Sobre a destruição da Rua Augusta

September 14, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: City and Regional Planning
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Rossilley, você me pergunta como vejo a destruição da Rua Augusta. Desculpe, não consigo responder assim, sem entrar em questionamentos, pormenores e fatos. O texto a seguir propõe-se responder essa pergunta sob o meu ponto de vista.
Conheço a rua Augusta há muitos anos. Durante a década de 90, eu pegava prostitutas lá (e em outros locais da cidade). Frequentei alguns inferninhos de sexo explícito no começo dela, esquina com a praça Roosevelt, também nessa época. Sempre passo por lá, seja para ir ao cinema (Unibanco, agora Itaú), comer em lanchonetes próximas a ele, indo ao centro da cidade, ou a teatros no caminho (o Club Noir, por exemplo), ou ao grupo de teatro do qual participo (Cemitério de Automóveis), na Frei Caneca, paralela a ela. Venho acompanhando as lutas pelo Parque Augusta desde que começaram, embora de longe.
O que é destruir uma rua (ou um imóvel, ou um parque, ou um bairro, etc.)? Há muito tempo eu tento entender o que seria isso. Até o final do meu curso de Jornalismo, eu não entendia por que um imóvel deveria ser tombado. Nunca dei valor devido ao patrimônio cultural de uma cidade como São Paulo. Mas um dia fiz uma matéria, visitei o Condephaat e comecei a entender o que esse patrimônio cultural seria, identificado, na época, com o estado de um imóvel antigo e representativo de uma época. Apesar disso, considero – ainda – que o mundo é dinâmico, e que no lugar de uma coisa entra outra. Ocorre que muitas vezes as coisas que entram no lugar das antigas não fazem (ou fazem) jus a um prisma de civilidade que a gente pode – ou não – considerar próprio (ou mesmo impróprio) para determinado local, considerando sua história, sempre. Moro num bairro em Taboão da Serra em que condomínios de grande porte não dão espaço para a vida em comum, por exemplo. Muitos acham isso adequado ou aceitável. Eu, não. Reduzir uma vida fértil de convívio e mesmo conflito a um apanhado de imóveis cuja lógica assemelha-se à de bunkers não me parece muito simpático. No caso do imóvel em que moro, nada havia aqui de relevante nesse sentido – havia um clube de campo, por exemplo. Mas na rua Augusta é diferente.
Tem ocorrido uma valorização excessiva dos terrenos do centro de São Paulo. Muitos empreendimentos imobiliários de grande porte tendem a dominar a paisagem no local, e os efeitos já se fazem notar fortemente. Os terrenos, que se valorizaram também por políticas de melhorias da região pela Prefeitura, tendem a sair das mãos de uma população que não tinha – nem tem – um estilo de vida muito elevado – embora mais elevado que de outras regiões –, mas que responde por uma vida cultural intensa e altamente rica – o que todos admitem, dada a grande proliferação de movimentos culturais na região, que se espalharam por toda a cidade e que servem como referência, inclusive no exterior. Os teatros de pequeno porte, devido a esse movimento de valorização da região e da consequente especulação imobiliária, ficam difíceis de manter, ainda mais por pequenos grupos, que dominam a área, os bares tendem a ficar mais caros, para atender um público diferenciado, também composto por turistas, atividades ilegais mas que promovem uma imagem de bas-fond de que muitos gostam, como a prostituição ou a proliferação de saunas e divertimentos gays, etc., tendem a sofrer movimentos de higienização que as deslocam para outras áreas, agora menos nobres, etc. Toda essa fauna de grande valor cultural, não restrita a prostitutas ou bêbados, tende a desaparecer com a transformação da rua e da área em um bairro residencial chique higienizado. Como comparar, por exemplo, uma rua Augusta com um bairro de Higienópolis, cuja população nem quer estações de metrô que possam "contaminar" a área? Eu admito que se não fosse uma Augusta muito provavelmente eu não teria aonde ir para compartilhar meu conhecimento e criar arte e jornalismo. Não sou um habituée, admito, tão frequente assim da área, mas dependo de contatos que fiz esse tempo todo para existir enquanto artista e intelectual. É na rua Augusta que as coisas começam a acontecer – embora não se restrinjam a ela.
Mas é preciso fazer restrições também a esta forma de pensar. Pois todos sabem que qualquer cidade de grande porte passa, historicamente, por processos desse tipo. Só para citar uma citação mais à mão, o dramaturgo David Mamet cita que na Nova Iorque de décadas passadas havia uma decadência urbana terrível, superada depois e que causou, de certa forma, o desaparecimento dos teatros off-Broadway. Mas ele não fala isso com tom de lamento. Ao contrário: estranhamente, ele admite que só existe mesmo Broadway e olha lá em termos de teatro que vale a pena chamar de teatro. Por outro lado, poucos lamentariam como desnecessária a melhoria das condições urbanas na região. Afinal, os Satyros, na Praça Roosevelt, contribuíram fortemente para a revitalização da área. Por outro lado, poucos negariam que a valorização imobiliária promove, de forma desconfortável, o fechamento de espaços como o CIT-Ecum, na rua da Consolação, que sediou espetáculos teatrais de alto valor cultural durante um bom tempo, além de servir de espaço para mostras artísticas que deixaram frutos inestimáveis.
Mas a rua Augusta não é somente isso, como todos sabem. Nos fins de semana, ela é o lugar em que a garotada se encontra. E em que todos se encontram. Ela promove uma diversidade dificilmente vista em outros locais da cidade, cultural, artística ou mesmo humana. Agitada, a rua Augusta serve como lugar de efervescência cujos frutos são impossíveis de prever. Sua transformação num bairro de classe média alta ou mesmo de classe alta pode destruir realmente tudo o que de bom a caracteriza – e sabemos que, em termos de turismo, o que não pode parecer tão bom – um bairro devidamente decadente – pode ser muito bom, tanto em termos de prestigio como em termos econômicos. Um turista vai visitar uma rua Augusta higienizada para quê? Quem visita Higienópolis, por exemplo? Além da FAAP, o que mais existe por lá? Na Augusta, os locais são em número imenso e os habituées, extremamente representativos de um estilo de vida que tende a acabar.
Sobre este último ponto. A questão da revitalização do centro e de destruição da rua Augusta aparece num momento histórico em que o afã do politicamente correto domina os comportamentos a partir da letra da lei. Muitos bares e teatros não podem mais assumir, sem efeitos deletérios, comportamentos inadequados – lei do silêncio, por exemplo. Há todo um movimento local, regional e nacional, na política brasileira, pelo desaparecimento dos chamados antros de perdição, em que populações inteiras de gente em grande medida desqualificada (no sentido de não ser qualificável) vive e promove uma riqueza cultural inestimável e antenada àquilo que tanto ocorreu e ocorre em outros países. Mas, pergunto eu, e a Silver Factory do Andy Warhol o que no fundo era? Um local em que essa então gentalha passou a existir, e em que por méritos próprios motivou uma mudança radical na arte daquela cidade e do resto do mundo. Por que temos de nos restringir, culturalmente falando, a algo tão politicamente correto como padarias Ponto Chic ou teatros de suposto alto nível cultural, que só fazendo o que o sistema (o mainstream) manda e diz que é bom?
Eu era um sujeito ensimesmado de classe média chilena que continuaria assim se não estudasse, se tornasse intelectual em lugares como a rua Augusta, virasse ator em points do local e agora dirigisse um grupo que só vê essa região como adequada para se reunir. Por outro lado, se a Augusta fosse de fato decadente eu sequer passaria por lá; ela é aquilo que eu aceito como mínimo para poder frequentar, mas ao mesmo tempo não tão boa para me impedir de pagar um café em suas lanchonetes. Claro que não é só isso que está em jogo: com a venda dos imóveis sendo construídos a toque de caixa na região, a população também deverá mudar, e com ela muito provavelmente eu vá, passo a passo, sendo desmotivado a dividir minhas mesas com amigos, dado esse tipo novo de gente. Ou seja, algo com certeza está acontecendo e irá acontecer por lá; só não sei se a ponto de destruir a região para substituí-la por algo anódino que não contribua em nada para a riqueza cultural da região. Falta, a meu ver, ao que parece, a percepção de que sempre existe um meio termo adequado para manter conquistas históricas de uma população excluída mas potencialmente rica sem contudo impedir que a cidade possa melhorar o nível urbano de áreas degradadas. Mas cumpre perguntar: o que é degradação? Prostituição? Sauna? Isso para mim é vida. Procure algum lugar em que isso não exista. Tente tirar o mal da vida que o sal também irá embora.

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