SOB A SOMBRA DA MAGNÓLIA: Um solar, um museu, um florescer de memórias.

June 2, 2017 | Autor: Leandro Barbosa | Categoria: Patrimonio Cultural, Narrativas, História Oral, Memoria, Comunidade, Museu
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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL CURSO DE HISTÓRIA

LEANDRO BARBOSA

SOB A SOMBRA DA MAGNÓLIA: UM SOLAR, UM MUSEU, UM FLORESCER DE MEMÓRIAS.

CANOAS 2014

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LEANDRO BARBOSA

SOB A SOMBRA DA MAGNÓLIA: UM SOLAR, UM MUSEU, UM FLORESCER DE MEMÓRIAS.

Monografia de Conclusão de Curso de Graduação apresentada ao Curso de História da Universidade Luterana do Brasil – Campus Canoas, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em História.

ORIENTADORA: Evangelia Aravanis

CANOAS 2014

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Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois. Walter Benjamin.

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AGRADECIMENTOS

O meu especial agradecimento a Amanda Coffi Andrade por todo o apoio nestes anos. Secou-se a erva e caiu a flor, mas nos permanecemos para ver muitas novas primaveras (Te amo). Também não menos importantes foram os amigos, e todos aqueles que de alguma maneira sempre estiveram presentes torcendo por nós. Ao recorrer à lembrança, percebo imagens e rostos que não desvanecem na sombra, mas são despertos na memória, aquecidos pelo coração e sempre preservados na alma. Aos mestres, professores, amigos, que me ensinaram a caminhar os meus passos em direção ao futuro, eu faço parte de vocês, assim como sempre serão parte de mim. Os carrego em cada palavra dita e aprendida nesta linda profissão.

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RESUMO

O presente trabalho propõe a partir da metodologia da História Oral, a análise das memórias concernentes ao Solar Lopo Gonçalves representadas nas narrativas de três interlocutores, Leandro Telles, Nestor Torelly Martins e Sergio Traunetti. Estes que possuem perfis distintos de narrativas na constituição do espaço enquanto Museu de Porto Alegre. Assim, a partir da perspectiva de que entrevistados selecionam as memórias que os identificam com o espaço do Solar, estes elementos constituem-se em produtos de suas reminiscências, que passam a assumir o caráter de patrimônio cultural, acrescentando informações à produção histórica, em especial em sua relação com instituição museológica. Este trabalho propõe uma reflexão a partir das próprias reminiscências produzidas sobre o espaço, estas que além do acréscimo da produção de novas versões da história, trazem a compreensão da importância do espaço de memória como elemento de interação e representação da comunidade a qual pertence. Destacamos a acuidade da promoção de uma afinidade onde a comunidade se sensibilize e entenda seu papel social na luta pela preservação do patrimônio cultural.

Palavras Chave: Memória, oralidade, patrimônio, comunidade, cultura

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ABSTRACT

This work proposes, using the methodology of Oral History, the analysis of memories concerning the Solar Lopo Gonçalves in the narratives of three personalities, Leandro Telles, Nestor Torelly Martins and Sergio Traunetti. Those who have different profiles in the constitution of space as Museum of Porto Alegre. Thus, from the perspective that the interviewed select the memories that identify them with the space of the Solar, these elements while his reminiscences products start to assume the character of cultural heritage, adding information to the historical production, especially in relation to museum institution , place of its materialization. This paper proposes a reflection from their own reminiscences produced on space, these that besides the addition of new versions of the story, bring understanding of the importance of memory space as interaction element and community representation to which it belongs. We highlight the accuracy of promoting an affinity where the community raises awareness and understand their social role in the struggle for preservation of cultural heritage.

Keywords: Memory, orality, heritage, comunity, culture

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Lista de Imagens e Figuras

Figura 1 Vista da cidade Baixa | Fonte: Fototeca Sioma Breitman .......................................... 31 Figura 2 Casas localizadas a Beira do Arroio | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ....... 32 Figura 3 Lopo Gonçalves Bastos | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman .......................... 32 Figura 4 Aquarela de Hermann Rudolph Wendroth (1852) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ................................................................................................................................... 33 Figura 5 Albano Volkmer e sua esposa Elisa Laydner, Bodas de Ouro (1962) | Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer ................................................................................................ 34 Figura 6 Fachada do acesso principal | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ................... 35 Figura 7 Construção do Viaduto dos Açorianos (1970) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ................................................................................................................................... 36 Figura 8 Museu em processo de restauro - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ............. 37 Figura 9 Leandro Telles - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre..................................... 41 Figura 10 Aquarela, de Alberto Scherer, Porto Alegre/RS/Brasil ............................................ 42 Figura 11 Nestor Torelly Martins - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre ...................... 44 Figura 12 Madeiramento em condições Precárias - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman 46 Figura 13 Restauro do Madeiramento - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman .................. 46 Figura 14 Sérgio Traunetti - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre ................................ 48 Figura 15 Arroio Dilúvio. - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ..................................... 50 Figura 16 Bodas de Ouro de Albano Volkmer (1962). No centro da foto, Albano, sua esposa e filha que residiram no Solar. Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer .......................... 52

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Sumário

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9 1 O PORQUÊ NARRAR É TAMBÉM FAZER MUSEU? ............................................................. 11

1.1 Metodologia e reflexões sobre patrimônio ..................................................................... 11 1.2 O Museu com cultura e a cultura com o Museu ............................................................ 14 1.3 Os jogos entre memória e história .................................................................................. 18 1.4 Narrando memórias e contando histórias: considerações sobre a história oral .............. 23 2. UM SOLAR QUE VIROU MUSEU: Museu José Joaquim Felizardo ....................................... 31

2.1 O Solar da família Gonçalves Bastos: Um centenário de história (1845-1945)............. 31 2.2 O Solar enquanto residência da família Volkmer ........................................................... 34 2.3 O Solar como propriedade da SASSE ............................................................................ 34 2.4 O Solar Lopo Gonçalves como espaço preservado ........................................................ 35 3. AS ENTREVISTAS ........................................................................................................................ 38

3.1 Os Personagens e suas Narrativas .................................................................................. 39 3.1.1 Leandro Telles ...................................................................................................................... 39 3.1.2 Nestor Torelly Martins ......................................................................................................... 44 3.1.3 Sérgio Traunetti .................................................................................................................... 48 Considerações Finais ........................................................................................................................... 54 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 58

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INTRODUÇÃO

A perspectiva do presente trabalho surge na analise dos resultados da pesquisa ao qual participei, no projeto em história Oral do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo sob a orientação da Drª Maria Angélica Zubaran. A pesquisa foi vinculada à Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), intitulada de “Narrar Outras Memórias, Contar Outras Histórias: Museu, Comunidade e Patrimônio Cultural”. Também destaco a importância de minha participação em outro projeto do Museu sob a mesma orientação, com o título de "As Narrativas Preservacionistas e o Museu de Porto Alegre: Memória, Patrimônio Cultural e Identidades (1970-1980)". Igualmente destaca-se a relevância de minha atuação no projeto de educação patrimonial Caixa de Memórias, mantido pela secretaria de Cultura da prefeitura Municipal de Porto Alegre, também sediada no Museu de Porto Alegre. O estudo dá-se mediante ao desenvolvimento de uma análise que busca evidenciar fundamentos históricos que ressaltem importância da instituição museológica, bem como a sua representação através da oralidade. Através do uso da História Oral como ferramenta na produção de um indicativo para o registro da memória e a produção histórica, reconhecendo sua importante função como meio de constituição de identidade para os grupos. Este questionamento perpassa a relação entre relatos produzidos por um preservacionista, o responsável técnico pelo restauro do prédio, e um antigo morador do entorno do museu. Todos estes envolvidos no processo de patrimonialização e reconhecimento da estima do Solar Lopo Gonçalves para a cidade. Também será destacada a análise de como esta afinidade se reflete na produção destas histórias e narrativas. Através de um exame dos relatos, ofereceremos a importância da formação deste espaço de memória, bem como daremos destaque as reminiscências dos entrevistados como construtoras de sentidos, estes que são parte integrante e essencial da história da cidade, elemento evidente para o patrimônio cultural imaterial de Porto Alegre. Frente às oscilações temporais percebidas através do decorrer dos anos pelos entrevistados, notamos um esforço em reatualizar o habitual, reencontrando os laços de sociabilidade e solidariedade que fundamentam uma apropriação do espaço. Nesta perspectiva encontra-se uma “ambiência” peculiar para com o prédio do Solar Lopo Gonçalves1, hoje reservado para uso do museu. 1 O Museu Joaquim José Felizardo, Museu Histórico da cidade de Porto Alegre, tem como sede o Solar Lopo Gonçalves, construído entre 1845 e 1855, na antiga rua da Margem (atual João Alfredo), com arquitetura de influência luso-brasileira, para ser “residência da chácara”, lugar de descanso da família do comerciante português Lopo Gonçalves, nos fins de semana e feriados.

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Quanto à metodologia de pesquisa utilizada para composição desta monografia, foram aproveitadas uma série de entrevistas semi-abertas que faziam parte do arquivo museológico do Museu de Porto Alegre José Joaquim Felizardo, estando preservadas no acervo. Estas seguem a abordagem da história de vida, profissão, experiências relativas às próprias questões de preservação e restauro do espaço. Na observação ressaltaram-se as reminiscências dos entrevistados, estes homens em uma faixa etária no entorno dos 70 anos, possuindo uma diversidade de experiências implicadas com prédio, outras recorrentes a formação do bairro, mas que perpassavam a constituição do Solar Lopo Gonçalves enquanto Museu de Porto Alegre. Na escolha dos depoentes levou-se em conta que esses sujeitos sociais possuíam ou produziram memórias relevantes sobre o Museu, e que evocavam a importância da preservação do espaço de memória. Neste sentido, visamos ressaltar a importância da emergência dessas reminiscências coletivas contemplando a diversidade social, étnica, cultural e, fundamentando os laços de pertencimento dessas populações às suas comunidades e ao patrimônio cultural de suas cidades.

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1 O PORQUÊ NARRAR É TAMBÉM FAZER MUSEU?

1.1 Metodologia e reflexões sobre patrimônio

Nas últimas décadas a história tem passado por uma auto avaliação, onde temas como a memória e patrimônio além de encontrar força nos debates, apresentam a possibilidade de uma abertura maior para as novas metodologias na constituição da escrita da história. Destes temas, os debates sobre a memória protagonizam as reflexões, impulsionando cada vez mais os pesquisadores a um aprofundamento nas diferentes manifestações e produções de sentidos, que decorrem destes estudos sobre as diferentes reminiscências. Atualmente tornou-se evidente a abrangência dos debates a respeito do conceito de patrimônio cultural, identidade e etnicidade, em dimensões que estão além das discussões já estabelecidas. Ainda hoje encontramos certa resistência sobre o seu reconhecimento como um ponto de partida e chegada de um indivíduo, em questões que abrangem a sua diversidade, levando em conta a capacidade criativa humana de transformar o seu meio. Por varias razões o tema patrimônio tem permeado os debates nas mais diversas categorias de análise na atualidade. O passado e o presente, inclusive o futuro, estão cada vez mais se “patrimonializando”. Na atualidade há uma diversidade de grupos, populações, práticas e culturas que conquistaram o reconhecimento como patrimônio humano. Sendo que estes assumiram o caráter e a importância como constituidores de identidade, agregando valor aos mais diversos debates políticos, fortalecendo as reivindicações de grupos que antes não possuíam reconhecimento. Tornou-se fundamental percebermos a memória 2 enquanto a capacidade de reter, recuperar, armazenar e evocar ideias, saberes, sensações, emoções, sentimentos, informações e experiências do passado, que constituem sentidos no presente apresentando diferentes durações. Assim, neste trabalho objetivamos constituir a pesquisa incorporando esta perspectiva sobre a memória, entendendo que dar voz aos relatos pessoais na elaboração de uma narrativa do grupo, possibilita constituição do patrimônio possibilita a integração dos indivíduos sociais ao processo de construção biográfica coletiva, esta recorrente às memórias compartilhadas sobre o espaço que hoje é apropriado pelo museu. 2 Para Lê Goff a memória tal como ela, surge nas ciências humanas (fundamentalmente na história e na antropologia), e se ocupe mais da memória coletiva que das memórias individuais, importa descrever sumariamente a nebulosa memória no campo científico global. A memória, como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como passadas.

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Esta diversidade nos usos da memória, encontramos facilmente incorporados nos projetos de história oral, onde o mapeamento de testemunhos orais para a constituição da memória coletiva ultrapassam as diferentes formas de narrar, manifestando a pluralidade como parte da identidade e cultura destes grupos. A história oral surge para cumprir também uma função social, permitindo a apropriação por parte dos habitantes, os tornando herdeiros de um legado. Uma vez que relatos não se evidenciaram na construção histórica, lamentavelmente faz-se a falta do reconhecimento e identificação da maioria da população em relação ao bairro, por não compreenderem a sua importância histórica. Lembrar e reconhecer o que passou é continuar a vida, cônscio de que outros virão e passarão a ter consciência do que ocorreu, sabendo que cada geração assim desejou, e assim contribuiu para a difusão do conhecimento. (...) o importante é compreender que uma coisa ou objeto só se transforma em bem cultural quando alguém (indivíduo ou coletivo) por ato de vontade afirma, descreve e garante a sua passagem simbólica para uma nova condição. A constituição do bem cultural implica um processo de atribuição voluntária e significados e valores. (CHAGAS, 2002, p. 18)

Precisamos reconhecer que há uma problemática nas relações de memória e poder no que tange a produção da história. Por isso na atualidade destacam-se estas iniciativas que questionem o que já foi elaborado sobre o tema, em uma importante abertura para precedentes que produzirão novas perspectivas para história. Os surgimentos destes relatos que partem das memórias populares são um exemplo de como muitas vezes a diversidade de percepções sobre um mesmo evento pode exibir elementos conflitantes com as narrativas oficiais. É um abrolhar de muitas narrativas desvelando facetas da história que em outro período foram intencionalmente conduzidas para não desprestigiar as versões que partiam das fontes oficiais. Não podemos descartar que a história em momentos foi propositalmente manuseada, e utilizada até como instrumento de propaganda no sentido de favorecer grupos, poderes e interesses. (...) preciso reconhecer a inseparabilidade da entre memória e poder, entre preservação e poder, implica em aceitação de que esse é um terreno de litígio e implica também a consciência de que o poder não é apenas repressor e castrador, é também semeador e promotor de memórias e esquecimentos, de preservação e destruição. (CHAGAS, 2002, p. 18)

Atualmente, através da percepção do elemento cultural, novos rumos surgem, abrindo possibilidades para novas versões sobre os mais diversos eventos descritos. Chartier (2002) oferece destaque à importância de identificar a maneira como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada e lida. Ao analisarmos a vida social,

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esse campo pode adotar por objeto as formas e os motivos das suas representações e pensá-las como análise do trabalho de representação das classificações e das exclusões, estas que constituem as configurações sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço. No entanto, a História Cultural deve ser compreendida como o estudo dos processos com os quais se constrói sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas como esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado . Já Paulo César Tomaz (2010) ressalta que as memórias que cada indivíduo possui de sua cidade estão intensamente vinculadas às construções que apontam um passado comum. Para o autor, a memória pode ser despertada através de lugares e construções que, em sua concretude, são capazes de fazer memória a vida passada. Neste sentido, a importância desse trabalho está em realizar uma leitura do bairro-cidade através das multíplices representações urbanas dos entrevistados sobre o patrimônio cultural urbano. Preservar essas memórias é o ato de zelar pelos significados e valores que os entrevistados imputam as práticas do cotidiano e ao patrimônio cultural da cidade, além de contribuir para a ampliação dos vínculos e apropriação entre a comunidade e o espaço de memória. Quando pensamos nos museus, podemos identificar uma enormidade de práticas significativas nos processos de investigação, ordenação de acervo, e configuração de projetos para exposições. É fato que os museus foram o berço para muitas das ciências na atualidade, e em especial no caso da história, onde ela se vê marcada pela presença de um ideal de preservação, este que rememora os profissionais que reuniam objetos e documentos na elaboração de seus ofícios. Neste sentido refletir sobre o conceito de patrimônio tornou-se uma questão contundente dentro das mais tradicionais disciplinas, e vem cada vez mais corroborando para a compreensão dos processos sociais atualmente. O autor Françoise Choay (2001) quando propõe uma “arqueologia” para o conceito de patrimônio, destacando que o termo está incorporado na origem humana, unido às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, este arraigado no espaço e no tempo. O autor explora em profundez a definição de patrimônio no decorrer dos últimos cinco séculos, destacando que a significação que é agregada a este possui motivações existenciais. Ele acaba por empregar uma formulação de conceito "nômade 3 ", este que vem sendo

3 Segundo Choay a palavra patrimônio tornou-se polissêmica. Os adjetivos que hoje lhe aparecem conectados possuem grande variação que segue desde o histórico, cultural, intangível, paisagístico, coletivo, natural, etc. O que aponta um longo trajeto semântico e histórico que é atribuído de conceito “nômade”. Esta palavra é empregada desde a Antiguidade, já constando a sua referência no direito romano, onde a palavra patrimônio (do latim

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largamente empregado no cotidiano para definir um adjacente de bens, materiais ou imateriais, direitos, ações, posse e tudo o mais que determine esta definição de pertencimento a um indivíduo, ou seja, algo que possa estar dependente à apreciação econômica. O Autor comenta que essa transmitância ou empréstimo de uma geração para a próxima, seja de um bem considerado como patrimônio do grupo e da família, ou do status respectivo a tal propriedade, é de vital acuidade para a continuidade de um grupo social. Essa passagem é feita na forma de herança de bens ou de práticas sociais. A partir desta proposta de conceito patrimonial como transmitância ou empréstimo de uma geração, poderíamos propor uma análise de como é construído este processo de pertencimento no que tange a constituição identitária. Ao debater a noção de patrimônio como um elemento agregador de memórias coletivas, Le Goff (1998) aponta três etapas históricas para a elaboração desta perspectiva. O primeiro momento que destaca se encontra no amago do processo de desenvolvimento dos Estados Nações, onde a construção do significado deu-se na identificação simbólica de um passado nacional comum para o grupo. As abrangências dos usos deste conceito permearamse por entre as duas grandes guerras mundiais. Em um segundo momento o conceito passou a ser utilizado por diversas instituições internacionais, adquirindo uma perspectiva de maior abrangência. A partir da década de 60, esta noção de patrimônio ampliou a sua condição dentro da história, incorporando elementos do social, em uma transição que vai desde o patrimônio herdado até o reivindicado, do que era palpável e material, passa assumir agora uma perspectiva invisível e imaterial. A noção de patrimônio imaterial possui uma relação direta com a concepção de cultura, em especial quando esta imaterialidade simbólica traça caminhos dentro desta construção de bem patrimonial.

1.2 O Museu com cultura e a cultura com o Museu

Para o historiador Pierre Nora (1993) o patrimônio cultural é entendido como um amplo e diversificado conjunto de bens culturais (materiais ou imateriais) que permite a cada segmento social se aproximar do passado, compondo imagens de sua identidade, quer individual ou coletiva. A partir da reflexão do autor, poderíamos destacar que o espaço de

patrimonium) possuía o significado de um conjunto de bens que deveria ser atravessado, transmitido dos pais aos filhos, não vislumbrados conforme o seu valor econômico, mas na condição de bens a serem transmitidos.

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memória deixaria o caráter de local meramente contemplativo e colecionista, e tornar-se-ia em um ponto de tensões. Este ambiente se constituiria em um espaço adequado para refletirmos sobre estas articulações entre o passado e o presente, sendo que nesta relação tonar-se-ia possível ampliar o valor social de cada objeto a partir das diversas perspectivas propostas. Soares (2003) propõe a sensibilização como uma forma de aprendizado onde ocorra uma influência mútua para com a comunidade, provocando uma apropriação dos espaços e objetos considerados como patrimônios. A sua importância esta justamente na carência de que haja uma melhor apreensão, onde os indivíduos se apropriem do patrimônio de maneira concreta, frequentando os lugares de memória, reconhecendo saberes e percebendo os objetos das mais variadas formas. Neste sentido pode-se ressaltar que através da inclusão desta proposta na educação patrimonial, o objeto museológico é ressignificado abandonando a condição de relíquia fora de sua época, personificando a força de elemento constituidor de sentido. Porém é importante destacar que a educação patrimonial ainda é um pensamento considerado recente, que não conseguiu afastar-se do senso comum que encara o espaço do museu como um local de objetos antigos, incomuns, um espaço de espetáculo silencioso, sem vida e sem possibilidade de questionamento. Quando pensamos na importância da cultura como elemento político determinante na construção do conceito de patrimônio, devemos nos perguntar sobre o sentido amplo que abarca este conceito, pois somente conhecendo a sua razão de ser profunda, e o atrelamento com o próprio surgimento da história enquanto disciplina, seremos capazes de produzir as ações eficazes na valorização das diferentes culturas materiais e imateriais. É importante destacar que a justificativa de pautarmos o tema da identidade e cultura de forma ampla ao debate, em especial no que tange o tema do patrimônio, se dá na necessidade de constituirmos elementos conceituais para uma base teórica em torno destes conceitos no contexto contemporâneo. É a busca de uma explicação para a formação sócia identitária nas conjunturas mais intricadas. Neste sentido a abordagem se constituiria de uma apreciação destas definições de identidade e cultura enquanto categorias de análise política, proporcionando elementos na compreensão do conceito de patrimônio, este que também opera como uma categoria nestas disputas. Ao refletirmos sobre as questões relacionadas às perspectivas constitutivas da identidade cultural, e sua relação com o conceito de patrimônio, teríamos que nos acercar especificamente a alguns temas importantes decorrem da compreensão destes conceitos. Nesta perspectiva, destacam-se os processos que induzirão às alterações no conceito de identidade na percepção moderna até a pós-moderna, bem como os elementos limitados a esta análise. Os estudos de Stuart Hall (2005) foram fundamentais na

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ampliação desta perspectiva, em especial em sua conceituação de cultura, e sua abordagem sobre Estudos Culturais alcançando reconhecimento como uma das principais referências no debate sobre cultura, identidade e etnicidade. Ele propõe um breve conceito de cultura que é fundamental na concepção de identidade cultural e suas articulações. Nesse sentido Stuart Hall propôs uma reflexão sobre as mutações sofridas pelos sujeitos ao decorrer da constituição do pensamento moderno, evidenciando que houve uma forte alteração no sentido das antigas identidades que davam harmonia e equilíbrio aos indivíduos. Esta perspectiva moderna carrega consigo um universo de possibilidades para a composição da identidade cultural, estas que são distintas nos elementos de coexistência dos grupos. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu "trabalho produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o mesmo em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse "desvio através de seus passados" faz e nos Capacitar, através da cultura, a nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nos fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão a nossa frente. Estamos sempre em processo de formação Cultural. A cultura não e uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2006, p.44)

Desse modo, o autor elucida a complexa interpretação do contraponto existente entre os contrastes, do pertencimento e não pertencimento, as etnias, nacionalidade, religiosidade etc. Ele oferece destaque à questão dos distintos códigos simbólicos que amparam os intercâmbios de identidade cultural existentes na sociedade. Hall destaca como elemento central o tema concernente às identidades culturais, ante ao debate do que se compreende por identidade: Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganha ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade de classe para uma política de diferença. (HALL, 2005, p. 21)

Já Gonçalves (2003) segue apontando que o patrimônio e a memória coletiva, ambos compõem um conjugado de significados que vem a comportar dentro de si uma pluralidade de sentidos que lhe são designados. Mesmo quando o conceito é abordado como um receptáculo de um passado protegido, ou como uma reminiscência necessária para a constituição do presente apontando para um futuro, em sua materialidade ou imaterialidade ele vem a constituir-se em guardião do tempo e experiências. Neste sentido o autor destaca a necessidade desta abordagem compor-se em uma categoria do pensamento e da cultura. O

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compartir de uma cultura em comum é um elemento considerado como valor essencial nesta construção do que se constitui como patrimônio. Através do processo histórico, das relações, e intercâmbios étnicos, é possível compreender que os grupos acabam por desenvolver uma consciência de si, resultando no fato de que a identidade étnica sofrerá transformações de acordo com os diferentes eventos e "histórias de contato". O mesmo poderia se pensar a respeito do simbólico representado no patrimônio, este que assumiria novos significados a partir destas leituras do presente e do passado4. Incidiria no emprego da cultura pesquisada e a reação de distinção ocasionada na cultura de origem. Neste sentido através da entrada do pesquisador em uma sociedade estranha a sua, eventos específicos iriam surgir de modo a demonstrar para si a visão de mundo, e os modos como os outros instituem funções de forma diferente da sua. Tal fato tornaria o contato com a cultura como uma experiência multifacetada, mostrando como diferentes povos fazem coisas dessemelhantes uns dos outros, atribuindo significados diferentes. É Através da objetificação da cultura se torna possível compreender o seu objeto de estudo. Sendo o patrimônio uma importante representação da cultura, é importante entender o que a cultura procura dizer, levando em conta que esse aprendizado acontece paralelamente junto com a objetificação e a cultura do pesquisador. É apenas mediante uma "invenção" dessa ordem que o sentido abstrato de cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser apreendido, e é apenas por meio do contraste experienciado que sua própria cultura se torna "visível". No ato de inventar outra cultura, [...] inventa a sua própria e acaba por reinventar a própria noção de cultura. (WAGNER, 2010, p.31)

Portanto se faz necessário que compreendamos o patrimônio material e imaterial como um pujante instrumento de análise da concepção da vida social e cultural. Nesta constituição o patrimônio possuiria agregado em si, uma importância como elemento de resistência, tornando-se um conceito essencial na valorização da diversidade cultural dos grupos sociais. Ele evocaria a força representativa da “cultura” esta que desafia as violências proporcionadas pela globalização. Quando utilizamos o conceito patrimônio cultural, é imperativo oferecermos ciência de que tratamos da dimensão da cultura do patrimônio ao qual estamos discutindo. Neste sentido, faz-se necessária a discussão dos elementos que constituem esta noção moderna de patrimônio, que envolve questões primordiais como o conceito de cultura, 4 O historiador Reinhart Koselleck, em sua obra “O Futuro passado (1979)”, ampliou a perspectiva de que cada presente não apenas reconstrói o passado a partir de problematizações geradas na sua atualidade, como era a proposta dos Annales e outras linhas historiográficas do século XX , mas acresceu que também cada presente ressignifica tanto o passado (definido por Koselleck como o “campo da experiência”) quanto o futuro (abordado conceitualmente por ele como o “horizonte de expectativas”). Para Koselleck, cada presente cria a sua nova forma de relação entre futuro e passado. Uma assimetria entre estas duas instâncias temporais.

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a noção de pessoa e a relação com o simbólico no processo de construção identitária de um indivíduo ou uma sociedade.

1.3 Os jogos entre memória e história Nos últimos anos, uma das áreas de estudo dentro da historiografia5 que têm proposto de forma incisiva o debate da relação história/memória é a história oral. Muitas são as reflexões, que procuram decifrar os mistérios da memória, definir suas características, altercações, paridades, dentro dos aspectos coletivos e individuais. Nisso é possível perceber o destaque para as diferentes formas como a mesma é concebida, suas diversas compreensões, seguidas de uma complexidade de definições. Segundo Burke (2000) a visão tradicional das relações entre a história e a memória se dava sob uma forma relativamente simples. As funções do historiador eram delimitadas em ser o guardião da memória dos episódios públicos, quando escritos para proveito dos autores, lhes proporcionando notoriedade, e também em proveito do futuro, no sentido de um aprendizado a partir do exemplo dos que passaram. Hoje as memórias e narrativas que remetem ao passado conseguiram maior visibilidade através de seus valores patrimoniais e museológicos, despertando o interesse da mídia para as muitas reminiscências e depoimentos que são atribuídos como versões legítimas do passado. É importante entendermos o papel político que a memória assume na prática historiográfica, principalmente no que tange a vida diária de comunidades que se colocam como carentes de memória. Ela produz uma demanda de direitos e deveres que só se legitimam se atestados pela própria memória. Uma reminiscência que se projeta com aspecto social, político, e culturalmente relevante, assume uma condição desafiadora para historiografia. Essa reflexão sobre o presente e suas demandas clama por respostas impondo permanências, questionando gestões e tentativas de cristalizações do passado em sua função político/social. Nisto destaca-se a importância da memória como instrumento de militância: “vivemos um tempo nas sociedades ocidentais contemporâneas em que ganharam força os investimentos sociais nas tarefas de memória” (GUIMARÃES, 2007, p.12).

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Historiografia de "historiógrafo", do grego Ιστοριογράφος, de Ιστορία, "História" e γράφος, da raiz de γράφειν, "escrever": "o que escreve, ou descreve, a História". Designa não apenas o registro escrito da História, a memória estabelecida pela própria humanidade através da escrita do seu próprio passado, mas também a ciência da História.

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Para o historiador esta relação entre história e memória, tornou-se um desafio teórico/intelectual, que destaca uma grande carência dentro da escrita da história, especialmente no que se refere á questões políticas da memória e do passado. São muitas as tentativas em diversos campos história, que buscam demarcar fronteiras, apontando aproximações e entrecruzamentos nas concepções de história e memória. Neste sentido os historiadores devem estar interessados no que Peter Burke nomeia como “história social do lembrar”. Isto se refere à premissa de que tanto a memória social, como individual, é seletiva. Neste processo de composição da história é importante identificarmos os princípios de seleção e observar como estes se alteram de um lugar para outro, recebendo diversos significados culturalmente, e se transformando conforme o decorrer do tempo. “As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade” (BURKE, 2000, p.73). Podemos entender que a explicação clássica, na qual se aponta que a memória reflete fatos verdadeiros e a história reflete a memória, assume um caráter simplista na contemporaneidade. A história e a memória passaram a se mostrar cada vez mais intricadas. Rememorar o passado desenvolvendo a escrita sobre mesmo, não pode ser considerada mais uma atividade inocente como julgávamos até pouco tempo. As histórias e memórias não assumem mais um caráter objetivo. Neste sentido os historiadores aprenderam a avaliar fenômenos com a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção. “Nos dois casos, passam a ver o processo de seleção, interpretação e distorção como condicionado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não é obra de indivíduos isolados” (BURKE, 2000, p.69-70). A Memória, em seu sentido mais primordial é a presença do passado. Ela seria uma constituição psíquica e intelectual que provém de um fato. Podemos dizer que ela é uma reprodução seletiva do passado, que nunca se condiciona somente ao indivíduo, mas provém de um indivíduo que esta localizado em um contexto de âmbito familiar, social, comunitário. Nisso podemos afirmar que toda memória é uma reprodução do coletivo. Neste sentido Henry Rousso (1998) destaca sobre a memória: [...] seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao ‘tempo que muda’, as rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO, 1998, p.94-95).

É importante enfatizar que a memória carrega em si uma intencionalidade que é superior ao aspecto da distinção do passado. Reconstruí-lo, revivê-lo na sua multiplicidade, é

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permitir a fluência das reminiscências, deixando vir à tona as memórias, com toda a carga emocional que elas possuem. Estas que irão delimitar ações e reações necessárias á ação política, seja no aspecto individual ou coletivo, oferecendo destaque as identidades e lutas. Pierre Nora (1993) nos adverte a identificarmos a distinção entre história como objeto e a história como conhecimento. Uma percepção da história vivida, acompanhada do processo intelectual que a torna inteligível. Este poderia ser indicado como um dos últimos o contrapontos da memória. Segundo Nora, a memória e a história estão longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que diversos elementos apontam há uma oposição. A memória é apontada como um processo de vida, gerido por grupos vivos. Por assim dizer, que ela estaria em constante evolução, demonstrando certa suscetibilidade as diversas manipulações. A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno o presente; a história, uma representação do passado (NORA, 1993, p.9).

Neste sentido Le Goff (1996) aponta que a memória e a história se integram dando uma noção de volume e completude para a narrativa. Unidas produzem uma seleção de relevância das reminiscências, onde ambas se nutrem em um processo de construção do tempo histórico. A história escrita sozinha assume um caráter impessoal, pois nela grupos seguidos de suas construções culturais desaparecem para ceder lugar a outros, pois a escrita de certa maneira acaba por renegá-los. A memória personifica a história viva e habitada, preservando as suas permanências no tempo, reconstruindo-se. Podemos dizer que a história é viva quando assume o seu lugar de permanência, não condenando ao desaparecimento às criações comunitárias, atribuindo as mesmas, somente o caráter de uma imagem desfocada. Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta (LE GOFF, 1996, p.13).

Assim como pudemos identificar no texto, a memória busca realizar uma seleção dos eventos individualmente, pelo fator da dependência que possui definida pelo modo de vida do interlocutor. Desta maneira cada indivíduo preservará em suas lembranças o mesmo episódio, mas de maneiras diferentes. Como as reminiscências pessoais são renovadas cada vez que

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lembramos, elas não estarão completas automaticamente assim que as acessamos. O ato do recordar, esta ligada a cada sujeito. A memória é vinculada diretamente à pessoalidade, isso porque nós decidimos como reconstruímos nossas lembranças. Assim a memória torna-se uma busca por sentido, ela se interliga com outras concepções do ponto de vista identitário individual, criando sentidos, intermediando os conflitos, sanando as feridas, edificando os destroços, calando as consternações. A memória vinculada ao ato de recordar, evidentemente também ao esquecimento. Recordar e esquecer se constituem em uma dualidade que se integra, opondo-se ao mesmo tempo. Neste sentido o autor nos diz que: Reminiscências são passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes (...) Sentimentos e impulsos reprimidos (...) são descarregados atravessando sorrateiramente as barreiras da coerência consciente de forma específica. Sonhos, erros, sintomas físicos e piadas que permitem vislumbrar os significados pessoais ocultos (THOMSON, 1997, p. 57-8).

Outro elemento importante para destacarmos é o olhar do narrador no tempo através do tempo, carrega em si as marcas da historicidade. São os indivíduos constroem as representações das distintas temporalidades e eventos que marcam sua história individual. As percepções sobre o passado serão sempre influenciadas pela marca da temporalidade. Ao fazermos a leitura da história vivida no resgate das memórias visando o processo de constituição da história, os historiadores são influenciados pelas representações do tempo presente, voltando suas percepções para o vivido reinterpretando-o. O tempo, a memória e história, não caminham isoladamente. Existe grande tensão nesta busca por apropriação, afetando diretamente a reconstituição da memória pela história. Percebemos com mais clareza estes elementos quando se resgatam reminiscências atreladas a guerras, vida cotidiana, movimentos étnicos, conflitos ideológicos, embates políticos, lutas pelo poder. Existe certa impossibilidade de alterar-se em relação ao passado, o tempo age em uma esfera de transformação, constantemente se re-significando em relação ao passado. É uma ação não previsível em relação ao que poderá ser. Ele tenciona utopias elaborando-se com as ferramentas do presente, reconstruindo-se com as do passado, se permitindo a uma série de deficiências de interpretação: Nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 1996 p. 368).

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A memória ainda sujeita a controles e percepções do presente, possui como ponto de partida o processo histórico do grupo que a resguarda dando suporte à identidade. Ela possibilita a noção de procedência mantendo suas ligações e vínculos com o presente e passado. As reproduções de acontecimentos, lugares e costumes, são indicadores de significados, e ao mesmo tempo revelam permitindo delinear o trajeto histórico do grupo. Entre os múltiplos aspectos referentes à construção da identidade contemporânea, a memória é apontada como mecanismo fundamental para a composição da identidade social. Maurice Halbachs (1990) contribuiu absolutamente com a historiografia ao sugerir o conceito de memória coletiva, definindo os quadros sociais que compõem esta memória. Segundo o autor a memória puramente individual não existe, posto que todo indivíduo está em constante interação, sobre o efeito da ação direta da sociedade por meio de suas diversas instituições sociais. A identidade se constrói em um indivíduo, a partir de sua cosmovisão, abrangendo seu sistema de ideias políticas agregado as experiências históricas que possui em comum com o grupo social em que habita. Neste sentido a memória coletiva se constituiria pela continuidade, e deve ser destacada por sua pluralidade. Este apontamento refere-se ao fato de que a memória de um indivíduo ou de um país estão arraigadas no alicerce da constituição de suas identidades. Portanto, percebe-se uma a tradicional maneira de se fazer História, onde o foco esta localizado na súmula dos grandes acontecimentos da história nacional minimizaria o poder contido nas memórias coletivas. “O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo que existiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os período estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesma maneira” (HALBACHS, 1990: pp. 89-90).

Segundo Halbachs, a memória histórica se constitui como o circuito de episódios pontuais na biografia de um país. Sendo assim, a constituição do termo “memória histórica” se comporia em uma tentativa de embaralhar temas que são contrapostos. Para compreendermos onde estão alocadas estas tensões entre a História contrapondo-se à Memória, é preciso que se compreenda a concepção de História ao qual o autor se utiliza. A memória ampara-se na experiência com “passado vivido”, o qual comporta a composição de

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uma narrativa concernente ao passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o “passado apreendido pela história escrita” (HALBACHS, 1990: p.75). Portanto é importante ressaltar que a memória compõe um elemento de identificação humana, é o indicador ou sinal de sua cultura. Ela é responsável pelas aproximações e distanciamentos. Esta identificação cultural é que define cada grupo, sendo o principal elemento que destaca estas nossas diferenças. Pensar em recompor a história de uma cidade ou bairro deve-se levar em conta as diversas representações produzidas sobre o mesmo evento. Devem-se destacar as perguntas que nos instigam a compreensão de como e quando estas histórias assumem caráter documental, qual o propósito destes relatos e que relação eles possuem com as memórias culturais produzidas pela cidade.

1.4 Narrando memórias e contando histórias: considerações sobre a história oral

Por tamanha complexidade do debate, só nos é possível compor uma breve análise da relação controversa entre memória e História Oral, mas, ainda podemos apontar certa interdependência, assinalando alguns de seus distanciamentos e aproximações. Será um destaque que aportará às dificuldades propostas nesta comunicação. Abordaremos como se compuseram estas afinidades, ou por que existe esta altercação entre a história oral e a memória. É importante compreender que isso faz parte de um longo processo histórico que precede os princípios da modernidade. Momento este em que a História passou a ser ponderada como uma ciência objetiva, que é fruto de uma historiografia que eliminou a possibilidade do uso da oralidade. Por um longo tempo, empregou-se de um discurso que carecia elaborar antagonismos entre o passado e o presente promissor, entre o que era de conhecimento popular, e a ciência classificada como coerente e culta. No entanto, a oralidade não foi abandonada como forma de transmissão de saberes, principalmente daqueles ligados às reminiscências populares. Estes questionamentos ditos “científicos” invalidaram a importância das narrativas individuais, descaracterizando tudo o que não fosse de ordem documental, com isso, não levando em conta a oralidade como elemento importante na composição da história. Discussão esta abordada nos debates historiográficos da Escola dos Annales6, e criticada por seguimentos da nova história cultural7. 6

Em 1929, surgiu na França uma revista intitulada Annales d’Histoire Économique et Sociale, fundada por LucienFebvre e Marc Bloch. Ao longo da década de 1930, a revista se tornaria símbolo de uma nova corrente

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Se nos permitirmos uma aproximação do assunto, perceberemos que História Oral seria uma adjacência extensa, que recupera os mais variados perfis de relatos alcançados através das narrativas. Queiroz (2009, p.53) destaca que são eventos não catalogados por outro tipo de documento, episódios estes cuja documentação complementa, ou viabiliza uma visão diversificada da produção histórica. A História Oral registra a experiência de vida de um indivíduo, ou de vários indivíduos em uma mesma coletividade. O Autor segue afirmando que as fontes orais podem adquirir o formato de histórias orais de vida. Estes relatos orais de vida ou narrativas possuem sua referência na individualidade e experiência do narrador, descrevendo em fatos o que presenciou. Pensando na utilização da História Oral, podemos interpretar a oralidade como um fundamental meio de comunicação na história humana. Ela abre espaço para as diversas narrativas promovendo o diálogo entre os grupos. Ela torna possível a comunicação entre diversas culturas, também a representação e aprimoramento dos meios de subsistência. Sobre a história oral Thompson observa que: “Na verdade a história oral é tão antiga quanto à própria história. Ela foi à primeira espécie de história. E apenas muito recentemente é que a habilidade em usar a evidência oral deixou de ser uma das marcas do grande historiador” (THOMPSON, 1992, p. 45). Percebe-se que há uma ligação intima entre oralidade e a origem da própria história humana. No que tange o desenvolvimento de pesquisa, muitos não se apropriaram dos recursos e benefícios que a oralidade proporciona ao meio científico. De certo modo, é importante destacar que acaba por existir um abandono às fontes orais no que tange a construção historiográfica. Embora por um tempo, houve certo descaso com a utilização da oralidade, na atualidade surgem com força novas linhas de pesquisa que se utilizam desta, como recurso na produção de conhecimento. Thompson (1992) ao elaborar considerações sobre o aumento da utilização da história oral como método, enfatiza o caso da América do Norte, que apresentou um crescimento mais significativo. [...] A história oral”, declarou a Oral History Association (norteamericana), “foi instituída em 1948 com uma técnica moderna de documentação histórica quando Allan Nevins, historiador da Universidade

historiográfica identificada como Escola dos Annales. A proposta inicial do periódico era se livrar de uma visão positivista da escrita da História que havia dominado o final do século XIX e início do XX. Sob esta visão, a História era relatada como uma crônica de acontecimentos, o novo modelo pretendia em substituir as visões breves anteriores por análises de processos de longa duração com a finalidade de permitir maior e melhor compreensão das civilizações das “mentalidades”. 7 A História Cultural esclarece Roger Chartier (2002), é importante para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler. Da mesma forma, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido.

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de Colúmbia, começou a gravar as memórias de personalidades importantes da história norte-americana. (THOMPSON, 1992, p. 89).

O historiador Alessandro Portelli (1997, p.15) aponta a História Oral como uma ciência e arte do indivíduo. Tendo esta uma relação direta com a sociologia, antropologia, padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos. Ela propõe aprofundar estes elementos, em essência, por meio de conversas com pessoas sobre a experiência a memória individual, e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma. A indicação de uma metodologia de análise para fonte oral conjetura a compreensão do conteúdo e suas singularidades. Isto significa ter ciência de suas razões, os porque da produção e como esta será utilizada. Destaca-se a necessidade de compreender a fonte oral como conhecimento que deve ser tratada e reconstruída. A fonte oral é empregada em uma diversidade de áreas do conhecimento. Segundo Verena Alberti (2005) pode-se constatar as diferentes áreas em que a metodologia de História oral pode ser aproveitada. O trabalho com História oral se beneficia de ferramentas teóricas de diferentes disciplinas das Ciências Humanas, como a Antropologia, a História, a Literatura, a Sociologia e a Psicologia, por exemplo. Trata-se, pois, de metodologia interdisciplinar por excelência. Além dos campos mencionados, ela pode ser aplicada nas mais diversas áreas do conhecimento: na Educação, na Economia, nas Engenharias, na Administração, na Medicina, no Serviço Social, no Teatro, na Música... Em todas essas áreas já foram desenvolvidas pesquisas que adotaram a metodologia da História oral para ampliar o conhecimento sobre experiências e práticas desenvolvidas, registrá-las e difundi-las entre os interessados. (idem, p.52).

A história oral hoje se consolidou como uma solução de pesquisa histórica admirável para a transmitância das experiências sociais. Em consequência da preocupação de antropólogos, sociólogos e historiadores com o conhecimento contido na oralidade das culturas populares. Estes que hoje se destacam na produção de uma nova história social, em que os segmentos excluídos da sociedade, cujas versões eram ignoradas pela história tradicional, assumiram espaço ativo na construção da trama histórica (ALBERTI, 2004, p.14). A autora observa que entrevistas de História Oral podem comunicar tradições culturais, que vão brotando conforme o entrevistado delas recorda. A autora aponta uma divisão entre tradição oral e História Oral. A tradição oral conteria narrativas sobre o passado universalmente manifestas em uma cultura, enquanto o depoimento ou a entrevista de História Oral se diferenciaria por versões que não são vastamente conhecidas. Contudo, a ainda explana que a tradição oral e História Oral possuem uma grande proximidade, principalmente se caracterizamos as entrevistas como ações ou narrações, e não apenas relatos do passado.

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A tradição oral é definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos (ALBERTI, 2004, p.158).

Portelli (1997) distingue que apesar de a memória ser constituída de processos essencialmente individuais, ela remete ao mesmo tempo a aspectos sociais e padrões culturais. Neste sentido a memória compreende em dois níveis respectivamente: um individual e outro social. O caráter social e cultural da memória é decorrente da interação entre indivíduo e meio social. No entanto, a coleta das experiências concretas através do ato de rememorar, é exclusivamente pessoal. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais (idem, p. 16).

A existência de paridades, distinções, ou mesmo incoerências em relatos e depoimentos acerca de um episódio particular, não se distingue como fato característico para o estudo da memória, mas aponta para o seu caráter individual, que evita a probabilidade da existência de reminiscências exatamente iguais.

Pelo fato da memória se tratar de um

fenômeno simultaneamente individual e coletivo, ela proporciona processos dinâmicos em permanente transformação, exercendo ligações entre o sujeito histórico e seu grupo social, destacando um momento exclusivo no tempo. A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato da História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas (PORTELLI, 1997, p. 16).

Sobre a questão da dualidade da memória, Diehl (2002) afirma que a memória é capaz de conceber probabilidades de aprendizagem e de socialização que influenciam a constituição de uma identificação cultural. A Memória possui contextualidade e é possível ser atualizada historicamente. Ela possui maior consistência do que lembrança, uma vez que é uma representação produzida pela e através da experiência. Constituise de um saber, formando tradições, caminhos – como canais de

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comunicação entre dimensões temporais –, ao invés de rastros e restos como no caso da lembrança. A memória pode constituir-se de elementos individuais e coletivos, fazendo parte de perspectivas de futuro, de utopias, de consciências do passado e de sofrimentos. Ela possui a capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e cultural, uma vez que pode abranger a totalidade do passado num determinado corte temporal (idem, p.116-17).

Queiroz (2009) esclarece que a história oral de vida é uma narrativa de um narrador sobre sua experiência através do tempo. Os episódios vivenciados são relatos, conhecimentos e valores comunicados, partindo dos acontecimentos da vida pessoal. Através da narrativa individual, se descrevem as relações com os componentes de seu grupo, de sua profissão, e classe social. Existe uma grande dualidade nas narrativas, algumas exprimem uma riqueza de detalhes, outras se apresentam mais resumidas nos apontamentos, por vezes fragmentadas. Cabe ao pesquisador identificar estes elementos, e perceber aqueles que lhe são mais importantes dentro da construção da história. Não confiamos que seja possível a obtenção de uma narrativa individual em sua completude, pois há uma diversidade de facetas que envolvem a construção das memórias e os fatos que envolvem uma vida. Devido a esta multidão de informações sujeita as experiências de uma vida, uma história pessoal nunca poderia ser completamente revisitada, pois é e um processo seletivo que se impõe envolvendo o próprio rememorar, em geral controlado pelo próprio narrador. Na perspectiva de Alistair Thomson (1997, p.56-7) a composição de reminiscências surge com intuito de oferecer sentido ao nosso passado. De certa maneira, indica que perpetramos composições, ou as construímos nos utilizando de linguagens e significados que reconhecemos através de nossa cultura. São feitos atrelamentos de forma a não permitir separação entre os objetos e o subjetivo. O autor ainda segue destacando que o termo “composição” se adéqua na descrição do processo de construção das memórias. Sendo que recentemente muitos historiadores vêm desenvolvendo compreensões mais abrangentes sobre as narrativas orais, explorando as tensões entre a memória e a identidade na relação entrevistador e entrevistado. É importante destacar que para o autor as memórias que recordamos não são imagens exatas do passado, mas carregam em si, aspectos deste passado que se ajustam as nossas aspirações do presente. Assim podemos dizer que a identidade acaba por se moldar as memórias no intuito de dar sentido ao que recordamos no presente. Partimos de uma composição de memórias, as ajustando ao que é socialmente mais aceitável. Destaca-se também (idem, p.58) o reconhecimento como o processo de formulação social das identidades. Sendo que este possui um papel fundamental para a sobrevivência emocional do sujeito.

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Peter Burke (2000) aponta que a visão habitual das afinidades entre a história e a memória se movimentava de uma maneira relativamente simples. O historiador possuía a função de se posicionar como o guardião das memórias dos episódios públicos, quando registrados para conveniência dos autores, para lhes proporcionar fama, também em utilidade do futuro, para aprendizado a partir do exemplo. Contudo o apontamento clássico de que a história é um espelho da memória é abordado de maneira simplista, pois é fácil perceber que eles tornam-se cada vez mais complexos. Recordar o passado e historiar sobre ele não se representam mais atividades inocentes, como avaliávamos até pouco tempo atrás. Em uma analise perceberemos que as histórias e memórias não mais sugerem ser objetivas. Em ambos os casos os historiadores aprenderam a avaliar acontecimentos com a seleção consciente e inconsciente, a interpretação e a distorção. Nisso percebemos o processo de seleção, interpretação e distorção como dependente, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não são produtos de indivíduos isolados. Muitas produções abordam esta questão na tentativa resgatar a história da memória que muitas vezes é abordada secundariamente, por esta subjetividade que a distingue. Apesar disso, esta é de grande relevância para o legado cultural das comunidades. Nisto recebem destaque os projetos de História Oral, em principal pela ênfase no seu desempenho de reestruturar a constituição ideológica das identidades 8 e grupos. A reflexão sobre o uso da História Oral na produção do conhecimento histórico, e sua articulação com a memória, é mais do que importante no que tange a pluralidade das narrativas históricas. Esta consegue destacar aspectos que transcendem apenas a história como conhecimento bruto, mas destaca sua função social e militante a favor dos excluídos. A história como instrumento de criação identitária, reconhece em si sua importância em responder questões que apontem a origem de muitas comunidades e grupos. Desde seu aparecimento, a função da História esteve em fornecer à sociedade uma explicação de suas origens. Do grego, historie, significa procurar, investigar. Nessa busca, a essência da História como transformação (e seu processo formativo), bem como sua dimensão de análise, como o tempo e o espaço, integraram a palavra História em sua polissemia. Nesta polissemia, a história é uma série de acontecimentos, e a narração desta série de acontecimentos (VEYNE, 1998, p.285).

As narrativas orais sobre um mesmo evento específico possuem uma relação de intercomunicação, e quando registradas podem reconstituir a história sobre um aspecto mais 8 A construção de uma identidade passa, inapelavelmente, pelo terreno das imagens, galeria de retratos e marcas através das quais aparecemos na cena social (FRANÇA, 2002, p. 7). Nesse sentido, a imagem deve ser considerada na sua sinonímia de representação abstrata, perceptível no plano mental, no seu estatuto de produção de sentidos o que redunda em liames com o imaginário.

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conectado com o conhecimento popular. Além de ser um instrumento de militância em favor dos excluídos, permite o surgimento de grandes possibilidades para a produção histórica sobre determinado acontecimento de forma plural, prestigiando os relatos produzidos pelos sujeitos, e contrapondo a história do poder com a história da memória. O trabalho com a rememoração bem como as próprias interpretações que dele fazemos podem ser comparados a diferentes pedaços de tecidos que formam uma colcha composta por esses retalhos que foram reunidos através de fios que os uniram, que, em função das combinações possíveis no contexto de sua costura, produziram uma coerência (GUEDES-PINTO et.al, 2008, p. 22).

Sobre os acréscimos atuais aos conceitos de fonte histórica, passam a enfatizar e se utilizar de maneira mais abrangente das representações na construção do conhecimento. Uma vez identificada à maneira como o indivíduo si vê, e como percebe o mundo ao qual esta inserido, encontra-se a distancia da antiga busca por uma realidade histórica independente do sujeito. Passa-se a perceber que a “verdade” ou o “real” nada mais é do que subproduto de uma construção cultural. Identificamos que o papel do historiador não propõe apenas contar a verdade, mas conhecer diferentes versões da verdade e perceber como estas foram estabelecidas pelo sujeito histórico. Neste sentido todas conclusões passam a assumir um caráter provisório. “O imaginário9 estabelece o real e pelo real é desenvolvido, num constante movimento cíclico” (SWAIN, 1994, p.52). Em sua narrativa a história carrega em si a possibilidade de nos levar a pensar sobre o passado de outros, de nós mesmos, de nossas vidas, de nosso cotidiano e da realidade que cercam todos aqueles que conhecemos diretamente ou indiretamente. “O tempo tornase tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo e que a narrativa atinge o seu pleno significado quando se torna uma condição de existência temporal” (RICOUER 1994, p.85). O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque já os vimos ou já os experimentamos. [...] Somos a qualquer momento a soma de todos os nossos momentos, o produto de todas as nossas experiências (LOWENTHAL, 1998, p.64).

Segundo Ricouer (2008, p.87) um documento de arquivo, como toda escrita, está aberta quem quer que saiba ler. As fontes documentais escritas estão à disposição para leitura, 9 Para Jacques Le Goff (1994, p. 11), por sua vez, o imaginário é dimensão. Ele pertence ao campo da representação, na medida em que traduz uma realidade exterior percebida, tradução que alimenta o homem e o faz agir. Dessa maneira, para o autor, o que o homem considera realidade é fruto do próprio imaginário, concepção próxima de Castoriadis.

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não possuindo um destinatário designado, diferentemente de um testemunho oral, que é apontado a um interlocutor. O testemunho ou o documento, ambos servem para atender ao historiador.

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2. UM SOLAR QUE VIROU MUSEU: Museu José Joaquim Felizardo

2.1 O Solar da família Gonçalves Bastos: Um centenário de história (1845-1945)

O Solar é um prédio histórico de Porto Alegre, construído entre 1845 e 1855. É uma chácara com fundos para à Rua da Margem (hoje atual João Alfredo), no bairro Cidade Baixa. É importante destacar que este Solar foi construído para servir como casa de veraneio. As casas de chácara eram habitações muito características do período colonial e, por conseguinte no Brasil Império e República. Normalmente eram localizadas na periferia dos centros urbanos, e consideradas como uma opção muito apreciada pelas famílias mais abastadas, pois proporcionavam benefícios estes que não eram propostos nas residências da cidade, em especial na questão da higiene e plantação.

Figura 1 Vista da cidade Baixa | Fonte: Fototeca Sioma Breitman

Outro importante fator era estar cerca a cursos de água, componente que resolvia um grande problema das deficiências hidráulicas proporcionando um acesso rápido ao recurso, Água esta que nas residências urbanas precisava ser constantemente estocada. Outro destaque importante era a possibilidade de cultivo, permitindo a produção de alimentos e a criação de pequenos animais, garantindo a subsistência da família em uma época em que eram comuns as crises de fornecimento de mantimentos nas cidades (SYMANSKI, 1997, p.71)

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Figura 2 Casas localizadas a Beira do Arroio | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

Segundo Giacomelli, (1992) O proprietário do solar se chamava Lopo Gonçalves Bastos, nascido em Portugal, em 1800, na freguesia de São Miguel de Gêmeos de Bastos, arcebispado de Braga. Em 23 de junho de 1828 casou-se, em Porto Alegre, com Francisca Benfica Rodrigues Teixeira, filha do Sargento Mor João Luís Teixeira. Sendo que desta relação resultaram quatro filhos.

Figura 3 Lopo Gonçalves Bastos | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

No período em que chegou a Porto Alegre, envolveu-se com o comércio, acabando acumular um patrimônio que compreendia em um armazém de secos e molhados na Praça da Alfândega, uma loja de fazendas na parte de baixo do sobrado onde residia com sua família na Rua da Praia, e algumas embarcações em sociedade com o sogro. Além de negociante,

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ocupou muitas funções, dentre estas até cargos públicos onde foi vereador por dois mandatos (1833-37 e 1845-49), também foi provedor da Santa Casa de Misericórdia (1851), e fundador do Banco da Província do Rio Grande do Sul (1858) e da Praça do Comércio de Porto Alegre (atual Associação Comercial). Lopo foi dono de vários escravos, acumulando um dos maiores patrimônios da sociedade porto-alegrense na época (SYMANSKI, 1997, p.65).

Figura 4 Aquarela de Hermann Rudolph Wendroth (1852) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

Com o passar do tempo, Lopo Gonçalves se envolveu grandemente com o comércio da cidade, sendo que para dar seguimento a sua demanda de mão de obra comprou muitos escravos, onde acabou por usar até parte de casa para servir de senzala. Neste período também desempenhou muitas atividades filantrópicas, além de ter sido político, exercendo o cargo por dois mandatos e como um como suplente, veio a falecer em 07 de novembro de 1872. Após o falecimento de Lopo Gonçalves Bastos (1872) e também de sua esposa (1876), a herdeira do espaço do solar tornou-se a filha Maria Luisa Gonçalves Bastos junto com seu esposo, Joaquim Gonçalves Bastos Monteiro, este que era sobrinho de Lopo. Neste período o solar acabou por assumir o caráter de residência da família, sendo que para acomoda-los foi proposta uma série de mudanças na arquitetura, seguindo com o fechamento do pátio interno, e o acréscimo de um novo cômodo, construindo-se também o torreão. O Solar continuou como propriedade da família até o ano 1946.

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2.2 O Solar enquanto residência da família Volkmer

Em 1946, Maria Amália Bastos de Vasconcellos Hasse, herdeira dos Gonçalves Bastos, acabou por vender o Solar para Albano José Volkmer (1886-1972), este que era o empresário e advogado. Com a aquisição do imóvel Volkmer propôs a realização de uma série de reformas, vindo a dividir o solar em três habitações integradas. No ano de1962, Albano Volkmer, sua esposa e filha foram residir em um dos anexos residenciais do solar.

Figura 5 Albano Volkmer e sua esposa Elisa Laydner, Bodas de Ouro (1962) | Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer

Existem indicativos de que Albano José Volkmer aproveitou o grande terreno de sua propriedade como um ambiente onde realizava a secagem de velas de sua fábrica que situavase na Rua Coronel Genuíno. Neste mesmo período o Solar passou a ser conhecido na família Volkmer como a Casa da Magnólia, referência à árvore centenária que ainda hoje adorna o jardim. Em 1966, a propriedade foi vendida para o Serviço de Assistência Social e Seguro dos Economiários (SASSE) (ZUBARAN, et. al., 2011).

2.3 O Solar como propriedade da SASSE

Assim que adquiriu o prédio, as intenções da SASSE eram claras em sua proposta de demolição do Solar para construção de um conjunto de residências para usufruto de seus associados. Diante das pressões para dar continuidade ao projeto e a demolição do prédio, a Prefeitura Municipal não cedeu, sendo que com a desaprovação, o Solar passou a ser utilizado como um depósito de documentos da associação.

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A ocupação do Solar por populares, assim como a deterioração física desse imóvel, estava relacionada ao desinteresse do Serviço de Assistência Social e Seguro dos Economiários (SASSE), então seus proprietários, após terem seus planos de demolição do prédio frustrados pela negativa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Seguiu-se, então, um período de abandono do Solar que ficou quase em ruínas (ZUBARAN, 2012, p.96)

Neste mesmo período, sofrendo com a falta de conservação, o Solar passou a abrigar muitas famílias que careciam de moradia em Porto Alegre, acabando por se tornar e conhecido como um cortiço.

Figura 6 Fachada do acesso principal | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

O SASSE foi extinto em 1977 e o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS) assumiu a propriedade do imóvel. Em 1978, o governo federal fez a permuta da propriedade, com o IAPAS, por um terreno na Av. Loureiro da Silva (ZUBARAN, et. al., 2011).

2.4 O Solar Lopo Gonçalves como espaço preservado

Entre os anos de 1969 e 1974 a cidade de Porto alegre passou por uma diversidade de reformas urbanas, estas que acabaram por causar um considerável impacto na paisagem. È importante destacar que a zona onde se hoje se situa o Solar já havia sido uma das mais

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afetadas durante as obras de canalização do arroio em 1950, onde ocorreu no período uma série de desapropriações. Acompanhando os planos diretores da cidade, estes que reforçavam uma proposta de modernização violenta, requereu-se que a mobilidade da cidade fosse ampliada, promovendo assim uma série de obras que transformaram ainda mais a paisagem da região. Dentre estas que comprometeram a geografia da região, estão às obras da I Avenida Perimetral que afetaram diretamente a estrutura do antigo bairro, o dividindo em duas partes. Elas também necessitaram de uma nova série de desapropriações, que acabaram por extinguir algumas de suas antigas ruas.

Figura 7 Construção do Viaduto dos Açorianos (1970) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

Foi neste período, onde estavam ocorrendo uma série de transformações no espaço urbano, em que um grupo de intelectuais de Porto Alegre começou uma empreitada em prol da preservação de edificações com significado histórico para a cidade. Mas foi somente no ano de 1974 que o Solar tornou-se alvo destes debates acabando por ser inventariado, onde passou a ser considerado como um dos prédios de enorme valor histórico para a cultura Porto Alegrense (ZUBARAN, et. al., 2011). Segundo MEIRA (2008), a intervenção realizada no Solar poderia ser considerada exemplar, em especial pelas dificuldades enfrentadas. Em especial por ter sido a primeira obra realizada pelas estruturas municipais. A restauração do Solar de Lopo Gonçalves, residência de veraneio do criador da Associação Comercial de Porto Alegre, possuía uma ligação direta

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com a história da cidade de Porto Alegre. Os responsáveis pela obra destacaram que o projeto respeitou os critérios de intervenção onde destaca que limitaram a intervenção ao resgate das formas e espaços originais do prédio, acatando os elementos já incorporados a história funcional e estética do mesmo.

Figura 8 Museu em processo de restauro - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

A autora segue destacando a importância dos critérios usados para o restauro do prédio, estes que raramente são especificados em um bem patrimonial, o que é essencial para nortear as disposições de projeto para abranger a execução. Através da dedicação da equipe técnica em instruir-se a partir de conhecimentos práticos em paralelo com o arcabouço teórico. Sendo assim, se lançou uma proposta preliminar, esta que teve a autoria dos arquitetos Nestor Torelly Martins e Régis Gutierrez Andreatta realizado em 1980, e um levantamento arquitetônico adimplido em 1981, levando em contra a necessidade de uma precisão maior nas dimensões do projeto arquitetônico para que ocorresse a sua execução. A Prefeitura Municipal conseguiu adquirir o imóvel após insistentes tentativas com o proprietário, onde em 1981, foi firmado convênio com a SPHAN/FNPM para a execução do restauro. A execução da obra foi realizada por uma empresa administrada pelo arquiteto Edegar Bittencourt da Luz.

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3. AS ENTREVISTAS

Foram Selecionamos para compor esta proposta de análise das entrevistas realizadas, um morador do bairro Cidade Baixa, um preservacionista envolvido diretamente com o movimento de patrimonialização do Museu, e o arquiteto responsável pela obra e restauro do prédio. Os critérios escolhidos se deram pela acuidade dos relatos produzidos, em especial por sua relação com o Solar e a vida cotidiana da cidade, também ao fato de serem testemunhas das diversas transformações urbanas que ocorreram na região onde se localiza a atual Rua João Alfredo, antigamente conhecida como Rua da Margem10. Este grupo de entrevistados além de representar diferentes etnias que estiveram diretamente implicadas na constituição do bairro, foram ativamente envolvidos com diversos momentos específicos, estes que caracterizam não só a biografia e a memória do Bairro Cidade Baixa, mas especialmente a história da cidade de Porto Alegre. Os entrevistados escolhidos para esta análise são o Morador Sérgio Traunetti, o Arquiteto Nestor Torelly Martins, responsável pela restauração do solar, e Leandro Teles que foi fundador do Movimento de Defesa do Acervo Cultural Gaúcho. Neste capítulo se oferecerá destaque para as memórias mais recursivas, estas que representam o patrimônio cultural, e que são articuladas como reminiscências coletivas da comunidade. Elas possibilitam a percepção da presença do espaço do entorno do Museu José Joaquim Felizardo, em um primeiro momento como coadjuvante nesta composição, uma testemunha silenciosa, que hoje através do reconhecimento, e atribuída sua importância, assume o protagonismo como um templo de articulação das memórias da cidade. É a constituição de um lugar de evocação das recordações mais pessoais, estas que invocam os antepassados, pessoas que talvez não estejam arroladas e presas por sua imagem em paredes e molduras, ou subordinadas apenas às referencias de feitos e importância. Mas a lembrança de indivíduos e memórias vivas, estas que fizeram parte do cotidiano de cada sujeito, deste construto coletivo, tornando o Museu como lugar de afeição e apropriação dos moradores.

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A implantação das linhas de bonde de tração animal, através do Caminho da Azenha (Av. João Pessoa) e da Rua da Margem (João Alfredo) contribuiu para a urbanização do local. A partir de 1880 novas ruas foram inauguradas, como a Lopo Gonçalves e a Luiz Afonso. A atual Rua Joaquim Nabuco também foi oficialmente aberta nessa época, batizada de Rua dos Venezianos, pois sediava o famoso grupo carnavalesco com o mesmo nome. O carnaval da Cidade Baixa era reconhecido e prestigiado na época, com destaque para os coros que movimentavam as ruas.

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Segundo Eclea Bosi, (1983), é importante destacarmos a dimensão social dessas memórias, e em que momento é possível avultar a importância do contexto social e suas normativas, e como estas se estabelecem. Também perceber qual a importância da dimensão subjetiva da memória, onde se encontra o litígio em que as tensões elaboram uma evocação ou um descarte destas imagens em uma perspectiva individual. Neste sentido a autora aponta que a dialética entre o indivíduo e o social, é onde se encontram estas articulações em destaque nas narrativas memorialistas. Bosi destaca que estas reminiscências individuais são pautadas por temporalidades atreladas ao contexto do tempo social, este que define o período onde estas lembranças foram constituídas. Quais as memórias e em que tempo elas foram perpetradas? Qual a geração que as vivenciou? Que imagens são produzidas a partir desta rememoração de um evento? Estas são perguntas que vão definir os rumos da composição do relato. No ato de recorda-las em um episódio, o individuo passa a encontrar-se em um evento onde que buscará a unidade com as memórias do grupo ao qual se reconhece. (BOSI, 1983, p. 339-347).

3.1 Os Personagens e suas Narrativas

3.1.1 Leandro Telles

O entrevistado Leandro Telles foi diretor da Pinacoteca Porto Alegrense, também atuou como procurador da Prefeitura de Porto Alegre. Sua importância especial em relação ao patrimônio da cidade se dá com a fundação movimento de preservação em 1976, este composto por um grupo de intelectuais que atuava em defesa da memória representada por espaços que estavam sofrendo com as propostas dos sucessivos planos diretores modernizadores, que não levavam em conta estes aspectos importantes da história da cidade. Segundo ALMEIDA (2004, p.85) estas mudanças radicais na estrutura da cidade vinham desde 1939, resultantes da administração de José Loureiro da Silva. Este propunha uma série de mudanças estruturais através do plano diretor da cidade. Ele ressaltava que para a conclusão deste processo de modernização, necessitaria haver uma associação entre a renovação do traçado da cidade em paralelo com o ajustamento das propriedades privadas que estavam localizadas às margens destes empreendimentos. Neste sentido apresentou uma solução para execução que seria um extenso processo de reorganização dos loteamentos, de

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modo a harmoniza-los às novas perspectivas construtivas. Estas antigas residências e prédios que eram característicos da cidade colonial, com uma pequena testada e muita profundidade, necessitariam oferecer espaço para os novos terrenos adaptados aos altos edifícios que eram previstos para ocupar agora o seu lugar, nas margens das avenidas recém-construídas. Neste sentido Leandro Telles no inicio de sua entrevista destaca que entre os anos de 1976 e 1979 foi onde ocorreu o surgimento do movimento em prol da preservação do patrimônio de Porto Alegre. Este grupo fortaleceu-se com a parceria de muitos artistas e intelectuais que participavam ativamente das iniciativas. Em sua narrativa destaca que a fundação do Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho foi em 05/10/76, movimento este que se tornou atuante em diversas áreas, até oferecendo cursos concernentes ao patrimônio histórico na Biblioteca Pública de Porto Alegre. Naquela época tinham bons nomes junto, o Francisco de Macedo, que mora logo aí, adiante, aqui no Edifício do Estúdio Histórico, ele participou também, participou desta campanha. [...]. Olha, na época eu dirigia a Pinacoteca da Prefeitura. Mas eu particularmente sou procurador aposentado da prefeitura, Mas fora da prefeitura fundei este movimento em 76. Isto era uma iniciativa particular né. [...] A gente doutrinava o pessoal que passava. [...] E o nosso o objetivo principal era catequizar acerca do valor do patrimônio histórico e acho que isso a gente conseguiu, que hoje todo mundo discute se um prédio de valor histórico é ameaçado, todo mundo defende, há um movimento popular em torno deste respeito, em torno disso etc. (Entrevista com Leandro Telles).

Segundo MEIRA (2008, p.447) o Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho teve grande influência na constituição e preservação do patrimônio do estado. Eles atuaram pela defesa de diferentes bens culturais, influenciando politicamente e atuando nas Câmaras Municipais e Prefeituras que se manifestavam pelos tombamentos de bens em suas jurisdições, em outros momentos até intervindo em outros municípios. Neste sentido o entrevistado segue destacando que no ano de 1976 o movimento passou a se mobilizar fortemente ensinando para a população os valores acerca do valor do patrimônio histórico. Então nós fundamos este movimento e começamos a batalhar, através de artigos de jornais, Correio do Povo na época nos auxiliou muito, a gente publicava manifestos do movimento no Correio, sobre várias defesas, até defesas de cemitérios de valor artístico, onde se acham túmulos, que é o caso do nosso cemitério da Santa Casa, em que grandes escultores nacionais ali deixaram sua passagem. (Entrevista com Leandro Telles).

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Ele segue destacando que neste período o patrimônio Porto Alegrense estava passando por um grave momento de abandono. Era um período em que não se ponderava sobre o assunto, era muito comum os prédios de valor histórico e arquitetônico ser destruídos pela especulação imobiliária, esta que não respeitava nenhuma diretriz, tornando-se a pior inimiga do patrimônio histórico da cidade.

Figura 9 Leandro Telles - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre

Sobre a preservação de prédios que estavam ameaçados de demolição, Leandro ressalta que diante das diversas iniciativas foi proposta a reunião artistas plásticos no intuito de retratar estes prédios. A sugestão deu-se em que os artistas se alocariam em frente ao prédio e produziriam um retrato. Esta iniciativa foi aplicada em vários prédios de interesse patrimonial na cidade. Neste sentido o entrevistado ressalta que: Não foi só o Solar, nós retratamos vários prédios, inclusive a própria prefeitura nós retratamos uma vez. Nós retratamos a antiga sede da Germânia, da sociedade Germânica que foi abaixo pra colocarem edifício, para terem mais espaço, quando poderiam ter feito certo, deixado o prédio e construído o outro prédio atrás, mas não, aquilo foi a louco. Hoje, pelo nosso batalhar que a prefeitura resolveu instituir, deixar às vezes a fachada do prédio, construir atrás, aqueles prédios todos da Independência, os prédios antigos hoje, se alguém quiser botar abaixo para fazer um edifício, ele é obrigado a deixar as características do prédio, ou seja, a fachada, ou o próprio prédio, deixar a casa na frente e construir o prédio atrás, vocês podem observar isso aí, na Independência. (Entrevista com Leandro Telles).

O Leandro Telles ressalta que estas iniciativas de preservação dos prédios históricos porto alegrenses foi em especial resultado do movimento preservacionista que conduzia, este

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que visava chamar a atenção do poder publico em relação ao patrimônio histórico da cidade. Ele destaca o apoio de diversos artistas, nomes de grande valor nas artes plásticas do estado. Estes que ajudaram ativamente abraçando a causa e militando todos os sábados em ações em prol da memória representada nestes espaços.

Figura 10 Aquarela, de Alberto Scherer, Porto Alegre/RS/Brasil

Outro destaque importante foi o apoio do Hardy Vedana11, este que foi um grande pesquisador musical de Porto Alegre e artista popular. Referenciando Vedana ele destaca que: Ele juntou sua bandinha e vinha aos sábados. Eles às vezes saiam, tocavam de noite em locais noturnos e sábado de manhã sem dormir estavam lá nos auxiliando sem cobrar nada, até de vez em quando passam carteiros ai que às vezes paravam para ouvir, uns dois ou três me chamaram, tu não é aquele que fazia aquilo com a bandinha do Vedana, isso mesmo. E os artistas ficavam lá, a banda era o chamarisco, compreendeu? Além de se difundir a musica popular brasileira, ao mesmo tempo se chamava a atenção sobre o trabalho dos artistas, o trabalho dos artistas o povo chegava e via o pintor executando uma obra de arte em praça pública, coisa que pela primeira vez se fazia em Porto Alegre. [...] Era uma catequese, uma cura divina em praça pública, uma cura espiritual, o pessoal passava, ficava ali olhando, então tomavam conhecimento. Os artistas explicavam o que estavam fazendo e

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Hardy Vedana foi um maestro, tenor e clarinetista brasileiro. Nascido em Erechim, em 1928, ainda muito cedo veio para Porto Alegre, evento que lhe direcionou definitivamente para o campo das artes. No final dos anos 40 tornou-se músico de jazz, estilo em que foi clarinetista virtuoso. Ele foi o Idealizador e fundador do Museu da Imagem e do Som de Porto Alegre em 1997. Publicou também em 2006 a obra “A Eléctrica e Os Discos Gaúchos”, obre que tratava sobre a história da gravadora de discos existente em Porto Alegre entre 1914 a 1923. Escreveu também sobre a história do Jazz em Porto Alegre (1985), este que era um de seus gêneros musicais preferidos.

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eles tomavam conhecimento, do valor da obra de arte e do valor do patrimônio histórico. (Entrevista com Leandro Telles).

Leandro destaca que o objetivo destas ações estava na proposta de preservação do espaço do Solar. Era o ato de chamar a atenção sobre o valor daquele espaço de memória, e tudo que estava implicado no que significava o Solar Lopo Gonçalves para a cidade. Além de ter sido moradia do presidente da primeira Associação Comercial e da Câmara de Comércio Porto Alegrense, era um dos raros prédios que conservavam parte do passado, remetendo a primeira metade do XIX. Quanto à situação do Solar no período em que se propôs uma intervenção, o entrevistado destaca que o prédio estava em péssima condição. Era um pardieiro praticamente, e a gente temia que o solar fosse abaixo. Mas com grande surpresa nossa o Solar foi salvo, até aí eu acho que o Dr. Jair Soares12 teve grande desempenho no fato. Porque ele logo acendeu, eu me lembro de que no salão nobre da prefeitura eu estava presente quando foi feito esta transferência e gente se sentiu aliviado, quer dizer, missão cumprida. Sai lá do Salão nobre, pensando: Cumprimos mais uma vez a missão! Chutamos a gol. (Entrevista com Leandro Telles).

Um importante realce da entrevista deu-se na importância do movimento de preservação, e os caminhos percorridos para concretização dos desígnios propostos. O entrevistado destaca que o objetivo principal do movimento que era conscientização da população porto-alegrense, rio-grandense, acerca do valor do patrimônio histórico, e ressalta que em seu sentimento considera que foram atingidos. Leandro Telles relatou que acredita ter conseguido deixar um legado para as futuras gerações, um espaço para que outros se empenhem neste sentido. Ressalta a importância de terem conseguido mobilizar a atenção do Poder Público, acerca do valor do patrimônio. Antes do movimento não existiam leis de tombamento ou de arrolamento de patrimônio. Depois que nós começamos com esta campanha começaram a surgir leis de vários municípios do Rio Grande, inclusive Porto Alegre. No tempo do Vilela, surgiu à lei de tombamento do patrimônio histórico. Anteriormente Tompson Flores também fez alguma coisa. Quer dizer que nós despertamos a atenção dos poderes públicos, tanto estadual como municipal, acerca do valor do patrimônio histórico. (Entrevista com Leandro Telles).

O Entrevistado segue o seu relato observando que acredita que hoje a consciência riograndense foi despertada em relação à importância destas questões. Ele faz referencia ao “O espírito do povo”, este que teve a sua atenção desperta sobre o patrimônio histórico. Sobre o Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho, destaca sua satisfação e senso de dever 12

Jair de Oliveira Soares (Porto Alegre, 26 de novembro de 1933) é um político gaúcho filiado ao PP. Foi governador do Rio Grande do Sul pelo PDS de 1983 a 1987. Foi ministro da Previdência no governo João Figueiredo, vereador de Porto Alegre, deputado estadual e federal.

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cumprido, em principal ao objetivo que era conscientizar a alma do Rio Grande acerca do Patrimônio.

3.1.2 Nestor Torelly Martins

O Arquiteto Nestor Torelly Martins foi o responsável pela obra do restauro do Solar Lopo Gonsalves. Além disso, foi um ativo participante de diversos movimentos em prol do patrimônio Porto alegrense, também professor em diversas universidades no Rio grande do Sul. Ele da inicio ao seu relato destacando que Solar era um prédio que há muito tempo chamava atenção da categoria dos arquitetos, sendo que não foram poucas as vezes que a hipótese de preservação do espaço foi destacada.

Figura 11 Nestor Torelly Martins - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre

Ele ressalta que este desejo de preservação do espaço do Museu, veio a se concretizar em um período onde participava do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico da Prefeitura de Porto Alegre. Foi neste momento em que assume a representação do instituto de arquitetos, que adveio a oportunidade de participar do processo de permuta entre a prefeitura e o ministério da previdência. Com o desenrolar das negociações em relação ao prédio, junto com a proposta de restauro surge também à necessidade de montar uma equipe que viesse a estar habilitada para a execução da obra. O entrevistado aponta que foi justamente neste

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período que houve a solicitação da sua ascendência do Estado do Rio Grande do Sul pela prefeitura, para que eu pudesse se dedicar na realização deste projeto. De fato não foi somente a execução, pois nós tivemos que refazer inclusive a proposta arquitetônica. Ela tinha sido realizada por outro colega arquiteto, com outros critérios, e nós chegamos dentro de um consenso com outros colegas que seria mais adequado fazer algumas pequenas modificações na proposta arquitetônica de restauração, fazer realmente uma proposta de restauração, que pretendesse preservar as formas originais do prédio, tanto no seu interior como no seu exterior. (Entrevista com Nestor Torelly Martins).

Torelly afirma na entrevista que no período da proposta em relação ao Solar, havia uma disponibilidade financeira por parte da prefeitura em relação à obra, sendo que contrataram uma empresa que já oferecia experiência em restauro, por fim iniciando a obra o mais rápido o possível. Ele assinala que no decorrer da execução do restauro, previu a que a verba disponível não seria suficiente para o término da obra, então foi encaminhada uma proposta de financiamento para o restante do trabalho de restauro que ainda levaria mais um ano. Isso era janeiro de 80 eu creio, e a previsão é que se não houvesse faltado dinheiro a gente em junho de 81 estaria concluído. Mas de fato com a demora em liberar a verba acabamos concluindo apenas em 82, final de 81 inicio de 82. O interessante foi que na nossa chegada no prédio nos apercebemos do péssimo estado físico do prédio. Boas partes do prédio já não tinha mais cobertura, chovia pra dentro, os equipamentos de madeira estavam todos castigados, presumia-se que conseguiria se aproveitar uns 40 a 50 %, nem isso foi possível, boa parte do madeirame teve que ser integralmente recuperado, integralmente trocado. (Entrevista com Nestor Torelly Martins).

O entrevistado destacou que o madeiramento teve de ser integralmente refeito, desde a sua estrutura até a própria cobertura. Mas mesmo em meio a estes percalços o objetivo foi alcançado com sucesso, recuperando com isso a forma original do prédio. Neste sentido Torelly afirma que acredita que o objetivo inicial proposto com a elaboração do projeto concretizou-se, obtendo-se os resultados indicados através do cronograma proposto, em especial pela elaboração de um comparativo com a documentação e informações realizadas na pesquisa realizada sobre o prédio.

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Figura 12 Madeiramento em condições Precárias - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

Figura 13 Restauro do Madeiramento - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

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Abordando as dificuldades contrastando com o objetivo da restauração do prédio em sua forma original, Torelly fala do problema relativo às diversas mudanças realizadas na casa através do tempo. O prédio tem como característica também uma séria de ampliações, ele foi construído inicialmente numa dimensão menor e depois foi sendo ampliado, até incluir uma fase bastante atual, que inclusive foi retirada, que não permaneceu, fase construída com estrutura de concreto, com telha francesa, e outros materiais que não se coagulavam com a linguagem da arquitetura colonial que é a característica principal do Solar Lopo Gonçalves. (Entrevista com Nestor Torelly Martins).

Ponderando sobre os usos do espaço, o entrevistado dialogou sobre como concebia a proposta elaborada durante a composição do projeto, discorrendo sobre a necessidade da compreensão de que em todo trabalho de restauro, na maioria das vezes se prevê a reutilização do prédio mantendo as formas originais, e algumas vezes adaptando-o provisoriamente para um novo uso, fato este que se constituí em uma proposta para que a vida do prédio seja prolongada. No caso específico do Solar Lopo Gonçalves havia uma primeira proposta elaborada por outro arquiteto, esta que previa para alcançar espaços maiores para exposições, retirando uma série de divisórias que eram características na definição do Solar como residência. Seria a retirada dos dormitórios, da sala de visita, e as salas de estar, transformando tudo em um grande salão. Ele destaca que foi este o aspecto em que não concordou, pois considerou que sua proposta era realmente fazer uma restauração, e neste sentido o prédio deveria ainda manter suas características de residência, e foi o que se seguiu. Nós mantivemos as peças em tamanho ás vezes bastante reduzido, mas que teriam que ser reutilizadas para que se desse a elas um destino mais adequado, em função de uma instalação museológica, que era o que se pretendia. Eu, depois de algum tempo restaurado, já em uso pelo Museu de Porto Alegre, quando nós visitávamos o prédio, seguido o diretor do museu nos reclamava que era um absurdo ter se pretendido adaptar um prédio como esse pra museu, afinal de contas parecia que os arquitetos pensavam que casa antiga, casa velha era sempre a instalação ideal para museu. (Entrevista com Nestor Torelly Martins).

Neste sentido Torelly relata que alertou da importância do ponto de vista museológico, onde o museu careceria da necessidade de atualização, de condicionamento térmico, iluminação, e uma série de outras exigências. Ele finaliza seu relato destacando que a ideia inicial da restauração era transformar temporariamente o espaço em uma instalação museológica, e futuramente quando o Museu de Porto Alegre possuísse uma edificação atual anexa, transformar este prédio em um museu de ambiência, onde seria mobiliado

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integralmente seu interior, de maneira a caracterizar uma residência de uma família da metade do século passado em Porto Alegre.

3.1.3 Sérgio Traunetti

O entrevistado Sérgio Traunetti se identificava como descendente de imigrantes italianos. Morador muito antigo da Cidade Baixa, bancário aposentado, era proprietário de muitas das residências mais antigas localizadas nas cercanias do museu, na atual Rua João Alfredo.

Figura 14 Sérgio Traunetti - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre

Segundo relatou, ele era conhecido por seus inquilinos pelo apelido de "Barão da João Alfredo", devido ao grande numero de residências que possui na rua. Estes locatários utilizam hoje estas antigas residências como estabelecimentos de lazer noturno na Cidade Baixa. Ele inicia sua narrativa falando sobre suas origens italianas, sendo que sua família vinha de uma região cerca de Nápoles, em Trevinho. Ele conta que no momento em que sua mãe veio para o Brasil a Europa passava por um surto de gripe espanhola, sendo que neste período ela perdeu seis de seus irmãos. Por medo e devido à falta de recursos, ela decidiu por vir para o Brasil morar com os tios Gerardo e Maria Tortorelli, moradores da Rua da República esquina com a Rua José do Patrocínio. Já o seu pai passou por um trajeto diferente, saiu como emigrante da Itália para a Argentina, onde após um tempo acabou por vir para o Brasil. Primeiramente

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parando no porto de Rio Grande, e depois seguindo para Porto Alegre. Neste período em que chegou à capital trabalhou como jardineiro na casa dos Tortorelli. Quanto a suas memórias referentes ao Solar, Sérgio procura constituir um pequeno trajeto do prédio referenciando a história de Lopo Gonsalves como o primeiro presidente do sindicato de indústria e comércio. Ele relata que após o falecimento de Lopo Gonçalves, o prédio passou por herdeiros, sendo que após muito tempo o Dr. Albano Volkmer adquiriu a residência para estabelecer os empregados como moradores do Solar. Um importante fato que assinalou foi à disputa que ocorreu pela compra do prédio que esteve entre Albano Volkmer e a família de Traunetti, representada por um tio, um padrinho e seu pai, mas por fim Albano acabou vencendo a alterca e adquiriu o Solar. Ele ganhou, por que quem iria comprar seria um tio meu, meu pai e o meu padrinho, né, eles se uniram para comprar isto daqui, mas o Dr. Albano chegou primeiro, e ficou com o Solar. Porque ele tinha fábrica de velas na ilha. Porque que tem a ponte de pedra? Porque a ponte de pedra ligava o continente com a ilha. (Entrevista com Sérgio Traunetti)

Traunetti distingue as diferenças na constituição do bairro no período em que sua família era residente na região, destacando que o Solar localizava-se de frente para o Riacho. Ele relata que seu avô comprou um pequeno trecho de terra na beira do arroio para ali construir diversas residências. O entrevistado ressalta alguns dados do cotidiano do antigo bairro que permeiam a sua memória. Um dos importantes destaques esta no grande fluxo de comércio que ocorria no arroio dilúvio13, ponto onde circulavam em barcos diversos pessoas com diversos ofícios oferecendo seus trabalhos para os moradores do entorno do arroio. O barquinho eu andei muitas vezes, passavam, por exemplo, era cômodo para minha mãe ela chegar aos fundos do quintal, passava o lenheiro, as casas davam o quintal para o riacho e a frente para rua da Margem. Então passava o padeiro, o galinheiro, ela escolhia a galinha, tudo pelo riacho, o alcochoeiro, isso não existe mais, a gente contratava o alcochoeiro, ele vinha com uma máquina de costura dentro do barco, ai descia, a gente dizia eu tenho o colchão, geralmente era de lã. Então ele vinha, abria os colchões, lavava a lã, abria a lã, batia, e depois fazia na máquina o colchão, e botava dentro, era o alcochoeiro. E tinha o lenhador que vendia uma talha de lenha, eu ainda tenho, que me deram de presente quando eu era criança, a serra q ele montava de cima e serrava toda a talha. Em tamanhos pra gente colocar no fogão a lenha. (Entrevista com Sérgio Traunetti)

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O arroio nasce na Represa Lomba do Sabão, localizada no Parque Saint-Hilaire em Viamão, e recebe água de afluentes como os arroios dos Marianos, Mato Grosso, Moinho, São Vicente e Cascatinha, para finalmente desaguar no Lago Guaíba, entre os parques Marinha do Brasil e o Harmonia. Seu nome era, originalmente, Arroio Sabão. Até a década de 1950, o Dilúvio apresentava águas muito limpas, e ganhou este nome porque costumava inundar os bairros vizinhos, como Menino Deus ou Cidade Baixa, em dias de chuva forte. Desaguava perto da Usina do Gasômetro, passando por baixo da Ponte de Pedra mas, com o crescimento da cidade, foi recanalizado para o curso atual, entre as pistas da Avenida Ipiranga.

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Através da constituição do relato do entrevistado, torna-se possível estabelecer uma imagem de um bairro cheio de vida, onde os relacionamentos eram articulados através do cotidiano, e representado nos diversos saberes populares. Neste relato encontram-se diversos personagens que faziam parte do dia-a-dia dos moradores, cenas que por vezes remetem a violência, a pobreza, e a empatia compartilhada na comunidade. Traunetti destaca um evento especifico onde desvela os perigos que cercavam a região. Neste tempo existiam às lavadeiras, tinha uma, a Cantalise, uma preta gorda, ela teve problema, ela era muito brigona. Eu defendia muito ela, um dia foi defender um sobrinho que tava gambá, e a policia queria mata-lo, aqui teve muito coisa né, a João Alfredo foi um lugar de muita morte. Quantas e quantas vezes, porque do lado da minha casa tinha uma ponte, que ligava o arraial a João Alfredo, né, então se chamava Avenida, aquele conjunto de casebres, antigamente se chamava Avenida, e quando entrava em guerra uma Avenida contra a outra, sobrava um esfaqueado, então eles atravessavam a ponte, com a faca enterrada e caiam na esquina. E a minha mãe já tinha água destilada, panos e tal, pra socorrer, e muitos morriam. (Entrevista com Sérgio Traunetti)

Para Traunetti é possível reconhecer o entorno do Solar como um ambiente intensamente ligado ás suas percepções, um lugar de evocação de uma diversidade de memórias e afeições, estas que ainda são rememoradas através da compleição da velha cidade, elemento recorrente nos relatos do entrevistado.

Figura 15 Arroio Dilúvio. - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman

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O entrevistado relata que as mudanças ocorridas através da elaboração do plano diretor da cidade eram muito radicais, sendo que afetava diretamente a vida dos moradores que estavam acostumados com a dinâmica do bairro, e neste sentido a proposta era justamente tornar diferente esta constituição da imagem urbana de apropriação dos moradores, substituindo-a por uma proposta modernizadora que unificaria os dois lados que eram divididos pelo arroio. Neste sentido o Solar acabou também por sofrer com a mudança, sendo por vezes até alvo de furto. Este lado estava trancado por causa das mudanças do Plano Diretor, eles queriam unir tudo, praticamente o Solar aqui caia quase todo, não ficava quase nada. É uma pena que tiraram muitas peças antigas daqui. O Solar por fora era muito bonito. Não viu na esquina, que eu tenho de ferro, tipo um toldo, antigo? Pois aqui, na escadaria principal era um deste tipo, e aí parece que o engenheiro que assumiu aqui, levou isso com ele. Aqui tinha outra parte atrás que demoliram. (Entrevista com Sérgio Traunetti).

Remetendo as suas memórias de convivência com a família de Albano Volkmer, ele relata que ficou por um período residindo com a família. Traunetti localiza o recinto usado como moradia pela família Volkmer como a o atual auditório do Solar. Ele segue oferecendo detalhes da constituição do prédio ressaltando a presença de uma escada lateral que Albano construiu para ser a entrada para residência da família. Ele conta que acabou por ficar com a família Volkmer devido a uma viagem feita por seus pais para Buenos Aires, um tempo onde adquiriu grande amizade com Teresinha, à filha de Albano. Meus pais foram para Buenos Aires e eu fiquei aqui uma semana com eles. E eu fiquei aqui com eles, eu não porque eu fiquei, mas eu fiquei. E como eu e a Teresinha, nós fazíamos criação de galinha aqui, então a gente cuidava das galinhas. [...] E tinha os empregados para cuidar, até a parte dos fundos, ali se plantava muito milho, uma vez eu plantei tomate, eu e a Teresinha, aipim também né. (Entrevista com Sérgio Traunetti).

Quanto à família Volkmer, ele ressalta que Alice esposa de Albano era uma das maiores orquidófilas de Porto Alegre na época.

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Figura 16 Bodas de Ouro de Albano Volkmer (1962). No centro da foto, Albano, sua esposa e filha que residiram no Solar. Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer

Ele conta que embaixo do auditório havia um apartamento, lugar onde ficavam as orquídeas, um fato que se destacava pela grande beleza das flores. Ele segue o relato discorrendo que na parte dos fundos do terreno do Solar quase ninguém possuía acesso. Era o espaço onde albano deixava as velas para a secagem no Sol. Estas eram postas em bandejas grandes por toda a parte dos fundos do terreno. Também havia a existência de um grande tanque, onde depois de confeccionadas, estas eram estas resfriadas nas aguas. Neste sentido Traunetti relata: O tanque ficava aqui, perto da casa onde eu morava. Nessa casa que tá caindo agora, morreu o dono, e tá caindo, caiu todo o teto, é uma pena né. Aqui na divisa. Aonde tinha a tipografia. Antigamente eram meus padrinhos, que tinham oficina de galvanoplastia, eles vieram da Itália para restaurar, pra restaurar não, na época pra fazer aquela douração no Palácio Piratini, toda aquela parte que era de ouro ali, então, foram meus padrinhos e meu sogro. Eu casei com a sobrinha do meu padrinho. (Entrevista com Sérgio Traunetti).

Justificando o porquê de Albano morar no Solar, que a principio era apenas uma cara reservada para residência de empregados, Traunetti ressalta que devido a uma crise financeira, a família Volkmer se viu obrigada a vender suas propriedades para poder dar conta das dividas contraídas por um filho que havia empenhado os bens em corridas de cavalos. O Dr. Albano tinha uma filha, a Teresinha, era solteira né [...] Eles foram para Alemanha, passear, o casal e a filha. E eles tinham um palacete na Independência, aí quando eles retornaram, o filho tinha torrado tudo no Prado. Tinha uma dívida enorme. Aí ele teve que vender o palacete dele e

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vim morar com os empregados aqui. O morro da lomba do Pinheiro era todo dele, era a chacra dele. Ai ele vendeu o terreno lá da ilha e veio pra cá. Ele morou aqui até vender para uma empresa que queria fazer edifícios, ai a prefeitura acabou comprando desta empresa. Aí ele se mudou para uma casinha, aqui na Luis Afonso, e terminaram todos os três, até a guria faleceu ali. Ele era provedor da Santa Casa. (Entrevista com Sérgio Traunetti).

Traunetti encerra sua entrevista destacando a sua afetividade pelo espaço do Solar, ressaltando a sua beleza e como aquele lugar resgata as suas reminiscências. O Solar para o entrevistado é parte constituinte de sua história e memória, um lugar de paixões, uma referência daqueles que já se foram, um reflexo da velha cidade, uma menção para a lembrança de seus antepassados. Um dos últimos destaques oferecidos se da para a presença da magnólia

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em frente ao prédio, fato que desperta nele grande empatia. [...] é uma

Magnólia. Foi da época dos escravos eu acho. E não tem em Porto Alegre outra árvore de Magnólia. Quando ela dá flor, lá da esquina a senhora sente o perfume da Magnólia. (Entrevista com Sérgio Traunetti).

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As magnólias são árvores apreciadas como ornamentais em jardins, principalmente em locais de clima temperado ou subtropical. Produzem abundantes flores brancas ou rosadas, grandes e perfumadas.

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Considerações Finais

Nos capítulos iniciais trouxemos uma análise que buscou fundamentar a produção da pesquisa, trazendo associado um debate teórico sobre as novas formas de fazer história, em especial enfatizando a História Oral como centro deste debate. Temas como patrimônio, cultura e memória, foram tensionados a fim de constituir um pano de fundo para a nossa análise, indicando a importância de trabalhos que protagonizem narrativas como centro do debate. Também lançamos importantes questões sobre as diferentes maneiras que concebermos o que compreendemos como museu, contrapondo a tensão existente em relação às formas como constituímos o que é ou não patrimônio. Na segunda parte da monografia encontramos um breve histórico do Solar, para nos localizar temporalmente em relação ao tema abordado. E por fim chegamos às narrativas que enfatizaram a perspectiva de distintos atores que narraram suas histórias em diferentes temporalidades e durações. Na entrevista de Leandro Telles, destacou-se a importância dos movimentos em prol da preservação do Patrimônio, estes que emergem de um reconhecimento da importância da preservação da memória como constituidora de patrimônio. Neste sentido a cultura seria “interruptor metodológico” que acionaria a interpretação da história, que, por conseguinte viria a produzir os seus símbolos. A cultura seria o uso do passado histórico como elo na produção de um presente. “A cultura é a organização da situação atual em termos de passado” (Sahlins, 1987, p.192). É possível perceber que a ação da história intervém e modifica essa ordem, definindo ordenação ao processo. A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. (...) as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação (SAHLINS, 1987, p. 07).

O processo de construção da história, tanto no âmago de uma sociedade, como na inter-relação de sociedades, busca resgatar as estruturas do passado em um processo que vai orquestrando o presente a partir dos símbolos do passado. Neste sentido poderíamos pensar no patrimônio como objeto destas disputas simbólicas, onde se dá esta transição temporal em que os símbolos do passado trazem sentido para o presente, assim como o presente passa a resinificar estes símbolos, assumindo novos significados dentro da cultura.

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Portanto se faz necessário que compreendamos o patrimônio material e imaterial como um pujante instrumento de análise da concepção da vida social e cultural. Nesta constituição o patrimônio possuiria agregado em si, uma importância como elemento de resistência, tornando-se um conceito essencial na valorização da diversidade cultural dos grupos sociais. Ele evocaria a força representativa da “cultura” esta que desafia as violências proporcionadas pela globalização. Quando utilizamos o conceito patrimônio cultural, é imperativo oferecermos ciência de que tratamos da dimensão da cultura do patrimônio ao qual estamos discutindo. Neste sentido, se faz necessária a discussão dos elementos que constituem esta noção moderna de patrimônio, que envolve questões primordiais como o conceito de cultura, a noção de pessoa, e a relação com o simbólico no processo de construção identitária de um indivíduo ou uma sociedade. A entrevista realizada com Nestor Torelly Martins ressalta o contexto social de intenso questionamento e transformação que marcaram a décadas de 70 a 80. É um período em que se destacavam as discussões que estavam no entorno da idealização de preservação do espaço do solar. Já existiam varias questões que permeavam este período, em especial no que tange o contraste existente com antigos ideais de preservação. Na atualidade, a afirmação de que os museus constituem lugares de memória passou a ser um lugar comum. Se nos anos 80 e 90 as investigações de Pierre Nora sobre os lugares de memória eram capazes de produzir impactos criativos, hoje seus impactos tendem a ser absorvidos, neutralizados e naturalizados. Passou a ser praxe de elogio institucional a afirmação de que o museu “x” ou “y” é um lugar (ou casa) de memória; como se a memória tivesse valor em si mesma e fosse a expressão da verdade pura e do supremo bem; como se o esquecimento fosse o mal ou um vírus criminoso que devesse ser combatido, deletado, destruído. De qualquer modo, compreendidos como casas de memória, os museus entraram no século XXI em franco movimento de expansão e continuam exercendo, em nome de sujeitos mais ou menos ocultos, o seu poder que tanto serve para libertar, quanto para tiranizar o passado e a história, a arte e a ciência. (CHAGAS, 2011, p.11-2)

Neste sentido evidenciou-se a necessidade da inserção do museu posicionando-se em diálogo com movimentos sociais e a composição de suas coleções, onde se demonstrava imperativa uma verdadeira metamorfose no conceito da instituição como um espaço compartilhado e não estático. Já na década de 80, a nova museologia já destacava uma oposição ao que seria o conceito de museu tradicional, criticando a postura elitista, esta que proporcionava um distanciamento do cotidiano dos sujeitos e grupos. Em oposição ao tradicionalismo, apontavam que os museus deveriam assumir sua função social e

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ultrapassando os limites de uma tradição que ressaltava a circulação de bens culturais de uma elite. Já Sérgio Traunetti, faz menção às memórias afetuosas, familiares, que também possuem sua ação no âmbito do coletivo, mas que em especial remetem a sua experiência pessoal com o espaço do Solar. O entrevistado atribuiu ao Solar a função de “guardião” de memórias da comunidade, em especial por sua referência que sempre participou do cotidiano dos moradores por décadas. A configuração que seu Traunetti oferece as suas reminiscências merece um destaque especial, pois sua constituição se da em um âmbito da experiência coletiva e individual. Devido à idade avançada e sua boa memória, a forma como ele articula as lembranças a respeito de si, e dos diversos personagens ao qual cruzaram sua trajetória, seus relatos acabam por produzir um perfil denso que apresenta uma vasta informação que transita entre as memórias coletivas e individuais constantemente conectadas. Percebe-se a referencia proposta na obra de Maurice Halbachs (1990, p.51-2), que incide na afirmativa de que a memória individual existe sucessivamente partindo de uma memória coletiva, sendo que estas as reminiscências são fundadas no coração do grupo. A procedência de vários conceitos, meditações, emoções, indiferenças que atribuímos a nós são infundidas pelo grupo. Neste sentido a proposta de Halbachs sobre a constituição da memória individual aponta para a experiência de uma “intuição sensível”. A memória individual, edificada por meio das referências e lembranças proporcionais ao grupo, destaca uma perspectiva sobre a memória coletiva. Este olhar sobre o que é produzido e narrado deve sempre ser considerado percebendo a função exercida pelo indivíduo no interno do grupo, e suas relações cultivadas com outros meios (HALBACHS, 1990, p.55). Ecleia Bosi (1983) propõe uma reflexão importante sobre a constituição das memórias dos mais velhos. A Autora destaca que as memórias produzidas possuem uma função social exercida no decorrer da vida, e ocupam uma parcela expressiva da memória dos velhos, sendo que tal fato não seria uma ocasionalidade. A memória produzida na velhice é uma construção de indivíduos já com idade avançada, mas que em um momento foram pessoas ativas que exerciam funções e trabalho. Neste sentido a composição da narrativa é uma produção de homens e mulheres que já não mais se constituem como membros ativos na sociedade, mas que em outro momento o foram. Neste sentido isto denotaria que os idosos, a despeito de não serem mais instituidores da vida na contemporaneidade em meio ao seu grupo social, eles passam a possuir uma nova função social. Esta função se daria no encargo das reminiscências, no sentido de relembrar para os mais jovens a história, sua origem, seus feitos e aprendizado. Na velhice as pessoas

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passam personificar a memória da família, da comunidade e sociedade. É importante ressaltar que não é só o tempo "socialmente permitido" que os idosos possuem para destinar às suas memórias. Porque as coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos. Onde está nossa primeira casa? Só em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos. Os deslocamentos constantes a que nos obriga a vida moderna não nos permitem o enraizamento num dado espaço, numa comunidade (BOSI, 1983, p. 362).

A Autora lembra que os anciões possuem uma memória social atualizada, contextualizada e determinada, se constituindo em expectadores de uma perspectiva concluída e bem localizada no tempo. Diferente dos mais novos, que estão em uma transição absorvidos nos conflitos e contrassensos de um tempo presente que os exige constantemente, carecendo de experiência para organizar as lembranças. As três entrevistas constituem perspectivas que denotam momentos distintos na história do Solar Lopo Gonsalves, mas que nunca deixam de se constituir em referência para o tempo presente. Leandro Telles representa o intuito preservacionista que percebe o patrimônio como fundador memórias que são recorrentes a constituição da cultura de uma cidade ou grupo. Já o arquiteto mostra a força da ação do estado como instituidor deste patrimônio, estabelecendo o espaço como uma referencia para a história da cidade, e determinando elementos que passam a ser apropriados pela sociedade como parte do seu presente. Já Seu Traunetti representa a memória popular, aquela que se apropria do espaço como parte de sua história, referencia de suas lembranças, e importante elemento constituinte de sua identidade. Outro importante destaque deve-se a importância que ambos entrevistados atribuíram ao Solar, o reconhecendo como um espaço de pertencimento, mas acima disso ressaltando sua estima como patrimônio cultural da cidade, por vezes o referenciado como “o guardião das memórias” da comunidade. Neste sentido um elemento indissociável destas narrativas produzidas através das entrevistas orais é a memória. Desvelou-se através da análise destes relatos, uma série de acontecimentos onde as vivências e experiências que até então eram desconhecidas, foram passiveis de serem evocadas através da memória que o narrador ou contador de histórias recorreu. Foi à possibilidade de uma transição através da temporalidade, esta que emerge em uma riqueza de detalhes através do que é contado ou narrado. São elementos conservados na memória de quem conta, e agora também partilhada nas reminiscências de quem ouve.

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