“Sobre o caráter afirmativo de cultura” – Uma apresentação

July 27, 2017 | Autor: Fabiana Costa | Categoria: Cultural Studies, Marcuse
Share Embed


Descrição do Produto

"Sobre o caráter afirmativo de cultura" – Uma apresentação
Fabiana Vieira da Costa
Mestranda em Estética e Filosofia da Arte
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto


Sua origem e sua história
Na era clássica a filosofia voltava-se à práxis e para tal os conhecimentos eram hierarquicamente organizados a partir da função desempenhada pelo sujeito na pólis e a excelência de cada um no seu lugar é necessária para manter a cidade em ordem. O homem grego formava-se a partir da sua troca com a sociedade que o cercava (homem e o cosmos em harmonia). A imaginação era o instrumento de investigação a cerca das verdades do mundo.
Platão, pensador grego, deu origem a cisão entre ideia e matéria, entre espírito e corpo, apresentando o mundo da matéria como essencialmente inferior ao mundo da ideia e esse, como o mundo além da vida vigente da práxis (mundo do bom, do belo e do verdadeiro). A filosofia superior a vida e suas verdades restritas ao pensamento mais elevado.
Em sua obra "A República" nos diz que os homens são ontologicamente diferentes e essa diferenciação dizia respeito a tarefa que a cada homem fosse adequada. Os homens de alma de ouro eram os aptos a serem governantes (reis filósofos), os de alma de prata os auxiliares daqueles que governavam e os de ferro/bronze eram os lavradores.
Segundo Aristóteles o conhecimento filosófico (a teoria pura) era ligado a felicidade, pertencia ao domínio da cultura e, voltava-se ao bom, belo e verdadeiro. Enquanto os conhecimentos relativos a sobrevivência (a teoria aplicada) voltavam-se ao útil e necessário – ao materialismo da práxis -, servido de base aos conhecimentos superiores e necessários a eles. E por assim ser: o objetivo último de sua doutrina é a conquista da felicidade e o objetivo primeiro é a batalha pela conservação da existência, pois se essa não está a salvo a felicidade não é possível e a segurança da sobrevivência é a condição necessária (mas não suficiente) para alcança - lá.
O bom, belo e verdadeiro não são valores universais, pois segundo Aristóteles (em sua "Ética a Nicômaco) a beleza e a nobreza de nascimento eram condições necessárias para a felicidade, por assim ser, a distinção criada e a inferioridade concedida ao mundo material livrou os clássicos da má consciência.
Durante o percurso da filosofia clássica a clivagem ontológica, a separação entre mundo das ideias (da razão, do belo) e mundo dos sentidos (da sensibilidade, do necessário) deu-se numa forma histórica da existência. Essa cisão ontológica essencial existe de fato e pode ser notada claramente quando pensamos a separação entre sensível/inteligível e belo/necessário para o que temos além dela, um dos frutos dessa separação é a alienação da cultura. O problema (que diagnosticamos aqui) não é identificar as coisas distintas, mas criar uma hierarquia entre elas, ou melhor, não é só hierarquizar, mas querer submeter uma à outra (submeter a matéria ao espírito) e a submissão é contrário de harmonia.
Na era Medieval queria-se a natureza integrada, a incorporação do espírito – unindo vida e arte. A arte submetia-se a religião, a Igreja - o artista e sua subjetividade estavam a mercê das potências atuantes, assim sendo, a subjetividade era impossível de ser alcançada. Ainda na idade média ocorreram os primeiros pontos do despertar à subjetividade, como se, os sujeitos estivessem fora do espaço da vida que os cercam. Temos aqui a percepção de que a figura do artista ciente de sua alienação que o cerca (mundo factual).
A liberdade humana só é universalizada no século XVIII. Para os gregos os homens eram filosoficamente livres e não de fato, sem problema com o fato da realidade ser contrária à filosofia. Por assim ser, a partir deste século é que começa a aparecer o que o Marcuse chama de "cultura afirmativa", o caráter afirmativo da cultura começa a se delinear.
"O caráter afirmativo da cultura"
Durante a era burguesa os ideais de libertação do individuo alcançado pelas revoluções trouxeram consigo uma nova exigência de felicidade. A relação entre o trabalho, o necessário, a beleza e o prazer – ou seja, a ideia de que voltar-se aos valores supremos era uma atividade para poucos foi substituída pela cultura universal.
Para continuar com a exigência da universalidade da felicidade a modernidade teve de colocá-la no âmbito do privado, pois as contradições – as desigualdades reais dos indivíduos eram incompatíveis com a validade universal. A felicidade posta no mundo dos espíritos, onde cada um e todos têm acesso imediato interior, permite a resignação diante da miséria, do sofrimento do mundo exterior, cuja justificativa se detém na inferioridade própria do sensível.
Temos aqui duas definições de cultura. A primeira cultura como totalidade da vida (a cultura em seu sentido primário: mundo da reprodução do ideal, espiritual e o mundo da reprodução material – que mesmo distintos formam uma unidade histórica, pois temos aqui o entrelace entre o processo histórico da sociedade e o espírito). A segunda o conceito opõe o mundo material ao mundo espiritual (esse é o conceito moderno de cultura que faz um recorte do mundo espiritual da totalidade criando uma diferenciação entre cultura e civilização, ou melhor, retirando a cultura do processo social).
A cultura passa a ser uma instância de celebração que permanece acima da vida e não se mistura a ela. Todo mundo tem acesso interior e imediato aos bens culturais, todos podem experimentar a beleza e a liberdade desde que não ultrapasse o mundo da cultura. Podemos dizer aqui, que os bens culturais são distribuídos para que os bens sociais fiquem restritos. Ou seja, a igualdade abstrata se realiza concretamente como desigualdade. Na época moderna, o poder de comprar o necessário à felicidade não era e ainda não é universal, assim sendo, o domínio burguês seria ameaçado se essa igualdade abstrata se realizasse concretamente.
Sobre a obra de arte nos diz que diante dela o mundo fica meio reles -, pois quando o ideal é apresentado ele é crítico e revolucionário ( serve de trincheira aos valores mais elevados sem lugar na má-realidade, sem esse local seguro, os sentimentos mais elevados não permaneceriam vivos), mesmo que seja apenas no mundo abstrato, da cultura, cada indivíduo em sua própria interioridade.
Por mais que majoritariamente a cultura dotada do caráter afirmativo, sirva como espécie de refúgio do mundo que não é ideal, a força crítica do ideal conduz a transformações. Quando uma realidade má não permite a realização de certas verdades, essas verdades aparecem como arte, é interessante notar aqui, que elas aparecem como arte no espaço político afirmando que a apresentação do ideal desqualifica o real.
Seguindo a interpretação de que o idealismo burguês é contra a própria natureza, a dominação mercantilista e fabril impõe ao indivíduo a escravização detectamos que a primeira vista a classe burguesa foi de fato revolucionária, mas uma vez no poder ela mantém seus ideais só na cultura, não na sociedade material, daí a cultura afirmativa. A cultura afirmativa tem caráter antecipatório dos desejos que poderiam se transformar em realidade.
Não só a representação do que não existe serve de consolo pro que existe - mas também reafirma a necessidade do que não existe: nesse processo a cultura é tão consoladora quanto crítica. É preciso ir além do idealismo burguês, da ideia de um mundo maravilhoso preso no mundo da cultura – temos de vislumbrar que essa ideia pode ser superada.
As exigências com a felicidade são subversivas, só podem ser interiorizadas e racionalizadas, nada mais a ver com trabalho (tomado como partida que ainda há uma distância muito grande entre trabalho necessário pra manutenção da vida e trabalho necessário pra manutenção do lucro). A necessidade de abandono dessa cultura idealista, dos valores ideais que não podem ser realizados na prática, é a passagem da cultura idealista pra cultura afirmativa. E ela só consegue corresponder com uma felicidade que só pode ser idealizada. O que Marcuse (em suma) defende é: uma cultura voltada aos prazeres da vida, sem distinção de vida espiritual e material
Conclusão
No mundo grego tínhamos a busca da excelência, no mundo medieval a busca da vida eterna e no mundo burguês: busca da mercadoria, desde então todas as relações humanas são mediadas pela produção de mercadorias e ao longo do desenrolar da história aparece a exigência histórica da libertação universal do indivíduo, colocadas pelas revoluções modernas (Revolução Francesa, Revolução Norte-Americana) temos a noção de que todos os indivíduos são iguais, livres e irmãos, além de terem os mesmos direitos na busca pela felicidade.
A partir do pensamento da modernidade a diferença entre cultura e civilização ultrapassa a clássica, ou seja, a diferença entre o necessário (dotado de finalidade) e o belo (desprovido de finalidade) – esse último é interiorizado e passa a ser tido como os valores culturais, dando origem ao domínio do ideal de liberdade e unidade, donde os antagonismos das relações sociais são apaziguados.
Um problema, central sobre a cultura afirmativa é o eu isolamento do mundo da vida. A liberdade não empírica é ideologia e essa compreendida como interiorização, um desvio da realidade. Não podemos ser livres de fato, mas é possível experiênciar uma liberdade interior, experimentar os estados da alma e sentimentos, realizar expressões de desejo incompatíveis com o mundo real. Marcuse não é contra e diz que é o primeiro passo pra se desejar ser livre de fato. Afirma a força crítico-revolucionária do ideal clarificando que a critica é capaz de transformar o existente.
Enfim. Detectamos a origem dessa forma histórica de cultura: o surgimento da burguesia (modernidade). A cultura assume o caráter afirmativo na ordenação social, a partir do momento, em que passa a ser o local de acolhimento dos desejos, dos sonhos.
Assim sendo, aquilo que não encontrava lugar no mundo real passou a ser experimentado na cultura. "O caráter afirmativo da cultura" encontra-se no ideal de cultura assumindo o anseio da vida mais feliz, fazendo parte do mundo não cotidiano – superior. Ela será o abrigo para os valores mais elevados e proporcionará ao sujeito a realização na dimensão estética daquilo que não acontece na vida, ou seja, a obra de arte é capaz de figurar aquilo que é tipo como utopia na realidade e, por assim ser, é distinta da realidade efetiva e mostra-se como uma apresentação do real.
Bibliografia
MARCUSE. "Sobre o Caráter afirmativo da Cultura" (1937). In. "Cultura e Civilização"
KANGUSSE. "Leis da Liberdade: A relação entre estética e política na obra de Herbert Marcuse" (2008). Editora Loyola, São Paulo. Brasil.




Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.