Sob a égide da beleza milenar - Revista Cultura

July 28, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: History, Estética, Beauty, Beleza
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http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-0309/Sob_a_%C3%A9gide_da_beleza_milenar.aspx Revista Cultura, Março de 2015 SOB A ÉGIDE DA BELEZA MILENAR

Os padrões estéticos que nos aproximam ou distanciam daquilo que os gregos denominavam como o corpo perfeito e as (im)possíveis reminiscências de determinados arquétipos ancestrais em nossa sociedade POR: CRISTINA JUDAR / 09/03/2015

ILUSTRAÇÕES CAROL GRESPAN Uma das reflexões propostas pela exposição Defining Beauty: The Body in Ancient Greek Art, que se inicia neste mês em Londres, no British Museum, diz respeito a possíveis rastros dos padrões de beleza gregos nos dias de hoje – seja como inspiração para artistas e criadores em geral seja como a presença indefectível de um ideal quase inalcançável quanto ao que julgamos como belo e desejável bem como a forma que vemos e pensamos os nossos corpos.

E, diante disso, sobrevive a seguinte questão: será possível que ainda persistam reminiscências desse padrão de beleza ancestral diante de tamanha distância no fio do tempo e da história e entre sociedades claramente tão distintas? Acreditamos estar desconectados de padrões estéticos passados enquanto, inconscientemente, ainda somos regidos por arquétipos semelhantes, que influenciam a nossa existência e os nossos ideais?

“Toda sociedade e seus períodos históricos até a modernidade traziam consigo uma representação de si mesmos segundo valores comuns compartilhados. Assim, o ‘corpo’ grego, por exemplo, deveria ser ‘cuidado’ para a saúde do corpo e da alma, para o

equilíbrio. O corpo belo era aquele que tornava visível a beleza inteligível, ele era a manifestação sensível, perceptível do belo ‘em si’, transcendente a este mundo imperfeito. A contemporaneidade não é ‘refém’ do antigo, porque o belo era o resultado da disciplina do corpo formado, educado para a liberdade, para a contenção dos impulsos, para o conhecimento e o autoconhecimento. Porque o mundo grego se orientava pela ideia de finalidade – cada coisa que existe, existe para a realização de uma excelência”, afirma a filósofa e escritora Olgária Matos.

UM CORPO TRISTE Segundo Olgária, o corpo moderno, sem “subjetividade”, é refém do consumo, comandado pelos padrões das mídias e do mercado, que ditam as tendências, as preferências e os gostos. “Não por acaso, tudo se dá na forma da massificação mimética, como na proliferação das tatuagens, por exemplo, ou na moda prêt-à-porter de hoje, em que não se considera mais o que é elegante e o que não é, dependendo de cada corpo. Que se pense nos desfiles de moda e nas modelos, todas padronizadas na anorexia, na maneira de caminhar e na expressão pesada de suas expressões de corpo e do rosto. Sem interioridade, o corpo moderno existe só para ‘ser visto’, daí o consumo da moda, das vestimentas para o ‘corpo saudável’ e ‘atlético’. O corpo moderno é um corpo triste.”

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Edilamar Galvão dá o seu parecer: “Em uma sociedade tão mais conectada como a nossa, parece que essas formas tendem a certa uniformização, mas mesmo isso é contestável quando observamos, ao lado dessa padronização, surgir uma gama de grupos que sustentam valores estético-culturais para determinar uma identidade que lhes convêm, como as dolls japonesas, as saradas do funk, os representantes do fisiculturismo e a magreza das nossas passarelas. Do ponto de vista de certo mercado da moda, o mito ‘1,80 de altura e 50 quilos’ parece ser uma centralidade. Mas isso não funciona na vida real. Pelo menos não funciona sempre. Embora seja, sim, fonte de um sofrimento real para quem só se imagina incluído no simbólico do mundo a partir dessa representação. Então, imagino que os padrões que vigoram, vigoram sempre segundo uma determinada ordem de interesse econômicosocial de poder”.

Ao analisar a nossa realidade e a sociedade em que estamos inseridos, Edilamar afirma: “Tendemos a acreditar excessivamente nessa projeção de um nós que, na verdade, não se refere a um coletivo real, o qual, sendo real, é muito mais diversificado. O ‘nós’ em questão parece ser esse ‘nós’ recortado por certa indústria cultural e que coloca nas novelas, nos filmes e nos comerciais uma forma predominante e trata todas as outras como ‘excêntricas’. A verdade é que as estratégias de representação da indústria cultural são alheias à diversidade como norma”.

ESPELHO, ESPELHO MEU Em relação a um ponto interessante e ao mesmo tempo complexo, capaz de nos aproximar e de nos distanciar dos antigos, como a associação do belo a valores morais, éticos e religiosos, a historiadora e doutoranda em História Antiga pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Letticia Rodrigues Leite, diz: “Nós e ‘os gregos’ atribuímos valores ao corpo que temos e que vemos. Eles são uma espécie de espelho de nossa conduta, do cuidado que despendemos. Se comemos adequadamente ou não, se praticamos esporte etc. Pense em como hoje a questão de (não) cuidar de si traz também julgamentos de ordens éticas diversas. Se uma pessoa dá muita importância à sua aparência, ela pode ser tomada como fútil, mas, se não dá, se, por exemplo, uma mulher opta por não se depilar, ela é tomada mesmo como pouco higiênica; ou pessoas acima do peso padrão são muitas vezes vistas como quem não cuida da saúde”.

Sobre as transformações pelas quais passou a nossa sociedade – como as mudanças provocadas pela Revolução Francesa, pelo capitalismo e pela revolução industrial – e os padrões de beleza que nos regem na atualidade, Letticia ressalta: “Gostaria de acrescentar algo essencial quando se fala em padrão de beleza atual e que caracteriza a emergência das sociedades modernas: o capitalismo e a revolução industrial – e hoje tecnológica. Pois isto tem um peso imenso ao pensarmos na questão dos padrões de

beleza atualmente impostos. Ser percebido como bonita ou bonito pela maioria implica em um cuidado de si que demanda muitos gastos (financeiros e emocionais), e que gera muitos lucros!”.

NÃO É DOCUMENTO

Ainda no que diz respeito às representações mais conhecidas, muito se questiona se, para a arte grega de forma geral, o tamanho conferido aos órgãos sexuais, especialmente o masculino, não seria um indicativo de que esse aspecto – ao contrário da sociedade atual – não era uma obsessão para eles, mas, unicamente, a perfeição do corpo e dos músculos.

“Há muitas questões implicadas aí. Uma, no caso das estátuas, é de ordem técnica: não é muito viável esculpir em mármore um grande pênis, seria mais fácil se falamos de uma estátua feita em bronze. Há também uma questão de ordem estética: aparentemente, uma estátua masculina com órgão grande afetaria negativamente a harmonia e proporção das formas (uma forma vertical de um pênis ereto, por exemplo, quebraria a harmonia horizontal). Também deve-se buscar pensar em uma questão de parâmetros que normalmente regem as representações do corpo de um ‘herói’, nas quais, de fato, parece haver predominância de um tamanho digamos ‘normal’ desse órgão. Modelo que se repete nas pinturas em vasos com representações de atletas e guerreiros”, afirma Letticia.

No entanto, a historiadora indica que, se de fato o tamanho do pênis não parece ser uma obsessão de ordem estética e/ou indicativa de uma potência sexual desejável, os ‘gregos’ – ao considerarmos o material que chegou até nós – não parecem ter tido maiores pudores em representar o sexo masculino. “Os falos aparecem e são ligados a rituais e à questão da fertilidade, representados de forma mais ou menos explícita em cenas de vasos que dão a ver práticas sexuais diversas entre homens e mulheres, homens e homens (em geral jovens amantes); e também fartamente – em tamanho descomunal e

em ereção – em algumas das representações dos Sátiros. Neste último caso, as representações podem ter um aspecto cômico e também negativo da desmesura do apetite sexual que pertence/ou que só deveria pertencer à ordem do não-humano.”

UM MUNDO DE GOZO, NÃO DE PRAZER O arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari apresenta visão semelhante no que diz respeito à ampla representação do pênis na arte grega, não relacionada a uma importância maior ou menor da sexualidade humana para essa sociedade, mas, sim, aos mais diferentes significados. “Os gregos e, depois, os romanos retratavam falos em diversos contextos, em particular quando se referiam a deuses itifálicos (com pênis ereto e, em geral, descomunal). Nas ruas, eram comuns nos cruzamentos imagens de falos. Em todos esses casos, este órgão seria para afastar o mau-olhado e o azar e trazer sorte. Havia colares, anéis e brincos fálicos, pelo mesmo motivo, assim como campainhas. Em cenas eróticas, também muito recorrentes, apareciam homens comuns com falo ereto. Muitas estátuas em que homens apareciam com ereção chegaram até nós mutiladas, sem o pênis, por destruição dos cristãos, a partir do século 4 d.C.. Já as imagens de homens com pênis em repouso também eram comuns, pois representavam o varão em atuações não sexuais, daí que fosse retratado dessa forma. Em ambos os casos, contudo, a modernidade, por influência da tradição cristã, não irá representar, em geral, pênis em estátuas ou pinturas, nem em repouso e, muito menos, eretos. Há, portanto, uma clara divergência, um uso moderno das representações clássicas, que passa por uma censura de fundo religioso, cristão, mesmo quando isso não esteja explicitado.”

Por sua vez, Olgária Matos é categórica ao declarar que “o mundo moderno é um mundo de gozo, não de prazer”. “Os gregos não dispunham em seu vocabulário de uma palavra para dizer ‘sexualidade’. A que mais se aproximaria desta noção moderna era a ‘afrodisia’, um conjunto de saberes sobre os prazeres do corpo que não se separavam do

espírito, unidos pela ideia de equilíbrio, da medida. ‘Nada em excesso’, segundo a máxima grega.”

A filósofa ainda afirma que a Antiguidade grega e a oriental criaram uma “arte erótica” e a modernidade uma “ciência sexual”, substituindo o erotismo pela sexualidade. “O corpo moderno é um corpo reprimido, pois foi liberado dos tabus do passado – aqueles a que se associavam o sentimento da vergonha ou da culpa, por exemplo – e a sexualidade que antes era interditada ou transgressiva, passou a ser obrigatória. Segundo Marcuse, liberou-se o corpo mas não o espírito, que passou a se comportar segundo injunções externas, os padrões de comportamento sendo impostos de maneira patente ou latente pelas necessidades do consumo – que se pense na indústria da obsolescência do gosto para manter o mercado em funcionamento e nos usos do corpo em geral, na sexualidade, na saúde ou na estética.”

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