profissional e de Pedagogia Social na Universidade Federal, permitindo auxiliar o jovem a descobrir e a redescobrir quais sentidos atribui ao trabalho. Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Antunes (2005). 171

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A construção de um objecto de estudo A construção de um objecto de estudo corresponde a um processo complexo que se vai desenvolvendo a partir de u olhar sobre o mundo, sobre as questões que trazem afectos ou com as quais o pesquisador se vê afectado. São construções subjectivas tecidas de sentidos traçados ao longo da própria vida por quem pesquisa e por quem olha a realidade e se questiona sobre ela. Na continuação do que vem sendo dito, a relevância do nosso objecto de estudo surge justificada a partir da vivência da pesquisadora em actividades voltadas para a formação e para o emprego, como psicóloga e educadora. Constitui-se como um olhar da pedagogia social, também devido aos pesados investimentos sociais, pessoais e familiares, que se fazem em termos do binómio educação/trabalho. Onde, conforme alerta Joaquim Azevedo (2007) “A educação surge-nos como campo privilegiado na realização do direito universal à humanidade de cada ser humano, num contexto tão fortemente marcado pela desvinculação, pela fragmentação, pela desregulação e pela desigualdade social e num tempo de grande incerteza face ao futuro”. Assumindo uma visão que entendemos inserida na pedagogia social, interessa-nos indagar sobre as estratégicas de ascensão e mobilidade social que são construídas sobre as expectativas dos jovens. Segundo Morin, (2003) “ a educação pode ajudar-nos a ser melhores e mais felizes, ensinando-nos a assumir a parte prosaica e a viver a parte poética das nossas vidas”. Diversas questões amarram os sentidos do trabalho, congelando significados que foram historicamente construídos e que sustentam a sua relação com a educação ou com a formação4 para o trabalho. Com a vivência do desemprego, alteram-se os campos de sentido, configuram-se novos debates e polémicas nas relações entre a formação e o trabalho. Emerge um fenómeno nunca dantes observado em tão grande proporção, a evasão do ensino superior. Mesmo em universidades federais públicas e gratuitas, alunos com situação económica menos favorável, vêm-se obrigados a frequentar os seus estudos no período nocturno e muitos acabam por desistir. A evasão também se deve à percepção de que não conseguem 4

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O termos formação, com suas conotações de moldagem e formação, tem o efeito de ignorar que a missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando, provocando, favorecendo a autonomia do espírito. ( Morin, 2003)

acompanhar as matérias, por problemas pessoais e familiares. Muitos afastam-se por desconhecimento da profissão e do mercado de trabalho e por não percebem sentido naquele tipo de trabalho futuro. Porém, o que constatamos empiricamente é que após a formação obtida, os sentidos tecidos em torno do trabalho alteram-se e são processadas novas expectativas de inserção. É na necessidade de averiguar em que medida tal se verifica e compreender as mudanças operadas que se centra a nossa pesquisa. Como se percebem os formandos diante dos novos requisitos do mercado de trabalho? Na nossa perspectiva vale a pena apreender e compreender o sentido do trabalho hoje, tendo em vista que ele configura diferentes vivências em torno do paradigma da aprendizagem ao longo da vida, e das expectativas que cada sujeito tece quanto o seu futuro.

As contradições do mercado de trabalho na contemporaneidade: uma situação de risco As contradições do trabalho na contemporaneidade são potenciadoras de situações de risco, como vimos. Por um lado, quando mais as relações de trabalho se complexificam, mais é preciso desenvolver outras habilidades e competências. Vemos também aqui um possível contributo da pedagogia social. O desemprego surge cada vez mais como um fenómeno estrutural, ou seja, os postos que foram substituídos por máquinas nunca mais voltarão a existir (Pochmman, 1998). Promovem-se qualificações para um trabalho que pode num tempo relativamente curto deixar de existir. Partindo desta concepção podemos questionar se as políticas públicas para a juventude, a grande maioria delas situadas no binómio, educação/formação profissional, estão atentas à necessidade de novas competências do trabalhador. Alguns autores, como (Rifkin, 1995; Antunes, 2005; Azevedo e Fonseca, 2007) trazem dados estatísticos defendendo que o aumento da escolaridade não significa aumento da empregabilidade dos jovens e sim um distanciamento ainda maior do mercado de trabalho pela falta de experiência profissional. O que fazer então? Segundo Giddens (1991) vivemos numa época caracterizada por profundas incertezas mas também por possibilidades. Segundo Robert Castel (2006) não se 173

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pode reconstruir o capitalismo industrial, nem o sistema de protecção social que estava associado a ele, no entanto, pode-se promover uma «nova ordem social». O autor considera que é preciso instituir novos mecanismos de protecção ao sujeito que sejam compatíveis com as novas transformações do trabalho e do emprego, que dêem conta, por exemplo, das novas situações de mobilidade, de mudança de emprego e de «reciclagem» que o trabalhador moderno necessita. Portanto diante da flexibilidade, a segurança social deve assumir um novo compromisso entre a mobilidade e segurança. É preciso assegurar, frente à degradação do status de empregado, uma nova ordem e profissional do trabalhador que garanta os seus direitos de protecção social. As contradições do mercado de trabalho são muitas e com consequências invectiváveis para o binómio escola-trabalho. Face a sentimentos de dúvida e de insegurança gerados pelo mercado de trabalho, os jovens sentem-se mais abrigados na instituição escola. O tempo de permanência no ensino tende a alargar-se também por força da competitividade do mercado de trabalho, pois o critério de selecção busca candidatos com elevada escolaridade. Os alunos recebem dentro da universidade bolsas de estudo e alimentação e, por vezes, algum tipo de trabalho ou estágio. Na realidade, são boas condições de sobrevivência, além disso, permitem garantir o seu estatuto de estudantes. Assim, a sua identidade pessoal está preservada. Temos então «estudantes profissionais» que, como tal, possuem um status que é muito mais afirmativo do que o de desempregados.

Educação: salvaguarda do desemprego versus promoção do desemprego qualificado? Resgatam-se aqui as repercussões históricas que as mudanças na educação superior brasileira possam ter trazido para este contexto. Desde a década de 90 no Brasil (Beato, 1998) e na Europa desde a década de 80 o ensino superior abriu suas portas, para a iniciativa privada (Fonseca, 2007). Movimento este que fez com que aumentasse sobremaneira o número de postos ou vagas no ensino universitário para os jovens. Desde então aumentou o contingente de jovens qualificados e que, na verdade, engrossam o conjunto de desempregados. No 174

Brasil um quarto dos formados entre os anos de 1992 e 2002 está desempregado (Pochmann, 2004). Em Portugal nos anos de crise económica entre 1990 e 1995, “revelou-se um cenário nunca antes visto: os licenciados começaram, em número crescente, a não encontrar emprego”, segundo Azevedo e Fonseca (2007). Na sua grande maioria, os cursos disponibilizados eram cursos de ciências sociais, como os cursos de Psicologia, Sociologia, Filosofia e demais áreas, consideradas como “ciências moles” (Beato, 1998). O apelo dos mercados de trabalho, no entanto, desde a década de 90, quando os sistemas de informação passaram a ser amplamente utilizados em todo o mundo, tem privilegiado as “ciências duras” ou áreas hard, ou seja, as áreas das ciências como as Engenharias, a Matemática e a Física. O que faz com que o senso comum divulgue e reafirme a expressão “trabalho há, as pessoas é que não querem trabalhar”. Até que ponto esta afirmação pode ser conformada ou desmentida? Vemos como contributo possível da Pedagogia Social a promoção de competências de inserção laboral, não só as competências que o mercado de trabalho exige mas também, ou sobretudo, as competências humanas essenciais para a realização dos jovens. No Brasil, como em Portugal (Azevedo e Fonseca, 2007) os jovens que pertencem ao quadro dos «mais qualificados», são os que mais sentem as “turbulências” da inserção profissional. Estes jovens talvez se encontrem capacitados mas sem as competências humanas necessárias, como as que se situam no âmbito da convivência social, da comunicação, da liderança e hábitos de trabalho em grupo, entre outras. Por outro lado, o requisito da experiência profissional é outra grande barreira no ingresso profissional. Existem no Brasil, de acordo com o estudo do IPEA (2007), 9,13 milhões de pessoas estão à procura de um emprego, mas somente 1,67 milhões de trabalhadores têm experiência ou qualificação necessária. Novamente os qualificados / / desqualificados para o trabalho, como o trabalho pode ter sentido? Porém este quadro não se restringe ao Brasil. Segundo a OIT (2006) estima-se que, mundialmente, uma em cada cinco pessoas com idade entre 15 e 24 anos está desempregada, ou seja, 88 milhões de jovens, que representam mais de 40% do total de desempregados. Destes, 85% encontra-se em países em desenvolvimento. Configura-se, portanto aqui um objecto de estudo para a pedagogia social numa perspectiva de mudança positiva face aos números apresentados e que nos confrontam com uma questão social urgente 175

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Considerações finais São as problemáticas em torno do sentido do trabalho que movem a nossa investigação científica centrada nos jovens formandos e considerando as suas possibilidades de realização humana e inserção social. Considera-se que os mesmos vivenciam uma situação de turbulência enorme em relação ao mercado de trabalho que envolve os aspectos mais subjectivos do sujeito, ocasionando um sentimento constante de falta de segurança e de condições para projectar-se num futuro próximo. As várias contradições que cercam o mercado de trabalho na contemporaneidade, desde a formação profissional até à falta de experiência profissional, transformam a situação de transição da universidade para o mundo do trabalho numa situação de risco. Discutiu-se aqui a questão da formação para o trabalho e apresentaram-se as estatísticas mundiais que alertam sobre o fenómeno do desemprego juvenil. As nossas preocupações orientam-se no sentido das políticas públicas que buscam soluções para estes riscos sociais. Privilegia-se a educação como meio para enfrentar a crise do desemprego juvenil, mas uma educação considerada no seu todo e não restrita à formação profissional, onde o sujeito após um período de tempo adquire o estatuto social que a profissão lhe confere. Importa colocar a educação ao serviço da população, ao longo da sua vida. Precisamos de uma educação superior que forme para o exercício da cidadania, para a autonomia dos jovens e para a solidariedade. Precisamos de jovens com formação superior, com conhecimentos sobre o mundo e sobre as questões sociais. Um jovem que conheça tecnologias mas que saiba manipular as informações em prol do próximo e de uma sociedade mais igualitária. Só será possível diminuir os riscos sociais se chamarmos os jovens a compor um novo compromisso com o trabalho, onde o seu fazer seja dotado de sentido. Um sentido na busca de soluções conjuntas para os riscos que afectam o mundo e em relação aos quais todos estamos sujeitos.

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Resiliência num grupo de adolescentes de risco de uma escola secundária do grande Porto 1

Maria Raul Lobo Xavier2 | Mariana Andresen Abreu3

Resumo A relação entre factores de risco (acontecimentos de vida stressantes) nas vidas dos adolescentes, e a presença de factores de protecção faz com que alunos considerados de risco evidenciem resiliência ou vulnerabilidade em contextos como a escola. O presente artigo procura evidenciar a forma como os adolescentes se adaptam ou ultrapassam estas circunstâncias adversas, ao conseguirem “bons resultados apesar das sérias ameaças ao desenvolvimento ou à adaptação” (Masten, 2001, p.228). A escola assume-se como um dos contextos mais importantes de desenvolvimento, socialização e de promoção de resiliência nos adolescentes. A forma como actuam os factores e processos protectores presentes nas suas vidas tendo em conta os riscos e factores de risco, ajudam a compreender os comportamentos resilientes ou não-resilientes demonstrados pelos adolescentes. A utilização de uma entrevista semi-estruturada a uma amostra de dezasseis alunos adolescentes (N=16), com uma média de idades de 13,81 anos, permitiu obter um “fotografia bem detalhada” naquele período das suas vidas relativamente a ele próprio, ao contexto escola (por exemplo, a relação com grupo pares, dificuldades na escola,).

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Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Ciências de Educação – Especialização em Aprendizagem e Desenvolvimento Psicológico, FEP/UCP Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/UCP Doutoranda em Ciências de Educação, Faculdade da Educação e Psicologia/ UCP

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Introdução O meio escolar em conjunto com a família e a restante comunidade é, para os adolescentes, um dos contextos mais importantes para o desenvolvimento da resiliência (Benard, 1991;1995). Tendo em conta riscos e factores de risco que se encontram associados às suas vidas, procurámos com este estudo perceber como é que actuam os factores e processos protectores que justificam os comportamentos resilientes ou não-resilientes demonstrados pelos adolescentes. Assim, perceber como os riscos estão presentes nos sistemas ecológicos (Bronfenbrenner, 1987, 2005) onde se desenvolvem os adolescentes e como aqueles interferem nas suas vidas constituiu um dos objectivos deste estudo. Também procurámos compreender como é que perante determinados acontecimentos nas suas vidas os jovens se adaptam ou ultrapassam as adversidades, são competentes e encontram-se bem integrados no seu grupo de pares, apesar da presença de importantes factores de risco. Na investigação sobre resiliência o grande problema é definir o que são factores de risco, situações ou ambientes de risco (Kumpfer, 1999). Os riscos estão presentes em todos os contextos onde se desenvolvem os jovens, pelo que não existe uma receita para identificar, prevenir e intervir em “riscos”. De ordem biológica e/ou ambiental, isoladamente ou combinados entre si os factores de risco contribuem para situações mais negativas ou mais positivas no desenvolvimento do indivíduo (Howard, Dryden e Johnson, 1999). Analisando o fenómeno do risco e vulnerabilidade em crianças e jovens, Seidman e Pedersen (2003), salientam que os muitos estudos existentes referem que o mais importante neste domínio é o acúmulo de vários riscos na vida de um indivíduo (Sameroff e Seifer, 1990; Luthar e Cushing, 1999). Os trabalhos conduzidos por Norman Garmezy (1985), Michael Rutter (1980) e Emmy Werner (1992, 1993), na década de oitenta e noventa, tiveram como preocupação estudar indivíduos sujeitos a riscos biológicos ou a acontecimentos de vida stressantes, constituindo o maior foco de atenção a sua vulnerabilidade e a resiliência (Perkins e Borden, 2003). A investigação sobre resiliência alterou o seu foco de atenção passando a valorizar uma adaptação bem sucedida, promovendo a competência em detrimento de comportamentos desenvolvimentais negativos (Masten e Coastworth, 1998; Perkins e Borden, 2003). 180

Referimo-nos a resiliência como o conseguir “bons resultados apesar das sérias ameaças ao desenvolvimento ou à adaptação” (Masten, 2001, p. 228); à competência manifestada pelo indivíduo, no seu contexto, onde se operam desafios à adaptação e ao desenvolvimento (Masten, 2001; Masten & Coastworth, 1998) ou “a um processo dinâmico que envolve uma adaptação positiva a um contexto de grande adversidade” (Luthar, Cicchetti & Becker, 2000, p.543). À noção de resiliência é inevitável que se associe por oposição a de vulnerabilidade, que por sua vez está directamente relacionada com riscos e falta de competência. Rutter, citado por Anaut (2005, p.51), refere que os factores de protecção “modificam a reacção à situação que apresenta o risco, ao reduzir o efeito do risco e as reacções negativas em cadeia”. Para percebermos o carácter ecológico (Bronfenbrenner, 1987,2005) e transaccional (Sameroff e Chandler, 1975) dos riscos, protecção e resiliência na vida dos indivíduos devemos considerar: a) que existe uma multiplicidade de riscos e experiências protectoras, b) que a sensibilidade ao risco é sentida de forma diferente pelos diferentes indivíduos, podendo ser influenciada tanto geneticamente como pelo contexto ambiental, c) que os mecanismos mediadores diferem em função do risco que se apresenta ao indivíduo, d) que os mecanismos mediadores diferem em função do resultado psicológico, e) que a protecção pode actuar antes, durante e após a situação de risco ser vivida pelo indivíduo (Rutter, 2005, p.366). Assim, as relações que se estabelecem entre os diversos factores protectores sugerem que a investigação passe a considerar processos ou mecanismos protectores como moderadores dos riscos e que estes podem ser de quatro tipos diferentes: a) os que reduzem os impactos dos riscos, b) os que diminuem a probabilidade de reacções em cadeia como consequência de más experiências, c) os que promovem a auto-estima e a auto eficácia e d) promovem oportunidades e relações positivas na vida (e.g. Werner, 1993; Howard et al., 1999; Rutter, 2005). No estudo qualitativo levado a cabo por Susan Howard e Bruce Johnson em 2000, foram identificados cinco grandes domínios de factores de protecção: os acontecimentos de vida, os factores individuais, a família, a escola e a comunidade, que diminuem, modificam ou melhoram a resposta individual a uma determinada situação que em circunstâncias normais poderia conduzir a respostas desajustadas. De acordo com Masten e Coastworth (1998, p.206), resiliência reflecte o lado positivo da competência no indivíduo e: 181

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“… refers to a pattern of effective adaptation in the environment, either broadly defined in terms of reasonable success with major developmental tasks expected for a person of given age and gender in the context of his or her culture, society, and time, or more narrowly defined in terms of specific domains of achievement, such as academics, peer acceptance, or athletics.”

Aplicado aos jovens, este constructo relaciona-se directamente com a capacidade destes se relacionarem com os pares de um forma mais ou menos pró-social, podendo através de entreajuda contribuir para uma boa integração na turma e/ou na escola constituindo-se como factor de protecção no desenvolvimento, de aceitar e respeitar as normas de conduta estipuladas para aquela comunidade escolar e de se desenvolver de forma positiva na realização académica (Masten e Coastworth, 1998).

Material e Método Participantes/Amostra Participaram neste estudo um total de 77 alunos adolescentes de ambos os sexos, 28 (35,6%) raparigas e 49 (64,4%) rapazes, com idades entre os 12 e os 15 anos e uma média de 12,7 anos, depois de ter sido dado o consentimento informado pelos seus Encarregados de Educação. Os alunos eram provenientes das quatro turmas do 7º ano de escolaridade de uma escola secundária urbana da periferia do Grande Porto. A amostra estudada (N=16; idade média de 13,81 aquando das entrevistas) resultou da aplicação dos instrumentos seguidamente descritos. Instrumentos Para a caracterização dos alunos participantes utilizamos uma Ficha de Caracterização Sociodemográfica que nos permitiu obter informações acerca deles e dos seus agregados familiares, nomeadamente a nível socioeconómico, familiar, vida escolar e ocupação dos tempos livres. Para avaliação do estatuto de risco, utilizamos a Lista de Verificação do Estatuto de Risco baseada na Life Events Checklist de Werner e Smith (1992). Mais do que quatro, acontecimentos stressantes na vida de um sujeito constitui-se como suficiente para considerá-lo 182

com estatuto de risco (Werner e Smith, 1992). Para a verificação da presença de um grupo resiliente e um não-resiliente entre os alunos de riscos utilizamos a Lista de Verificação de Resiliência (Howard e Johnson, 2000). Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com questões baseadas nos acontecimentos de vida e nas suas expectativas para o futuro, na sua vida na escola e relação com os pares e ainda em questões que procuraram explorar o tipo de relações que estes adolescentes tinham com as suas famílias. Construímos um guião baseado no de Howard e Johnson (2000) para a primeira parte da entrevista integrando questões que se relacionavam com a vida dos alunos em geral. Acrescentamos ainda dois grandes temas, um relacionado com a escola e grupo de pares e outro com a família pois referem-se aos principais contextos onde os adolescentes se movem diariamente.

Procedimentos Antes de darmos início ao estudo foi solicitado aos encarregados de educação o seu consentimento informado para a participação dos seus educandos nesta investigação. A aplicação da Lista de Avaliação do Estatuto de Risco e da Lista de Verificação de Resiliência foi realizada com a colaboração das directoras de turma das quatro turmas participantes, no final do segundo período lectivo, altura em que estas já conheciam bem os alunos das suas turmas. Realizámos as entrevistas a cada um dos alunos individualmente, numa das salas de aula da escola, no último trimestre do ano lectivo e para o efeito utilizamos um gravador para que as suas respostas ficassem registadas e mais tarde pudessem ser analisadas. Todos os alunos que aceitaram participar na investigação deram previamente o seu consentimento e permitiram que as entrevistas fossem gravadas (todas as entrevistas foram consideradas válidas).

Resultados e Discussão Quanto à caracterização da amostra, verificamos que cerca de 70% dos agregados familiares apresentam um baixo estatuto socioeconómico e a maioria dos encarregados de educação possuem como habilitações somente o 4º ano de escolaridade, algo que parece ser evidenciado pelas profissões exercidas – maioritariamente a prestação de serviços não qualificada. Da aplicação da Lista 183

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de Avaliação do Estatuto de Risco nas quatro turmas (N=77), verificamos que numa turma não existia nenhum aluno que tivesse sido avaliado com estatuto de risco, sendo os alunos de risco que aceitaram participar (N=16) oriundos das restantes turmas (N=58). Com a aplicação da Lista de Verificação de Resiliência (Howard e Johnson, 2000) pretendíamos identificar quem eram de entre os alunos considerados de risco (N=16), os que apresentavam comportamentos resilientes e os que apresentavam comportamentos não-resilientes. A utilização desta lista permitiu-nos verificar que, naquele momento (Fergus e Zimmerman, 2005), dez alunos (quatro raparigas e seis rapazes) apresentavam comportamentos resilientes (62,5%). Os restantes seis alunos, uma rapariga e cinco rapazes (37,5%), apresentavam comportamentos não-resilientes. A revisão de literatura efectuada revelou que, quanto a diferenças de género, as raparigas são mais resilientes do que os rapazes (e.g. Kumpfer, 1999). Os resultados no nosso estudo parecem ter confirmado estes dados já que na nossa amostra foram consideradas resilientes 80% das raparigas e somente 63,63% dos rapazes. Analisando o grupo de alunos não-resilientes verificámos que somente 50% destes alunos (N=3) eram apoiados pelo Serviço de Acção Social Escolar (SASE); 80% dos alunos resilientes (N=8) têm também este apoio, não parecendo na nossa amostra o baixo estatuto socioeconómico estar evidentemente associado ao grupo dos alunos não-resilientes. Poderemos associar o baixo estatuto socioeconómico aos alunos de risco, independentemente de serem considerados resilientes ou não resilientes, já porque cerca de 70% beneficiam deste apoio. Nas entrevistas procuramos, para além dos pontos de vista individuais de cada aluno relativamente às temáticas abordadas, também as diferenças das respostas dadas pelo grupo dos alunos resilientes e pelo grupo dos alunos não-resilientes. Depois de analisarmos o conteúdo das respostas obtidas em cada um desses domínios encontramos diferentes temas, categorias e subcategorias de respostas que seguidamente apresentamos e discutimos. Para uma mais fácil identificação no texto, os TEMAS aparecem em letras maiúsculas, negrito e sublinhado, as CATEGORIAS em letras maiúsculas e negrito e as subcategorias a negrito (baseado em Yunes, 2001). As questões foram organizadas em três grandes domínios: “Aspectos da sua vida de uma forma geral”; “Vida na escola e relação com os pares”; “Relacionamento com a família”. 184

Aspectos da vida dos alunos Este domínio de questões tinha como objectivo procurar conhecer um pouco mais da vida dos alunos em temas concretos, nomeadamente nos acontecimentos importantes e pessoas mais importantes nas suas vidas, na ocupação de tempos livres, no que mais gostam na sua vida, nos acontecimentos de que se orgulham, no que aconteceu na sua vida e não deveria ter acontecido, planos para o futuro, ajudas ou obstáculos em alcançar o planeado e conselhos a dar a outros jovens sobre a vida. Para os alunos resilientes os ACONTECIMENTOS MAIS IMPORTANTES, (i.e. aqueles que mais os marcaram nas suas vidas), são os ASPECTOS RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO e os ACONTECIMENTOS FAMILIARES AGRADÁVEIS. Quanto ao grupo dos alunos não-resilientes são os ASPECTOS RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO e os PROBLEMAS FAMILIARES que são nomeados por estes alunos, aos quais estão associados os seus contextos familiares desestruturados e/ou as relações familiares desorganizadas e disfuncionais. A categoria ASPECTOS RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO é referida pelos adolescentes (independentemente de se tratarem de alunos resilientes ou não-resilientes) como a que tem mais significado, e prende-se com as “suas conquistas” na vida, que naturalmente ocorrem nos diversos contextos onde se movem e relacionam. Ainda nesta categoria, para alguns alunos, a participação, envolvimento e valorização das actividades escolares parecem tornar-se marcantes nas suas vidas, pelo que a escola não pode deixar de as promover e dinamizar. As categorias que encontramos no tema PESSOAS MAIS IMPORTANTES NAS SUAS VIDAS foram muito diversas, não tendo sido encontradas diferenças nas respostas dos alunos dos dois grupos. Para a maioria dos alunos considerados resilientes bem como para os não-resilientes, são os seus cuidadores as pessoas mais importantes nas suas vidas. Para estes alunos, que na sua maioria vivem com pelo menos um dos progenitores parece a família ser vista como um factor de protecção, pois constitui não só o seu suporte material, mas também afectivo e emocional. Não é de estranhar que uma aluna tenha nomeado os seus pais adoptivos depois da insegurança afectiva e ausência de figuras de vinculação seguras até aos 5 anos de idade. No entanto, há alunos que procuram noutras pessoas a sua protecção, por vezes como substituto de 185

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uma família (que não é considerada por eles como factor de protecção) ou porque já estão numa fase de busca da própria autonomia em relação à família e procuram na relação com o sexo oposto a sua protecção e apoio e novas figuras de vinculação (como acontece com dois alunos). Não encontramos diferenças significativas entre as respostas do grupo resiliente e não-resiliente quanto à natureza das actividades de OCUPAÇÃO DE TEMPOS LIVRES realizadas. As principais diferenças encontradas foram em termos de género/local de actividade: os rapazes ocupam mais os seus tempos livres fora de casa e as raparigas dentro de casa. Tradicionalmente, na cultura portuguesa e para este escalão etário, a educação das raparigas é pouco permissiva comparando com a dos rapazes, quanto a hábitos de “saídas de casa”. Os alunos da nossa amostra são oriundos de um meio sociocultural pequeno onde, ainda, nalguns aspectos prevalece uma educação tradicional. Um dos aspectos que os adolescentes MAIS GOSTAM NA SUA VIDA é ter AMIGOS E ESTABELECER RELAÇÕES PRÓXIMAS COM O GRUPO DE PARES, já que afirmam que gostam de estar com os amigos, ajudá-los, conviver ou ter mais liberdade. Parece haver uma certa coerência quanto às respostas dadas na categoria OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES, neste mesmo tema, mas nesta categoria estar com os amigos significa jogar futebol, ou seja, estar implicado numa actividade desportiva conjunta. Estando envolvido numa actividade, ou somente “a conviver” com os amigos a relação com os pares é importante, independentemente da forma e local onde se relacionam, constituindo-se o grupo de pares, na nossa perspectiva, como um factor de protecção nas vidas dos adolescentes, pois estão presentes nos vários contextos onde se movem, nomeadamente na escola, no bairro ou no clube desportivo. Os cinco alunos, que responderam que o que na sua vida gostavam era de estar/gostar/ter uma boa relação com a família, apresentam importantes vulnerabilidades familiares, o que talvez possa ajudar a perceber o porquê das suas respostas. Comparando o grupo resiliente com o grupo não-resiliente encontramos algumas diferenças nas categorias onde foram integradas as suas respostas. Para quatro dos alunos considerados não-resilientes o que gostam nas suas vidas relaciona-se com actividades de ocupação dos seus tempos livres, tal como ver televisão/jogar playstation e jogar futebol. As actividades que os cativam parecem envolver menos competências cognitivas, tais como a realização 186

académica ou raciocínio moral (Kumpfer, 1999). Dois destes alunos referem, também, ajudar os outros, o convívio com elementos do bairro ou estar com a família, como algo que gostam nas suas vidas. Um outro aluno, também não-resiliente, responde que não gosta de nada na sua vida. As respostas do grupo resiliente distribuem-se pelas restantes categorias encontradas, nomeadamente, a ESCOLA, a FAMÍLIA, ORGULHO NAS QUALIDADES PESSOAIS, AMIGOS E RELAÇÕES PRÓXIMAS COM O GRUPO DE PARES, demonstrando não só mais competências cognitivas que se relacionam com a capacidade de fazer projectos na sua vida, com uma visão positiva de si próprio, como também com competências comportamentais e sociais, tais como saber lidar bem com os outros e em diferentes ambientes (Kumpfer, 1999). Alguns alunos revelaram bastante maturidade nalgumas das suas respostas relativamente ao tema ACONTECIMENTOS DE QUE SE ORGULHA, independentemente do género, ou ainda de serem considerados resilientes ou não-resilientes. Um dos alunos manifesta um desejo, que caso se realize, irá ser para ele motivo de orgulho um dia mais tarde: não estar preso quase toda a vida como o seu pai. Este aluno, considerado não-resiliente, demonstra neste tipo de afirmação algumas características de resiliência, nomeadamente ter esperança de obter resultados positivos na sua vida para se realizar pessoalmente. Parece, que se aumentarmos os factores de protecção neste adolescente, poderemos acreditar que a sua resiliência se venha a manifestar vencendo de forma positiva as adversidades. Tal enfoque seria sustentado por exemplo nos trabalhos de Fergus e Zimmerman (2005) ao referirem que as características de resiliência poderão ser alteradas ao longo da vida e dos diferentes contextos. Já para uma das alunas, como consequência das suas experiências negativas no passado e também no presente (ter sido maltratada pela família biológica e primeira família de acolhimento e ser ainda pontualmente procurada pela mãe biológica), o que mais lhe dá orgulho é ter-se tornado numa adolescente mais madura. Quanto a diferenças de respostas entre o grupo resiliente e não-resiliente, não encontramos grandes discrepâncias. No entanto, metade dos alunos não-resilientes (todos rapazes) respondeu que não se orgulham de nenhum acontecimento na sua vida. Estes alunos parecem traduzir elevados níveis de baixa auto-estima, não acreditando em si próprios e considerando que nada do que fizeram nas suas vidas deva ser valorizado. 187

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Parecem demonstrar uma falta de capacidade para fazer auto-reflexões acerca dos acontecimentos, tal como acontece com os indivíduos resilientes. A consciência que os adolescentes têm daquilo que NAS SUAS VIDAS NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO é, para a grande maioria dos alunos, muito concreta. Determinados problemas familiares que se prendem com a ausência de um dos progenitores da casa de família, parecem causar perturbação nas vidas de alguns alunos (resilientes) tal como demonstrado na dificuldade em abordar o assunto durante as entrevistas. A capacidade de análise acerca daquilo que não lhes deveria ter acontecido vai para além dos problemas familiares e individuais, passando por uma tomada de consciência de comportamentos de risco. São só alunos não-resilientes que referem que os comportamentos de risco, tais como ter começado a fumar e ter problemas na escola, não deveriam ter acontecido nas suas vidas, constituindo esta a diferença mais evidente entre os dois grupos de alunos. À excepção de um aluno, todos os outros têm PLANOS PARA O FUTURO, não tendo sido encontradas diferenças significativas nas respostas dadas pelos dois grupos (resilientes ou não-resilientes). Alguns dos alunos resilientes e um nãoresiliente, aspiram exercer no futuro profissões para as quais se exige a frequência de um curso no ensino superior. Dois dos alunos resilientes querem ser jogadores de futebol e dedicam-se a esta modalidade num clube local, encontrando aqui a protecção para algumas das suas vulnerabilidades. Um dos alunos afirmou que chegou mesmo a modificar o seu comportamento para que o seu pai não o retirasse da prática desta modalidade. Um aluno considerado não-resiliente afirmou ser ainda cedo para fazer planos para o futuro, demonstrando uma certa falta de capacidade de sonhar e de ter objectivos para a sua vida (Kumpfer, 1999). As respostas às questões que colocámos seguidamente aos alunos iriam evidenciar as ajudas ou obstáculos para a concretização dos planos que estes idealizavam para o seu futuro e traduziram alguma incoerência relativamente às verificadas no tema PLANOS PARA O FUTURO. Os alunos declaram fazer parte dos seus planos futuros a realização académica e trabalhar no futuro, mas não expressam nos temas AJUDA/OBSTÁCULOS PARA ALCANÇAR OS PLANOS, categorias como por exemplo “os professores”, “as disciplinas ou conteúdos leccionados”, a “escola”. Na nossa opinião tais possíveis categorias estão directamente relacionadas com a realização académica e deveriam estar na 188

“linha da frente” para promover a concretização dos seus planos. A grande maioria dos alunos concentra em si a responsabilidade de não conseguir atingir aquilo que planeia para o futuro, assumindo-se como “únicos” responsáveis por não serem bem sucedidos na vida académica ou na procura de trabalho. Terem professores que ensinem bem ou terem nos seus currículos matérias fundamentais para desempenharem uma profissão são aspectos raramente referidos pelos alunos. Apenas uma aluna referiu ter de saber mais de uma disciplina para poder exercer a profissão desejada. A escola, enquanto local de ensino e aprendizagem e de desenvolvimento de competências essenciais para vida activa parece (ainda) não ser percepcionada como um factor de protecção nas suas vidas, apesar de a literatura referir o contrário (e.g. Benard, 1991). Em termos de realização académica estes alunos possuem já mais habilitações do que os seus encarregados de educação. As suas respostas parecem evidenciar um percurso, que apesar de acreditarmos ser apoiado pelos pais, será sempre solitário tendo em conta que estes não têm qualificações suficientes para realmente os ajudarem. Será que o lutar por um estatuto na sociedade depende única e exclusivamente deles próprios (tal como os seus progenitores parecem ter feito e não foram claramente bem sucedidos) em termos da realização académica e profissional? Será esse um dos legados da transmissão do património cultural familiar? Visto nesta perspectiva teremos mais um dos desafios colocados à escola que, numa posição culturalmente privilegiada, deverá então encontrar outras soluções (Zenhas, 2004). Todos os adolescentes à excepção de uma aluna resiliente parecem saber que CONSELHOS DAR A OUTROS JOVENS NO QUE RESPEITA À VIDA. Embora não tendo encontrado grandes diferenças entre o grupo resiliente e o não resiliente (uma vez que em todas as categorias se encontravam respostas de alunos dos dois grupos), a maioria dos alunos tem a noção que determinados comportamentos no presente lhes podem ser benéficos no futuro, nomeadamente o esforçar-se para ser bem sucedido, não roubar ou usar drogas.

A Escola Neste segundo grande domínio abordado nas entrevistas, percebemos que a escola tem significados diferentes para os alunos. Comparando as respostas dadas pelos dois grupos (alunos resilientes e alunos não-resilientes), encontramos 189

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algumas diferenças importantes relativamente aos temas abordados. A maioria dos alunos não-resilientes vê a escola como um LOCAL PARA ESTAR, CONVIVER COM OS PARES E FAZER AMIGOS, e um deles vê mesmo a escola como um PESADELO. O grupo resiliente também vê a escola principalmente como um LOCAL PARA ESTAR, CONVIVER COM OS PARES E FAZER AMIGOS, mas alguns dos alunos vêem-na também como LOCAL DE EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E APRENDIZAGEM. As suas respostas parecem ter sido coerentes com os planos que têm para o futuro, já que muitos dos alunos resilientes querem exercer profissões para as quais é necessária a frequência de cursos de nível superior, e será através da escola que vão alcançar os seus objectivos (realizar-se e ser academicamente competentes). Os alunos responderam ao tema O QUE GOSTA MAIS NA ESCOLA de uma forma coerente relativamente ao significado que lhe atribuem, ou seja, ESTAR COM OS AMIGOS é o que na generalidade os alunos mais gostam na escola. Comparando os dois grupos (resiliente e não-resiliente), encontramos também algumas diferenças. O grupo não-resiliente gosta na escola de ALGUMAS DISCIPLINAS PRÁTICAS e de ESTAR COM O GRUPO DE PARES. Alguns dos alunos resilientes, para além de gostarem de ESTAR COM O GRUPO DE PARES também gostam dos PROFESSORES E FUNCIONÁRIOS E DOS ESPAÇOS DA ESCOLA. Relativamente às DIFICULDADES APRESENTADAS PELOS ALUNOS NA ESCOLA, cerca de 50% relacionam-se com COMPREENSÃO E RETENÇÃO DAS MATÉRIAS LECCIONADAS. Os alunos admitem ter dificuldades nestas duas dimensões do processo ensino/aprendizagem ao que não nos parece ser alheio a elevada percentagem de retenções dos alunos da nossa amostra (87,5%), durante o seu percurso escolar. Comparando os dois grupos de alunos, somente alunos não-resilientes referem que na escola apresentam ter dificuldades a nível do RELACIONAMENTO COM OS PARES dentro da sala de aula por falta de autoconfiança, ou em IR ÀS AULAS ou em COMPORTAR-SE BEM. São maioritariamente os alunos resilientes a assumir que as suas dificuldades na escola se prendem com a COMPREENSÃO DAS MATÉRIAS LECCIONADAS. Dois alunos, também considerados resilientes, referem que têm dificuldade no RELACIONAMENTO COM OS PROFESSORES por falta de diálogo destes com os alunos. 190

Não estando a tarefa dos professores das escolas secundárias facilitada, motivar alunos que não querem estar dentro da sala de aula e/ou que têm dificuldade em estar concentrados durante tanto tempo, parece ser o desafio com que diariamente se deveriam debater. Então, cada escola em particular, que possui uma comunidade única com características próprias, parece ter como tarefa reflectir sobre o processo de ensino/aprendizagem, sobre as relações interpessoais e procurar novas estratégias de actuação que conduzam ao sucesso académico e pessoal de todos os seus alunos. Algumas questões parecem-nos pertinentes evidenciar neste contexto: relativamente aos alunos mais irrequietos, que se comportam mal ou que se distraem com facilidade, discutimos se serão benéficas as aulas com a duração de noventa minutos nalgumas das disciplinas mais teóricas. Outra questão importante que se coloca à escola é que em particular os alunos que apresentam um comportamento mais irrequieto e por vezes desajustado na sala de aula, parecem não beneficiar de ter somente um momento na semana com o professor das disciplinas cuja carga horária semanal se resume a um bloco de 90’, onde os laços de empatia e afectividade, bem como o “fortalecimento de regras coerentes e consistentes” (Estrela, 1994, p. 47) podem demorar a estabelecer-se. Levantamos também a questão da distribuição das disciplinas (teóricas e práticas) ao longo dos dias da semana nos horários dos alunos. Lembremo-nos, igualmente, que alguns dos alunos que as escolas secundárias recebem são aqueles que as escolas EB 2,3 preferem já não ter nas suas salas, pois são mais velhos, manifestam elevados índices de mau comportamento, apresentam dificuldades na realização académica tendo já retenções no seu percurso escolar, e aos quais estão muitas vezes associados um conjunto grande de adversidades. Mas, apesar de tudo, será legítimo questionarmo-nos se o problema estará nesta dimensão de carácter mais organizacional, de gestão escolar, ou também noutras dimensões da condução do processo de ensino/aprendizagem e/ou das relações interpessoais. Na realidade, as tarefas com as quais a escola e os professores se devem debater poderão conduzir a uma maior motivação dos alunos perante as disciplinas, na promoção de comportamentos mais pro-sociais em relação aos pares, aos professores e à própria escola. Os estudos de Michael Rutter e seus colegas (1980) confirmam a importante influência que a escola tem nos resultados obtidos pelos jovens, mas lembram-nos igualmente que esta se constitui como apenas um elemento do 191

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conjunto complexo que faz parte dos microssistemas onde os jovens se movem. O carácter transaccional das relações estabelecidas entre alunos e professores é igualmente evidenciado por estes investigadores. Apesar das diferenças entre professores e alunos na forma de compreender o contexto escola, será sempre esta que se poderá organizar em função dos alunos que a frequentam (Rutter et al., 1980). Michael Rutter e seus colaboradores (1980) no estudo descrito no livro “Fifteen Thousand Hours” identificaram e relacionaram algumas das características dos alunos com um comportamento incorrecto dentro da sala de aula e o estilo disciplinador do professor: a capacidade que alguns professores possuem em antecipar comportamentos disruptivos permite que as aulas decorram com menos interferências por parte de alunos mais perturbadores que influenciam negativamente o resto do grupo; a utilização de elogios por parte dos professores aos alunos também se relacionava directamente com o seu bom comportamento. Os seus estudos revelaram ainda que crianças de meios familiares desfavorecidos demonstravam características resilientes se na escola tivessem professores atentos que se interessassem por elas e que acreditassem nas suas capacidades, obtendo bons resultados escolares ou ainda se a escola lhes proporcionasse experiências associadas ao sucesso, em áreas culturais, desportivas, sociais ou outras. Neste mesmo sentido, Benard (1995) no seu artigo “Fostering resilience in children” definiu três grandes categorias de factores protectores para os jovens, onde a escola desempenha um papel fundamental, nomeadamente: nas “relações cuidadoras de apoio”, criando expectativas elevadas aos alunos e nas oportunidades de participação na escola. Quando na escola existe um professor, que para além de desempenhar o papel tradicional de desenvolver as competências académicas, se constitui também como um modelo para os alunos resilientes pelo apoio e suporte afectivo que presta a esses alunos, é natural que eles queiram trabalhar mais e melhor. Para os alunos este professor é um adulto fora do círculo familiar que se interessa por eles, que os apoia e com quem eles podem contar. Ao nível da sua relação com os alunos, os professores deverão transmitir a mensagem de que eles têm tudo para ser bem sucedidos e serem capazes de atingir os seus objectivos, fazendo-os acreditar neles próprios. Desta forma estarão os professores a contribuir para a promoção da auto-estima dos alunos, para a sua autonomia, auto-eficácia e motivação para a sua 192

realização. Para isso, e ainda de acordo com Bonnie Benard (1991; 1995), deverão igualmente ser utilizadas metodologias de ensino variadas que promovam nos alunos oportunidades de desenvolvimento do seu sentido crítico, de autoreflexão e capacidade de resolução de problemas. Em suma, que promovam nos alunos a necessidade constante de fazerem uma meta-análise das suas competências. As escolas deverão possibilitar oportunidades de participação em actividades que sejam significativas no desenvolvimento das suas competências, que envolvam responsabilidade para os alunos, que fomentem o diálogo e que os impliquem em actividades de avaliação, de aprendizagem cooperativa, de ajuda aos seus pares e também no serviço comunitário. Lembremo-nos que alguns alunos da nossa amostra referiram que um dos aspectos mais importantes nas suas vidas constituía a participação e envolvimento em actividades escolares. Na escola, os alunos são bem sucedidos a diferentes níveis e não só nas avaliações quantitativas das disciplinas, constituindo essa a parte visível da realização académica. Para os alunos que desafiam a autoridade e procuram quebrar sistematicamente as regras de conduta na escola, não chega somente redigir num regulamento interno, baseado na legislação em vigor, os seus direitos e deveres. Se por um lado é fundamental que a escola lhes mostre que estão a proceder mal, por outro é preciso saber, no momento oportuno, elogiá-los, darlhes um feedback de quando as suas atitudes estão a ser positivas e a contribuir para o seu desenvolvimento e bem-estar da comunidade escolar. Cabe à escola procurar modificar atitudes e chamar os pais e encarregados de educação como parceiros de um mesmo “projecto” – o sucesso escolar dos seus educandos. Perguntamo-nos, quantas vezes os professores contactam ou escrevem aos encarregados de educação para elogiar os educandos acerca de qualquer tarefa que eles tenham desempenhado com sucesso? Parece-nos evidente que os pais gostem de ter o reconhecimento, por parte da escola, dos êxitos dos seus educandos e não somente dos seus fracassos. Enquanto professores, o nosso projecto profissional (e porque não também em parte pessoal), deverá ser sempre o sucesso educativo e individual dos nossos alunos e para isso temos de promover as suas competências físicas, cognitivas, psicossociais e de resiliência. A necessidade manifestada por dois alunos de que a escola deveria promover mais as relações interpessoais entre professores e alunos, concretamente no sentido de que os professores deveriam conversar mais com os alunos, parece-nos o reflexo 193

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de que, provavelmente, nem tudo na escola está a ser bem feito. Aos alunos de risco estão frequentemente associadas famílias desestruturadas ou disfuncionais e são os professores os adultos com quem eles mais se relacionam durante o seu dia. Os alunos necessitam de um adulto com quem conversar, que os ouça e procuram alguns professores para o fazerem. Essas conversas, provavelmente, terão que ocorrer em outros espaços que não sejam a sala de aula pois nessa altura, reclamam alguns professores (não destituídos de razão) têm programas a cumprir. Mesmo assim, afirmamos que uns minutos “perdidos” (nós achamos que são sempre ganhos) numa conversa podem transformar-se num trunfo em dimensões relacionais e afectivas e na construção da auto-estima dos alunos, que naturalmente se irão transformar em aprendizagem ao longo do ano lectivo e ao longo da sua vida. Não nos devemos esquecer que muitas vezes é também na figura do professor que estes alunos vão procurar um pouco da afectividade que não têm na família.

O relacionamento com o grupo de pares Na RELAÇÃO COM OS PARES, os alunos de risco, apesar de se sentirem adaptados ao contexto turma, são na generalidade os mais rejeitados mas afirmam gostar dos colegas da turma. Não encontramos diferenças entre as respostas dos alunos dos grupos resiliente e não-resiliente quanto ao sentirem-se adaptados à turma, à escola e gostarem dos colegas. A amizade e o respeito são as CARACTERÍSTICAS MAIS APRECIADAS no grupo de pares. Considerando que é nesta altura que os jovens procuram uma autonomia afectiva em relação aos pais, é também a partir de agora que os adolescentes procuram que as relações com o grupo de pares se tornem efectivamente mais significativas. O grupo de pares parece constituir um factor de protecção nas suas vidas e não encontramos diferenças nas respostas dadas pelos alunos dos dois grupos (resilientes e não-resilientes). As características que os alunos referem que contribuem para fazer amigos reflectem por um lado aspectos mais sérios das relações de amizade, tal como ser amigo – conotado com valores de lealdade ao outro, e por outro o lado mais descontraído dessa mesma relação, ou seja, o serem brincalhões e alegres. Valores como a honestidade, que relacionamos com o ser boa pessoa, não são muito valorizados por estes alunos. Este facto parece poder relacionar-se com o conceito de 194

identidade estar ainda em fase de construção. Parece que estes alunos que se encontram no início da adolescência ainda não têm o seu sistema de valores completamente assumido. Os adolescentes entrevistados diferenciam quem na turma são os amigos e os colegas e não encontramos diferenças nas respostas dadas pelos alunos resilientes e não-resilientes. Os conflitos em que os alunos afirmam ter estado envolvidos na escola devem-se sobretudo à reacção a alguns insultos ou provocações entre pares. Maioritariamente os alunos afirmam não ser agredidos na escola. Parece assim que o contexto escolar frequentado não apresenta o fenómeno de bullying. No entanto, são na generalidade alunos não-resilientes que se envolvem em situações de conflito entre pares. Estes jovens parecem ter as suas competências sociais menos desenvolvidas e estão menos motivados para encontrar respostas adequadas para a resolução dos seus problemas (Kumpfer, 1999).

Conclusões Aos alunos resilientes associamos características internas de resiliência, para além de factores de protecção provenientes de outros contextos como a escola, grupo de pares, família e comunidade em geral. Para os alunos não-resilientes apenas identificamos como factores de protecção nas suas vidas, aspectos que se relacionavam com os contextos família e comunidade (Howard e Johnson, 2000). A escola pode ser um contexto promotor de resiliência nos alunos (e.g. Benard, 1991,1995) a nível da dimensão académica, nomeadamente na promoção da realização académica, da dimensão pessoal, promovendo por exemplo a autoestima dos alunos e da dimensão social, fomentando as competências sociais com os pares e adultos. Apesar disso, no momento em que realizámos este estudo e de acordo com os testemunhos dos alunos, a escola ainda não é percebida como um factor de protecção e eventualmente só o será se significar estar com os pares. O grupo de pares na escola parece funcionar como um importante factor de protecção nas suas vidas. Será interessante a realização de um estudo longitudinal com esta amostra para comparar e perceber até que ponto as suas opiniões se modificaram ao longo do seu desenvolvimento. 195

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Trabalhar em parceria com todos os professores da escola e técnicos de outras áreas de intervenção, com as famílias, com parceiros na comunidade e ainda, despender mais horas a delinear estratégias de actuação, a implementar programas de intervenção, a procurar alternativas na (e à) escola pública, que sirvam os interesses destes alunos, promovendo os seus factores protectores e de resiliência, pode contribuir para alterar o rumo das suas vidas, para o sentido positivo da sua competência pessoal. Estes alunos precisam que os professores e educadores acreditem que eles conseguem ser bem sucedidos nas suas vidas uma vez que nem sempre a família nem a comunidade o faz. Percebamos a importância da Escola na promoção da resiliência na vida dos alunos, principalmente os de risco.

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Normas para colaboração Os artigos submetidos para publicação deverão ser enviados ao Editor dos Cadernos de Pedagogia Social. Com excepção dos artigos escritos “a convite”, todos os restantes trabalhos recebidos serão avaliados anonimamente por especialistas na área respectiva. O Editor remeterá o artigo, sob anonimato, para dois membros do Conselho Editorial, os quais emitirão um parecer acerca da aceitação ou não aceitação do artigo para publicação. A decisão de publicação terá por base estes pareceres, os quais serão dados a conhecer ao primeiro autor do artigo. Qualquer sugestão de alteração ao texto proposta pelos membros do Conselho Editorial será submetida, também, à consideração do primeiro autor do artigo. Não haverá devolução dos artigos não publicados. Os autores deverão declarar, por escrito, que autorizam a publicação do seu artigo nos Cadernos de Pedagogia Social, em regime de exclusividade. A propriedade dos artigos passará, após a sua publicação, a pertencer à Universidade Católica Portuguesa. Os artigos publicados são da responsabilidade dos respectivos autores. Qualquer reprodução integral ou parcial dos artigos (excluindo-se citações breves) apenas pode ser efectuada após autorização escrita do Editor. Quando for o caso, deve indicar-se no quadro de que provas – de mestrado ou de doutoramento – ou em que projecto se integra o artigo, explicitando a respectiva inserção institucional e apoios recebidos para a sua realização. Os originais submetidos para publicação deverão ser dactilografados num processador de texto (Macintosh ou Windows). Os autores deverão entregar, juntamente com o ficheiro original, um exemplar impresso do artigo, cuja extensão não deverá ultrapassar as 30 páginas dactilografadas a dois espaços em folhas A4, letra TIMES, 12 pt. Nestas 30 páginas incluem-se resumos, quadros, figuras, notas de rodapé e bibliografia. Os quadros, tabelas e figuras deverão ser sequencialmente ordenados em numeração árabe e devem ser referenciados através dessa numeração no texto do artigo, por exemplo, “...na Figura 10...” e não “...na figura seguinte...”. A edição de figuras é a preto e branco. A primeira página do texto original deverá iniciar-se com o título do artigo. Deverão anexar-se ao original duas folhas separadas, onde constem os seguintes elementos: Folha A: título do artigo; nome e enquadramento institucional do(s) autor(es), endereço completo (incluindo telefone, fax e e-mail) do autor responsável por toda a correspondência relacionada com o manuscrito; Folha B: título do artigo; resumo em português e inglês (com um máximo de 200 palavras cada resumo); palavras-chave (no máximo de quatro). As referências bibliográficas serão integradas no texto de acordo com o sistema autor-data. Em caso de citações textuais, acrescentar-se-á o número da página. Exemplos: Foster afirmou que “o desenvolvimento da educação…” (1992, 247). Contudo, Watson (1994) considera… Diversos autores (Housen, 1983; Parsons et al., 1987) ... Deve usar-se a partícula ‘e’ (e não ‘&’), por exemplo, …de acordo com Bechtel e Graham (1999)… ou (Lakoff e Johnson, 1980) . A Bibliografia, a incluir no final do texto, será organizada alfabeticamente e deverá obedecer ao formato dos exemplos seguintes: 201

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Livro Guichard, J., Huteau, M. (2001). Psychologie de l’orientation. Paris: Dunod. Capítulo de livro Shantz, C. (1983). Social cognition. In P. Mussen (Ed.), Handbook of child development (pp. 495-555). New York: Wiley. Artigo Verdasca, J.L. (2005). Análise de fluxos e produtividade escolar. Revista Portuguesa de Investigação Educacional, 4, 111-122. Comunicação em reunião científica Salmivalli, C., Voeten, M. (2002). Connections netween attitudes, group norms, and behavior in bullying situations. Comunicação apresentada na International Conference of the Society for Research on Aggression, Montreal, Canada. Dissertação não publicada Baptista, I. (2005). Capacidade ética e desejo metafísico – uma interpelação à razão pedagógica. Dissertação de Doutoramento não publicada. Faculdade de Letras, Universidade do Porto. Referências de artigos on-line Ribeiro, M. (2000). O optimismo irrealista [Em linha]. http://www.lse.uk/publish/sciam.htm. [Consultado em 06/09/2002.]

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em:

Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação da APA - American Psychological Association, última versão. Cada autor terá direito a 3 exemplares da Revista onde o seu artigo for publicado.

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