Sobre a potência política das imagens

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AS (SEM) RAZÕES DA ARTE Universidade Estadual do Paraná

Sobre a potência política das imagens1 Naiara Krachenski2

Proponho com esta comunicação refletir sobre a potência política das imagens. Digo imagens, em um sentido amplo, ao invés de Arte com “A” maiúsculo, porque pretendo pensar justamente a força política contida naquelas imagens despretensiosas, pertencentes ao nosso cotidiano. Com isso, gostaria de deixar claro, não faço nenhuma apologia contra a hierarquização entre “arte maior” e “arte menor”, arte pela arte e arte engajada; o que me preocupa sublinhar é que não estou pensando aqui sobre as imagens artísticas que se dizem engajadas ou as imagens produzidas com óbvios fins políticos, o que exigiria, penso eu, outra abordagem metodológica. A partir de um pensamento histórico, com traços sociológicos, antropológicos e filosóficos, busco compreender de que maneiras a repetição daquilo que se vê é um elemento fundamental na construção de visões de mundo. Penso aqui em “visões-de-mundo” no sentido da weltanschauung alemã, ou seja, um conceito que se aproxima de ideologia. Claro que tais conceitos exigem uma profunda reflexão. Porém, deixo claro que o que me interessa ter em mente durante esta fala é a noção do poder quase oculto da ideologia, aquele poder tão bem construído e distribuído que tenta nos convencer de que ele não existe, de que ideologia é só do outro, o outro que é diferente e contra o estado “natural” das coisas. E é justamente este “poder oculto da ideologia” que está por trás da potência política das imagens, que ordena, valora e hierarquiza nossa experiência histórica e política. Parto, então, de modo geral, da noção de representação proposta por Stuart Hall que a entende como um fenômeno estruturante das experiências dos sujeitos e não como um mero reflexo da vida: “a representação entra na própria constituição das coisas; ela é tão importante quanto a base econômica ou material para moldar sujeitos sociais e eventos históricos – não somente uma reflexão do mundo após o

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Texto apresentado no evento As (sem) razões da arte promovido pelo Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná campus União da Vitória em 30/06/2016. 2 Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. Temas de interesse: história da arte; cultura visual; história política; imperialismo; pós-colonialismo.

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AS (SEM) RAZÕES DA ARTE Universidade Estadual do Paraná evento”3. Desta forma, organizo esta fala a partir de temáticas norteadoras para a reflexão desta potência política das imagens. Em primeiro lugar, importa-me discutir a importância da maçante repetição de padrões pictóricos e discursivos nos diferentes suportes visuais a que temos acesso e como este incessante movimento é responsável pela construção e posterior manutenção de visões de mundo que moldam não só nossos pensamentos, mas também nossas ações. Selecionei um grande tema que me vem à mente para pensar esta questão: o preconceito. Seja ele preconceito social, racial ou de gênero, basta nos policiarmos em relação àquilo que vemos para encontrarmos os tópicos discursivos mais difundidos. Vamos começar pelo cinema. Basta assistir meia dúzia de filmes norteamericanos hollywoodianos para nos darmos conta dos incontáveis clichês que atribuem papéis estáveis e definidos para cada grupo de pessoas. Ali encontramos vez após outra a imagem do americano salvador do mundo – principalmente quando pensamos em filmes de super-heróis, filmes policiais ou de suspense – e os vilões “de sempre”: o russo ou o terrorista islâmico; ali também encontramos a imagem do negro sempre associada à marginalidade violenta ou a pobreza e fome africanas; ali impera a imagem da mulher associada à sua beleza física e seu maior ou menor grau de sucesso na vida depende, em última instância, a alinhar-se a tais padrões. Saindo do mundo do filme, esta mesma lógica de constante repetição de padrões pode ser encontrada também nas novelas brasileiras que atribuem sempre as mesmas características aos personagens: praticamente não há uma novela em que o núcleo central de personagens não more na zona sul carioca, em um belo apartamento, sempre muito bem vestidos e com empregados 24 horas por dia. Claro, estes personagens centrais são sempre de classe média alta e brancos, enquanto que os personagens negros e pobres são retratados como os empregados dos brancos e próximos à violência. Poderia dar mil exemplos sobre essa questão, mas me restringirei ao filme e à novela. O ponto que quero salientar aqui é que são justamente nesses suportes visuais que pertencem exclusivamente à esfera do entretenimento que relações do indivíduo frente ao mundo são estabelecidas e 3

HALL apud HAYES, SILVESTER & HARTMANN. “Picturing the past in Namibia: the visual archive and its energies” In HAMILTON, HARRIS, TAYLOR, PICKOVER, REID & SALEH. Refiguring the Archive. Springer Netherland, 2002, p. 110.

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AS (SEM) RAZÕES DA ARTE Universidade Estadual do Paraná conservadas. Não é algo de pouca importância o vilão do filme norte-americano ser sempre o russo ou o árabe, assim como não é uma mera representação da realidade brasileira as relações sociais e raciais apresentadas nas novelas. O que está em jogo neste caso é a consolidação de um discurso que se pretende homogêneo sobre determinada realidade. E, quando temos contato apenas com ele, nossa visão de mundo passa a ser moldada tendo como real o que está ali representado. A partir desta primeira incursão, gostaria de comentar brevemente sobre o papel central dos estereótipos na cultura visual. Em geral, os estereótipos se apresentam como elementos estruturantes da nossa relação com o mundo e nos passam uma falsa noção de controle sobre ele. No entanto, ainda que seja extremamente difícil abrir mão de todos os estereótipos que construímos ao longo da vida para dar sentido ao que nos cerca, eles podem operar de forma perigosa quando apropriados por discursos de intolerância e fundamentalismo (seja político ou religioso). Tomo como exemplo, mais uma vez, o vilão do filme de Hollywood. Como já nos dissera Edward Said, há mais de 40 anos, o estereótipo do oriental como maléfico, responsável por crimes e atrocidades contra a humanidade (ocidental) tem um importante papel na constituição da opinião pública. Said referiase naquele momento sobre como as imagens do árabe foram manipuladas pela imprensa norte-americana para justificar a guerra de 1973 na Palestina4. No entanto, esta percepção de Said se mostra extremamente atual ainda hoje quando enfrentamos questões de extremismo religioso islâmico ou imigração em massa de sírios para os países da Europa. Os estereótipos desses grupos de pessoas foram tão solidamente construídos na cultura ocidental que acreditamos seriamente que Estados Unidos e Europa devem intervir, mesmo que militarmente, para que a paz possa reinar no mundo. Relação com os filmes não é mera coincidência. Por fim, gostaria de refletir sobre como nossas experiências são mediadas pelas imagens, ou seja, sobre como damos sentido às coisas vividas a partir de um processo de visualização da própria existência.

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SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

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AS (SEM) RAZÕES DA ARTE Universidade Estadual do Paraná Primeiramente, gostaria de pensar sobre um processo que denomino de presentificação do estereótipo. Tanto Ernest Gombrich5 quanto Michael Baxandall6 já afirmaram que tendemos a ver aquilo que já nos é familiar, ou seja, no caso que estes dois historiadores da arte discutiram, seria o modo como o artista retrata algo menos a partir da observação pura do objeto e mais a partir de referências visuais que ele já possui em seu repertório mental, advindas da circulação de imagens em determinada sociedade e cultura; o que seria a schematta para Gombrich e o period eye para Baxandall. A partir das considerações desses dois autores, ou seja, que tendemos a ver o mundo a partir de referências visuais que nos são dadas ao longo da vida, entendo o fenômeno de presentificação do estereótipo como aquele momento em que reconhecemos algo enquanto tal por ele se assemelhar às imagens mentais que temos. Por exemplo, um missionário alemão que fora trabalhar na colônia do Gabão na África Equatorial Francesa no início do século XX, assim descreveu sua chegada: “Água e selva...! Quem consegue reproduzir essas impressões? Para nós tudo parece sonho. Aqui as paisagens antediluvianas, que vimos ao acaso em desenhos fantásticos, se tornam realidade. (...) Aqui é impossível enganar-se: suspensas numa palmeira e se mexendo, duas caudas de macacos. Agora seus dois proprietários estão visíveis. Agora, estamos realmente na África!”7. Ou seja, é só quando ele consegue enxergar uma natureza paradisíaca e a presença de macacos que ele se vê realmente em África. Também nós enfrentamos esse fenômeno: quando vamos ao Rio de Janeiro, por exemplo, nos vemos realmente no Rio de Janeiro quando vemos o Cristo ou quando estamos diante de uma escola de samba; e por aí vai. A questão aqui é que só conseguimos concretizar nossa experiência em determinado local quando visualizamos algo que já tínhamos em mente. A questão da visualização da existência também atinge nossa compreensão do passado histórico. Como historiadora, não posso deixar de notar como a visualização do passado se constitui como uma ferramenta importante no ensino da história. A preocupação dos professores em procurar bons filmes de época reflete a 5

GOMBRICH, Ernest. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. 6 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 7 SCHWEITZER, Albert. Entre a água e a selva: narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África equatorial. SP: Ed. UNESP, 2010, p. 31.

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AS (SEM) RAZÕES DA ARTE Universidade Estadual do Paraná ideia de Paulo Knauus de que “a imagem condensa a visão comum que se tem do passado”8, uma vez que ao trabalhar com tais filmes, procuramos elaborar uma aproximação do passado com a realidade do aluno e isso é feito através da imagem de como as pessoas se vestiam, como elas falavam, como eram suas casas e os lugares que frequentavam etc. De um modo geral, a construção do passado na nossa educação básica é feita através de imagens; ainda hoje quando pensamos em Idade Média o que nos vem à mente não são os textos que lemos nos livros didáticos ou nos trabalhos de medievalistas, mas as cenas produzidas por filmes como O Nome da Rosa, ou, para uma geração mais nova, as paisagens visuais contidas nos vídeo games como o Assassin’s Creed. Para finalizar, o ápice da visualização da existência, penso eu, deve ser pensado a partir do fenômeno facebook e redes sociais. É comum, para quem não possui FB, ouvir a expressão: “mas então você não existe!”. No mundo digital a existência do indivíduo depende de um instrumento que o possibilite de postar a quantidade que lhe aprouver de fotos que demarquem o que este sujeito andou fazendo. Dessa forma, uma reunião de amigos é vivida mais intensamente quando postamos fotos do encontro em nossa rede social ou as fotos de uma viagem devem ser postadas para que o mundo veja e assim saibam onde eu estive. É claro que o tema da potência política das imagens pode ser desdobrado em várias discussões e com diferentes níveis de profundidade. O que tentei fazer hoje foi apresentar um panorama de algumas questões que podem ser pensadas à luz desta grande temática.

Em 16/06/2016.

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KNAUUS, Paulo. “O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual” In ArtCultura, Uberlândia, v.8, n.12, jan-jun. 2006, p. 98-99.

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