SOBRE DECKS E \" SHIPS \" : APONTAMENTOS SOBRE FANDOMS TEMATIZANDO MULHERES QUE DESEJAM MULHERES NO CONTEXTO BRASILEIRO

May 24, 2017 | Autor: M. Perez Calixto | Categoria: Internet Studies, Gender and Sexuality, Fan Studies, Shipping, Femslash, Fandom Studies
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SOBRE DECKS E “SHIPS”: APONTAMENTOS SOBRE FANDOMS TEMATIZANDO MULHERES QUE DESEJAM MULHERES NO CONTEXTO BRASILEIRO Maria Eugênia Perez Calixto Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp [email protected] Simpósio Temático 10: Mídias Digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo O consumo de mídia tem se transformado de maneira particular no Brasil principalmente nas últimas duas décadas. Essa mudança é marcada por um deslocamento das classes médias e altas da TV aberta para a TV por assinatura e por um consumo de produtos culturais comerciais por meio da internet. É nesse cenário que se acentua a formação do que já se conhecia nos Estados Unidos como fandoms – coletivos de fãs que compartilham, discutem, se engajam e produzem artigos artísticos em torno de produtos culturais comerciais. Neste paper me proponho a discutir alguns apontamentos elaborados a partir do trabalho de campo de meu mestrado, que se dedica a investigar um subgênero específico dessas fandoms conhecido como femslash, que tematiza desejo e eroticidade entre mulheres. Palavras-chave: fandoms; sexualidade; femslash; internet; mídias. INTRODUÇÃO: O QUE SÃO FANDOMS? Em meados da década de 1960/1970 surgiram nos EUA grupos de fãs 1 que começaram a se organizar enquanto comunidades, principalmente em torno do seriado Star

1 Referir-me-ei aos fãs que estão inseridos em grupos (principalmente por meio de contatos virtuais) esboçando críticas, debates e releituras concernentes aos universos fictícios desses produtos culturais comerciais.

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Trek2, elaborando convenções3 e produzindo fanzines4, vídeos em VHS editados a partir de gravações da TV, músicas e desenhos que circulavam entre eles, inclusive por meio de cartas para localidades distantes. Essas práticas de discussão, engajamento e críticas ficou conhecida pelo termo fandom5. A popularização e expansão da internet no final da década de 1990 inflexiona as formas de distribuição e consumo de produtos culturais e das próprias fandoms, além de impactar as modalidades de organização no espaço e de formas de sociabilidade entre os fãs. No Brasil, as fandoms surgem, se não exclusivamente, principalmente com a expansão/ comercialização da internet. Gomes (2007) indica uma tendência de mudanças significativas no consumo de mídia no Brasil, mencionando mudanças tecnológicas que permitem a um segmento brasileiro de consumidores de mídia, obter autonomia e um aumento de autoridade frente a empresas de comunicação de massa. Se nos anos 1970 e 1980 a telenovela6 se consolidou como repertório compartilhado entre segmentos dos mais diversos públicos, a partir dos anos 1990 e principalmente da década de 2000 até os dias de hoje, ela perdeu força como fonte única de entretenimento no Brasil (Hamburger, 2005). É nesse cenário que se expande o interesse e engajamento na participação de fansites (sites de fãs), como indica Gomes (2007) e uma aglutinação maior em torno das femslashes7 de públicos que não se sentiam tão contemplados pelas telenovelas brasileiras8. 2 Jenkins (1992), Busse&Hellekson (2006) e Coppa (2008) buscam rastrear a história do surgimento e desenvolvimento dessas comunidades de fãs e suas fanarts. Todos/as apontam o papel paradigmático do seriado estadunidense de ficção científica, Star Trek, nesse contexto. Coppa (2008) esboça uma explicação para a centralidade desse seriado atentando para o perfil dos sujeitos envolvidos nessas comunidades de fãs. 3 Trata-se de reuniões de fãs com atividades voltadas para produtos culturais comerciais de mídia específicos, para vários produtos, ou mesmo para uma temática (como ficção científica por exemplo). 4 Revistas de produção independente, organizadas por fãs. 5 O termo êmico pode se referir tanto às atividades gerais do grupo de críticas e debates, e suas formas de sociabilidade como às próprias produções artísticas especificamente. Para eliminar essa ambiguidade me referirei às segundas como artigos. 6 Cito apenas alguns, dentre muitos trabalhos sobre telenovelas que já foram produzidos: Ortiz (1989), Hamburger (2005) e Almeida (2001, 2007). 7 Subgênero de fandoms que tematiza e shipa relações de desejo, erotismo e afeto entre mulheres. 8Alguns trabalhos recentes se debruçaram especificamente sobre representações de homoeroticidades/afetividades nas mídias comerciais: Beleli (2011), Colling (2010), Lima (2008), Lopes (2008),

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Com o intuito de me aproximar de fãs que shipam casais de mulheres – fãs envolvidas com fandoms femslashes – parti inicialmente do blog fatorx.net (http://www.fatorx.net/), um grande portal brasileiro que reúne contos, poemas, cronograma de eventos e um grande arquivo de fanfictions9 femslash pareando as personagens Xena e Gabrielle da série neozelandeza/estadunidense Xena: the warrior princess10, exibida no Brasil na década de 1990, que é considerada uma espécie de marco na história das femslashes. A proposta que busco desenvolver em minha pesquisa de mestrado, cujas primeiras investigações serão sumarizadas nesse paper, tem como foco principal contribuir para os debates antropológicos sobre representação, agência e sexualidades a partir da análise das fandoms femslashes utilizando a internet como plataforma privilegiada e atentando para articulações entre momentos online e momentos offline11. BREVES APONTAMENTOS SOBRE O CAMPO – O exemplo de Xena Conforme sugere Ross (2008), “Xena” foi um dos primeiros programas de televisão a promover o uso de websites, dando visibilidade a seu site no final dos episódios. Na segunda Marques (2010). 9 Trata-se de histórias escritas por fãs de algum produto comercial cultural, como de Xena: The Warrior Princess, que aproveita personagens, cenas e/ou elementos da narrativa original do produto em questão. Por exemplo, é muito comum encontrar fanfictions nas quais Xena e Gabrielle se envolvem romanticamente de maneira mais explícita. Para uma análise das fanfictions especificamente, assim como das comunidades de fãs, atentando para o papel da internet nesse contexto, cf. Busse & Hellekson (2006). 10 Criado em 1995 pelos diretores e produtores Robert Taper e John Schullian a série de televisão neozelandesa/estadunidense, Xena: The Warrior Princess (será referida a partir de agora apenas como “Xena”) foi originalmente exibida entre 4 de setembro de 1995 e 18 de junho de 2001, e no Brasil teve sua exibição feita pelo SBT na década de 1990 e mais tarde pela Rede Record. A proposta do seriado, originouse a partir da série de TV Hercules: The Legendary Journeys de 1995 – onde a personagem foi criada – e tematiza justamente uma fase da vida de Xena, em que ela decide redimir-se de sua culpa utilizando suas habilidades para ajudar as pessoas, na companhia de Gabrielle, sua principal aliada, muitas vezes interpretada pelas/os fãs como sua "alma gêmea". O sucesso do programa lhe rendeu diversas sequências como livros, quadrinhos, videogames e filmes, além de uma convenção anual, Xenacon, realizada em Pasadena, EUA ou Londres, Inglaterra. A série figura como uma espécie de ícone para mulheres que desejam outras mulheres. 11 Considerando a complexidade da discussão a respeito dos termos online e offline, não cabe aqui discutilos detidamente. Indico que entendo esses termos como contextuais e em constante (re)construção, e como distintos momentos que operam em um continuum permeável, apoiando-me, para isso, nos debates de Guimarães Jr. (2000), Miller & Slater (2004) e Parreiras (2008 e 2015).

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temporada da série, surgiu o primeiro fan site patrocinado, Whoosh”/ The Internacional Association of Xena Studies (www.whoosh.org),que hospeda artigos acadêmicos, textos de fãs, entrevistas, sumários de episódios com análises e fanarts. O fenômeno de destaque era justamento o fandom online que teria se desenvolvido globalmente adicionando características pioneiras ao texto televisivo (Hammer, 2014) com o desenvolvimento de uma relação muito próxima entre televisão e internet. Os criadores da série se engajaram em estabelecer contato com uma base de fãs constituída por muitas mulheres que desejavam mulheres dando entrevistas em rádios, jornais e revistas durante a transmissão da série. O acompanhamento da fanfictions que tematizavam relações erótico/afetivas entre Xena e Gabrielle, que cresceu para além do programa original, levou a um circuito produtivo entre os produtores da série e os fãs que escreviam as fanfictions. O intenso diálogo que se estabeleceu entre televisão e internet auxiliou na formação de uma base de fãs que se expandiu pra muito além dos Estados Unidos. No Brasil, o seriado “Xena” começou a ser exibido em 1996 no SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) às terças feiras até 1998 e posteriormente foi exibido aos sábados e domingos de 1998 a 1999 pelo mesmo canal. De 2006 a 2009 a série passou a ser exibida novamente por um canal de TV Aberta12 – Rede Record – em diversos horários e com diversas pausas entre temporadas. Considerando que se tratava de uma das poucas séries importadas que passava em televisão aberta, e possivelmente uma das únicas protagonizadas por uma heroína, a relação que se estabeleceu entre os fãs da série no Brasil, assim como em muitos outros países, foi muito particular. Esta relação extrapolava o momento da transmissão televisiva se expandindo 12 Se dá o nome de Televisão aberta ao conjunto de canais gratuitos autorizados a operar pelo Governo Federal. A denominação se contrasta com a chamada Televisão Fechada ou por assinatura, na se obtém canais ou pacotes de canais mediante pagamento.

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para um universo criado e gerido por fãs (comumente chamado pelos fãs de “Xenaverse”) que contribuía para construir narrativas e elaborar desenvolvimentos que os produtores não queriam ou não podiam construir. A configuração e formação dessa base de fãs no Brasil foi marcada pelo surgimento do site/portal “Fator X”. Criado em 2002, o site aparece nas falas de interlocutoras como uma das primeiras e mais importantes plataformas de fandoms que tematizavam mulheres que desejam mulheres. Foi através da página do Facebook do Fator X que entrei em contato com Alessandra de 20 anos que mora em Belém do Pará na casa dos pais e divide o quarto com seu irmão. Ela se autoidentifica como lésbica e reforça em seu perfil do Facebook sua paixão por séries e livros, além de se dedicar a fazer fanarts e fanvids. Sua maneira de se envolver com as séries ecoa uma prática muito comum dos fãs que se engajam nas fandoms, “Quando gosto da serie/filme vou pesquisando na hora e sei de quase tudo”. Segundo Alessandra, Xena e Gabrielle foi o primeiro casal que ela shipou, em conversa pelo chat do Facebook ela menciona: Alessandra: Em 2009 resolvi pesquisar no google. Historias lesbicas policiais ai veio a serie que eu ja gostava como Fanfiction ai amei de vez Maria Eugênia: foi assim q vc conheceu? Alessandra: Sim, foi assim que esse mundo se abriu pra mim Maria Eugênia: e vc lembra quais eram os sites que tinha na época, com fanfictions e coisas do tipo ? Alessandra: So ia no Fatorx pois e o maior brasileiro os outros tem poucas coisas.

Também estabeleci contato com outra interlocutora através da página do Fator X no Facebook. Larissa, 48 anos, reside em Niterói com sua esposa e se dedica a escrever fanfictions, contos artigos sobre “literatura homoerótica feminina”. Ela aponta o fandom de Xena e Gabrielle, mencionando que “elas viraram os Beatles dessa forma de expressão” e salientando a importância do portal para o surgimento de fandoms no Brasil e na sua história pessoal de envolvimento com as fandoms: Larissa: na verdade eu comecei com fanfiction no fator x

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Maria Eugênia: e me conta, o que te motivou a escrever fics pela primeira vez? como vc entrou em contato com isso? Larissa: Primeiro o seriados, depois histórias na net que versavam sobre o tema Larissa: E me motivei por gostar de escrever e ser um tema que me atraía Larissa: ter a disponibilidade de sites em que se ´podia escrever sem requsitos prévios Larissa: me fez pensar se as minhas histórias não poderiam compor esse universo Maria Eugênia: o fator x foi o primeiro lugar onde vc mandou uma fic? Larissa: Sim. sim Larissa: ele é referência em fanfictions aqui no brasil.O site é voltado para histórias de fanfictions de xena

Larissa tem uma relação tão particular com a série que até me enviou um artigo que escreveu em outro site dedicado a “literatura lésbica LGBT”, o site “Lettera” (http://www.projetolettera.com.br/ ). Nesse artigo, Larissa busca explicar o motivo do enorme sucesso da série, mencionando que quando terminou, a série (...)tinha um grande número de seguidores internautas que conversavam entre si, formavam grupos no “cyberespaço” e escreviam histórias a respeito das personagens em versão para internet. Os tais fanfictions que muitos já ouviram falar. (...) descobri que ela foi a primeira série a reunir fãs em todo mundo, conectados através da web, dando origem aos chamados “fandoms”. O “fandom” da série Xena continua ativo. Outra curiosidade foi descobrir que as “fanfictions uber” surgiram com elas, Xena e Gabrielle. Talvez tenha sido a enorme vontade destes fãs, em fazê-las viver além das telas e dos “tempos dos deuses antigos”. (...) Descobri que as “uber alt” ou “fanfictions uber alternativas”, vieram também com elas, pois a enorme comunidade lésbica de todo o mundo queria ver concretizado o grande amor que sabiam que existia entre as duas personagens. Um amor implicitamente “explícito”. (...)Em minha breve e humilde análise, presumi que as pessoas gostam de História Antiga e de mitos e fantasias. (...) Creio também, que as pessoas gostariam de ver amores verdadeiros, fortes como rocha, transporem obstáculos e sobreviverem aos tempos. E por fim, junte estes fatores ao início de uma nova forma de comunicação, que foi a internet conectando o mundo e uma grande comunidade lésbica ávida por ter seus valores, mesmo que sutilmente, serem mostrados de maneira tão singela quanto bela. Talvez tenha sido estes ingredientes para a receita de um “bolo gostoso”.

O Fator X, criado em 2002, se dedica a compor um "universo" em torno da série, que transborda os episódios, envolvendo a vida pessoal das atrizes protagonistas, os bastidores de

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produção da série, o universo fictício das narrativas e personagens, discussões dos fãs sobre a série e principalmente de fanfictions. A própria constituição do site sugere a imersão em um universo, com seu fundo todo preto, composto de pequenas esferas que se movimentam (assemelhando-se a estrelas) e itens dispostos na tela, fornecendo links para diferentes partes do site que remetem a planetas, cometas e outros elementos sugerindo o envolvimento com um “universo” particular dedicado à série.

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A seção denominada “fanfictions” compila uma coleção de diferentes histórias agregadas em 5 tipos: Uber13, Clássica14, Conqueror15, Post Fin16 e Lucy & Renée17. A maior atividade do blog se dá em torno das fanfictions, especialmente uber e clássicas. 13 Fanfiction Uber é um gênero que tematiza um universo alternativo ao da narrativa original na qual os personagens ou eventos são retratados de maneira semelhante ao cânone (canon, é o material aceito como parte original da história, no universo da narrativa original), mas geralmente em um período temporal, realidades diferentes ou mesmo apresentando ancestrais, descendentes ou reincarnações dos personagens canônicos. O termo e o gênero de fanfiction se originaram justamente da série Xena, que representava esse tipo de história na própria série.

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Do lado direito da página é possível visualizar uma espécie de fórum, onde diversos avatares aparecem discutindo, solicitando continuação de fanfictions incompletas e conversando sobre outros assuntos relacionados à série. Esses avatares são construídos no Facebook onde é possível verificar o perfil completo dessas pessoas. Depois de sua criação, o site foi “linkado”18 com outras plataformas, conforme a internet foi se modificando, e outros formatos e usos se popularizaram. No final de 2009 foi criada uma página e um perfil do site no Facebook, além de um perfil no Twitter19. Essas plataformas se dedicam a atualizar os seguidores do Fator X de novas histórias, capítulos postados, e outros trabalhos literários das(os) autoras(es) que postam no site. Todos estão há um ou dois anos sem atualizações. A atividade das plataformas que giravam em torno do Fator X diminuíram gradativamente nos últimos anos. Junto a isso, é possível observar o crescimento de outras fontes dedicadas a construir o “Xenaverse” que estão hoje mais esparsas em diferentes plataformas como o Facebook, Twitter, Blogs, dentre outros. Algumas páginas ajudam a ilustrar a atividade dos fãs que ainda se sustenta hoje, 15 anos após o término da série. Páginas e grupos brasileiros como “Xenites Recomendam”, 14 As Fanfiction Clássicas se aproximam mais do cânone da narrativa original em termos de características das personagens e universo (tempo e espaço) onde a história se desenrola. 15 Essas fanfictions, exclusivas das fandoms de “Xena”, tematizam um momento na história da protagonista em que a personagem era uma "conquistadora", que assassinava e incendiava vilarejos. 16 As Post Fin, são fanfictions que se passam em tempo posterior ao da narrativa da série original. 17 Com apenas uma fanfiction, essa seção tematiza a relação entre as próprias atrizes que protagonizaram a série: Lucy Lawless e Reneé O'Connor. 18 Conectado a outras páginas da internet através de links. 19 Criado em 2006 por Jack Dorsey, Evan Williams, Biz Stone e Noah Glass, o Twitter é uma rede social e um servidor de microblogging que permite ao(à)s usuário(a)s enviar e receber atualizações de outros contatos em textos curtos (de até 140 caracteres) chamados de “tweets”. A rede social se caracteriza por sua agilidade de informações resumidas em textos curtos que circulam com grande velocidade.

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“Xena Brasil”, “Xena Indelicada”, “Xena e Gabrielle Amor Eterno”, “Xena Ironica”, “Xena e Gabrielle 'Quase Perfeitas'”, “XenaCon Brasil”, ainda se dedicam a dar vida ao “Xenaverse” alimentando suas postagens com vídeos, imagens com cenas dos episódios, imagens com “falas” criadas por fãs, montagens cômicas, fanarts, campanhas20, a discussão sobre a existência ou não de relações erótico/afetivas entre Xena e Gabrielle e, recentemente, debates a respeito da notícia de que será feita uma refilmagem da série21.

Imagem 2: Nessa montagem com uma cena da série, o(a) fã brinca com a tensão criada na série em torno da relação das duas personagens. Se pudesse “tomar as personagens em suas mãos”, ela(e) faria com que se beijassem. A discussão a respeito da natureza da relação entre Xena e Gabrielle é um assunto que não se esgota nas páginas sobre a série e as personagens. Longas disputadas, nem sempre amigáveis, são travadas em torno do assunto mencionando cenas, olhares, comentários das atrizes e produtores, dentre outros elementos.

20 Dentre essa se notabiliza a campanha XenaCon Brasil que possui páginas no Facebook e Twitter, um canal no Youtube (site que permite aos usuários carregarem e compartilharem videos em formato digital) que é frequentemente alimentado, além de uma petição online pelo Avaaz (uma rede de ativistas para mobilização social através da internet, que permite a criação ce campanhas com abaixo-assinados). O principal projeto do XenaCon Brasil é criar uma convenção da série “Xena” no Brasil. 21 http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/03/xena-sera-abertamente-lesbica-em-refilmagem-de-seriado-dosanos-1990.html , http://www1.folha.uol.com.br/paywall/adblock.shtml? http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1749760-refilmagem-de-xena-explorara-homossexualidadedas-protagonistas.shtml , http://www.hypeness.com.br/2016/03/adeus-armario-protagonistas-darefilmagem-de-xena-serao-abertamente-lesbicas/

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Imagem 3: A imagem joga justamente com o mencionado na imagem 2. Ao mencionar uma fala da atriz que interpretava a personagem de Gagrielle, utiliza-se o comentário como fonte de legitimidade pra defender uma natureza erótico/afetiva da relação entre Xena e Gabrielle.

Imagens 4 e 5: desenhos criados por fãs e postados nas páginas mencionadas. Nessas imagens a narrativa original é (re)elaborada ou mesmo preenchida com o imaginário dos fãs, onde as personagens se beijam com uma intensidade não mostrada na série original, como na imagem 5. Na imagem 6, o ato de entregar flores sugere uma relação que extrapola a amizade, pelo simbolismo compartilhado do ato de dar rosas a alguém.

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Imagem 6: Fazendo uso de imagens de cenas de diferentes episódios, o(a) fã cria uma nova cena que sugere que a personagem “Xena” estaria lembrando de um beijo compartilhado com a personagem Gabrielle, com um sorriso no rosto. Trata-se de mais uma imagem que joga com a ambiguidade da relação entre as duas, criando e explorando um desenvolvimento de formas não elaboradas na série original. Imagem 7: Nessa montagem o(a) fã dialoga com as expectativas relacionadas à sexualidade de uma mulher e o papel de certos produtos culturais, como filmes que apresentam histórias clássicas de amor entre princesas e príncipes encantados. Com esse pano de fundo, contrastam-se esses outros produtos culturais com a série e com outros tipos de representação e desenvolvimento de personagens que se elaboram explicita ou implicitamente em “Xena”.

Imagem 8: Aqui o fã cria uma situação cômica em que que certas relações e desenvolvimentos apresentados na série seriam aprovados e outros reprovados. O cachorro se comporta como porta-voz de fãs que shipam o casal, eventualmente se incomodando com cenas que atrapalhem ou sugiram outro desenvolvimento para as personagens.

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Imagem 9: Por fim, a imagem abaixo representa uma cena transmitida pela série original, em que os próprios produtores brincam com a ambiguidade e a tensão em torno da relação das personagens e com as expectativas de diferentes audiências em relação à série

REMATE E FORMULAÇÕES GERAIS A partir do exemplo da série Xena discuti algumas observações de meu campo salientando a relevância da conjunção de alguns fatores para a formação do “Xenaverse”, no Brasil: I) a emergência de um consumo de produtos culturais comerciais que extrapola a televisão abrangendo a internet, daí a importância da participação dos produtores e atrizes/atores da série em entrevistas e outras atividades de interação com a audiência; II) a

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transmissão em canais de televisão aberta de uma das primeiras séries a ser protagonizada por uma heroína cuja relação com outra personagem feminina instigava a possibilidade de relação erótico/afetiva entre elas22 – questão explorada inclusive pela produção e pelas próprias atrizes protagonistas23; III) a emergência de um site que centralizava a base de fãs no Brasil – Fator X – permitindo debates, trocas, produção de fanfictions e fanarts, dentre outros materiais, caracterizando uma das primeiras bases de fandom mediada pela internet no Brasil. Posteriormente, esse fenômeno se expande para outras plataformas, se descentralizando e contemplando outros produtos comerciais de mídia. A questão que persegui e que orientou os objetivos desse paper, foi de investigar como um produto televisivo internacional e uma forma muito particular de consumir produtos culturais das fandoms – se engajando em discussões, frequentando convenções, torcendo por determinados desenvolvimentos narrativos, pesquisando acerca de todo um universo do produto para além do próprio ato de ver a transmissão e criando outras narrativas através de textos, imagens, colagens, vídeos e músicas – assume contornos locais no contexto brasileiro. Quais transformações se desenrolam na apropriação dessas séries estadunidenses para interlocutores(as) brasileiros(as)? E mais especificamente, como isso se articula com questões de sexualidades e representação de desejo e afeto entre mulheres? Por que uma grande parte da audiência se aglomera em torno de séries, filmes, games que representem de alguma maneira esse desejo, cumplicidade e afeto entre mulheres? Por que isso apresenta um apelo 22 As(os) fãs chamam isso de Subtexto. 23 Um exemplo paradigmático é a encenação do casamento entre as duas feito pelas atrizes no XenaCon (convenção exclusivamente dedicada à série) de 2012, que pode ser acessado pelo seguinte link, www.youtube.com/watch?v=4OOjI66ylFw .

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tão grande para essa audiência? Outro eixo que estruturou o texto diz respeito a investigar, a partir de um caso empírico, como a cultura de fandoms se inflexiona com a participação da internet nesse meio. Ou seja, busquei elaborar alguns aspectos que surgem em relação ao consumo de um produto cultural comercial e o impacto que a organização de fãs pela internet tem sobre esse consumo, com o surgimento de fansites, páginas, blogs, sites, portais. Por fim levantei elementos para apurar como a expansão e popularização da internet fornece suporte para a elaboração dessas fandoms de maneira inédita. Assim, observei a aglomeração de fãs esparsos cujo elemento de união não se dá pela proximidade geográfica mas pelo ímpeto de discutir e (re)criar certos produtos culturais comerciais que despertam seus interesses. Resta puxar os fios aqui mencionados e seguir as questões que emergiram a partir do caso da série “Xena”, para desenvolver os eixos que se abrem em torno do engajamento desses sujeitos com as fandoms femslashes. Bibliografia ALMEIDA, Heloisa Buarque. "Muitas mais coisas": telenovela, consumo e gênero. 2001. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – IFCH, Unicamp, Campinas, 2001. __________. Gênero e Sexualidade na mídia: de “Malu” a “Mulher”, 31º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, outubro de 2007.

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