Sobre os índices iniciais de uma obra: limites e permeações entre a ficção e a não ficção na obra O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza

June 30, 2017 | Autor: M. Martins | Categoria: Estudios De Semiotica, Semiotica, Ficção
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Confederación Iberoamericana de Asociaciones Científicas y Académicas de la Comunicación

Sobre os índices iniciais de uma obra: limites e permeações entre a ficção e a não ficção na obra O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza

O presente artigo pretende analisar a questão do índex inicial de uma obra, no que diz respeito ao pertencimento aos campos da ficção ou da não ficção. Utiliza-se para tal investigação aparatos teóricos provindos da semiótica peirceana e do cinema de não ficção, de modo a observar os limites impostos a um texto pelo índice inicial sob o qual é categorizado, bem como as tensões e as fronteiras entre o real e a ficção. Para tanto, a análise se centraliza em certos textos cuja natureza discursiva é entendida como problemática, visto provocar certas confusão sobre a qual gênero discursivo de fato pertence – tendo como foco, em especial, a obra “O filho eterno” (2007), do romancista Cristóvão Tezza. O livro, com contornos claramente autobiográficos – informações as quais um leitor típico, inserido em um ambiente de midiatização, dificilmente ignorará – ainda assim foi categorizado na lista de obras de ficção.

Palavras-chave: índice inicial; experiência colateral; índices do real; limites entre ficção e não ficção; Cristóvão Tezza. Prof. MsC. Maura Oliveira Martins1

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Jornalista formada pela UFSM (2001), Mestre em Ciências da Comunicação pela UNISINOS (2005). Atualmente, professora-pesquisadora das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil, e coordenadora do curso de Jornalismo, em Curitiba, PR. Email: [email protected].

Parte 1. O Filho Eterno: uma obra biográfica ou texto ficcional?

O romance O filho eterno, do escritor catarinense Cristóvão Tezza, configurouse como a mais celebrada obra literária brasileira no ano de 2008, recebendo vários reconhecimentos, como o Prêmio São Paulo (a mais bem paga premiação literária no país), o internacional Prêmio Portugal Telecom, a Copa de Literatura Brasileira 2008, e Prêmio Jabuti 2008 na categoria "Romance", entre outros. Já na quinta edição brasileira e traduções em várias línguas, trata-se, evidentemente, de uma façanha literária, laureando a obra com méritos poucas vezes alcançados por autores contemporâneos. A obra, de evidente valor literário, conta as relações de um pai com seu filho, portador da síndrome de Down. Nos próximos 26 anos, o pai (o protagonista deste romance, narrado em terceira pessoa, nunca chega a ser nomeado) enfrentará os dilemas e triunfos da convivência com o filho Felipe, bem como relembrará momentos de sua vida pessoal (como a adolescência, a ida para a Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades para consolidar-se como escritor, a busca da estabilidade ao assumir a carreira docente em uma universidade pública) e passará por locais reais da cidade de Curitiba (a praça Osório, o Hospital de Clínicas, o Colégio Estadual). A experiência colateral com a vida pessoal do autor Tezza – possibilitada em partes justamente pelo constante agendamento na mídia do sucesso editorial – faz-nos ter contato com certos índices2 do real que convencem, pois, que O filho eterno trata-se de uma obra autobiográfica: assim como seu protagonista, sabemos que Cristóvão Tezza é pai de um rapaz de nome Felipe, portador de síndrome de Down, esteve na Alemanha durante sua juventude, foi membro de um grupo de teatro na década de 70, e entre 1986 e 2009 foi professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Como decorrência (tanto dos méritos da obra quanto de sua exposição midiática), o livro permaneceu por semanas na lista das obras mais vendidas, publicada por diversos veículos de comunicação. Curiosamente, foi enquadrado na lista3 das obras 2

Entende-se por índice, conforme a categorização semiótica, os signos que apontam a um objeto existente no mundo. “Tudo pode ser sintetizado na conexão real que se estabelece entre o signo e seu objeto, sendo essa conexão aquilo que dá ao índice capacidade e virtude para funcionar como tal” (Santaella, 2008, p. 123). 3 A lista envolve as categorias “Ficção”, “Não ficção” e “Autoajuda e esoterismo”.

de Ficção, o que aponta, ao voltar-se aos conceitos de ficção e não ficção4, que O filho eterno não carrega – ou ao menos não se compromete a carregar – marcas que indiquem necessariamente referencialidades ao real. De todo modo, a indexação do livro como obra ficcional contradiz a experiência colateral mantida por grande parte dos receptores, causando uma espécie de incômodo por uma quebra de um pacto feito com o leitor: se a obra é reconhecida como não ficção, é possível ainda categorizá-la como ficcional? O que significa o index inicial a que pertence um texto? Nesse sentido, pretende-se aqui investigar os limites e as possibilidades trazidas pela categorização de uma obra nos gêneros da ficção ou não ficção, a partir da observação de elementos externos cruciais na definição sobre a qual terreno discursivo pertence um texto – a experiência colateral mantida com elementos externos à obra e o índex inicial qualificatório do texto.

Parte 2. Promessas e expectativas quanto à natureza um texto: a questão do índice inicial

São muitas as obras que usam como estratégia a confusão entre as margens do real e da ficção, oferecendo o desvendamento das fronteiras entre ambas as esferas discursivas como elemento essencial à fruição do produto. Tal tática tem sido usada com frequência no cinema, em obras que pretendem recontar fatos históricos – Maria Antonieta (2006) e Bastados inglórios (2009) são exemplos de textos que recriaram versões pouco “obedientes” aos documentos referentes a fatos reais da história da França e Alemanha, respectivamente –, ou nos chamados mockumentaries5, como A Bruxa de Blair (1999), Zelig (1983) e Cloverfield (2008). No presente artigo, intenta-se investigar um exemplo contrário, visto que O filho eterno não utiliza técnicas de 4

Assume-se aqui uma polaridade entre não ficção e ficção (opta-se por não entrar no mérito da terceira categoria prevista pela lista dos livros mais vendidos “Autoajuda e esoterismo”, aparentemente configurada como uma categoria híbrida entre ficção e não ficção), entendendo que a primeira “teria um maior comprometimento com a realidade cotidiana exterior, construída de acordo com a expectativa da expectativa do leitor e do contexto social da produção, ou seja, uma “representação objetiva” do já conhecido”, e a segunda “teria em sua estrutura narratológica descrições que romperiam com expectativas de aproximação com quaisquer contextos experienciais identificáveis com o que se acredita ser a realidade cotidiana exterior” (PINTO, 2009, p.1). 5

Obras assumidamente ficcionais apresentadas sob o formato de documentário.

realidade para criar uma obra de fundo ficcional mas, de forma oposta, categoriza-se (pelas vias midiáticas) como ficcional, ainda que cercado de marcas da realidade, em uma estratégia entendida por Ribas (2011) como de “ficcionalização biográfica”. Interessa-nos aqui entender, por fim, as possibilidades de classificar um texto como ficcional, ainda que ele esteja cercado por todos os lados de indícios que apontam a uma correspondência concreta no mundo dos fatos que narra. Entende-se que parte da experiência com um texto se inicia na etiqueta discursiva sob o qual é inicialmente categorizado. Conforme a perspectiva de Carroll (1996), a questão do índice inicial de um texto é determinante, pois “não se pode simplesmente modificá-lo ou invertê-lo após sua apresentação. Após categorizado como proveniente da realidade factual, um texto pode tornar-se falso ou não (caso sua veracidade seja comprovada como problemática), mas isso não o torna uma ficção” (MARTINS, 2005, p. 91). Portanto, a classificação de uma obra como procedente da ficção não é mera convenção externa, nem algo que pode ser modificado a posteriori. Em decorrência, torna-se evidente que o índex inicial não se trata de uma categorização convencional ou protocolar que poderia ser modificada posteriormente, visto que ela assume certos comprometimentos à obra. Ao analisar a questão do índice nos textos televisivos, Jost aponta que Para categorizar um programa quanto ao gênero, é preciso que se saiba a priori que gênero é esse. É preciso, também, saber em que medida existe uma correspondência entre a etiqueta e seu conteúdo, o programa, levando-se em consideração que, muitas vezes, as etiquetas estão muito distintas do que as emissões efetivamente são (JOST, 2004, p. 17).

Carroll (2005) discorda de Jost (2004) ao considerar que o problema da rotulação de um texto como pertencente à ficção ou à não ficção é relativo, pois raramente nos deparamos com uma obra em que essa distinção não é feita. “Em geral, sabemos de antemão se o texto é de ficção ou de não-ficção. Ou seja, não bancamos os detetives tentando descobrir se a história que estamos lendo é ficcional ou não-ficcional. Normalmente, a história já nos chega com uma etiqueta”. (Carroll, 2005, p. 77). Ou seja, quando a investigação sobre essa distinção faz parte do jogo da fruição do texto (o

“bancar o detetive”, para Carroll), isso já é anunciado como uma estratégia de venda do produto. Parece ser esse o caso da obra de Tezza, tendo em vista a quantidade de interpretantes (jornalísticos e acadêmicos) que se debruçaram no desvendamento sobre a qual esfera pertence essa obra. Para Ribas, a obra tende ao terreno do ficcional, e “o peso que faz pender o fiel para a ficção e não para o simples retrato biográfico é a linguagem, ou seu uso literário” (2011, p. 07). As escolhas nas técnicas narrativas empregadas no livro – como a abordagem em terceira pessoa ao invés de primeira, a bifurcação narrativa em dois tempos diferentes – seriam as marcas da ficcionalização do livro. Porém, interessa-nos aqui compreender não apenas as estratégias narrativas do autor, mas prioritariamente as relações externas mantidas entre a obra e seu contexto, e quais os limites sustentados por elas. No âmbito jornalístico, as táticas narrativas da obra também foram analisadas como pistas sobre a inclusão de O Filho Eterno entre as obras de ficção. Referir-se a si próprio na terceira pessoa virou sinônimo de vaidade desde que Pelé - e outras celebridades menos votadas - caíram nessa tentação. O autor de "O Filho Eterno" se enquadra na categoria dos que falam de si próprios na terceira pessoa por outro motivo: o excesso de pudor na hora de subir à ribalta para se expor aos olhos do público. É compreensível. O fato de a narração ser feita na terceira pessoa é, provavelmente, o único detalhe que impede "O Filho Eterno" de se enquadrar na categoria de autobiografia (MORAES NETO, 2009).

Moraes Neto (id), de tal modo, reduz a não assunção do romance como uma autobiografia como mera questão de escolhas de recursos narrativos inseridos na obra, desconsiderando que uma certa confusão sobre a natureza do texto é desejada em sua apreciação. Essa é, inclusive, uma das marcas da obra de Cristóvão Tezza, fato observado por Ribas (2011) como uma constante em seus demais romances e novelas, o que entende por “conficções”, tendo como tema central a “tensão entre a realidade e as suas possibilidades de representação” (id, p. 08). Portanto, concorda-se com Ribas (ibid) ao observar que

quando duvidamos de que certos personagens foram ou agiram exatamente da maneira escrita no romance, ou de que certos fatos aconteceram rigorosamente como encontramos no livro, estamos corroborando, acredito, com este projeto literário de instauração da dúvida e com a finalidade das estratégias usadas na confecção das (con)ficções de Tezza (p.08).

Entende-se, assim, que a classificação da obra como romance, bem como a experiência colateral com o autor – trata-se de um literato, conhecido pelo trabalho na ficção, no romance e na crônica de jornal, e nao um jornalista, que se compromete necessariamente em narrar fatos documentais – torna admissível que a obra seja categorizada na lista dos livros de ficção. Como romancista (não como jornalista, biógrafo ou historiador), Tezza torna-se livre para criar o jogo da dúvida sobre a possível veracidade (ou não) de O Filho Eterno.

Parte 3. Distinções entre ficção e não ficção – uma resposta a partir da experiência colateral ao signos

Conforme apontado anteriormente, ainda que se entenda que o jogo da ficção seja parte da intenção concretizada na obra O Filho Eterno, há ainda outros elementos exteriores ao texto que causam estranhamento na classificação do livro como pertencente ao terreno ficcional. Antes de tudo, é preciso reconhecer que a categoria ficção é difusa e, por vezes, pouco clara. Ao analisar a utilização do termo documentário como sinônimo de obra audiovisual de ficção, Carroll coloca em foco a amplitude do conceito de não ficção, visto que normalmente entende-se como não ficcional qualquer texto descomprometido em manter referencialidade com os fatos do mundo exterior6: “por exemplo, consideremos o modo como o par ficção/ não-ficção divide uma livraria. Os romances, contos e talvez as peças localizam-se na seção de ficção. Todo o restante é não-ficção,

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O que não significa que não mantenham essa correspondência com o mundo real – apenas não se comprometem para tal.

até mesmo objetos como, digamos, os manuais de desenhos para crianças”. (Carroll, 2005, p. 71). Afastando-se dos desconstrucionistas, que anulam a possibilidade de uma distinção possível entre ambas as esferas discursivas7, Carroll propõe a compreensão de que tal resposta – sobre qual a real natureza de um discurso – não se encontra nas estratégias e elementos reconhecíveis no texto. A distinção entre ficção e não ficção no cinema seria inviável pelo fato de que os filmes de ficção e não ficção compartilham uma série de estruturas – o flashback, a montagem paralela, o campo-contracampo, o planoponto-de-vista, etc. E certos maneirismos encontrados em filmes não-ficcionais (...) foram assimilados pelos filmes de ficção com vistas à produção de determinados efeitos – como a impressão de realismo ou autenticidade. No campo da diferença formal, portanto, não é possível diferenciar os filmes de ficção dos de não ficção (...). É bastante plausível que um espectador informado – ou seja, um espectador com sólido conhecimento das técnicas cinematográficas e sua história –, ao assistir a um filme, não seja capaz de apontar se é ficcional ou não-ficcional. Por mais abundante que seja a informação formal disponível, esta será inconclusiva (Carroll, 2005, p. 7374)8.

Portanto, a forma, por si, não revela a natureza do texto – visto que os procedimentos estéticos narrativos podem ser usados tanto para a ficção quanto para a não ficção9. As informações sobre a qual esfera discursiva um texto pertence, em consequência, devem provir de outros aspectos.

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Carroll entende que há nesse posicionamento uma confusão entre representação e ficção. Pela abordagem semiótica, todo signo tende a revelar gradual e falivelmente o real, e o fato de ser um recorte do real não o torna uma ficção. “As representações não são idênticas àquilo que representam. É por isso que construímos representações, e essa é uma das razões por que nos são tão úteis. Se um mapa tivesse de ser o próprio território do qual é um mapa, não teria nenhum valor pragmático caso estivéssemos perdidos no território em questão” (Carroll, 2005, p. 75). 8

Grifos da autora. São muitos os produtos midiáticos cuja linguagem é desenvolvida a partir de uma mistura entre os códigos dos textos não ficcionais e ficcionais. Conforme já citado, pode-se listar obras como A Bruxa de Blair (1999) que utilizam recursos estéticos como a filmagem direta, sem cortes, típicos do jornalismo e das filmagens amadoras para criar produtos ficcionais. Em 2011, foi lançado no Brasil o filme Amor?, de 9

Carroll observa que só é possível inferir se um texto é ficcional ou não ao apreendermos o seu contexto, pois “não se pode afirmar que um texto é ficcional em razão de suas propriedades manifestas, examinadas isoladamente. É preciso considerar o texto em relação a outra coisa – algo que nele não se encontra manifesto; algo que não pode ser lido em sua superfície” (Carroll, 2005, p 78). Alude-se aqui ao que se compreende, na perspectiva semiótica, por experiência colateral com os signos de um texto, necessária para que se concretize uma compreensão esperada do discurso analisado, de forma que ele possa ser reconhecido como referente aos gêneros factuais ou não. O conceito semiótico da experiência colateral, nesse sentido, refere-se à dependência de um contexto compartilhado entre o emissor e o receptor de um discurso para que a comunicação se torne possível (Bergman, 2011, p.1)10. Proveniente da semiótica, o conceito de experiência colateral, segundo Peirce, “constitui o pré-requisito para conseguir qualquer ideia significada do signo. Por observação colateral, refiro-me à intimidade prévia com aquilo que o signo denota” (apud Santaella, 2008, p. 35). Assim, entende-se que o contato paralelo com a obra de Cristóvão Tezza é concretizado pelo leitor típico que, estimulado pelas agendas midiáticas, certamente tem alguma forma de conhecimento sobre a obra ao começar a frui-la11. É apenas na existência dessa experiência colateral e dos elementos indiciais que se torna possível distinguir fatos de ficção (Jost, 2004, p. 13). Carroll (2005) julga que, quando esse problema ocorre (não termos pistas contextuais sobre a qual esfera tal texto pertence)

João Jardim, que funde as linguagens do documentário e da ficção ao contar histórias reais, por uma narrativa convencionalmente usada na não ficção (depoimentos diretos, sem cortes, sem visualização do cenário) através da encenação feita por atores ficcionais e, em sua maioria, conhecidos do público. 10 Bergman (2011, p. 11) ilustra a experiência colateral em um exemplo bem humorado: se uma pessoa A diz “George Bush é um idiota” para uma pessoa B, tal sentença só fará sentido se B possui alguma experiência com os objetos envolvidos. Se B não conhece George Bush, ou nunca conheceu um idiota, os signos escolhidos não atingirão seu propósito de comunicação – que só ocorrerá quando A referir a objetos dos quais B possui experiência. Da mesma forma, o conhecimento colateral dos objetos colocará limitações no entendimento desses signos: por exemplo, se B tiver alguma ideia sobre George Bush (que será, assim, seu objeto imediato nessa semiose), não poderá interpretar esse signo como “uma pessoa que chegou recentemente de Marte”. Assim, a experiência colateral comprova que a interpretação dos signos não é arbitrária. 11 Vale lembrar que O Filho Eterno é um incontestável sucesso editorial, tendo recebido vários prêmios nacionais e internacionais desde seu lançamento em 2007. Ao fim de 2010, foi eleito “o romance da década” pela revista Bravo!, uma das principais publicações de jornalismo cultural no país. O livro está atualmente em sua nona edição, e sua inclusão na lista dos mais vendidos – premissa inicial desse artigo – opera como sintoma indiscutível de sua popularidade. Tamanha repercussão midiática tende a tornar espécime raro o leitor sem qualquer referência exterior sobre a obra.

tendemos a procurar informações nos atributos estilísticos – nos aspectos formais - que nos indicarão se a obra é ficcional ou não-ficcional. Essa evidência, como já dito, é provável mas não definitiva. Jost sintetiza sua proposta ao analisar a especificidade do texto autobiográfico: Uma forma de contrato é a concepção do pacto autobiográfico, nos casos em que se está diante de uma autobiografia. Em que difere uma autobiografia de um romance? A única diferença entre os dois é um conhecimento exterior ao texto. Esse conhecimento exterior ao texto faz com que, no caso das Confissões de Rousseau, o leitor assuma que, ao autor Rousseau, corresponde o narrador Jean-Jacques. A autobiografia se define, então, por um autor igual ao narrador. Já no caso do romance, existe uma pessoa que diz eu, que usa a primeira pessoa, mas que sabemos, ao ler, trata-se de um narrador que não é o próprio autor. Este é um estudo pragmático do gênero: o que diferencia uma autobiografia de um romance são as relações entre capa e o interior do livro. Assim, há uma escapada para fora do que exclusivamente pode ser considerado texto. Esse contrato autobiográfico é fundado então não apenas em índices textuais, mas índices contidos no livro (Jost, 2004, p. 13-14)12.

Ainda que Tezza opte estilisticamente por usar a terceira pessoa – o que, para Ribas (2011), configura como uma das marcas do afastamento do texto da não ficção, pois criaria “uma instabilidade favorável a não lermos simplesmente os episódios narrados como fatos acontecidos, mas sim como um substrato real filtrado pela lente literária” (Ribas, 2011, p. 04) – observa-se que a verdadeira resposta sobre o índice se encontra no elemento exterior à obra, ou seja, no índice inicial, já que, conforme pontuado, os recursos formais podem ser usados com mesmo êxito na ficção ou na não ficção. O caso de O Filho Eterno, porém, é atípico, pois há uma incongruência visível entre a experiência colateral trazida pelo índice inicial (a categorização como romance, a inserção na ficção e, consequentemente, a liberdade para narrar fatos provindos de um mundo imaginário) e a trazida pelo conhecimento do autor (que autentica que a história contada no livro coincide com a própria história de Tezza). Há necessidade, portanto, de 12

Grifos da autora.

relativizar o alcance das intenções do livro a partir do conhecimento de seu autor. Para discutir tal questão, Jost (2004) aborda o fenômeno editorial do romance O nome da rosa, cujos modos de recepção foram analisados por seu autor, o semioticista Umberto Eco: Ao passar pela experiência de ter escrito um romance que atingiu milhões de leitores, Eco tomou consciência de ter atingido um fenômeno extraordinário: até algumas dezenas de milhares de exemplares (...) atingira um público que conhecia perfeitamente o pacto ficcional. Depois, sobretudo para além de um milhão de exemplares, verificou que se entrava em uma terra de ninguém, na qual não é certo que os leitores estejam conscientes desse fato” (Jost, 2004, p. 14). Os leitores de Eco, a partir de um certo número, suspendiam um chamado pacto da “incredulidade” – que o faziam aceitar tudo que era dito no romance – e começaram a enviar cartas corrigindo inexatidões da obra (Jost, 2004, p. 15)

O clássico romance, consensualmente compreendido como obra proveniente da ficção, teria “quebrado” tal pacto ficcional com os leitores ao atingir um patamar de marcas planetárias, a partir do qual começou a sofrer cobranças, a princípio, indesejadas a obras que não se comprometem a uma correspondência com o real. Pode-se inferir, talvez, que o sucesso editorial (nos parâmetros brasileiros) de O Filho Eterno suspende a promessa feita pelo conhecimento colateral da vida de seu autor, tornando possível aceitá-lo como obra ficcional.

Conclusões - A soberania do mundo dos fatos reais como possível abordagem ao romance

Por fim, intenta-se fazer considerações sobre a superioridade do real como esfera do discurso mais esperada às obras, em relação a textos que são totalmente pertencentes a um mundo imaginário, sem referências a aspectos do mundo concreto. A hipótese aqui sustentada é de que há uma “soberania do real em todos os gêneros” (MARTINS, 2005, p. 117), e o receptor tende a procurar, mesmo nas obras ficcionais, marcas dessas referências ao real. O mundo da ficção, no qual “o autor é livre para inventar, e (...) se

decidir que os seres humanos encolham depois de submetidos a radiações atômicas, ou cresçam, ou se tornem invisíveis, ele tem liberdade para fazê-lo” (Jost, 2004, p. 37), só nos faz verdadeiro sentido se, por algum aspecto, ele nos traz pistas sobre uma possível crítica, alegoria ou abordagem irônica referente a um fenômeno do real. Wood (2011), ao analisar a narrativa literária, atenta aos recursos de precisão realista na busca do que Barthes (1988) compreendeu como “pormenor supérfluo” – os objetos utilizados pela narrativa de Flaubert que causam a ilusão da inserção de algo concreto em cena – e faz o seguinte questionamento: “a especificidade é, em si, satisfatória? Penso que sim, e esperamos essa satisfação da literatura. Queremos nomes e números” (Wood, 2011, p. 75). Detalhes concretos, referentes ao mundo real, são esperados às obras que consumimos – basta dizer que a promessa do „baseado em fatos reais‟ é estratégia muito explorada nos produtos midiáticos. Em consequência, a promessa de autenticidade de O Filho Eterno - o fato de o livro (espera-se!) ter sido inspirado na própria vida do escritor – configura-se, por fim, como um apelo essencial ao seu consumo. Há uma parcela na apreciação desta obra advinda justamente dessa informação que, portanto, não deve ser ignorada. Sobre a superioridade dos fatos reais, Jost argumenta: O direto confere um sentimento de autenticidade que, como já se afirmou, é preferível a qualquer outro. Este prazer misturado já se achava presente nas cenas dramáticas dos anos 50-60 que, mesmo situando o telespectador na ficção, deixavam a realidade ser tragada nas brechas de algumas rateadas: ruídos decorrentes dos deslocamentos das câmeras, brancos de memórias dos atores, etc. (Jost, 2004, p. 36)

A confusão entre as fronteiras do real e do ficcional, portanto, é desejada à obra em questão, e certamente compõe em parte sua carreira de sucesso editorial. Pode-se por fim concluir que a experiência colateral com o autor (o renomado romancista), o índice inicial e as fronteiras nebulosas entre os elementos reais e imaginados em O Filho Eterno acarretam o desejo de uma “postura ficcional” (Carroll, 2005, p. 81) em seu público leitor – eximindo Cristóvão Tezza, certamente, de certas cobranças que seriam feitas, por exemplo, a um jornalista ou a um biógrafo (como, por exemplo, a

pluralidade de vozes, a escuta de outras partes envolvidas na história contada, uma maior quantidade de índices do real).

Referências

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