Sobre a encenação: espelho do tempo.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Cinema de Animação e Artes Digitais

Louis Allen Thomas Mingoti Poague

SOBRE A ENCENAÇÃO: espelho do tempo

Belo Horizonte 2015

Louis Allen Thomas Mingoti Poague

SOBRE A ENCENAÇÃO: espelho do tempo

Monografia apresentada ao Curso de Cinema de Animação e Artes Digitais da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Cinema de Animação e Artes Digitais.

Orientador: Carlos Henrique Rezende Falci

Belo Horizonte 2015

Louis Allen Thomas Mingoti Poague

SOBRE A ENCENAÇÃO: espelho do tempo

Monografia apresentada ao Curso de Cinema de Animação e Artes Digitais da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Cinema de Animação e Artes Digitais.

__________________________________________________ Carlos Henrique Rezende Falci (Orientador) - UFMG

__________________________________________________ Jalver Machado Bethônico - UFMG

Belo Horizonte, 07 de julho de 2015.

RESUMO

Podemos compreender a encenação de uma imagem como resultado direto entre as capacidades de expressão do dispositivo e a forma como o autor do filme reagirá a elas. Para o Cinema, essa reação parece estar intimamente ligada com a compreensão do autor sobre o tempo: ou o autor subordinará o dispositivo ao movimento ou o colocará em primeiro plano, independente da montagem e disposição dos atores em cena. Essa pesquisa tem como objetivo compreender o que fundamenta essas duas posições do autor, e quais são as implicações ao se planejar um conteúdo visual. A primeira posição é a usual do cinema clássico. Já a segunda posição pode ser denominada de ‘espaços quaisquer’, termo introduzido por Gilles Deleuze em seu livro ‘A imagem-movimento’ (1983). Os elementos fílmicos aqui analisados para discutir as duas posições serão a velocidade de projeção, a moldura do enquadramento, o corte, o fora de campo (ou extra-campo), a frontalidade dos atores, o princípio do observador invisível, a imobilidade e memória do espectador, entre outros que regulam a composição de uma cena. A partir do conceito da escolha e recomeço propostos por Kierkegaard, nesta pesquisa também nos propormos a relacionar um ‘espaço qualquer’ com a estética do Impressionismo, movimento artístico ocorrido na metade do século XIX em contraposição à fotografia. O movimento de um observador diante de um quadro impressionista, de afastar-se e/ou aproximar-se, origina um eixo de profundidade puramente temporal, desterritorializando o espaço que o observador habita. Entre um perder em um se encontrar, seus passos habitam um palimpsesto de conteúdos espirituais, equívocos que só se podem revelar num processo de agenciamento entre o quadro e espectador. No filme, essa desterritorialização parece ocorrer no quanto uma imagem é capaz de induzir o espectador a criar um virtual não prolongado, tanto entre os planos (montagem) quanto no extra-campo, que não se justifica pelo seu conteúdo, deixando isso inteiramente a cargo do espectador.

Palavras-chave: Encenação. Deleuze. Impressionismo. Agenciamento. Direção.

ABSTRACT

Staging an image can be viewed as a straight dialogue between the expressive capacities of a device and its handling by an author. In Cinema, this handling seems intimately related to the author's comprehension about time. Either the author will control time as a function of movement or choose the movement as a function of time, regardless of the montage and actors on stage. This research aims to understand the reasons that underlie these two positions of the author as well as the implications when planning a cinematic image. The first position is derived from normative (classic) cinema. The second can be labeled as 'any-spacewhatever's', a term first introduced by Gilles Deleuze in his book 'The movement-image' (1983). The film elements analyzed to discuss these two positions will be: the projection speed, the frame, the cut, the off-screen, frontality of the actors, the invisible observer, the immobility and memory of a spectator, among others, which regulate a scene composition. Based on the concepts of choice and resumption proposed by Kierkegaard, we also propose to relate the concept of 'any-space-whatever' with the aesthetics of the artistic movement of Impressionism, which occurred mid-nineteenth century, as opposed to photography. The movement of an observer in front of an impressionist painting, of moving away or approaching to it, creates a purely temporal depth axis, deterritorializing the space an observer inhabits. The viewer gets lost in his visual discoveries. His footsteps inhabit a palimpsest of spiritual contents and misconceptions that can only be revealed in a process of interaction between painting and observer. In a film, this deterritorialization seems to occur on how much an image is capable of inducing the viewer to create a non prolonged virtual image. This image is not justified by its contents and happens between the shots (montage) as well as in its off-screen, thereby offering this function entirely to the spectators.

Keywords: Staging. Deleuze. Impressionism. Interaction. Directing.

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Caminhantes confinados............................................................................. 18 FIGURA 2 – Espaços constatados do início, meio e fim do filme................................... 18 FIGURA 3 - 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men – EUA – 1957), de Sidney Lumet................................................................................................................................ 29 FIGURA 4 – O Diabo a Quatro (Duck Soup – EUA – 1933), de Leo McCarey.............. 30 FIGURA 5 – Um Corpo Que Cai (Vertigo – EUA – 1958), de Alfred Hitchcock........... 30 FIGURA 6 - Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy – EUA – 2014), de James Gunn.................................................................................................................................. 31 FIGURA 7 – Modelos em cone........................................................................................ 32 FIGURA 8 – Oito e Meio................................................................................................. 35 FIGURA 9 – Momentos de Le Passe-Muraille..............................................................

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FIGURA 10 – Fotograma de O Eclipse...........................................................................

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FIGURA 11 – Fim de O Eclipse......................................................................................

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FIGURA 12 – Espaço segundo lâminas........................................................................... 43 FIGURA 13 – Fotogramas sucessivos de 00:08............................................................... 44 FIGURA 14 – Sequência de Zabriskie Point.................................................................... 45 FIGURA 15 – Zoom-out de Era uma Vez no Oeste......................................................... 46 FIGURA 16 – Transformação infinita da linha em 00:08................................................ 49 FIGURA 17 – O vai e vem impressionista em 00:08....................................................... 50

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................

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2 PROBLEMÁTICAS DO ESPAÇO: DAS CONVENÇOES AOS ESPAÇOS QUAISQUER................................................................................................................

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3 SOLUÇÕES VISUAIS...............................................................................................

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................

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REFERÊNCIAS...........................................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Todo ser, objeto e elemento da natureza é dotado de uma interface cujas características, por consequência, conjecturam como será sua comunicação com o outro e com o meio em que se situa. A interface pode ser trabalhada como uma superfície, responsável pela ordenação dos dados externos em mensagem para um dos agentes da comunicação. Ao segurar uma fruta, a fruta determina como segurá-la, ao folhear um papel, seu formato condiciona uma escrita. Uma segunda forma de trabalhar a interface é como mediação. Entre a rua e uma loja, a vitrine se situa. Entre a voz de duas pessoas, uma língua se interpõe. O meio é tomado como um articulador de uma mensagem, mas submissa a um código, como a fala, por exemplo. Se houve ruído, atribui-se à falta de entendimento ou ao emissor, que não soube usar o meio, ou ao receptor que não soube interpretar o que recebia. Ao meio em si, é negado o testemunho. A noção do objeto como um aparato que, ao ser domado, garante ao sujeito um conhecimento imutável, analítico e científico do mundo, data desde a Grécia antiga (Aristóteles na essência e Platão com o Inteligível) e foi perpetuada pelo racionalismo em Descartes, tornando-se senso comum no ocidente (FALCI; SOUZA, 2013). Após dois milênios, porém, fatos significativos contribuiriam para uma mudança no tratamento com a interface. Artistas passam a pintar um espaço não mais regulado por preceitos matemáticos, mas por múltiplas impressões do olhar, e à superfície plástica do quadro se colam revistas e objetos. Reinam os ready-mades, e à luz se decreta um novo suporte: figura-se o que é chamado Cinema. Em pouco tempo, a interface teria reconhecida a sua subjetividade. A ela é dada voz, e na construção de uma verdade encontramos seus desvios. A interface passa a ser trabalhada pelo agenciamento (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Compreende-se que o Cinema surge, oficialmente, no ano de 1895, com a exibição do Cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Cubbit (2004) afirma que esse primeiro momento constitui um fator social significativamente importante, uma vez que seus participantes, mesmo imóveis, não eram levados à contemplação dos quadros de arte, mas sim a um espanto e agitações compartilhadas, públicas, de um evento. Concebido como mercadoria para o lazer, o Cinematógrafo representa a modernização das cidades e a velocidade do automóvel. “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière” (La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (le Premier Film) – França – 1895), começa com mulheres bem vestidas saindo de seus turnos e com a

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liberdade da bicicleta usada pelos funcionários (quarenta anos depois, a bicicleta se tornaria símbolo do neorrealismo italiano). O Cinema “surge na dialética entre os discretos movimentos do relógio da fábrica e a fluidez de seus operários à deriva.” (CUBBIT, 2004, p.19-20, tradução nossa) 1. Em pouco tempo, porém, ele seria regularizado pela indústria. A sua interface seria reduzida à submissão de se narrar histórias, várias delas do teatro e da literatura romântica, o que determina o cinema clássico. Também não tardou até que primeiras teorias acerca do objeto Cinema surgissem. Em 1929, V.I. Pudovkin publicaria Film Technique. Nela foram expostas as primeiras práticas narrativas da indústria, que teriam por pilar a montagem paralela segundo a atração do olhar. Para Pudovkin (1929), o cinema seria análogo ao trabalho do poeta; o diretor, pelo visor da câmera, 'recortaria' a realidade e ordenaria seus pedaços, conferindo ritmos similares aos das palavras. Essa metáfora, que alimenta de forma implícita o Cinema como instância da representação e da redundância (BORDWELL, 1985), é vista em diversos materiais teóricos, e, se por um lado confere lugar comum para a análise em um filme, problematiza para o realizador o estudo de sua interface, uma vez que ela é distorcida e reconfigurada em função da teoria do cinema clássico. De acordo com Comolli (2008,p.174), essa teoria “mascara, com demasiada freqüência (sic), o caráter eminentemente precário, fragmentário e, por fim, subjetivo que é tão somente o seu trabalho.” (COMOLLI, 2008, p.174), ou seja, o seu agenciamento. E o que se entende por um agenciamento? Resumidamente, para Deleuze e Guattari (1995), compreendemos o agenciamento como um estado de mistura entre sujeitos, um conjunto heterogêneo de multiplicidades que formariam um corpo sem órgãos ou uma máquina abstrata. Este grande corpo teria por natureza a própria multiplicidade, garantindo que as relações que o compõem possam sempre colocar em jogo sua unidade. Também, as influências entre seus componentes (ou sujeitos) são de uma ordem qualitativa, de intensidades, impedindo qualquer divisão matemática ou hierárquica para este corpo. Como um rizoma, o agenciamento nunca se fecha, sempre encontra uma saída para se reconfigurar, crescer e explodir em todas as direções. As expressões deste corpo também estão diretamente relacionadas às intensidades destes múltiplos que, por sua vez, só se alterariam caso houvesse uma mudança da natureza destes indivíduos. O importante, para essa pesquisa, é entendermos

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Cinematic time originates in the dialectic between the discrete movements of the factory’s clock and the fluidity of the flâneur’s aimless drifting.

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que suas habilidades simplesmente não podem ser decompostas ou atribuídas aos indivíduos quando tomados em separado. Elas só existem enquanto os elementos estiverem em interação. Nessa monografia, também discutiremos grande parte das teorias que compõem o Cinema clássico do ponto de vista de um diretor. Isso porque, segundo Rabiger (2008), um diretor é encarregado não só por transformar as cenas de um roteiro em imagem, como também responsável por garantir que os setores da produção de um filme dialoguem entre si eficientemente. Essa tradução imagética, para Bordwell (2008), se define por ‘encenação cinematográfica’. Segundo Truffaut (1977, p.13-14), citado por Bordwell (2008, p.34), ela compreende “a posição da câmera, o ângulo selecionado, a duração da tomada, o gesto do ator”, em resumo “simultaneamente a história que está sendo contada e a maneira de contála”2. O diretor é quem manipula o tempo e o problematiza, a fim de desenvolver um estilo autoral. Todavia, não há um consenso sobre o que se define por encenação. Na própria concepção de Truffaut, por exemplo, ela é vista como um termo polivalente, comportando-se ou como a ação no palco pelos atores (a mise-en-scène), ou como a imagem resultante desse espaço pela câmera (a mise-en-shot), como também a relação entre essas imagens pela montagem (a mise-en-cadre), e as relações produzidas pela exibição do filme sobre um público (a narrativa). Um dos objetivos com este trabalho é expandirmos o que entendemos pela encenação, e como podemos pensá-la a partir de um agenciamento entre projeção e espectador. O movimento cinematográfico, por exemplo, é algo que parece existir somente neste momento de interação, do encontro entre a imagem e espectador, uma qualidade emergente entre a velocidade de projeção e a percepção do olho humano. Nesse sentido, pretendemos oferecer para estudantes e profissionais cinematográficos possíveis estratégias de aproximação com o dispositivo Cinema, para que haja uma devida reconstrução do diálogo entre os humanos e não-humanos envolvidos no processo de agenciamento. Essas terão por base a compreensão acerca da ilusão do movimento, da coletivização dos fotogramas e dos efeitos que resultam da omissão desses, seja na montagem ou na forma como se dispõe os atores frente a uma câmera. Outras questões também serão abordadas ao levarmos em conta a capacidade de expressão do dispositivo. Por exemplo, como o espectador deverá reagir a projeção do filme? Até que ponto encontramos um Cinematógrafo construído propositalmente para o realismo? Entender que uma imagem, como

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TRUFFAUT, F. Sacha Guitry cinéaste. In: BERNARD, A; GAUTEUR, C (org.). GUITRY, S. Cinéma et moi. 2 ed. Paris: Ramsay, 1977.

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um arquivo, não só documenta algo, como também revela os motivos para esse registro, além das demarcações sobre a matéria (FALCI, 2014), nos ajuda a compreender melhor os discursos referentes ao realismo do cinema, algo que também discutiremos ao longo do texto. Uma busca ontológica também se torna necessária quando inserida na atual digitalização dos meios de comunicação, processo que reconfigura as relações entre texto, imagem e som, e reposiciona o espectador para co-autor na produção do conteúdo. Esta inversão na hierarquia das imagens se materializa na interface: segundo Deleuze (1983), as experiências narrativas do Cinema pela montagem só foram permitidas devido à separação entre câmera e projetor, inicialmente unificados no Cinematógrafo. Com o código binário, porém, a projeção e gravação novamente se aderem. O espectador não se submete mais a uma imagem que surge por detrás dele e de proporções monumentais, mas a uma que surge num ponto à sua frente e de possível contato pela mão. Aqui, tanto o dispositivo quanto o usuário são capazes de promover um desvio de conteúdo da cena (desenquadres), testificando a noção de uma área que pode ou não ter suas fronteiras delimitadas. No Cinema, este é um momento de quebra de sincronia entre as ações físicas apresentadas pela imagem com a percepção do espectador, um estágio incomensurável, qualitativo, que permite, pela memória, recriar os percursos apresentados pela imagem. Uma encenação que inverte a sua prioridade, e, antes de apresentar um espaço, prefere dessincronizá-lo, será chamada de ‘espaços em branco’ ou ‘espaços quaisquer’, e ao longo do texto suas características e comportamentos serão desenvolvidos. Estas problemáticas serão tratadas no Capítulo 2. Seguiremos uma estrutura de paralelos, sempre contrapondo as teorias do cinema convencional aos que definem os ‘espaços quaisquer’, e como eles podem se comportar. No capítulo 3, por sua vez, será abordado uma possível tradução visual para os ‘espaços quaisquer’, relacionando-os com o movimento Impressionista. Apresentamos e discutimos também algumas obras que corroboram com as teses apresentadas; entre elas, está a animação “00:08” (Japão – 2014), de Yutaro Kubo. Finalmente, na conclusão, tem se um resumo dos pontos mais importantes a serem pensados durante um processo de agenciamento com o filme, e apontaremos possíveis caminhos para continuar a pesquisa.

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2 PROBLEMÁTICAS DO ESPAÇO: DAS CONVENÇOES AOS ESPAÇOS QUAISQUER

Nossa atividade enquanto pesquisador se compara a da escavação ou da topografia. Para chegarmos aos ‘espaços quaisquer’, possíveis minérios do objeto Cinema, realizamos uma árdua tarefa de desvelamento das camadas que o cobrem e o obscurecem no tempo. Aqui, a definição de uma sintaxe cinematográfica é igual à produção de um solo. Uma rocha mãe decompõe-se com o tempo, produzindo uma contínua e quase invisível construção vertical que, socialmente, assimila-se a uma cultura, confinando as possíveis escolhas de um indivíduo comunicar, pensar e imaginar uma obra de arte (WÖLFFLIN, 1950; DIJCK, 2007). Também é possível a compararmos com um edifício. Cada um de seus andares se organiza segundo funções específicas de um sistema, que, por sua vez, se atualizariam através de terceiros, ou melhor, caminhantes. Todavia, tais caminhantes estão limitados por um único elevador, objeto que permite a mediação entre os níveis. Aqui o deslocamento parece seguir uma constante, um sistema de alavancas que regulam os desdobramentos do pensamento cinematográfico. Isso acontece de uma forma até que literal, por exemplo, com o termo ‘primeiro plano’, que, pela capacidade de ampliar as texturas e qualidades afetivas dos rostos, se insere, como em uma fórmula, nos momentos mais intensos de uma narrativa. Como escavadores, entretanto, devemos problematizar os passeios decorrentes do uso de um elevador, uma caixa preta que, pela comodidade e seu acesso, acostuma os seus usuários, os deixa conformados, privando-os de percursos que vão além de um simples elevador, como por exemplo, a caminhada em uma escada.3 Uma cena de “Crimes da Alma” (Cronaca di un amore, Itália, 1950), de Michelangelo Antonioni, ilustra essa situação. Um casal de amantes, investigados por um crime passional, decide se encontrar num edifício. Com medo de serem vistos pelo marido da moça, que se encontra próximo, preferem subir as escadas que visualmente adotam um formato espiralado. É por uma caminhada íntima entre os degraus que uma personagem revela informações ilógicas da trama, que não seriam possíveis caso o casal tivesse usado o elevador, elemento coletivo que a todo o momento parece pressioná-los pelo som de seu motor. Aqui, as personagens parecem ser dotadas de uma dupla consciência, entre a ilegitimidade dos atos e sua conformidade com o sistema, um jogo 3

Ao longo do texto, tentaremos relacionar um espaço em branco ou qualquer com o ato de uma caminhada, da predisposição que esse indivíduo possui para caminhar e o tempo que envolve essa ação. Dar um passo é jogar com as ocasiões, é improvisar dentro das ordens, atualizá-las em segredo (CERTEAU, 1990, p.178).

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imbricado pontuado pelo enquadramento, que os confinam entre os cabos de aço desse mesmo elevador (FIG.1). Figura 1 – Caminhantes confinados.

Fonte: DVD Crimes da Alma. Silver Screen.

Um ‘espaço qualquer’ ou ‘em branco’ se apresentará como uma Torre de Babel, uma profusão de línguas que dissolve o espaço em ambiguidades, um espaço cujas junções métricas, que antes sustentavam o edifício, apresentar-se-á agora de uma infinidade de modos. Antonioni novamente ilustra essa passagem. Os finais de sequências importantes de “Crimes da Alma” manifestam-se como tempos mortos de uma paisagem que, não há tão pouco tempo, foram ocupados pelas personagens principais, um “pequeno excesso além do esperado, que permitia uma respiração profunda antes de prosseguir.” (FAINURU, 2001, p.130 apud BORDWELL, 2008, p.206). O espaço aqui, esvaziado, desumanizado, permite uma mistura de sentidos que solicita aos espectadores que o invistam pelo olhar, que tirem “todas as consequências de uma experiência decisiva passada, uma vez que já está feito e que tudo foi dito.” (DELEUZE, 1990, p. 16). É uma tendência a abstração do espaço pela memória (FIG.2). Figura 2 – Espaços constatados do início, meio e fim do filme.

Fonte: DVD Crimes da Alma. Silver Screen.

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Os caminhos que constroem um pensamento são apenas temporários. Um deles, por exemplo, se refere ao Cinema enquanto linguagem, problematizada nos anos 1960 por Christian Metz e Pier Paolo Pasolini. Metz (1968) insiste na analogia dos planos com os morfemas de uma língua, nos quais, sob operações do paradigma e do sintagma, se formariam enunciados narrativos. O problema, porém, é o de pressupor que tais características sejam fornecidas a priori da imagem:

A semiologia do cinema será a disciplina que aplica às imagens modelos da linguagem, sobretudo sintagmáticos, como constituindo um de seus principais "códigos". Percorre-se assim um estranho círculo, já que a sintagmática supõe que a imagem seja de fato assimilada a um enunciado, mas já que é também ela quem a torna em direito assimilável ao enunciado. É um círculo vicioso tipicamente kantiano: a sintagmática se aplica porque a imagem é um enunciado, mas esta é um enunciado porque se submete à sintagmática. (DELEUZE, 1990, p.38)

A inscrição da luz na película para Deleuze (1990), constitui uma matéria plástica sensorial que assinala, enuncia significados, que não possui pressupostos lingüísticos, mas que é antes alterada por estes e, por consequência, passa pelo domínio da semelhança, da analogia com outros signos. O problema dos discursos referentes ao Cinema é até que ponto uma hipótese implica num dado para além do que se vê na imagem. Uma indução direciona o pensamento a ‘enunciados universais’ muitas vezes equivocados, muitas vezes criando esse círculo vicioso no qual a matéria perde seu direito de comunicar, subordinando-se a aspetos decorrentes de uma tradição cultural do pensamento. Pasolini, segundo Deleuze, ainda que sua intenção tenha sido de tornar o Cinema uma língua, se diferencia de Metz por debater sobre o direito da realidade e não sobre um pressuposto. Aqui, o elevador se torna manifesto: o círculo vicioso adere à dimensão dos intervalos racionais, um pensamento comum da matemática. Como uma árvore hierárquica, um dá origem a dois, dois dão origem a quatro. É possível também reverter o caminho: quatro dão origem a um. Estes intervalos, ou pivôs, sob condições hierárquicas explícitas, exprimem ao todo uma grande verdade que acalenta o espírito (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Esta matriz se descreve como uma das formas mais antigas de pensamento, e é resultado de uma cultura do Ocidente, cuja história é marcada pelo Renascimento e pelo Iluminismo. Com o Renascimento temos a ruptura do feudalismo medieval, voltada à expressão somente da religião, e uma consequente redescoberta do ideal de beleza da Antiguidade. Ciência e arte andam juntas, marcadas pelo antropocentrismo e pelo domínio

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sobre a natureza. As hierarquias da árvore são dissecadas rigorosamente pelo homem: com a documentação da perspectiva por Alberti, encontramos a supressão de um possível agenciamento que a imagem poderia possuir, em função de uma técnica que se demonstre de forma impessoal e naturalista (COUCHOT, 2003). Na superfície da tela se apresenta um espaço que aspira à verdade, ressalto de uma realidade conforme a apreensão do olho: uma geometria euclidiana que a torna sistemática, consistente e homogênea. Na reversibilidade do olhar, permitida pela conversão das linhas em um ponto de fuga, encontramos novamente manifesto o pensamento segundo pares de um intervalo, um padrão recorrente no âmbito cinematográfico. Um exemplo comum, ainda que faça parte da cartela clássica, está no método de continuidade intensificada que sobreveio com o CinemaScope (BORDWELL, 2008). Nela, a horizontalidade da tela força um número maior de tomadas em primeiro plano, com a disposição de suas massas nas laterais do quadro. Assim se define a montagem: um plano de conjunto (similar à composição central da pintura, no qual as personagens se organizam em torno do ponto de fuga ‘vazio’, isto é, um espaço que não será habitado na cena) e uma alternância, um vai e vem de primeiros planos dos rostos das personagens, segundo suas falas e reações. Se na perspectiva os objetos permitem a sua visão pelo pintor e o pintor permite que os objetos se mostrem a ele, a mesma lógica se imprime no pensamento das imagens em movimento. Há um elo, um intervalo, uma conexão no qual o final de um corresponde ao início do próximo (RODOWICK 1997). Essa construção que permite a onisciência do espaço na narração é a mesma onisciência que os pintores buscavam representar; protagonistas que demonstram o divino impresso no corpo humano. Entretanto, é importante frisarmos que o realismo criado pela perspectiva, ainda que influencie significativamente a produção nos dias de hoje, é apenas uma construção histórica, um código, que ao pressupor como base a imitação pelo real (a isso Aristóteles chama de mimesis), abre um leque de falsas escolhas, pois são escolhas que partem não da consciência de escolher, da escolha por si própria como objeto, da alternativa em Kierkegaard (DELEUZE, 1983), mas da escolha que pressupõe não haver outra escolha: só há estas opções, pois o caminho é inevitável, o realismo é inevitável. A escolha, como veremos, aponta ser um elemento essencial para translação de um espaço qualquer. O termo translação aqui usado, corresponde ao de Latour, onde as mediações dos elementos criam novos subprogramas, descrições que forçam o “abandono da dicotomia sujeito-objeto, que impede a

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compreensão de coletivos.” (LATOUR, 2001, p.208). Como uma cadeia de Markov (DELEUZE, 2005), novamente outro elemento da matemática, o ‘espaço qualquer’, ou em ‘branco’, se apresenta no momento de projeção do filme como um conjunto em potencial de virtualidades, uma trama de fios cujo momento da escolha coloca o regime dos signos em um jogo: as dimensões se alteram devido uma escolha feita não apenas pelo filme, que já estaria velado pela indústria em se expressar. Antes disso, é uma decisão pelo entendimento mutuo de suas competências, pelo espectador e filme (LATOUR, 2001). Ao defender uma realidade objetiva pela câmera, obscurecemos que um filme tão somente é feito para a sua projeção, para um público alvo específico. Entretanto, o próprio funcionamento do cinema parece atestar ao espectador comum a crença de que ele está de fato vendo seu ator preferido na tela, e não um gênio maligno. Por exemplo, o projetor cinematográfico assume uma velocidade de 24 fotogramas por segundo (12 imagens, cada uma exposta duplamente), o suficiente para que o olho do espectador não apreenda as oscilações que ocorrem entre uma foto e outra. Para ele, o evento se apresenta como um movimento empírico genuíno, indiscernível de suas experiências cotidianas. Nesse sentido, o espectador operaria segundo um efeito do real, onde assume um papel de juiz para julgar se o que vê “existiu ou pode existir no real.” (AUMONT, 2012, p.113). É ao que André Bazin se refere quando aborda a necessidade de substituir a pintura por algo melhor do que um referente aproximado. Através da fotografia, processamos “a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído.” (BAZIN, 1991, p.21). Não é de se esperar que Bazin queira atribuir um sentido político à câmera, cuja potência servirá de interface dentro de um coletivo cultural e escoará na produção de relatos pessoais que, antes, em sua maioria, eram concedidas ao papel e a fala. Entretanto, a convicção de Bazin parece fazer com que ele se esqueça de que também está inserido em um sistema de crenças que, de uma forma ou outra, está entremeada com o Renascimento, pois, segundo Couchot (2003, p.32-33),

A placa fotográfica funciona oticamente como o véu de Alberti [...] Nada mudava no alinhamento sagital do sujeito, da imagem e do objeto, estruturando o sistema de figuração nascido da perspectiva, mas o sujeito da representação tornava-se a partir de então um sujeito muito mais fortemente aparelhado [...]

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Antes, é uma tecnologia que me testifica de que forma um acontecimento se deu ou sou eu que escolho uma tecnologia para determinado acontecimento? (DJICK, 2007). Se aqui há uma aparente divisão entre o sujeito e tecnologia (tal como o sintagma e o paradigma), é para salientar sua exigência em sintetizar, ‘encarnar’, como diz Deleuze, o comportamento sob um dos dois lados do jogo: numa relação de determinante ou na de determinado, o resto é descartado. Possivelmente, o problema na doutrina realista da foto ou filme não parece ser se a câmera é capaz de apreender efetivamente um real inteligível, mas que a sua captura não deixe transparecer ao espectador comum da sala de cinema ou galeria que ainda aí reside esse discurso atravancado, da ordem da árvore. Ao proferir que “a originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial” (BAZIN, 1991, p.22), Bazin também se esquece de que a exclusão do homem, em uma clara referência às mãos do pintor, é também uma restrição ao seu próprio discurso, pois, para se documentar um fato, é também preciso que surjam as delimitações necessárias para que o documento se configure enquanto tal (FALCI, 2014). Pender para uma defesa objetiva da imagem é ofuscar que sua organização é também um ato de criação, para o qual sempre se permite um acaso e recomeço dos acontecimentos: uma aproximação com a poética. Há um duplo movimento na imagem que mistura o que supõe ser atual com o seu virtual, objeto com sujeito, real e imaginário. Entretanto, não há confusão nesta mistura: são distinguíveis, porém inseparáveis. “Tomadas em separado, só se pode defini-las (sic) por oposição e de maneira relativa, como funtivos (sic) de uma mesma função que se opõem um ou outro”. (HJELMSLEV, 1968, p.85 apud DELEUZE, 1990, p.89) 4.

Nela, há uma matéria sempre em formação, que cresce

indefinidamente, cuja “questão não está mais em saber o que sai do cristal e como, mas, ao contrário, em como entrar nele. Porque cada entrada é um germe cristalino, um elemento componente.” (DELEUZE, 1990, p.110). Matéria enunciável, não enunciada. Sob esse viés, também podemos afirmar, no cinema, que a sua velocidade de projeção foi um mecanismo construído puramente com o objetivo de ratificar o status de uma matéria concreta e de simples diferenciação com a fantasia, o subjetivo. Como é sabido, toda película de filme distribui seus fotogramas através de distâncias equivalentes umas das outras, sob uma razão constante na qual 24 unidades expressam um segundo de tempo representado no espaço. Essa razão proíbe, no momento de gravação ou projeção, que se ressalte um dos fotogramas do conjunto: isto somente seria possível se os fotogramas se demonstrassem 4

HJELMSLEV, L. Prolégomènes à une théorie du langage. Paris: Ed. de Minuit, 1968, 240p.

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visualmente idênticos uns aos outros, exibindo para o espectador uma imagem ‘aparentemente’ estática. Aparentemente, pois ainda que se sobreponha cada fotograma no espaço, a impressão dada é a de um cancelamento do todo em função desse fotograma específico. Portanto, encontramos neste mecanismo uma relação recíproca entre o todo e o individual: “O plano, isto é, a consciência, traça um movimento que faz com que as coisas entre as quais se estabelece não parem de se reunir em um todo, e o todo de se dividir entre as coisas (o Dividual).” (DELEUZE, 1983, p.28). Por natureza dos fotogramas se anularem em função de um movimento, Deleuze os nomeia de instantes quaisquer, para o qual sempre constituem uma figura incompleta do movimento. Entretanto, o movimento só é percebido enquanto movimento, por estar sincronizado com a nossa percepção motora: não percebemos as oscilações dos instantes per si, mas apreendemos o objeto enquanto um contínuo, com sua silhueta devidamente diferenciada no espaço. Além disso, nossas capacidades motoras estão submetidas às leis da física, como já foram bem descritas segundo a mecânica clássica de Isaac Newton. Se há fluidez em um movimento, como por exemplo, a de um levantamento de peso, não seria tal impressão causada por uma dependência do fotograma com um instante do espaço calculado segundo a física newtoniana? E não seria a posição de seus traçados gráficos consequência deste procedimento? Se há a impressão de uma imagem estática durante a projeção de fotogramas idênticos, não seria necessário também que os dispositivos (projetor e câmera) buscassem reduzir as vibrações físicas decorridas de seu funcionamento, de modo a garantir uma eficaz sobreposição das imagens? Portanto, não só a velocidade de exibição é responsável pela ilusão, como também o limite da superfície projetada, para o qual serve de referência à diferenciação dos movimentos. Aqui é importante falarmos do Cinematógrafo dos irmãos Lumière. Segundo Cubbit (2004), o aparelho não conseguia manter os fotogramas devidamente posicionados durante a gravação de uma cena. Por consequência, na projeção do filme ocorriam diversas flicagens ou trepidações entre os fotogramas, que, de certa forma, eram incômodos aos olhos, pois se comportavam como uma anomalia do movimento. Neste momento, foram fortes as pressões da burguesia para a correção deste ‘defeito’, que para essa classe eram totalmente desagradáveis (CUBBIT, 2004, p.23) 5.

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Noël Burch [1990: 48] makes much of the bourgeoisie’s dislike of this flicker-effect with its disjointing of one impression from another: their complaints of eye strain, we might say, arise from the effort they put in to trying to force the incoherent to cohere, to hierarchize the democratic.

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Desse modo, se aqui podemos falar de uma imobilidade, um ‘congelar’ neste sistema similar à da fotografia, é tão somente pelo comportamento de seu obturador, que impede a evidência das anomalias, dos intervalos pretos que dividem os fotogramas de uma película, e pela aparente composição de um quadro, uma moldura, conforme as leis da inércia, para o qual todo o corpo deve continuar em repouso, e não vibrar irracionalmente, chamando atenção para si. Seu equilíbrio consiste em oferecer ao espectador um evento que não se diferencie da realidade. Entretanto, dizer que se parece com um movimento por não se ‘diferenciar’ em nosso olho não significa dizer que ele é idêntico ou que sequer é um movimento. O movimento imediato que o Cinema apresenta, neste sentido, pode ser lido como um ‘instante expandido’ do instantâneo fotográfico: continua o mesmo instante, apenas possui um intervalo maior do tempo. Para Deleuze (1983), o cinema não adiciona movimento, ele nos apresenta o filme imediatamente com um movimento, ele é uma imagem-movimento. Ainda que essa imagem esteja modulada através do tempo, ela continua a retalhá-lo sob a lógica dos instantâneos, sempre o enquadrando, por assim dizer, sob dois polos, para o qual ou aponta para uma mudança do todo pela montagem, pela sequencialidade, ou aponta para os traçados luminosos (ou gráficos) do fotograma, que dividem e conferem profundidade a um espaço por camadas. Há, portanto, neste dispositivo, a plena transmissão de uma prática da pintura ocidental, que rejeita o que não é conveniente para a visão. Segundo Cubbit (2005), o Cinematógrafo é uma utopia, um primeiro momento em que um não humano se expressa no mesmo patamar do homem. Nela, o Dividual, antes de ser visto como uma separação, se apresenta como possibilidade. O espectador, antes de ver um ‘percebido’, depende do não humano para ‘perceber’: aqui, surgem as potências dos ‘espaços quaisquer’. Do mesmo modo que uma classe econômica sufocou a expressão de um não humano, é importante falarmos das constantes tentativas do artista em trapacear os limites impostos pela técnica, e posteriormente pelas lentes da câmera. Dizemos aqui ‘impostos’, pois este verbo induz à exclusão da técnica como um elemento de diálogo com o artista, apresentando-a mais como uma barreira a ser transposta. Ao invés de ser uma barreira, a relação entre o sujeito e a técnica compreende uma divisão de responsabilidades, no qual ambos se oferecem um ao outro e as suas qualidades, de modo a dar origem à criação de algo novo, algo que “não corresponda ao programa de ação de nenhum dos agentes.” (LATOUR, 2001, p.206). As novas invenções dos séculos XIX e XX, apesar de problematizarem a certeza dos sentidos, como por exemplo, as experiências propiciadas por dentro de uma locomotiva cuja

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velocidade gradualmente contorceria as formas do espaço, continuariam a ser vistas como uma própria expansão positivista do homem; um procedimento de integração-diferenciação do todo através de associações entre conceitos: um Dividual, um “ideal do Saber como totalidade harmoniosa” (DELEUZE, 1990, p. 251). Na arte, “os pintores que utilizavam a perspectiva e suas regras (geométricas e óticas) não se sentiam submetidos a uma máquina e se consideravam mestres de sua técnica.” (COUCHOT, 2003, p.27). Uma suposta passagem ‘obrigatória’ pelo aparelho – entre os vários, como o intersector, a câmara lúcida e a obscura, que permitiam ao pintor circunscrever os objetos da realidade em uma superfície bidimensional, com seus ângulos exatos - era compensado pelo artista ao não estabelecer um período de tempo para a produção de sua obra. Através de um próprio tempo indefinido, desenvolver-se-ia a sua subjetividade, sua singularidade diante de outros pintores, com escolhas que não estariam aparentemente determinadas pela técnica da perspectiva, entre elas, a composição das cores, formas e seus volumes. Talvez fosse este o tempo necessário para o artista se esquecer de que uma obra de arte também é dialogada pela técnica. Talvez seja nesse sentido que possamos atribuir à palavra ‘automatismo’ a função de uma repetição desinteressada. E o que acontece quando surge a fotografia? Com a redução do tempo de exposição a uma fração de segundos, seu automatismo não só consumiria violentamente uma função antes dependente das mãos e dos olhos, a do delineamento do espaço, como também, nesse primeiro momento, destituiria a singularidade do próprio pintor, o seu espírito de direito. Pois, segundo Bonitzer (2007, p.69), os cavalos das pinturas românticas de Géricault ou de Delacroix não são cavalos inexpressíveis, cavalos de instantes quaisquer, cujo momento do bater a foto reduz a possibilidade de um controle pelo homem; ao invés disso, serão a expressão formal de uma subjetividade, carregada de inspiração, do sublime e tormento da alma. Há certo desespero simbólico de o artista perder seus privilégios, além de um valor construído ao longo da história da arte. Segundo Couchot (2003, p.26), ele “se viu constrangido a abandonar um território que foi seu durante mais de cinco séculos, para se engajar numa busca incansável do que lhe seria próprio e que não cessa de se estreitar.”. O artista, por resposta, se rebela ao aparelho, e, se houve uma crise da imagem no final do

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século XIX, que culminou com o movimento modernista, é pela causa de um cérebro que reluta em compartilhar seu olho. 6 E para onde o artista iria? Visto o alinhamento entre sujeito, imagem e objeto, encontramos um pintor que, como única forma de impor autoria, precisaria manipular diretamente os objetos diante de uma lente, não mais se mantendo por detrás da tela. A reversibilidade do olhar, a mediação através de um ponto único continua presente. Entretanto, os objetos não mais permitem sua visão pelo pintor. O alinhamento quebra-se temporariamente, e, em uma fórmula que anteriormente se expressava por [Artista = tecnologia (câmera ou tela) multiplicado por Objeto], temos agora que [Tecnologia = Artista dividido por Objetos], cujas grandezas se tornam inversamente proporcionais. É necessário que o pintor, agora defronte a lente, vire as faces dos objetos, quebre seus pescoços para que deformem conforme a uma inspiração romântica. Fortalece-se a consciência de que um aparelho desempenha um papel importante no processo da imagem, ao recortar o espaço segundo um, e somente um enquadramento. A linha que o artista tentará consertar é a linha que vai de encontro com o limite da lente: para ele, não há mais um espaço indefinido que havia na pintura, passível a uma torção no tempo. Afinal, o pintor, em nosso alinhamento sagital, deveria se colocar ao lado da imagem (pintura), e não dos objetos, como acontece agora com a fotografia. Talvez, por este alinhamento, podemos explicar porque na pintura o fora de campo não nos é tão evidente: como observadores, em nossa leitura, as linhas da perspectiva assumem uma direção do fora para dentro da tela. Na fotografia, ao contrário, as linhas partem de um ponto de dentro da tela para fora. Bazin, em seu ensaio Pintura e Cinema, de 1951, distinguiria nos dois tal direção: para ele, uma pintura é ‘centrípeta’, e seu espaço não permite contiguidade para além da moldura, característica do cinema, que seria, por oposição, ‘centrifuga’, indicando sempre um além, um recorte de um todo. Entretanto, não seria a escuridão da sala cinematográfica também uma moldura? Pois é ela que enquadra a imagem, apresenta-a para um espectador. Se há uma 6

A arte moderna, para Couchot, consistirá de um estranho paradoxo. Para ele, a expansão das técnicas ópticas, como foto, cinema e televisão, ao mesmo tempo em que ameaçam ou perturbam a expressividade do artista, oferecerem novas ‘paisagens’ para a sua imaginação. A consequência, Couchot propõe, é de um artista em completo desespero, em uma perpétua corrida contra o tempo. Ele possui o propósito de sempre ter que se inovar, absorvendo o moderno e respondendo a indústria pela subversão. Isto parece fundamental para compreendermos uma encenação dentro do Cinema narrativo clássico. A priori, a comunicação entre artista e dispositivo já pressupõe uma autoridade, uma unidade de poder. No caso do tempo, como descrito na página 23 de nosso texto, essa tentativa de conquista é feita por um ato de espacialização, através da perspectiva de uma lente. É na diferença do espaço (plástico), que ocorre entre os fotogramas quando sobrepostos, que obtemos uma métrica, um valor físico para o instante.

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presença de conceitos como ‘aberto’ ou ‘fechado’ no comportamento da imagem, elas são resultados de uma negação de agenciamento com os não-humanos (nesse caso, pintura ou cinema). O extracampo surge devido à tentativa do artista de burlar o espaço, atribuir uma lógica política7 que não condiz com os atuantes. É por essa razão que Comolli (2008, p.169) afirma que o gênero documentário se realiza “sob o risco do real”, do imprevisto, do acaso: o momento de gravação se resume a uma batalha, em que o diretor necessita de uma percepção mais atenta para que os acontecimentos não se percam em um ‘fora de campo’, sob a vitória de uma câmera, vista como empecilho para o controle das situações. 8 Se ainda insistirmos em nos debruçar sobre os efeitos decorrentes do pensamento da árvore hierárquica, é para que possamos aos poucos chegar as camadas mais profundas sem correr o risco de desabamento teórico. Aqui, torna-se também importante refletirmos sobre a reprodutibilidade técnica da fotografia. Conforme Benjamin (1975), partir de um fragmento é consequência de um parâmetro inédito de sua reprodutibilidade: a variedade de cópias. Destituído de uma materialidade que garante uma existência única no tempo (uma aura), como havia antes com a pintura, o cinema então rasga a cronologia do artífice. Produz-se o roteiro igual a um retalho, cujas gravações fogem de qualquer pressuposto linear. Essa nova forma de percepção, pelo qual os objetos se tornam mais acessíveis, porém replicados, cria uma noção de arte montável: o fragmento, pedaço de um espaço muito maior, não consegue sustentar um sentido. É necessário antes que haja um sequenciamento de cada imagem, para o qual a obra produziria a noção do todo; uma política. A câmera, pois, para Benjamin (1975, p.26),

[...] penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de conferir-lhe sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui – dentro dela – o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias sequencias de imagens do mesmo tipo.

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Usamos o termo ‘política’ no sentido de delimitação, segundo um conjunto de regras ou normas. Benjamin, por exemplo, relaciona o pintor a um curandeiro e o cinegrafista a um cirurgião. Enquanto o curandeiro mantém uma distância natural de seu paciente, manipulando-o por um misticismo, o cirurgião, por sua vez, renuncia essa distância, penetrando profundamente sobre o doente. Todavia, diz Benjamin (1975, p.26), a tarefa do cinegrafista exige invenções dificílimas: “o cirurgião deve exercitar os seus músculos até um grau extremo de precisão acrobática, quando vai consertar ou salvar o corpo humano. Basta pensar, lembra-nos [Luc] Durtain, na operação da catarata, onde o aço do bisturi deve porfiar com tecidos quase fluidos, ou ainda nas importantes intervenções na região inguinal (laparatomia).”.

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Para Bordwell, a função de uma encenação consiste preferencialmente em guiar, dirigir a atenção de um espectador sobre a tela. “A mais importante tarefa de um diretor é ter o domínio do que acontece dentro da imagem” (PERKINS, 1972, p.74 apud BORDWELL, 2008, p.35) 9. Há um estreito correlato entre a disposição dos corpos sobre um espaço real, sua coreografia e a sua compressão na imagem bidimensional da tela, decorrentes do comportamento das lentes fotográficas. A câmera, representada por uma pirâmide ótica, ao se comportar segundo as leis da perspectiva, força um diretor a subordinar os eixos X e Y da superfície em função de uma profundidade Z do espaço, em direção ao ponto de fuga, já que, quanto mais próximos os elementos estão da lente, mais espaço elas tendem a ocupar sobre a superfície. Desde que não seja por fins estilísticos, o espaço negativo criado pela composição dos atores em cena se torna essencial para a manutenção de uma narrativa: é por essa razão que se recomenda evitar os conflitos entre personagens, isto é, que um oculte a visualização do outro.10 Também, é por este motivo que, por exemplo, caso queira-se manter a atenção em um personagem que ziguezagueia em um lugar, ou a câmera reenquadre a personagem em seu eixo, movendo-se em uma panorâmica, ou execute um travelling. Novamente, quando o objetivo é a manutenção de um espaço coerente, contínuo, de modo que a câmera não se mexa, se recorre ou aos closes, ou a uma decomposição dos planos cuja função central é preservar a ilusão do espaço teatral ‘real’, através de eixos de olhares e corpos. Nessa concepção em que nós dominamos os objetos, nos encontramos numa contínua posição de embate, de luta, de equilíbrio e desequilibro das massas e cores. Por consequência, foca-se apenas nas ações e nas narrações, uma vez que sua concepção maior é a do artista que quer manter seu trompe l’oeil (ilusão). Problematizemos outro princípio da cartela clássica: a analogia da tomada com o ponto de vista de um observador invisível. Novamente, podemos traçar sua origem na pintura renascentista, para o qual, sob a mediação do olho, o espectador assume a posição do autor (vale dizer, uma posição mental, pois a tela não se altera caso ele venha a se mover), mas também uma posição que se encontra fora daquela realidade e que garante segurança sobre o ato de ver esse espaço. Aparece, portanto, uma testemunha imaginária, que, vendo através de 9

PERKINS, V.F. Film as Film: Understanding and judging movies. Harmondsworth: Penguin, 1972. 198p. Dentro dessa lógica, o recurso de encobrir os elementos pode ser usado para balizar o espectador dentro de uma narrativa ou para indicar qual personagem tomará a fala dentro de um diálogo, caso o filme usasse do recurso em um plano-sequência. Para um espaço abstrato ou pictórico, sua produção também parece depender desta disposição no eixo Z de profundidade, que poderá ser burlado, dentro do plano, através de ilusões de ótica, alta/baixa exposição da fotografia ou o uso de teleobjetivas.

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uma janela, se aproximaria o máximo possível da percepção cotidiana. Antropomorfizam-se os limites do enquadramento, segundo o qual seu interior sempre será explicado de acordo com um elemento humano. Entretanto, sérias fissuras aparecem quando o princípio da testemunha imaginária é colocado em prática, como Bordwell (1985) aponta. Primeiro: haverá planos que serão fisicamente impossíveis para representar o ponto de vista de um observador (por exemplo, tomadas aéreas e câmeras de ângulos muito baixos). Segundo: caso se afirme a ubiquidade do espectador, o filme seria restrito a escolher tomadas que não dispersassem o público da narrativa, sendo essa uma das justificativas para mantermos a câmera na altura do olho dos atores (MERCADO, 2011, p.09). O corte, neutralizado pela posição de planos contíguos, seria aceito pela platéia ao se justificar na lógica narrativa (XAVIER, 2005). Terceiro: ao pressupor uma narrativa que é preexistente ao filme, que se desenvolve por si mesma, o enquadramento se limitaria apenas ao recorte dos momentos mais relevantes e nas posições mais inteligíveis ao público. Entretanto, como explicar o fato das ações sempre agirem conforme um aparente frontalismo à câmera? A tela como uma superfície plástica, um cristal multifacetado de massas, linhas e cores, é tratada não como um princípio, mas como uma consequência, um problema a ser resolvido pelo diretor ao tratar o filme segundo ‘blocos’ de um espaço ‘real’. A massa é orientada em função da realidade, cuja continuidade visual promovida pela ilusão do movimento, garanta ao corte de planos que espaços adjacentes se agrupem horizontalmente em um todo, em uma síntese (FIG.3,4, 5 e 6). Figura 3 - 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men – EUA – 1957), de Sidney Lumet.

Porque será que as faces podem ser vistas de frente, perfil ou três quartos? Observem o espaço negativo desta composição, como cada integrante se destaca, mas também integra um todo. As massas antes se apresentam ao espectador ou estão presas a um pressuposto do roteiro? Fonte: DVD 12 Homens e uma Sentença. 20th Century Fox.

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Figura 4 – O Diabo a Quatro (Duck Soup – EUA – 1933), de Leo McCarey.

Os atores não deveriam estar ao redor de Groucho Marx, caso fosse uma realidade anterior? Logo, eles se posicionam para uma câmera, e não para a situação. Fonte: DVD O Diabo a Quatro. Continental.

Figura 5 – Um Corpo Que Cai (Vertigo – EUA – 1958), de Alfred Hitchcock.

Para uma conversa íntima, parece muito desconfortável. Não deveriam estar antes de frente um para o outro? Se a personagem da direita mantém o olhar na da esquerda, mesmo não se vendo, é para preservar a intenção de se narrar algo pelo artista. Fonte: DVD Um Corpo Que Cai. Universal Pictures.

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Figura 6 - Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy – EUA – 2014), de James Gunn.

As personagens berram para a câmera, e não apenas para os heróis. Fonte: DVD Os Guardiões da Galáxia. Walt Disney.

Como Bordwell (1985) aponta, ao se antropomorfizar o dispositivo exclui-se a possibilidade de que a tela se gerencie conforme uma superfície plástica. Somente quando o filme destitui o poder que a câmera possui sobre a ação, é que surgem outros procedimentos, como a de uma encenação que passa a ser gerenciada entre filme e espectador. Há, portanto, uma inversão de valores: não é mais o espectador que assiste um mundo através de um filme, é um filme, agora indivíduo, que se apresenta para o espectador. A encenação de um ‘espaço qualquer’, por exemplo, não nos é delineada por relações de causa e efeito, encadeamentos sucessivos que compõem uma narrativa orgânica. Ao invés disso, ela será considerada como uma propriedade emergente11 de um agenciamento, algo que parece surgir somente no encontro entre filme e espectador. Mudam-se as propriedades da imagem de uma tela, e os seres que a habitam, ao invés de definirem significados sobre o mundo, preferem as instabilidades de uma fronteira, de incomensurabilidades sobre o espaço. Significa que o movimento se apresentará como um aberrante, contrariando a lógica de um chronos (DELEUZE, 1990). Ele não mais é regulado por silhuetas, pelos traços que separam o espaço positivo de um negativo: sua característica, agora, é a de sempre se retraçar, transladar os sentidos. O instante expressará um tempo Agostiniano (1973), enquanto distensão da alma, tempo que coabita o presente, passado e futuro em um devir, um tornar-

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Considera-se como ‘emergência’ um estado de potencialidades criado pela interação entre agentes. Essas potencialidades são imanentes, isto é, são irredutíveis aos indivíduos quando isolados do processo.

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se12, e não mais o tempo do relógio, tempo do espaço percorrido pelo ponteiro. Encontramos nesse sistema um ponto que cessa a necessidade de se atualizar, de seguir um fluxo, e assume a sua independência enquanto intervalo. Pois, agora, o intervalo entre os planos (ou corte) não é mais o final do primeiro e início do segundo; ele é uma entidade autônoma entre os fotogramas. Surge uma coexistência dos eventos que se expressará de dois modos: através de um presente não atualizado, ou seja, um presente que não se tornou passado e que se distende para um além de possibilidades do futuro; e um passado que se conserva, compreendendo o todo dos acontecimentos possíveis pela cronologia (DELEUZE, 1990) (FIG.7). Figura 7 – Modelos em cone.

Os modelos em cone. Na da esquerda, ela obrigatoriamente atravessa o plano, forçando um para além da imagem. Entretanto, na da direita, o ponto surge da própria imagem. Real e imaginário habitam um mesmo lugar. Fonte: Do autor; Bergson, 1911, p.211.

É importante reforçarmos o fundamento de um ‘espaço qualquer’ na autonomia dos intervalos. Se o corte antes certificava uma racionalidade narrativa, aqui não há mais a necessidade de uma associação, de uma contiguidade entre os planos. Ao valer por si mesmo, o filme se estruturaria a partir de relações não mensuráveis, isto é, reencadeamentos visuais quase que literais sobre um dos traços da imagem, que, com efeito, abririam o leque de possíveis escolhas que um filme pode atualizar no tempo. “Essa obra-prima evolui numa

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Para Deleuze (1990, p.141), essa ordem não cronológica pode ser vista como uma poça de lama, uma substância universal, sem forma ou diferenciação.

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noosfera13, onde um corredor se abre no interior do cérebro para se comunicar com o vazio cósmico.” (DELEUZE, 1990, p.254). Este novo modelo cerebral, do irracional, é muito diferente daquele inaugurado por Eisenstein, da sua montagem dialética, que não é mais do que uma continuação da política orgânica da árvore14. O herói, ainda que ao fim de seu arco narrativo apresente profunda mudança de caráter (mesmo que social, como nos filmes de Eisenstein), ainda estará preso ao plano da causalidade, de um prolongamento funcional do movimento15. Tampouco este modelo é aquele promovido pelo surrealismo, ao menos em parte: as metamorfoses que ocorrem dentro de um sonho, mesmo que regidas por um automatismo ilógico, ainda são justificadas para o espectador dentro de uma narrativa. No cinema dos ‘espaços quaisquer’, a presença de um onírico ou surreal será apenas responsável por uma primeira camada no diálogo entre filme e espectador. É um ‘apontar’ para um agenciamento a partir da desconstrução dos códigos. Deleuze (1983, p.21) nos dá uma pista do como isso poderia ocorrer:

A imagem cinematográfica é sempre dividual. A razão última disso é que a tela, enquanto quadro dos quadros, confere uma medida comum àquilo que não a tem, plano distante de paisagem e primeiro plano de rosto, sistema astronômico e gota de água, partes que não apresentam um mesmo denominador de distância, de relevo, de luz. Em todos esses sentidos, o quadro assegura uma desterritorialização da imagem.

Desterritorializar uma imagem é promover uma ponte, um espaço de enunciação entre a sinédoque (a expansão das ligações) e o assíndeto (a supressão dos termos) (CERTEAU, 1990). É ensinar gradualmente ao espectador que os ícones que compõem uma tela também podem se confundir, e que sua moldura sempre está presente para institucionalizar as formas, ordená-las segundo intervalos que asseguram a continuação entre o início e fim de seus limites, isto é, de sua superfície e por consequência o extracampo. Obras que se inspiram neste princípio costumam planejar a encenação segundo estímulos, ‘faíscas’ para a percepção do observador. Nelas, os padrões gráficos e sonoros que surgem servem apenas como um ‘guia’, de modo a fazer um espectador pensar na teia de relações possíveis e não de seguir, efetivamente, uma história. Se fosse o caso de seguir uma narrativa, entretanto, sua montagem

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A noosfera é uma esfera do pensamento humano. Define-se também por ‘mente’. Fazemos esta afirmativa na relação da montagem com o tempo, e não no propósito social da montagem dialética. Aqui, o choque entre conceitos ainda é regido por uma contiguidade entre os planos, e o todo da montagem oferece um tempo indireto, incompleto para a percepção do espectador. Não há uma dessincronia entre a ação representada no filme e a percepção do espectador. 15 Segundo nosso esquema sensório-motor. 14

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usaria dos princípios de continuidade da cartela clássica para relembrá-lo constantemente desses alicerces. Os filmes de Luis Buñuel, por exemplo, fazem isso para a introdução do surreal. Já em “Oito e Meio” (8½ – Itália – França – 1968), de Frederico Fellini, é até possível repensar as linhas narrativas do protagonista Guido, devido ao tom metalinguístico do filme, temáticas que o permeiam e os movimentos de massas dentro do quadro, já que são nos eixos de continuidade que residem as ligações da história. Se por exemplo, Guido sai de uma sala de cinema e esbarra com a sua mulher Luisa, o que temos aqui é uma ponte para diversas outras cenas que podem ou não envolver Luisa, os dois, ou com qualquer outra que envolva a ideia de 'relacionamento'. Ao Fellini aproximar a câmera da face de Guido enquanto um roteirista o enche de palavras fúteis sobre sua opinião com o filme que Guido está realizando, temos outra ponte que pode, tecnicamente, levar para qualquer outra cena: um devaneio, uma imagem de si mesmo se questionando ou um estereótipo que também pode levar a qualquer outra cena (por exemplo, o estereótipo do oceano que aparece com a prostituta Saraghina pode levar a qualquer outro ou a memórias que tenham relação com um possível significado da 'imagem' oceano: perdição). Em suma, o que temos aqui são raccords16, uma primeira forma de trabalhar o agenciamento nos ‘espaços quaisquer’(ver FIG.8). Todavia, devemos nos lembrar de que, nestas fissuras, a metamorfose entre as formas, o onírico da pintura ou o choque de conceitos, já supõem que os espectadores conheçam os códigos em que trabalham, pois um agenciamento não é um simples principio de reflexão ou de tomada e consciência: “atenção! isso é cinema”. É uma fonte de inspiração. As imagens devem ser produzidas de tal maneira que o passado não seja necessariamente verdade ou que do possível proceda ao impossível. (DELEUZE, 1990, p. 161).

E é aqui que o ‘espaço qualquer’ vai além de um raccord surrealista. No surrealismo, os mundos representados, ainda que derivem de um inconsciente ou imaginário, são sequencias de realidades com alternativas já fechadas para quem o observa, com modos de existência muito bem definidos. Nos filmes de Luis Buñuel, ainda que encontremos

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O termo raccord significa continuidade cinematográfica. Existem certas regras que regem uma continuidade, sendo, na maior parte dos casos, ancoradas a uma narrativa. Todavia, se olharmos a fundo, em termos materiais, não existe um plano contínuo a outro; eles existem per si no tempo quando projetados. A continuidade estaria mais relacionada com a forma de entendermos esses planos do que de fato uma relação existente entre eles. Usaremos o raccord para designar essa característica paradoxal, de um encadeamento que desconstrói a continuidade da qual estamos acostumados a partir de uma segunda continuidade, não convencional, evidenciando o seu caráter ilusório.

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momentos que permitam uma indecisão sobre o que se vê ou para onde apontam, estes espaços potenciais colocam-se apenas como fronteiras entre situações comuns e absurdas, momentos rápidos de transição que, com a progressiva repetição no filme, colocam o espectador não em uma situação de diálogo, mas novamente na de um juiz, uma vez que apreendido o seu funcionamento não julga mais só pela verossimilhança, mas agora também pela eficácia de tais transições, se elas atendem ou não as previsões dos espectadores para os momentos de reviravolta. Os potenciais se perdem em potenciados. Figura 8 – Oito e Meio.

A aparição de uma velha no segundo quadro serve como ponte para um devaneio de Guido (que dorme na cama). O movimento de seu braço funciona de raccord para o terceiro quadro. Fonte: DVD Oito e Meio. Versátil Home Video.

Em um agenciamento, o espectador não deve se comportar no papel de um juiz, cuja função é de impor, aplicar uma moral já definida. Esse pensamento exclui a possibilidade de que praticamos a lei não porque ela está acima do ser e deve, obrigatoriamente, ordenar toda a sociedade como defendem Hobbes e Freud, mas porque nós concordamos com ela, estamos dispostos a seguí-la, viver segundo ela. Aqui, o agenciamento parece estar mais ao lado de Locke (2014) e Kierkegaard (1979). O contrato social entre filme e espectador é um ato de espírito, da possibilidade de diálogo sem a imposição por uma das partes. Como informado

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por Latour (2001), constitui uma permutação de habilidades para a criação de algo não planejado, uma potência criativa que surge das próprias limitações que cada um possui. Para Kant (2003), um indivíduo somente é livre quando decide abdicar de sua liberdade interna, a fim de seguir um conjunto de prescrições. Afinal, como definir uma escolha se antes da escolha não há parâmetro que define essa própria escolha? Tal momento prévio à escolha só poderia gerar angústia num indivíduo, já que, entre uma opção e outra, o ser não é nada antes da escolha (ANDRADE, 2012). No cinema dos ‘espaços quaisquer’, portanto, o que está em jogo é a consciência da escolha a si própria como objeto, uma abertura espiritual que “supera todas as obrigações formais e limitações materiais, através de uma evasão de fato ou de direito” (DELEUZE, 1983, p.136), e não mais uma questão de conflito, que de antemão define as escolhas possíveis à protagonista. O ato de assistir um filme pode ser considerado como uma terapia, uma prática de fé. Apesar de se envolver como um meio coletivo, de desconhecidos em uma sala escura, o diálogo no momento é essencialmente individual. Afinal, como espectadores, necessitamos nos manter em silêncio, além de estarmos abertos a toda informação que provém da imagem e do som. A forma de burlar esse limite é adentrando em nossa própria memória, espaço privado em que podemos livremente nos expressar. Entretanto, este respiro, na cartela clássica, é apenas ilusório. Já detalhamos que o pensamento da árvore hierárquica supõe a sincronia entre a ação física com o tempo fílmico. Este ‘não tempo’, ao homogeneizar os fotogramas, interliga-se também com as nossas próprias capacidades sensório-motoras: é a velocidade mínima de projeção para se apreender o movimento. Nesse sentido, nossas expectativas não passam de falsas escolhas. Esquecemos outras maneiras de estarmos no mundo, muito diferente do esquecimento promovido pelo dia a dia, tempo que nos faz perder em nossos próprios pensamentos. Portanto, dois elementos parecem ser importantes no agenciamento cinematográfico: o silêncio e a memória. Isso porque, segundo Certeau (1990, p.195), “é o silêncio dessas coisas colocadas a (sic) distância, por trás da vidraça que, de longe, faz as nossas memórias falarem ou tiram da sombra os sonhos de nossos segredos. O isolador produz pensamentos com separações”. É no silêncio de Abraão, durante a caminhada com o filho para imolá-lo diante de Deus, que reside o salto no escuro que Kierkegaard defende, com o escuro adotando não o sentido de desconhecido ou ruim, mas mais relacionado com uma predisposição na hora da escolha e nas incertezas que ocorrem dessa espera. Isso parece corresponder com a própria experiência da sala de cinema, como também

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em uma tradução estilística dos ‘espaços quaisquer’. Por exemplo, ao final da Segunda Guerra, com a ascensão de movimentos como o neorrealismo na Itália e a nouvelle vague na França, o caminhante aparece como um elemento primordial da estrutura do filme. Entretanto, nessa nova personagem nos deparamos com um ser impotente, inseguro nas situações de causa e efeito, se restringindo ao silêncio literal e a observação do ambiente. Todavia, apesar dele não ser capaz de resolver as tensões do cenário, o caminhante consegue reestabelecer constantemente as descrições da trama, o que permitiria o recomeço das escolhas, sendo isso, por exemplo, o que estrutura o filme “Oito e Meio”. O ato de olhar de Guido sempre permite a quebra dos intervalos realistas que o pressionam socialmente, deixando que o fantástico interfira nesse espaço. Portanto, uma questão que talvez deva ser feita num ‘espaço qualquer’ é a seguinte: o quanto o espectador é capaz de confiar num Outro, no caso o filme, quando este é elevado a uma mesma potencia, ou até maior? E o contrário? Até que ponto se consegue fugir do raccord surrealista e oferecer não uma exposição dos códigos, mas a sua construção, uma enunciação? Aqui, a memória do espectador deve ser seriamente levada em conta, e não apenas manipulada. Se na árvore hierárquica o silêncio serve para o suspense, aqui serve para desvios. Entre “alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso” (DELEUZE, 1990, p.161), filme e espectador agem como falsários, e compreendem que os limites de um enquadramento, supostas forças que garantiriam a unidade das silhuetas entre objeto e ambiente, são apenas aparentes, ‘imposições externas’ ao fluxo linear do tempo.

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3 SOLUÇOES VISUAIS

Resta-nos, diante das questões tratadas até agora, oferecer alguma tradução visual para os ‘espaços quaisquer’, isto é, uma inspiração metodológica. Uma possível resposta está em Noel Burch (1992, p.53), que propõe a montagem segundo a estética cubista. Entretanto, uma análise mais apurada revela que o Cubismo, assim como as outras tendências modernistas, comporta-se igual a um instantâneo fotográfico, com um artista que não hesita em burlar o aparelho, chegando ao ponto de simulá-lo em seu próprio corpo, como acontece, por exemplo, no expressionismo abstrato ou action painting. Antes, procuramos uma coexistência fundamentada numa questão de recomeço das potências (qualidades), das possíveis atualizações da imagem: um tribunal cinematográfico que não reside em condenar atos já então definidos e inalteráveis para o herói, mas de colocar o público sob um estado de graça, capacitá-lo ao diálogo. É uma abertura ao erro que se renova a cada vez que o filme se projeta: algo que parece acontecer somente no tempo, em sua apresentação direta ao espectador (DELEUZE, 1990). Considerando as proporções da tela de cinema ou as de um dispositivo móvel (ora muito grandes ou muito pequenas, e não um meio termo), o Impressionismo, para essa pesquisa, pareceu surgir como o mais adequado dos movimentos artísticos. Segundo Bonitzer (2007, p.47, tradução nossa),

O Impressionismo é o nome de uma virada decisiva na arte, em que a pincelada e a cor já não mais se contêm dentro dos limites de um sistema de semelhanças externas em um espaço objetivo e estável (mesmo que desequilibrado), mas justificam-se por uma atmosfera mundana, para dar origem a um espaço interior, e sem limites, de sensações despidas17.

No método renascentista, era o artista quem se aproximava da realidade a fim de delimitar o que seria a imagem. O método impressionista, contudo, requer uma imagem criada por um olho compartilhado, cuja iniciativa também parte do dispositivo (pintura) e do espectador. Isso significa que o artista precisa rebaixar a sua condição para entrar em um diálogo, colocando os outros em pé de igualdade (e aqui, talvez, a fórmula [Tecnologia = Artista dividido por Objetos] possa ser efetivamente posta a prova). Assim, relacionamos o Impressionismo com um ‘espaço qualquer’ pela incerteza das escolhas que surgem durante 17

El Impresionismo es el nombre de um viraje decisivo em el cual la pincelada y el color ya no están contenidos dentro de lós limites de um sistema de semejanzas externas en um espacio objetivo estable (aun desquiciado), sino que se justifican por la atmosfera cambiante, para hacer surgir um espacio interior, y sin limites, de sensaciones desnudas.

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esse processo, tanto em um primeiro momento, pela criação do quadro através de um ato ambíguo da realidade sobre o pintor, quanto, em um segundo momento, pela interação entre o quadro e observador. Também, em um quadro impressionista, como, por exemplo, o ‘Impressão, nascer do sol’, de Monet, a questão não está mais em adotar uma posição fixa frente ao quadro, um oito ou oitenta, mas de uma questão essencialmente temporal, do intervalo entre o oito e oitenta que o observador necessita agora percorrer para descobrir as infinitas qualidades que as lascas, pontos e borrões de tinta podem oferecer. Sua caminhada em torno do quadro permite uma criação de múltiplas fronteiras, espaços que reagem a presença desse individuo e se reconfiguram, alteram as delimitações do próprio conteúdo a fim de fazerem um espectador repensar a interação. Aqui, o Impressionismo parece capaz de sustentar um desterritorialismo que procurávamos no capítulo anterior, visto antes pelos raccords, sendo, portanto, um estilo apropriado para pensarmos a encenação dos ‘espaços quaisquer’. Entre mover e estar imóvel, cada passo exterioriza-se entre perder em um se encontrar, um tempo em equilíbrio, porém dinâmico, um passado que se conserva, porém aberto à mudança. Encontramos uma boa ilustração destes princípios na instalação digital Le PasseMuraille18, da JDS Architects. Nela, projeta-se sobre uma tela a imagem de um edifício. Porém, à medida que um observador se aproxima da imagem, seu espaço se abre sobre um ponto, e o indivíduo pode agora atravessar as diversas paredes e locais que residem a sua frente, isto é, suas barreiras físicas. A obra, ao reagir sobre os passos de um espectador, revela áreas cada vez mais ocultas. O recorte não dá mais conta de fechar uma área, estabilizá-la (FIG.9). Figura 9 – Momentos de Le Passe-Muraille.

Fonte: JDS Architects’, 2009. 18

Disponível em: e

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Não faz mais sentido pensar a imagem em termos de uma medida física, um elevador de proporções. O comprimento entre dois fotogramas não se iguala mais a uma razão de 1/24 segundos, usada pela animação tradicional para o planejamento das poses de uma personagem, mas a uma distância inefável, tão grande que até que um projetor revele o fotograma seguinte, o interior deste já estaria alterado, reescrito pelo tempo. O intervalo que corresponde às pequenas faixas pretas de uma película, aquelas que separam os fotogramas uns dos outros, invisíveis durante uma projeção, agora se expandem, e absorvem a própria imagem (DELEUZE, 1990). Este pensamento “como potência que nem sempre existiu, nasce de um fora mais longínquo que qualquer mundo exterior, e, como potência que ainda não existe, afronta-se com um dentro, um impensável ou um impensado mais profundo que qualquer mundo interior" (DELEUZE, 1990, p.329). Dissemos que o mecanismo que cria a ilusão do movimento no cinema é apenas uma expansão do instantâneo fotográfico. Não obstante, podemos renovar seu conceito: se antes o ‘instante expandido’ retalhava o tempo, aqui ele acumula, e reitera a antiga aura dos objetos artísticos. A maior consequência, talvez, seja de que a encenação se encontra, de agora em diante, subordinada a este interstício, e não mais o contrário. São as várias impressões, vibrações moleculares de um objeto que expõem e criam uma contraditória objetividade para a nossa percepção frente a um objeto (FALCI; SOUZA, 2013). O ‘espaço qualquer’, longe de ser um abstrato visual, trabalha com a capacidade de atualização da matéria. Ele toma para si o momento de ordenação em um meio, da matéria, além de deixar o espectador sempre alerta a essa condição:

Um espaço qualquer não é um universal abstrato, em qualquer tempo, em qualquer lugar. É um espaço perfeitamente singular que apenas perdeu sua homogeneidade, isto é, o princípio de suas relações métricas ou a conexão de suas próprias partes, tanto que as junções podem se dar de uma infinidade de modos. (DELEUZE, 1983, p.128)

O enquadramento agora serve para temporalizar o espaço, torná-lo literal para um espectador, ao invés de, a partir de uma pirâmide ótica, espacializar o tempo por ações, tornando os cortes harmônicos ao movimento. Em relação ao fora de campo, seu aspecto virtual não mais se cria a partir das indicações feitas pela própria imagem. Na árvore hierárquica, conferimos à tela a função de uma janela, e o espectador, sentado em um ponto da sala, deveria projetar mentalmente a continuação deste espaço a partir das linhas de

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perspectiva, sendo este, por exemplo, um dos motivos que o inseriam dentro da narrativa. Criava-se uma expectativa, uma ansiedade para que a imagem confirmasse o nosso pensamento. Todavia, agora o espectador realiza desenquadres autônomos, que não necessitam de serem justificados pelo filme (BONITZER, 2007). Ele é tratado como alguém que realmente afeta a imagem. Longe de confirmar as expectativas, ao espectador é atribuída a função de demarcar e preencher o conteúdo deste intervalo, ainda que mentalmente. Isto acontece, por exemplo, em uma cena de “O Eclipse” (L'eclisse – Itália, França – 1962), de Michelangelo Antonioni. A protagonista Vittoria observa a fotografia de uma paisagem do Quênia, pendurada no apartamento de sua vizinha Marta. Marta diz a ela que esta é a foto de onde sua antiga casa se localizava. Todavia, não se vê moradia alguma nela, apenas vegetação. Vittoria, então, pergunta a Marta se a sua casa ficava em uma área apontada por seu dedo, e ela responde que não, que é mais a esquerda, o que culmina com Vittoria apontando o dedo para a parede em branco (FIG.10). Figura 10 – Fotograma de O Eclipse.

Fonte: DVD O Eclipse. Versátil Home Video.

Ao levarmos em conta o eixo temporal do Impressionismo, também encontramos uma superfície que se aproxima novamente dos espaços constatados, aqueles tratados no início de nosso texto, sobre “Crimes da Alma”. Surge na tela um mapa que se apresenta como uma totalidade de percursos (e afinal, não são as diversas experiências subjetivas que conferem objetividade a um espaço?), dissolvidas, pedindo para que nós aprendamos a constatá-las. Nos filmes que veremos, esta escavação só parece possível porque se estrutura em torno de alguma

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cor chapada, sendo ela, normalmente o branco. É na cor branca enquanto superfície totalizadora que o filme pode agir como um organismo inesperado, com comportamentos próprios a uma criatura: vacilante em se comunicar, que confunde suas memórias e pode subitamente alterar sua velocidade, tom, humor... Essa experiência é similar a Zona do filme “Stalker” (URSS – 1979), de Andrei Tarkovsky: a Zona deixa seus visitantes em uma espécie de esquizofrenia, sem saberem de que forma o ambiente reagirá sobre eles. O final de “O Eclipse”, por exemplo, parece querer transmitir a sensação de que o filme pode consumir suas personagens a qualquer momento, apagá-los de sua existência, e isso se confirma na última tomada: a luz de um poste é jogada direto para as lentes da câmera, em um primeiríssimo plano. Uma bomba atômica branca, digamos (FIG.11).

Figura 11 – Fim de O Eclipse.

No fotograma à esquerda, um esguicho parece apagar a cidade e seus habitantes. Essa impressão de desaparecimento ocorre em outros momentos do filme. Fonte: DVD O Eclipse. Versátil Home Video.

O branco (ou qualquer outra cor chapada) permite diversos modos de estruturar um agenciamento. Todavia, não é possível detalharmos, nesta pesquisa, todos os métodos envolvidos, e isto exigiria um estudo mais aprofundado. Também, não há formas definidas para se cristalizar o tempo oferecido pelo método Impressionista, através da projeção cinematográfica. Tentaremos descrever pelo menos dois tipos que estão entre os mais adotados. A primeira forma consiste em deixar, na tela, a imagem por um tempo maior do que o esperado. Podemos alongar o início e fim de cada plano deixando-o vazio, sem as personagens, como faz Antonioni, como também podemos desacelerar o ritmo das atuações, prolongando o silêncio das personagens. Por consequência, o filme reside menos no diálogo que conduz a trama, e força o público a se concentrar mais nas poses das personagens, no que

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elas podem significar. A memória do espectador, por sua vez, se ativa a fim de preencher conscientemente as lacunas que o filme não oferece. A distância da câmera em relação aos atores e a disposição de seus corpos também auxiliam a retardar o ritmo da imagem. Theo Angelopoulos, por exemplo, costuma dispor suas personagens de costas à câmera (agindo em direção ao ponto de fuga, e não mais para a tela), além de colocá-los a uma distância consideravelmente grande das lentes. Também, ao usar uma teleobjetiva, Angelopoulos achata a perspectiva do cenário, que faz com que os planos dentro do enquadramento se comportem como fitas, lâminas gráficas. O resultado é uma abstração pictórica, uma planificação da imagem (BORDWELL, 2008). Na Figura 12, quatro fotogramas de “A Eternidade e Um Dia” (Mia aioniotita kai mia mera – Grécia, França, Alemanha, Itália 1998), demonstram um espaço conforme as lâminas gráficas. Figura 12 – Espaço segundo lâminas.

Nos filmes de Angelopoulos, as personagens recusam o princípio frontalista. Fonte: DVD A Eternidade e Um Dia. 2001 Video.

Uma segunda forma de promover o tempo está em repetir várias vezes um mesmo acontecimento, como ocorre quando acessamos algum GIF na internet ou criamos uma estrutura de repetição na programação de um código. Encontramos este princípio na animação

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“00:08”, de Yutaro Kubo19. A ação desse filme consiste de uma jovem que retira uma xícara com a mão, possivelmente para tomar café ou outra bebida. Ao usar da repetição, Yutaro consegue ultrapassar a sincronia entre a percepção do espectador com o movimento apresentado na tela. Depois de apreendida, então, ele desmonta essa ação em pequenos blocos, de modo que, partindo sempre do início, ele possa gerar novos e possíveis encadeamentos sobre a imagem. “O objeto permanece o mesmo, mas passa por diferentes planos” (DELEUZE, 1990, p.59). Ao recomeçar um evento do zero, Yutaro permite que o produto tome um novo caminho de escolhas, possa se expressar, expondo ao espectador o funcionamento do tempo e as possíveis camadas, variações de conteúdo que acessamos neste eixo. Isto poderia remeter ao surrealismo de Buñuel, que citamos no capítulo anterior. Contudo, aqui há uma diferença ímpar, pois, ao invés do corte ser um ponto de passagem, aqui decide se usar a metamorfose da linha. Outra característica é que cada fotograma que compõe o movimento é individualizado, revelando qualidades de naturezas distintas para o público escolher (FIG.13). Figura 13 – Fotogramas sucessivos de 00:08.

Fonte: KUBO, 2014.

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Disponível em:

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Uma forma mista de repetição com tempos prolongados está no final de “Zabriskie Point” (EUA – 1970), também de Antonioni, onde acontece a explosão de uma casa. Aqui existe o corte, pois a câmera assume posições cada vez mais próximas ao imóvel, entretanto, isso é compensado pela quantidade de vezes que o evento se repete, chegando ao ponto de permitir que outras explosões, que não fazem parte do espaço físico, se apresentem sobre uma cor de fundo chapada, em um ‘espaço qualquer’. Ou seja, a relação entre os planos passa a ser de cunho inteiramente virtual, mental, e isso só parece possível por causa da cor azul que domina as tomadas, tendo a mesma função do branco totalizador. Isso excluiria uma inclinação cubista, pois a sequência não parece querer transmitir o espaço que envolve, mas sua mudança no tempo, simbólica e descritiva, já que se usa do recurso da câmera lenta (FIG.14). Figura 14 – Sequência de Zabriskie Point.20

Fonte: DVD Zabriskie Point. 2001 Video. 20

O site Youtube.com possui vários uploads dessa sequência. Você pode acessar uma em alta qualidade neste link: < https://www.youtube.com/watch?v=guOmJM8xvHA>

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Retornemos, por um momento, as pinturas impressionistas e a sua relação com o extracampo. Suponha estarmos frente ao quadro ‘Noite Estrelada Sobre o Ródan’, de Vincent van Gogh. Ao permanecermos muito próximos da tela, o que enxergamos? Ora, apenas os borrões de tinta; e os barcos, mar e cidade que ordenam o quadro, neste momento, igualar-seiam apenas a um fora de campo ocular, caso a considerássemos como um recorte do todo. Contudo, o que acontece ao nos afastarmos? Este suposto campo gradualmente desaparece. O quadro reage ao observador, suas cores se mesclam e retraçam o conteúdo: vemos então a paisagem. Atingimos o limite do quadro, a sua potência, e, se nos afastarmos mais, esse campo se torna indefinido, para além em um livre jogo da imaginação. Até onde reside o Ródan? Há outros barcos? Requere-se uma fabulação, mas que ela implicitamente seja feita segundo as ordens criadas pelo suposto Ródan. O pensamento de Bazin, que discutimos anteriormente, o de um abrir e fechar do quadro, só pode ser levado em conta se aceitarmos o pressuposto de que tudo deve ser ficcionalizado, já que “naturalmente, a tela abstrata é o lugar privilegiado onde reina, quase sem partilha, o quadro-limite” (AUMONT, 2004, p.121). Isso implicaria que, por exemplo, ao uso do zoom fosse atribuída alguma justificação narrativa. Aqui, insistimos no extracampo não para sermos redundantes (apesar dele o ser), mas para enfatizar o quanto que, alterado o tratamento que damos a ele, geramos novos questionamentos sobre a imagem, novas abordagens. Vimos até agora que os recursos visuais usados para se contar uma história, e que são tratadas como uma forma de linguagem, parecem ter origem numa necessidade direta de se ordenar o fora de quadro: o caos da realidade demanda que se exclua tudo que é estéril e que não serve para constituir a imagem. Ou posto de outra forma: diante da cena descrita no roteiro, planejamos a encenação para que se crie um fora de campo específico, mascarado, e que por inversão crie a encenação que necessitamos (LYOTARD, 2005). Isso pode ser visto em um zoom-out de “Era uma Vez no Oeste” (C'era una volta il West – EUA, Espanha, Itália - 1968), de Sergio Leone. Aqui, o fora de campo é ordenado para que o primeiro plano aponte para ele, motivando a câmera a se afastar (FIG.15). Figura 15 – Zoom-out de Era uma Vez no Oeste.

Elementos como o olhar da personagem para fora da tela, além de corpos ‘cropados’ (a cabeça da personagem e a bota a sua direita), instigam um extracampo concreto e ordenado. Fonte: DVD Era uma Vez no Oeste. Paramount/Universal.

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Tentamos descrever como o quadro de Van Gogh e seu correspondente cinematográfico se explicariam quando fundamentados numa necessidade de se estabelecer funções narrativas coerentes, além de contínuas. Todavia, isso exclui as possibilidades que abordamos anteriormente, quando assumimos a independência da matéria e seu comportamento. Parece mais apropriado dizermos que, diante do quadro de Van Gogh, o observador acaba assumindo uma posição incerta de leitura, igual aos caminhantes de Antonioni, e que devem se perguntar o que há para se ler na imagem: o observador “sente a necessidade de ver os dados de um problema mais a fundo que a situação” (DELEUZE, 1990, p.157). A pintura, longe de exibir apenas um Ródan quando nos afastamos dela (e, claro, dependerá da própria capacidade do quadro de acumular vários Ródans), acaba se comportando como um palimpsesto espiritual, e cabe a nós escavarmos em um eixo que só pode existir no tempo e na memória. Tanto as nossas passadas quanto os movimentos feitos por uma câmera criam um atual e virtual indiscerníveis, que atentam o espectador para as enunciações da matéria e da narrativa: essa, diferente da concepção clássica, se apresenta como um cristalino, com o equívoco dominando as linhas narrativas das personagens. É o caso de “O Ano Passado em Marienbad” (L'année dernière à Marienbad – França, Itália – 1968), de Alain Resnais: entre três personagens, um assume ser marido e outro amante da esposa. Mas, em poucos momentos, os papéis se invertem e a esposa passa a ser uma amante e o amante passa a ser um marido, ou também, a esposa nega conhecer o marido e o amante. Essas incompossibilidades21 só podem habitar em um tempo não cronológico, que um filme convencional não dá conta de suportar. O zoom, antes de isolar um ponto no espaço ou ser motivado por uma continuidade, deve colocar em questão a forma deste ponto, sua escala, tons de luz e do que ele é capaz de se transformar, comunicar: “o valor numérico infinito, indecidível de um ponto em uma linha real é o poder de transformação infinita da linha gráfica no cinema.” 21

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(CUBBIT, 2005, p.73, tradução nossa). Em um filme-quadro, o que

O termo incompossibilidade foi cunhado por Leibniz ao abordar o problema dos ‘futuros contingentes’, descrito em seu livro ‘Discurso de Metafísica’. Sobre esse termo, Deleuze (1990, p.160) também esclarece: “[...] não é o impossível, é apenas o incompossível que procede do impossível; e o passado pode ser verdadeiro sem ser, necessariamente, verdadeiro. Mas a crise da verdade assim conhece mais uma pausa que uma solução. Pois nada nos impedirá de afirmar que os incompossíveis pertencem ao mesmo mundo, que os mundos incompossíveis pertencem ao mesmo universo [...] É a resposta de Borges à Leibniz: a linha reta como força do tempo, como labirinto do tempo, é também a linha que se bifurca e não pára de se bifurcar, passando por presentes incompossíveis, retomando passados não-necessariamente verdadeiros." 22 The finally undecidable numerical value of a point on the real line is the infinite transformational power of the graphic line in cinema.

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ocorre de fato: um corte e sobreposição de um plano na tela ou são os tons de luz que se dissolvem e se transformam, em uma velocidade acima de nossa percepção comum? (ver FIG.16). Tal palimpsesto também pode ser visto, por exemplo, em “00:08”. Num certo momento, temos a impressão de estarmos indo e voltando no eixo Z do tempo, e não do espaço. Junto a esse movimento, a linha se transfigura, revelando percursos cada vez mais internos a própria linha, algo que parece ir além de uma visão molecular. Isso, de certa forma, é semelhante com Le Passe-Muraille. Todavia, ao retrocedemos no eixo, percebemos que os conteúdos que acabamos de apreender não são mais os mesmos, e o espaço que acabamos de visitar se modificou por termos visitado outra área (ver FIG.17). Nessa aparente sucessão de presentes, que passam por uma porta luminosa, o obturador, reside um constante embate entre um criar pelo porvir e apagar por um criado, e sobre quem se conseguirá manter dentro do quadro. Significa que o tempo, agora, reescreve o espaço segundo probabilidades, que alertam o público para sua capacidade de esquecimento na projeção, além de um falso senso de permanência. A memória funciona conforme uma cadeia de Markov, aquela que citamos no início do texto. Nela, as forças não trabalham de forma aleatória, mas tratam-se antes de “lances sucessivos, cada um dos quais opera ao acaso, mas em condições extrínsecas, determinadas pelo lance precedente. O diagrama, um estado de diagrama, é sempre um misto de aleatório e de dependente” (DELEUZE, 2005, p.92). Por fim, vamos dizer que o uso de um ‘tempo morto’ numa tomada live-action, documental, não possui a função de transmitir monotonia e exaustão, elementos vistos pela cartela clássica como ‘anti-dramáticos’ (BORDWELL, 2008) e que foram relacionados com o estilo do neorrealismo italiano. Antes disso, o tempo morto aproveita de uma arché pressuposta pelo espectador para questionar até que ponto essa materialidade, este testemunho que é criado pela câmera, não passa de um virtual criado por sua própria mente, e não pela imagem. O arquivo do filme seria de fato um arquivo com autoridade física ou um conteúdo criado pelo próprio espectador, com intuito de comprovar para si uma hipótese levantada para justificar a imagem, ou melhor, o que vê? (FALCI, 2014). As formas que vimos de cristalizar o tempo, apresentá-lo diretamente, tencionam no público a noção de memória, de como ela está mais imbricada ao falso, ao imaginado, do que ao concreto, garantido. Que, pois, afinal é o teste de Kuleshov? Antes uma relação de causa entre o ator e a comida, uma contiguidade

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que garante a fome, ou antes, um sistema de relações virtuais que assume diferentes significados através do corte? Figura 16 – Transformação infinita da linha em 00:08.

Fonte: KUBO, 2014.

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Figura 17 – O vai e vem impressionista em 00:08.

- Quadros 01 a 08: zoom-in. - Quadros 08 a 11: zoom-out. - Quadros 12 a 15: zoom-in. - Quadro 16: o palimpsesto enquanto totalidade. Os tempos se misturam. Fonte: KUBO, 2014.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim dessa temporária escavação. Como arqueólogos, tentamos cuidadosamente levantar as camadas de nosso objeto Cinema, e conseguimos encontrar resquícios de ‘espaços quaisquer’. Todavia, essa pesquisa não deve parar por aqui. O diálogo de um ‘espaço qualquer’ vai além das limitações que a cultura impõe à arte e a imaginação, assim como as limitações que surgiram para a escrita deste texto. Projetar um ‘espaço qualquer’ cutuca, pesa a mão em questões que concernem à existência humana: não apenas reproduzem, mas criam um tempo, em seus três estados, que permitem o público fabricar um virtual que parta dele, e não da imagem. Permitem também que um espectador possa tramar um conjunto de escolhas e que não tenha que configurá-las para se adequar ao filme, como ocorre nas árvores hierárquicas. Nestas, as expectativas criadas apenas servem para confirmar algo já suscitado pela própria imagem. São falsas escolhas que amenizam o doloroso processo de gerar confiança, entendimento mútuo. O ‘espaço qualquer’ desenvolve a memória, mas também alerta o indivíduo para um fim da película, para a necessidade do esquecimento. O ‘espaço qualquer’ sempre recomeça o processo da escolha, mas nos deixa cientes, em nossa caminhada, que teremos que selecionar uma de cada vez, assumir riscos e esperar no silêncio. Um coletivo frágil de silêncios, afinal, não é isso que consiste em uma sala de cinema? Sugerimos, como princípio visual, trabalharmos com o Impressionismo, por parecer traduzir melhor esse processo de incertezas, de agenciamentos. Assumindo diferentes distâncias de um quadro, ocupamos um plano corrediço, deslizante, que se opõe ao volume das imagens renascentistas. Afinal, quando nos afastamos dessa imagem, foi ela que encolheu ou fomos nós que retrocedemos? O Impressionismo origina um eixo de profundidade temporal, não mais espacial, e liberta o movimento aberrante dos contornos, das silhuetas que o nosso olho diferencia e que servem para nos situarmos no espaço. Poderíamos assimilar o movimento de um observador como se fossemos ampliar certo fragmento, um recorte de um todo. Todavia, aqui essa escolha não implica na reversibilidade que estamos acostumados, de um retroceder sem consequências. O conceito que o Impressionismo parece apontar é de que nosso deslocamento sempre reencadeia o conteúdo, chama atenção para novos detalhes, e são detalhes que não podem ser comparados quantitativamente, ou em dimensões físicas. Aqui, o indivíduo é desterritorializado. Se considerarmos apenas o quadro como espaço, como acontece no cinema (uma tela coberta por um escuro), o sujeito se torna um denominador

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comum para os borrões de cor que compõem a imagem. Um ponto de cor verde a uma distância X é do mesmo tamanho que um ponto de cor amarelo e um ponto de cor azul em uma distância Y. Isso é idêntico com o enquadramento da câmera, como nos foi informado por Deleuze. No momento que consideramos que o quadro possui uma profundidade de tempo, isto é, um eixo Z, o nosso recorte nunca se apresenta como um recorte. Tanto um primeiro plano de uma gota d’água quanto um plano geral de uma cidade possuem a mesma dimensão física como imagem: uma unidade de moldura. Quando limito um espaço, ele por sua vez se expande contra a minha vontade e se reconfigura, me dizendo que nunca conseguirei controlá-lo de fato (a não ser em sua capacidade física de suportar espaços, como em uma pintura, mas, no cinema, a única limitação é o tempo de sua projeção). Ele se torna um avesso, um longe mais longínquo e um próximo mais perto, igual nosso universo. Por essa característica sempre podemos reestruturar nossas caminhadas. Todavia, isto não implica que será prazeroso, sempre há responsabilidades em jogo dentro de uma conversa. O agenciamento cinematográfico não deveria tornar invisíveis nossos passos, mas torná-las conscientes para o indivíduo, do onde e da forma que se pisa, e a forma que conseguimos direcionar o espectador a pensar nessas relações é evocando o esquecimento. Através de duas formas que citamos aqui, os tempos longos e os laços de repetição, tornamos literais os riscos que envolvem caminhar para uma direção e perder o controle das outras. Também alertamos para o processo de sincronia entre a ação com seu espírito, e de como ela não está nem partindo de si ou partindo da escolha de confiar em outro, ainda que esse outro possa vacilar. Fica descrito aqui um possível caminho de se continuar o estudo. De que forma essas relações se encontram quando vistas em obras digitais interativas? Seria a interação, isto é, o ato físico de um usuário acessar uma interface, apenas uma volta ao princípio de sincrônia do instantâneo fotográfico? Será que na metáfora dos ícones, responsável pelo acesso e produção de conteúdos, não encontramos um intervalo igual da cartela clássica? Isto é, no momento que clicamos em um ícone, não estaríamos atravessando um corte que tem como base o fim de um conteúdo e o início do próximo? Como devemos incorporar as ferramentas digitais, como, por exemplo, da programação generativa, para a produção de um filme? Duas obras merecem ser citadas caso o leitor se interessa: a primeira é “Fractal Film” (2013) 23, de Delphine Doukhan e Antoine Schmitt, que tenciona a encenação em live-action. Já a segunda é o sistema

23

Mais informações em: . Também é possível experimentar uma versão online, porém limitada: .

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“Galatema”

24

(2010), criado por Alain Lioret, que questiona no lado da animação

procedural. E como analisar a encenação, quando, por exemplo, um filme se utiliza das múltiplas janelas de um navegador online? Isso acontece no clipe “The Wilderness Downtow” 25

, desenvolvido por Aaron Koblin para a banda Arcade Fire em 2010. Será que o infinito

scroll entre fotos como acontece no Flickr, ofuscam as relações mentais em prol do movimento que é produzido? De que forma conseguimos resgatar os processos mentais que tanto custamos para abordar e ainda usarmos da interação física?

24

Disponível em:. Você pode ler um artigo sobre o seu funcionamento em: http://www.generativeart.com/on/cic/GA2010/2010_2.pdf>. 25 Disponível em: .

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REFERÊNCIAS

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O DIABO A QUATRO. Direção: Leo McCarey. Produção: Herman J. Mankiewicz. Intérpretes: Groucho Marx, Harpo Marx, Chico Marx, Zeppo Marx, Margaret Dumont, Raquel Torres, Louis Calhern, Edmund Breese, Leonid Kinskey, Charles Middleton, Edgar Kennedy. Roteiro: Bert Kalmar, Harry Ruby, Arthur Sheekman, Nat Perrin. 1933. 68 minutos. DVD. Continental. O ECLIPSE. Direção: Michelangelo Antonioni. Produção: Raymond Hakim, Robert Hakim. Intérpretes: Alain Delon, Monica Vitti. Roteiro: Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra, Elio Bartolini, Ottiero Ottieri. 1962. 126 minutos. DVD. Versátil Home Video. OITO E MEIO. Direção: Federico Fellini. Produção: Angelo Rizzoli. Intérpretes: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk, Barbara Steele, Madeleine LeBeau, Caterina Boratto, Eddra Gale, Guido Alberti, Mario Conocchia, Bruno Agostini, Cesarino Miceli Picardi. Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi. 1963. 138 minutos. DVD. Versártil Home Video. UM CORPO QUE CAI. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Herbert Coleman, Alfred Hitchcock. Intérpretes: James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Tom Helmore, Henry Jones, Raymond Bailey, Ellen Corby, Konstantin Shayne, Lee Patrick. Roteiro: Alec Coppel, Samuel A. Taylor, Pierre Boileau, Thomas Narcejac, Maxwell Anderson. 1958. 129 minutos. DVD. Universal Pictures. ZABRISKIE POINT. Direção: Michelangelo Antonioni. Produção: Carlo Ponti, Harrison Starr. Intérpretes: Mark Frechette, Daria Halprin, Paul Fix, G.D. Spradlin, Bill Garaway, Kathleen Cleaver, Rod Taylor. Roteiro: Michelangelo Antonioni. Franco Rossetti. Sam Shepard. Tonino Guerra. Clare Peploe. 1970. 113 minutos. DVD. 2001 Vídeo.

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