SOBRE SILÊNCIO (MUSICAL): JOHN CAGE E A PROPOSTA DE UMA NOVA MÚSICA PARA NOVOS OUVIDOS. in:____ Anais Simpósio de Estética e Filosofia da Música 2013/ UFRGS

July 23, 2017 | Autor: G. Silva Santos | Categoria: Music, John Cage, Estética, Desconstrução
Share Embed


Descrição do Produto

1

Raimundo Rajobac (Org.)

SIMPÓSIO DE ESTÉTICA E FILOSOFIA DA MÚSICA SEFiM/UFRGS Anais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL DEPARTAMENTO DE MÚSICA PORTO ALEGRE 2013

2

Raimundo Rajobac (Org.)

SIMPÓSIO DE ESTÉTICA E FILOSOFIA DA MÚSICA SEFIM/UFRGS 1ª Edição

ISBN: 978-85-66106-05-3

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Departamento de Música Porto Alegre 2013

3

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Reitor Carlos Alexandre Netto

Vice-Reitor Ruy Vicente Oppermann

Pró-reitor de pesquisa José Carlos Frantz

Pró-reitora de extensão Sandra de Deus

Diretor do Instituto de Artes Alfredo Nicolaiewsky

Chefe do Departamento de Música Luciana Prass

Coordenador do Programa de Extensão do DEMUS Raimundo Rajobac

4

Comissão Científica do SEFiM Coordenação: Raimundo Rajobac – UFRGS

Fernando Gualda – UFRGS Fernando Lewis de Mattos – UFRGS Gerson Luís Trombetta – UPF Gleison Juliano Wojciechowski – UPF Gustavo Frosi Benetti – UFBA Lia Vera Tomás – UNESP Manuela Toscano - FCSH/UNL Marilia Raquel Albornoz Stein – UFRGS Mário Rodrigues Videira Junior – USP Yara Borges Caznok - UNESP

Diagramação e Revisão: Martin Weiler e Raimundo Rajobac

5

S612a Simpósio de Estética e Filosofia da Música (1. : 2013 : Porto Alegre, RS) I Simpósio de Estética e Filosofia da Música. Anais do SEFiM, 17 a 18 de outubro de 2013 [recurso eletrônico] / Organização de Raimundo Rajobac ... [et. al]. – Porto Alegre : UFRGS, 2013.

Modo de Acesso: http://www.ufrgs.br/esteticaefilosofiadamusica ISBN: 978-85-66106-05-3 (E-book)

1. Música e Filosofia. 2. Estética da Música. 3. . Filosofia da Música. 4. Música : História e formação. I. Rajobac, Raimundo, org. II. Título. CDU 78:061.3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Mara R. B. Machado, CRB10 / 1885

6

SUMÁRIO I ESTÉTICA E FILOSOFIA DA MÚSICA Trabalhos Completos MÚSICA E IMAGINAÇÃO EM “LIÇÕES SOBRE A CONSCIÊNCIA IMANENTE DO TEMPO” DE HUSSERL __________________________________ 18 José Luiz Furtado

A PERCEPÇÃO COMO FORMA DE INICIAÇÃO AO PROCESSO DE INFLUÊNCIA DA MÚSICA NAS PESSOAS _______________________________ 27 Jonny Rosa da Silva Crispim Eliane Leão

EDUCAÇÃO: O CAMPO MAIOR DE APLICAÇÃO DA PESQUISA EM MÚSICA ________________________________________________________________________ 44 Marcos Câmara de Castro

GUILHERME DE MELLO E A MUSICA NO BRASIL: PANORAMA IDEOLÓGICO E SISTEMAS FILOSÓFICOS SUBJACENTES _______________ 54 Gustavo Frosi Benetti

A MUSICALIDADE EXTRA MUSICAL OU A EXTRA MUSICALIDADE MUSICAL DE RICARDO RIZEK __________________________________________ 65 Paulo José de Siqueira Tiné

MONTEVERDI, 1638: ÉTHOS, PÁTHOS E O PÍRRICO COMO TÓPOS RÍTMICO NA CRIAÇÃO DO STILE CONCITATO __________________________ 75 Vicente Casanova de Almeida

O PAPEL DA “DIFERENÇA” PARA UMA ESCUTA-PENSAMENTO _________ 92 Amanda Veloso Garcia

A MÚSICA DE W. A MOZART (1756-1791): O EQUILÍBRIO ENTRE FORMA E CONTEÚDO E ANÁLISE RETÓRICO-MUSICAL _________________________ 103 Igor Daniel Ruschel

MÚSICA COMO CRÍTICA SOCIAL: TRÊS EXEMPLOS DISTINTOS NA HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL ___________________________________ 113 Igor Daniel Ruschel

SECOS E MOLHADOS NO BRASIL DOS ANOS 70: A ARTE NO ESPAÇO DO ENTRE, O GOZO E O SUPLÍCIO ________________________________________ 123 Sabrina Ruggeri

O SENTIDO DA MÚSICA NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER __ 134 José Eduardo Costa Silva

LINGUAGEM E ESCUTA MUSICAL ONTOLÓGICA ______________________ 151 Vagner Geraldo Alves

LÉVI-STRAUSS: MITOS EM MELODIAS ________________________________ 166 Betania Maria Franklin de Melo

7

UM CONCERTO NO GRANDE HOTEL ABISMO: O DIÁLOGO ARTÍSTICO DE THOMAS MANN E ADORNO EM DOUTOR FAUSTO _____________________ 185 Kaio Felipe

SOBRE O CONCEITO DE FETICHISMO NA MÚSICA NA OBRA DE CRÍTICA MUSICAL DE T. W. ADORNO. __________________________________________ 199 Jéssica Raquel Rodeguero Stefanuto Ari Fernando Maia

WALTER BENJAMIN E A OBRA DE ARTE: A REPRODUTIBILIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A PRÁTICA E ENSINO MUSICAL _____________ 212 Tiago de Lima Castro

COMPÊNDIO MUSICAL DE DESCARTES: CLAREZA E DISTINÇÃO NA ESTÉTICA _____________________________________________________________ 222 Tiago de Lima Castro João Epifânio Regis Lima

ESTÉTICA E MODERNIDADE: A ARTE MUSICAL DE ASTOR PIAZZOLLA 239 Antonio Rago Filho

A HISTÓRIA ENQUANTO FUNDAMENTO DA AUDIÇÃO MUSICAL E A MÚSICA COMO AFIRMAÇÃO DO REAL NO SEGUNDO NIETZSCHE _____ 254 Felipe Thiago dos Santos

O PROCESSO DE EMERGÊNCIA MUSICAL: UM ESTUDO SOBRE AS PERSPECTIVAS NATURAIS E SOCIAIS DO COMPORTAMENTO MUSICAL _______________________________________________________________________ 268 Felipe Pacheco

FETICHES E FE(I)TICHES: A CRÍTICA DE THEODOR ADORNO À INDÚSTRIA CULTURAL SOB A ÓTICA DA ANTROPOLOGIA SIMÉTRICA DE BRUNO LATOUR ______________________________________________________ 286 Fernando Nicknich

BEETHOVEN E NIETZSCHE: UMA MÚSICA HEROICA PARA UMA FILOSOFIA TRÁGICA __________________________________________________ 298 Francisco Gleydson Lima da Silva

O BELO QUE NÃO SE VÊ ______________________________________________ 317 Francisco Gleydson Lima da Silva

BELEZA, ORDEM E PROGRESSO: RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE O POSITIVISMO E O SISTEMA TONAL ___________________________________ 326 Gleison Juliano Wojciekowski Gerson Luís Trombetta

ADORNO: A DIALÉTICA DA EXPRESSÃO NA MÚSICA TONAL __________ 339 Philippe Curimbaba Freitas

O PROBLEMA DAS GRANDES FORMAS AUTÔNOMAS NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE ADORNO SOBRE SCHOENBERG E BERG _________________ 357 Igor Baggio

8

EMBASAMENTO FILOSÓFICO PARA UMA DERIVAÇÃO CONCEITUAL DA ANÁLISE SCHENKERIANA ____________________________________________ 375 Ivan Chiarelli Monteiro

DISCÍPULOS DO CAOS: DO BLACK METAL COMO REPRESENTAÇÃO DA ESTÉTICA PÓS-MODERNA ____________________________________________ 389 Jonivan Martins de Sá

EDUCAÇÃO DA SENSIBILIDADE ESTÉTICA E MULTIDIMENSIONALIDADE: SENTIDOS DA EXPERIÊNCIA DA MÚSICA NAS ‘FILOSOFIAS’ DA EDUCAÇÃO MUSICAL __________________________ 402 Luís Fernando Lazzarin

POR UMA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO MUSICAL ______________ 416 Pedro Carneiro

O BRASIL NA MÚSICA: REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA NA PRODUÇÃO MUSICAL DO SÉCULO XX ________________ 425 Potiguara Curione Menezes

DISCURSO E CONTEÚDO: DESDOBRAMENTOS DAS CONTRADIÇÕES NA TRAJETÓRIA DO MODERNO EM MÚSICA. _____________________________ 441 Potiguara Curione Menezes

A REFLEXÃO SOBRE A ESTÉTICA MUSICAL NO SÉCULO XX COMO UM SETOR IMPORTANTE DA REFLEXÃO FILÓSOFICA EM GERAL _________ 450 Rachel Louise Eckert

ADORNO E BENJAMIN: CINEMA E MÚSICA COMO PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA ____________________________________________________ 458 Robson da Rosa Almeida

ÓPERA FRANCESA: A TRAGÉDIA LÍRICA, A DANÇA, “QUERELLE DES BOUFFONS” E ILUMINISMO ___________________________________________ 469 Rodrigo Lopes

A SOCIEDADE E O ENSINO DA MÚSICA _______________________________ 481 Rodrigo Marcelo Sabbi Gleison Juliano Wojciekowski

INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DE UMA ESTÉTICA MUSICAL KANTIANA ____________________________________________________________ 496 Victor Di Francia Alves de Melo

A NOVA ESCRITA PARA CRAVO OBBLIGATO NA FRANÇA NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII COM BASE NAS PIÈCES DE CLAVECIN EN CONCERT DE JEAN-PHILIPPE RAMEAU _____________________________________________ 508 María Eugenia Linardi

POÉTICAS E ESTÉTICAS MUSICAIS: DE PITÁGORAS PARA ALÉM DE JOHN CAGE ___________________________________________________________ 520 Dilmar Miranda

9

A ESCRITA PARA PERCUSSÃO DOS COMPOSITORES DO GRUPO MÚSICA NOVA _________________________________________________________________ 539 Ricardo de Alcantara Stuani

ANÁLISE SHENKERIANA DO SEGUNDO MOVIMENTO DA SÉTIMA SINFONIA DE BEETHOVEN (TEMA A) _________________________________ 553 Ricardo De Alcantara Stuani

SOBRE TRAGÉDIA, MÍMESIS, DEVIR-ANIMAL E XAMANISMO. REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS MUSICAIS E MITOS A PARTIR DE O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA. _________________________________________ 563 Marcelo Villena

A FORMAÇÃO MUSICAL NA PAIDÉIA PLATÔNICA _____________________ 573 Maria Teresa De Souza Neves

ASPECTOS ESTÉTICOS DA MÚSICA SEGUNDO AS LEITURAS DOS LIVROS “ESTÉTICA MUSICAL” DE CARL DAHLHAUS, “ESTÉTICA MUSICAL” DE ENRICO FUBINI E “BELO MUSICAL” DE EDUARD HANSLICK. _________ 579 Mayki Fabiani Olmedo

EMOÇÃO E SOM – AS OBSERVAÇÕES ESTÉTICAS DE RUDOLF HERMANN LOTZE SOBRE A MÚSICA. _____________________________________________ 589 Thomas Kupsch

Resumos Expandidos A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E O RITMO NO “DE MUSICA” DE SANTO AGOSTINHO___________________________________________________________ 598 Sérgio Ricardo Strefling

A REFUTAÇÃO À TEORIA MUSICAL NO CONTRA OS MÚSICOS DE SEXTO EMPÍRICO _____________________________________________________________ 602 Sarah Roeder

A PARTICULAR DIREÇÃO DE TEMPO E A COMPREENSÃO DO ESPAÇO E DO TEMPO EM CONSTRUÇÕES ESPELHADAS _________________________ 606 Silvia Maria Pires Cabrera Berg Sara Lima da Silveira Costa

CHORO E MODERNISMO: QUESTÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DA MÚSICA POPULAR URBANA. __________________________________________ 610 Renan Moretti Bertho

ENSAIO SOBRE MÚSICA, TEMPO E RELATIVIDADE ___________________ 615 Lucas Eduardo da Silva Galon

NIETZSCHE, DELEUZE E A REVOLUÇÃO DAS IMAGENS VISUAIS E SONORAS _____________________________________________________________ 619 Luame Cerqueira

10

SOBRE SILÊNCIO (MUSICAL): JOHN CAGE E A PROPOSTA DE UMA NOVA MÚSICA PARA NOVOS OUVIDOS ______________________________________ 622 Larissa Couto Rogoski Gledinélio Silva Santos

A MISSA EM SI MENOR DE JOHANN SEBASTIAN BACH: A POÉTICA E O TRÁGICO ______________________________________________________________ 626 Katia Regina Kato Justi

A DIMENSÃO METAFÍSICA DA MÚSICA _______________________________ 630 João Augusto R. Mendes Jorge Augusto de Serpa Mendes

ARTE COMBINATÓRIA E MÚSICA EM LEIBNIZ ________________________ 634 Fabrício Pires Fortes

POSMODERNIDAD MUSICAL EN EL 3ER. MOVIMIENTO DE LA SINFONIA (1968) DE L. BERIO ____________________________________________________ 637 Edgardo J. Rodríguez

REFLEXÕES ACERCA DE ARTHUR SHOPENHAUER E A VISÃO PLATÔNICA DA ARTE _________________________________________________ 642 Caio Miguel Viante

ONTOLOGIA DA MÚSICA ______________________________________________ 645 João Fernando de Araujo

“A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO” DE EDGAR ALLAN POE: APLICAÇÃO DA METODOLIGIA EM UMA CANÇÃO POPULAR DO SÉCULO XXI _________ 649 Raquel de Moraes Pianta

MÚSICA E ESPIRITUALIDADE: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DO CAMPO DA EDUCAÇÃO ________________________________________________________ 653 Bárbara Burgardt Casaletti

A MUSICALIDADE NO PENSAMENTO DE HEIDEGGER ________________ 657 Wagner Bitencourt

EXISTE “AURA” MUSICAL NUMA ERA DE REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA DA ARTE? _____________________________________________________________ 660 Cintya Fernanda Morato Soares Rafael Trentin Scremin

SOBRE A EPISTEMOLOGIA DA MÚSICA DE HELMHOLTZ: IDEAÇÃO ATIVA E INFERÊNCIAS INCONSCIENTES NA PERCEPÇÃO TONAL ___________ 664 Lucas Carpinelli

Resumos INTERPRETAÇÃO E PERFORMANCE MUSICAL PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS-GEORG GADAMER _____________________________ 669 Danton Oestreich

11

“PARCIAL, APAIXONADA, POLÍTICA”: CHARLES BAUDELAIRE E SUA CRÍTICA MUSICAL ____________________________________________________ 671 Danilo Pinheiro de Ávila José Adriano Fenerick

MPB, INDÚSTRIA CULTURAL E CULTURA POPULAR: ADORNO CONTRA ADORNO ______________________________________________________________ 673 Luciana Molina Queiroz

A MÚSICA COMO TRADUÇÃO E REVELAÇÃO FILOSÓFICA NA OBRA DE ADORNO ______________________________________________________________ 675 Lucyane De Moraes

A TRANSMISSÃO DE VALORES MORAIS PELO MEIO MUSICAL ________ 677 Halley Chaves da Silva Augusto Matheus Vasconcellos de Araújo

NOTAS SOBRE A MÚSICA FOLCLÓRICA RIO-GRANDENSE _____________ 679 Gabriela Nascimento Souza Manoela Nascimento Souza

FILOSOFIA DA MÚSICA COMO VERDADEIRA FILOSOFIA: A METAFÍSICA DA MÚSICA DE ARTHUR SCHOPENHAUER ____________________________ 681 Luan Corrêa da Silva

O LÓGOS DA MÚSICA NO FILEBO DE PLATÃO _________________________ 683 Leonardo Marques Kussler

CONSTRUINDO A TRADIÇÃO: MÚSICA E RECEPÇÃO NO PÓS-GUERRA 684 João Gabriel Rizek

DA MÚSICA, DE MIL PLATÔS: A INTERCESSÃO ENTRE FILOSOFIA E MÚSICA EM DELEUZE E GUATTARI ___________________________________ 686 Henrique Rocha de Souza Lima

A AUTONOMIA ESTÉTICA COMO BASE DA FORMAÇÃO SUPERIOR EM MÚSICA: UM MODELO EM CRISE? _____________________________________ 688 Flavio Barbeitas

O ENIGMA DE WITTGENSTEIN: ESTÉTICA E ESTATÍSTICA ____________ 690 Christian Benvenuti

ROUSSEAU E A QUERELA DOS BUFÕES _______________________________ 693 Angélica Romeros de Almeida

O CONCEITO DO BELO EM MIKEL DUFRENNE ________________________ 695 Adrio Schwingel

TEORIA MUSICAL VERSUS PRÁTICA INTERPRETATIVA? CORRELAÇÃO ENTRE VARIAÇÃO DA DIVISÃO RÍTMICA E TEMPO METRONÔMICO SUGERE QUE A TEORIA E A PRÁTICA NÃO SÃO SUFICIENTES PARA JUSTIFICAR ESCOLHAS INTERPRETATIVAS __________________________ 696 Leandro Serafim Fernando Gualda

12

A MAGIA MUSICAL NO SILÊNCIO DAS SEREIAS _______________________ 698 Gabriela Nascimento Souza

ONTOLOGIA E LINGUAGEM DA MÚSICA: REFLEXÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS CONCEITUAIS DA LINGUAGEM MUSICAL ________________ 700 Adriano Bueno Kurle

O ELEMENTO DRAMÁTICO NO “ELEVAZIONE” DE DOMENICO ZIPOLI: UMA PROPAGANDA EM DEFESA DO CATOLICISMO ___________________ 702 Adilson Felicio Feiler

DA GENIALIDADE À DECADÊNCIA: NIETZSCHIANAS ACERCA DO ARTISTA RICHARD WAGNER __________________________________________ 704 João Eduardo Navachi da Silveira

MÚSICA: HOBBY, PROFISSÃO OU NEGÓCIO? A MÚSICA NO MUNDO REAL E IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE _______________________________________ 706 Bruna Repetto

ESTÉTICA MUSICAL NA MPB __________________________________________ 707 Fernando Henrique Machado Ávila

A MAVIOSIDADE DA MÚSICA DO UNIVERSO: A COSMOVISÃO PITAGÓRICO-PLATÔNICA DO COMENTÁRIO AO SONHO DE CIPIÃO, DE MACRÓBIO (SÉC. V) ___________________________________________________ 708 Ricardo da Costa

II EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS E EDUCAÇÃO MUSICAL Trabalhos Completos O ENSINO DA MÚSICA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA A PARTIR DO CHORO E SUA INSTRUMENTAÇÃO _______________________________________________________________________ 712 Mateus Pasquali

COMPOSIÇÃO MUSICAL COMO ATIVIDADE DIDÁTICA: ESCUTA ALTERITÁRIA BAKHTINIANA COMO ATO COGNITIVO-ESTÉTICO-ÉTICO EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS EM EDUCAÇÃO MUSICAL ________________ 721 Liana Arrais Serodio

EXPERIÊNCIAS SONORAS: A MUSICALIDADE MARCADA PELA PERCEPÇÃO E DESCOBERTA__________________________________________ 736 Édina Regina Baumer Halbertina Roecker Wiggers

A TEORIA DA FORMATIVIDADE VOLTADA PARA O PROCESSO INVENTIVO EM SALA DE AULA POR UMA ESTÉTICA DO FAZER _______ 750 Sara Cecília Cesca

Jorge Luiz Schroeder

13

CAPOEIRA ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO ÉTICOESTÉTICA _____________________________________________________________ 759 Fernando Campiol Placedino

Resumos Expandidos IDENTIDADE E EDUCAÇÃO MUSICAL NAS SÉRIES INICIAIS: CHAMADAS MUSICAIS _____________________________________________________________ 769 Artur Costa Lopes Claudia Helena Alvarenga

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E APRENDIZAGEM MUSICAL EM MUSICOTERAPIA A PARTIR DO MÉTODO ORFF _______________________ 773 Melyssa Woituski

ESTÉTICA DO RAP E EDUCAÇÃO MUSICAL ___________________________ 777 Edson Ribeiro Biondo Júnior

DO ASCETISMO ENTRE ESTUDANTES DE MÚSICA À INTUIÇÃO EM BERGSON _____________________________________________________________ 781 Vânia Beatriz Müller

A METODOLOGIA DE ENSINO DO CLARINETE EM BELÉM DO PARÁ: UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO DE DUAS INSTITUIÇÕES LOCAIS E SUAS CONTRIBUIÇÕES À PROFISSIONALIZAÇÃO ___________ 785 Herson Mendes Amorim

Resumos AUDIAÇÃO E ESTUDO CONSCIENTE: UMA FERRAMENTA PARA APRIMORAMENTO DA PERFORMANCE MUSICAL DE ESTUDANTES DE FLAUTA TRANSVERSAL _______________________________________________ 791 Tilsa Isadora Julia Sánchez Hermoza

TEORIA

DELLA FORMATIVITÀ: UM INSTRUMENTO FILOSÓFICO DESTINADO À REFLEXÃO DO PROCESSO ARTÍSTICO EM SALA DE AULA _______________________________________________________________________ 794 Sara Cecília Cesca Lucas Eduardo da Silva Galon

PERFORMANCE EXPERIMENTAL, CONFLUÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS 796 Fernando Maia Assunção Samuel Cavalcanti Correia

INFLUÊNCIA DA PRÉ-DEFINIÇÃO DE CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO NA APRECIAÇÃO DA EXECUÇÃO MUSICAL RESULTA EM NECESSIDADE DE BUSCAR VALIDADE ECOLÓGICA NA CRIAÇÃO DE NOVOS MÉTODOS _ 798 Estela Kohlrausch Fernando Gualda

14

SEMELHANÇAS ENTRE A PROPOSTA EDUCACIONAL DE SCHAFER E KOELLREUTTER ______________________________________________________ 800 André Luiz Greboge

EDUCAÇÃO MUSICAL COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: UMA INVESTIGAÇÃO A PARTIR DE ARTHUR SCHOPENHAUER _____________ 802 Thaís Nascimento

MULHERES EM BANDAS DE MÚSICA: FATOS ESTÉTICOS E SOCIAIS NO NORDESTE DO BRASIL E NORTE DE PORTUGAL ______________________ 803 Marcos dos Santos Moreira

O GESTO NA AUDIÇÃO ATIVA DO MÉTODO ORFF/WUYTACK __________ 805 André Luiz Greboge

III ESTÉTICAS, ARRANJOS E COMPOSIÇÕES DE TODAS AS HARPAS À KORA: MALI E ISLÂNDIA NO GLASTONBURY FESTIVAL _____________________________________________________________ 807 Wellington Marçal de Carvalho

ELABORAÇÃO DE ARRANJOS PARA CONTRABAIXO ACÚSTICO SOLISTA EM COLABORAÇÃO COM O VIOLÃO NO CONTEXTO ESTÉTICO DE OBRAS BRASILEIRAS _________________________________________________________ 809 Gadiego Carraro

UMA ESTÉTICA DO SUBLIME NO PROCESSO COMPOSICIONAL DE SONATINA PARA PIANO E FAGOTE ___________________________________ 811 Willian Fernandes de Souza

SONATAS D´APRÈS SCHUBERT/BRAHMS: UMA LEITURA RIZOMÁTICA DO FLUXO DE CONSCIÊNCIA _____________________________________________ 832 Yuri Behr Kimizuka

DANÇA COM LOBOS ___________________________________________________ 840 João Francisco de Souza Corrêa

AS SÚPLICAS DO CARGUEIRO NEGRO ________________________________ 861 Arthur Vinícius

MILONGA NOVA ______________________________________________________ 881 Gadiego Carraro

SÍNTESE ABSOLUTA __________________________________________________ 891 Halley Chaves da Silva José Liduino Pitombeira de Oliveira

MISANTROPIA ________________________________________________________ 895 Igor Mendes Krüger

BANDA DE UM HOMEM SÓ: MEMORIAL DESCRITIVO DE COMPOSIÇÃO PARA O DISCO CONCEITUAL OLHAR. FAIXA 1: “MISANTROPIA” _______ 908 Igor Mendes Krüger

15

METAGON – TEMPO MUSICAL ESPIRAL _______________________________ 931 Luigi Antonio Irlandini

A MÚSICA NÃO PODE SER ERUDITA SONETO CONCRETO SOBRE COMPOSIÇÃO PLANIMÉTRICA MONTAGEM DE FRAGMENTOS DE H. J. KOELLREUTTER & ADONIRAM BARBOSA _____________________________ 947 Antonio Herci Ferreira Júnior

COTA ZERO: UM ESQUEMA SUMÁRIO _________________________________ 960 Claudia Helena Alvarenga Tarso Bonilha Mazzotti

IMAGENS DO SERTÃO PARA CLARINETA EM Bb E VIOLÃO ____________ 970 Marcelo Alves Brazil

SIBÉRIA _______________________________________________________________ 986 Paulo José de Siqueira Tiné

QUEM

VEM

LÁ?!

METALINGUAGEM, AGONISMO E HIBRIDAÇÃO CULTURAL COMO MARCAS DIFUSAS DE UM PROCESSO CRIATIVO __ 1033 Paulo Rios Filho

CATÓLICOS LIMIARES: A OBRA E BREVES CONSIDERAÇÕES ________ 1072 Samuel Cavalcanti Correia

16

I ESTÉTICA E FILOSOFIA DA MÚSICA

17

I TRABALHOS COMPLETOS

18

MÚSICA E IMAGINAÇÃO EM “LIÇÕES SOBRE A CONSCIÊNCIA IMANENTE DO TEMPO” DE HUSSERL José Luiz Furtado [email protected] Professor Associado do Departamento de Filosofia da UFOP

Resumo: A fenomenologia de Husserl apresenta uma nova concepção da percepção sensível revelando o papel constituiente da subjetividade compreendida em sentido transcendental. Em as "Lições sobre a consciência imanente do tempo" o filósofo toma a música exemplarmente para referendar sua análise da sensibilidade. Nosso trabalho versa sobre a reflexão do fundador da fenomenologia sobre a música, ou melhor, sobre a musicalidade da música. Palavras-chave: Husserl. Fenomenologia. Música.

Tradicionalmente a imaginação foi considerada uma faculdade intermediária entre a percepção, de natureza empírica, e a universalidade dos conceitos, como ideia, por exemplo, em Kant. Husserl ocupar-se-á da imaginação em sentido estético, ou seja, referida a objetos – obras de arte e sinais de toda sorte - cuja função consiste em representar, ou, em linguagem fenomenológica, presentificar outras realidades que não estão contidas neles próprios. Mas a análise fenomenológica da imaginação não escapará do primado ontológico da percepção estabelecido por Husserl como um dos corolários principais da fenomenologia. “A razão é intuição que se propõe reduzir todo entendimento à intuição”, afirma Husserl.1 Mas a forma mais plena e originária de intuição é a percepção sensível, de modo que a imaginação estará condenada a ocupar um lugar secundário na hierarquia dos modos de consciência, como já ocorria na tradição filosófica anterior, seja nas correntes empiristas ou racionalistas. Primeiramente imaginação será definida por Husserl a partir dos conceitos de “presentificação” e “neutralização”. Através da imaginação a consciência intencional presentifica, ou torna “quase” presente, um objeto, a imagem retirando-lhe, no entanto, o caráter tético da existência por ele possuído em sua percepção sensível. De fato a percepção nos dá o objeto em “carne e osso”. Desta forma a imaginação depende da percepção e lhe é inferior pois só a percepção constitui uma doação propriamente falando originária, enquanto a imaginação é derivada da primeira. Não podemos imaginar oque quer que seja senão a partir do mundo da percepção.

1

A Ideia da fenomenologia. Trad. Artur Mourão. Porto: Edições 70, 1985, p. 92, grifo nosso.

19

Pois bem nas Ideias I, principalmente no § 111, Husserl, tomando como exemplo a gravura de Dürer intitulada “O cavaleiro, a morte e o diabo”, e mediante uma análise que nos faz recordar a de Heidegger, em “A origem da obra de arte”2, afirma que, primeiramente, a gravura se apresenta como uma coisa mundana qualquer. Ou seja, como objeto material existente aí diante de mim no mundo, que eu posso tocar ou mudar de lugar, por exemplo.3 Para que possamos percebê-la propriamente como uma obra de arte é necessário neutralizar o caráter tético da sua existência, ou seja, a fé perceptiva que acompanha toda percepção sensível de um objeto. Como Kant já havia assinalado na “Crítica do juízo”, a percepção estética é desinteressada na medida em que se desliga da posição de existência do objeto dirigindo-se somente à sua pura forma sensível. A percepção de um trigal tanto pode suscitar a imaginação do lucro que trará ao seu proprietário, quanto o prazer de contemplar sua forma amarelada brilhando sob o sol se submeto a percepção a uma neutralização. Na medida, pois em que a existência do objeto percebido é neutralizada surge no meu campo visual agora, uma irrealidade que constitui precisamente a obra como tal. Enquanto percebo a obra, não mais vejo o quadro, do mesmo modo como quem vê os olhos do outro nada percebe do seu olhar. Ela não perde, entretanto – o que constitui a meu ver uma das maiores dificuldades da compreensão dos fenômenos estéticos - seu caráter sensível. A irrealidade da obra não significa absolutamente que ela seja de natureza conceitual ou ideal, que no fundo constitui a concepção de Hegel da arte como “ideia sensível”. A neutralização apenas significa que a obra não indica - e nós não podemos dizê-lo - onde se situa o que ela representa. O paradoxo consubstancial ao elemento estético reside no fato dele nos dar a ver e entender mais do que nos seria dado ver e entender através das linhas, cores e superfícies, por exemplo, de que é feita uma pintura. Paradoxo descrito por Merleau-Ponty, a propósito de um quadro: “vejo segundo ou com ele mais do que ele próprio”.4 Assim podemos dizer da audição de uma sinfonia que ela emana ou emerge dos sons que ouvimos, e que eles operaram a presentificação de uma irrealidade.5 Nem podemos dizer que a melodia seja um ser, pois nesse caso deveríamos reduzi-la aos sons dos instrumentos, nem que ela seja um não ser. Em sua pura aparência neutralizada ela se apresenta como uma irrealidade. Na obra de arte, escreve Hegel, segundo a terminologia que lhe é própria, “o espírito não busca nem a materialidade concreta ... nem os conceitos universais puramente ideais”. 2 3

A origem da obra de arte. Porto: Edições 70, 1998.

Idées Directrices pour une phénomélogie; introduction générale a la phénoménologie pure.

Tradução, introdução e notas por Paul Ricouer. Paris: Gallimard, 1950 4 A linguagem indireta e as vozes do silêncio. São Paulo: Abril, 189, p. 188. 5 Platão já havia apontado para este fenômeno. A obra de arte, por exemplo uma estátua, é e não é o que ela representa ou dá ver. Podemos perfeitamente compreender que se trata de uma estátua de Apolo, mas ao mesmo tempo sabemos que não se trata de Apolo em carne e osso. A estátua representa o que o ser Apolo não é.

20

A obra de arte é um fenômeno que não presentifica o que efetivamente ela dá a ver. A sua significação não surge dos elementos materiais de que é feita mas da forma sensível que os reúne em um todo, ou seja, da disposição espacial e temporal que o artista logra consumar através deles. “Uma melodia não é uma simples soma ou junção sequencial de notas, nem um filme uma soma de imagens”6. Contrapondo-se surpreendentemente a essa intuição fundamental Husserl, como demonstrou Maria Saraiva7, aplica de modo ambíguo, a noção de presentificação por analogia, à atitude artística, principalmente no § 111 das Ideias I intitulado “modificação de neutralidade e imaginação”. No texto citado o quadro será considerado um objeto imagem a servir de mediação entre a consciência e o objeto representado e julgado a partir de uma relação de semelhança que em tudo recorda a mimesis platônica. Sigamos o texto que se refere à gravura já citada de Dürer. “Temos uma consciência perceptiva na qual nos aparece em traços negros as figuras incolores do Diabo, da Morte de Cavaleiro. Não é para eles enquanto objeto que nos dirigimos na contemplação estética; somos enviados para as realidades retratadas, mais precisamente desenhadas, à saber, o cavaleiro em carne e osso etc”.8 No trecho citado, através do conceito de presentificação 9 por analogia Husserl “canoniza o ideal de imitação que animou a arte realista”. Segundo Saraiva10 “o primado da percepção pesa ainda demasiadamente” sobre Husserl e “segundo esta perspectiva “o artista não se afasta do real senão para imitá-lo e o espectador não contempla senão para regressar ao real“. Se, seguindo o fenômeno das presentificação a análise da obra de arte nos conduz diretamente a reavivar o falso conceito de arte como figuração do real, as análises que partem do fenômeno correlato da neutralização nos conduzem por uma via mais próxima à essência da arte e mais distante da percepção sensível. 11 6Maria

Del Carmen López. El arte como racionalidad liberadora, Madrid, Ediciones UNED, 2000, p. 53. 7 A concepção da obra de arte em Husserl. Coimbra: Centro de estudos fenomenológicos, 1965. A redação deste artigo deve mais do que eu poderia avaliar aqui a este texto da Maria Saraiva. 8 Ideias I, op. Cit. p. 18. 9 Veja-se a seguinte passagem das Ideias I: “Nos atos de intuição imediata obtemos a intuição da própria coisa ... não tomamos consciência de nenhuma coisa em relação à qual o que é percebido serviria de signo ou imagem-retrato”. Dizemos assim que a percepção nos dá o objeto em carne e osso enquanto a lembrança ou a imaginação “presentificam” o que elas visam. “A percepção de uma coisa não presentifica o que não se encontra presente, como se a percepção fosse uma lembrança ou imaginação; ela apresenta, ela apreende a coisa mesma em sua presença corporal”. (parágrafo 43, p. 140). 10 Op. cit. p. 15. 11 O conceito de neutralização ou neutralidade aplicado à imagem não deixa de ser problemático como Daniel Giovannangeli já havia assinalado (La passion de l`origine, Paris, Galilée, 1995), porque difere de neutralização da posição de existência na “epoke”. A redução depende de um ato intencional que pode ser aplicado a qualquer consciência ou fenômeno. No caso da imagem estética a neutralização diz respeito imediatamente ao conteúdo noemático, por sua irrealidade.

21

Evidentemente toda fruição estética começa com a percepção sensível de um objeto físico: o mármore da estátua, os sons de uma melodia, a tela sobre a qual se pintou um quadro. Mas a percepção sensível, uma vez neutralizada, permaneceria ainda uma percepção normal? A gravura de cobre, objeto primeiro de uma “percepção normal cujo correlato é a coisa “placa gravada”12 permaneceria a mesma? Dando a palavra Husserl: “a consciência que permite desenhar e mediatiza esta operação, a consciência o retrato é um exemplo desta modificação por neutralização da percepção. Este objeto retratado, que desenha outra coisa, não se oferece nem como ser nem como não ser, nem sob nenhuma outra modalidade posicional; ou, acima de tudo, a consciência o toma como ente, mas como um quase-ente segundo a modificação de neutralização do ser”.13 Assim o quadro coisa, a tela e todos os elementos constituintes do “substrato material da obra”14, ou a gravura em cobre desparece simplesmente com a neutralização através da qual surge a obra como um quadro cuja superfície se abre como uma “janela”. Antes de prosseguir, digamos ainda uma palavra esclarecedora sobre a neutralização e o caráter dóxico da percepção sensível e do juízo. Os atos de percepção e de juízo não sofrem qualquer tipo de modificação quando são neutralizados. A neutralização atinge apenas os objetos intencionais dos respectivos atos de consciência. Na percepção normal a coisa percebida solicita imediatamente nossa adesão à sua existência. Esta crença dóxica toma parte essencial em nossa vida cotidiana e não cessa de ser escandaloso ver os professores de filosofia negarem a existência real do mundo (como se ela precisasse de prova) e, fora da sala de aula, fugirem afobadamente, ao atravessar a rua, da frente dos automóveis, não lhes ocorrendo, nem por um centésimo de segundo, duvidar da existência real do veículo ameaçador. Mesmo porque a sala de aula de filosofia nos permite arroubos de inteligência e imaginação que a vida cotidiana limita. No entanto na neutralização o conteúdo - por exemplo de uma proposição categórica - me é indiferente. Isto é inclusive necessário se pretendo examinar sua forma sintática ou lógica. Do mesmo modo, no tocante à percepção normal, se a neutralizo continuo visando qualquer coisa – pois toda consciência é consciência de – e qualquer coisa efetivamente presente, pois o objeto da percepção é uma presença. Mas esta presença perde em meu campo visual seu caráter de presença de uma coisa real. Ela é apenas uma coisa visível e vista sob talou qual aspecto. O sentido noemático permanece o mesmo mas perde a força de realidade que acompanha normalmente as percepções na vida cotidiana. Podemos então pensá-la como uma espécie de irrregionalização – objetividade noemática extrínseca tanto ao mundo como à consciência - ou “coincidência imediata com o mundo em seu aparecer” (p. 38). 12 Op. cit. p. 373. 13 Ibidem. 14 Cf. HENRY, M. Voir Le invisible. Paris: Vrin, 1988.

22

Assim ao abandonarmos, pela neutralização, a atitude perceptiva normal, a pura aparência, as notas de uma canção, libertas da sua função de significar uma realidade ou de indicar uma existência – como o barulho de uma motocicleta – cessarão de ser percebidas propriamente como o que são realmente, ou seja sons emitidos por determinados instrumentos. Elas funcionarão como índices de outras realidades. Esse é, no entanto, um primeiro passo, uma primeira neutralização. O quadro já não é mais uma coisa existente diante de mim, mas o análogo de outra coisa. Sei que o retrato não é a própria pessoa retratada, que ela não está ali na imagem que, no entanto a presentifica. A pessoa não está ali: ela está espelhada em sua imagem, em representação. Por este motivo os primeiros selvagens a entrarem em contato com a fotografia, temeram que ela lhes roubassem a alma ou rosto, quando não a vida. Subsiste, pois ainda a relação da percepção com sua exterioridade, a saber, o mundo da existência, pois sei que o retrato não é (juízo de existência) o que ele representa. Mas ele não representa que é uma representação.15 Daí a necessidade de uma segunda neutralização ou se si quer, redução. Através dela me reporto não mais ao que a representação presentifica mas o que nela e por ela própria é percebido. O importante não é mais o que a figura desenhada ou pintada na superfície da tela retrata, mas sua simples aparência, digamos assim, imanente. As figuras de Durer não mais me conduzem a pensar um diabo ou um cavaleiro reais, e a obra de arte, neste caso perdida como Assim , para citar um exemplo, o representado, em Merleau-Ponty, é "en soi non rapporté à ce qui seul lui donne sens: la distance, l'écarte, la trasncendance, la chair ".(Le visible et l'invisible. Op. cit., p. 306). O notável do problema da representação em geral é que o representado pode, em sua presentificação como signo, ser também representante do que ele significa. " Dans la représentation symbolique par signe ... nous avons l'intuition ... d'une chose (o representante,JLF) avec la conscience qu'elle dépeint ou indique par signe une outre chose"(Husserl, Idées, op. cit., § 15

43, p. 79). Todo o problema da psicanálise e da constituição do sujeito foi comumente assentado sobre essa estrutura representativa e por sua realização privilegiada na linguagem. De fato, como escreve Foucault, a representação é "em sua essência própria ... ao mesmo tempo indicação e aparecer; relação a um objeto e manifestação de si"(Les Mo ts et les choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 79). Como tal a representação é simplesmente o fenômeno, uma vez que toda presença sensível implica o aparecimento de um objeto e os elementos sensíveis que constituem sua aparência. "O representante, escreve Jean Wahl, essas linhas, essas cores, é inteiramente transparente, não tem outro conteúdo senão o representado (essa face); e entretanto ele tem alguma coisa que só pertence a ele, que, bem que não seja um conteúdo, especifica-o como representante de um outro: nele deve-se manifestar seu poder representativo"(Estruturalismo e filosofia, op. cit., p. 56-57). Evidencia-se aqui a confusão na qual a problemática se instala sempre que se quer elucidar a representação a partir do contéudo transcendente da aparência que ela exibe, pois o que não é "conteúdo" da representação e que se manifesta no representante da representação como seu próprio poder representativo é justamente seu aparecer como tal. Linhas, cores, etc., não podem representar um rosto ou qualquer coisa que seja, senão se são eles mesmos, aparência. É inútil situar na estrutura do signo e no seu poder de representar "a relação que o liga ao que ele significa"(Foucault, op. cit., p. 78), ou seja, no fato de, em geral, o representante representar que ele representa o representado, a estrutura ontológica suscetível de exibir a essência da representação. O que é representado pela representação é sempre qualquer coisa de ôntico.

23

realidade mundana não mais apela à imaginação presentificante, nos convidando a explorar as dimensões de uma nova espécie de percepção, ou seja, a percepção propriamente falando, estética de uma irrealidade. Pois bem Husserl irá, nas Ideias II preparar o campo para uma melhor compreensão do que vem a ser a essência do objeto estético, isto é, da obra de arte. Nas Ideias I a tela oferece-se à nossa percepção dentro de uma moldura, suspensa numa parede16 enquanto nas Ideias II o quadro aparece circundado por um mundo natural, pertencendo ao conjunto dos “objetos espiritualizados” opostos aos objetos materiais estudados pelas ciências naturais. Os objetos espirituais, ao contrário dos naturais, devem ser compreendidos e não explicados. Ou seja, devemos compreende-los em seu ser para nós, compreender sua significação que, segundo uma intuição extremamente fecunda de Husserl, se encontra integralmente incorporada em suporte corporal. A linguagem e fala, por exemplo, não meramente meios materiais de que o pensamento se serviria para expressar-se, exteriorizando-se. Se assim fosse, dirá Merleau-Ponty17 poderíamos, apreender de um lado, puros pensamentos independentes e claros para si mesmos e, de outro as palavras necessárias para sua expressão. Mas na verdade isto é impossível. Estar de posse de meus pensamentos é já, imediatamente, tê-los articulados como linguagem e todos sabemos como é difícil falar sem pensar em nada, ou seja, nas palavras que, no entanto, deveríamos empregar de forma absolutamente aleatória. Por isso ouvimos o sentido das palavras que nos são pronunciadas e não a sonoridade da voz que as articula. Através da leitura habito imediatamente o sentido do texto porque minha compreensão não está orientada primariamente para a materialidade das letras e signos do papel. O mesmo é válido para a experiência do outro. Sartre dizia que quando gostamos de alguém não vemos comumente a cor dos seus olhos, mas a expressão do olhar. Através da percepção do corpo do outro vivemos compreensivamente a significação de uma existência, apreendemos a doçura de um caráter ou a fortaleza de uma personalidade. Mas embora o corpo do outro seja também uma corporeidade espiritualizada, na medida em que se trata de substrato expressivo de uma existência Husserl afirma que não podemos transpor por analogia, este esquema para a obra de arte. A face risonha do outro é a própria concretização da alegria, a felicidade encarnada aqui e agora. O corpo do outro é uma existência que não pode ser de nenhuma forma “neutralizada” pela percepção. Aprofundando a análise dos objetos espirituais Husserl chama a atenção para o fato de o sentido espiritual pertencer a uma esfera puramente ideal sem qualquer relação com a existência, embora em alguns casos essa relação possa existir em maior ou menor medida. Nas Ideias II escreve: “Em muitos casos temos uma natureza real, um ser dotado de existência como base do sentido 16 17

Cf. SARAIVA, M. op cit. p. 21. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1966, p. 78.

24

espiritual, em muitos outros temos uma irrealidade física (“ein physisch Unwirkliches”), desprovida de existência”.18 Entre os primeiros estão os objetos de uso e suas significações valorativas para nós, ao segundo grupo – o das “irrealidades físicas” - pertencem as obras de arte em geral. Enquanto a significação de uma colher, por exemplo, pode ser lida diretamente em sua forma material – a sua serventia – a percepção sensível normal pode servir aí como forma da apreensão do seu ser sem necessidade de nenhuma neutralização. Mas no caso da obra de arte o que permite sua apreensão espiritual é “uma irrealidade física”. O quadro coisa física, o suporte material da obra de arte como tal é irrealizado pela percepção estética suporte físico irrealizado: o corpo sensível da imagem não é a imagem desenhada no quadro suspenso na parede, mas o objeto transcendente que através – das cores e linhas no caso de um quadro, dos sons no caso da música - e para além dela o olhar constitui.19 Irrealizada ao perder seu estatuto de obra do mundo, por seu turno as manchas coloridas do quadro são irrealizadas também, ao transformarem-se no corpo irreal da obra de arte. O quadro suspenso na parede, uma vez irrealizado pela neutralização faz surgir a obra de arte. O quadro obra de arte não tem um corpo sensível real, mas em vez dele, um suporte físico irrealizado. Este suporte irreal não é evidentemente a moldura ou mesmo a tela. São as manchas coloridas de tinta, os traços da gravura, o ritmo da dança, a harmonia musical da sinfonia. Desta forma, não só a obra perde seu estatuto de coisa mundana mas também seus elementos. As palavras de um poema expressam uma imagem poética. A pedra no caminho nada me informa sobre a natureza dos caminhos ou dos obstáculos que neles podem surgir e as manchas coloridas da tela cessam de serem percebidas como tais. Em “Lógica formal e transcendental” Husserl retoma o problema e propõese considerar em conjunto, de um modo extremamente fecundo, a linguagem e as obras de arte. Primeiramente Husserl chama a atenção para a o processo de constituição das significações como unidades ideais. Assim como a mesma coisa pode ser percebida ou visada através de inesgotáveis perspectivas diferentes, também uma significação pode ser expressa a partir de uma diversidade de atos de fala. Há sempre mais ou menos do que queríamos dizer em tudo que dizemos; Husserliana IV, p. 239. Citado por SARAIVA, p. 34. Sobre a idealidade da linguagem afirma Husserl que ela possui “a objetividade das objetividades do mundo que denominamos espiritual ou mundo da cultura e não a objetividade da simples natureza psíquica. ... assim distinguimos igualmente a própria gravura das suas milhares de reproduções; e a gravura, a própria imagem gravada, nós vemos a partir de cada reprodução e ela é dada em cada reprodução do mesmo modo como um ser ideal idêntico” (Logique formelle et transcendentale. Paris: PUF, 1965). 19 A dificuldade extrema da compreensão desse fenômeno absolutamente essencial reside na impossibilidade de perceber puramente o desenho ou a pintura sem perceber ao mesmo tempo (no caso de uma pintura figurativa em perspectiva, por exemplo) a sua profundidade imaginária. A percepção, neste caso, não pode ser “neutralizada”. Vemos, por assim dizer, através das pinturas e com elas. 18

25

e se não podemos separar os pensamentos das formulações que os exprimem, muito menos podemos fazê-los coincidir completamente. A idealidade das expressões linguísticas não se refere pois apenas às significações que elas visam, atingindo a linguagem no seu próprio corpo, tornando-a, afirma Husserl, uma “corporeidade espiritual”.20 “A própria palavra, a própria proposição gramatical, é uma unidade ideal que não se multiplica nas suas milhares de reproduções”. Dáse então, na palavra, a encarnação de um sentido espiritual em um substrato material, como a harmonia de uma música em suas notas. Ao falarmos nossos pensamentos se “com-fundem” com as palavras insuflando-lhes a alma do sentido e da significação. A propósito da música diz Husserl que “apesar de ser composta de sons a sonata é uma unidade ideal”. Mas o notável é que, frisamos uma vez mais, Husserl estende essa idealidade aos próprios sons através dos quais a música se expressa. “Seus sons, afirma, não são de forma alguma os sons que estuda a física, ou mesmo os sons da percepção sensível auditiva, os sons enquanto coisas sensíveis. Estes não existem realmente a não ser na sua reprodução efetiva e na sua percepção”.21 De fato a mesma nota do real, o som como coisa sensível, emitida diversas vezes durante a sinfonia será diversamente percebida conforme as notas que a precedem e sucedem. Assim uma coisa são os sons em geral como coisas mundanas, outra os sons de um instrumento que interpreta uma melodia, uma coisa o domínio da existência física na ponta de nossas percepções normais, outra a fluição estética dirigida aos objetos espiritualizados que compõe as obras de arte. 22 Em resumo o elemento significativo que primitivamente era pensado ou podia sê-lo à parte do seu suporte físico ou material será posteriormente “... Enquanto expressões preenchidas por um sentido, como unidades concretas, as formações de linguagem contem ao mesmo tempo um corpo constituído pela linguagem e um sentido expressado, mas isto concerne também às formações de linguagem desde o ponto de vista da sua própria corporeidade que é por assim dizer uma corporeidade espiritual”. (Idem, p. 19. Grifado por Husserl) 21 Logique, op. Cit. p. 18. 22 O caráter constituinte da percepção fica claro, talvez melhor do que a propósito de qualquer outro exemplo, no caso da percepção musical. De fato, as notas de uma canção são sucessivas, de modo que não seria possível perceber uma melodia se de alguma forma as notas anteriores e futuras não fossem conjuntamente apreendidas com as notas atuais. De modo nenhum a percepção melódica poderia ser “explicada”, por isso como efeito provocado em nós pelos sons da melodia uma vez que nem as notas passadas, nem as futuras são sons, ou seja, fenômenos físicos. Elas constituem duas formas de não ser ou irrealidades: o que ainda não é e o que já não é mais. Fica claro então o papel ativo, ou seja a espontaneidade da consciência em sentido constituinte. Como afirma IVONNE PICARD: “a melodia se desfaz à medida que se faz, não se apresenta nunca com evidência cega, sua unidade não pode ser total, sendo sempre indicada e nunca possuída”. (El tiempo em Husserl y em Heidegger. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959, p. 35). A audição das notas e sons tocados pela orquestra é a experiência da melodia que no entanto, funciona como uma espécie de horizonte regulador da própria experiência atual que só assim é uma percepção estética. “A melodia em sua totalidade, afirma Husserl, se presentifica enquanto ressoa, enquanto ressoam os sons que a integram, quer dizer, enquanto são pensados em um só nexo apreensivo. E só terá passado depois de terminado o último som”. (Fenomenología de la conciencia Del tiempo inmanente. Buenos Aires: Nova, 1959, p. 86). 20

26

totalmente encarnado na base física, de maneira a transformar esta na sua própria materialidade, em “corporeidade espiritual”. Desaparece assim da consideração estética husserliana a noção de presentificação e juntamente com ela a falsa Ideia da obra arte como imitação platônica. Isto permitirá a concepção da autonomia do universo estético, tornando-se a obra doravante portadora de um sentido imanente, de uma espiritualidade encarnada que transfigura seu suporte material de tal modo a eliminar, pelo menos nesse campo das análises fenomenológicas, o primado da percepção. BIBLIOGRAFIA GIOVANNANGELI, D. La passion de l`origine, Paris, Galilée, 1999. HENRY, M. Voir Le invisible. Paris: Vrin, 1988. HUSSERL, E. Logique formelle et transcendantale. Trad. Suzanne Bachelard, Paris: PUF, l965 _________. A Ideia da Fenomenologia. Porto: Edições 70, 1987. _________. Idées Directrices pour une phénomélogie: introduction générale a la phénoménologie pure. Tradução, introdução e notas por Paul Ricouer. Paris: Gallimard, 1950. __________. Fenomenología de la conciencia del tiempo inmanente. Trad. Otto E. Langfelder. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959. LÓPEZ, Maria Del Carmen. El arte como racionalidad liberadora, Madrid, Ediciones UNED, 2000. SARAIVA, M. A concepção da obra de arte em Husserl. Coimbra: Centro de estudos fenomenológicos, 1965.

27

A PERCEPÇÃO COMO FORMA DE INICIAÇÃO AO PROCESSO DE INFLUÊNCIA DA MÚSICA NAS PESSOAS Jonny Rosa da Silva Crispim [email protected]; [email protected] Performer de bandas – Aluno da UFG Dra. Eliane Leão [email protected]

Professora da Universidade Federal de Goiás

Resumo: Este trabalho investigou se a percepção musical é a forma de iniciação ao processo de escuta, se a influência da música nas pessoas passa pelo entendimento da mesma; e se o jovem escuta e entende a música que ouve. Questiona a importância da educação musical para o sujeito. A primeira parte contextualiza a importância da música e, a segunda, trata-se da pesquisa realizada com alunos do 9º do ensino fundamental e alunos do 1º, 2º e 3º Anos do ensino Médio. Consiste de um estudo de Metodologia Quantitativa, que pela utilização de questionários, a partir da audição de (03) três músicas, resultou em dados que foram analisados quanto à frequência das respostas obtidas. O público alvo, jovens de 14 a 19 anos, respondendo aos questionários, possibilitaram a investigação. Concluiu-se que o analfabetismo musical resulta da falta de percepção musical e leva ao não entendimento da música que é ouvida. Os autores indicam que o fortalecimento da Educação Musical no país é o maior desafio para os educadores. Palavras-chave: Analfabetismo Musical, Percepção Musical, Influência da Música, Filosofia da Educação Musical.

INTRODUÇÃO A proposta desta pesquisa foi investigar a influência da música na vida das pessoas e como a educação musical pode ajudar no entendimento musical. Teve como objetivo geral entender se a percepção musical é a forma de iniciação ao processo de escuta e se a influência da música nas pessoas passa pelo entendimento da mesma; investigando, através dos dados coletados, se o jovem escuta e entende a música que ouve. Os objetivos específicos foram investigar: 1 Se a percepção musical, como forma de iniciação ao entendimento da música ouvida, pode ajudar no trabalho de conscientização do jovem; 2 - Como a educação musical influencia no processo de assimilação das composições analisadas; 3 – O que influencia a compreensão da música que se ouve; 4 – A importância da música para a sociedade, sob a perspectiva do jovem; 5- Se o Analfabetismo Musical tem efeitos na compreensão que o jovem tem da música que ouve; 6 – A diferença entre ouvir e escutar. A primeira parte da pesquisa contextualiza a importância da música; e a segunda parte, trata da pesquisa realizada com

28

alunos do 9º ano do Ensino Fundamental e com alunos do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio, do Colégio Estadual Pedro Xavier Teixeira, em Goiânia. Trata-se de um estudo de Metodologia Quantitativa que, pela utilização de questionários, a partir da audição de (03) três músicas, resultou em dados que foram analisados quanto à frequência das respostas obtidas. O público alvo, jovens de 14 a 19 anos, respondendo aos questionários, possibilitaram a investigação. Inicialmente, estes jovens responderam a questionários específicos que continham perguntas sobre a música e o cotidiano do jovem participante, sobre os estilos musicais, o estilo de vida e a opinião do entrevistado sobre o tema proposto. Do resultado destas respostas pôde-se elaborar o Perfil dos Sujeitos Participantes. Depois, a continuação da coleta de dados foi feita utilizando outras questões (perguntas), a partir da vivência e/ou participação de uma Sessão de Audição de (03) três peças do estilo musical “Rock Brasileiro”, de (03) três épocas diferentes (décadas de 1980, 1990 e 2000). Os dados resultantes foram tabulados e analisados, e esta fase levou `a conclusão final. Este estudo apresenta, além desta Introdução, tópicos tais como: A importância da música para a sociedade; Escutar e ouvir; Importância da Educação Musical; Metodologia; Apresentação dos dados e suas respectivas análises; Conclusões Finais; e Referências. A partir da análise dos dados conclui-se que o analfabetismo musical é a falta de percepção musical, pois sem atenção e sem a percepção do que está acontecendo musicalmente, o sujeito não consegue extrair da música o máximo que ela pode lhe proporcionar. Para trabalhar a conscientização através da música precisa-se primeiramente conseguir fazer os ouvintes perceberem o que estão escutando. Os resultados indicam que o ouvinte analfabeto musical ouve uma música e não a escuta, ele não consegue distinguir instrumentos, entender o tema da letra; não consegue dizer se a música é bem elaborada ou se tem uma estrutura ou forma simples ou complexa. Essa pesquisa tenta afirmar a importância da educação musical; e indica a percepção musical como o primeiro passo que possibilita o processo de influência da música nas pessoas. A hipótese desta pesquisa foi a de que o ser humano só percebe da música o que dela entende; e que somente ouvir música não quer dizer que se escutou a peça com os seus significados, prestando atenção `a sua composição, `a forma e com atenção. Sabe-se que o não conhecimento musical leva `a uma interpretação equivocada do que a música comunica e que este analfabetismo musical interfere na apreciação. A partir destes aspectos é que se faz importante ensinar música nas escolas: para acabar com o analfabetismo musical e promover a melhor apreciação musical e a cognição musical. Essa pesquisa enfocou como tema principal o papel da música na vida do ouvinte e o que este jovem entende/escuta a partir do que ouve. Torna-se também importante investigar o processo de mudança de comportamento que a música pode causar no jovem, se entendendo o que escuta ou não. Pergunta-se se o entendimento da música ouvida, com os seus detalhes

29

e, além dela, a letra podem influenciar o jovem; e de que maneira ou medida. Como informar esse jovem sobre o que ouve para ajudá-lo a se transformar num cidadão mais crítico e uma pessoa melhor para sociedade? O ensino da música pode ajudar o jovem a entender o que ouve e a escolher melhor suas preferências musicais? Estas são as perguntas principais que foram respondidas com a análise dos dados. Para Amaral: “A música está presente na vida das pessoas, sendo utilizada de diversas formas e com diferentes objetivos” (2013, p.163). O autor comenta que o rock brasileiro surgiu através da grande influência da cultura norte-americana sobre o Brasil; e que o rock apareceu como uma febre e dura até hoje com muita força e grande influência sobre quem o ouve. A música tem um grande poder de influenciar as pessoas, assim, passa a ser um recurso importante para se ter em mãos no trabalho de propagação e conscientização de temas que são diários na vida do jovem (drogas, sexo, violência, alcoolismo, entre outros). Os jovens têm a tendência de se agruparem e se manifestarem em sociedade, ouvindo certos estilos musicais, usando tipos de roupas diferentes, andando com pessoas que ouvem as mesmas músicas e que têm costumes diferentes das que ouvem outros estilos. Observa-se os exemplos dos góticos, que não se vestem como os punks, que por sua vez, também são diferentes dos emos (estes, aqui citados como praticantes de gênero musical ligado ao rock, caracterizados pela musicalidade com características melódicas e expressivas, utilizando `as vezes letras confessionais). A partir destas observações, parece ficar evidente que cada música ou estilo musical têm influência sobre os seus ouvintes. O objetivo dessa pesquisa foi mostrar que a música é ouvida em vez de escutada e tem o poder de comunicar e transformar as pessoas, seja fazendo o jovem refletir antes de agir, ou até mesmo mudando sua postura diante situações diversas. Tanto a pessoa que toca quanto a que é somente ouvinte de um estilo, tem o seu comportamento diferente dos outros que são de gostos diferentes. Cada ouvinte interpreta e entende a música como pode. E assim, foi investigado se as bandas que trabalham com essa proposta de mudança de comportamento, de conscientização do ouvinte podem influenciar no comportamento dos jovens. A percepção musical foi o primeiro caminho para se chegar a essa proposta. Se o individuo não consegue perceber os instrumentos que estão sendo tocados, o que a letra da música diz; se não sabe sobre a organização da música, tanto a de uma música simples quanto uma complexa, como é que a música pode influenciar? Pensa-se que se o individuo não entende o que ouve, resulta que o processo de conscientização não se realiza, pois que este é um processo cognitivo que pede a atenção do ouvinte. MOTIVAÇÃO O interesse por esse tema foi despertado quando da participação do

30

pesquisador principal em eventos jovens, onde se percebeu uma influência muito grande de bandas de rock do cenário nacional. Observou-se que muitos jovens amigos, deste ciclo de convivência, entravam em contato com letras que tratavam de temas corriqueiros (do dia a dia do jovem brasileiro) de forma simples o objetiva. Notou-se que vários amigos que ouviam essas bandas podiam ter atitudes diferentes de outros jovens que não tinham contato com essas propostas. Essas observações levaram à hipótese de que a arte é capaz de transformar o comportamento das pessoas; e, através dessa pesquisa, investigouse a proposta de indicar se pode ajudar a formar o caráter dos jovens, de forma mais fácil e divertida; e se a arte das bandas de rock, por exemplo, pode moldar o jovem e transformá-lo em uma pessoa melhor. A percepção musical, como forma de iniciação ao entendimento do que a música ouvida significa, foi o primeiro passo que engendrou uma análise mais aprofundada sobre o tema. JUSTIFICATIVA, OBJETIVO GERAL E OBJETIVOS ESPECÍFICOS Esta pesquisa se justificou, inicialmente, como forma de detectar os aspectos importantes da influência da música e da letra no ouvinte; proposta através de uma sessão de coleta de dados que utilizaria a escuta musical e as subsequentes respostas a questionário, através da audição de 3 músicas. Os objetivos específicos foram: 1 - Investigar como a percepção musical como forma de iniciação ao entendimento da música ouvida pode ajudar no trabalho de conscientização do jovem; 2 - Investigar como a educação musical influencia no processo de assimilação das composições analisadas; 3 – Investigar o que influencia a compreensão da música que se ouve; 4 – Investigar a importância da música para a sociedade, sob a perspectiva do jovem; 5- Investigar se o Analfabetismo Musical tem efeitos na compreensão que o jovem tem da música que ouve; 6 – Investigar a diferença entre ouvir e escutar. METODOLOGIA Trata-se de um estudo de Metodologia Quantitativa, que pela utilização de questionários, a partir da audição de (03) três músicas, resultou em dados que foram analisados quanto `a freqüência das respostas obtidas. O público alvo foram jovens de 14 a 19 anos, que respondendo aos questionários possibilitaram a investigação. Inicialmente, estes jovens responderam a questionários específicos que continham perguntas sobre a música e o cotidiano do jovem participante, sobre os estilos musicais, o estilo de vida e a opinião do entrevistado sobre o tema proposto. Do resultado destas respostas pôde-se elaborar o Perfil dos Sujeitos Participantes. Depois, a continuação da coleta de dados foi feita utilizando outras questões (perguntas), a partir da vivência e/ou participação de uma Sessão de Audição de (03) três peças do estilo musical “Rock Brasileiro”, de (03) três épocas

31

diferentes (décadas de 1980, 1990 e 2000). Os dados resultantes foram tabulados e analisados, e esta fase levou `a conclusão final. A IMPORTÂNCIA DA MUSICA NA VIDA DO SER A música é uma importante recurso no processo de socialização do individuo. Ela gera sensações diversas e está presente no dia a dia das pessoas, tendo assim um papel fundamental para a vida do ser humano. Segundo Da Silva, 2003: A música é um fator muito importante na vida do individuo. Todos ouvem, apreciam, compartilham, mas poucos sabem de sua importância e em que ela pode contribuir. Ela nos traz alegria e tristeza, sensação de vitória, recordações e saudades, é lazer. A música é algo que nos toca. É importante na vida dos seres humanos. Sendo assim, a música possui um papel fundamental no processo de socialização (Da SILVA, 2003, p.8).

A música está presente em todos os momentos da vida do ser humano. É tocada em vários lugares e em várias situações, como em uma trilha sonora de um filme e no carro de som, através de divulgação de anúncios e propagandas. Cita-se ainda Da Silva: Para tanto, não é mero acaso que a música é empregada nos diversos campos da atuação humana. Ela está presente em filmes, anúncios públicos, telejornais, desenhos animados, programas eletrônicos e novelas, dentre outros. E nos mais variados eventos, do baile de carnaval ao velório. A música está nas ruas, praças, lojas, repartições públicas e privadas, supermercados, academias, escolas, aeroportos, bares, lanchonetes, restaurantes, consultórios médicos, igrejas, (ibid., 2003, p.8).

A música relaxa o individuo ao mesmo tempo em que pode deixá-lo em estado de alerta, pode transmitir uma mensagem ou ser usada só para dançar. Por estar presente em boa parte da vida do ser humano; e ela tem o poder de ajudar na conscientização dos jovens adolescentes. Mesmo com essa força a música ainda ocupa o último lugar nos pensamentos dos tomadores de decisão em relação ao que ensinar, nas tomadas de decisões sobre a educação. A educação musical deve estar influenciando sim, na formação do individuo, uma vez que ela trata de temas relacionados ao ser humano e está presente na vida cotidiana de todos em sociedade. Por ser escrita, executada e ouvida, a música oferece uma opção a mais para a realização da conscientização. O ser humano ouve uma música e tem sensações diversas através da peça. A música excita ao mesmo tempo em que pode acalmar, eleva os pensamentos ao mesmo tempo em que polui a mente. Com

32

isso, ela pode colocar o individuo em um momento de reflexão sobre suas atitudes passadas, suas decisões atuais e as novas ideias. Promove o poder ao homem de se elevar e, ao mesmo tempo, o de cair em depressão. Mediante as várias experiências que pode nos ocorrer a partir da audição musical, cita-se a que leva `a reflexão sobre um tema específico, ou até mesmo a que nos reporta `a lembranças e `a várias outras situações. O outro aspecto da questão é a ausência da influência da música na vida do ser. Mais preocupante é a presença da música em sociedade, mas que não é percebida como tal. Isso resulta na situação em que a música, mesmo soando em todos os espaços, não é percebida. Colabora para isso um fenômeno chamado Analfabetismo musical. Em se tratando de um fator negativo, este analfabetismo atrapalha a percepção do conteúdo musical e faz com que o aluno não tenha consciência dos estímulos musicais que acontecem ao seu redor. Não escuta ao que se passa à sua volta. Esta questão do analfabetismo musical talvez seja o aspecto mais importante para ser discutido na atualidade. A filosofia da educação musical há muito trata de temas como: 1 – Por que uma filosofia da educação musical?; 2 – Visões alternativas sobre arte para a fundamentação desta filosofia; 3 – A arte e os sentimentos; 4 – A criação artística; 5 – O significado da arte; 6 – Experimentando arte; 7 – Experimentando música; 8 - A filosofia em ação; e 9 – A filosofia para a transformação da educação musical. Estes temas também são abordados pela Psicologia da Música, que explica como o sujeito aprende música, e por que não aprende, entre outros aspectos. No entanto, nosso foco é discutir por que no ambiente educacional a educação musical não está cumprindo o seu papel de erradicar o analfabetismo musical, dando ao cidadão a oportunidade de entender a música que ouve, de escutar a música que ouve. Reimer (1970) indica que enfrentamos um paradoxo e devemos nos preparar para melhorar nossa prática se quisermos sobreviver como profissionais. Segundo ele: Nós temos nos tornado mais seguros nas escolas, mais conscientes de nossas habilidades, mais sofisticados em pesquisa, mais influenciados pela educação profissional, mais preparados como especialistas em música, mais capazes de justificar nossa importância com argumentos filosóficos. [...] No entanto, temos profunda consciência de nossas deficiências em várias áreas, e de nosso status secundário na educação (REIMER, 1970, p.241).

Outro paradoxo, segundo o autor, é que temos que melhorar nossas ações como professores de uma disciplina específica se quisermos sobreviver no ambiente educacional. Esta afirmação nos remete às nossas responsabilidades na confecção e proposição de currículos adequados à realidade brasileira. Como fazer

33

com que nossos alunos apreciem a música que conhecem e aprendam a conhecer a música que ignoram? Como levar o sujeito a escuta a música que ouve? ESCUTAR E OUVIR A diferença entre escutar e ouvir faz parte das melhores discussões e debates entre os professores de percepção, harmonia, improvisação e performance. É preocupação do educador musical por ocasião do planejamento das aulas de musicalização e educação musical. Ensina-se `a criança, ao jovem e ao adulto a prática da escuta dos ritmos, dos sons, dos instrumentos, das estruturas musicais, das melodias, das harmonizações e dos repertórios musicais. Tudo depende da habilidade de percepção e este é o objetivo da educação musical. Para isso existem as aulas específicas de ensino de música. O ouvido está ligado diretamente `a parte do cérebro que regula a vida e além disso é formado muito antes dos olhos. Apesar desta hierarquia formativa que demonstra que o feto ouve antes de escutar, na vida adulta, deixa-se de lado a audição para dar-se mais importância `a visão. Com isso tem-se um empobrecimento da audição, que é infelizmente um estímulo ao ouvir sem escutar. A seguir, algumas citações dos autores Rosa (2000) e Ferreira (2000) que distinguiram ouvir de escutar: Para Rosa (2000), Escutar: (v.t.d.) é: 1. Tornar-se atento para ouvir; 2. Perceber; 3. Dar ouvidos a; 4. (V.i). Prestar atenção para ouvir alguma coisa; enquanto Ouvir: (v.t.d) é: 1. Perceber os sons pelo sentido da audição; escutar; 2. Tomar o depoimento de; 3. (V.t.i) Perceber as coisas pelo sentido da audição; 4. Levar descompostura. Segundo Ferreira (2000), Escutar: (v.t,d) é: 1.Tornar-se ou estar atento para ouvir; 2. Ouvir; 3. Atender os conselhos de; 4. Prestar atenção para ouvir alguma coisa, enquanto Ouvir: (v.t.d) é: 1. Perceber, entender (os sons) pelo sentido da audição; escutar; 2. Ouvir os sons de; 3. Dar atenção a; atender, escutar; 4. Inquirir (o réu, as testemunhas, etc.); 5. Escutar os conselhos ou razões de; 6. Perceber pelo sentido da audição. Pode ser observado a partir das definições listadas acima que ouvir sem escutar não é a forma ideal de se perceber as coisas ao redor. Ouvir é apenas o ato de sentir as ondas sonoras e escutar é ouvir prestando atenção; é estar atento aos sons e não apenas ouví-los por eles terem sido emitidos. A audição depende muito do contexto em que a música está sendo executada/tocada. Dentro de um elevador, na exposição a uma propaganda ou até mesmo em uma sala de espera, não há contexto adequado para a recepção/percepção do que a música pode oferecer. De maneira distraída, o ouvinte não escuta o que ouve. Seus pensamentos têm seu foco de atenção em outros objetivos ou estímulos que não o musical, que provavelmente não têm ligação com a música que está sendo tocada.

34

Há também, na área de propagandas, exemplo de empresas que tentam vincular a música a seus produtos. O público começa a não ter a necessidade de ouvir a música e se concentrar; ele ao ouvir, começa a fazer ligações do que ouve com os produtos e marcas. Muito diferente é o esforço que os ouvintes têm que fazer ao ir a um concerto. Se não prestarem atenção na música e sem a utilização da percepção não haverá receptividade ao que está sendo tocado. Se ouvirem de uma canção somente a letra da melodia, resulta que não escutaram a música em sua totalidade. RELEVÂNCIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL No século XXI, no Brasil, o ensino da música já é obrigatório nas escolas. Este fato coloca a música em papel de destaque no futuro da educação brasileira. Sabe-se que a música exerce muitas influências na vida do ser e uma delas é o desenvolvimento da inteligência (LEAO, 2001). Para a autora, a música influencia a aprendizagem: Falava-se [...] dos estudos e das pesquisas que tinham a situação musical como elemento estratégico para investigar a cognição. Tais estudos, [...] mostravam a importância que era dada `a influência da música nos estudos da escrita, da leitura, do desenvolvimento infantil, e no ensino-aprendizagem de várias disciplinas do currículo (LEAO, 2001, p.35).

Ouvir música não é uma atividade passiva. Depende de conhecimento. A educação musical deve começar desde muito cedo, para que a compreensão dos elementos musicais possa se desenvolver organicamente, assim como acontece com a compreensão da linguagem falada. Aprender música depende do desenvolvimento cognitivo musical de cada um. Leva `a aprendizagem musical, que se faz de várias formas. Torna-se antes uma necessidade que um luxo. Quando se trata do domínio de um instrumento, este não é condição essencial para se ter a capacidade de compreender ou concentrar-se em uma peça musical. Dominar um instrumento trata-se de outra habilidade que envolve o aprendizado das técnicas do mesmo. Mas o aprendizado musical facilita o aprendizado do instrumento. A capacitação em percepção, em ritmo, em audição atenta, em instrumento e em apreciação; não se esquecendo da improvisação, criação e harmonização que levam à escuta que se espera de um ser musicalizado. Para se ter uma educação musical adequada, teria que se começar a partir da educação infantil, para se conseguir formar cidadãos conscientes do próprio gosto musical e aptos a compreender o que se ouve. A linguagem falada é desenvolvida pelo individuo através dos anos e de seus estudos e treinos sobre ela. A pessoa aprende a falar e vai aprendendo palavras novas, estudando e

35

aprendendo mais coisas sobre o conteúdo. No caso de brasileiros, a língua portuguesa. A aprendizagem da língua materna torna o brasileiro apto a entender o que os outros falam; e a falar e expor opiniões e ideias para outras pessoas. A música também comunica, mas com uma linguagem própria. Diferentemente da língua materna, ela não pode ser traduzida para outras linguagens, outras línguas. Se o que a música contém for identificado por aquele que a ouve, ela é entendida. Será entendida se forem entendidos os elementos que a constituem: a sua estrutura, a sua modalidade e as suas regras. Será entendida se forem identificados os instrumentos que a executaram, a época em que foi composta, seu ritmo e sua agógica, ou mais, sua dinâmica. Em outras palavras, é preciso cognição de seus conteúdos para ser entendida. Ouvir simplesmente não leva a nada, não leva `a escuta. No entanto, ela pode causar sensações e reações no ouvinte. Pode causar sentimentos de apreciação ou rejeição e estes consistem em outro tema a ser discutido. Não se pode negar que tem o seu papel como meio de comunicação e interação entre as pessoas. No caso desta pesquisa, sob a perspectiva da importância que é dado ao desenvolvimento da cognição musical, sabe-se que é através da educação musical que se tem a oportunidade de aperfeiçoar o entendimento sobre o assunto. Há muito a ser aprendido através da música e o sistema educacional não pode mais deixar essa área de conhecimento de lado. Entendeu-se, no momento em que esta pesquisa estava sendo feita, que a atual forma de educação musical nas escolas de ensino regular é deficiente e deixa muito a desejar. Muitas vezes ouve-se relatos de professores que não aguentam mais serem “usados” somente para treinarem suas turmas para cantarem no dia das mães ou cortarem bandeirolas para as festas juninas. A educação musical se resume em ensaios para apresentações em datas comemorativas e o ensino dos conteúdos musicais não estão sendo priorizados. A habilidade de ouvir diferentes vozes ao mesmo tempo, compreendendo a fala de cada uma delas, separadamente; a capacidade de lembrar-se de um tema que fez sua primeira aparição antes de se submeter a um longo processo de transformação e agora reaparece sob uma luz diferente; e, por fim, a competência auditiva necessária para reconhecer as variações geométricas do tema de uma fuga e as diferentes tonalidades são todas as qualidades que reforçam o conhecimento. Essas habilidades, entre outras tantas que se adquirem quando se estuda música, podem vir a transformar o individuo em uma pessoa capaz de escutar vários pontos de vista; se tornar mais flexível para entender o outro, entender seu lugar na sociedade; ver mais as semelhanças nas pessoas em vez das diferenças. Somente a pesquisa vai destacar todas as possibilidades que tem a música na transformação do ser, levando `a universalização da educação musical. Esta é a proposta que está sendo feita neste capítulo: mostrar a importância da educação musical.

36

METODOLOGIA A pesquisa foi realizada no Colégio Estadual Pedro Xavier Teixeira com alunos de 9º ano do ensino fundamental, 1º, 2º e 3º Anos do ensino médio. Foram escolhidos 12 alunos de cada série, em uma faixa etária de 14 a 19 anos, submetidos à audição de três peças na seguinte ordem: Papo Reto – Charlie Brown jr – 2002; Pelados em Santos – Mamonas Assassinas – 1995; Que País é Esse – Legião Urbana – 1987. Foi entregue a cada sujeito, um questionário com perguntas sobre as músicas, respondido individualmente e sem consulta. O questionário usado no Projeto Atual foi baseado em um Projeto Piloto realizado com alunos da EMAC – UFG. O projeto foi realizado da seguinte forma: Audição livre das peças com liberdade para exposições de impressões sobre as mesmas. Através do relato das impressões dos alunos da EMAC-UFG foram retiradas as ideias para a formação das perguntas do questionário. Para o projeto piloto foram escolhidos 4 alunos do curso de Música – Licenciatura e através de discurso e anotações obtivemos suas impressões sobre as músicas. PROJETO ATUAL O questionário aplicado aos alunos de 9º ano do ensino fundamental ao 3ºano do ensino médio, utilizado nesta pesquisa, tendo como base o projeto piloto especificado acima, contem as seguintes perguntas: QUESTIONÁRIO:

Sobre você: Idade: Escolaridade: Tem alguém da família que toca algum instrumento: Teve aula de música: Estilos musicais que você gosta: Instrumento musical que você mais gosta: Sobre a Música I, II e III, foram perguntadas as questões: Qual o tema dessa música?; Quais instrumentos você percebe?; Você sabe de qual década é essa música?; O ritmo e a letra estão em conformidade, eles dizem a mesma coisa?; Qual a importância dessa música para a sociedade?; Sobre a estrutura da música, na sua opinião é uma estrutura simples ou bem elaborada musicalmente? PREPARAÇÃO DOS DADOS Para a organização dos dados coletados pelos instrumentos descritos acima, visando a análise, preparou-se: uma Tabela de símbolos referenciais para

37

tabular os dados, uma Tabela de respostas obtidas, uma Legenda de quantidade de respostas; e as critérios a serem usados como as respostas esperadas. APRESENTAÇÃO DE DADOS E SUAS RESPECTIVAS ANÁLISES Este capítulo trata da análise dos dados coletados que tiveram tratamento estatístico, depois de tabulados pelo pesquisador. Primeiramente, apresenta os resultados e/ou análises das tabelas, seguidas pelas apresentações das mesmas; ou seja, antes de cada tabela, um comentário do pesquisador. Após este procedimento, segue-se uma avaliação do pesquisador sobre o que foi detectado da análise dos dados das tabelas. ANÁLISE GLOBAL DAS RESPOSTAS APRESENTADAS Analisados os dados pôde-se notar, primeiramente, a descrição dos sujeitos participantes, e/ou o PERFIL DOS SUJEITOS. Os participantes representam uma amostra da escola observada, ou seja, participam deste estudo de caso, mas não são representantes de toda a população de todos os estudantes de Goiânia. Os resultados consistem somente de um indicativo do que pode estar acontecendo no comportamento da população como um todo. São distribuídos em quatro séries, que são: 9º Ano do ensino fundamental; 1º, 2º e 3º Ano do ensino médio; com doze sujeitos em cada série, totalizando 48 sujeitos. Os 48 sujeitos deram respostas consideradas válidas e estas foram comparadas com as respostas esperadas pelos pesquisadores, segundo o critério desta pesquisa. Para definir o perfil dos sujeitos foram observados a idade, a série, preferência pelos estilos musicais, os instrumentos que mais gostam; e além destas, deram informações sobre a existência de parentes músicos na família e se tiveram aula de música. Através da análise dos dados e observações realizadas durante o processo, conclui-se que o público alvo da pesquisa se interessou pelo estilo musical proposto (rock), que foi citado por 12, designando 9,16% dos sujeitos; constituindo o terceiro estilo musical que os alunos mais gostaram. Com isso, observou-se uma simpatia dos sujeitos pelos temas e envolvimento dos alunos na pesquisa. A maioria dos alunos não tem influência musical em casa exercida através de parentes que toquem algum tipo de instrumento e com isso, pensa-se que o interesse dos alunos sobre os conteúdos musicais podem vir a ser menores do que os dos alunos que têm músicos na família. Pensa-se que as aulas de música ajudam no desenvolvimento cognitivo do aluno e 52,1% (25) dizem já terem participado de aulas de música. Mesmo com mais da metade dos alunos já tendo estudado música obteve-se muitas respostas erradas no questionário, começando com os instrumentos, em que nenhum aluno percebeu a voz como instrumento musical. Como não é algo que se pode manusear como objeto, a voz por ser emitida pelo músico, inerente ao corpo, gera

38

confusão no ouvinte pois os indivíduos não conseguem classificá-la como um instrumento, pois que é orgânica. Se não for ensinado que a voz faz parte do conjunto como parte dele, o sujeito não saberá assim classificá-la. Outro instrumento que teve pouco destaque foi o trompete. Por ter seu timbre parecido com o do saxofone, muitos sujeitos confundiram-no, na música II, com outros instrumentos. Onze sujeitos indicaram o sax e somente nove, indicaram o trompete, que era o instrumento certo. O questionário tem um nível bem elevado, pois foi proposto uma reflexão sobre os pontos positivos e negativos (da falta) da educação musical de hoje nas escolas públicas e específicas de música. A música só pode influenciar quem a entende se o individuo não consegue perceber o que está acontecendo com certeza não aproveitará o conteúdo que lhe é passado. Cada música marca uma geração e sua forma de comunicação. Algumas músicas, com seus estilos e conteúdos diferenciados, atravessam gerações quanto ao seu aceite e execução. Os anos 80, com o rock intelectualizado; os anos 90, com suas músicas engraçadas; e os anos 2000, com suas músicas românticas; todos com traços da juventude da época. Se for observado o contexto da composição, sabe-se a partir do que foi feita e para que foi feita. É importante saber quais as influências que os compositores tiveram `a época da composição, o que a sociedade vivia e a importância da música para a sociedade da época. A exemplo da música usada neste estudo, a letra que leva a conceitos sobre a convivência e o amor, não deixou de induzir `a reflexão. Pelas respostas observou-se que se a pessoa amada é deixada de lado, faz-se necessário algum estímulo para alertar, para chamar a atenção para o fato; pois quando não se cuida de quem se ama, pode resultar que outros ocupem o lugar deixado vago na relação. Este tema é sempre atual na história da humanidade. Mesmo a música cômica dos Mamonas Assassinas tem uma importância para a sociedade pois música também é diversão. Música é alegria. Por que não compor músicas que façam rir também? A música séria do Legião Urbana alerta para perguntar “que país é esse?” que estamos construindo. Quanto à idade, numa faixa etária entre e 14 e 19 anos, 25% tem 15 anos, 20% tem 16 anos, bem com outros 20% tem 17 anos, 18% tem 14 anos, 12% tem 18 anos e destes 2% com 19 anos. Quanto `a série, são 12 alunos por série. Quanto à preferência pelos estilos musicais, em ordem decrescente observou-se que 15 sujeitos têm preferência por 3 estilos; 13 sujeitos, por 2; 10 sujeitos, por 1; 5 sujeitos, por 4; 3 sujeitos, por 5; e 2 sujeitos, por 6. Observa-se que a maioria (cerca de 80%) tem poucos interesses por uma diversidade maior de estilos e que somente 4,2% indicam preferência por 6 estilos (indicação máxima de estilos). Quanto aos instrumentos que mais gostam evidenciou-se que 41,7% das respostas foram para o instrumento violão; seguido de 20,8%, para a guitarra; e, 18,8%, para a bateria. Ficaram com indicação de 2,1% cada, 6 instrumentos, que são: Beat, Teclado, Violino, Baixo e Viola. Quanto `as tabelas analisadas, a

39

primeira tabela apresentou a média da Idade dos participantes, com a idade mínima e máxima. Notou-se que a mínima foi 14 e a máxima 19. Quanto `a escolaridade, a segunda tabela indicou a mesma quantidade de alunos em cada turma, ou seja, tanto no primeiro, segundo e terceiro ano, e no nono ano; cada grupo representou 25% dos sujeitos participantes. Quanto `a experiência musical dos parentes, a maioria dos alunos (54,2%) não tem parentes que toquem algum instrumento musical, com isso obtivemos um fator que pode vir a dificultar o interesse do indivíduo pelo estudo da música. Quanto `a porcentagem de alunos que já estudaram música e a porcentagem dos que não estudaram obteve-se: 52,1% estudou; e 47,9% não estudou. Quanto aos estilos musicais que agradam aos sujeitos citados, obteve-se 31 estilos musicais diferentes, que os agradaram; e que, 12 estilos não são agradáveis, nem para 1% dos entrevistados. O estilo mais compartilhado pela maioria dos sujeitos é o sertanejo, citado por 26; representando uma porcentagem de 19,85%; seguido pelos estilos Pop, com 13 citações, ou seja: 9,92%; e o Rock, com12 citações, ou seja: 9,16%. Quanto ao instrumento que o sujeito mais gosta, o maior número de citações é para o violão, com 36,06%; com 22 pessoas indicando-o como o seu instrumento preferido. O de menor número são 4 (quatro) : o Beat, o violoncelo e a viola, e o ukulelê; todos com 1,63% de indicação cada. Indicaram Nenhum, 1,63%. Na ordem de importância aparecem violão, seguido pela guitarra, bateria e piano. Passando para a etapa de descrição das Músicas I, II e III, quanto `a Música I, na descrição de seu tema, a maior média de citações indicou “Não entendeu”, consistindo de 20,8%. Alguns alunos interpretaram a música de maneira muito errada; 2 sujeitos, 4,2% falam que o tema da música é o rock. Esperou-se como resposta certa para a questão: a conquista; e obtive-se um percentual baixo de acertos; somente 12,5% dos sujeitos entenderam o tema da música. Quanto aos instrumentos que perceberam na Música I, a Guitarra e a Bateria estão presentes em quase todas as respostas dos alunos (bateria 47, 34,6% ; e Guitarra 46, 33,8%). A voz não foi citada. Quanto `a década da música em questão, 50% dos sujeitos indicaram que a música ouvida é da década de 2000. Quanto `a conformidade entre ritmo e letra, 39 sujeitos, equivalentes a 81,2% do total, entendem que, sim, a música e os ritmos dizem a mesma coisa.; enquanto que 1 sujeito, equivalente a 2,1% não soube responder. Sobre a importância da música para a sociedade, observa-se que 18 citações, ou sejam, 37,5%, são de pessoas que acham que esta música não tem importância para a sociedade; e 5 citações, são para respostas inadequadas, equivalentes a 10,4%; ou seja, para a maioria desses indivíduos essa música não tem importância para a sociedade. Diferente do resultado esperado, 93,3% não indicou a resposta esperada, que seria a de que música tem sim, uma importância significativa para a sociedade. Apenas 6,2% das respostas foram as esperadas, dando a entender que a contextualização social das músicas é um tema que precisa ser trabalhado na educação musical das escolas. Quanto `a estrutura da música, 77,1% dos

40

indivíduos percebem esta música como sendo bem elaborada. A resposta certa para esta pergunta é que a música em questão é uma música simples, pouco elaborada. Obteve-se que apenas 14, 6% dos sujeitos responderam de acordo com o esperado. Quanto `a Música II, na descrição de seu tema, a resposta esperada era “Elogiar uma mulher “, e para esta, 7,84% dos sujeitos acertaram. Como as respostas em relação ao tema poderiam ser outras, tais como: Amor, indicado por 23,52%; Conquista, indicada por 3,92%; e o Romance, por 3,92%; totalizando indicações de 31,36% ; pensa-se que a análise desta questão deve se flexibilizar, pois que estes 31,36% significa um total de temas que se relacionam. Esta consideração leva ao conhecimento de que não se pode afirmar que estes 31,36% são de respostas erradas; mas sim incompletas, e que se juntada `a resposta esperada, juntas podem explicar o tema. Aqui pode-se dizer que a pergunta elaborada pelo pesquisador induzia a mais de uma resposta certa. Quanto aos instrumentos percebidos, apesar de se obter 44 sujeitos citando a Bateria; 41, citando a Guitarra; 20, citando o Teclado; 13, o Baixo; e 9, o trompete; não se observou nenhum sujeito que escutou a voz como um instrumento. Conclui-se que, pela falta da voz, mais uma vez obteve-se 100% de respostas incompletas, como aconteceu no resultado da análise da Música I. Quanto `as décadas citadas pelos sujeitos, a maioria acertou a sua década (68,75%). Quanto `a letra e o ritmo, respondem que estão sim, em conformidade (60,4%). Para 47,9% dos sujeitos, esta música não tem importância para a sociedade. No entanto, 18,8% indicaramna como importante. Quanto à questão da estrutura da música, obteve-se um grupo bem dividido, pois 45,8% da turma acha que a música é simples; e 41,7%, entende que é uma composição bem elaborada. No entanto, a música tem uma estrutura simples com a harmonia simples (5 acordes). Quanto à Música III, na descrição de seu tema, a resposta esperada era “País”. Das respostas, 44,39% indicaram “País”. Na ordem decrescente, foram indicados 16,98% indicaram “Política”; e 7,54%, indicaram, respectivamente, “Indignação” e “Precariedade do pais”. Quanto aos instrumentos percebidos pelos sujeitos, observa-se que 89,2% acertaram 3 instrumentos gravados. O prato (1,4%) e o chocalho (0,7%) foram indicados fora da indicação da bateria, se confundindo com ela; e 8,7% foram indicações de instrumentos não existentes na gravação. Conclui-se que, pela falta da voz, mais uma vez obteve-se 100% de respostas incompletas, como aconteceu nos resultados da análise da Música I e II, mostradas anteriormente. A década mais indicada foi a de 90, com 39,6% de respostas dadas. A segunda foi a de 80, com 35,4%; e era a resposta esperada. Observa-se que 8,4% das respostas indicaram que os sujeitos não entenderam a pergunta ou não identificaram a década. Anota-se que quanto ao ritmo e letra, e sua conformidade, 83,3% responderam sim `a pergunta. E a resposta esperado era SIM. Em se tratando da importância da música na sociedade, 47,9% indicaram “Importância do Pais”. As respostas “Defeitos do Pais (8,3%), a

41

Indignação (8,3%), a Precariedade do Pais (8,3%), a Política (10,4%), a Sociedade (2,1%), o Protesto (4,2%), e a Crítica, totalizam 43,7% . Estes 43,7% abrangem a temática da música, que se somadas `a resposta esperada, totalizariam 91,6% das respostas, mostrando que quase 100% dos sujeitos entenderam a importância da letra. Sobre a estrutura da música ser elaborada, observa-se que 62,5% dos entrevistados indicam que a música é bem elaborada, contra 35,4% que perceberam que a musica era simples. A resposta é esta. CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho não ofereceu dificuldades quanto `a coleta de dados, pois houve boa receptividade dos alunos participantes e boa acolhida da direção e do corpo docente da escola. O questionário conteve perguntas consideradas difíceis para o nível dos alunos, mas o pesquisador teve intenção de fazê-los pensar, para que ficassem atentos `as músicas e aos seus aspectos constitutivos tais como: timbre dos instrumentos, instrumentos usados, ritmo, letra, importância das letras e da música e a estrutura musical de cada uma. Portanto, as perguntas feitas de maneira fácil para a leitura, tentaram captar conceitos musicais essenciais à escuta musical. Os dados analisados levaram ao entendimento de que se deve ensinar música nas escolas, juntamente com a vivência musical. Percebeu-se durante a fase de coleta de dados que os alunos entendem que a vivência musical é muito importante, e que não basta terem somente aulas teóricas de música. Pelos dados pode-se afirmar que faltam conhecimentos específicos de conteúdos de conceitos musicais aos alunos, como por exemplo o fato de ter-se notado que o aluno quando ouvindo uma música com letra, não sabe identificar a voz como instrumento. Na verdade, eles nunca aprenderam que a voz é um instrumento humano. Outro exemplo é que os alunos perceberam o timbre do trompete como sendo o de um saxofone. Confundem as estruturas simples e/ou complexas com a complexidade rítmica ou a percepção de vários instrumentos. Não sabem identificar a complexidade formal da estrutura musical e a confundem com complexidade da letra. Percebeu-se que não sabem indicar muitos estilos de preferência, o que levou ao fato de que cada um citou um estilo novo, o que surpreendeu, pois parece que na verdade desconhecem uma variedade. A maioria citou o estilo sertanejo, seguido pelo pop, e depois pelo rock. Os sujeitos tiveram dificuldade em entender os conteúdos das letras, os temas das músicas e a importância das músicas para a sociedade. Estas dificuldades podem advir dos problemas de ortografia, de interpretação de texto e construção textual no uso da língua portuguesa. Somado a isso, detectou-se que a falta de conhecimento dos elementos musicais (ritmo e harmonia), do timbre

42

(identificação de voz como instrumento e distinção entre instrumentos musicais), das estruturas e da conformidade entre ritmo e letra, levaram `as respostas erradas. Portando pode-se observar que existe uma diferença entre ouvir e escutar. O que os sujeitos estão ouvindo não reflete o que as estruturas e as letras das músicas significam e comunicam. Não percebem o que ouvem, pois não escutam a música como ela é. Este fenômeno pode ser definido como Analfabetismo Musical. Este analfabetismo musical dificulta a percepção e determina a influência da música nas pessoas. Se o sujeito não entende a música que ouve, se sua percepção se resume aos conteúdos das letras, não se sabe o que poderá pensar das músicas de conjunto instrumental e/ou do repertório de câmara orquestra. Talvez estas últimas seriam indicadas como não importantes para a sociedade. O que não é sabido, é ignorado. Desta pesquisa fica, como contribuição, os questionamentos sobre percepção, conhecimento musical e as relações do ser humano com a música. A hipótese do estudo obteve indicativos a partir da análise dos dados, e se pode dizer que foi comprovada: o ser humano só percebe da música o que dela entende; e que somente ouvir música não quer dizer que se escutou a peça com os seus significados, prestando atenção `a sua composição e forma. A análise dos dados indicam que o não conhecimento musical leva `a uma interpretação equivocada do que a música comunica e que este analfabetismo musical interfere na apreciação. Conclui-se que é necessário ensinar música nas escolas, o que levaria ao ‘começo do fim do analfabetismo musical’ e promoveria ao desenvolvimento cognitivo musical, `a melhor apreciação musical e, consequentemente, `a cognição musical. As perguntas feitas no início deste estudo forma respondidas; e são: O entendimento da música ouvida, com os seus detalhes e, além dela, a letra podem influenciar o jovem. A maneira de informar esse jovem sobre o que ouve para ajudá-lo a se transformar num cidadão mais crítico e em uma pessoa melhor para sociedade é providenciar para ele uma boa formação musical, que deve começar nas escolas regulares, quanto mais cedo melhor. O ensino da música como tal, pode ajudar o jovem a entender o que ouve e a escolher melhor suas preferências musicais. Estas são as perguntas principais que foram respondidas com a análise dos dados. O estudo atendeu aos seus objetivos iniciais.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS Da SILVA, D. G. A importância da música no processo de aprendizagem da criança na educação infantil: Uma análise da literatura. Londrina, 2003. UEL

43

FERREIRA, A. B. de H. Mini Aurélio: Século XXI Escolar. Editora Nova Fronteira. São Paulo: 2000. LEAO, E. Por que estudar música? Revista da ADUFG. N. 06, Jan/Fev/Mar/Abr . Goiânia: 2001. REIMER, B. A philosophy of music education. Second edition. Prentice Hall, Englewood Cliffs, New Jersey: 1970. ROSA, U.; OLINTO, A. Org. Minidicionário Antonio Olinto da Língua Portuguesa. Ed. Moderna. São Paulo: 2000. SA, F. A. da S. A influência das letras de músicas no ouvinte. In: LEAO, E. Pesquisa em música: apresentação de metodologias, exemplos e resultados. Ed. CRV. Curitiba: 2013.

44

EDUCAÇÃO: O CAMPO MAIOR DE APLICAÇÃO DA PESQUISA EM MÚSICA Marcos Câmara de Castro [email protected] USP campus Ribeirão Preto, SP

Resumo: usamos a palavra música para designar uma multiplicidade de atividades e experiências. A mesma diversidade está presente também na transdisciplinaridade que seu estudo sugere. Este ensaio visa discutir as contribuições da antropologia para a renovação das pesquisas em musicologia e suas aplicações em práticas pedagógicas, numa perspectiva de formação real e plural dos alunos de música, questionando a ideia do “gênio” e privilegiando o músico integral. Palavras-chave: Educação musical. Etnomusicologia. Música e antropologia. Musicologia.

ANTROPOLOGIA, FILOSOFIA OCIDENTAL, FILOSOFIA ORIENTAL: QUAL A ABORDAGEM MAIS ADEQUADA AO FENÔMENO MUSICAL CONTEMPORÂNEO? Human kind cannot bear very much reality (T.S. Eliot)1

Ao comentar o livro de Nicholas Cook (2000), Taruskin diz que seu conteúdo pode agradar mais a Elton John do que a Harrison Birtwistle2 mas, de todo modo, este é o estado atual da musicologia: acreditar no progresso da Civilização Ocidental ou aceitar que pelo mundo há (e continuará a haver) diferentes civilizações, cada uma com seu próprio sistema de valores (COOK, 2000, p.41). Ou, como diz Philippe Descola, acreditar na “ambição de reduzir a pluralidade do que existe a uma unidade de substância, de finalidade ou de verdade como os filósofos do século XIX tentaram fazer” – traduzida pelo “historicismo e sua fé naïve na explicação pelas causas antecendentes” –; ou a certeza de que “só o conhecimento da estrutura de um fenômeno permite interrogar de maneira pertinente sobre suas origens” (DESCOLA, 2005, pp.9-15). A espécie humana não pode suportar muita realidade (T.S. Eliot). Compositor britânico nascido em 1934. Biografia disponível em http://www.boosey.com/pages/cr/composer/composer_main.asp?composerid=2729& (acesso em 24/03/2013). “Talvez o principal compositor britânico modernista resumiu o conceito beethoveniano de compositor numa dúzia de palavras quando diz “Não posso ser responsável pela audiência: não estou administrando um restaurante”. “Harrison Birtwistle (perhaps Britain’s 1 2

leading modernist composer) condensed the Beethovenian concept of the composer into a dozen words when he announced, ‘I can’t be responsible for the audience: I’m not running a restaurant” (in COOK, 2000: p.39). Obs.: todas as traduções, tanto do inglês quanto do francês são minhas.

45

A missão da antropologia seria pois de contribuir com as outras ciências [o que não descarta a filosofia!], e “a partir de seus métodos próprios, tornar inteligível a maneira pela qual os organismos de um gênero particular [o homem] se inserem no mundo, adquirem uma representação dele e contribuem para sua modificação, tecendo com ele e entre si laços constantes ou ocasionais de uma diversidade notável (...)” (DESCOLA, 2005, pp.9-15). Tudo isso pode ser intuído de maneira mais poética, se lembrarmos do que Borges diz em Otras Inquisiciones: El caracter del hombre y sus variaciones son el tema esencial de la novela de nuestro tiempo; la lírica es la complaciente magnificación de venturas o desventuras amorosas; las filosofías de Heidegger o Jaspers hacen de cada uno de nosotros el interesante interlocutor de un diálogo secreto y continuo con la divinidad; estas disciplinas, que formalmente pueden ser admirables, fomentan esa ilusión del yo que el Vedanta reprueba como error capital. Suelen jugar a la deseperación y la angustia, pero en el fondo halagan la vanidad; son, en tal sentido, inmorales (...)” (BORGES, 1985a, p.127).

Ainda que admirável como "forma superior de literatura de ficção", a filosofia ocidental fomenta a ilusão do "eu", a começar pela própria estrutura sujeito-objeto da linguagem na qual foi sedimentada. Aparentemente a filosofia ocidental aponta para a inevitabilidade da angústia da existência, mas segundo Borges, "incentiva a vaidade" e seria, por isso, imoral, do ponto de vista do pensamento oriental. No oriente pré-global, "a ênfase atribuída ao não-ser – evidenciada, aliás, pela própria ausência do verbo ‘ser’ no chinês clássico, por exemplo – leva à ideia de não-ação, na conduta pessoal, tanto quanto no governo3, ao apreço pela quietude e pela meditação, à importância do emprego dos espaços vazios para contrabalançar os objetos numa pintura chinesa etc" (YU-KUANG CHU, in CAMPOS, 1986, p.247). Uma leitura do budismo pode também levar à conclusão de que não há um sujeito, mas uma sucessão de estados mentais. "Eu penso" seria um erro porque pressupõe um sujeito constante como o conceito de "ego" em Freud – entidade autônoma e unitária (FREUD, 1997, p.11)4. A impermanência do ser tem também representação no ocidente, como diz Borges: "Na filosofia moderna, temos o caso de Hume, para quem o indivíduo é um feixe de percepções que se Cf. LAO-TSÉ, Tao-Te-King, poemas clássicos do taoísmo, em várias edições e traduções disponíveis no mercado e na internet. 4 O Lamaísmo fala do “eu” como um “parlamento”. Cf. http://www.dailymotion.com/video/xvybo_alexandra-davidneel_dating (acesso em 22/03/2013). Da famosa frase "Je pense, donc je suis" (Descartes) a uma versão bem-humorada de Valéry: "Quelques fois je pense, quelques fois je suis" (“às vezes penso, às vezes existo”) [In Mauvaises pensés et autres]. 3

46

sucedem com incrível rapidez, e o de Bertrand Russel, para quem só existem atos impessoais, sem sujeito nem objeto" (BORGES, 1985a, pp.51-52). No oriente, "uma religião não é incompatível com outras" (...). “A mente chinesa é hospitaleira". A religião mais difundida do mundo, o budismo, permite que sejamos budistas sendo católicos, protestantes, islâmicos, xintoístas etc. Diferentemente do que inferiu Freud como "aniquilamento dos instintos", "felicidade da quietude" (FREUD, 1997, pp.27-28), ou "serena melancolia", o budismo crê no ascetismo só depois de se terem provado os prazeres do "Samsara"; sendo a renúncia o ápice e não um princípio (BORGES, 1985b, p.85). Com a atenção voltada "não para o indivíduo, mas sim para a teia das relações humanas", o confucionismo desenvolveu o "pensamento relacional"5, onde "os antônimos não são tidos como opostos irreconciliáveis, mas suceptíveis de união para formar uma ideia completa" (YU-KUANG CHU, in CAMPOS, 1986, pp. 244-245). Sem o padrão sujeito-predicado na estrutura da sentença, o chinês não desenvolveu a noção de lei da identidade na Lógica, nem o conceito de substância em Filosofia. E sem esses conceitos, não poderia haver noção de causalidade, nem de Ciência. “O chinês desenvolve, em lugar disso, uma Lógica correlacional, um pensamento analógico e um raciocínio relacional que, apesar de inadequados para a Ciência, são extremamente úteis em teoria sociopolítica" (idem, ibidem, p.247). A atual convergência que vem sendo discutida por autores como Cook (op. cit.), Nooshin (2012), Born (1995 e 2010) e outros, entre a musicologia e a etnomusicologia – que têm chegado aos mesmos resultados por diferentes caminhos – ilustra bem o rumo que pode ser traçado numa musicologia holística, “doravante apenas musicologia”, de tal maneira que, ainda que cada pesquisador se sinta atrelado à sua disciplina de origem, fica cada vez mais difícil categorizar os resultados dentro de fronteiras delimitadas. É a antropologia que ajuda a reunir, na transdisciplinaridade, os elementos que revelam a música como fato social total e não como mera produção de indivíduos isolados. FRONTEIRA, CAOS E PENSAMENTO MESTIÇO Lá onde começa o caos termina a ciência clássica. (James Gleick, 1989, p.18)

A teoria do caos, diz Gleick, “suprime as fronteiras entre disciplinas científicas. Ciência da natureza global dos sistemas, ela reuniu pensadores de domínios outrora muito distantes” (GLEICK, 1989, p.18)6. Diretamente Que vem de encontro ao conceito de “musicologia relacional (Born, 2010): uma interdisciplinariedade que não é redutível às disciplinas anteriores” (in Nooshin, 2011, p.288) 6 Como diz Funari, “A fundação do pioneiro Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos Estados Unidos, em 1930, marcou uma inflexão na ciência contemporânea. A Universidade moderna, derivada do Iluminismo do século XVIII, baseou-se na crescente especialização das 5

47

relacionado com a questão do caos está o conceito de fronteira – presença obrigatória em qualquer estudo musical – e que é o instante da transformação da matéria cultural. O fenômeno fronteira como um “processo ininterrupto de construção da alteridade cultural”, em que “restam as realidades humanas e a força do sentimento de filiação”, donde a ideia de “narcisismo das pequenas diferenças” de Freud pode ser útil (FRANCFORT, 2010, pp.107-108). Pensando com Francfort, uma cultura nacional se constrói amplamente no exílio e, salvo em lógicas totalitárias, a homogeneidade não corresponde aos aspectos que constroem uma cultura. A construção de marcadores diferenciais culturais dizem respeito a toda forma de produção cultural, inclusive numa arte que tem a reputação de ser universal como a música. As culturas podem se misturar ilimitadamente e ainda assim Lévi-Strauss via sempre uma “lacuna diferencial” que nunca podia ser preenchida. É na metamorfose e na precariedade, diz Gruzinski, que se instala a verdadeira continuidade das coisas (GRUZINSKI, 2012, p.22). Contra a tendência de esquecer a história de certas partes do mundo, ou de lhe atribuir uma parte negligenciável no nosso destino, atualmente o híbrido começa a destronar o exótico, mas não deixa de ser uma nova forma de distinção entre a cultura dominante e o resto das populações, mesmo sabendo que todas as culturas são híbridas e que as mestiçagens remontam às origens da história da humanidade. Seria portanto mais apropriado pensar numa lógica mestiça que passa pelo conceito de fronteira: “frequentemente porosa, permeável, flexível: que se desloca e pode ser deslocada”, mas que é difícil de ser pensada, por ser ao mesmo tempo “real e imaginária, intransponível e escamoteável” (GRUZINSKI, 2012, p.43). Pensar o caos da fronteira e a lógica mestiça é desconfiar do conceito de cultura – aceito por filósofos e antropólogos mas que não cabe ser discutido neste ensaio. Basta aqui lembrar da definição de Amselle, para quem a cultura é “uma solução instável cuja perpetuação é em essência aleatória” (apud GRUZINSKI, 2012, p.46). Pensar o caos da fronteira e a fragilidade do termo cultura leva-nos também a questionar o processo seletivo do cânone, como “legitimação de exclusões” (GINZBURG, 2012, p.21). Se não há conhecimento desinteressado, a disciplinas e no conhecimento voltado para a solução de necessidades práticas, concretas e imediatas. A Medicina devia curar, assim como a Filologia devia decifrar um idioma e a História devia escrever um passado a serviço da nação. A tendência desde então foi saber cada vez mais sobre cada vez menos. Os limites dessa perspectiva já eram evidentes quando Princeton reuniu o físico Einstein e outros sábios que ali chegaram para explorar dois outros aspectos do conhecimento: a ausência de barreiras disciplinares e a busca desinteressada do saber, sem medo da demora e mesmo do eventual fracasso”. In Valorizar estudos avançados é superar a tendência imediatista das universidades de saber cada vez mais sobre cada vez menos . Disponível em (acesso em 23/03/2013).

48

crítica do cânone aparece como central para entender a herança positivista do “progresso indiscutível da ciência” que descreve e classifica autores e obras e transforma uma atribuição em substância: o valor (ibidem, p.43). O valor é, segundo Bourdieu, capital intelectual (BOURDIEU, 1999). Para Cook (op. cit., p.16), a música tornou-se algo que se estoca ou se acumula em forma de capital estético, que, embora não se diga, é o repertório ou, para Cook, o “museu imaginário de obras musicais7” (COOK, op. cit., p.30) que indica (voltando a Ginzburg) “relevância e prestígio de quem o reconhece” (GINZBURG, 2012, p.43). A eleição do cânone é resultado de uma “política da memória” cujas escolhas influem diretamente nas condições de circulação e recepção das obras, definindo sua permanência no mercado, nas bibliotecas e nos horizontes de expectativa do público (ibidem, p.48). São esses interesses hegemônicos que precisam ser contestados no espaço criador de legitimidades que é a sala de aula. CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA À EDUCAÇÃO MUSICAL Nessa convergência entre pensamento oriental e ciências sociais, e entre musicologia e etnomusicologia, tanto em Confúcio quanto em Habermas encontramos que “conhecimento e interesse estão essencialmente ligados (...) [e] a mediação entre sujeito e objeto (...) constitui-se inicialmente por ação e obra do interesse. (...). A força do interesse penetra no núcleo lógico da pesquisa” (HABERMAS apud GINZBURG, 2012, p.23). Sendo assim, diz Ginzburg, “a motivação subjetiva do conhecimento não seria um antípoda do esforço de objetividade, mas sua própria base”. Ou “o interesse é constitutivo do conhecimento” (GINZBURG, 2012, p.35). A expressão social da pesquisa em música é o espaço privilegiado que a educação ocupa, e uma abordagem etnográfica mostra-se eficaz ao revelar os valores e as funções que a prática musical organizada proporciona, pondo em evidência, por exemplo, os supostos efeitos civilizatórios que a música clássica ocidental tem a oferecer. Indo além da ideologia da obra desencarnada, da liturgia e dos rituais, da subjetividade burguesa, do dogma da autenticidade, do culto a Beethoven – “pilar central na cultura da música clássica” segundo Cook (op. cit., p.24) –, da autoridade e do autoritarismo, da ideia de música como capital estético – “que pode ser armazenada, como um bom vinho, para futura degustação” (COOK, op. cit., p.29) –, seja qual for o nome que se dê à disciplina, as etnografias das tradições urbanas contemporâneas fornecem “uma rica oportunidade de aumentar a compreensão da vida musical, tradicionalmente vista somente pela lente das fontes históricas escritas, e também trazer à luz processos de transmissão e significados musicais situados entre gente real em tempo real” (NOOSHIN, 2012, p.296). 7

“the imaginary museum of musical works” (COOK, 2000: p.30)

49

Seria então papel do professor educar o aluno de música para o mercado reputacional e prepará-lo para integrar a pirâmide de notoriedade? É para os concursos periódicos – que lembram as competições esportivas – que renovam essa pirâmide e mantêm a incerteza da loteria do trabalho artístico que devemos formar o aluno? Devemos acreditar nos grandes talentos criados pela propaganda através das revistas “especializadas”, num momento em que tocar muito bem virou a rotina do showbis musical? (MENGER, 2002, passim). As reputações duráveis são raras se comparadas à quantidade de sucessos efêmeros. Fala-se muito dos grandes cachês do alto clero artístico fabricado, mas há poucos estudos sobre os ganhos da massa de profissionais – destino certo da maioria dos alunos. Paradoxalmente, essas desigualdades não são apenas aceitas e toleradas, mas amplamente admiradas e desejadas (MENGER, 2002, p.45 e ss). Como diz Borges, “a pior tentação no mundo das artes é a vontade de ser gênio” – tradição criada pela ideologia romântico-modernista e que continua sendo a principal referência e motivação para os que se dirigem para o trabalho musical. Será que devemos perpetuar o mito de uma linguagem evolutiva das artes? Como diz Weber, "ocorre frequentemente que o progresso técnico se manifeste a princípio em obras que, do ponto de vista do valor estético, sejam claramente imperfeitas (...). A utilização de uma técnica determinada, por mais evoluída que seja, não traz a menor indicação de valor estético de uma obra" (WEBER, 1965, p.451). Com uma produção bibliográfica em música ainda insuficiente no Brasil para o desenvolvimento de uma consciência crítica, – além de uma escassa publicação de resenhas de livros estrangeiros –, a educação musical pode ser considerada sem dúvida o maior campo de aplicação de toda e qualquer pesquisa em música. A diferença com relação à pesquisa científica é que esta não organiza seu desenvolvimento sobre o sucesso de suas invenções junto a não-especialistas. A descoberta científica é um bem intermediário e a pesquisa artística se quer muitas vezes como um bem final. Como realizar a transposição didática (expressão social) dos conteúdos da pesquisa em música? Uma ciência sem perspectiva de aplicação é uma ciência morta e uma concepção aristocrática, fruto do ócio (LEROY e TERRIEN, 2011, pp.15-26). A educação musical deve criar um pensamento que preserve o capital simbólico das comunidades e das sociedades que pagam impostos para sustentar suas pesquisas e diminuir a distância entre as abordagens técnicas, históricas e humanas da música, inclusive aproximandoas das ciências biológicas, na perspectiva de uma biomusicologia – que é outra tendência atual para um paradigma de pesquisas em educação musical com base na psicologia, na neurociência e na etologia8.

1. Biol. Estudo do comportamento dos animais. 2. P.ext. Antr. Estudo dos costumes humanos como fatos sociais. 8

50

A educação musical deve também operar a crítica da ideologia da obra como um objeto desencarnado e sujeito ao imperativo do progresso, e trabalhar o pensamento racional junto com o pensamento mitológico – que pode não ser demonstrável, mas que, segundo Lévi-Strauss, é capaz de produzir a sensação reconfortante de domínio sobre questões muitas vezes inexplicáveis (LÉVISTRAUSS, 1987, p.23). A lógica fornece provas mas não descobre nada e a análise técnica é tão importante quanto conhecer os mecanismos e o universo sócio-cultural. Russell lembra que “para conseguirmos compreender a linguagem, é necessário desprovê-la de seus atributos místicos e terroristas” (RUSSELL, 1969, p.33). “SE PUXARMOS O FIO DA TOMADA, NÃO RESTARÃO TRAÇOS SONOROS DA GLOBALIZAÇÃO”9 A paisagem da globalização tem dois planos: um horizontal que diz respeito aos diferentes gêneros e estilos no espaço geográfico; e outro vertical, das fronteiras sociais e da distinção. A cultura não é um objeto nem um produto como qualquer outro, mas uma visão compartilhada socialmente e sua sobrevivência depende da transmissão entre gerações; sem o quê há suicídio cultural (MÂCHE in BOUËT e SOLOMOS, 2011, pp.13-24). Devemos também promover a crítica do temperamento igual, que elimina as riquezas melódicas de culturas não ocidentais. É preciso que se questione a escrita como meio de controle e desfazer o divórcio romântico-modernista entre o escrito e o oral em música. Uma música de tradição oral pode se transformar através da escrita e conhecer uma segunda vida dentro de um outro contexto cultural. A fusão entre objeto "bruto" (natural) e objeto cultural tem a função de abolir a fronteira entre natureza e cultura, que é o objeto da antropologia da natureza de Philippe Descola. Da mesma forma, só a crítica da uniformização das músicas pela torneira dos meios de comunicação é que vai permitir a compreensão de que só o isolamento permite o amadurecimento de uma cultura. Existe certamente uma música dos animais, por exemplo, os cantos de pássaros de uma mesma espécie que habitam lugares diferentes, ao contrário do que diz Maura Penna (2010, pp.30-35). Crítica do produto omnibus que tende a difundir, “frequentemente à mesma hora, o mesmo tipo de produtos que possibilitem lucro máximo e custo mínimo” (BOURDIEU, 2001), a difusão comandando a produção. Transformar o totalitarismo industrial em fonte de inspiração para a pluralidade, não um pluralismo de superfície – que é um curto3. P.ext. Psi. Parte da pesquisa do comportamento humano que estuda a base comportamental inata (como a atávica, as instintiva etc.) [F.: Do gr. ethología, pelo lat. ethologia.] Disponível em: http://aulete.uol.com.br/etologia#ixzz2UVqScV5g (acesso em 27/05/2013). 9 Jean During, in BOUËT e SOLOMOS, 2011, p.40.

51

circuito da diversidade. Na produção cultural, o artesanal e o industrial podem coexistir. A CIRCULAÇÃO INTERNACIONAL DAS IDEIAS

Last but not least, superar uma certa leitura da sociologia da música que tem como base as ideias de Adorno, que introduz um juízo de valor estético e desenvolve um conjunto de explicações causais, repousando seu método inteiramente sobre a identificação de homologias que querem fazer crer que as “soluções estéticas tradicionais (...) mascaram as contradições sociais sob a aparente harmonia da obra” –, numa visão expressionista da sociedade e uma leitura patética e pessimista da história, desqualificando sem apelação toda e qualquer enquete sociológica sobre a origem social dos compositores “ávidos de eternidade” – uma cilada que acaba jogando a obra musical numa paixão, no sentido sacrificial do termo, desde que, nessa leitura adorniana, a essência social da obra reside na autonomia como protesto contra o utilitarismo do mercado (MENGER, 2001 e 2002, passim). Essa leitura particular de Adorno pode levar àquilo que Bourdieu chamou de “reinterpretação em função da estrutura do campo de recepção”, geradora de “formidáveis malentendidos” (BOURDIEU, 2002), já que uma leitura estrangeira pode às vezes ter uma liberdade que não tem uma leitura nacional e os autores estrangeiros são frequentemente objeto de instrumentalizações e manipulações que favoreçam oposições fictícias entre coisas parecidas e semelhanças entre coisas diferentes. Dessa defasagem estrutural entre os contextos resulta uma alodoxia10 que é fonte inesgotável de “polêmicas de má fé e condenações mútuas de farisaísmo”, e essas deformações dos textos originais são diretamente proporcionais à ignorância do contexto de origem. O sociólogo lembra também que: A vida intelectual é o lugar, como todos os outros espaços sociais, de nacionalismos e imperialismos, e os intelectuais veiculam, quase tanto quanto os outros, preconceitos, estereótipos, verdades Alodoxia: “Platão e Bourdieu usam o termo "alodoxia" para descrever a falsa crença decorrente do desconhecimento. Bourdieu, em seus escritos mais tarde, usa o termo para se referir especificamente à inclinação dos consumidores para acompanhar 'jornalistas-intelectuais’ que, ao se submeterem às pressões do mercado, contribuem para o surgimento de uma produção cultural comprometida”. Plato and Bourdieu use the term ‘allodoxia’ to describe false belief arising from 10

misrecognition. Bourdieu, in his later writing, uses the term specifically to refer to the inclination of consumers to follow ‘journalist-intellectuals’ who have themselves embraced market pressures and are thereby contributing to the emergence of impure and compromised cultural production . In Virtuous allodoxia. Jenny Brown. PhD Candidate, Sydney College of the Arts, University of Sydney. Disponível 25/05/2013).

(acesso

em em

52

prontas, representações muito básicas, muito elementares, que se alimentam dos acidentes da vida cotidiana, das incompreensões, dos mal entendidos, das feridas (...) [BOURDIEU, 2002].

O sistema educacional, como produtor e reprodutor de sistemas de pensamento pode assim favorecer ou dificultar um “verdadeiro universalismo intelectual”.

REFERÊNCIAS BORGES, Jorge Luís, JURADO. Alícia. Buda. São Paulo: Difel, 1985b. BORGES, Jorge Luís. Prosa completa, vols. 1,2,3 e 4. Madri: Bruguera, 1985a BORN, Georgina e HESMONDALGH, David. Western music and its others. Los Angeles: University of California Press, 2000. BORN, Georgina. Rationaling culture : IRCAM, Boulez, and the institutionalization of the musical avant-garde. Berkeley and Los Angeles: 1995. BOUËT, Jacques e SOLOMOS, Makis. Musique et globalisation: musicologieethnomusicologie. Paris: L’Harmattan, 2011. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. MICELI, Sérgio (org.). São Paulo: Perspectiva, 1999. BOURDIEU, Pierre. Contre-feux 2. Paris: Éditions Raisons d'agir, 2001. BOURDIEU, Pierre. Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 145, décembre 2002. La circulation internationale des idées. pp. 3-8. doi : 10.3406/arss.2002.2793 Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_03355322_2002_num_145_1_2793 (acesso em 25/05/2013). COOK, Nicholas. Music: A Very Short Introduction. Oxford University Press, 2000. Disponível em http://www.fileden.com/files/2009/6/22/2485348/Music%20%20A%20Very%20Short%20Introduction.pdf (acesso em 24/03/2013). DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005 FRANCFORT, Didier. De l’histoire des frontières cultures à l’histoire culturelle

des frontières et à l’histoire des cultures frontalières. Pour une rupture de perspective et de nouvelles approches. In Eurolimes Journal of the Institute for Euroregional Studies “Jean Monnet” European Centre of Excellence. University of Oradea, vol.9, 2010: pp.107-126. Disponível em http://iser.rdsor.ro/main_page/Documents/Eurolimes/pdf/9_eurolimes.pdf (acesso em 24/03/2013). FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1977. GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2012.

53

GLEICK, James. La théorie du chaos: vers une nouvelle science. Traduit de l’anglais par Christian Jeanmougin. Paris: Éditions Albil Michel, 1989. GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris: Librairie Arthème Fayard/ Pluriel, 2012. LEROY, Jean-Luc e TERRIEN, Pascal. Perspectives actuelles de la recherche en éducation musicale. Paris: L’Harmattan, 2011 LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, Lda., 1987. MENGER, Pierre-Michel. Le paradoxe du musicien: le compositeur, le mélomane et l’État dans la societé contemporaine. Paris: L’Harmattan, 2001. MENGER, Pierre-Michel. Portrait de l’artiste en travailleur. Paris: Seuil, 2002. NOOSHIN, Laudan. Introduction to the Special Issue: The Ethnomusicology of Western Art Music, Ethnomusicology Forum, 2011 20:3, 285-300. Disponível em http://dx.doi.org/10.1080/17411912.2011.659439 (acesso em 24/03/2013). PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2010, pp.30-35. RUSSELL, Bertrand. Signification et verité. Traduit de l’anglais par Philippe Devaux. Paris : Flammarion, 1969. WEBER Max, Essais sur la théorie de la science, (trad. Julien Freund), Paris: Plon, 1965. YU-KUANG CHU. Interação entre linguagem e pensamento em chinês. In CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma, lógica, poesia e linguagem. São Paulo: Cultrix, 1986, pp: 222-261.

54

GUILHERME DE MELLO E A MUSICA NO BRASIL: PANORAMA IDEOLÓGICO E SISTEMAS FILOSÓFICOS SUBJACENTES Gustavo Frosi Benetti [email protected] Universidade Federal da Bahia

Resumo: Guilherme de Mello, autor da primeira obra sobre a história da música no Brasil, consiste em um nome pouco pesquisado pela musicologia nacional. O mesmo ocorre com o seu livro, A musica no Brasil. Esta pesquisa tem como objetivo discutir as ideias subjacentes do período e suas relações com a obra do autor. O foco das análises concentra-se nas doutrinas deterministas da época, e também na discussão sobre a construção de uma identidade nacional. Este texto propõe-se a apresentar como as ideologias daquele tempo manifestam-se na obra, e como esta expressa determinada visão de mundo. Palavras-chave: Musicologia brasileira. Ideologia. Filosofia da música. Evolucionismo.

A obra intitulada A musica no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro decenio da Republica1, de autoria de Guilherme Theodoro Pereira de Mello (1867-1932), é considerada entre os pesquisadores da musicologia brasileira a primeira do gênero. Fora publicada em 1908, na cidade de Salvador, Bahia. Daquele ano até a atualidade vem servindo como referência para outras obras, mas também é alvo de críticas, por vezes descontextualizadas. Além disso, até o presente momento não se encontrou estudo detalhado sobre o livro e seu autor, cuja biografia é praticamente desconhecida, exceto por alguns breves parágrafos em enciclopédias e dicionários específicos. Para um estudo criterioso da referida obra, presume-se a necessidade de entender o pensamento da época. Portanto, com base nestas constatações, colocase o seguinte problema: Como a obra se relaciona com as ideias subjacentes da época? O objetivo deste artigo é analisar o livro no âmbito das ideias, verificar como ele dialoga com autores daquele contexto e como exprime uma determinada visão de mundo. Para tanto, serão observados autores, teorias e ideologias identificados direta ou indiretamente na obra de Mello, concentrando a discussão 

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. 1Além da primeira edição de A musica no Brasil, de 1908, há ainda outras duas, de 1922 e de 1947. A de 1922 consiste em um capítulo do Diccionario Historico, Geographico e Ethnographico do Brasil, publicação em comemoração ao primeiro centenário da Independência. A de 1947, póstuma, fora publicada como a segunda edição e conta com um prefácio escrito por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo.

55

em dois vetores principais: de um lado a influência da filosofia idealista alemã na concepção estética da época, e de outro as doutrinas deterministas e a ideia de construção de uma identidade nacional, ambas em evidência no país nas últimas décadas do século XIX. A primeira edição da obra estrutura-se em cinco capítulos, conforme a tabela a seguir: Tabela 1: Estrutura de capítulos do livro A musica no Brasil. cap. título

conteúdo

pp. 9-28

1

Influencia indígena e jesuítica

“período de formação” da música no Brasil pela interação entre os povos nativos e os jesuítas

2

Influencia portuguesa, africana e espanhola

“período de caracterização”, fusão da música 29-127 dos indígenas catequizados, dos colonizadores europeus e dos escravos africanos

3

Influencia bragantina

“período de desenvolvimento” devido principalmente à presença da família real

129271

4

Período de degradação

degradação pela marcante presença da música italiana, no final do império

273296

5

Influencia republicana

“período de nativismo” com a proclamação da república e um sentimento de nacionalidade

297366

observações

suprimido somente na edição de 1922

A abordagem dos conteúdos, assim como a organização dos capítulos, indica uma intenção do autor em identificar uma espécie de “processo evolutivo” na música do país. Na edição princeps, o único capítulo que destoa dessa visão progressista é o quarto. Na edição de 1922, no entanto, fora suprimido, uma questão que vem sendo investigada na pesquisa mas segue ainda sem uma análise conclusiva. Na edição póstuma de 1947, baseada na primeira, o editor manteve a estrutura original. O PENSAMENTO ARTÍSTICO E MUSICAL DO SÉCULO XIX Já nas páginas iniciais do primeiro capítulo de A musica no Brasil, Mello observa uma filosofia que reconhece “o poder e a influência da música sobre os homens”, um dos vetores necessários para o entendimento da obra. Para ilustrar tal opinião, o autor cita Schopenhauer: “A musica nos faz penetrar até o fundo occulto do sentimento expresso pelas palavras ou da acção representada pela opera; revela a natureza propria e verdadeira; nos descobre mesmo a alma dos

56

acontecimentos e dos factos” (SCHOPENHAUER apud MELLO, 1908, p. 13). Tais ideias de Schopenhauer, expostas na sua Metafísica do belo – ou o terceiro livro de O mundo como vontade e representação – revelam uma concepção ligada ao pensamento musical do romantismo, ideia ainda presente na música no Brasil do início do século XX. Entre os filósofos românticos Schopenhauer é quem demonstra maior interesse pela música, que ocupa em sua obra lugar privilegiado: Esta se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. Conhecemos nela não a cópia, repetição de alguma Ideia das coisas do mundo. No entanto, é uma arte a tal ponto elevada e majestosa, que é capaz de fazer efeito mais poderoso que qualquer outra no mais íntimo do homem, sendo por inteiro e tão profundamente compreendida por ele como se fora uma linguagem universal, cuja compreensibilidade é inata e cuja clareza ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo (SCHOPENHAUER, 2003, p. 227-228).

O sistema filosófico de Schopenhauer parte de dois conceitos principais: vontade e representação. Para o filósofo, o mundo é “mera representação, objeto do sujeito”. Em relação à vontade, trata-se de “aquilo que o mundo ainda é além de representação, ou seja, a coisa-em-si” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 29). Portanto, antes de qualquer fenômeno, segundo Schopenhauer, existe a vontade, e esta é responsável pela essência do que é representado. A vontade objetivada num primeiro grau é ideia, e o conhecimento da ideia não é possível pelo conhecimento comum ligado à razão. Nesse ponto coloca-se a “intuição estética das coisas”, em que “o conhecimento se liberta da servidão da vontade”. Quanto à intuição estética, o sujeito cessa de ser indivíduo, cessa de conhecer meras relações em conformidade com o princípio da razão, cessa de conhecer nas coisas só os motivos de sua vontade, tornando-se puro sujeito do conhecimento destituído de Vontade: como tal, ele concebe em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, ele repousa nessa contemplação, absorve-se nela (SCHOPENHAUER, 2003, p. 45).

Para o filósofo, enquanto a ciência considera os fenômenos do mundo pelo princípio da razão, a arte o desconsidera totalmente para que a ideia, esta destituída de razão, apareça. “A arte repete em suas obras as Ideias apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente de todos os fenômenos do mundo; de acordo com o material em que ela o repete, tem-se arte plástica, poesia ou música” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 58). Dessa forma, Schopenhauer teoriza sobre uma hierarquia das artes, classificando-as de acordo com ideia e o grau de objetidade representado. A arquitetura representaria um grau mais baixo de objetidade por ser a mais ligada

57

à matéria, elo entre a ideia e o fenômeno, não possibilitando a intuição. A seguir, deslocando-se do âmbito da matéria para o das ideias, viriam a escultura, a pintura e a poesia, esta considerada pelo autor o grau mais alto de objetidade das ideias. A música, por sua vez, encontra-se acima de todas as artes na hierarquia schopenhaueriana, pois vai além da cópia das ideias, caracteriza-se como uma cópia imediata da própria vontade. Quanto à “pura contemplação”, de acordo com o autor referido, consiste no meio para a apreensão das ideias, e esta é uma atribuição do “gênio”. Para Schopenhauer, a genialidade mostra-se na capacidade de proceder de maneira puramente intuitiva, e “nada é senão a objetividade mais perfeita, ou seja, a orientação objetiva do espírito; em oposição à subjetiva, que vai de par com a própria pessoa, isto é, a Vontade” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 61). Quanto à questão do gênio, Mello compartilha dessa concepção romântica, e considera ainda a genialidade uma característica inata: “não se pode negar, o verdadeiro genio não tem precisão alguma de escolas para se desenvolver”. E o autor justifica tal afirmação: “N'estas escolas desenvolvem-se talentos, cultivamse disposições, mas nunca se dá o genio, pois este só a natureza é quem nol-o dá. Portanto é logico que a natureza não precisando de escolas os genios tambem não precisam” (MELLO, 1908, p. 251). Contudo, Mello não descarta o valor das escolas de música, tendo ele próprio sido professor e defendido um ensino de música de qualidade. Para o autor, “sem principios de musica pode-se na verdade obter-se bravura e agilidade na execução de qualquer instrumento; mas, nunca se obtêm artistas” (MELLO, 1908, p. 277). O conceito do gênio romântico está intimamente associado à inspiração, ao sentimento, e essa relação é explícita tanto na obra de Mello quanto na de Schopenhauer. Para este, “a invenção da melodia, o desvelamento nela de todos os mistérios mais profundos do querer e do sentir humanos, é obra do gênio, cuja atuação aqui, mais que em qualquer outra atividade, se dá longe de qualquer reflexão e intencionalidade consciente e poderia chamar-se inspiração” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 233). Já para Guilherme de Mello a música é “a linguagem mais leal do sentimento humano” (MELLO, 1908, p. 12). Ainda exemplificando essa concepção romântica, quando se referia a um determinado compositor, Mello dissera: “Era a verdadeira expressão, era o verdadeiro sentimento musical encarnado em sua pessoa” (MELLO, 1908, p. 247). A DIFUSÃO DO CONHECIMENTO NO NORDESTE: PRINCIPAIS CENTROS Pode-se inferir, observando-se o estado atual desta pesquisa, que Guilherme de Mello provavelmente não teria fixado residência em outro centro urbano até 1928, ano em que possivelmente teria se mudado de Salvador para o Rio de Janeiro. No período da publicação do livro os principais centros acadêmicos de difusão do conhecimento no nordeste do país eram a Faculdade de Direito de

58

Recife e a Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador (SCHWARCZ, 1993, p. 146; 195). A influência de tais contextos é explícita no livro de Mello, seja através de relações pessoais do autor, citações de obras e, principalmente, argumentos e ideias defendidas por essas escolas. No texto inicial da obra, intitulado “Ao Leitor”, o autor presta seus agradecimentos a três sujeitos, hoje pouco conhecidos: “Drs. Americo Barreira, Julio Barbuda e Luiz Novaes a cujo auxilio muito devo os incentivos que me animaram a esta publicação e aos quaes aproveito a opportunidade de apresentar as homenagens de meu reconhecimento” (MELLO, 1908, p. 4). Em relação a estes nomes, sabe-se que Pedro Julio Barbuda e Americo Barreira eram médicos, vinculados à Faculdade de Medicina da Bahia, os quais defenderam as suas teses respectivamente em 1875 e 1894 (MEIRELLES et al, 2004, p. 27; 54). Luiz Novaes obtivera o título de bacharel pela Faculdade Livre de Direito da Bahia, possivelmente em 1909 (BRASIL, 1909). Apesar dos agradecimentos, não há em A musica no Brasil nenhuma referência direta a obras ligadas às faculdades baianas, nem mesmo a Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), importante teórico daquele contexto. De Sylvio Roméro (1851-1914) – na grafia de seu tempo – nome representativo de uma geração de intelectuais ligados à Faculdade de Direito do Recife, Mello utilizou os Cantos populares do Brasil, livro constantemente citado no seu segundo capítulo. Essa obra não vai além de uma compilação de cantos de caráter folclórico – trata-se de uma edição que somente expõe os cantos em sequência, sem uma discussão sobre a temática proposta – exceto pela introdução da segunda edição, de 18972, na qual o autor justifica o texto a partir de seus argumentos recorrentes sobre raça, evolução, civilização e a formação de um tipo brasileiro europeizado: O que se diz das raças deve-se repetir das crenças e tradições. A extincção do trafico africano, cortando-nos um grande manancial de miserias, limitou a concurrencia preta; a extincção gradual do caboclo vae tambem concentrando a fonte india; o branco deve ficar no futuro com a preponderancia no numero, como já a tem nas idéas (ROMÉRO, 1897, p. IV).

Esse desejo pelo embranquecimento da sociedade e pela “civilização” nos moldes europeus, no entanto, vai sendo percebido como impraticável no contexto brasileiro. A partir daí inicia-se um processo de adaptação dessas ideias, na

2 Na primeira edição de Cantos populares de Brasil, de 1883, a introdução fora escrita por Theophilo Braga. Para Roméro, uma série de equívocos foram cometidos, pelas intervenções de Braga, e tal fato gerou a publicação intitulada Uma esperteza, de 1887, com críticas contundentes ao autor daquela introdução. Em 1897 Roméro publicou uma “segunda edição melhorada”, substituindo o texto de Braga por um de sua autoria.

59

tentativa de justificar a figura preponderante do mestiço. Tais procedimentos são perceptíveis na obra de Sylvio Roméro. Tanto no meio acadêmico da Bahia quanto no de Pernambuco, a partir da década de 1870 ocorreu um processo de difusão de visões deterministas e de ideologias cientificistas europeias, como o positivismo, o darwinismo e o evolucionismo social. Dessas teorias, segundo Lilia Moritz Schwarcz, buscou-se “adaptar o que 'combinava' – da justificação de uma espécie de hierarquia natural à comprovação da inferioridade de largos setores da população – e descartar o que de alguma maneira soava estranho, principalmente quando essas mesmas teorias tomavam como tema os 'infortúnios da miscigenação'.” (SCHWARCZ, 1993, p. 41). Todo esse debate em torno da raça e da formação da identidade do brasileiro perpassa o discurso de Mello e é explícito desde os primeiros parágrafos da obra. O “sentimento da musica”, para o autor, é “uma resultante da constituição psychica do individuo, bem como da idiosyncrasia da raça a que pertence” (MELLO, 1908, p. 5). “UM VERDADEIRO CINEMATOGRAPHO EM ISMOS...” Esta expressão do subtítulo, utilizada por Sylvio Roméro, refere-se aos inúmeros movimentos ideológicos ocorridos durante o século XIX, tão imbricados entre si como representa a metáfora do cinematógrafo – um aparelho que projeta imagens em movimento a partir de uma rápida sucessão de fotografias – primeiro “no grande mundo e, depois no Brazil” (ROMÉRO, 1910, p. 36). O positivismo, doutrina fundada por Auguste Comte (1798-1857), parte do princípio de que “cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo” (COMTE, 1978, p. 3). Para o autor, no estado teológico o espírito humano ocupa-se das causas primeiras e finais, do conhecimento absoluto, ligado ao sobrenatural; no metafísico, que seria uma variação do primeiro, uma transição, há uma substituição do sobrenatural por forças abstratas; no estado positivo, ocupa-se de leis efetivas a partir de fenômenos observáveis. Os três estados, na teoria de Comte, são considerados incompatíveis, mas necessários enquanto um processo evolutivo do espírito humano. Dessa forma, Comte propõe uma filosofia nos moldes científicos – através da observação de fenômenos reais e descartando a metafísica – a que ele também chamou de “física social” e que configurou o início da sociologia. Para Comte, a filosofia positiva consiste no “único verdadeiro meio racional de por em evidência as leis lógicas do espírito humano” (COMTE, 1978, p. 12). Mello, imbuído do espírito positivista, pretende ao longo da obra provar através de evidencias documentais as suas percepções sobre a música brasileira, como demonstra o trecho a seguir: “o fiz com o desejo ardente de mostrar-vos com

60

provas exhuberantes, de que não somos um povo sem arte e sem literatura” (MELLO, 1908, p. 3). Além disso, a ideia evolutiva aplicada à sociedade reflete a teoria dos três estados, ilustrada pelo percurso que vai do “selvagem” ao homem “civilizado”. A máxima do positivismo, “o Amor por princípio, a Ordem por base, e o Progresso por fim”, fora absorvida naquele Brasil marcado por grandes transformações políticas e sociais do final do século XIX, inclusive estando impressa na bandeira do país. Roméro, na defesa de sua tese, em 1875, protagonizou um embate que ilustra bem essa ideia: - A metafísica, não existe mais, se não sabia, o saiba. - Não sabia. - Pois vá estudar e aprender que a metafísica está morta. - Foi o senhor quem a matou?, perguntou-lhe então o professor. - Foi o progresso, a civilização (apud SCHWARCZ, 1993, p. 148).

“Progresso” e “civilização” são termos compartilhados com a teoria evolucionista, e revelam o espírito da época. A teoria de Herbert Spencer (18201903), em uma análise geral, consiste na aplicação do darwinismo – evolucionismo biológico – a todos os fenômenos do universo, especialmente ao âmbito social – evolucionismo social. O progresso é tratado como um processo evolutivo, e sua teoria explica desde o surgimento do universo até as manifestações artísticas. Para Spencer tudo obedece a lei do progresso: “Toda a força ativa produz mais de uma transformação: toda a causa produz mais de um efeito” (SPENCER, 2002, p. 59). Conforme a lei do progresso, os estados evolutivos procedem do simples ao complexo, do homogêneo ao heterogêneo. Tal processo, para o referido autor, “verifica-se também nos progressos da civilização” (SPENCER, 2002, p. 30). De acordo com Spencer, o homem “selvagem”, “primitivo”, por um processo evolutivo vai se tornando “civilizado”. Na música, aponta vários aspectos supostamente relacionados à evolução, como melodia – harmonia, vocal – instrumental (SPENCER, 2002, p. 53). Roméro, concordando com esses argumentos, afirma que “na historia da musica Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven succedem-se por necessidade do desenvolvimento da arte; um é a continuação progressiva do outro” (ROMÉRO, 1878, p. 35). Essa linearidade progressista é uma característica presente no discurso historiográfico da época. Para Roméro, todas essas teorias – positivismo, darwinismo, evolucionismo social – dialogam entre si, numa “junção harmônica” e são “sem duvida alguma, as mais fecundas que nosso seculo [XIX] viu surgir” (ROMÉRO, 1878, p. 185). Guilherme de Mello, apesar de não citar diretamente nenhum daqueles pensadores europeus, encontra em Roméro um interlocutor dessas ideologias, sendo possível notar no seu discurso um compartilhamento de diversas ideias.

61

A FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL Spencer acredita que a “raça humana” pode não ter uma origem comum, mas diversos troncos principais – hipótese poligenista – e isso viria a torná-la, por consequência, cada vez mais “heterogênea”. Levando-se em conta a teoria do autor, tal fato deveria ser considerado bom, pois para ele a “evolução” tende à “heterogeneidade”. Neste ponto revela-se uma contradição, quando o autor afirma que “nas divisões e subdivisões da raça humana, há transformações que não constituem um progresso; algumas pressupõem antes um retrocesso; mas é inegável que muitas criaram tipos heterogêneos” (SPENCER, 2002, p. 86). Uma ideia evidentemente racista para os dias atuais mas aceita na época, contraditória ao seu próprio sistema, que consistirá em um paradoxo para a discussão sobre a formação da identidade brasileira. O Brasil do final do século XIX, em profundas mudanças sociais com o fim da escravidão, precisava justificar a hierarquia das “raças” e seus diferentes critérios de cidadania. Para isso as teorias evolucionistas se adequavam. No entanto, a miscigenação era vista como um fator de degeneração, e sem uma justificativa plausível para tal seria impossível a formação de um ideal de unidade nacional. Foi a partir desse paradoxo, com uma espécie de ajuste nas teorias europeias, que se deu a valorização do tipo brasileiro miscigenado. Esse tema se apresenta de alguma forma nas obras do período, especialmente em Roméro, e aparece quase como uma necessidade para justificar a miscigenação no Brasil. Na obra de Mello, fica evidente: “o povo portuguez sob a influencia do clima americano e em contacto com o indio e o africano se transformou, constituindo o mestiço ou o brasileiro propriamente dito” (MELLO, 1908, p. 6). A frase ilustra o pensamento de Mello, mas também o espírito da época: teorias raciais, determinismo geográfico, predomínio do europeu sobre o nativo e o africano, e numa fusão de tudo isso, a mestiçagem como questão identitária nacional. OS ARGUMENTOS DE MELLO: RAÇA, EVOLUÇÃO, CIVILIZAÇÃO E NACIONALIDADE Todas as teorias discutidas neste artigo manifestam-se, de alguma maneira, no discurso de Guilherme de Mello. Na tabela a seguir (Tab. 2), há algumas amostras dessas ideias e suas relações com a tentativa de formação de uma música nacional, evidentemente ligada a uma intenção de descrever um processo evolutivo e civilizatório do brasileiro. Tabela 2: Excertos do livro A musica no Brasil.

62

cap.

excerto

p.

comentários

1

apreciando-se o caráter da musica dos indígenas […] vê-se quanto ela se acha impregnada de sentimentos bárbaros e selvagens

14 considerados seres pouco “evoluídos”

1

hoje mesmo se encontram vestígios d'este canibalismo hediondo e crenças supersticiosas entre o populacho creoulo que ainda não se depurou e em cujas veias corre ainda o sangue inculto do africano.

15 o argumento do evolucionismo social, recorrente na obra

1

a primeira exibição da arte musical brasileira baseada no sistema diatônico e cromático dos povos cultos.

28 jesuítas e o processo “civilizador”

2

começa do tempo em que, catechisada a maior parte das tabas indigenas […] começaram a affluir ao Brasil […] portuguezes e hespanhoes.

29 caracterização; índios já “civilizados”

2

[…] os tres typos populares da arte musical brasileira: o lundú, a tyranna e a modinha: dos quaes o primeiro foi importado pelo africano, o segundo pelo hespanhol e o terceiro pelo portuguez.

29 sobre os elementos formadores de uma música nacional

2

as musicas que importadas pelos estrangeiros, se identificaram com o nosso meio, o nosso clima e o nosso genio, e que mais tarde recebendo as tintas e os traços do sentimento nacional se caracterisaram brasileiras.

33 determinismos geográfico e social

2

O populacho que só sabe se divertir sambando e que nos tempos coloniaes se achava mais em contacto com o africano do que mesmo com o europeu

36 ranchos, música de “raças inferiores”

2

Ternos são grupos de familia de boa sociedade

37 Ternos, dos ricos

3

a arte ingenita dos brasileiros, acompanhando as evoluções 12 música, evolução e sociaes, centralisa-se juntamente com o commercio na nova capital 9 o fator do futuro Imperio sociogeográfico

3

acompanhou […] as evoluções sociaes do povo brasileiro […], humanisando os selvagens; […] com os colonos e os indigenas, socialisando-os; […], unificando-os pela compartilhação dos sentimentos patrios

13 a partir da 0 “evolução social”, a ideia de nacionalidade

4

elevavam a musica italiana a tal ponto que baniram as nossas modinhas

27 “degradação” 3

4

Foi tal o esquecimento que votaram a musica nacional que as senhoras só mandavam ensinar suas filhas a cantarem o italiano

27 sobre a degradação 3 pelo italianismo

4

Bravura, agilidade e execução sem arte, sem delicadeza e sem instrucção, regula como a bravura, destreza e musculatura de um homem do campo sem trato, sem civilidade, no meio de uma sociedade escolhida.

27 o argumento 8 evolucionista social

5

Hoje […] o maior orgulho dos brasileiros é correr em suas veias, tingindo-lhes as faces tisnadas pelo sol dos tropicos, sangue dos nossos aborigenes

29 o mestiço e a 7 identidade nacional

63

5

o sentimento das cousas patrias já se vae accentuando e tendo valor tudo quanto é nacional

29 uma intenção de 7 nacionalismo

5

A symphonia do Guarany, […] sagrada como o Hymno da Arte Brasileira, e ha de ser sempre ouvida, […] convulcionando as fibras do patriotismo!

36 não discute a 3 estética italiana; aceita-a como nacionalista

No primeiro capítulo, considerado por Mello o “período de formação”, o autor discute as influências indígena e jesuítica, sempre deixando evidentes as suas concepções teóricas evolucionistas e raciais. Suas principais referências consistem em textos de viajantes europeus do século XVI. O autor exalta a chegada dos jesuítas como um elemento civilizador. No “período de caracterização”, tema do segundo capítulo, definem-se três gêneros de música popular brasileira, o lundu, a tirana e a modinha. Para o autor, essas músicas seriam produto da “fusão dos costumes e do sentimento musical” dos indígenas com os africanos, espanhóis e portugueses, respectivamente. A hierarquia das “raças”, demonstrando a crença na superioridade do branco é seguidamente relembrada. No capítulo seguinte, o terceiro, Mello discute o “período de desenvolvimento” associado à presença da família real no Brasil, a partir de 1808. O quarto capítulo, denominado “período de degradação”, é o que destoa dessa sequência “evolutiva” da música brasileira proposta por Mello. Localiza-se no final do império, e o autor critica a presença dos “pseudo maestros italianos”, bem como o predomínio do gosto por uma música considerada de menor valor artístico. O capítulo cinco, entendido por Mello como o “período de nativismo” é marcado politicamente pela proclamação da república e por um forte apelo nacional. Análogo à esse sentimento, o autor encontra uma justificativa para o mestiço. O último excerto (Tab. 2) aponta uma questão contraditória, entre outras discutíveis na obra, sobre a música de Carlos Gomes. Este, considerado por Mello o ponto de “culminância” da arte nacional, compunha numa estética italianizante, a mesma que gerou seu discurso sobre a “degradação”. De acordo com Manuel Veiga, “Melo nem sempre se mostrou um crítico perspicaz, entronizando Carlos Gomes numa moldura que não tinha mais lugar para ele” (VEIGA, 2012, p. 14). Uma análise possível, considerando a ideia “evolutiva” da obra, seria observar que o autor parte de uma “música no Brasil”, através das “influências” diversas, para gradativamente moldar uma intenção de “música brasileira”. Essa concepção sobre a música, “a arte ingênita dos brasileiros”, tão “mestiçada” quanto o povo que a produziu, evidentemente reflete a discussão daquele período em torno de uma identidade nacional.

64

REFERÊNCIAS: BRASIL. Ministerio da Justiça e Negocios Interiores. Diario Official, Rio de Janeiro, Capital Federal, ano XLVIII, n. 280, 2 dez. 1909. Seção I, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2013. COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. MEIRELLES, Nevolanda Sampaio et al. Teses doutorais de titulados pela Faculdade de Medicina da Bahia, de 1840 a 1928. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, v. 1, n. 138, p. 9-101, 2004. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A musica no Brasil: desde os tempos coloniaes até o primeiro decenio da Republica. Salvador: Typographia de São Joaquim, 1908. ROMÉRO, Sylvio. A philosophia no Brasil: ensaio crítico. Porto Alegre: Typographia da Deutsche Zeitung, 1878. ______. Cantos populares do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1897. ______. Provocações e debates: contribuições para o estudo do Brazil social. Porto: Livraria Chardron, 1910. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SPENCER, Herbert. Do progresso: sua lei e sua causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939; eBooks Brasil, 2002. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2013. VEIGA, Manoel. Musicologia brasileira: revisita a Guilherme de Melo. In: I COLÓQUIO / ENCONTRO NORDESTINO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA BRASILEIRA, 2010, Salvador. Atas do I CENoMHBra. Salvador: PPGMUSUFBA, 2012. 1-23.

65

A MUSICALIDADE EXTRA MUSICAL OU A EXTRA MUSICALIDADE MUSICAL DE RICARDO RIZEK

Prof. Dr. Paulo José de Siqueira Tiné Instituto de Artes – UNICAMP Campinas: [email protected]

Resumo: Artigo sobre o professor de música e filosofia Ricardo Rizek. Ricardo trabalhou com análise musical a partir de princípios estéticos e filosóficos, comparando música a conceitos matemáticos e filmes analisados. No campo da música gostava de mostrar relações ocultas em obras de Bach, Brahms, Schoenberg e Bártok. Sua principal base filosófica foi a abordagem pessoal de Heidegger, Paltão e pensadores “tradicionais” como Rene Guenon, Henry Corbin e o filósofo brasileiro Mario Ferreira dos Santos. Palavras chave: Ricardo Rizek, Música, Estética Musical, Filosofia Perene.

INTRODUÇÃO Ricardo Rizek (1953-2006) foi professor particular de Estética e Música em São Paulo desde o final da década de 1970 bem como, ao final da vida, professor de Filosofia do Colégio Vértice e Composição Musical da UniFIAMFAAM. Bacharel em História pela USP publicou alguns artigos, o prefácio para a reedição do livro “Pitágoras e o Tema do Número” de Mário Ferreira dos Santos (2000), concluiu o Mestrado em Artes pela ECA-USP e realizou alguns poucos arranjos corais. Foi professor de diversos músicos e artistas na cidade de São Paulo com uma abordagem pessoal e filosófica a respeito da arte e assuntos relacionados. Durante os anos em que lecionou muitas gravações de suas aulas foram realizadas por alunos, amigos e admiradores. O presente artigo procura desenvolver de forma adaptada a música o conceito de imaginação criativa, a partir de sua construção pelo antropólogo Henry Corbin (1903-1978). MUSICALIDADE EXTRA MUSICAL É muito comum nos perguntarmos sobre quais conteúdos uma música discorre. Seria a música um significante sem significado que o homem, teimosamente, insiste em atribuir significações? Se algumas civilizações atribuem, coletivamente, significados extramusicais a escalas, ritmos e melodias como as Ragas noturnas da Índia, os ritmos da tarde dos Yorubas, o toque dos Orixás e os modos da antiga Grécia - o Ocidente caminhou, a partir do romantismo, para significados cada vez mais pessoais e individuais que variam de compositor para compositor e também de intérprete para intérprete, na

66

medida em que os intérpretes também são co-autores das obras musicais. Ao mesmo tempo, como uma espécie de contrapeso, muitos compositores e teóricos começam, a partir do romantismo, a acreditar que a música não expressava nada de extra-musical1. Nesse contexto, Ricardo Rizek assim se definiu em um depoimento para um DVD: “Eu sou um professor que sempre viu a música conectada com outras áreas,sempre viu a musicalidade extra musical da música e a extra musicalidade musical da música” No presente artigo passaremos a percorrer um caminho na busca da compreensão de parte do que poderia ser tal extra-musicalidade musical ou a musicalidade extra-musical na visão do nosso autor que passará, forçosamente, por sua interpretação e visão da arte e concepção de vida de uma maneira em geral. EXTRA MUSICALIDADE MUSICAL Algumas meditações “improvisadas” durante aulas e análises, registradas por alunos suas aulas e análises de filmes. Trata-se de um acervo que ainda não foi completamente montado. Segundo Titus Burkhart, autor ligado à filosofia perene muito citado por Rizek em suas aulas, “o divórcio entre arte e artesanato trata-se de um fenômeno europeu relativamente recente, paralelo à cisão entre arte e ciência.” (BURKHARDT, 1988, 138). Para ele, a arte “consiste na transformação de uma matéria informe em um objeto conformado segundo um modelo ideal.” (Idem, 140) Embora tais concepções advenham das artes visuais ligadas ao Islam, o ponto principal desse pensamento ocorre quando se trata de colocar em foco o artista, ou a sua responsabilidade perante a obra que produz dentro desse contexto: “... esta conformação é sem sombra de dúvidas uma imagem da obra que o homem deve levar a cabo em si mesmo, em sua própria alma” (Idem, Ibidem). Ou seja, há um ênfase no fato do artista trazer à luz algo visualizado internamente. Esse ponto é corroborado por Rizek nas seguintes colocações: Há um ponto arquimedico em nós. Este ponto arquimédico é o motor imóvel que de alguma forma se traduz em nós. Claro que para que esse motor imóvel se traduza em nós é porque tudo aquilo que é apenas móvel também está em nós. Então nós também temos muita irrealidade em nós. Temos muita irrealidade em nós subordinada a uma realidade que o que precisaríamos aprender a ‘pegar’ em nós. Então o desafio é este: duvide! (RIZEK, 1991)

1

Ver Hanslick, Eduard. Do Belo Musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994.

67

Rizek parte aqui da terminologia derivada do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos: “Há um ponto arquimedico, cuja certeza ultrapassa ao nosso conhecimento, independe de nós, e é ôntica e ontologicamente verdadeira. Alguma coisa há...”. (SANTOS: 1959, 29). Ele achava fundamental, nesta afirmação, o dado do “motor imóvel” em nós, ou seja, ele transpôs a expressão tomista para níveis pessoais. Essa conquista é, segundo o autor, o desafio do artista-artesão. É somente a partir desse aprofundamento, segundo o autor, que algo verdadeiramente essencial pode se dar. É através de tal depuração que a criação verdadeira da obra-de-arte2 pode se dar, como demonstra a próxima citação: A obra de arte então se encaixa aí: propondo um salto de 4ª que não é um qualquer salto de 4ª, um qualquer movimento de dominante-tônica, propondo um vermelho que não é um qualquer vermelho, propondo um traço que não é um qualquer traço, mas que tem a sua diferenciação em diversas camadas estilísticas, sejam elas epocais, individuais, personais, arquetípicas, está ali! Basta olhar Picasso, no que tange ao traço. Seguindo a trilha dessa diferenciação, e essas camadas de diferenciações e de afinidades estilísticas, atingi-se, quando se atingi, a indiferenciação. (RIZEK, 1991)

Em relação ao mencionado salto de 4ª, Rizek trabalhava então na análise do “Prelúdio VII” em Mi bemol maior do Iº volume do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach. Essa não diferenciação mencionada diz respeito ao tema de uma fuga inserida no próprio Prelúdio que, ao exaurir muitas possibilidades temáticas que tem como característica o referido salto, atingi a indiferenciação quando ocorre a cadência final com o movimento harmônico referido (V-I). A partir desse exemplo Rizek oferece uma analogia para outros níveis de diferenciação em outras artes e também a inseri dentro de um processo de condicionamento cosmológico. Então não se pode levar a forma sonata pra casa, ou o figurativismo do quadro pra casa, ou o abstracionismo do quadro no sentido que ele é usado em artes plásticas pra casa. Não se leva isto pra casa, se leva algo que é imponderável, exatamente este algo que se traduz como sendo uma conquista psicológica de uma indiferenciação que, sendo uma conquista psicológica é uma indiferenciação metafísica. Se o vermelho fazia parte do tema, você viu vermelho pela primeira vez, e entendeu vermelho, não aquele vermelho, mas entendeu vermelho. Quando alguém entende uma música ela entende Música. Se a obra for digna da expressão Obra de Arte, dignidade esta que só pode ser pautada por este escalonar da inteligibilidade superior, quando alguém entende um quadro Muitos questionamentos poderiam ser realizados a partir da expressão “obra-de-arte”. Esse conceito atrelado ao romantismo parece ter caducado embora, aqui, ele possa nos ajudar a compreender o autor. 2

68

entende Artes Plásticas, quando alguém entende uma música, entende Música, quando alguém entende o ser-aí, entende o Ser. Esse é o milagre, o milagre do instante (RIZEK, 1991).

Mas o que seria esse escalonar da inteligibilidade superior? E esse milagre do instante? Para o autor não se trata de uma abordagem espiritual no sentido comum da expressão que se dá a partir de um determinismo fatalista. Um dos conceitos que permeou seus estudos foi o de mundus imaginalis, Um dos conceitos que permeou os estudos de Ricardo Rizek foi o de mundus imaginalis, extraído do da leitura do antropólogo francês Henry Corbin3 que, a partir da comparação entre o filósofo Proclo (Séc.V) e o místico andaluz Ibn Arabi (1165 – 1240), o forjou. A partir dele Rizek contrapõe o conceito do imaginário ao imaginal, o primeiro linear e passivo no qual as projeções cotidianas e desejos se fazem presentes e o segundo ativo. É somente nele que o imponderável pode habitar, daí a importância do símbolo. Segundo Rizek, imaginário tangencia a invenção e o imaginal os arquétipos. Não os “arquétipos do inconsciente coletivo” cujos autores da assim chamada Filosofia Perene – Rene Guenon, Titus Burkhart e Fritshof Shoun -, relacionados com os estudos tradicionais, tanto criticaram, bem como a aplicação de conceitos derivados de culturas tradicionais à psicologia contemporânea4. Dentro dessa linha seria interessante enfatizar a obra literária de Michel Ende, principalmente “A História Sem Fim” e “Momo”, como exemplo do valor da imaginação humana como mantenedora e criadora do mundus imaginalis, “o mundo de Fantasia”. Ou seja, a existência desse mundo só existe na medida em que se crê nele, a descrença é a sua destruição. Teologicamente falando, deve-se criar o Deus que nos criou e, para cria-lo, é preciso nomeá-lo. Nomear significa chamar, evocar, enfim, criar um suporte para que atraia o Belo para habitá-lo Outro ponto interessante e produtivo é a sua visão pessoal da história da arte, tendo como base a história da música. Rizek rechaçava a idéia de uma evolução e de um progresso linear. Apesar da radicalidade dos autores mencionados que formavam parte de seus fundamentos teóricos no contexto dos estudos tradicionais e, ainda que haja também diferenças importantes entre eles, tais autores consideravam que, via de regra, na perda da relação do suporte material da obra-de-arte com o símbolo tradicional, que apontava para o simbolizado, a arte deixava de ser Sagrada para decair no campo da individualidade. Essa perda se deu, segundo tais autores, na passagem da Idade Média para o Renascimento no contexto ocidental. Tal passagem é vista com enorme descrédito por tais autores, no sentido de que o Renascimento para eles Corbin, Henry. Creative Imagination in the sufism of Ibn Arabi. Translated by Ralph Manhein. Princeton: Princeton University Press, 1981. 4 Ver os textos de René Guenon sobre o assunto em “Símbolos da Ciência Sagrada” e “O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos”. 3

69

representava um grau de decadência em relação à Idade Média.5 Para Rizek, entretanto, havia um jogo dialético, ou seja, para que algo novo surja no horizonte ocidental, algo se perde e, além disso, não existe a possibilidade linear de uma volta ao consagrado. Ou seja, no campo da Arte, as aquisições que serviram de pontes para o novo, eram imediatamente eliminadas após sua aquisição. Por exemplo, para que o tonalismo surgisse foi necessário sepultar o modalismo, mas tal fato fez com que se perdesse a imensa riqueza dos modos eclesiásticos nesse processo. Um compositor romântico não é, necessariamente superior a um compositor clássico que, por sua vez não é mais “evoluído” do que um compositor barroco. Ainda que a expressão “obra-de-arte” esteja desgastada na contemporaneidade, Rizek insiste nela, ou melhor, tenta resgatá-la do desgaste lingüístico, colocando-a em outro patamar. Então, a obra-de-arte é uma ficção diferente da ficção cósmica, porque ela é o movimento de retorno. O movimento de retorno que nega a negação. O movimento de vinda, de cima pra baixo ou de dentro pra fora, é a primeira negação. A obra-de-arte (...) o quê que ela faz? Ela conta uma história, ela agrega outra ficção. Só que uma ficção sobre ficção quer devolver à Realidade. Então dizíamos nós, uma música programa discursivamente a sua própria falência, o seu próprio fracasso, pra que a pessoa não leve a formasonata pra casa e sim uma coisa superior. O tempo faz exatamente a mesma coisa quando o homem está nesse movimento de negação da negação e não só no primeiro passo que é o da simples negação. E a simples negação nós sabemos qual é: a nossa consciência normal que jura que está desperta e, no entanto, está dormente. (RIZEK, 1991)

A consciência “normal” e o estado civilizatório contemporâneo, ao qual estamos todos sujeitos, estão indubitavelmente sob a égide da ciência moderna. Rizek se apropriou do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, de quem era assíduo leitor, que deixou uma série de textos sobre a ciência e a técnica, apropriando-se, à sua maneira, dos pensamentos do mestre alemão. Não se trata, aqui, de verificar a fidelidade da interpretação. Rizek sempre tais meditações para um terreno pessoal e cotidiano na leitura desses pensamentos. Eu pergunto: não é esse um dos diagnósticos do que está acontecendo hoje com a nossa civilização? Não é isto que esta acontecendo com a Ciência, a Cultura Humana e a Civilização? Particularmente com a tecnologia? Não é esse o estado da civilização que nos marcos da ciência significa só atingir aquilo que estava pré-determinado a priori na própria metodologia? (...) Não é esta marca – traduzida da ciência enquanto pauta final da civilização – um sintoma do que está acontecendo com o homem? 5

Ver BURKHARDT: 2004, EVOLA: 1989 e GUENON: 1989.

70

Será que o Homem não faz isso? Será que a expectativa psíquica dos nossos desejos e medos não fazem isso com a nossa vida: antecipar formalmente fracassos, vitórias e resultados, deslocando fracassos e vitórias dos seus reais momentos? (RIZEK, 1988).

As palavras do filósofo alemão dizem o seguinte: “A ciência sempre se depara e se encontra, apenas, com o que seu modo de representação, previamente, lhe permite e lhe deixa, como objeto possível”. (HEIDDEGER, 2001, 148). Em outro texto (“Identidade e Diferença”) Heidegger aponta a questão do que chamou de “arrazoamento”, ou seja, do fato de a ciência moderna quantificar todos os dados da realidade aparente e, nessa quantificação, perder sua própria essência. Não se pode deixar de citar um apontamento semelhante de René Guenon sobre a ciência moderna e o que chamou de “ilusão das estatísticas” na já citada obra “O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos”. Dizíamos mais atrás que a ciência moderna, embora se queira toda quantitativa, recusa-se a ter em conta as diferenças entre os fatos particulares, até mesmo nos casos em que essas diferenças são mais acentuadas, naturalmente aqueles em que os elementos qualitativos têm uma maior predominância sobre os elementos quantitativos (GUENON:1989, 71).

Mais uma vez, percebe-se que, se estamos sob a égide do pensamento científico e da realidade tecnológica na sociedade contemporânea, é claro que a arte não escapa a essa dominação. Nesse sentido, Rizek se tornou um defensor da “artesania” sincera, tal como a do artista tradicional cuja função era de se aperfeiçoar através de algo, do suporte material colocado anteriormente. Entretanto, nesse ponto, viu uma diferença entre o artista ocidental e o oriental: a natureza passiva e, portanto, de natureza “lunar” do artesão se encontra circundada dentro de uma sociedade tradicional e o ocidente, por criar uma antitradição ou ainda, uma tradição que se dá dialeticamente via negação e superação através da negação, cria um artista do tipo “solar”, ou seja, consciente da construção simbólica inerente dos materiais que cria, entretanto, tal criação se dá deslocada de qualquer ação social de âmbito tradicional. Quer dizer, dentro de um domínio tradicional o artista cria dentre dos moldes dados pela tradição e a simbologia já está dada. No contexto ocidental, na medida em que os próprios símbolos partilhados em comunidades são destruídos, cada artista os cria individualmente, o que dá margem á uma enorme gama de tendências e ao próprio culto da personalidade e genialidade individual. Embora dominasse diversos caminhos da Harmonia e do Contraponto, optou por atuar no campo da Análise, seja de obras musicais ou cinematográficas, mas sempre com a ressalva de que, segundo ele, a análise deve programar seu próprio fracasso, da mesma maneira que a verdadeira obra-de-arte deve fazer:

71

Portanto o discurso não é programático em relação ao seu próprio fracasso para que alguém, em não pegando o discurso, possa pegar a mensagem? Em não entendendo o discurso possa entender não entendendo a mensagem? 6 Entender não entendendo, é assim que agente deve aprender a ficar. É isto que se chama concentração: ficar nesse estado em que você entende não entendendo. (RIZEK, 1991)

Por conseqüência, essa concentração pode se traduzir num estado, o que, segundo ele, deveria ser a função primordial da arte. A partir dos seus conhecimentos sobre o sufismo, Rizek mostrava que tais estados poder-se-iam dividir-se em transitórios ou permanentes. Através da terminologia derivada da cultura islâmica teríamos as palavras Hal e Makam, sendo que, esta última, pode ser traduzida também por modo, no sentido de escala musical. Os Sufis geralmente deviam atravessar certas etapas de conduta (moqams) y una serie paralela de formas reflexivas interiores (hals). O moqam é um estado adquirido gradualmente que possui consistência, enquanto que o hal é um estado subjetivo da mente, dependente das sensações e que não se encontra baixo o domínio da vontade. (ARASTEH: 1977, 39)

Nos últimos anos, Rizek aprofundou a crítica de um próprio método analítico seu: o da analogia. Apontou para a problemática do conceito de “sistema” que, a partir do platonismo, ou seja, de uma leitura peculiar que a história fez de Platão, passou a nos iludir. [...] Sistema: Essa palavra que nos enganou. Se você procurar essa palavra grega no dicionário, é uma palavra curiosa porque ela quer dizer reunião. Mas ela quer dizer reunião de uma forma específica, de uma forma escalonada. Por isso que você fala em sistema planetário, você está pensando numa ordem, numa ordem escalar. Você fala em sistema das cores, você está pensando numa ordem escalar, você fala em sistema dos modos musicais Aristóxeno, discípulo de Aristóteles - você está pensando numa ordenação, sistema das notas, sistema das cores, sistema planetário. A Ciência, a Epsteme, nasceu com essa palavra: Systema. Essa palavra nos iludiu, dando a idéia de que existia metafísica. Por quê? Porque eu pego a faixa frequencial [sic.] de um determinado plano de escalonamento e comparo com a outra faixa frequencial de outro plano de escalonamento e juro que, por analogia – analogia é uma filosofia de sistema – eu entendi [...] (RIZEK, 2003).

6

Expressão do poeta místico San Juan de la Cruz.

72

A principal ilusão dada pela chamada analogia de sistemas foi o da entificação do ser como questão, ou seja, a entificação dessa questão é a fonte de seu próprio esquecimento. Na medida em que há uma teorização do sistema tonal, por exemplo, é porque este, de uma certa forma, não é mais válido na época da sistematização. O mesmo não ocorreria em relação ao jazz atual? Qual é o tema, não as variações, qual é o tema da metafísica? O esquecimento do ser. Através do quê? Através da entificação [sic.] do ser como questão. Entificou o ser como questão: você está fazendo uma variação do tema, o tema é o esquecimento do ser. Mas a entificação do ser, de certa forma, está na busca de não esquecer o ser? Sim, só que esta busca antecipa o buscado perigosamente, porque toda busca antecipa o buscado perigosamente e te indispõe para o buscado. (RIZEK, 2003)

Também aqui acontece uma espécie de “psicologização” de um conceito filosófico. Num primeiro momento o problema está na antecipação da busca do ser; em um segundo momento está um diagnóstico da contemporaneidade e da sociedade atual, antecipando perigosamente os objetos de consumo, criando o desejo a partir de necessidades inexistentes. É importante notar que Rizek mantinha uma abordagem viva em relação aos autores que gostava, como se estivessem vivos ao seu lado, sejam músicos ou filósofos. Amor não é mais um sentimento, emoção não é mais um sentimento, espanto não é mais um sentimento. Anaximandro de Mileto não foi mais um ‘cara’ que escreveu uma frase por causa de uma cosmovisão que na qual ele estava inserido porque se foi nós estamos perdidos. Anaximandro escreveu a sua sentença antes da cosmovisão, antes das visões de mundo, porque se foi mais uma visão do mundo de um grego do séc. VI antes de cristo nós estamos... [gesto obsceno] (RIZEK, 2003).

Dentro desse contexto, uma pessoa formada em Filosofia, Psicologia, História poderia objetar diversas abordagens de Rizek sobre suas áreas específicas. Entretanto, a meu ver, o que é mais relevante não é o fato dele ter ou não se mantido fiel a tais autores mas, sobretudo, a leitura que foi capaz de realizar a partir dos mesmos. Parafraseando o filósofo Benedito Nunes, poderíamos pensar no Platão de Rizek, no Heidegger de Rizek e assim por diante, principalmente porque ele projetava os conceitos no cotidiano e tratava tais autores como vivos. Por fim, voltando à questão da obra-de-arte, vemos que não se trata de uma concepção puramente artística baseada no empirismo da inspiração, nem na negação do elemento racional. Trata-se, sobretudo, da saturação da racionalidade. Portanto, seria necessário, segundo Rizek, percorrer todas as possibilidades lógicas de um determinado tópico para, num ato único, executar o

73

trabalho. Assim, a arte apontaria sempre para um elemento supra-racional e não para o irracional, da mesma maneira que, a partir do diagnóstico dado pela citada “Filosofia Perene”, o homem deveria ir em direção ao supra-consciente e não ao inconsciente. E esse esforço é o esforço supremo de tornar-se disponível, ou seja, de não fazer esforço. Só que não adianta, não tem atalho. Você precisa de todo o esforço do mundo para fazer o esforço de não fazer esforço. Você precisa ter peregrinado todo esforço do mundo, você precisa ter saturado o sistema. A liberdade acontece quando você satura o sistema é sobre-técnica, não é nem para-técnica nem infra-técnica, é sobre-técnica.(...) A arte quer fazer uma dobra sobre a dobra, ela quer ocultar o seu ser apetrecho. Um sapato não quer ocultar o seu ser apetrecho, quer mostrar exatamente o que ele é: um ser apetrecho. Um sapato quer mostrar-se sapato, ou seja, algo artificial. Arte-ficial, artificial quer dizer: feito do homem para o homem, isto é que é techne. Na medida em que, tecnicamente, a arte quer ultrapassar o domínio técnico, ocultar o seu ser apetrecho, e não deixar o fruidor perceber que ela é artificial, ocultando a sua própria artificialidade e se mostrando como orgânica, se mostrando como viva, aqui nós estamos além de escalas, modos, etc., num domínio que seria impossível sem escalas, modos, etc., evidentemente. (RIZEK, 2003)

Concluindo, algumas meditações foram apresentadas nesse artigo, mas que, no entanto, não se pretende dizer que sejam parte de um todo coerente, muito embora tal coerência possa ser forjada pelo autor. Além disso, com as distâncias temporais entre uma citação e outra, sempre há mudanças, ainda que sutis de pensamentos e opiniões. Ainda que tais meditações possam não propriamente acadêmicas, a academia pode se debruçar sobre aqueles que passam à margem das principais correntes em voga. Nesse sentido o autor correu o risco de tomar uma posição. Se, claramente, Rizek toma uma posição gnóstica e de interpretação gnóstica dos autores estudados e preferidos por ele, parece que é exatamente nisso que consiste sua riqueza. Se a imaginação criativa atribui significados à música e a arte de uma maneira geral, Ricardo atribuiu seus significados aos autores e se esse fato for falacioso, que criações ilusórias maravilhosas nos debruçamos quando diante de criadores que, teimosamente, constroem fugas, prelúdios, filmes e artes atribuindo, criativamente, significados.

REFERÊNCIAS E OBRA CONSULTADAS ARASTEH, A. Reza. Rumi, El Sufi, El Persa. Trad. Alejandro Colina. Barcelona: Paidós Orientalia, 1977. BURCKHARDT, Titus. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente: Princípios e Métodos. São Paulo: Attar Editorial, 2004.

74

__________________. A Arte del Islam. Barcelona: Ediciones de la Tradición Unánime, 1988. CORBIN, Henry. Creative Imaginationin the Sufismo f Ibn ‘Arabi. Trad.: Ralph Manhein. Princeton: Princeton University Press, 1981. EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno. Trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. GUENON, René. O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos. Trad. Vitor de Oliveira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia de Sá Cavalcanti Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001 RIZEK, Ricardo. A Teoria da Harmonia em Platão. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ECA-USP, 2003. _____________. Quadrados Mágicos e Música. Polifonia. São Paulo, Vol. I, No 1, p. 19-32, 1997. _____________. Transcrição da Análise do Filme “Blade Runner”. São Paulo, 1988. _____________. Transcrição de Aula de Estética. São Paulo, 1991. _____________. Transcrição de Aula de Estética. São Paulo, 2003. _____________. “Prefácio”. SANTOS, Mário Ferreira dos. Pitágoras e o Tema do Número. SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia Concreta. São Paulo: Logos, 1959.

75

MONTEVERDI, 1638: ÉTHOS, PÁTHOS E O PÍRRICO COMO TÓPOS RÍTMICO NA CRIAÇÃO DO STILE CONCITATO

Vicente Casanova de Almeida [email protected]

USP – Universidade de São Paulo / PPGMUS ECA – Escola de Comunicações e Artes FAPESP – Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo

Resumo: O Oitavo Livro de Madrigais de 1638, do compositor Claudio Monteverdi (15671643) é uma obra laudatória dedicada ao Imperador Ferdinando III, da casa de Habsburgo. A obra, não obstante a pomposa dedicatória, porta consigo uma importante reflexão de Monteverdi sobre éthos, páthos e sobre o tópos rítmico que sustenta seu engenhoso artifício, o stile concitato. Objetiva-se neste artigo, portanto, revelar que das opiniões válidas e aceitas das autoridades antigas, ou endoxon, seu argumento é endereçado ética e pateticamente à música, especialmente a um tópos rítmico de especial relevo: a oposição entre o pé pírrico e o espondaico. Para tal, faremos uma incursão por dentre os argumentos de autoridades antigas, as quais, da mesma forma, são amplamente acessadas e transparecem nos principais discursos sobre música no período de ação do compositor, os séculos XVI e XVII. Palavras-chave: Monteverdi. Éthos. Páthos. Stile Concitato.

O OITAVO LIVRO DE MADRIGAIS DE 1638 E SEU PREFÁCIO Publicado em 1638, O Oitavo livro de Madrigais de Claudio Monteverdi (1567-1643) foi dedicado a Ferdinando III, Imperador do Sacro Império RomanoGermânico. A casa de Habsburgo, conforme Chew (1993, p.154), comissionou o processo de produção e publicação da coleção de madrigais. A dedicatória de Monteverdi revela, entretanto, que o compositor empreendeu uma alteração de última hora para ajustar o livro e ofertá-lo à Ferdinando III: Apresento aos pés de Vossa Majestade, como ao Nume tutelar da Virtude, estas minhas composições Musicais. FERDINANDO, o grande genitor de Vossa Majestade, dignando-se por sua inata bondade permitir de agradá-lo e honrá-lo com esta obra, concedeume quase um oficial passaporte para confiá-la à impressão. E aqui audaciosamente eu publico-as, consagrando-as ao reverendíssimo nome de Vossa Majestade […] (MONTEVERDI, apud DE' PAOLI; BIANCHI, 1973, p.416, tradução nossa)

O trecho em questão informa-nos que a coleção de madrigais seria, na verdade, dedicada a Ferdinando II, pai de Ferdinando III, porém, com a morte do primeiro e a coroação do segundo em 1637, Monteverdi altera a dedicatória para adequar sua oferta ao novo dirigente titular do Ocidente. O teor encomiástico da

76

coleção não manifesta-se apenas na dedicatória, pois o compositor altera deliberadamente trechos dos textos dos madrigais neste sentido, como aponta Fabbri: [O madrigal] 'Altri Canti d'Amor, tenero arciero' alude em geral a um 'gran Fernando' [grande imperador Fernando], enquanto que o próprio imperador Ferdinando III – 'sempre invito' [sempre invicto] e 're novo del romano impero' [novo rei do império romano] – recebe específica menção no madrigal 'Ogni amante è guerrier', nel suo gran regno' (especialmente na segunda parte, 'Io che nel otio naqcui e d'otio vissi...') e no ballo 'Volgendo il ciel per immortal sentiero', ambos textos de Rinuccini compostos no início do século dezessete e dedicados ao rei francês, Henrique IV, o qual foi propriamente adaptado por Monteverdi ao novo destinatário. (FABBRI, 2006, p.238, tradução nossa)

As alterações empreendidas por Monteverdi também alcançam o Ballo delle Ingrate, de 1608, atualizado pelo compositor no Oitavo Livro de Madrigais, conforme o decoro de ocasião. Fabbri (2006, p.239) aponta para os locais do texto que foram modificados, segundo ele, pela própria mão de Monteverdi, como na passagem “Donne che di beltade / tolgono a l'alba in ciel la gloria e l'vanto, / là ne la nobil Manto” (Senhoras, que em sua beleza recebem a glória e o prêmio de um alvorecer no céu, lá, na nobre Mântua) por “Done, che di beltate e di valore / tolgono alle più degne il nome altero / là nel Germano impero (Senhoras, que em toda sua beleza e valor / recebem o orgulhoso nome de todos os méritos de valores / lá, no império Germânico). Também a passagem “Vegga sul' Mincio ogn'anima superba” (Veja sobre o Mincio os espíritos altivos) por “Vegga sul' Istro ogni anima superba” (Veja sobre o Istro os espíritos altivos). Mincio, ordinariamente é o rio pertencente à região da Lombardia, em Mântua. O rio Istro no lugar do Mincio (antigo nome trácio do rio Danúbio), por sua vez, é utilizado para os objetivos laudatórios de Monteverdi para a ocasião de coroação. A estrutura do livro é bipartida: a prima pars revela os “Madrigali Guerrieri”, cujo tópos remonta à batalha do amans pugnator elegíaco liderado pelo Eros guerreiro primordial. A seconda pars, os “Madrigali Amorosi”, por sua vez, tem caráter “anterótico” (pelo aparecimento de Anteros, deus ultor de Eros), cujo teor poético dos madrigais revela o aspecto vingativo do deus que pune as “alme ingrate” (almas ingratas), aquelas que, no florescer da juventude, não cederam aos mortais ataques das hostes de Eros. Com um discurso fortemente elegíaco, frequentemente transparecem referências importantes à obra de Ovídio, Propércio, e aos elegíacos romanos, bem como o aspecto de Eros e Anteros também vem sublinhado conforme as tópicas filosóficas encontradas em Pausânias, na Periegésis, no Fedro de Platão, em Cláudio Eliano, no De Natura Animalium, ou ainda no De Natura Deorum de Cícero, na Dionisíaca, de Nono de Panópolis, ou na Fedra, de Sêneca.

77

Entretanto, a coleção de madrigais de 1638 destaca-se pungentemente por conter um prefácio onde encontramos a reflexão de Monteverdi sobre éthos, páthos e sobre o tópos rítmico que referencia a oposição entre o pé pírrico e o espondaico também conforme tópicas na filosofia, especialmente advindas da parte especulativa dos trabalhos de música de autoridades antigas, cuja endóxa, a seu turno, foi acessada amplamente nos séculos XVI e XVII. Começaremos, portanto, apresentando o elenco de autoridades e opiniões válidas e aceitas que desde a antiguidade contribuíram para formar, aos poucos, o lugar-comum (do latim loci, ou do grego tópos) acessado por Monteverdi pela via dos discursos humanistas sobre música no seu período de produção musical. ÉTHOS E PÁTHOS EM MÚSICA COMO TÓPOS NA FILOSOFIA ANTIGA O prefácio de Monteverdi ao Oitavo Livro de Madrigais de 1638 revela que o compositor, em sua tarefa discursiva, elege a opinião válida e amplamente aceita das melhores autoridades sobre o tema de que trata, como endóxa partilhada entre os humanistas do seu período de ação, o século XVI e XVII. Observaremos, a seguir, o conteúdo prefacial, onde, numa primeira leitura, já despontam aos olhos os tópoi ou loci, como písteis technoi (ou provas artísticas) utilizadas como sedimentação conceitual para suas justificativas composicionais, apoiadas na endóxa de autoridades antigas: Tenho refletido que as principais paixões ou afecções de nosso ânimo são três, a saber, a ira, a moderação e a humildade ou súplica; deste modo os melhores filósofos declaram, e a própria natureza na nossa voz assim indica, tendo os registros grave, médio e agudo. A arte da música aponta claramente para estes três termos “agitado”, “mole (brando)” e “temperado”. Em todos os exemplos de compositores precedentes eu encontrei apenas exemplos do “mole” ou do “temperado” na suas músicas, mas nunca do “agitado”, um gênero todavia descrito por Platão no terceiro livro de sua Retórica nestas palavras: “Tome aquela harmonia que deveria convenientemente imitar as pronunciações e os acentos de um bravo homem que está engajado numa guerra”. E a partir disto estando eu consciente que são os contrários que com grandeza movem nossa alma, e que este é o propósito que toda boa música deveria possuir – como Boécio afirma, dizendo: A Música está ligada a nós, e tanto enobrece como corrompe o caráter – por esta razão eu tenho me aplicado com não pouca diligência e fadiga para redescobrir este gênero. Após refletir que no metro pírrico o tempo é rápido e, de acordo com os melhores filósofos, usava saltos agitados e marciais, e que no espondaico o tempo é lento e oposto àquele, comecei, portanto, a considerar a semibreve [figura da semibreve], que soada uma vez propus que deveria corresponder a um golpe da mensuração espondaica; quando esta foi dividida entre dezesseis semicrome [figura da semicolcheia] e, rebatidas uma após a outra

78

e combinadas com palavras que expressam ira e desdém, reconheci nesta breve amostra uma semelhança com o afeto que procurei, embora as palavras não sigam na sua própria mensuração a rapidez do instrumento. Para obter uma melhor prova, tomei o divino Tasso, como o poeta que expressa com grande propriedade e naturalidade as qualidades que ele deseja descrever, e selecionei sua descrição do combate de Tancredo e Clorinda, que me deu duas paixões contrárias para colocar em música, guerra – ou seja, súplica, e morte. No ano de 1624 esta obra foi ouvida pelos melhores cidadãos da nobre cidade de Veneza num nobre salão de meu próprio patrão e especial protetor Senhor Girolamo Mocenigo, um proeminente cavaleiro e um dentre os comandantes da Sereníssima República; ela foi recebida com muito aplauso e prazer. Depois do aparente sucesso da minha tentativa de descrever a ira, procedi com grande zelo numa mais profunda investigação e compus outros trabalhos desta mesma estirpe, tanto eclesiásticos como de performance de câmara. Além disso, este gênero encontrou tal honra entre os compositores de música que eles não apenas o elogiaram verbalmente, mas, para meu prazer e honra, eles demonstraram seus elogios escrevendo obras em imitação à minha. Por esta razão cogitei ser melhor tornar conhecido o fato de que a investigação e o primeiro ensaio neste gênero, tão necessário à arte da música, veio de mim. Isso pode ser dito com razão que até o presente a música tem sido imperfeita , tendo tido apenas dois genera - “mole” e “temperado”. Primeiramente, aos músicos, isso pareceu, especialmente entre aqueles que eram chamados a tocar o basso continuo, mais ridículo do que louvável em martelar numa mesma corda dezesseis tempos no mesmo tactus, e então eles reduziram esta multiplicidade de golpes a uma batida apenas por tactus, onde veio a soar o espondaico ao invés do pé pírrico, destruindo a semelhança com a fala agitada. Tome conhecimento, portanto, que o baixo continuo deve ser tocado, juntamente com suas partes de acompanhamento, da forma e na maneira em que este gênero foi escrito. Similarmente, tu encontrarás todas outras direções necessárias para a performance de outras composições em outros gêneros distintos. Para as variadas maneiras de performance deves tomar conhecimento de três coisas: texto, harmonia e ritmo. Minha descoberta desse gênero guerreiro me deu ocasião para escrever certos madrigais os quais intitulei guerrieri. E, a partir de que a música executada diante de tão grandes príncipes nas suas cortes para agradar seus delicados gostos constitui três tipos, de acordo com determinado método de performance - música teatral, música de câmara e música de dança – assim indiquei, portanto, minhas obras do meu presente trabalho com os títulos

guerriera, amorosa e rappresentativa.

Sei que esta obra será imperfeita, pois detenho ainda pouca habilidade, particularmente, no gênero guerriero, porque ele é novo e omne principium est debile (todo começo é débil). Eu, portanto, rogo ao meu benevolente leitor aceitar minha boa

79

intenção, o qual irá esperar da sua instruída pena uma grande perfeição no dito gênero, porque invenis facile est adere (é fácil aderir às invenções). Adeus. (MONTEVERDI apud BIANCHI e DE'PAOLI, 1973, p.416-17,18, tradução nossa)

Primeiramente, devemos entender a “reflexão” inicial de Monteverdi como sendo a tarefa inicial de um orador na busca pela sedimentação discursiva, pois ele lança mão dos tópoi ou loci, de onde retira toda a argumentação probatória e as suas justificativas composicionais. Deve-se entender esta “reflexão” estruturalmente como uma referência à inventio (do latim achar, encontrar), ou seja, o momento em que o orador principiou a tarefa de busca de argumentos válidos e aceitos em autoridades sobre o assunto do qual trata, como forma de validação e credibilidade se seu próprio discurso. Hansen (2012, p.160-1) lembra que os tópoi ou loci são coleções de endóxas como opiniões partilhadas das melhores autoridades. Constituem provas técnicas ou artísticas (por isso, písteis technoi) - conforme o argumento retórico aristotélico - nas quais o engenho do orador faz-se necessário para cumprir com um de seus deveres: o de provar que a causa defendida é verdadeira (CÍCERO, 2002 p.254). Sobre a distinção entre as provas dependentes ou não da ars (arte como tekhné), Cícero esclarece: Na fase probatória se apresenta ao orador uma dupla tarefa: a primeira afeta àquelas coisas que não dependem do talento do orador [písteis átechnoi; probationes extra artem], pois, por serem objetivas, se tratam de um modo regulamentado, como documentos, declarações de testemunhas, pactos, acordos, interrogatórios, leis, consulta ao Senado, jurisprudência, decretos, informes de juristas e coisas semelhantes, as quais não são produzidas pelo orador, pois ao orador estas coisas se apresentam da própria causa; a segunda tarefa é a que se situa em sua totalidade na análise e argumentação do próprio orador [písteis technoi]: e assim como na primeira tarefa há de se pensar como tratar o que se argui, nesta última, por sua vez, há de se pensar em como encontrar argumentos novos. (CÍCERO, 2002, p.255, tradução nossa)

Monteverdi parte exatamente destas písteis technoi. Parte dos argumentos de tópicas especulativas da filosofia, especialmente dos tratados antigos de harmônica, como o de Aristoxenus (sede amplamente acessada) encontrados em seus contemporâneos como Mei e Doni, os quais igualmente agenciam os elementos tripartidos concernentes ao éthos e páthos das doutrinas musicais antigas, respectivamente, os caracteres morais e os afetos da alma humana. Diante da já referida tarefa probatória, a “[...] ira, a moderação, a humildade ou súplica” (MONTEVERDI, apud BIANCHI; DE'PAOLI, 1973, p.416) são os três elementos do páthos tratados pelo compositor como sedimento inicial. No que diz respeito às diretivas performáticas, Monteverdi irá situar seus apontamentos

80

justamente sobre a chave patética da ira, apoiado na autoridade de Platão, na República, sobre o excerto que referencia as proelium voces, ou vozes guerreiras. Da sede mais antiga à mais próxima cronologicamente de Monteverdi temos variados argumentos referentes ao éthos e páthos em sua morfologia tripartida em estrita relação com a música. Estas, a seu turno, embasam suas diretivas performáticas. Tencionamos agora, portanto, revelar estas sedes ou coleções de endóxas onde encontramos o fundo filosófico do argumento monteverdiano. Damon de Oa (século V.a.C.), filósofo conselheiro de Péricles, aponta para a atuação da música na moral referindo-se aos caracteres (ou éthe) viciosos ou virtuosos, motivo pelo qual esta matéria incide pungentemente na educação (paideia) (LIPPMAN, 1964; WALLACE, 2004; PANTI, 2008). Segundo Lippman: [Damon] era a autoridade principal no campo específico dos efeitos morais da música, mantendo o argumento de que havia uma indissolúvel conexão entre a música e a sociedade, pois mudanças no caráter da música implicariam igualmente mudanças legais. A tese de seu argumento é que o guardião da boa lei e da boa ordem deveria compartilhar a função expressa no Aeropagus, o mais velho e mais distinto tribunal ateniense, e que estas funções deveriam ser licenciadas pela música, a qual afetando a alma humana, poderia igualmente afetar a alma do Estado – suas leis e sua constituição política. (LIPPMAN, 1964, p.69, tradução nossa).

Platão, por sua vez, na República, sanciona o modo Frígio e o Dório, o primeiro ao guerreiro, protetor da pólis, e o segundo ao filósofo e aos dirigentes do Estado, por vincularem caracteres de bravura e coragem, e, respectivamente, de moderação e equilíbrio (PLATÃO, 1988): Sócrates: Quais são então as harmonias lamentosas? Diz-me, já que és músico. Glauco: A Lídia mista, a Lídia tensa, e outras similares. […] - E quais harmonias são moles, aptas para os bebedores? - Algumas harmonias Jônias e Lídias, que são consideradas relaxantes. - E poderiam ser empregadas para guerreiros? - De nenhum modo, para eles, nada mais que a Dória ou a Frígia. […] As harmonias, portanto, que devemos sancionar são aquelas que melhor poderão imitar as vozes dos infortunados e dos afortunados, dos moderados e dos valentes. (PLATÃO, 1988, p.170, tradução nossa)

Aristóteles, na Política, corrobora Platão acerca dos caracteres morais, ou éthe, e do movimento dos páthe, ou afetos, na alma humana. Estes, por sua vez, são proporcionados pelo potencial mimético da música (ARISTÓTELES 2000; ARISTÓTELES 2005; FORD, 2004); É nos ritmos e nas melodias onde encontramos as imitações mais perfeitas da verdadeira natureza da vida e da mansidão, da

81

fortaleza e da temperança, assim como de seus contrários e de todas as demais disposições morais (a experiência assim demonstra, já que nosso estado de ânimo modifica-se quando os escutamos). A aflição e o deleite que experimentamos mediante imitações estão muito próximas da verdade desses mesmos sentimentos. (ARISTÓTELES, 2005, p.158, tradução nossa)

Complementa Ford: Em linhas gerais Aristóteles argumenta que (a) desde que a música pode diretamente dispor nossas almas a certos estados emocionais dolorosos e a outros prazerosos, e (b) desde que a virtude consiste em sentir prazer ou repulsa sobre corretas ações e caracteres, então (c) o uso seletivo da música na educação elementar pode ajudar a habituar as crianças e jovens às atitudes emocionais corretas, as quais os guiarão para a formação ajuizada do caráter refletindo numa vida realmente virtuosa. (FORD 2004, p.319, tradução nossa)

Arixtoxenus fornece o conhecimento da variabilidade da voz diastemática, aquela que caminha de modo intervalar, portanto, é música, e não voz contínua, ou falada. A voz diastemática apresenta a morfologia tripartida conforme o acréscimo ou decréscimo de tensão, em voz baixa, média e alta, as quais endereçam-se ao plano ético e patético igualmente, no argumento das doutrinas musicais antigas, pois vinculam éthe e movimentam páthe distintos na alma (ARISTOXENUS, 1902; GUSMÃO, 2010). Partindo aos apontamentos de Ptolomeu, filósofo e astrônomo, observamos em sua Harmônica a tópica referente à atuação da música no plano ético e patético, onde um ritmo animado acrescido de uma melodia em tons agudos naturalmente endereça-se à concitação anímica, devido ao acréscimo de tensão. Do contrário, um ritmo lento junto a melodias em tons graves provoca um páthos de lamento e tristeza, devido ao decréscimo de tensão (PTOLOMEU apud GODWIN, 1993): Da mesma maneira nós podemos agora comparar as mudanças (modulações e transposições) do sistema tonal com as mudanças ou movimentos da alma humana durante as vicissitudes da vida. […] Circunstâncias pacíficas convertem as almas dos cidadãos à constância e equidade; a guerra, por outro lado desperta a coragem e a autoconsciência; o perigo e a fome provocam que poupemos e que sejamos autossuficientes, mas a abundância e o excesso conduzem à licenciosidade e à glutonaria, e assim por diante. Um efeito similar é mostrado através das modulações melódicas. Um único e repetido compasso suscita uma expressão animada nos modos agudos, mas um compasso desanimado, por sua vez, igualmente assim o faz nos graves, porque um âmbito agudo causa tensão na alma, enquanto tons graves levam-na a relaxar. (PTOLOMEU apud GODWIN, 1993, p.28, tradução nossa).

82

[...] a alma, por assim dizer, reconhece a afinidade entre as relações harmônicas e sua própria condição; ela é moldada por movimentos peculiares de certas expressões melódicas, e mergulha imediatamente no prazer e na diversão, na simpatia e humildade, entre outros. A alma pode ser levada ao repouso, ou então estimulada novamente ao despertar. Algumas vezes ela afunda em conforto e relaxamento, ou então é inflamada em paixão e entusiasmo. Tudo isso é possibilitado pela melodia pois ela detém a capacidade de modular de uma direção à outra, enquanto a alma é simultaneamente deslocada às condições apropriadas pela ressonância interna existente entre ela e a música. (PTOLOMEU apud GODWIN, 1993, p.28-9, tradução nossa, grifo nosso).

Cleonides, na Introdução Harmônica, aponta para a doutrina do éthos em música na forma tripartida do tópos grego, como éthos diastáltico (que manifesta feitos heroicos, bravura, ira e coragem), o hesicástico (que manifesta a quietude da alma e um estado pacífico e equilibrado) e, por último, o sistáltico (que manifesta o desânimo, a tristeza, a moleza e todas condições passivas). Para cada um deles ajustam-se distintos cânticos, hinos, e demais formas de música (CLEONIDES, apud STRUNK, 1998; SOLOMON, 1981): A modulação pela composição mélica se apresenta sempre que houver uma modulação do éthos diastáltico para o sistáltico, ou deste para o hesicástico, ou deste último para qualquer um dos outros éthe. O éthos diastáltico é aquele que na composição mélica revela feitos heroicos, a grandeza de uma alma viril, e um afeto aparentado a estas disposições. É mais utilizado na tragédia e em outros gêneros que tangenciam estes caracteres. O sistáltico é o éthos através do qual a alma é colocada em desânimo, tristeza e numa condição efeminada. Tal estado irá se ajustar com os afetos eróticos, lamentações, expressões de piedade, e coisas semelhantes a isso. O hesicástico, por sua vez, é o éthos da composição mélica que é acompanhado pela quietude da alma e um estado livre e pacífico. Para tal ajustam-se hinos, cânticos, encômios, conselhos, e coisas similares a isso. (CLEONIDES apud STRUNK, 1998, p.46, tradução nossa, grifo nosso.)

Aristides Quintilianus, em seu Perì Musikês (Sobre a Música) aponta para a mesma tripartição tópica referida por nós em Cleonides, e faz a correspondência da doutrina do éthos com a do páthos em música, pois o referido ternário opera também no tratamento das paixões, motivo pelo qual ele refere-se à aplicação da música como fundamental na paideia (QUINTILIANUS, apud STRUNK, 1998); A composição mélica difere de qualquer outra: em genus, como enarmônico, cromático, diatônico; em escala, como hypathoid, mesoid, netoid; em tonos, como Dórico, Frígio; em modo nômico ou ditirâmbico; no ethos, como falamos do sistáltico, através do qual movemos as paixões dolorosas, o diastáltico, através do qual nós

83

acordamos o espírito, e o medial, através do qual nós colocamos a alma próxima à quietude. Estes são chamados éthos [éthe] desde que os estados da alma foram primeiramente observados e dispostos através deles. Mas não só por eles, pois eles trabalham conjuntamente como parte no tratamento das paixões [páthos], e o melos desta forma era perfeito, pois incessantemente nele aplicavam a paideia.” (QUINTILIANUS apud STRUNK, 1998, pg. 66-7, tradução nossa, grifo nosso)

Boécio, a seu turno, é citado diretamente por Monteverdi no prefácio pelo argumento de que a música tanto enobrece quanto corrompe o caráter, por isso endereça-se também eticamente (BOÉCIO, 2009; MONTEVERDI, apud BIANCHI; DE'PAOLI, 1973); Baldassare Castiglione, já no século XVI, retoma toda esta sedimentação discursiva em seu “Il Cortegiano”, acessando Aristóteles e Platão sobre a incidência da música na moral, por sua potencialidade mimética (CASTIGLIONE, 1998): E lembro que aprendi de Platão e Aristóteles que estes consideram que um homem que é bem educado, compulsoriamente também é músico; e declaram por infinitas razões a força da música constituir em nós grande propósito, e por inúmeras causas (que seriam muito longas para enumerar) deve necessariamente ser aprendida na infância, não apenas das melodias superficiais que agora são ouvidas, mas este aprendizado deve ser suficiente para trazer-nos um novo bom hábito e uma singular inclinação à virtude, que torna a mente mais apta a conceber a felicidade, tal como os exercícios físicos tornam o corpo mais vigoroso […]. (CASTIGLIONE, 1998, p.327, tradução nossa)

Paolo Cortesi, no “De Cardinalatu”, agencia o tópos antigo sobre éthos e páthos e o endereça à arte da música pela atuação na moral e no movimento dos afetos (CORTESI, apud STRUNK, 1998): A Música deve ser investigada por causa da moral, na medida em que o hábito de proceder julgamento sobre as coisas que são similares à moral na sua base de raciocínio não pode ser considerada diferente do hábito de proceder julgamento sobre as bases da moral em si mesma, e em tornar-se especialista neste julgamento que referimos através do uso da imitação [mímesis]. Também, desde que os modos melodiosos da música parecem imitar todos os hábitos da moral e todos os movimentos das paixões, não há dúvida que ser entretido por uma combinação temperada de modos deve significar, da mesma forma, adquirir o hábito de julgar sobre as bases racionais da moral. Isto pode ser também provado, porquanto é evidente que todos os hábitos e movimentos da alma são encontrados na natureza dos modos, e nesta natureza a similaridade com a fortaleza, com a temperança, ou com a raiva, ou com a brandura é exibida, e pode ser facilmente

84

observado e julgado que a mente dos homens é frequentemente disposta àqueles movimentos da alma exatamente como são excitados pela ação dos modos. Nem pode haver qualquer dúvida de que as coisas que se assemelham umas às outras são forçadas a serem assim, de fato, pela própria proximidade de suas afinidades. (CORTESI apud STRUNK, 1998, p.318, tradução nossa)

Alessandro Piccolomini, da mesma forma, retoma aquelas doutrinas antigas aqui referidas, sancionando a música pela mímese de vícios ou virtudes e sua incidência evidente na educação, e, por último, pelo poder catártico de atuação sobre as paixões (PICCOLOMINI, 1543); [...] a Música oferece grandíssimo ornamento aos costumes e igual benefício à disposições de ânimo, a respeito das operações virtuosas. Desta forma, pelo uso da Música se dispõe e transmuta o ânimo a diversos afetos, como a Ira, o Amor, a Piedade, a Mansuetude, e similares, e consequentemente à diversas virtudes, as quais em torno de tais afetos consistem.” (PICCOLOMINI, 1543, p. 60, tradução nossa, grifo nosso) E se alguém dissesse que, comovendo-se pela Música os afetos de nosso apetite, poderia tal comovimento tanto prejudicar como beneficiar, excitando o desejo, a esperança, a ira, o temor, e similares, também para aquelas coisas que não são convenientes, respondo conceitos musicais são encontrados os mais variados, dos quais alguns à piedade, outros à mansuetude, outros à fortaleza e outros a outras operações induzem aqueles que os escutam, como segundo os Gregos eram as harmonias lídias aos Lídios, a Hipolídia, a Dória, e similares da mesma forma, onde se faz mister que as crianças nelas se exercitem e que à diversas operações virtuosas sejam convidados e inflamados [...] (PICCOLOMINI, 1543, p.61)

Girolamo Mei, cujo argumento é muito próximo ao de Monteverdi, retoma o tópos da voz diastemática grega ligando-a ao éthos e páthos, já na forma tripartida que encontramos no prefácio de Monteverdi (MEI, 1602; MEI, apud STRUNK, 1998): [...] sendo distintas as variadas qualidades da voz, cada uma delas deve ser apropriada ao expressar o afeto de determinados estados, e cada um destes, além disso, deve facilmente expressar sua própria afecção, mas não qualquer outra afecção que não lhe pertença. Deste modo, a voz aguda não poderia adequadamente expressar afetos da voz intermediária e muito menos aqueles da voz grave, nem a intermediária poderia expressar qualquer afeto da voz aguda ou da grave, por sua vez. Antes, a qualidade de uma obrigatoriamente impede a operação de outra, as duas sendo opostas. (MEI apud STRUNK, 1998, p. 486, tradução nossa) […] a voz média, entre a velocidade e a morosidade, mostra um ânimo repousado; a velocidade, um ânimo excitado [exaltado] e a morosidade um ânimo lento e preguiçoso; e é claro que todas estas

85

qualidades, portanto, do número e da harmonia, tem por própria natureza a faculdade de de mover afetos semelhantes a cada uma. Onde os tons muito altos e os muito graves foram por Platão refutados na sua República, os muito agudos por serem lamentosos e os muito graves, lúgubres; e somente concebia aqueles sons médios, assim como foi feito com relação aos números e aos ritmos. (MEI, 1602, p.4, tradução nossa)

Giovanni Battista Doni, no Compendio de 1635, por fim, revela detalhadamente dos elementos da tripartição da voz diastemática grega a morfologia ternária ética e patética, em semelhante formato acessado por Monteverdi em 1638 (DONI, 1635): [...] segundo os autores Gregos, a música se apresenta de três maneiras: a primeira, que não induz a algum afeto desordenado na alma, ou a alguma perturbação veemente, mas, pelo contrário, somente deleita agradavelmente o ânimo, induzindo uma moderada alegria, alegrando a mente com pensamentos sérios e tranquilos, nominavam esta disposição como Hesicástica, que significa aquietar. A segunda, que gera uma viva alegria e júbilo, que chamava-se Diastáltica, significava alargar (onde diástole se diz do dilatamento do coração e das artérias), porque nesta sorte de afetos parece que se alarga em certo modo o coração. E a terceira é a Sistáltica, a qual veicula os infortúnios, o temor, a languidez, e similares afetos femininos. Significa comprimir ou restringir, onde sístole se diz da compressão ou restrição das artérias e do coração. Porque estas paixões parecem que comprimem o peito e o ânimo. E cada uma destas predomina em um dos três principais modos: a Hesicástica no Dório, a Diastáltica no Frígio, e a Sistáltica no Lídio. Então, aquele que deseja que a música torne-se eficaz, há de procurar que estas qualidades operem não só nas modulações vocais, mas também operem e façam-se sentir nas instrumentais. (DONI, 1635, p.54, tradução nossa)

Todo este sedimento argumentativo inicial, como písteis technoi, além de seu funcionamento como elemento probatório, auxilia nas justificativas das diretivas performáticas na sequência argumentativa do prefácio. O PÉ PÍRRICO COMO TÓPOS RÍTMICO Pírrico e espondaico pertencem a um tópos rítmico amplamente acessado, sendo o primeiro onde repousa o cerne do stile concitato, na chave ética diastáltica (SOLOMON, 1981) e na chave patética concitata (a concitação anímica). No espondaico, entretanto, temos o oposto, a chave ética sistáltica e a chave patética “molle”, conforme a própria indicação do compositor. Tendo em vista a operação dos contrários, a qual se refere logo de início nas sentenças prefaciais, Monteverdi irá operar no nível da partitura alternando entre pírrico e

86

espondaico, entre éthos diastáltico e sistáltico e entre afetos exaltados ou brandos. Convém frisar que o procedimento do compositor não é o de transportar o pírrico e espondaico da prosódia grego-latina diretamente à constituição rítmica de sua música. O argumento rítmico de Monteverdi no prefácio é um tópos, uma coleção de argumentos partilhados e utilizados como recurso probatório, de encarecimento de sua criação inaudita, o stile concitato. Pertence ao discurso, por estar escrevendo em chave epidíctica (ou seja, no gênero retórico demonstrativo, como remete-nos Aristóteles, Cícero, Quintilianus e o anônimo ad Herenium, onde pode-se louvar - "laus" - ou censurar - "vituperium" algo ou alguém. Neste caso, Monteverdi louva seu próprio engenho composicional). Os músicos, segundo o compositor, ignoravam o rebatimento de dezesseis semicolcheias como similitude ao pírrico e às vozes concitadas almejadas no seu stile concitato, efetuando o espondaico, ou seja, um ritmo mais lento erradamente. Seu último apontamento, contudo, revela que todas suas diretivas performáticas estão sedimentadas no tópos especulativo ético (éthos) e patético (páthos) das doutrinas antigas, como vimos no capítulo anterior, e no tópos rítmico que remete à oposição entre pírrico e espondaico. Nos seus apontamentos de performance dos madrigali guerrieri, lembra ao músico que não deve prescindir de observar sempre a tríade apoiada em Platão (República) que norteou todo o aparato conceitual da seconda prattica: texto, harmonia e ritmo. Explica, no eclipsar de suas sentenças, que seu engenhoso stile concitato deve ser executado tal como a partitura revela, através do rebatimento constante e veloz sobre determinados acordes que também apresentam-se em função do caráter guerreiro e concitado defendido no seu discurso. Monteverdi endereça, portanto, espondaico e pírrico como tópos rítmico na abordagem do gênero guerreiro. Mais uma vez, o fundo filosófico é Platão, onde o argumento de Damon, como demonstramos, pode ser observado. Sua doutrina associava, segundo Gentili, “[...] o discurso sobre os metros e sobre os ritmos musicais com o campo de seus efeitos e de sua função paidêutica […]” (GENTILI, 1988, p.6, tradução nossa). O pyrrhiche, neste sentido, conforme o revelador trabalho de Paola Ceccarelli, […] por causa de seu notável caráter guerreiro, detém um lugar especial como uma dança dentre as mais bem documentadas da Grécia” (CECCARELLI, 2004, p.91, tradução nossa), fato que é especial para entendermos a argumentação monteverdiana no prefácio. Cecarelli endereça o termo pírrico a Pyrrhichos, um Kouretes, ou seja, um dos espíritos que guardam o deus infante Zeus no monte Ida em Creta. A invenção do pírrico também pode estar relacionada a Pyrrhos/Neoptolemos, filho de Aquiles. Derivando de pyrrhikhê pode ser entendida como uma dança guerreira cuja performance ocorria diante da pira funerária, ou seja, no ritual de cremação dos guerreiros mortos em batalhas, em caráter laudatório de bravura e coragem.

87

O pírrico é por tal referência reconhecido como uma dança correlata ao fogo, do termo grego pyrá, onde o elemento pýr significa fogo ou chama. Segundo Cecarelli, “[...] o aspecto performático é central para a etiologia, a qual aponta para a relação nominal da dança em similaridade com a velocidade do movimento das chamas ou labaredas” (CECARELLI, 2004, p.92, tradução nossa). O termo ainda pode estar ligado ao nascimento de Atena, ou ainda, à sua vitória sobre os Gigantes. Estrabão, na Geografia, delimita o termo o pírrico como dança de guerra e dança de soldados. Nono de Panópolis, na Dionisíaca (13. 35 ff) endereça o termo a Pyrrhikhos, o mensageiro enviado por Reia para reunir um exército de rudes divindades para Dionísio (NONO, 1940, p.431). Segundo Nono, as divindades entoaram cantos selvagens e guerreiros que ecoaram pelas montanhas. Estes espíritos, os Korybantes, eram liderados por Pyrrhikhos, Idaios e Kyrbas. Já Pausânias, na Periegese, ou Descrição da Grécia (3. 25. 2), sublinha a derivação de pírrico de Pyrrhos como filho de Akhilleus, ou ainda como um dos deuses ou espíritos chamados Kouretes, os quais são denotados como selvagens e rudes, motivo pelo qual são associados a Pyrrhikhos pelo instinto guerreiro (PAUSÂNIAS, 1926, p.157-9). Pyrrkhikhê, e pyrrha são termos na língua grega associados à dança guerreira, circunscrita à imagem do fogo, das chamas ou labaredas em movimento frenético, do instinto guerreiro e da rusticidade envolvida na atividade bélica. Todos estes atributos podem ser encontrados no pírrico como dança ritual, nas festividades da Panathenaia ática, segundo Cecarelli (2004). Estas festividades englobavam jogos, competições diversas, ritos religiosos, cerimônias votivas e eventos culturais a partir de 556 a.C. Após a vitória de Atena na Gigantomaquia, a deusa dança o pírrico, e este ritual específico, conforme Ceccareli, fazia parte das festividades da Panathenaia: […] a vitória de Atena na Gigantomaquia é também uma das etiologias do festival de Panathenaia, que era um festival onde celebrava-se a vitória da ordem sobre o caos, da civilização sobre a selvageria. Portanto, o pírrico certamente foi um dos momentos mais importantes do festival de Panathenaia. (CECCARELLI, 2004, p.94, tradução nossa)

Cecarelli também informa que havia um jogo pírrico, cujas premiações diferenciavam-se dos demais jogos e cujo âmbito de ação era o panorama das danças corais gregas. Seus líderes intitulavam-se chorêgos e lideravam todas as atividades dos coros nas ocasiões de festividades e jogos. No festival de Apatouria também encontramos, segundo Cecarelli, referências ao pírrico. Menciona que no contexto deste festival eram celebrados os combates, como os de Archilocos e Eurypylos, findando com a morte de este último e com a dança pírrica do primeiro, que celebra a vitória (CECCARELLI, 2004, p. 102).

88

Há ainda a referência a Phrynicos, um compositor de tragédias e de “pírricos”. Na Varia Historia de Élio, segundo Cecarelli, Phrynicos “[…] foi eleito pelos atenienses para a strategia, 'porque compôs aos pirricistas, na tragédia, canções muito apropriadas e guerreiras'.” (CECARELLI, 2004, p.104, tradução nossa). A autora conjectura que o pírrico era a dança por excelência na tragédia. Outra possível fonte do pírrico, segundo Cecarelli, é “[…] o festival Iônio dos patriarcas, onde os jovens eram apresentados e aceitos no grupo.” (CECARELLI, 2004, p.105, tradução nossa). A dança seria apropriada também aos ditirambos, onde a coreografia variava da representação de um estado pacífico a um guerreiro e selvagem (CECARELLI, 2004, p.106). Os vasos áticos dão testemunho da execução do pírrico, onde as personagens, vestidas como para a guerra, travam combate fictício, conforme a dança pírrica que é embalada pelos méle dos aulistas. Conforme Ceccarelli, […] a dança pírrica dionisíaca, dançada pelas bacantes agitando tochas e thyrsoi, como descrito em Ateneu (14.631ab), são indistintamente as mesmas que aparecem frequentemente nos vasos áticos […] (CECCARELLI, 2004, p.111, tradução nossa). Finalmente, aponta para o pírrico conforme as figuras pintadas nos kantharoi (cântaros), onde é evocado o aspecto ritualístico da dança efetuada diante das piras funerárias dos guerreiros. Gentili (1988), atentou para o argumento circunscrito à metrificação e à tipologia rítmica de Damon, conforme seu argumento transposto por Platão na República. O ponto de partida, segundo Gentili (1988, p.6) para o entendimento da questão e para localizarmos o pírrico enquanto sua estrutura são os caracteres da melodia e os três elementos que a compõem, a palavra, a harmonia ou modo musical, e o ritmo. Gentili diz que, […] os metros e ritmos admitidos por Damon circunscreviam-se ao enóplio composto (enóplios sýnthetos), o dátilo e o herôios (ou hexâmetro), dos gêneros pares, com relação 2:2 entre tempo forte e fraco e ao o iâmbico e troqueu, do gênero duplo, com relação 1:2 e 2:1 entre tempo forte e fraco (GENTILI, 1988, p.7, tradução nossa). Damon, a seu turno, distinguia um gênero típico das danças guerreiras (pírricas) que é o enóplio composto (mistura de um gênero duplo, como iâmbico, e de um gênero par, o anapéstico). Dentro deste contexto, Damon e, consequentemente, Platão, sugeriam a adequação apropriada entre a matéria textual a ser vinculada e os metros e ritmos. Esta adequação, por sua vez, dependia do éthos (ou caráter) específico evocado pelo texto poético. Havia, naturalmente, uma adequação de modos e méle específicos, refletida também na escolha dos instrumentos específicos a cada caso, sendo que o aulos, tomando-o como exemplo, conviria apenas a determinadas matérias, sendo recusado em outras distintas. Hemmerdinger (1988, p.163) demonstra que Proclo já referia-se ao enóplio como metro de éthos viril. Também aponta que o anapéstico é relacionado na literatura ao éthos belicoso e considera o enóplio como ritmo de “homens em

89

armas”. O pírrico é apontado pelo pesquisador como um dos pés que compõem o metro enóplio, ao lado do iâmbico e do dátilo, sendo o enóplio considerado metro composto. Cita como fonte sobre o pírrico o argumento de Aristides Quintilianus e Aristófanes que, respectivamente, o denominam paríambos e pýrrichen blépein (HEMMERDINGER, 1988, p.164) Gostoli (1988) encontra o pírrico em fonte espartana, nas elegias exortativas (hypothêkai) e no embatérion, em ritmo anapéstico. Gostoli classifica três gêneros distintos de música guerreira em Esparta, onde um deles é o pírrico: 1) O Kastoréion mélos, uma ária musical guerreira, que era entoada durante o rito sacrificial que precedia o enfrentamento com o inimigo e que acompanhava a performance das embatéria em ritmo anapéstico […]. 2) A pírrica, uma verdadeira e apropriada dança executada com armadura. 3) Cantos corais, provavelmente em estrutura menor, executados por coros distintos por classe de idade, nos quais os velhos recordavam seus valores passados, os homens se vangloriavam de sua atual força guerreira e dos rapazes era esperado que imitassem estes últimos no futuro. […] (GOSTOLI, 1988, p.231-2, tradução nossa)

O escopo primário das embatéria era aquele de cadenciar com seu ritmo o passo de marcha, mantendo compacto o alinhamento dos oplitas (GOSTOLI, 1988, p.232, tradução nossa). As árias guerreiras estimulavam os soldados à audácia e os retiravam das fileiras do medo da morte. O contexto das embatéria, a seu turno, remete-nos novamente à doutrina do éthos em música, na figura de Damon, pelo argumento de Platão. O argumento deste último sabe-se que constituiu grande sedimento à seconda prattica emblematizada no embate de Monteverdi com Artusi, e na famosa defesa de Giulio Cesare em 1605. As proelium voces platônicas, as “vozes guerreiras” que de Platão forneceram o argumento probatório a Monteverdi, são, na verdade, um tópos que reúne, de um lado, o aprofundamento sobre a metrificação e os ritmos teorizados pelos antigos, como vimos acima, na chave diastáltica do éthos, aplicada pungentemente sobre a questão, e, de outro, a mesma chave usada nos tópicos referentes aos modos e ao mélos, que encontram na República seu lugar primordial. Monteverdi demonstra acessar este tópos rítmico para o posicionamento de sua argumentação em defesa do “gênero guerreiro” tendo como emblema o procedimento estilístico denominado por ele stile concitato, sendo que o efeito concitado buscado pelo compositor, repousa, principalmente, sobre o aspecto rítmico. Suas diretivas performáticas apontam para a relação entre os valores breves do pé pírrico, que vimos até aqui correlato aos atributos guerreiros que tem imensurável valor na cultura grega, juntamente ao seu oposto, o pé espondaico, constituído de valores longos, fato que o posiciona na outra chave ética, a sistáltica.

90

A atenção do compositor é para que, no ato da performance, não se tome um caráter pelo outro, sendo que as notas rápidas alocadas no pírrico estão, como Platão indica na República, em função do páthos guerreiro, das proelium voces platônicas. Considerando que Monteverdi opera na chave dos contrários, pois “[...] são os contrários que com grandeza movem a nossa alma […] (MONTEVERDI, apud BIANCHI; DE'PAOLI, 1973, p.416), seu argumento parte, portanto, da oposição entre pírrico e espondaico como sedimento argumentativo que se atualiza, de fato, em suas diretivas performáticas e revela-se, por fim, na partitura.

BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Política. Edição bilíngue e tradução de Julián Marías e Maria Araújo. Introdução e notas por Julián Marírias, da Real Academia Espanhola. Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, Madrid, 2005. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Prefácio de Michel Meyer. Introdução, notas e tradução do grego por Isis Borges B. Da Fonseca. Ed. Martins Fontes, 2000. ARISTOXENUS. Harmonika Stoicheia. Traduzido para o inglês por Henry S. Macran, Oxford Clarendon Press, Londres, 1902. Disponível em: http://archive.org/details/aristoxenouharm00arisgoog. BOÉCIO. Sobre el Fundamento de la Música. Cinco Libros. Introdución, tradución y notas de Jesús Luque, Francisco Fuentes, Carlos López, Pedro R.Díaz y Marino Madrid. Editorial Gredos, Madrid, 2009. CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Tradução por Carlos Nilson Moulin Louzada. Editora Martins Fontes, 1997. CECARELLI, Paola. Dancing the Pyrrhiche in Athens. In: MURRAY, Penelope. WILSON, Peter. Music and the Muses: The Culture of 'Mousik-e' in the Classical Athenian City. Oxford University Press, 2004. CHEW, Geoffrey. The Platonic Agenda of Monteverdi's Seconda Pratica: A Case Study from the Eight Book of Madrigals. Blackwell Publishing. Music Analysis, Vol. 12, N.2. Julho, 1993, pp.147-168. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/854270. Acessado em 19-5-2012. DE'PAOLI, Domenico; BIANCHI, Lorenzo. Lettere dediche e prefazioni / Claudio Monteverdi. Ed. De Santis, Roma, 1973 . DONI, Giovanni Battista. Compendio del tratatto de generi e de modi della musica. Andrea Fei, Roma, 1635. Disponível em: http://imslp.org/wiki/Compendio_del_trattato_de%E2%80%99_generi_e_de%E2% 80%99_modi_della_musica_(Doni,_Giovanni_Battista). FABBRI, Paolo. Monteverdi. Traduzido por Tim Carter. Cambridge University Press, Nova York, 2006.

91

FORD, Andrew. The Power of Music in Aristotle's Politics. In: MURRAY, Penelope. WILSON, Peter. Music and the Muses: The Culture of 'Mousik-e' in the Classical Athenian City. Oxford University Press, 2004. GENTILI, Bruno. Metro e Ritmo nella Dottrina degli Antichi e nella prassi della Performance. In: La Musica in Grecia. A cura di Bruno Gentili e Roberto Pretagostini. Editori Laterza, 1988. GODWIN, Joscelyn. Harmony of the Spheres: a Sourcebook of Pythagorean Tradition in Music. Editado por Joscelyn Godwin. Inner Traditions International, Rochester;Vermont, 1993. GOSTOLI, Antonietta. Terpandro e la funzione etico-politica della musica nella cultura spartana del VII sec. a.C. In: La Musica in Grecia. A cura di Bruno Gentili e Roberto Pretagostini. Editori Laterza, 1988. GUSMÃO, Cynthia Sampaio. A harmônica na antiguidade grega. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da USP, Universidade de São Paulo. 2010. 118 p. HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: Retórica, Org. Adma Muhana, Mayra Laudanna e Luiz Amando Bagolin, Ed. Annablume, São Paulo, 2012. HEMMERDINGER, Denise Jourdan. L'epigramma di Pitecusa e la musica della Grecia antica. In: La Musica in Grecia. A cura di Bruno Gentili e Roberto Pretagostini. Editori Laterza, 1988. LIPPMAN, Edward A. Musical Thought in Ancient Greece. Londres e Nova York. Columbia University Press, 1964. MEI, Girolamo. Discorso sopra la musica antica et moderna. Veneza: Giovanni Battista Ciotti, 1602. Bolonha: Arnaldo Forni, 2000. PANTI, Cecilia. Filosofia della Musica. Tarda Antichità e Medioevo. Carocci Editore, Roma, 2008. PAUSANIAS. Description of Greece. English translation by W.H.S. Jones and H.A. Ormerod. Loeb Classical Library Series. Harvard University Press, 1926. PLATÃO. República. Editorial Gredos, Madrid, 1988. PICCOLOMINI, Alessandro. De la Instutione di Tuttua la Vitta del Huomo Nato Nobile in Città Libera. Hyeronimus Scotus, Veneza, 1543. SOLOMON, Jon. Diastaltic Ethos. Classical Philology, Vol.76, N.2. University of Chicago Press, 1981. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/270117. Acessado em: 11-5-2012. STRUNK, Olivier. Source Readings in Music History. Revisado por Leo Treitler. Ed. W.W. Norton & Company Ltd. Nova York, 1988. WALLACE, Robert W. Damon of Oa: a Music Theorist Ostracized?. In: MURRAY, Penelope. WILSON, Peter. Music and the Muses: The Culture of 'Mousik-e' in the Classical Athenian City. Oxford University Press, 2004.

92

O PAPEL DA “DIFERENÇA” PARA UMA ESCUTA-PENSAMENTO

Amanda Veloso Garcia Licenciada e bacharelanda em Filosofia pela UNESP/Campus de Marília [email protected]

Resumo: A música instrumental tem uma capacidade impressionante de afetar as pessoas porque não é autoexplicativa e exige que se invista a atenção em ouvi-la mais do que qualquer outra arte. No entanto, a música ocidental passou por um processo de estruturação a fim de uniformizá-la para que os compositores pudessem transmitir ideias aos ouvintes. Todo este movimento paulatinamente levou a uma uniformização de sua compreensão: sentimentos correspondem a sons e cadências se tornaram parte do ouvido ocidental. Este movimento resultou em uma imagem de pensamento que dita o que é música e seus significados. E, assim, o ouvinte contemporâneo está passivo frente à música: só ouve o que é imediatamente identificável, facilmente entendido, o que não exige esforço. O que não se encaixa nesses ditames não é considerado música e, portanto, não deve ser ouvido. Neste artigo, por meio da teoria de Gilles Deleuze, defenderemos a importância da diferença para proporcionar experiências estéticas, isto é, uma escuta ativa da música: uma escuta-pensamento. Palavras-chave: Pensamento; Diferença; Sentido.

INTRODUÇÃO Acredito que a harmonia do nosso tempo não deva ser buscada por meio de uma via ‘geométrica’, mas, ao contrário, por meio de uma via rigorosamente antigeométrica, ilógica. Essa via é aquela das ‘dissonâncias da arte’, portanto, tanto da pintura quanto da música. [...] quanto mais um movimento parece exteriormente injustificado, mais pura, profunda e interior é a sua ação. (Kandinsky para Schoenberg)

A música instrumental tem uma capacidade impressionante de afetar as pessoas justamente porque exige destas que invistam seus processos cognitivos em ouvi-la mais do que qualquer outra arte. A música não pode ser pega com um pinça, não pode ser apalpada, não pode ser vista, não pode ser saboreada, não pode ser lida, apenas pode ser sentida. A música não é autoexplicativa. O que se sente depende do sujeito. Por isso a confessa e saudável inveja de Kandinsky 1 por Schoenberg e que resultou numa produtiva amizade entre os dois. Kandinsky

Wassily Kandinsky foi um artista russo e um dos responsáveis pela introdução da abstração nas artes visuais. 1

93

queria para a pintura o que Schoenberg estava fazendo na música: a emancipação da forma, das cores e também, nos termos usados pelo pintor, dos sons2. No entanto, a música ocidental, desde seus primórdios passou por um processo de estruturação a fim de uniformizá-la o máximo possível para que os compositores pudessem transmitir suas ideias aos ouvintes e a compreensão da música ficasse menos subjetiva. Nesse viés, merece destaque a Doutrina dos Afetos que sistematizou os recursos técnicos necessários para a transmissão de ideias específicas. Todo este movimento pelo qual passou a música ocidental levou a uma uniformização de sua compreensão. Tonalidades menores em geral são associadas a músicas tristes enquanto músicas enérgicas ou em andamentos rápidos levam à associação com a felicidade. Desse modo, paulatinamente a escuta musical foi se padronizando e, através de aprendizagem heurística, levou o ouvinte a criar expectativas com determinadas notas/acordes e não outras dentro de uma tonalidade. A música de massa se caracteriza justamente por sua previsibilidade, pois não está no primeiro plano de atenção. O que importa na música de massa não são suas características sonoras, mas as ideias e imagens que transmite. Todos os gêneros musicais tiverem que se adequar para que tivessem um espaço frente ao ouvinte contemporâneo. Consequência disso são as embalagens atraentes, músicas mais curtas, peças eruditas cortadas em diversos pedaços, a seleção de peças mais conhecidas, entre outros. O ouvinte contemporâneo está estagnado frente à música. Só ouve o que é imediatamente identificável, facilmente entendido, o que não exige esforço. A audição se tornou passiva face a música. Neste trabalho, inicialmente, apresentaremos a psicologia da expectativa musical de David Huron (2006) para compreender como se formam nossos hábitos de escuta visando entender a formação do ouvido reducionista. Após isto, utilizaremos a teoria de Gilles Deleuze para explicitar o aspecto representacional da escuta contemporânea de modo a apontar alternativas a este processo de estagnação do ouvinte. Traremos exemplos de músicas que visam romper com tal domínio de modo a proporcionar ao ouvinte experiências estéticas, isto é, colocá-lo numa postura ativa diante da escuta. Neste artigo, faremos uma manifesto em prol da emancipação da dissonância: a diferença. A FORMAÇÃO DO OUVIDO OCIDENTAL Para que possamos pensar o aspecto representacional da música é preciso anteriormente entender como se formaram os hábitos e esquemas do nosso modo Kandinsky utilizava “som” como metáfora para indicar a tensão da forma e o efeito visual emotivo que ela gera. 2

94

de escuta ocidental. David Huron em seu livro Sweet anticipation: music and the psychology of expectation (2006), pautado em experimentos da neurociência e análise estatística, busca mostrar como se dá o desenvolvimento de nossa escuta e, consequentemente, a relação desta com as emoções. Para Huron, a “Expectativa é uma adaptação biológica com estruturas fisiológicas especializadas e um longo percurso evolutivo” (2006, p. 3, tradução nossa)3. A capacidade de prever eventos futuros – o que e/ou quando acontecerá – com expectativas precisas confere uma vantagem biológica porque permite ao organismo uma ação adequada às situações. Expectativas preparam o organismo com relação ao futuro através de dois sistemas fisiológicos: sistema de arousal4 e sistema de atenção. O primeiro destes controla funções como batimentos cardíacos e respiração, enquanto o sistema de atenção direciona a percepção. Dessa forma, a geração de expectativas permite um funcionamento adequado do organismo para cada tipo de situação, além de evitar um desgaste desnecessário do mesmo. Neste domínio, as emoções tem um importante papel, pois “encorajam os organismos a buscarem comportamentos que são normalmente adaptativos e a evitar aqueles que são normalmente inadaptativos” (HURON, 2006, p. 4, tradução nossa)5. Quando temos uma previsão inadequada, o que implica que podemos estar numa situação de perigo, nosso organismo emite respostas de valoração negativa que ficam associadas àquela situação. Por outro lado, se fazemos uma previsão adequada nosso organismo nos recompensa com uma resposta de prazer por meio do sistema límbico6. O sucesso preditivo, por nos dar a certeza de que não estamos numa situação de insegurança, gera sempre respostas límbicas positivas. Ser surpreendido significa ter feito previsões erradas, e, pelo grau de incerteza com relação ao futuro, eventos surpreendentes geram a sensação de medo. Como destaca Huron, “Desde que a surpresa representa uma falha biológica da antecipação do futuro, todas as surpresas são inicialmente acessadas como ameaçadoras ou perigosas” (2006, p. 38, tradução nossa)7. No original, “Expectation is a biological adaptation with specialized physiological structures and a long evolutionary pedigree”. 4 Que pode ser traduzido por “excitação“. 5 No original, “Emotions encourage organisms to pursue behaviors that are normally adaptive, and to avoid behaviors that are normally maladaptive”. 6 O sistema límbico é responsável pelo controle emocional do comportamento de modo que pode ser entendido como um sistema de punição e recompensa, pois através de respostas emocionais procura selecionar os comportamentos mais adaptativos. Quando um comportamento oferece risco para a sobrevivência do organismo o sistema límbico envia uma resposta de punição, como por exemplo, a dor que sentimos ao encostar-se à chama de uma vela acesa. Por outro lado, se o comportamento é desejável para a manutenção do organismo, a resposta enviada é de prazer, como por exemplo, ocorre no sexo, pois a procriação é um comportamento adaptativo. 7 No original, “Since surprise represents a biological failure to antecipate the future, all surprises are initially assessed as threatening or dangerous”. 3

95

Nesse sentido, o que afirma ou não uma expectativa é a experiência e sua correspondência emocional. E como uma previsão inadequada pode nos colocar numa situação de risco, esta é sempre negativa. Partindo dessa base biológica do comportamento humano, Huron busca entender o nosso comportamento com relação à música. Como destaca Huron, “a maioria das expectativas auditivas são aprendidas através da exposição a algum ambiente auditivo” (2006, p. 59, tradução nossa) 8. Dessa forma, o contexto tem um papel importante na maneira como ouvimos musica. Na música ocidental, como já destacamos, há associações entre tonalidade/andamentos e sentimentos. Já na antiguidade, se associava os modos Jônio e Lídio à suavidade e os modos Dórico e Frígio à coragem. O canadense Murray Schafer (1991, p. 116), que trabalha sob a perspectiva da paisagem sonora, destaca também que a nossa atitude em relação à música, isto é, sons que nos parecem significativos e merecem ser gravados, está condicionada aos sons ambientais de nosso século, geração e posição geográfica no planeta. Isto corrobora com a ideia de que as respostas que temos a eventos sonoros é resultado de aprendizagem estatística através de exposição a um ambiente sonoro específico. Huron soma a isso a Lei de Hick-Hyman que diz que o “processamento de estímulos familiares é mais rápido que o processamento de estímulos não-familiares” (2006, p. 63, tradução nossa)9. O prazer não está no evento, mas sim na recompensa límbica que o associa a um evento. É isto que acontece no caso do sistema tonal, o ouvinte prefere esta sonoridade por estar familiarizado com ela e conseguir realizar previsões adequadas que serão recompensadas. Cada grau de uma escala tonal para o ouvinte familiarizado tem um qualia associado permitindo determinadas sensações psicológicas. O mesmo vale para a temporalidade – o quando –, espera-se mais notas no tempo forte do compasso, além de uma tendência de gerar expectativas binárias no caso de ouvintes ocidentais. Estes resultados estão de acordo com a ideia de um aprendizado estatístico do sistema tonal devido a constante exposição a este. E isto se deve a sensação de prazer ocasionado pela recompensa do sistema límbico e não do objeto ou evento em si. Isto explica, por exemplo, a reação à audição de música atonal. O “soar errado” está diretamente correlacionado à baixa probabilidade de primeira-ordem de alguns intervalos melódicos, que resultam em qualia negativos; tais “notas erradas” normalmente estão um semitom abaixo da nota esperada. Mas tal feito só é efetivo porque existe um contexto tonal que permite que

No original, “the majority of auditory expectations are learned through exposure to some auditory enviroment” 9 No original, “processing of familiar stimuli is faster than processing of unfamiliar stimuli”. 8

96

essas notas contrariem as expectativas esquemáticas e dinâmicas, em menor grau, no processo de escuta. (OLIVEIRA, 2010a, p. 139)

Por meio de aprendizado estatístico nos habituamos a ouvir música de um determinado jeito e aquilo que frustra tais expectativas é encarado como algo estranho ou errado. Se temos nossas expectativas confirmadas nem sequer a notamos, permanecemos no domínio do inconsciente, pois o som apenas se adéqua a nossos esquemas. Como destaca Meyer, que escreveu o livro Emotion and Meaning in Music (1956) – inspiração da obra de Huron –, nossos hábitos geram expectativas por nós, isto é, nossas expectativas são geradas de modo inconsciente. Apenas expectativas não satisfeitas é que se tornam conscientes. É a quebra de hábitos que nos levam a percebê-los. Somente aquilo que frustra gera atenção, o previsível nos mantém num domínio passivo da escuta, não exige pensamento para criarmos outras expectativas. Contudo, é possível notar que não há um modo “correto” de música, mas o que consideramos correto é decorrência de como aprendemos a ouvir música. Não aprendemos outros modos porque não temos oportunidades de entendê-los e somos ensinados a buscar uma sonoridade específica. A música ocidental selecionou de um modo específico os sons que nos devem ser significativos, pois foram estes que conseguiram destaque no decorrer da história. O ASPECTO REPRESENTACIONAL DA MÚSICA A estruturação da música ocidental, que levou ao desenvolvimento de hábitos de escuta específicos, resultou num cenário representacional no qual a diferença é entendida como um erro. Para compreender tal domínio nos utilizaremos de algumas obras de Gilles Deleuze. O autor, em livros como O que é a filosofia? (1997), Lógica do Sentido (1998) e Diferença e Repetição (2006), realiza um crítica ao uso de imagens de pensamento como representação. Uma imagem de pensamento é um cânone que aponta como algo deve ser pensado. Entender uma imagem de pensamento como representação é entendê-la como uma verdade a ser reproduzida. No caso específico que estamos a analisar, podemos dizer que há uma imagem de pensamento que determina o que é música e quais sonoridades são agradáveis (relações intervalares, timbres, ritmos, etc). Dessa forma, o som que não se adequar a isto será entendido como desagradável ou estranho demais e, em geral, a reação é não ouvir. Tal imagem de pensamento é vista por Deleuze como “dogmática”. A imagem dogmática de pensamento é a imagem ortodoxa/clássica e subordina o pensar a critérios prévios. No caso da música, a imagem dogmática de pensamento estabelece os ditames da “verdadeira” e boa música. Isto explica, por

97

exemplo, porque as práticas sonoras indígenas não são vistas por muitos como músicas. Neste domínio representacional, parte-se sempre de pressupostos que fazem com que o que seria um começo já seja um recomeço e o que seria uma diferença já é repetição do mesmo, retomam, e não criam, pressupostos. A experiência de ouvir música que poderia ser o espaço para criação de conceitos, esquemas e formas de escuta, é selecionada para se encaixar nos pressupostos da imagem dogmática de pensamento, o que não se encaixa nesses ditames é considerado ruim e, portanto, não se deve ouvir. A imagem dogmática de pensamento nos leva a pensar a partir de uma imagem com limites bem definidos de antemão e que ditam o que é música e quais sons e práticas sonoras devem ser considerados. Esse pensar por uma imagem de pensamento trata-se de uma recognição – adequar o som e o sentido a partir de um referente, buscar a correspondência – na qual as diferenças são apenas aparentes porque esta não é vista em si mesma, mas sempre em relação a outro. É uma diferença representada em relação ao idêntico – repetição do mesmo –. Não é um pensamento que nasce da experiência, mas enquanto representação. Deleuze entende que o aspecto representacional forma a imagem dogmática do pensamento que esmaga o pensamento “sob uma imagem que é a do Mesmo e do Semelhante na representação, mas que trai profundamente o que significa pensar” (DELEUZE, 2006, p. 161). Este sistema representacional leva à estagnação do indivíduo frente à música o colocando numa situação passiva de audição. “[...] não aprendemos uma imagem do pensamento não a experimentamos como novidade absoluta de nosso próprio pensamento, mas somos treinados para pensar segundo ela, investindo na recognição e na repetição do mesmo“ (GALLO, 2008, p. 72). O domínio representacional está ligado a um modelo estatal de pensamento que visa um funcionamento repressivo. Através de uma noologia – estudo das imagens de pensamento identificando a geografia interna do pensamento – é possível perceber o quanto o capitalismo se apropriou deste modelo representacional para atingir seus objetivos de lucro. O meio sociopolítico visa inibir o pensamento através da ideologia, o que levou à mercantilização do pensamento e da arte. A cultura de massa resultou do processo de homogeneização, isto é, uma inibição da criatividade em prol das leis de mercado. Através da recusa do pensamento e da criação se criou um totalitarismo do pensamento que determina o que é arte e quais ideias, valores e produtos de arte devem ser consumidos. A ORDEM ESTÉTICA DE PENSAMENTO E A DIFERENÇA NA MÚSICA Cada época de uma civilização cria uma arte que lhe é própria e que jamais se verá renascer. Tentar revivificar os princípios

98

artísticos de séculos passados só pode levar à produção de obras natimortas. Assim como é impossível fazer reviver em nós o espírito e as maneiras de sentir dos antigos gregos, também os esforços tentados para aplicar seus princípios […] só levarão à criação de formas semelhantes às formas gregas. A obra assim produzida será sem alma para sempre. (KANDINSKY, 1996, p. 27)

Experienciar a música como recognição é subordiná-la às categorias lógicas do entendimento, é não entendê-la como arte, é retirá-la de seu real domínio: os afetos. Como defendeu Kadinsky, a recognição retira a “alma” da arte, uma arte deste tipo já nasce sem vida. Para que a música seja de fato experienciada é preciso que haja um bloqueio do mesmo para que nosso pensamento invista na busca de seu sentido e, consequentemente, na criação de esquemas de escuta. É preciso que se busque um pensamento sem imagem, produzido alheio a qualquer recognição e que permita de fato a multiplicidade. É um libertar-se daquilo que é tido como verdadeiro – a imagem dogmática do pensamento – para experimentar um pensar diferente. Este pensamento sem imagem se dá no plano das forças. Somos afetados pelos signos que nos forçam a pensar: Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. [...] Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. (DELEUZE, 1987, p. 4) [...] é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. [...] Ele quer interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o sentido do signo. (DELEUZE, 1987, p. 16).

O pensar se constitui de um agir involuntário, um forçar a pensar. É pathos. É violentação e afrontamento. Exige do pensamento sua ação, necessita dessa busca de sentido, provoca o pensamento. E, assim, o pensamento se insere numa rede complexa de conexões que não se subordina ao idêntico, não se submete às categorias lógicas da verdade, não representa. Tal pensamento não está relacionado a uma forma de referência, mas a linhas de forças. A escuta representacional é imediata e passiva, se pauta em critérios prévios e busca a uniformidade, o unidirecional. Uma escuta da diferença não é linear, é múltipla, permite várias linhas, recortes, conceitos, esquemas, permite a criatividade: uma verdadeira experiência estética. Esta escuta não pode ser direcionada por uma forma-referência.

99

Um compositor preocupado com a dimensão estética da música, não reproduz o audível, torna audível10. "Não existe um ouvido absoluto, o problema é o de ter um ouvido impossível – tornar audíveis forças que são não audíveis por si mesmas" (DELEUZE, 1978, s/p). O compositor russo Alexander Mosolov em sua peça A Fábrica (1927) – também conhecida como A Fundição de Aço – utiliza instrumentos para reproduzir o som típico de uma fábrica, e, assim, torna o barulho da fábrica audível de uma outra maneira. Da mesma maneira Karlheinz Stockhausen ao compor o seu Quarteto para Helicópteros (1995) não ouviu apenas o som típico dos helicópteros, mas ouviu música neles. Esta foi a proposta de diversos compositores do século XX, que escreveram inclusive tratados para refletir sobre seus processos composicionais. Na música erudita do século XX podemos destacar dois principais modos de composição: o serialismo e o minimalismo. Enquanto o serialismo se caracteriza pela multiplicidade através da recusa da repetição, o minimalismo buscava justamente a repetição, mas uma repetição não idêntica. Desse modo, as duas giram em torno da diferença, a primeiro evitando o mesmo e, a outra, mostrando suas diferenças. Silvio Ferraz, aprofundando na questão da diferença na composição contemporânea, destaca ainda uma terceira vertente da música do século XX na figura de Olivier Messiaen e Brian Ferneyhough – o primeiro muitas vezes citado por Deleuze e o segundo baseando suas composições no pensamento deleuziano –. Com relação à multiplicidade: O que se distingue é o modo como essa multiplicidade é articulada e obtida. Distinguimos aqui três abordagens à multiplicidade: a) a multiplicidade que tem origem em um só ponto identificável, por exemplo, a série dodecafônica; b) a multiplicidade que tem origem num ponto único, mas perdido no passado, um ponto não revelável; c) a multiplicidade que tem origem na própria multiplicidade, sem um ponto único ao qual se referir, resultante de uma trama de linhas que conduzem a uma trama inindentificável de pontos de origem. (FERRAZ, 1998, p. 106) [...] Se a primeira é a da necessidade da memória, na qual esquecer faz com que o ouvinte perca fatalmente o “fio da meada”, a segunda não pede a presença da memória, pois ela não deixa esquecer. Por fim a terceira, dos espaços livres e caóticos. (FERRAZ, 1998, p. 106)

Como é possível notar, em a) Ferraz fala do serialismo, b) se refere ao minimalismo e o item c) diz respeito à vertente representada por Messiaen e Ferneyhough. O ponto em comum entre os três modos composicionais é a ênfase 10

“Tornar visível, dizia Klee, e não trazer ou reproduzir o visível” (1996 4, p. 139).

100

na multiplicidade que permite espaços mais livres de audição e pensamento com relação à música, já que contraria os padrões de entendimento vigentes. Deleuze faz uma crítica ao modelo “árvore” de mundo. Tal modelo se caracteriza por ser hierárquico. As árvores têm como referência sua raiz enquanto matriz principal. E este plano de referência é um problema porque dita a imagem dogmática de pensamento. O autor propõe um pensamento “rizoma”, que está intrinsecamente ligado à noção de série. Rizoma é uma espécie de caule que cresce de forma horizontal, portanto, não é hierárquico e suas conexões se ramificam sem organização, entrecruzando-se, qualquer parte se conecta com outra sem uma ordem, sem hegemonia central como há no modelo arborescente. A música tonal se caracteriza por este modelo arborescente, pois o que é tocado deve necessariamente estabelecer relação com o todo de modo que há um plano de referência hierárquico. Como exemplos de música que buscavam romper com estas referências podemos citar a música de Wagner, que utilizava a não resolução de cadências para contrariar as expectativas dos ouvintes; Schöenberg, que contrariava expectativas no que diz respeito a tonalidade; e Stravinsky, que rompia com os padrões métricos. Dessa maneira, os três buscavam romper com estruturas consolidadas na música ocidental, respectivamente, a harmonia, a tonalidade e a métrica. Por causa disto, os ouvintes eram obrigados a abandonar seus pressupostos e simplesmente ouvir. O problema não está no tonalismo, mas em este ser entendido como o plano de referência, como a imagem dogmática de pensamento acerca da música. A supremacia tonal subordina a diferença como negativa. A filosofia da diferença defende a multiplicidade, isto é, nenhum tipo de totalitarismo de pensamento. Desse modo, para romper com a imagem dogmática em música, devemos encarar a música como experimentação que nos afeta. A arte deve nos proporcionar experiências de pensamento que resultem na necessidade patológica de criação de novas possibilidades de existências, de compreensão do mundo, de escuta, etc. A arte deve ser o domínio da liberdade de criação, o que não tem ocorrido com a supremacia, por um lado, da música erudita ocidental e europeia e, por outro, da música de massa tocada pelas rádios. Ambas esmagam a diferença, não permitindo que esta tenha espaço. Não se trata de anular ou confrontar as práticas musicais citadas em prol da música atonal, indiana, indígena ou africana, pois se assim o fosse só passaríamos de uma imagem dogmática a outra. O que se busca aqui é a valorização da alteridade. A diferença, neste contexto, não é em relação ao mesmo, mas é a diferença em si mesma. O pensamento deve possibilitar “[...] um formigamento de diferenças, um pluralismo de diferenças livres, selvagens ou não domadas” (2006, p. 97). Desse modo, o pensar se constitui de “uma estética do Belo e do Sublime,

101

onde o sensível vale por si mesmo e se desdobra num pathos para além de toda lógica” (DELEUZE, 1997, p. 43) CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, vimos com Huron como se formam os nossos hábitos de escuta através de um processo de aprendizagem estatística decorrente de processos biológico-adaptativos. Por meio disto é possível perceber que não há um modo correto de música nem mesmo sons mais agradáveis ou naturais. As sensações que temos numa audição musical são decorrentes de nossa constante exposição a este cenário musical específico que, através de sistema límbico, nos reforça de maneira prazerosa previsões adequadas. Desse modo, como defendemos com Deleuze, nossos hábitos de escuta são consequência de uma imagem dogmática de pensamento com relação à música. Esta imagem de pensamento dita o que deve ser considerado música. E o que escutamos se trata de uma recognição deste plano de referência ditado pela imagem dogmática. A recognição é a forma mais pobre de pensamento, pois é recognição de uma verdade desinteressante para aquele que pensa. Diante disso, é necessário emancipar o pensamento do plano referencial e do modelo arborescente de pensamento. Para tanto, no domínio musical, a escuta tem que ser entendida como experimentação. Como vimos, pensamos o que nos afeta e leva nosso pensamento a investir na busca de seu sentido. Desse modo, devemos oferecer soluções que emerjam do plano de imanência que construímos e não que apenas reproduzam um plano de referência banal. A experiência estética relaciona-se intrinsecamente com a criatividade. Não se dá na passividade, é preciso uma postura ativa do ouvinte. É cortar, recortar, compor, modular. É construir novas possibilidades e dimensões de escuta e sentido. É estabelecer composições mentais e, aqui, estão emaranhados sentidos extra e intra musicais. A arte deve se constituir de uma “Luta de sons, equilíbrio perdido, ‘princípios’ alterados, rufos de tambor inesperados, grandes questões, aspirações sem objectivo visível, impulsos aparentemente incoerentes, correntes e laços quebrados que se entrelaçam, contrastes e contradições” (KANDINSKY, 1996, p. 93). Nas palavras de Kandinsky a arte deve inquietar o espectador, o incomodar e o excitar, permitir uma tonalidade de violência “que atua descarada e insistentemente” sobre a sensibilidade (1996, p. 68). O artista deve se livrar do pensamento lógico da representação e não buscar a interpretação simbólica, mas deve possibilitar a construção de sentido, uma legítima experiência estética. Possibilitar composições mentais.

102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AAVV, Schönberg and Kandinsky: an Historic Encounter, organizado por Konrad Boehmer, Contemporary Music Studies 14 s. l., Harwood Academic Publishers, 1997, 1 vol., pp. 1-224 DELEUZE, G. Le temps musical. (Conferência no IRCAM, Paris, 1978). Disponível em: . _____________. Proust e os signos. Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. _____________. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. _____________. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006. _____________. Critica e Clínica. Trad. bras. Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. _____________; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. bras. Bentro Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p.153 _____________; __________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. 5 v. FERRAZ, S. Musica e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC/FAPESP, 1998. GALLO, Silvio. Filosofia e o exercício do pensamento conceitual na educação básica. Educação e Filosofia , v. 22, p. 55-78, 2008. KANDINSKY, W. Do espiritual na arte e na pintura em particular. Tradução de Álvaro Cabral - 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 284 p.

103

A MÚSICA DE W. A MOZART (1756-1791): O EQUILÍBRIO ENTRE FORMA E CONTEÚDO E ANÁLISE RETÓRICO-MUSICAL Igor Daniel Ruschel [email protected] Bacharel em Música, Habilitação Regência, Instituto de Artes, Departamento de Música da UFRGS11

RESUMO: O presente trabalho busca, através de uma análise estético-musical, mostrar como um compositor resolve, em sua obra, um dos maiores debates que percorrem a história da música e também de todas as outras artes: o que é mais importante, a Forma ou o Conteúdo12? Outrossim, em segundo lugar, analisar-se-á a maneira como ele faz uso da retórica em suas peças, pelos princípios de Aristóteles, Cícero e, principalmente, Quintiliano13. Palavras-chave: Classicismo; Wolfgang Amadeus Mozart; Retórica Musical; Estética Musical.

INTRODUÇÃO O compositor escolhido, Wolfgang Amadeus Mozart, parece dispensar apresentações e comentários; “pertencente” ao período do Classicismo em Música, Mozart nasceu em Salzburgo em 27 de janeiro de 1756 e morreu em Viena em 5 de dezembro de 1791. É um dos três grandes compositores do período, conhecidos como “Primeira Escola de Viena”, juntamente com Franz Joseph Haydn e Ludwig van Beethoven. Prodígio, o filho de Leopold Mozart e Anna Maria Pertl começou a compor com cerca de cinco anos de idade, tendo aprendido a tocar cravo e violino. Seu pai o levava a grandes turnês pela Europa, e quando adolescente, conseguiu contrato como músico da corte em Salzburgo. Em 1781, em Viena, desentende-se com seu patrão, o príncipe-arcebispo Hieronymus von Colloredo, pede demissão e fica na capital austríaca, onde conquista certa fama, mas pouca estabilidade financeira, dando aulas e compondo sob encomenda. Mozart produziu mais de seiscentas obras, compondo e destacando-se em praticamente todos os gêneros de sua época. Seu gênio é

11

Artigo feito em 13 de Dezembro de 2011, primeiramente como trabalho final da cadeira de

Estética da Música I, ministrada pelo professor Fernando Lewis de Mattos (Depto. de Música da UFRGS). 12 Conteúdo também pode ser entendido como Ideia (N. do Autor) 13 “A redescoberta de Quintiliano no séc. XV... representou o princípio da relação efectiva entre retórica e música, que desde a antiguidade já se vinha a desenhar”.(PEREIRA, artigo eletrônico, ver Referências Bibliográficas)

104

reconhecido e admirado, tanto por especialistas quanto por leigos, apesar das lendas criadas em torno de seu nome. Mesmo sendo um compositor do Classicismo, em que a Forma da obra deve, por princípio, ser posta em primeiro plano, apresentando simetria, clareza e racionalidade, Mozart não pode ser preso a um estilo; ele compõe dentro deste, mas ao mesmo tempo está acima dele, pois, ao expressar e desenvolver uma idéia, está livre para “quebrar” com alguns princípios, demonstrando-se que ele domina a técnica e o estilo de composição, e não o contrário. Pela análise de algumas de suas peças especialmente selecionadas, de diferentes gêneros, poderá se evidenciar o equilíbrio entre a Forma e o Conteúdo, além de ver como é elaborado o discurso musical (retórica). As obras analisadas são: Ave Verum Corpus, Concerto para Clarinete e Orquestra, Sinfonia nº 38. As peças mais longas serão macroanalisadas e somente em algumas partes mais relevantes ao trabalho. AVE VERUM CORPUS, K 618 (1791) A primeira peça selecionada para análise é o “pequeno e simples” moteto (Estilo Eclesiástico) Ave Verum Corpus, para coro, 2 violinos, viola, violoncelo, contrabaixo e órgão, composto no ano de sua morte, em 17 de junho de 1791 na cidade de Baden, na Alemanha; é uma das obras mais conhecidas e apreciadas de Mozart. Trata-se de um Adagio, em compasso 2/2 (“Alla Breve”), que está na tonalidade de Ré Maior; apresenta textura de melodia acompanhada. Analisando-o estruturalmente, vê-se que possui 2 compassos só com os instrumentos, fazendo uma breve introdução, toda sobre o acorde de Tônica, expondo claramente a tonalidade. Há um interessante movimento que conduz “para cima”, já que a primeira nota de cada compasso da primeira voz faz um arpejo “ré-fá-lá”, esta última nota já “invadindo” o terceiro compasso. Este movimento ascendente não é por acaso; tem-se a intenção de levar ao coro para saudar o “Corpo Verdadeiro”, obviamente Cristo, que está “acima”. No terceiro compasso, então, o coro, acompanhado pelos instrumentos, entra, finalizando a primeira frase no compasso 6, em uma cadência perfeita. Retoricamente, falando da Dispositio da obra, nos dois primeiros compassos tem-se sutilmente o Exordium, que é breve, mas ainda sim contém uma mensagem significativa. O coro, cantando o texto, começa a Narratio, discurso que será aprofundado nos compassos seguintes. Eis o Exordium + o início da Narratio (primeira frase coral):

105

Nota-se, também, a harmonia simples com que o compositor trabalha, fazendo o caminho T – D – T; há apenas um “desvio”, que ocorre no compasso 4: o motivo “lá-sol#” no soprano, seguido da nota sol bequadro, gerando um cromatismo típico das músicas de Mozart, o que faz dele um grande melodista. Esse motivo será usado em vários pontos em toda a peça, original ou modificado: compassos 12 (soprano), 14 (contralto, retrógrado), 15-16 (contralto, retrógrado aumentado), 17 (soprano), 23 (soprano, retrógrado transposto), 25 (soprano, transposto), e muitos outros até o final, demonstrando uma ideia que é desenvolvida e une motivicamente o moteto. Pode-se até citar Arnold Schoenberg: “Uma ideia nasce; deve ser moldada, formulada, desenvolvida, elaborada, carregada e perseguida até seu final.” (SCHOENBERG, 1946, p. 9). A partir do compasso 7, começa a segunda frase, de 4 compassos, finalizando na Dominante (Lá Maior), fechando um período perfeito de 8 compassos (considerando texto + música, isto é, a parte coral), mais 2 compassos do Exordium instrumental. A razão de uma harmonia mais simples no primeiro período é dada pelo texto: “Salve, Corpo Verdadeiro, nascido da Virgem Maria”, ou seja, é uma saudação e uma identificação ou descrição. Do compasso 11 ao 14, temos a terceira frase, também de 4 compassos; o soprano, iniciando em anacruse para o compasso 15, respondido pelo resto do coro a partir do terceiro tempo deste compasso, até o compasso 18 formam a quarta frase, fechando mais um período de 8 compassos, agora inteiramente na Dominante, e a primeira seção do moteto. A Harmonia começa a ser um pouco mais densa, pois o texto começa a descrever que Cristo “verdadeiramente padeceu, imolado na cruz pela Humanidade”. Há ainda, uma passagem orquestral, uma espécie de comentário que, ao mesmo tempo reafirma a tonalidade da Dominante, para a qual a música foi modulada (2º tempo do comp. 18 até 1º tempo do comp. 21, totalizando 4 compassos), e conduz para a próxima seção – especialmente o compasso 21. Este

106

traz a ideia da introdução, fazendo o ouvinte relembrar algo que já foi mencionado no “discurso”, outro artifício da retórica. O que temos até aqui é a perfeição formal, simetria, cadências definidas e quadratura impecável, ordem e clareza. É o Classicismo expresso, porém sem descuidar das ideias, do conteúdo musical, intrínseco ao conteúdo textual. A partir do compasso 22, quando o coro entra novamente com a segunda parte do texto, há novamente uma perfeita ordenação de 2 frases de quatro compassos cada, formando um novo período de 8 compassos. Mas Mozart, usando a mesma quadratura e desenhos melódicos muito semelhantes ao primeiro período da peça, varia magistralmente a harmonia, que começa em Lá Maior (comp. 22), atinge, por cromatismo (A – G° - C7/G – C7  comp. 23 e 24), a tonalidade de Fá Maior (uma relação de mediante cromática com a tonalidade original! Na realidade, é a Relativa da Homônima de Ré M). Contudo, não é estável, pois a mesma nota “Fá” no baixo (comp. 26) servirá como 7ª do acorde de Sol M, que não resolverá em Dó M, e sim em C#°/G, passando por Sib M, Lá M (comp. 27), resolvendo, nos comp. 28-29, em Lá M, através do G#°, e indicando Ré menor. Essa harmonia, a mais densa e complexa até aqui, está a servir novamente o texto, que fala do ato após a morte de Cristo na cruz, onde já estava tudo “consumado” (“De cujo lado transpassado jorrou água e sangue”, narrado em João 19, 34). Interessante notar que, no comp. 28 aparecem, pela primeira vez em toda a peça, colcheias para as vozes (soprano e contralto), ornamento escrito que traz a ideia de movimento, do fluxo da água e do sangue, assim como a palavra “fluxit” desenhada com semínimas com movimento ascendente e descendente. Outra ideia fantástica de texto e música é a linha do tenor, quebrada em sua resolução do compasso 29 para o 30: “si-mi”, quinta descendente, indicando queda, o jorrar do sangue. Seguindo, no comp. 28, a partir do 2º tempo, somente a orquestra toca, novamente lembrando o Exordium, trabalhando na Dominante, conduzindo à terceira frase da segunda seção. Aí, Mozart já faz algo que foge à simetria das quatro vozes juntas, como tinha sido apresentado até agora. Em uma espécie de Bicínio, soprano e contralto, em terças (fá#-re), começam o 2º período desta parte; interessante que há a volta a Ré Maior que, combinada com a redução de vozes, passa uma ideia de serenidade, contrastante com a densa passagem harmônica anterior. O texto deste período diz “Seja para nós uma prévia na provação da morte”, isto é, agora é um pedido, uma súplica, após ter narrado o sofrimento de Cristo. Baixo e Tenor entram, também em terças (sol-si), imitando soprano e contralto, colocando as vozes juntas, mas cada dupla de naipes está defasada uma da outra, o que cria um efeito contrapontístico e de ritmo complementar, além de formarem seqüência de dois em dois compassos, cada dupla em seu tempo. A partir do 3º tempo do compasso 35, as vozes novamente se unem em homorritmia,

107

com exceção de uma pequena defasagem no comp. 36, em que soprano e contralto continuam na ideia de terças, baixo faz movimento típico de salto de oitava no V; a peça poderia acabar no compasso 37 em um acorde de Tônica, já que o texto também acabou. Mas Mozart não faz isso; ele novamente quebra a resolução e a quadratura, resolvendo o baixo em Si, mas não fazendo uma típica Cadência Deceptiva na Relativa (Si menor), e sim em Sol Maior, Subdominante, com baixo na terça, causando um desvio maior ainda, possibilitando a quebra e a ampliação da música por mais alguns compassos, repetindo o texto “In mortis examine” (“Na provação da morte”). A palavra “Mortis”, em especial, é, em toda a peça, a mais melismática, durando em torno de cinco compassos no soprano que, aliás, começa esta última frase sozinho, no 3º tempo do comp. 37, sendo respondido pelas outras vozes no 3º tempo do comp. 38, todas com movimento ascendente. A harmonia começa de onde parou, em Sol Maior, logo um acorde de Ré Maior com 7ª em segunda inversão é atacado pelas outras vozes, resolvendo em Sol Menor com terça no baixo, passando por A° (comp. 39), Mi Maior com 7ª (comp. 40), Lá Maior com 7ª no baixo (comp. 41) – tudo isso criando a maior tensão possível, descrevendo a palavra. Por fim, passa-se por um acorde de Sol Maior com terça no Baixo (comp. 41, último tempo), Lá Maior com 7ª (com dupla apojatura, comp. 42), resolvendo agora na Tônica, em uma Cadência Autêntica Perfeita, concluindo a parte do coro. Percebe-se também que a terminação dos dois últimos compassos dessa frase é semelhante à mesma da frase anterior. Assim, esta última frase, que fecha a música com o texto, quebra a simetria e quadratura, possuindo a linha do soprano 6 compassos (e 1/2) e as linhas das demais vozes, 5 compassos (e 1/2), mostrando perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo, em que não fica preso a fórmulas, mas usa-as e quebra-as de acordo com idéias e intenções musicais. Ainda há uma espécie de Coda ou Codetta realizada pelos instrumentos, refazendo o processo cadencial final com ornamentos; essa, em Retórica, corresponderia à Peroratio. Ainda retoricamente falando, toda a parte do coro poderia, conforme uma interpretação, ser vista como da seguinte forma, detalhando suas partes (mais parte instrumental):  Exordium (comp. 1 e 2);  Narratio (compassos 3 a 18; 22 a 29) (–Transitus - comp. 18 a 21);  Propositio (compassos 30 a 37);  Confirmatio (compassos 37 a 43);  Peroratio (compassos 43 a 46); Em princípio, não haveria Confutatio, considerando-se o texto: do compasso 3 ao 29, relatam-se os fatos, conta-se a história; pode-se, na verdade, dividir Narratio em duas partes, como foi indicado acima, pelo comentário instrumental que é feito entre elas, como se fosse Peroratio + Exordium (comp. 18 a 21), que Johann Matheson (1739, Cap. XIV, 2ª parte) chama de Transitus, ligando o

108

precedente ao seguinte. Do compasso 30 ao 37, há o discurso em si resumido 14, a Propositio, seguida pela Confirmatio (comp. 37 a 43), que é “uma corroboração do discurso” (Matheson, 1739, Cap. XIV, 2ª parte). Há, claro, possibilidades diferentes de interpretação da retórica desta peça, mas deve ficar claro como Mozart, genialmente, consegue conciliar forma e conteúdo em equilíbrio, mostrando que cada qual é importante em diferentes momentos. CONCERTO P/ CLARINETE E ORQUESTRA, K622 (1791), 1º MOVIMENTO Esta é mais uma obra composta por Mozart no ano de sua morte; seria demasiado longo expor sua análise por completo aqui, por isso mostrar-se-ão alguns exemplos, dentro da peça, que corroboram diretamente para o assunto tratado neste trabalho. Primeiramente, o primeiro movimento, Allegro, está em Lá Maior, em compasso quaternário simples (4/4), e é um típico movimento em Forma-Sonata, ou um Allegro de Sonata. Até o compasso 56, somente há a orquestra - Tutti – tocando, isso só para expor a 1ª Região Temática, repleta de vários temas (politemática). A partir do comp. 57, o Clarinete Solo entra, reapresenta, resumidamente, com comentários da orquestra, a 1ª RT, até o compasso 76. Depois há uma ponte (comp. 78-99) para a 2ª RT (comp. 100 a 153), uma codetta (comp. 154 a 171); somente no comp. 172 ele começa o desenvolvimento. Como se pode ver, a exposição não será somente o Exordium, pois Mozart já elabora muito nela, contendo já a Narratio. Vendo agora a peça do comp. 1 ao 24, onde há exposição de 2 núcleos ou grupos temáticos, percebe-se um período triplo, aparentemente de 8 compassos cada; dos compassos 1 a 8 e 9 a 16, expondo o mesmo núcleo temático com orquestrações diferentes, há a quadratura perfeita. Porém, o terceiro período, que apresenta um 2º núcleo temático, começa no 2º tempo do comp. 16 (elisão com o período anterior) e acaba no comp. 24, totalizando 9 compassos, quebrando a quadratura internamente, já de início. No comp. 57, quando o Clarinete Solo entra, pode-se, conforme o conceito anteriormente citado, chamar esta parte de Propositio, visto que apresenta o conteúdo resumidamente; interessante também, mais uma vez citando Matheson, que ainda pode ser de “dois tipos: simples ou composta, ao que, também, pertence a variada ou ornamentada Propositio em música, de que nada é mencionada em retórica” (Ibidem), o que Mozart faz exatamente no compasso 65, ornamentando com grupetos o mesmo primeiro tema da 1ª RT, tocado pela orquestra, que acompanha o solista, sendo uma Propositio Variatam:

“A Propositio... contém, resumidamente, o conteúdo ou meta da oratória musical...” (MATHESON, Johann. Der Volkomenne Capellmeister, 1739.) 14

109

O mesmo acontece na Reexposição (a partir do comp. 251), no comp. 259. Agora, outro exemplo da quebra de quadratura ocorre já de início no desenvolvimento (comp. 172 a 180): o Clarinete Solo inicia com aquele primeiro tema da 1ª RT modificado, fazendo Mozart uma quebra e ampliando a frase para 5 compassos, tendo originalmente 4, e depois mais 5, em uma frase praticamente igual, em que seu início é elidido com o final da anterior, formando período de 10 compassos. Ao desenvolver o tema, demonstra-se que Mozart segue sua sensibilidade musical-compositiva apurada, variando e ampliando formas e quadraturas.

Finalizando, a partir do compasso 343, há uma Coda, a “última” Peroratio. Poderia, talvez, por serem partes essenciais demasiadamente grandes, cada uma que compõe o movimento (Exposição – Desenvolvimento - Reexposição) conter, em si, um discurso completo, com todas as partes da retórica, do Exordium à Peroratio, permitindo, contudo, que o movimento inteiro possa contê-las também no todo, conforme a coerência interna e externa defendida por Aristóteles. SINFONIA Nº 38, “PRAGA”, KV 504 (1786), PRIMEIRO MOVIMENTO

110

Por último, tem-se para apresentar, ainda que superficialmente, em vista de tudo o que pode ser encontrado em uma obra de tamanha envergadura, uma análise do primeiro movimento da Sinfonia Nº 38, que ganhou o apelido devido à cidade, capital da Boêmia, em que estreou a obra, em 19 de Janeiro de 1787, além de Mozart ser muito estimado pelo povo local.15 O primeiro movimento está em Ré Maior, em compasso 4/4, dividido em duas grandes partes: uma introdução lenta – Adagio – (incomum nas sinfonias de Mozart16), seguida pelo Allegro, em Forma-Sonata. Em uma primeira audição, o ouvinte já pode perceber a intensidade dramática da obra, combinando harmonia, melodia e ritmo com grande maestria. O Adagio, como introdução, pode ser considerado uma espécie de Exordium, contendo ideias que serão citadas no Allegro. Um grande exemplo, que gera contraste e dramaticidade, e será usado posteriormente, é a alternância para o modo menor, ou seja, para o homônimo, como ele faz no compasso 16 (Ré menor, atacado em cheio por toda a orquestra em forte), seguindo em seqüência até o compasso 28 (Lá Maior com 9ª e 7ª, Dominante de ambos os acordes). Isso será usado especialmente na 2ª RT do Allegro, do compasso 104 a 110, isso somente falando na Exposição. Ainda no Adagio, Mozart apresenta, em três compassos, a tonalidade, permanecendo o acorde de tônica a base para isso. No quarto compasso, ele já quebra o que poderia ser uma frase quadrada, desviando daquilo que foi apresentado, tonicizando para a Relativa (Si menor). Indo para o Allegro, a 1ª RT começa com o 1º violino fazendo uma espécie de “cama” com a tônica, com o ritmo sincopado (característica essa que o compositor utilizará em toda a peça), entrando o tema principal com 2º violino, viola e violoncelo. O 1º violino, ainda com o tema principal em andamento, fará uma nova melodia, que mais tarde será elaborada no desenvolvimento. Mas o ponto é que, considerando o tema principal da 1ª RT (comp. 38 a 43 – apenas 1º tempo), depois realizado de forma modificada pelo oboé, ele possui 6 compassos, ou mais precisamente, 5 compassos + 1/4. O tema secundário (iniciado pelo 1º violino, do comp. 37 ao 1º tempo do comp. 43) possui 7 compassos, ou também mais precisamente, 6 compassos + 1/4. Agora analisando a métrica da 2ª RT (a partir do comp. 96), vemos que o tema principal, feito, desta vez, pelo 1º violino (já há contrasta aí), apresenta uma quadratura perfeita, possuindo um período de 8 compassos, divido em 2 frases de 4 compassos cada. E essa divisão se dá exata pelo fato de a melodia começar em uma espécie de anacruse, completando-se os tempos do início com os do final. E é com esse tipo de equilíbrio, através de contraste, que Mozart mostra, sem Informações conferidas e disponíveis em: (afirmações encontram-se devidamente citadas no site, como em todas as outras referências virtuais) Acesso em 12 jul 2013. 16 As outras únicas sinfonias em que isso ocorre são a nº 36 e a nº 39. 15

111

nenhuma palavra, a justa medida entre Forma e Conteúdo, cada qual tem sua função e seu momento, ambos importantes. A respeito da retórica, pode-se concluir o mesmo que foi assumido no Concerto para Clarinete e Orquestra: cada parte (isso no Allegro, pois é possível conceber o Adagio como um Exordium) pode ter seu próprio discurso e, ao mesmo tempo, o todo possuir as partes da retórica, englobando as seções em que é dividido. CONCLUSÃO Como foi demonstrado no presente trabalho, mediante três exemplos de gêneros diferentes, sendo o primeiro – Ave Verum Corpus, K 618, um moteto para coro, cordas e órgão - mais distante, por assim dizer, dos outros dois – Concerto para Clarinete e Orquestra, K 622, e Sinfonia nº 38, K 504, ambos somente com o primeiro movimento analisado, a discussão entre Forma e Conteúdo, que vem permeando a História da Arte no Ocidente, é “resolvida” da melhor maneira possível, como só um gênio – e por essa razão o é – poderia fazêlo: equilibrando de forma natural e perfeita os dois. Além disso, procurou-se, mais em segundo plano, estabelecer a Retórica usada pelo compositor, especialmente na primeira peça. Pode-se perceber, e isso será visto em qualquer obra de Mozart, que uma Forma, em especial a Forma-Sonata, do Classicismo por excelência, não é rígida e inquebrantável, e nem deve ser o guia final para uma composição; é apenas uma maneira de fazer algo, um princípio, não uma regra fechada, que orienta, não domina; muito pelo contrário, Mozart a domina como faz com todas as técnicas compositivas que aprendeu. O conteúdo ou a(s) ideia(s) a serem elaborados e desenvolvidos vão suplantar a Forma ou fórmulas quando necessário, quando a sensibilidade musical do compositor e também a sua consciência, fator sempre presente nas obras de Mozart, “pedirem” isso. Tem-se um princípio por base e meio, que serve para estruturar as ideias, organizá-las, o que é preciso, mas nunca tolhê-las em favor de uma forma rígida e inflexível que, na verdade, nunca existiu. A obra de Wolfgang Amadeus Mozart, mostrada em ínfima parte neste trabalho, e também a de Franz Joseph Haydn e Ludwig van Beethoven o comprovam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVE Verum Corpus, K 618. Choral Public Domain Library. Disponível em: Acesso em 04 dez. 2011

112

MATHESON, Johann. Der Volkommene Capellmeister.(1739) (A Revised Translation with Critical Commentary by Ernest C. Harriss), Ann Arbor: UMI Research Press, 1981. Acesso através do site: Acesso em: 10 dez. 2011. MATTOS, Fernando Lewis de. Análise Musical III – Repertório: Concerto para Clarinete e Orquestra K 622 Porto Alegre: Edição para os estudantes da cadeira de Análise Musical III da UFRGS, 2011, pg. 47 a 64. MATTOS, Fernando Lewis de. Análise Musical III – Repertório Anexo: Sinfonia nº 38, “Praga”, K 504. Porto Alegre: Edição para os estudantes da cadeira de Análise Musical III da UFRGS, 2011, pg. 11 a 31. PEREIRA, Aires Rodeia. Figuras de Retórica na Variação Clássica. Artigo disponível em: < http://www1.ci.uc.pt/eclassicos/bd_pdfs/29/20FigurasdeRetorianaVariacaoClassica.pdf> Acesso em 10 dez. 2011. SCHOENBERG, Arnold. Nova Música, Música Ultrapassada, Estilo e Idéia. 1946. Tradução: R. Meine. WOLFGANG Amadeus Mozart. Wikipedia, 17 setembro 2011. Disponível em: Acesso em: 03 dez. 2011 WOLFGANG Amadeus Mozart and Prague. Wikipedia, 15 abril 2013. Disponível em: Acesso em: 12 jul 2013.

113

MÚSICA COMO CRÍTICA SOCIAL: TRÊS EXEMPLOS DISTINTOS NA HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL Igor Daniel Ruschel [email protected] Bacharel em Música, Habilitação Regência, Instituto de Artes, Departamento de Música da UFRGS1

RESUMO: O presente artigo busca mostrar, através de três exemplos pontuais durante a história da música ocidental (“erudita”), como a música sempre serviu como arte engajada, como crítica social à ordem estabelecida. Tratando-se de três exemplos bem distintos, temporal e espacialmente, são comparados com ressalvas, pois cada um deve ser situado num determinado contexto, tendo, sim, a crítica social, aberta ou codificada, em comum. Palavras-chave: Música engajada; Crítica Social; História da Música; Estética da Música.

INTRODUÇÃO Ao pensar sobre música engajada, talvez as pessoas possam pensar apenas na música produzida no século XX e XXI, já que está mais próxima, inserida em um contexto semelhante, parecendo ser um movimento “mais forte”. O que muitos podem não saber é que a música, como crítica social, engajada com ideais sociopolíticos, pode ser remontada até o século XIV (ou até antes), como mostra o primeiro exemplo usado neste artigo: Roman de Fauvel (“Romance de Fauvel”, entre 1310 e 1314), poema satírico atribuído a Gervais de Bus e que foi “musicado” principalmente pelo grande mestre da Ars Nova Philippe de Vitry, com peças também atribuídas a Guillaume de Machaut. Como segundo exemplo a ser discutido, temos o não menos surpreendente Le Nozze de Figaro (“As Bodas de Fígaro”), do século XVIII (1786), ópera de Wolfgang Amadeus Mozart, com libreto de Lorenzo da Ponte, baseado na obra teatral de Beaumarchais. Apesar de ser um fato tanto desconhecido do público geral, Mozart tinha uma consciência social grande, como se verá a seguir. Como terceiro e último exemplo, tem-se “Die Dreigroschenoper”, ou “A Ópera dos Três Vinténs” (1928) que junta dois grandes expoentes do século XX de suas áreas: Kurt Weill, da música, e Bertold Brecht, do teatro. Em parceira, fazem uma obra revolucionária de crítica social à ordem capitalista existente, Artigo feito em 10 de Julho de 2012, primeiramente como trabalho final da cadeira de Estética da Música II, ministrada pelos professores Fernando Lewis de Mattos e Raimundo Rajobac (Depto. de Música da UFRGS). 1

114

“provocando” os ouvintes/espectadores a refletirem sobre a sociedade na qual vivem. Todos os três exemplos acima citados serão mais bem aprofundados durante o artigo, cada qual em um capítulo distinto. Como já dito antes, é necessário colocar cada exemplo em seu contexto histórico, para não haver confusões e más comparações, porém é importante mostrar que, mesmo em períodos bem distantes do nosso ou nos quais, a princípio, não se imagina isso (ex.: Classicismo), sempre houve quem se utilizasse da música (em parceria com poemas, libretos e peças teatrais) para fazer crítica à sociedade de sua época. SÉCULO XIV: ROMANCE DE FAUVEL No original francês “Roman de Fauvel”, o primeiro exemplo se trata de um poema narrativo, provavelmente escrito pelo clérigo e funcionário real francês Gervais de Bus, datado de 1314 (apesar de outra versão de 1310 ser anônima), revelando uma crítica satírica e feroz contra a sociedade da época, tanto para a Igreja, que estava começando a perder a sua autoridade2, quanto para o Estado, com sua nobreza “podre”. Mais interessante é a forma como essa crítica é feita: através de alegorias. A personagem principal, Fauvel, é um burro ambicioso e tolo, e as letras que compõem seu nome são as iniciais de uma versão antiga dos sete pecados capitais (que são seis, na realidade): Flaterie, Avarice, Vilenie, Variété3, Envie, Lâcheté – Adulação, Avareza, Vileza, Inconstância, Inveja e Covardia -, além de, quando “quebrado” seu nome em Fau Vel, significa “mentira ou falsidade velada”, em francês. Não feliz com seu estábulo, resolve se mudar para o maior quarto da casa do seu mestre. Logo após, ele já muda todo o local para servir às suas necessidades. Outra personagem, a Dame Fortune, deusa do Destino, favorece Fauvel e o aponta como líder da casa. Em consequência disso, a Igreja e os líderes seculares de vários lugares fazem peregrinações para ver Fauvel, curvando-se ante ele (o que simboliza a Igreja e os líderes de Estado se curvando ao pecado e à corrupção, sempre guiados por interesses próprios e conforme a ocasião). Fauvel pede a mão da Dame Fortune em casamento, mas esta declina, oferecendo a Vanglória em seu lugar. Fauvel aceita, o casamento acontece, com convidados como o Flerte, Adultério, Luxúria e Venus. Então, Dame Fortune A autoridade da Igreja é questionada; há um grande cisma no século XIV, criando-se um segundo papado em Avignon, cidade no Sul da França, durando de 1309 a 1376, através de 7 Papas, todos franceses, em oposição a Roma, resultado da briga constante entre a última e a Coroa Francesa. Também o sistema feudal começa a declinar e a burguesia inicia seu desenvolvimento. 3 Lembrando, também, que U e V nesta época são letras intercambiáveis, assim como ocorre no Latim. 2

115

revela a Fauvel que seu papel, no mundo, é dar à luz mais líderes iníquos como ele próprio, e ser precedente do Anticristo, levando ao fim do mundo4. Grande parte da autoria das músicas feitas sobre os textos do Roman é atribuída ao mestre da Ars Nova Philippe de Vitry (31/10/1291 - 09/06/1361), e algumas partes também são atribuídas a outro grande nome desse período, Guillaume de Machaut (c. 1300-1377), embora só possam ser confirmadas as atribuídas ao primeiro. Trata-se da “primeira fonte prática da música da Ars Nova”5, sendo, portanto, de fundamental importância para o conhecimento de como era feita a música do período, que se opunha à Ars Antiqua da época anterior (1170-1320), representada pela Escola de Notre-Dame, nomeadamente Pérotin e Leonin. Através do tratado atribuído ao próprio Philippe de Vitry, Ars Nova Notandi, de 1322, desenvolve-se um grande sistema de notação musical, que serviria de base para toda a música erudita ocidental posterior (por ser precursora das fórmulas de compasso e figuras rítmicas conhecidas). Assim, permitia-se que as notas fossem escritas num ritmo mais independente, utilizando-se do isorritmo e criando-se o moteto isorrítmico, sendo abandonados os modos rítmicos da Ars Antiqua, que prevaleceram no século XIII. Interessante notar que as mudanças na música foram contemporâneas às mudanças e revoluções na pintura (como a Perspectiva) e na literatura da época, já chamadas de Renascença. A música secular ganhou grande desenvolvimento polifônico, antes só encontrado na música sacra, como se pode notar nos motetos de Vitry para o Roman de Fauvel. Um dos mais conhecidos que chegou a nós até hoje é o “Garrit Gallus/In Nova Fert/Neuma”, bastante complexo, datado de 1317. Apesar de o Triplum ser alusivo ao Velho Testamento, seu objetivo é criticar ferozmente a “Raposa” - outro personagem do romance, que representa o Ministro das Finanças da França daquela época, Enguerran de Marigny – que devorou as “galinhas” – representando o povo francês -, ao passo que seu rei, Filipe IV, representado por um “velho leão”, era ‘cego’ aos acontecimentos. O texto inicial do moteto é retirado de Metamorphoses, de Ovídio, e fala sobre corpos se transformando em novas formas; no caso, o “corpo político” transformado num “burro”, Fauvel6. Interessante ver que, apesar de tão distante do nosso tempo, os problemas de corrupção parecem muito semelhantes, apenas em outro contexto; mais importante ainda é que, ainda que seja no século XIV, há artistas, em especial Tradução da estória feita a partir do artigo sobre o Roman de Fauvel da Wikipedia em inglês. Disponível em: Acesso em 07 jul 2012. 5 EARP, 1995, p. 72, APUD Wikipedia. Disponível em: Acesso em 07 jul 2012. 6 Texto traduzido e adaptado da p. 82 do livro “Anthology for Music in Western Civilization”, de Timothy Roden,Craig Wright e Bryan R. Simms, Vol. 1: “Antiquity through the Baroque”. 4

116

aqui, músicos, em combinação com poetas, dispostos a apontarem e criticarem, através de suas obras, os problemas de sua sociedade (crítica social), sejam eles políticos, econômicos ou religiosos. Abaixo, fac-símile de parte do manuscrito do Roman de Fauvel:

Figura A: Página do manuscrito com texto, música e ilustrações 7.

SÉCULO XVIII: AS BODAS DE FÍGARO Pulando para o século XVIII, temos nosso próximo exemplo, retirado do Classicismo em música, especificamente de Wolfgang Amadeus Mozart (17561791), geralmente não muito ligado a idéias de crítica social ou conhecido por isso. Antes de falara propriamente do exemplo, deve-se discorrer um pouco sobre o pensamento de Mozart acerca de assuntos políticos, sociais, filosóficos, dentre outros, bem como de sua situação como músico. Há uma frase do compositor austríaco que parece resumir bem seu senso de justiça e ordem social: "O coração nobilita o homem e, se seguramente

7

Imagem extraída de < http://en.wikipedia.org/wiki/Roman_de_Fauvel> Acesso em 10 jul 2013.

117

não sou conde, talvez tenha em mim mais honra do que muitos condes; e, lacaio ou conde, na medida em que ele me insulta, ele é um canalha".8 Ele escreve isso em uma carta após seu confronto com seu (ex-)patrão Hyeronimus von Colloredo, arcebispo de Salzburgo, figura austera que lhe impunha severas restrições, o que fez com que Mozart procurasse Viena para se estabelecer. A capital da Áustria era um centro musical que florescia, no qual o compositor poderia ser “livre”, onde ele conseguiria “se realizar” como músico, não sendo um mero empregado da corte abaixo até dos camareiros, situação insuportável para Mozart, que sempre pareceu ansiar por liberdade durante toda a sua vida. Parte das ideias de Mozart foi moldada por seu pai, Leopold, que, apesar de católico devoto, tinha amigos iluministas e anticlericais, manifestando, às vezes, sua indignação com a corrupção da Igreja e dos príncipes. Mas, ao mesmo tempo, para garantir o futuro do filho, queria que este se relacionasse muito bem com os patrões da alta hierarquia, recriminando muito seu filho quando ele toma a decisão de abandonar o trabalho em Salzburgo e partir para Viena. Já casado, Mozart deixa por definitivo Salzburgo em 1783, não sendo mais um empregado na corte. Aí há uma quebra social para a situação do músico que é analisada pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) em seu livro “Mozart, Sociologia de um Gênio” (1991, ed. póstuma). O problema chave descrito pelo autor é que a sociedade da época de Mozart ainda não estava pronta para aceitar um músico autônomo, à maneira que Beethoven faria mais tarde. Havia, na época, um “conflito entre os padrões de classes mais antigas, em decadência, e os de outras, mais novas, em ascensão” (1991, p. 15), sendo a nobreza/aristocracia, a primeira, e a burguesia “outsider”, a segunda. De qualquer forma, Mozart se “insurge” contra o patronato e busca, através de sua música e seu talento, liberdade social, política e econômica. Seu gênero preferido, a Ópera, vai acabar mostrando uma crítica, ainda que muito velada e disfarçada, à sociedade da época. Le Nozze di Figaro foi composta entre 1785 e 1786, sendo estreada no dia 1º de maio de 1786 em Viena 9. Com libreto de Lorenzo Da Ponte10 (primeira de três colaborações dele com o compositor, sendo as outras duas Don Giovanni, 1787, e Così fan tutte, 1790), trata-se de uma ópera-bufa em quatro atos que satiriza a nobreza e seus costumes. A obra, por sua vez, é baseada na peça de teatro homônima de PierreAugustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), autor de teatro francês, que cria o

Retirado do artigo da Wikipedia, que tem como fonte STONE, 1996b, p. 158-169. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Wolfgang_Amadeus_Mozart#cite_note-46> Acesso em: 07 jul 2012. 9 Informação retirada de: Acesso em: 10 jul 2013 10 Lorenzo Da Ponte (1749-1838), nascido Emanuele Conegliano, libretista e poeta veneziano. 8

118

personagem Figaro, sendo a peça parte de uma trilogia, precedida pelo Barbeiro de Sevilha e seguida pelo drama A Mãe Culpada. A obra original11, que expõe a nobreza e seus costumes depravados, foi considerada revolucionária e subversiva, chegando a ser proibida pelo rei Luis XVI em 1781. Em 1784, após pressão da própria Rainha Maria Antonieta, e de Beaumarchais fazer revisões na obra, esta é aceita de volta e passa a ser sucesso, até mesmo entre a aristocracia, tão criticada. Lorenzo Da Ponte, de forma inteligente, “encobre” ainda mais a crítica e faz um libreto genial (para ser aprovado pela censura da época), sobre o qual seu parceiro, Mozart, faz uma música mais genial ainda. Na abertura, é interessante notar algo de “música motórica”12, em que se pode imaginar a descrição do movimento da cidade de Viena (ou de uma capital ou cidade importante da época). A trama se desenvolve no castelo do Conde de Almaviva, perto de Sevilha, em 1785. Fígaro e Susanna, servos desse Conde e de sua mulher, a Condessa de Almaviva, estão noivos e se casarão em breve. Só que Susanna é assediada sexualmente por longo período pelo Conde, que havia prometido abolir o Direito do Senhor, que dava, ao nobre, o direito de dormir com sua serva antes de ela se casar.13 A estória acaba em final feliz, mas há muito no seu desenrolar que merece um estudo sob o ponto de vista da crítica social. Há presente uma ideia forte de o servo superar seu patrão, ser melhor do que ele, impedindo o Conde de se deitar com a futura esposa de seu servo por um direito arbitrário e repulsivo. Na primeira cena, há a famosa ária de Fígaro Se voul ballare, Signor Contino (“Se quiser bailar, senhor condezinho”), que já diz muita coisa: "Se quiser bailar,

senhor condezinho, tocarei a guitarra; Se quiser vir a minha escola, ensinar-lhe-ei a cabriola14". Mozart compõe uma dança para esse texto, um minueto, talvez indicando ainda mais o deboche ou a provocação, além de, obviamente, relacionar a música com o texto. É um desafio direto e explícito ao patrão. E segue-se a ópera com exemplos dessa natureza. Tudo isso se torna ainda mais interessante e adequado analisando o contexto em que as obras foram feitas; tem-se uma Europa em clima de tensão, com uma nobreza cada vez mais “à beira do precipício”, e com a Revolução Francesa prestes a explodir. A peça de Beaumarchais, refeita e reestreada em Também intitulada pelo próprio Beaumarchais de “La Folle Journée” (“O Dia Louco”, ou “Dia de Loucura”), que se manteve da mesma forma na ópera de Mozart e Da Ponte (“La Folle Giornata”, em italiano, idioma desta ópera). 12 Anotação feita a partir de aula da Cadeira de História da Música IV, semestre 2010/2, ministrada pelo prof. Dr. Celso Loureiro Chaves. UFRGS, 27/09/2010. 13 Resumo adaptado do artigo da Wikipedia. Disponível em: . Acesso em: 07 jul 2012. 14 Tradução retirada e adaptada do site: < http://www.marxist.com/figaro-revolucaofrancesa.htm>. Acesso em 08 jul 2012. 11

119

1784, a ópera de Mozart, estreada em 1786, e a Revolução Francesa começando em 1789. A respeito da peça teatral, Georges Danton (1759-1794), um dos principais líderes no início da Revolução Francesa, disse que ela “matou a nobreza”15; o próprio Napoleão Bonaparte, quando no exílio, chamou-a de “a Revolução já posta em ação”16. Certamente, Mozart tinha consciência do que estava acontecendo ao seu redor; sabia de seu papel como músico ante a sociedade de seu tempo, e isso se combinava com seu infinito desejo por liberdade. Sabia também por aquilo que ele próprio havia passado. E o fato mais interessante de todos é que Mozart foi quem selecionou a peça de Beaumarchais e a entregou para Da Ponte fazer o libreto17. Para finalizar esta parte, citam-se as palavras de Charles Rosen em seu livro The Classical Style (1997, pg. 183, tradução minha): "A síntese da complexidade que acelera e da resolução simétrica que estavam no coração do estilo de Mozart permitiram a ele descobrir um equivalente musical para as grandes obras teatrais, que eram seus modelos dramáticos. As Bodas de Fígaro, na versão de Mozart, é o equivalente dramático, e sob muitos aspectos o superior dramático, à obra de Beaumarchais."

Abaixo, fac-símile de parte da página manuscrita do dueto entre Susanna e Cherubino: Figura C18 Citação retirada e traduzida (tradução minha), disponível em: Acesso em 10 jul 2013. 16 Citação retirada e traduzida (tradução minha), disponível em: Acesso em 10 jul 2013. 17 Informação retirada e traduzida (tradução minha), disponível em: Acesso em 10 jul 2013. 18 Imagem retirada de: 15

120

SÉCULO XX: A ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS Por último, chegamos ao complexo século XX, onde temos o exemplo mais aberto, por assim dizer, de crítica social, de música engajada propriamente dita, o que talvez seja a principal diferença para os dois outros exemplos anteriores. Die Dreigroschenoper pode ser considerado um teatro musical, sendo escrito pelo grande dramaturgo revolucionário Bertold Brecht (1898-1956), e composto por um dos grandes expoentes da música do século XX, Kurt Weill (1900-1950). Foi, na realidade, adaptada de uma ópera-balada (peça musical satírica, com algumas convenções de ópera, mas sem recitativo) inglesa do século XVIII, do autor John Gay (1685-1732), The Beggar’s Opera, em três atos, de 1728, com música de Johann Christoph Pepusch (1667-1752). A obra satiriza política, pobreza e injustiça, criticando a corrupção em todos os níveis da sociedade. Em 1928, então, pelo 200º aniversário da produção original, Brecht e Weill criaram uma nova adaptação teatro-musical da obra na Alemanha, que se chamou Die Dreigroschenoper e, em inglês, The Threepenny Opera, significando, justamente, uma ópera “barata”, acessível a todos, como é dito em seu início: “Vocês ouvirão agora uma ópera. Porque ela foi planeada de forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão barata, que até os mendigos possam pagar, ela se chama A Ópera dos Três Vinténs".19

A obra de Brecht e Weill seguiu bem a trama original de Gay, obviamente apenas colocando-a no tempo deles e com música totalmente diferente, é claro. A trama se dá em uma Londres Vitoriana e marginal “anacrônica”, tendo em Macheath (ou Mackie Messer ou Mack the Knife) seu personagem principal, um criminoso anti-herói. Ele se casa com Polly Peachum, o que desagrada ao pai dela, que controla os mendigos de Londres, e faz de tudo para Macheath ser enforcado. Seus esforços são dificultados, pois Tiger Brown, Chefe de Polícia, é um antigo camarada de exército de Macheath. O pai de Peachum consegue finalmente prender e sentenciar o criminoso à forca, destino do qual Macheath consegue escapar (“Deus Ex Machina”) momentos antes da execução, quando, numa paródia de final feliz, um mensageiro da Rainha chega e concede perdão a ele, dando-lhe o título de Barão.20 A história consegue conter uma crítica político-social “afiada”, e a música reúne aquilo que se ouvia nos cabarés e clubes de Berlim dos anos 1920. “As harmonias ácidas de Weill e os textos sarcásticos/afiados de Brecht criaram um Acesso em 10 jul 2013. 19 Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Die_Dreigroschenoper>. Acesso em 08 jul 2012. 20 Traduzido e adaptado de: < http://en.wikipedia.org/wiki/The_Threepenny_Opera>. Acesso em 08 jul 2012.

121

novo teatro musical revolucionário...”21, desafiando noções de propriedade, de quem seria o verdadeiro criminoso em uma sociedade, etc.. Claro, como em 1933 há a ascensão do Nazismo na Alemanha, esta obra e muitas outras foram proibidas, e os dois autores tiveram que fugir, refugiando-se nos EUA. Mas nem isso impediu o estrondoso sucesso (até ali, em todo o mundo foram produzidas 130 vezes, sendo traduzida para diversos idiomas). Após a guerra, voltou a ser apresentada na Alemanha e nos EUA, mas só a partir de 1954 ressurgiu novamente como sucesso total, a partir de produção feita em Nova Iorque (fora da Broadway), e, até hoje, continua o sendo mundialmente. A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, foi baseada na Ópera dos Três Vinténs. Abaixo, foto dos autores da ópera, Brecht (e) e Weill (d):

Figura C22

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como já foi reforçado em todo o artigo, pode-se perceber a presença notória de músicas, em diversos e distantes períodos da história da música ocidental, servindo como veículo de crítica social (política, econômica e religiosa). Apesar de terem sido criadas em contextos totalmente diferentes (ou nem tanto!), deve-se ressaltar que os problemas sociais são incrivelmente comuns a todos, seja na corrupção política e religiosa ou na diferença de classes. Portanto, está longe de ser um problema superado e, justamente, por ser humano, é tão difícil de superar. Porém, é importante saber, analisando a história da humanidade, que sempre haverá pensadores, artistas e, nos casos citados neste trabalho, músicos, trabalhando em conjunto com outras áreas. 21 22

Traduzido de: < http://www.threepennyopera.org/intro.php>. Acesso em 08 jul 2012. Imagem retirada de Acesso em 11 jul 2013.

122

Refletindo com consciência os acontecimentos e as transformações das sociedades nas quais estão inseridos, apontam, criticam, mostram os erros e falhas graves de sua sociedade aos seus contemporâneos e até àqueles que virão depois. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARS NOVA. Wikipedia. Disponível em: Acesso em 07 jul 2012. CADEIRA DE HISTÓRIA DA MÚSICA IV. Informação obtida na aula do dia 27/09/2010. Ministrada pelo Prof. Dr. Celso Loureiro Chaves. IA/DEMUS/UFRGS, semestre 2010/2. DIE Dreigroschenoper. Wikipedia. Disponível em: . Acesso em 08 jul 2012. ELIAS, Norbert. Mozart, Sociologia de um Gênio. Org. por Mathias Schröter. RJ: Ed. Zahar, 1994 (trad.) LE Nozze di Figaro. Wikipedia. Disponível em: Acesso em: 07 jul 2012. MOZART’S Le nozze di Figaro premieres in Vienna. This Day in History. Disponível em: Acesso em 10 jul 2013. RODEN, Timothy; WRIGHT, Craig; SIMMS, Bryan. Anthology for Music in Western Civilization, Vol. 1: Antiquity through the Baroque. Canada: Schirmer Cengage Learning, 2010. ROMAN DE FAUVEL. Wikipedia. Disponível em: Acesso em 07 jul 2012; 10 jul 2013. ROSEN, Charles. The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven. New York/London: W.W. Norton & Company, 1997, pg. 183. THE Marriage of Figaro. Wikipedia. Disponível em: Acesso em 10 jul 2013. THE Threepenny Opera. Wikipedia. Disponível em: . Acesso em 08 jul 2012. THREEPENNY Opera: An Introduction. Kurt Weill Foundation, 2012. Disponível em: . Acesso em 08 jul 2012. WOLFGANG Amadeus Mozart. Wikipedia. Disponível em: Acesso em: 07 jul 2012. WOODS, Alan. Fígaro e a Revolução Francesa. Disponível em: . 19 mar 2007. Acesso em 08 jul 2012.b

123

SECOS E MOLHADOS NO BRASIL DOS ANOS 70: A ARTE NO ESPAÇO DO ENTRE, O GOZO E O SUPLÍCIO Sabrina Ruggeri [email protected]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: Este trabalho pretende analisar a curta trajetória do Secos e Molhados em relação com o contexto histórico e político do Brasil dos anos 70. O projeto estético do grupo é objeto privilegiado de análise, que guarda um importante potencial subversivo: o convite à descoberta do próprio corpo, à liberdade sexual e individual, bem como o convite à apreciação da ambiguidade, do andrógino e sedutor. Deste modo, contrapor-se à ditadura escancarada dos anos 70 no Brasil também pode significar fazer música com sensualidade e um apurado senso crítico. O espaço do entre residiria justamente no esforço por vencer a exacerbada polarização política dos anos 70, na busca pela expressão artística que possa revelar algum conteúdo de verdade social. Enquanto isso, a máquina de violência e tortura do regime ditatorial se encontrava já institucionalizada, revelando o suplício como palavra de ordem. O legado do Secos e Molhados se mostra justamente na criação de um lugar em que se torna possível subverter a violência através da correlação entre forma musical e social. Palvras-chave: Secos e Molhados; Canção Popular Brasileira; Theodor Adorno; Luiz Tatit.

O Secos e Molhados foi criado em 1972 na cidade de São Paulo por João Ricardo, jornalista nascido em Portugal e responsável pela influência do gênero Rock na banda, e Gérson Conrad, admirador do Jazz e da Bossa Nova. O vocalista Ney Matogrosso junta-se ao grupo algum tempo depois por intermédio de Luli, da dupla Luli & Lucinha, e no ano seguinte lançam o primeiro álbum, homônimo, que alcançou a incrível marca de 800 mil cópias vendidas. A atmosfera andrógina, a performance extasiante de Ney Matogrosso, os corpos cobertos por pinturas e purpurinas, a forte mistura musical: um conjunto de sensualismo e excentricidade que logo conquistou o país, justamente nos anos de supressão dos direitos individuais e da maior repressão de uma ditadura que se escancarava. O segundo álbum chegaria em 1974, contudo, a banda logo se dissolveria e as tentativas posteriores de João Ricardo com outras formações não seriam bem sucedidas, sendo a única carreira solo expressiva a de Ney Matogrosso.1 Inicialmente, gostaríamos de chamar a atenção para elementos singulares da musicalidade e do projeto estético do Secos e Molhados. A voz de Ney Todas as informações deste trecho foram consultadas no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. 1

124

Matogrosso ocupa uma posição de centralidade, tanto pela sua função evidente dentro da atmosfera andrógina a ser construída pela banda, quanto pelo seu potencial próprio de contratenor – uma voz capaz de intensa passionalização pela altura natural de seu registro. O que logo nos remete para a modalidade do /ser/ de Luiz Tatit (2002), quando o andamento da música decai e se dá maior destaque aos contornos melódicos: “É a tensão que se expande em continuidade, explorando as frequências agudas (aumento de vibrações das cordas vocais) e a capacidade de sustentação de notas (fôlego e energia de emissão)” (TATIT, 2002, p.10). Pela frequência naturalmente aguda da voz de Ney, o Secos e Molhados se beneficia de duas maneiras: primeiramente, pelo lugar expressivo dessa voz que é claramente um agente potencializador do teor passional das canções. Quando falamos em passionalização, novamente nos remetemos à obra de Luiz Tatit (2002), onde o cancionista (neste caso um intérprete, que contudo possui características de autor pela centralidade de sua expressão no projeto estético considerado), trabalha com os estados passivos da paixão: “Suas tensões internas são transferidas para a emissão alongada das frequências e, por vezes, para as amplas oscilações de tessitura” (TATIT, 2002, p.22). Em segundo lugar, entrevemos o elemento fundamental da atmosfera andrógina do Secos e Molhados: essa voz emitida em frequência próxima à feminina, com um timbre desconcertantemente ambíguo e sedutor. Os arranjos das canções, deste modo, são em sua grande maioria construídos em torno da voz singular de Ney Matogrosso, o primeiro álbum é a maior marca desse recurso estilístico. Observamos aí um grupo de atitude despretensiosa, as canções são de curta duração, os arranjos são simples e, como já dito, costurados em torno da voz, o que não proporciona, por exemplo, o uso de variados instrumentos. Este primeiro álbum, do ano de 1973, parece vir com um alto grau de naturalidade, fluidez e vigor, as canções são inteligentes e vibrantes, por vezes sagazes, mas sempre permeadas pelo jogo dúbio da androginia encarnado na voz de Ney Matogrosso. Quanto à temática, veem-se referências aos folclores português e brasileiro, acrescido da influência esotérica de Luli, da dupla Luli & Lucinha, responsável pelas letras de várias canções. Já o segundo disco, de 1974, viria com arestas: o espaço entre a composição e a produção dos dois álbuns teria possibilitado um processo de autoconsciência da dicção própria de cada um dos integrantes da banda, acrescido a uma evolução técnica dos instrumentistas, deixando este álbum como um todo musicalmente mais maduro. Como consequência, vemos o artifício desta obra, em oposição à naturalidade da primeira. Deste modo, podemos observar uma maior preocupação com os arranjos das canções, aparecem solos de variados instrumentos (como o piano, que quase não constava no álbum anterior), ouvimos as vozes de todos os integrantes do grupo ganhando o seu espaço, ao contrário do disco anterior, onde a voz de Ney preenchia todos os espaços positivos da canção. Soma-se a isto, é importante frisar, conflitos de ordem mercadológica entre os integrantes,

125

provavelmente pelo estrondoso sucesso da banda; esse conflito interior pode ser observado em diversos níveis, parece-nos, tanto na disputa por espaço no terreno das canções, quanto na amargura dos egos exacerbados que se concretiza numa relativa atmosfera de rancor, um tanto pesada neste álbum, e completamente destoante das gravações anteriores. A banda que fez shows grandiosos no Rio de Janeiro e em Brasília, que vendeu um número igualmente grandioso de cópias de discos e que teve videoclipes transmitidos no programa Fantástico, é a mesma banda que mal dura dois anos e que hoje permanece quase esquecida. O ARTIFÍCIO E O NATURAL, A VERDADE ESTÉTICA A questão que se coloca vai em direção a um artifício mais ou menos evidente no disco de 1974 em relação ao primeiro álbum, pois se há sofisticação e amadurecimento artístico por um lado, por outro, tem-se conjuntamente a bancarrota do grupo. Perguntamo-nos: deve a canção e o seu cancionista resguardarem-se neste invólucro de naturalidade que a tradição lhe tem dado? Segundo Luiz Tatit (2002), o cancionista deteria uma estratégia geral de persuasão dos ouvintes, na qual, embora o processo de composição necessite da disciplina das emoções e de um trabalho técnico, o resultado que “...dentro dessa estratégia, ocupa posição de destaque [é] a naturalidade: a impressão de que o tempo da obra é o mesmo da vida. Daí então a camuflagem do esforço e do empenho como parte da canção” (TATIT, 2002, p.18, grifo nosso). Entretanto, realmente precisamos, nós, os ouvintes (essenciais para a manutenção do cancioneiro, salvo engano), dessa aura de naturalidade para que a canção se aloje em nossa memória e finque raízes em nossos corações? O esforço e o empenho do processo de composição de que fala Luiz Tatit realmente precisam ser camuflados? Como teremos de buscar uma verdade estética em meio à subjetividade de uma era da consciência fragmentada, de um sujeito fragmentado? Percebemos, nós, os ouvintes, o artifício do segundo álbum do Secos e Molhados, o esforço por sofisticação artística, as tensões interiores ao grupo, a pressão do mercado e da fama, toda uma atmosfera negativa sob o processo de criação. O que teríamos aí, afinal, e ao fim do processo, não seria justamente uma verdade social decantada na forma musical? O certo é que estas canções “artificiosas” do segundo álbum pouco chamaram a atenção, desfizeram-se na sua própria atmosfera. Parece-nos que a teoria de Luiz Tatit, no encalço desta reflexão, não comportaria um pensamento na direção de uma vanguarda, embora também caracterize o espaço da canção como um “espaço lúdico e experimental” (TATIT, 2002, p.18), e isto, apesar de se encontrar ontologicamente compromissado com a camuflagem do esforço do cancionista no seio da canção. O que nos importa é que a música detenha em seu forma a mesma tensão dos conteúdos sociais, e que não se transforme no antídoto ao qual recorre a

126

consciência angustiada de que nos fala Adorno (2009, p. 21). Desta maneira, um acabamento natural dado à canção camuflaria antes a verdade social que lhe serve de matriz, tratar-se-ia de um mecanismo de apagamento das contradições sociais, satisfaria tão somente o ouvinte que busca naquela música uma ligação emocional que já não consegue mais manter através de seus vínculos sociais. Envolto numa imagem vazia, a canção lhe pareceria natural e suportável, embora já não lhe possa trazer qualquer substância. A arte se converte em mero representante da sociedade e não em estímulo à mudança dessa sociedade; aprova desta maneira essa evolução da consciência burguesa que reduz toda imagem espiritual a simples função, a uma entidade que existe somente para outra coisa, e, em suma, a um artigo de consumo (ADORNO, 2009, p. 29).

Uma arte que não permite o acesso à verdade da vida, à objetividade de uma existência social cada vez mais sôfrega e auto-excludente, qual a sua validade, afinal? A arte transforma-se em mais um dos mecanismos de autoafirmação da sociedade industrial tardia, lacrando todas as portas à consciência em busca de um sentido para si-mesmo, para a sua história, já que observando desta posição, o “natural” seria justamente cantar as contradições e o esforço de se existir, sem facilitar a apreciação. É deste modo que entrevemos algumas chaves de compreensão do que teria sido este fenômeno musical e cultural, o Secos e Molhados: um convite à descoberta do próprio corpo, a ousar conhecer a própria liberdade, um convite igualmente à apreciação do andrógino, do ambíguo e sedutor, tudo isto permeado por uma intrigante dose de efemeridade. Entendemos que a chegada da modernidade trouxe consigo o momento da descoberta do corpo: as artes, a filosofia, a própria cultura, tudo o que é da ordem do humano se volta para o componente material da existência, a ordem do sensório passa a organizar a vida em sociedade, a política, a comunicação. Seria esta uma pequena senda para um caminho inicial de compreensão do lugar específico ocupado pelo Secos e Molhados, é fundido a um movimento próprio da história da cultura ocidental que o grupo se encontra, daí a importância dada ao visual em seu projeto estético: o corpo não deve somente se apresentar ao público como produtor da música que se ouve, talvez mais do que isso, essa música deve ser produzida por um corpo que se ofereça em espetáculo, que se quer cheio de brilho e cores, que quer jogar com a sua corporeidade. O próximo passo vai em direção ao nosso ambiente cultural e político: habitávamos, partindo do quadro geral do Ocidente para o Brasil, a égide do suplício versus o gozo. A ditadura prosseguia num crescendo de violência e medo, de tortura e horror, as diferenças políticas se acirravam de maneira inconteste, deixando pouco espaço para alguma liberdade significativa. Enquanto isso, o brasileiro inventivo, aquele que perseguia alguma forma de expressão artística que se

127

mantivesse autêntica dentre um mundo compartimentado em dois únicos polos, em duas gritantes possibilidades, fugia de seu cotidiano da maneira que lhe era possível, buscando sua salvação no exato oposto do que vivia: do suplício das frentes políticas saturadas e autoritárias, para o gozo libertário de um corpo livre e independente. O SUPLÍCIO DA TORTURA Segundo Elio Gaspari, a tortura se alicerçava no conceito de funcionalidade do suplício (GASPARI, 2002, p. 17), através da exacerbação da ameaça (denominada terrorismo) a um nível em que ela possa ser reconhecida como excepcional para, a partir daí, obter-se a justificativa da excepcionalidade da reação: “O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional” (GASPARI, 2002, p. 23). A hierarquia destas instituições juntamente com uma forte disciplina constroem o fenômeno de uma burocracia da violência, é desta maneira que se torna cabível afirmar que tortura e ditadura implicam-se reciprocamente: “De um lado, a tortura dá eficácia à ordem ditatorial, mas de outro condiciona-a, impondo-lhe adversários e estreitando-lhe o campo de ação política” (GASPARI, 2002, p. 27). Toda uma máquina de repressão e violência é construída para legitimar o regime, enquanto este mesmo, dubiamente, nega a sua participação no mecanismo que trabalha para sua surda legitimação. A tortura não era um instrumento de porão, clandestino e subversivo, era antes a institucionalização de uma dura reprimenda à humanidade dos que insolitamente recebiam a denominação de “terroristas”. “O poder absoluto que o torturador tem de infligir sofrimento à sua vítima transforma-se em elemento de controle sobre seu corpo” (GASPARI, 2002, p. 40). É deste modo que podemos compreender o funcionamento de um ataque feroz a toda a liberdade de um indivíduo, de uma sociedade. Tortura que tem como finalidade máxima a submissão do torturado, mais do que qualquer prerrogativa de confissão, argumento sempre recuperado em defesa dos infringentes da violência contra o corpo de um outro sob seu mais completo e aterrorizante domínio. O suplício se estende e se mantém porque mesmo entre tanto sofrimento, há um corpo que é vivo e suporta a vida. Suporta como suporte. Sofre em o suporte. O corpo é aquela instância da modernidade que aqui aguenta as dores mesmo contra a mente que aos poucos, sem escolha, entrega-se à mais completa desumanização; em contrapartida, na esfera do gozo que nasce em extrema oposição, porém sem gozar de uma existência independente e excludente de seu contrário, o gozo vive com ele, com o suplício, uma unidade dialética de onde é capaz de prover o solo para o mais necessário do agir humano: o corpo convida à ação, agora. Para isto, a esfera do gozo não pode prescindir de uma mudança de ordem metafísica, da passagem para uma outra ordem moral em que esse corpo

128

possa se descobrir e se autoafirmar em sua mais crua materialidade. Adentramos o terreno da liberdade, e como veremos, será esta a herança mais pungente do Secos e Molhados para a história da canção popular brasileira. DZI CROQUETTES, UMA ESCOLA CONTRA O SUPLÍCIO Após o decreto do Ato Institucional número cinco em 13 de dezembro de 1968 as liberdades individuais permaneceram sob o controle totalitário da ditadura que agora se radicalizava, instituindo de uma só vez o mando do terror. Característico dessa época é a postura eminentemente maniqueísta adotada pelos detentores do controle ditatorial: ou o cidadão era de direita e apoiava o regime, ou era comunista e portanto deveria ser preso. Respirar entre estes dois polos era ter de fabricar a própria liberdade, ousar ser livre, cria-se então o espaço do entre a que gostaríamos de fazer alusão. Essa criação deve ser composta de originalidade e subversão, é o momento em que os paradoxos se exacerbam e o princípio da unidade dos contrários encontra uma de suas sínteses: em relações de subordinação, o que se afirma e o que se esconde, em suas muitas interações, extrai-se o elemento portador da possibilidade de superação do todo. Aqui, estamos falando do Dzi Croquettes, grupo nascido no Rio de Janeiro que provocou uma verdadeira e apaixonante revolução artística e cultural em todo o país, vanguarda em sentido estrito. Através do sarcasmo e do escracho, num claro intuito de se distanciar de um teatro abertamente político que predominava, o Dzi Croquettes confundiu todas as bases de julgamento artístico da época, numa explosão de novidade e excentricidade. Sua crítica extremamente sofisticada se direcionava às instituições tradicionais, aquela crítica pungente que toca nas bases morais e metafísicas de toda forma de poder. O principal elemento do grupo, e essencial para a compreensão do Secos e Molhados (que em muito prossegue com o legado deixado pelo grupo), é a expressão pela via do andrógino: tratava-se de treze homens vestidos de mulher, mas que não queriam ser mulheres, e que dançavam como homens, se portavam como homens. Eram homens travestidos mas que não se comportavam como travestis: ambíguos, sensuais, libertários. Como Pedro Cardoso explica2, não se tratava de um espetáculo gay, mas sim de uma possibilidade absoluta do exercício da sexualidade, de uma revolução comportamental e artística. Ou ainda, como Gilberto Gil definiu o Dzi Croquettes, como um grupo que se deu com generosidade para interpretar um momento, um tempo, criando uma visão importante e não convencional, uma criação revolucionária. É curioso observarmos, diante destes esclarecimentos do estrondoso impacto deixado pelos espetáculos, o quanto a censura teve

2

Todas as informações deste trecho são referentes ao documentário Dzi Croquettes.

129

dificuldade para detectar onde exatamente se encontrava a ameaça daquele tipo de teatro, onde estava o perigo daqueles homens dançando nus, de corpos maravilhosos e sedutores. Desse deslumbre, ouvimos do próprio Ney Matogrosso a força da confrontação ao fechamento da mentalidade da época, quando ninguém podia pensar, ninguém podia ser diferente, expressar-se com liberdade. O sucesso atinge um nível internacional, com o grupo se apresentando por alguns anos em Paris e Londres, aclamados pela crítica e pelo público. A partir deste quadro que brevemente tentamos remontar, cantar o prazer do corpo e o deleite dos sentidos detém sim um grande potencial subversivo e um discurso de caráter político. O Dzi Croquettes iniciou um movimento artístico no Brasil que teria seguido a premissa do “vamos fazer arte que é muito melhor”, diante da acirrada polarização política da ditadura; foi bebendo diretamente desta postura, desse entendimento do fazer artístico que a classe artística brasileira passa a se transformar, e a viver um de seus momentos mais criativos. ANÁLISE DE “O PATRÃO NOSSO DE CADA DIA” Nossa escolha para análise, “O patrão nosso de cada dia”, é a terceira faixa do primeiro álbum de 1973, canção que estaria entre as mais passionais deste álbum. “O patrão nosso de cada dia” contém como introdução um elemento influenciado, ao que nos parece, pela música concreta (já que se trata de um som diretamente coletado do ambiente, não produzido por instrumentos tradicionais): ouvimos um sino rústico, intentando, talvez, invocar alguma reminiscência de uma cultura latino-americana. Aqui, logo entrevemos um dos lugares de crítica do Secos e Molhados, a participação num processo nacional de instauração de um espaço de latinoamericanidade, em clara oposição ao imperialismo norteamericano, e claro, a uma ditadura devedora deste poder. O arranjo alcança uma simplicidade comovente, fluido e convidativo, ouve-se um violão suave envolvendo a voz de Ney Matogrosso e um baixo marcante que se encontra por todo o álbum. Outra marca de latinoamericanidade é o solo de ocarina, instrumento de sopro remanescente da América Central. Essa é evidentemente uma canção que se inscreve na modalidade do / ser/, de acordo com Luiz Tatit (2002), parece-nos o momento do álbum em que o ouvinte é convidado a respirar pausadamente, a sentir o apelo de uma sensibilidade melancólica que canta agora na égide do “nós”, que canta uma dor que é de “todo mundo”. “A impressão de que a linha melódica poderia ser uma inflexão entoativa da linguagem verbal cria um sentimento de verdade enunciativa, facilmente revertido em aumento de confiança do ouvinte no cancionista” (TATIT, 2002, p. 20, grifo nosso), essa verdade que chega ao ouvinte pela voz que fala dentro da voz que canta instaura, através da confiança de que nos fala Luiz Tatit, um espaço de cumplicidade entre produtor e receptor, proporciona mesmo uma vivência terapêutica, enquanto não deixa de dizer no

130

canto a verdade da causa daquele sofrimento compartilhado. Porque habitam um mesmo espaço e uma mesma objetividade social, porque estão todos diante das mesmas condições e habitam numa mesma linguagem, todos permanecem habilitados a participarem desta canção. A canção, deste modo, parece crescer envolta por uma só imagem: aquilo que nos oprime a cada novo dia, que nos oferece um não munido de uma nova e sombria face a cada vez. Nossa análise seguirá o preceito de Luiz Tatit (2002) da entoação como unidade mínima de sentido, além dos tonemas que proporcionam um exame figurativo da canção: “os tonemas são inflexões que finalizam as frases entoativas, definindo o ponto nevrálgico de sua significação” (TATIT, 2002, p. 21). Deste modo, essa representação negativa – de uma coisa que me cerca, mas que só me é permitido cantar aquilo que ela não é –, apresenta-se repetidas vezes durante a canção, a cada momento através de uma singular figura, tentaremos enumerar algumas delas. A primeira imagem parece fazer referência a um amor infeliz, assim dizem os versos: “Eu quero o amor da flor de cactos, ela não quis”, a dramatização entoativa parece-nos clara, o acento vai logo na primeira sílaba de “quero” marcando desta forma o eu que sofre, que deseja; situando-se, deste modo, claramente no âmbito da voz que, numa tensão passional, busca a frequência aguda e mantém a tensão do esforço fisiológico de que nos fala Tatit (2002, p. 2122). Contudo, a linha melódica vai decaindo em termos de altura e como que sepulta sua ilusão nas notas mais graves do verso: “ela não quis”, atuando assim como uma complementação da tensão anterior já que segue rumo ao repouso. Entretanto, este primeiro verso é fecundo em nuances: a flor de que nos fala Ney Matogrosso não é bem o que costumamos entender por flor, já que seria uma planta espinhosa, uma flor de cactos. Além disso, essa estranha flor intimada para cantar uma desilusão amorosa tem uma forma peculiar: ela é cilíndrica – soma-se a isso o teor sensual da voz andrógina de Ney Matogrosso e o sentido deste verso se expande claramente. Embora a canção esteja formalmente inscrita nestes versos iniciais na figura do eu, a dor aqui cantada parece ser aquela de “todo mundo” a que fizemos referência acima, inscrever-se-ia, assim, na ordem das desilusões amorosas, do insucesso na vida pessoal, em última instância, presente na vida de todos e de cada um. O ouvinte, dessa maneira, recebe um forte apelo a participar do canto. A canção assim prossegue sobre o tema da desilusão, dizendo: “Eu dei-lhe a flor de minha vida, vivo agitado”. Entretanto, essa exploração inicial de um eu exacerbado logo se estilhaça na esfera de um nós sobre o qual se fala, através do qual se fala: “Eu já não sei se sei de tudo ou quase tudo, eu só sei de mim, de nós, de todo mundo”. A desilusão, neste momento, é revestida de contornos políticos: quando a incerteza dessa voz é elevada a tal ponto que podemos pressentir o espaço do entre no qual ela aparece, contudo, intuímos uma certeza dentro da incerteza – ela sabe do que se passa com todos a cada dia. Essa voz sabe da

131

polarização de valores que enforca as liberdades, ela sabe do suplício de viver cotidianamente entregue ao medo e ao terror. A entoação, neste verso, é calma e tende ao relaxamento (notas graves), sem grande oscilação de tessitura, caracterizando um âmbito de conciliação, mas, sobretudo, de aceitação consciente do sofrimento através da afirmação de sua generalidade. Trata-se de uma dor de “todo mundo”, sinto-a ao mesmo tempo em que a reconheço nos outros, e a generalizo, sem contudo falsificá-la. Os versos seguintes, “Eu vivo preso à sua senha, sou enganado. Eu solto o ar no fim do dia, perdi a vida”, com a mesma linha melódica dos versos comentados acima, parecem-nos intimar diretamente o ouvinte para a esfera do trabalho, um trabalho que o aliena, que lhe desbota a vida, que lhe prende e engana. O acento entoativo reside nas palavras “vivo preso”, caracterizando o esforço do cancionista que apresenta sua tensão emocional, e que irá encontrar relaxamento em “sou enganado”, como num tom conclusivo de melancolia, novamente. O mesmo acontece em “solto o ar”, quando Ney Matogrosso imprime o sentido presente na letra, um alívio vindo depois de intensa dor, à melodia e ao potencial de seu próprio timbre de voz, marcando, deste modo, o “vínculo simbiótico entre o texto e a melodia” (TATIT, 2002, p. 21). Por este motivo o autor compara o cancionista a um malabarista, já que sua atividade deve lhe permitir “equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia” (TATIT, 2002, p. 09). Chegamos, assim, ao refrão: “O patrão nosso de cada dia, dia após dia...”, o acento entoativo está claramente localizado: em “patrão”. A nosso ver, encarnaria o peso de todas as imagens frequentadas até este momento, figurando a representação por excelência da dor de todos a cada dia, um centro de sentido para o qual direcionamos nossas dores e nossa revolta, um mesmo mal que juntos poderíamos lutar contra. Logo entrevemos a carga política deste verso, se compreendermos que esta imagem tida como a “encarnação do mal” pode também ser lida através de seu sentido literal: o patrão que me oprime em minha rotina de empregado, para o qual vendo minha força de trabalho, que me consome boa parte da vida. O patrão, nesse sentido, além do chamado à esfera estritamente política da existência, dentro do contexto já explicitado de uma ditadura de intensa repressão ao corpo, pode ser compreendido como o interdito moral que me prescreve a norma do “não goze, não descubra o seu corpo e a liberdade inscrita nele”, o verso “perdi a vida” parece conter esse sentido de maneira mais intuitiva. Deste modo, as referências à esfera do político são sempre permeadas por nuances de sensualidade no Secos e Molhados, a crítica aqui passa enfaticamente e poderosamente pelo ideal libertário de um corpo que se reconhece como nãovivo, como podado pelo poder, e sua revolta deve ser tanto mais forte que o jugo deste poder. CONSIDERAÇÕES FINAIS

132

É nesse ambiente que veio sendo descrito até aqui que surge o Secos e Molhados, influenciando-se claramente pelo padrão estético e crítico deixado pelo Dzi Croquettes, mesmo Ney Matogrosso fala da revelação que foi para si próprio ter visto o espetáculo e dali ter alcançado a certeza da direção de sua expressão artística. Impulsionado pelo vanguardismo do grupo, o Secos e Molhados pôde perdurar com sua arte no singelo espaço do entre, estendendo o alcance desse discurso estético que se nega a tomar partido diante da polarização política do país, construindo, assim, a nosso ver, a possibilidade de uma expressão autêntica e livre, que possa falar dessa sua liberdade ao ouvinte. A partir de nossas considerações acerca do contexto político do Brasil do início dos anos 70, e de seus reflexos no campo das artes, podemos entrever que, naquele momento, em suas específicas circunstâncias, cantar o prazer do corpo e o deleite dos sentidos teve sim um grande potencial subversivo e um discurso de caráter político. A música de atmosfera andrógina detém sua própria verdade social porque fala de um lugar que estava sendo construído, de uma dubiedade real e atuante. O projeto estético dos Secos e Molhados, como um todo, habita esse espaço do entre que canta a liberdade através de uma arte capaz de fazer esse entre, em primeiro lugar, e pela liberdade sexual e sensual cantada na subversão possível daquele lugar. Embora as considerações de Adorno (2009) acerca da vanguarda estejam determinadas pela sua própria realidade, pela música popular a que o filósofo tinha acesso na época, não nos parece incorrer ao erro se estendermos estas reflexões ao contexto brasileiro. Se o Secos e Molhados se opôs frontalmente ao regime ditatorial vigente na época através da substância de sua arte, por que não ler esta atuação como portadora de uma verdade estética? Se o filósofo já nos lembrava, assim dizendo, que “hoje a arte, pelo menos a arte realmente substancial, reflete sem concessões e lança à superfície tudo o que se queria esquecer” (ADORNO, 2009, p.21), então podemos observar, seguindo este caminho, que o Secos e Molhados fez justamente isso ao mostrar para o país toda aquela liberdade que estava sufocada, todo um suplício que fazia sucumbir pelas beiradas, e entregou de volta a possibilidade do ambíguo, do entre, do gozo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Filosofia da Nova Música. São Paulo: Perspectiva, 2009. ______. Introdução à Sociologia da Música: doze preleções teóricas. São Paulo: Editora Unesp, 2011. DICIONÁRIO Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Cravo Albin, 2002. Disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/secos-e-molhados. acesso em: 10 dez. 2012.

133

DZI Croquettes. Direção: Raphael Alvarez, Tatiana Issa (110 min), 2005. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

134

O SENTIDO DA MÚSICA NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

José Eduardo Costa Silva1 [email protected] Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória – ES)

Resumo: Uma reflexão sobre o sentido da música na filosofia de Martin Heidegger, em suas articulações com a verdade e o ser. A caracterização da música como lógos. A caracterização da música como um fenômeno que traz a condição genérica da verdade. Palavras-chave: música, verdade, lógos, Heidegger.

INTRODUÇÃO. O presente artigo consta de uma reflexão sobre as articulações que Martin Heidegger estabelece entre verdade, ser e música, tendo como referências os textos que, em língua portuguesa, estão compilados sob o nome: A Caminho da Linguagem. Ao fazer esta reflexão, espero alcançar o objetivo de delimitar um campo de compreensão conceitual para a música, concernente à hermenêutica deste filósofo. Exponho os principais pontos que permitem caracterizar a música como lógos, exercitando a hipótese de que a música, assim concebida, é um fenômeno que traz a condição genérica da verdade. Como conclusão, apresento algumas proposições derivadas desta hipótese. I- VERDADE, LINGUAGEM E ARTE. É pré-condição para a reflexão que ora proponho, retomar, mesmo que em linhas gerais, o conceito de verdade, tal como Heidegger o concebe: Lichtung. Esta palavra encampa, primeiramente, o sentido de alétheia (ajlhvqeia) que, na José Eduardo Costa Silva. Doutor em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor do Curso de Música da Universidade Federal do Espírito Santo. Atua também como compositor e intérprete na da Cia de Teatro Inconsciente em Cena (RJ), dedicada às pesquisas em arte/psicanálise e à criação e montagem de espetáculos teatrais. Nesta Cia compôs a trilha original e assinou a direção musical dos espetáculos: X, Y e S (2005); Artorquarto (2007); Oidpous (2010); Variações Freudianas I (2011) e Variações Freudianas II (O Ato) (2013) do Dramaturgo e Psicanalista Antonio Quinet. Tem se apresentado frequentemente como músico solista, além de assinar a direção e curadoria do projeto Música na UFES, dedicado à divulgação da música de concerto nacional e internacional e a edição da revista Música e Linguagem do Departamento de Música da UFES. 1

135

tradução de Heidegger, significa desvelamento.2 Lichtung significa também clareira, isto é, a região de abertura, em que o ser pode uma primeira vez, e, imediatamente, doar o nome e o significado ao ente. PINHEIRO (1997, p.7/8) Assim, a Lichtung está profundamente articulada ao par conceitual que estrutura o pensamento heideggeriano, qual seja: ser e ente. Definidos a grosso modo: o ente é todo o existente, as coisas em geral, os seres vivos ou não, a realidade, ficção e até mesmo a linguagem. O ente é o que se oferece à linguagem. Em contrapartida, o ser é o que possibilita a apreensão e nomeação do ente, sem que, no entanto, possa ser determinado pela linguagem. HEIDEGGER (1988, v.1, pr. 3 e 4).3 A Litchtung, concebida como a região em que o ser nomeia o ente, sustenta o contato imediato entre linguagem, pensamento e coisa, doando-nos os esquemas subjetivos pelos quais determinamos o que é verdadeiro no âmbito da linguagem. O esquema subjetivo que se notabilizou como verdade no desenvolvimento da metafísica e, posteriormente, na ciência se resume na sentença: adaequatio res et intelectus. Trata-se da verdade concebida como adequação, ou , nos termos da hermenêutica heideggeriana: a verdade ôntica. Assim encaminhada, a reflexão sobre a verdade é uma reflexão sobre a sustentabilidade da linguagem, no que concerne à possibilidade de o homem, por meio dela, apreender o mundo. Porém, sob esse mesmo aspecto, Heidegger situanos no âmbito da discussão desenvolvida por Platão no Crátilo. Não se trata somente de determinar uma relação de adequação entre nome e coisa, mas, fundamentalmente, compreender como o homem apreende a phýsis, submetendoa em sua diversidade e mobilidade à unicidade e imobilidade do conceito. 4 Portanto, a reflexão sobre a verdade é uma reflexão sobre as relações entre linguagem e phýsis. PINHEIRO (1997, p.8-9) Porém, problematiza Heidegger, na história da filosofia, está implícita uma história da ocultação do sentido originário da verdade, que teve como marco inicial a noção de que a verdade diz respeito estritamente à lógica proposicional. Sobretudo a partir das traduções medievais dos textos de Aristóteles, a reflexão

Alétheia (ajlhvqeia): composição entre o prefixo a, compreendido em sentido privativo e o radical lhJ, compreendido como a parte do ente originariamente velada, de onde se infere que verdade signifique desvelamento. 2

Doravante, em respeito à terminologia empregada nos textos de Heidegger, quando empregar o termo ôntico estarei me referindo ao ente, quando empregar o termo ontológico, estarei me referindo ao ser. 4 No sentido empregado por Platão a phýsis tem o conceito muito próximo ao conceito de ente. Trata-se do todo “material” (existente) do qual se fala. A phýsis é qualquer matéria que poderá assumir múltiplas formas e significados. A phýsis apresenta-se diversa aos sentidos, por exemplo, o mundo é composto de inúmeras coisas (pedras, árvores, água etc) e essas coisas são móveis, por exemplo, alguém hoje não é o mesmo de ontem. A diversidade e a mobilidade comparece à unicidade do conceito. Por exemplo, as árvores diversas e móveis são referidas pelo conceito de árvore. 3

136

sobre a verdade deixou de ser uma reflexão sobre a apreensão dos movimentos da phýsis, para converter-se em uma reflexão sobre a adequação da linguagem. Desde então, a verdade ôntica vigora no Ocidente, adquirindo um papel fundamental para a validação do saber que deriva da lógica proposicional, qual seja, o saber da metafísica e, por extensão, da ciência. Heidegger argumenta, na tradição metafísica, a verdade expressa uma relação de adequação entre a proposição e a coisa referida. Dizer que S é P implica em admitir que determinada substância S define-se como tal porque agrega qualidades inerentes a P. Destarte, a verdade ôntica expressa a substancialidade do ente nos termos da proposição S é P. STEIN (1993, p.163) A preponderância da noção de substancialidade desconsidera o dinamismo do vir-a-ser em função da dimensão da presença do ente, que está projetado no tempo ôntico (passado, presente e futuro).5 Assim, por concernir ao ente determinado como substância na presença, a verdade ôntica coaduna-se à inclinação natural do homem em manter-se no âmbito existencial do ente, sem ater-se ao ser. Atendendo a esta inclinação, o homem tende a situar-se no âmbito da linguagem e da temporalidade cotidiana (tempo ôntico), sem arriscar-se no horizonte de angústia, próprio da abertura da linguagem. Nesse estado de ser no mundo, o homem considera a si mesmo e ao mundo circundante como um conjunto úteis. HEIDEGGER (1988, pr. 35). Por conseguinte, na dimensão proposicional da linguagem ocorre o eclipse da verdade ontológica, em função da preponderância da verdade ôntica. Esse fato provoca o obscurecimento do sentido da partícula é, que passa a referir-se exclusivamente ao que permanece, deixando de também referir-se ao que se realiza no âmbito da temporalidade ontológica, isto é, da temporalidade ekstática, pela qual o ser permite a antecipação da pluralidade de significados do ente. 6 Não obstante, a partícula é resguarda a presença da verdade ontológica dentro da proposição. É por sua mediação que podemos efetivamente dizer S é P. A partícula é, mesmo que não apareça objetivamente, está implícita no dizer propositivo, sendo que por intermédio dela determinamos o ente através de suas atribuições. HEIDEGGER (1988, pr.44)

O tempo ôntico caracteriza-se como uma sucessão de agoras, estando o passado e futuro reduzidos, respectivamente, ao esquecimento e à expectativa. Assim, ele permite o estabelecimento de datas e, consequentemente, de cadeias de conexões significativas, articulando a linguagem cotidiana (proposicional). HEIDEGGER (1988, pr. 53) 5

O tempo ontológico se manifesta na articulação ekstática de suas próprias dimensões: futuro, passado, presente, nesta ordem. Ele concerne à abertura do ser que como não-dito sustenta o horizonte projetivo de compreensão do homem sobre si mesmo e sobre os entes circundantes. O tempo ontológico permite ao homem antecipar-se em relação ao presente e intuir a pluralidade de sentidos do ente, articulando a linguagem poética. HEIDEGGER (1988, pr. 53) 6

137

Por entender que a linguagem proposicional (cotidiana) obscurece o sentido da verdade ontológica, Heidegger reflete sobre a linguagem poética, segundo dois eixos: um primeiro que se dirige às artes plásticas, onde a caracterização da verdade como um estado de apreensão dos movimentos da phýsis é explícita; um segundo que se dirige à literatura, onde a caracterização da verdade como elemento constituinte da linguagem encontra sua formulação definitiva. É no ensaio A Origem da Obra de Arte que Heidegger defende a tese de que a verdade é um acontecimento anterior aos esquemas subjetivos que mediam a relação entre homem (Dasein) e mundo. Este acontecimento é produzido pelo jogo dialógico que se estabelece entre a Terra (Die Erde) e um mundo (eine Welt), no qual a Terra é compreendida como phýsis, isto é, como a matéria em suas múltiplas possibilidades de determinação significadora, e, concomitantemente, um mundo é compreendido como a pluralidade de significados históricos que revestem o ente. Com o intuito de observar este jogo, sem que o mesmo esteja mediado pela visão utilitarista cotidiana, Heidegger descreve as obras de arte, tomando-as como um posto privilegiado de observação da verdade e do ser. Aqui, refiro-me especificamente às descrições fenomenológicas do quadro de Van Gogh (Sapatos de Camponês) e do templo grego (Paestum). O que fundamentalmente se vê no quadro de Van Gogh é que o camponês retratado não pensa na utilidade dos sapatos (ser-instrumento) que usa, posto que os concebe como um ser-de-confiança (die Verlässlichkeit). O camponês simplesmente confia nos sapatos, na medida em que intui (antecipa) a adequação da matéria (Terra / phýsis) para o fim que lhe é determinado. Assim caracterizado, o ser-de-confiança refere-se diretamente à intuição que temos da matéria em seu vir-a-ser. Trata-se, tal como estatuído em Ser e Tempo, do ser apreendido em sua dimensão ekstática, ou seja, do ser cujo sentido se dá como antecipação do futuro na constituição do presente e do passado. Por conseguinte, o quadro de Van Gogh representa e revela ao mesmo tempo e imediatamente um modo fundamental de apreensão da phýsis, a saber: o ser no sentido da abertura antecipadora do ente, que permite a apresentação de um mundo de significados do camponês: Observemos as sombra de abertura de seu interior já gasto, onde se esboça a fadiga do andar laborioso, e eis que percebemos os passos rudes, pesados e fatigados do camponês que, sob um vento avassalador, imprime, com sua marcha lenta, grandes e monótonos sulcos na terra lavrada... No couro engordurado pela terra fértil e negra e nas duas solas imóveis, desliza a solidão dos vastos espaços das tardes do campo. No par de sapatos, eclode o secreto apelo da Terra, o cuidado pelo pão de cada dia na promessa do trigo, as auroras glaciais, as tardes enigmáticas à espreita do inverno. Através desse instrumento, o camponês experimenta o exercício pela sobrevivência, a doce espera do filho que retorna à casa, a alegria de sentir a vida, o cuidado de temer a morte. Se o

138

par de sapatos é propriedade da Terra, em sua dignidade, tranquilidade e segurança, o mundo do camponês o resguarda. É o próprio ser do instrumento que emerge dessa propriedade resguardada, pois sob esse gesto de proteção, ele repousa em si mesmo. HEIDEGGER (1986, p.205)

Contudo, é justamente na descrição de uma obra não figurativa (Templo de Paestum) e certamente por isso menos passível de remetermo-nos às referências cotidianas, que Heidegger descreve os eventos que permitem-nos compreender o modo como a obra revela o ente em sua primeira acepção e o mecanismo de produção do acontecimento da verdade. Na descrição do templo, o que primeiramente se vê é sua matéria (phýsis) retraindo-se na própria recusa de algo significar. Esse movimento de velamento tem como contrapartida a antecipação reveladora do significado do deus que nele habita: Uma obra de arquitetura – um templo grego – nada reproduz, erguendo-se simplesmente do interior do vale. A construção resguarda a forma do deus, deixando-a em seu lugar sagrado, velada pelo pórtico. O deus se torna presente no templo através do templo, e é essa presença que determina os limites do seu lugar e o faz sagrado. O lugar do templo e os seus limites não se diluem no indeterminado: a obra-templo reúne em torno de si mesma, pela primeira vez e simultaneamente, a harmonia das relações nos quais o nascimento e a morte, a ventura e a desgraça, a vitória e a ruína, a perseverança e a decadência tomam a forma do destino da humanidade. A poderosa extensão dessas relações significa o mundo desse povo histórico. A partir dela e através dela, o povo se volta para si mesmo para cumprir o seu destino. HEIDEGGER (1986, p.228)

Instituindo em sua diferença (estranhamento) em relação ao mundo dos úteis, a obra possibilita que a Terra se mostre como o ente em sua primeira acepção, ou seja, como categoria; por exemplo: a obra revela o aspecto da rocha e da tempestade. Ressalto o entendimento que Heidegger tem palavra categoria; trata-se a categoria do mostrar-se do ente como ele é, ou seja, da phýsis apreendida no primeiro grau de sua aparência, configurando-se assim como condição de interpelação discursiva do próprio ente. HEIDEGGER (2007, p.23) Em decorrência do fato de desvelar o ente como categoria, a obra adquire um caráter relacional; a partir da visão que ela oferece de si mesma, ela renova a concepção que temos das coisas circundantes: A obra construída repousa sobre a rocha, de onde retira a obscuridade daquilo que a suporta, mas que por si mesmo não pode lançá-la para o exterior. A obra erguida enfrenta a fúria da tempestade, demonstrando assim a própria violência da tempestade. O esplendor e a luminosidade da pedra – aparentemente doados pelo sol – fazem aparecer a luz do dia, a

139

amplitude do céu e as sombras da noite. A firme postura torna visível o espaço invisível do ar. A rigidez e a quietude da obra contrastam com o agitar das ondas do mar deixando perceber, por sua calma, o barulho das águas. A árvore e a erva, a águia e o touro, a serpente e a cigarra alcançam, pela vez primeira, a sua configuração e aparecem como são. A esse nascer e a esse surgir em sua totalidade, os gregos há muito tempo nomearam physis. Este nome esclarece ao mesmo tempo, aquilo no qual e sobre o qual o homem funda a sua morada. A esse fundamento, chamamos a Terra (die Erde). O significado desta palavra está muito distante da representação de uma massa de matéria disposta em camadas como a massa atômica de um planeta. A Terra é o seio no qual o desabrochar das coisas se faz em sua própria ocultação. Em tudo o que desabrocha, a Terra se torna presente como aquilo que se retrai. HEIDEGGER (1986, p.229)

Definida como um ente que comporta o jogo dialógico entre a Terra e um mundo, a obra de arte dá lugar a apresentação de um mundo, graças ao ser que o antecipa e, ao mesmo tempo, produz o desvelamento da Terra, que se mostra como o ente em sua primeira acepção (categoria) é a caracterização do próprio jogo como um combate (der Streit). Anota-se que esse combate não produz a supressão de um elemento em função de outro e, muito menos, uma síntese, pela qual as partes combatentes desaparecem em função de um terceiro. O combate, ao contrário, permite a afirmação das partes, isto é, permite que um mundo e a Terra sejam e se mostrem como são. As duas partes combatentes se afirmam porque uma não pode se tornar visível sem a outra; a visibilidade do mundo se apoia na materialidade (ser-de-confiança) da Terra, a visibilidade da Terra é dada pelo seu retraimento em relação à forma assumida pelo mundo. HEIDEGGER (1986, p.238)

Nesse ponto, é preciso mencionar o diálogo entre Heidegger e Aristóteles. Evidentemente Heidegger compreendeu que a obra de arte contraria a definição aristotélica do ente, qual seja, a que determina o ente como um composto sintético de matéria e forma que cumpre uma finalidade. Para Heidegger, a definição aristotélica diz respeito aos entes cotidianos, porém, não às obras de arte, que escapam a própria concepção utilitarista do mundo, justamente por não operarem necessariamente uma síntese finalista. Ao contrário desses entes, a obra de arte é portadora de uma não síntese entre matéria e forma, da qual provém a verdade (Lichtung), ou seja, a obra de arte é portadora da própria condição genérica da verdade. A seguir, reflito sobre a repercussão desta proposição em uma conceituação da literatura e, mais fundamentalmente, da música. II- A MÚSICA CONCEBIDA COMO LÓGOS: A CONDIÇÃO GENÉRICA DA VERDADE.

140

Pode parecer estranha a opinião de que a música ocupe um lugar central no sistema filosófico de Heidegger, a ponto de ele considera-la hierarquicamente mais elevada do que as outras artes. Afinal, ele mesmo sentenciou, no ensaio A Origem da Obra de Arte, ser a poesia (die Dichtung) a mais poética das artes, uma vez que sua matéria é a linguagem, entenda-se, a residência do poético (ser). HEIDEGGER (1977, p.59) Entretanto, especificamente nesse ensaio, a argumentação em torno da predominância da poesia sobre as outras artes estanca no raciocínio mencionado, para se completar em A Caminho da Linguagem; em uma palavra: a poesia é a mais eminente dentre as artes porque está ontologicamente sustentada pela música, esta concebida como lógos (mousiké).7 Por outro lado, a concepção de que a música é lógos (mousiké), traz embaraços. Convenhamos, embora esta seja uma concepção de música bastante ampla, ela parece não coadunar-se aos juízos que determinam algumas obras como obras de arte e outras não. Evidencia-se, porém, que Heidegger, fiel ao mais genuíno pensamento grego, não coloca a música no patamar das artes em geral. Parece-me que, para ele, a música possui status ontológico diferente das artes. Se Platão concebeu a música como a imagem das relações cósmicas, vide a clássica descrição da harmonia das esferas no Timeu, Heidegger, dá mostras de compreender a música como a mais imediata expressão da categoria tempo, mostrando-nos, nesse aspecto, o seu alinhamento à tradição filosófica alemã, que, sobretudo a partir de Kant, situa as categorias de tempo e espaço no mais alto grau hierárquico.8 Expressão imediata da categoria tempo, a música situa-se entre a palavra e a coisa, estabelecendo, a partir do ritmo, o sentido e o significado na linguagem, ou seja, como expressão imediata da categoria tempo, a música é lógos (mousiké). É preciso escutar o ser! Eis o comando que norteia os textos de Heidegger sobre a linguagem. Permito-me desdobrar seu raciocínio; escutar o ser possui sentido correlato ao comando que norteia as reflexões de A Origem da Obra de Arte, qual Ao referir-se a uma hierarquia entre as artes, Heidegger não intenta acrescentar elementos novos às polêmicas que habitam a estética tradicional. Pensando a arte em sua relação com o ser, Heidegger está metodologicamente posicionado fora de tais polêmicas, no sentido de que interroga o que para ele é a própria condição sustentadora do pensamento sobre a obra de arte. 8 Tradicionalmente, as categorias são objetos de hierarquização. Sabemos, por exemplo, que, na filosofia de Aristóteles, a categoria de substância é identificada ao próprio ser. Sabemos, ainda, do valor dado por Kant às categorias de tempo e espaço, as quais, em sua epistemologia, foram classificadas como intuições a priori do conhecimento. Tratando-se de Heidegger, evoco os seus primeiros escritos de inspiração neo-kantiana e, sobretudo, Ser e Tempo; não é difícil concluir que ele tenha considerado a categoria tempo como a mais valorosa, haja vista a tese de que o tempo resguarda o sentido do ser. Destarte, o valor de uma experiência artística tanto maior será, na medida em que ela conduzir a percepção para a região em que as categorias mais claramente revelam sua relação com o sentido do ser; nesta região, em que as categorias são imediatamente apreendidas, o pensamento realiza-se como unidade entre sujeito e objeto no lógos. 7

141

seja: deixar que as coisas falem por si mesmas. E como poderíamos melhor escutar o ser? Não seria justamente na escuta do ente que expressa imediatamente o seu sentido? Qualquer músico sabe que a música ganha estatura no tempo. James Tenney pergunta: a música é deduzida do tempo? Ou o tempo é deduzido da música? (TENNEY, 1985, p.199) Dúvida análoga a de Heidegger; este, ao estatuir, em Ser e Tempo, que o tempo resguarda o sentido do ser, pressente o círculo hermenêutico primordial: o tempo é o sentido do ser, assim como o ser é o sentido do tempo. Sendo expressão imediata da categoria tempo, a música traz em si mesma a condição de seu vínculo com o pensamento e a linguagem; o que possibilita esse vínculo é justamente o tempo, seja ele percebido em sua dimensão ôntica, seja ele percebido em sua dimensão ontológica. Portanto, a música, ela mesma colocada em obra, há de ser pensamento. Não um pensamento que se move segundo as referências que evoca, mas o pensamento que se desenvolve essencialmente pelo sentido do tempo. Entendida como um pensamento que se constitui do próprio tempo, a música está essencialmente identificada ao ser que, a partir de sua indeterminação, concede a abertura para a experiência do nomear polissêmico. Assim, não é de se estranhar que até então foram pronunciados um número incontável de determinações conceituais sobre a música, a tal ponto de o relativismo cultural negar categoricamente a possibilidade de se determinar o que é música. VOLPE (2004, p.111-134) Entretanto, é preciso deslocar a questão colocada pelo relativismo; não se trata de determinamos o que é a música em um sentido ôntico. Trata-se sim de reconhecer que a música dá a própria linguagem o caráter do dizer polissêmico. Reflito sobre a proposição de que a música é lógos (mousiké). A argumentação que permite sustentá-la participa do conjunto de articulações conceituais que estruturam o pensamento de Heidegger sobre a linguagem. Como mencionado, tomo como referência os textos que, em edição portuguesa, estão compilados sob o título A Caminho da Linguagem. Inicialmente, Heidegger estabelece a questão diretriz: o que é a linguagem em si? A resposta provém da pré-compreensão que orienta o senso comum: linguagem é fala. Eis então os sentidos corriqueiros da fala: 1) fala é expressão; 2) fala é uma atividade do homem; 3) fala é apresentação e representação da realidade. Em resumo, nessa concepção, a fala está definida como um ente que possui função comunicativa. HEIDEGGER (2003, p.8-10)

Indagando sobre a linguagem em si mesma na obra de arte, onde, presumivelmente, sua aparência não está obstruída pelo caráter instrumental de que se reveste o ente, Heidegger descreve o poema Tarde de Inverno de Georg Trakl e estatui a sentença: a essência da linguagem é a fala; a linguagem fala, não o homem. A linguagem fala nos seguintes modos: 1) a linguagem nomeia, ou seja, traz à presença o ente; 2) a linguagem apresenta um mundo de significados

142

coisificando as coisas; 3) a linguagem traz a diferença entre mundo (significado) e coisa. Assim caracterizada, a fala possui exatamente as mesmas propriedades imputadas ao ser. Em outros termos, a fala é o ser que habita essencialmente a linguagem. HEIDEGGER (2003, p.13-15) Saliento o sentido da palavra diferença, situando-o, no âmbito que envolve a compreensão sobre a palavra em geral. Em princípio, a diferença assinala o posicionamento do ser em relação ao ente. O ser tangencia o ente, abrindo-lhe parcialmente para o nome e a significação. O ser, não de todo apreensível pela linguagem, deixa-se insinuar entre o ente e o nome. Assim, o que se diz agora sobre a palavra convertida em obra de arte é correlato ao que está dito sobre as obras de arte em geral. O acontecimento da verdade no poema decorre do estabelecimento de uma não síntese entre palavra e a coisa nomeada, que revela um ficar entre a coisa e o significado da coisa. A esse estado de tensão/suspensão (não-síntese) que deixa-nos inferir a diferença entre ser e ente, Heidegger denomina: consonância do quieto.9 A consonância do quieto é o modo como a linguagem mostra o seu vigor (Wesen); o seu modo de ser essencial. Sendo ela o modo de apreensão da essência da linguagem, o sentido mais apropriado para o seu estabelecimento é a escuta, do que Heidegger estatui: o homem fala na medida em que escuta a linguagem. Eis um aspecto pelo qual Heidegger difere sua filosofia da metafísica: o compromisso do pensamento não é, segundo Heidegger, primariamente com a visão (teoria). O compromisso do pensamento se estabelece primariamente na escuta da linguagem, mais precisamente, na escuta do ser que habita a linguagem. HEIDEGGER (2003, p.26) Consonância do quieto; o chamar recolhedor que evoca mundo (significado) e coisa. Chamar recolhedor: lógos! Repercute o pensamento de Heráclito sobre o de Heidegger: auscultando não a mim, mas o lógos é sábio concordar que tudo é um. (Fragmento 50 de Heráclito, 1999) Heráclito propõe estar atento ao que diz o lógos. Estar atento é pertencer, participar, obedecer ao apelo da fala, escutar o lógos! Somente o cuidado em obedecer à invocação do lógos proporciona a ausculta da unidade entre pensamento e coisa na linguagem. HEIDEGGER (2003, p.24)

O lógos apresenta o sentido de falar como reunião de tudo o que é na linguagem. Apresenta: mostra, torna presente! Quando Heráclito propõe uma ausculta do lógos, sugere a disposição do auscultador em estar atento ao que é Como vimos anteriormente, Heidegger concebe a verdade como uma não síntese entre matéria e forma que possibilita a apreensão imediata da phýsis em dois modos: no primeiro, a phýsis é apreendida como categoria, isto é, como o ente em sua primeira acepção; no segundo, a phýsis é apreendida como antecipação, revelando o sentido temporal ekstático do ser. Desse modo, o acontecimento da verdade como um duplo modo de apreensão imediata da phýsis se converte em um critério para a caracterização da obra de arte. 9

143

mostrado, participando do que é trazido à presença pela fala do lógos. O lógos torna presente a unidade entre palavra e coisa. No dizer e mostrar desencadeia o fenômeno (phainómenon): o fazer brilhar, o trazer à luz o que se mostra em si mesmo. O fenômeno instaura-se como movimento incessante de velamento e desvelamento do ser. Na medida em que o lógos permite ao fenômeno vir à tona, ele corresponde à presença essencial do ser, como velamento e desvelamento no ente. Heidegger sentencia: a consonância do quieto é o chamar recolhedor! Ela é lógos no sentido de legen. É do Legen depreendemos o que é lógos. O que significa Legen? Todo mundo que conhece a língua grega sabe a resposta: Legen significa dizer e falar; lógos significa: Legen [...] Todavia, igualmente cedo e de modo ainda mais originário e por isso mesmo sempre, portanto, no significado de dizer e falar já mencionado, Legen diz o mesmo que a palavra alemã legein, a saber: de-por, no sentido de estender e prostrar, pro-por, no sentido de adiantar e apresentar. Em legen vive colher, recolher, escolher, o latim legere, no sentido de apanhar e juntar. HEIDEGGER (2002, p.45)

Dizer e falar, apresentar em conjunto, no sentido acolhedor/recolhedor da fala é também escutar. Destaca a proximidade etimológica dos termos: dizer (legein/legen), escutar (homolegein/ovmologein). O escutar (auscultar) não se reduz ao escutar passivo, disposto a apenas perceber os estímulos sonoros através do ouvido fisiológico, da fala fonética (phoné). Ele é uma postura acolhedora, que permite que a fala complete o seu sentido de ser linguagem. HEIDEGGER (2002, p.45)

Mas em que consiste a escuta definida como postura acolhedora? Interpreto esta expressão a partir de uma frase que Heidegger profere no ensaio A linguagem: escutar a linguagem é antecipar reservando. Ora, antecipar reservando refere-se a um modo de estar, justamente, a uma postura em relação à categoria tempo. Prontamente, retomo a tese principal de Ser e Tempo, qual seja, de que o sentido do ser é a ekstásis do tempo: o futuro (antecipar) reúne o passado no presente (reservando). Por conseguinte, Heidegger estabelece uma articulação essencial entre escuta e ser. É no exercício da escuta que o homem se apropria da diferença entre significado e coisa e passa a morar na linguagem. HEIDEGGER (2003, p.26)

A postura acolhedora da escuta é, portanto, um modo de se comportar diante da categoria tempo, um modo que, segundo Heidegger é fundador do pensamento. Antecipar reservando: um comportamento de escuta que convém a qualquer ouvinte de uma obra musical. É justamente por intermédio do antecipar reservando que podemos apreender uma obra musical, um transcurso evanescente de sons no tempo, como unidade. Desse modo, não parece casual que Heidegger tenha dedicado o seu texto A serenidade, um texto em que convida-nos a refletir sobre a essência do pensar, ao compositor Conradin Kreutzer.

144

Delineia-se assim um co-pertencimento originário entre música, linguagem e pensamento. E o que une originariamente esses fenômenos é a categoria tempo, doadora do sentido do ser. Em outros termos, em uma primeira acepção, a música é mousiké, isto é, o lógos que imediatamente colhe o sentido do ser (o tempo). Sendo mousiké, a música é em si mesma o estar entre: uma não síntese entre palavra e significado. Por conseguinte, diferentemente das outras artes, a música possui em si mesma a condição para o acontecimento da verdade. Concebida genericamente como lógos, a música dispensa a condição de se transubstanciar em obra de arte para que nela a verdade aconteça! A caracterização da música como local do acontecimento da verdade prossegue na descrição (fenomenológica) de outros poemas. Ao descrever Algo de Estranho, A Alma na Terra de Georg Trakl, Heidegger reapresenta o sentido do estranhamento, próprio das obras de arte. Primeiramente, o estranho (ser-em-simesmo), doado pela música, concerne à tonalidade afetiva do poema; em seu recolhimento, o poema permite escutar a linguagem para além de sua função comunicativa. Concomitantemente, o estranho expressa a separação delirante do poeta em relação aos sentidos cotidianos que estão aderidos às palavras, a separação que identifica o poeta a um estrangeiro. Assim, reedita-se, na interpretação deste poema, o argumento de que o estranhamento da obra de arte descola-nos da visão utilitarista (cotidiana) do mundo. O estranho é a quebra da familiaridade que, na imagem poética de Georg Trakl, provoca dor. Porém, o que possibilita o movimento do poeta em direção ao estranho é o entusiasmo (Geist). Justamente o entusiasmo decorrente da escuta, que alimenta a alma do poeta, sustentando-o em sua experiência radical com a linguagem. O entusiasmo faz com que o poeta se desprenda do conforto das referências cotidianas e aceite a dor de saber que palavra é o devir de uma polifonia polissêmica. Ele provém de uma condição física da música, ou seja, daquela que se refere a seu movimento espacial que, comumente, denominamos melos. Por possuir o caráter de melos, a música se constitui como o solo afetivo que sustenta os múltiplos sentidos da palavra. HEIDEGGER (2003, p.163-165) Por outro lado, Heidegger salienta a dificuldade de se falar da linguagem estando, nós mesmos, circunscritos em seu uso. O fato é que a própria linguagem parece repousar na distinção metafísica entre o sensível e o não-sensível: de um lado fonemas e grafemas, de outro significado e sentido, como se tais estruturas existissem estritamente em função do uso comunicativo. Por isso, o acesso à essência da linguagem, isto é, o acesso ao ser que nela habita, articulando as estruturas sonoras da língua aos significados e sentidos, não pertence, propriamente, ao campo que teoriza a dimensão ôntica da linguagem. Para Heidegger, tal acesso é permitido na medida em que lidamos com a dimensão ontológica (poética/musical) da linguagem, justamente porque nessa dimensão a linguagem não existe estritamente para cumprir a função de comunicar. HEIDEGGER (2003, p.91)

145

Diante dessas constatações, Heidegger afirma o sentido de sua hermenêutica: interpretar não é meramente elucidar o significado referencial do que se faz representar na presença da linguagem. Interpretar é trazer a mensagem do ser que reside na linguagem na plenitude de seu caráter de indeterminação. O perigo de toda interpretação é o perigo da própria linguagem: deter-se exclusivamente na representação que está fundamentada pela tradicional distinção entre sujeito e objeto, tornando a tudo objeto, inclusive a linguagem, na medida em que falamos dela. Assim, Heidegger introduz o conceito de saga: o dizer o dito (ente) e o não-dito (ser) da linguagem. HEIDEGGER (2003, p.115)

A saga caracteriza-se como uma experiência de percorrer o caminho que leva o poeta a situar-se entre o dito e o não-dito da linguagem. Nesse lugar, o poeta reconhece que está na dependência de a linguagem conceder ou não a palavra apropriada para designar a coisa, sabendo que onde o signo falha, não há a coisa significada. Em outros termos, fazer a experiência da linguagem é situarse na consonância do quieto, onde a música instaura a verdade. HEIDEGGER (2003, p.124)

De sua leitura do poema Palavra de Stefan George, Heidegger estatui o gesto poético que está essencialmente implícito na saga: o poeta renuncia à relação entre palavra e coisa. Esta renúncia decorre do reconhecimento de que a relação entre palavra e coisa não é a mera separação entre coisa de um lado e palavra de outro. A palavra é a relação que a cada vez envolve de tal maneira a coisa dentro de si, que a coisa só é propriamente dentro dela. Portanto, é na saga que o poeta descobre-se como protagonista do nomear que inaugura o sentido e o significado do ente, que se dá segundo o consentimento do ser (música) que habita a linguagem como sua essência. Por consentimento entenda-se: a abertura de um campo (wegen) de possibilidades do nomear oferecidas pelo ser. HEIDEGGER (2003, p.137)

Percorrendo o caminho do campo, o pensamento se atém ao campo. HEIDEGGER (2003, p.138) Nessa sentença, a palavra campo refere-se ao próprio do pensamento, isto é, ao que o pensamento consente em sua conexão essencial com a linguagem e o ser. Assim, a poesia, compreendida como saga, ou ainda, como um percorrer auditivo do caminho do campo, é situada por Heidegger no patamar do pensamento sobre a linguagem. Mas, nesse patamar, a poesia está no lugar da vizinhança do ser que se diz como não-dito. Na condição de vizinhança, a poesia caracteriza o pensamento originariamente como escuta. HEIDEGGER (2003, p.139) Por conseguinte, a experiência da linguagem é a Andenken: o pensamento que se deixa tomar pela escuta; o pensamento que não questiona, mas se mantém no campo de possibilidades de significação que é aberto pelo ser que habita essencialmente a linguagem. A experiência da linguagem é essencialmente poesia conceitualmente articulada à música:

146

É no entoar que ela começa a ser a canção que ela é. O poeta da canção é o cantador. Poesia é canto. O canto é a festa da chegada dos deuses, a chegada quando tudo se aquieta. O canto não é o contrário da conversa, mas o seu vizinho mais próximo; pois também canto é linguagem. HEIDEGGER (2003, p.141)

Demoro-me na sentença: O canto é a festa da chegada dos deuses, a chegada quando tudo se aquieta. Nela, Heidegger retoma o conceito de quietude (consonância do quieto), deixando-nos inferir que o canto (a música) situa-se justamente na região da linguagem onde não ocorreu a síntese significadora entre palavra e coisa. Nessa região, o canto se estabelece como o solo afetivo ( melos) que determina o modo de percorrer o caminho do campo e, sobretudo, como expressão originária do sentido do ser que é dado pela ekstásis do tempo. Portanto, assim entendo, Heidegger fornece um conceito de música, a saber: a música é o que estabelece e situa-se na consonância do quieto, isto é, o instante ekstático que propicia originariamente o início de toda atividade de sentido e de significação; poeticamente falando: a festa da chegada dos deuses. Sendo assim, a música é a essência da linguagem. Onde a linguagem falha na estabilização de um significado ôntico, a música acede imediatamente ao ser em seu máximo vigor; a música acede ao ser no modo da indeterminação (não-dito). Referindo-se ao Zaratustra de Nietzsche, Heidegger estatui: A renúncia do poeta não diz respeito à palavra mas à relação entre palavra e coisa ou, mais precisamente, ao mistério dessa relação, que justamente se oferece como mistério quando o poeta quer nomear a joia que tem em sua mão. (...) O poeta não oculta nomes. Ele não sabe os nomes. Isso ele confessa num verso que soa como o baixo continuo de todas as canções: Onde te aténs – isso não sabes. HEIDEGGER (2003, p.142)

Ora, o poeta não sabe os nomes, posto que converteu-se no músico. E como músico ele trabalha com um tipo de signo que falha no cumprimento da função nomeadora. Em contrapartida, como músico, o poeta sabe que o baixo contínuo resguarda e dá suporte ao sentido de desenvolvimento e percurso significativo da canção. Em outros termos, o poeta sabe que a música é logos, a experiência essencial da linguagem. HEIDEGGER (2003, p.144) Sendo a música a essência da linguagem, a recusa que lhe é própria, também é um componente essencial da linguagem. Por recusa, entenda-se: a falha do signo na função de determinar a coisa com um nome. Por isso, o poetamúsico existe na vizinhança do pensamento, onde a linguagem ainda não pode falar por imagens determinadas. A palavra, como signo da linguagem, conduz a coisa para o ente. O signo da música conduz a coisa para a indeterminação do ser. Nesse sentido, Heidegger parece reeditar inequivocamente a distinção nietzschiana entre o apolíneo e o dionisíaco, pela qual a palavra conduz à

147

individuação imagética e à música ao estágio originário das formas dissolutas. HEIDEGGER (2003, p.147)

A concepção de que a linguagem possui o caráter de mera vocalização sonora coaduna-se à concepção de que a linguagem é estabelecida por convenção. Esta última é estratégica para o que concerne ao estabelecimento do primado absoluto do sujeito na filosofia. Afinal, sendo a linguagem exclusivamente produto de uma decisão arbitrária do sujeito (convenção), tudo o que dela provém, a saber, as visões de mundo e o conhecimento, se reduz à condição de constructo do sujeito. Contrariando a esta visão subjetivista, Heidegger esforça-se em demonstrar que há um vínculo objetivo entre linguagem e coisa. Para tanto, ele evoca a noção pré-socrática de que a linguagem possui uma conexão originária com a Terra (Phýsis), noção que levou o próprio Aristóteles a caracterizar os dialetos como os modos da boca. Todavia, Heidegger reinterpreta esta caracterização, relacionando-a aos modos tradicionais que estruturam as canções dos povos, para, por fim, recorrer à paráfrase do poeta Novalis: A linguagem é a flor da boca. HEIDEGGER (2003, p.162) Em sua caracterização da música como essência da linguagem, Heidegger atenta-nos, sobretudo, para o caráter ontológico do ritmo. É o ritmo, justamente a expressão mais genuína da categoria tempo, que confere o estranhamento do poema, tornando-o estranho em relação à linguagem cotidiana e ao mesmo tempo corporalmente relacionado ao percurso do pensamento: O ritmo é o repouso que

articula o movimento do caminho da dança e do canto, permitindo-lhe pousar e repousar em si mesmo. O ritmo confere repouso. HEIDEGGER (2003, p.182) Evidentemente, Heidegger não se refere apenas ao ritmo compreendido como mera disposição temporal dos sons em um dado limite. O ritmo que confere caráter ontológico ao poema é o que nos permite reconhecê-lo como uma unidade significada, isto é, como obra que repousa em si mesma. É na condição de obra que o poema torna-se estranho à totalidade da linguagem. Por se deixar guiar pelo que lhe é essencial, a saber, a música, a linguagem poética é a linguagem em sua feição mais ampla. Assim, ela realiza o pensamento do ser que pensa a si mesmo. Nesse pensamento, o lógos, imbuído essencialmente de seu caráter musical, promove o nexo entre o dizer e o ser. Reforça-se assim a noção de que a música acede imediatamente ao ser que se oferece na escuta: escutar a linguagem é escutar o ser que nela habita, sua música essencial (lógos), inscrevendo-se no pensamento do ser. E tal só é possível no poema, onde a linguagem não está restrita à função comunicativa e pode revelar seu copertencimento ao pensamento. HEIDEGGER (2003, p.188) Escutar a música da linguagem é o horizonte da Andenken: o pensamento rememorativo que pretende liberar o pensamento de seu aprisionamento à concepção de que o ser se dá exclusivamente na dimensão temporal da presença (ente) e, sobretudo, de que o ser possa ser apreendido na linguagem comunicativa (proposicional). VATTIMO (1980, p.75) Para que esse pensamento aconteça, ele

148

cumpre um caminho cuja meta é estabelecer-se no silêncio. O silêncio é a expressão da música do ser. Ele é a ausência precedente da atividade significadora, o não-dito da linguagem, que permite ao homem significar e estabelecer o seu domínio sobre o ente, e, sobretudo, permanecer no âmbito inesgotável da linguagem. HEIDEGGER (2003, p.204) Referindo-se ao pensamento silenciado, Heidegger diz: O homem não é o senhor do ente, o homem é o pastor do ser. HEIDEGGER (1973, p.51) Esse pensamento se dá no campo da escuta. Ele é a Andenken, cujo sentido essencial consiste em ser o pensamento estruturado como música. A propósito, Benedito Nunes salienta a distinção entre escutar e ouvir no contexto da filosofia de Heidegger. Escutar, como um ato que precede o ouvir, pressupõe um silenciar. No silêncio percebe-se compreendendo, dentro do campo afetivo (afinação) estabelecido pela música. NUNES (2000, P.109) Em resumo, de acordo com Heidegger, a poesia é superior às outras artes pelo fato de ela, enquanto obra da palavra, ter um vínculo essencial com a música. Nesse sentido, Heidegger assume uma posição clara em relação à antiga querela filosófica de se decidir qual veio primeiro, a música ou a linguagem. Para Heidegger, a música é anterior à linguagem. Todavia, Heidegger não pensa que esta anterioridade seja cronológica, no sentido corrente que se dá ao tempo (passado, presente, futuro). Essa anterioridade é compreendida como sustentação constante. A música instaura a disposição afetiva (Stimmung) da palavra, abrindo-a para o sentido e o significado. Porém, Heidegger não se contenta em constatar que a música é anterior à linguagem. Como observa Benedito Nunes, a Andenken possui um caráter transacional; ela efetivamente quer promover o diálogo entre poesia (música) e filosofia, demonstrando que se tratam de elementos indissociáveis no pensamento. NUNES (2000, p.9) O diálogo entre poesia (música) e filosofia (linguagem) implica em uma postura ética, que consiste no estar entre os quatro, ou seja, no habitar a quadratura (Geviert) que se forma entre céu, terra, deuses e homens. Habitar a quadratura é abster-se da relação mediadora do signo, permanecendo no traço que separa a voz do deus de sua decodificação subjetiva, deixando, assim, que as coisas se mostrem como são, como aléthein: O ser das coisas não é o ser da metafísica, o ser da presença, o ser da instrumentalidade. As coisas fazem morar junto de si a quadratura dos quatro: a terra, o céu, os mortais e os divinos (palavras poéticas familiares a Hölderlin); direções, pontos cardiais. Não são entes intra-mundanos. (...)Estas palavras poéticas furtam-se a uma plena clarificação conceitual, mas o fato de serem palavras poéticas já não pode agora significar um menor peso teórico, visto que é na poesia que acontece a verdade no seu sentido radical. VATTIMO (1996, p.138)

149

Habitar a quadratura é uma tentativa de expandir a linguagem em direção ao inesgotável e indecidível, ou seja, o espaço da poeticidade que concerne à linguagem em sentido lato. Segundo Heidegger, habitar a quadratura é a mais perigosa das ocupações (HEIDEGGER, 1979, p.24), posto que corresponde ao jogar-se no abismo (Abgrund) da linguagem, onde estão as possibilidades de abertura e velamento do ser. É decidir sobre a própria possibilidade existencial no espaço indecidível da palavra, isto é, na música que constitui o pensamento criativo. Portanto, habitar a quadratura é sair do conforto das situações cotidianas e da visão de mundo que reduz homem e coisas à condição de instrumento. VATTIMO (1980, p.115)

IIIPROPOSIÇÕES (CONCLUSÃO)

DERIVADAS

DA

REFLEXÃO

PRECEDENTE.

Tendo em conta a reflexão precedente, pontuo algumas proposições que dela derivam: 1) a música, concebida como lógos (mousiké), permite a experiência imediata com a categoria tempo, doadora do sentido do ser. Por isso, a música é o pensamento criativo, que se estabelece no movimento puro do sentido, próprio da abertura polissêmica do ser na verdade. Como pensamento criativo, a música abre o campo da possibilidade de significação. Destarte, a música pode prescindir das referências simbólicas, das imagens determinadas e da palavra. Esses elementos, por sua vez, quando dispostos na aderência da música são potencialmente acrescidos de significação; 2) estatuindo haver uma conexão imediata entre música e tempo, pode-se inferir que o ritmo seja o elemento determinante da experiência da significação, que encampa a música em si mesma, os fenômenos que a circunscrevem, e a própria linguagem; 3) compreendida como lógos (mousiké) na forma do melos, a música é a disposição afetiva que sustenta as possibilidades polissêmicas de significação de si mesma e da linguagem. Por conseguinte, a música possui conexão necessária com a linguagem, do que se conclui que toda experiência musical envolva uma produção de linguagem e de suas imagens correlatas. Porém, o contrário há de ser verdadeiro. Mesmo em uma experiência aparentemente não musical, a música fala e sustenta a linguagem; 4) compreendida como logos, a música há de ter conexão imediata com a linguagem. Mesmo que entre nós e a música existam símbolos e significados culturalmente estabelecidos, ainda, mesmo que entre nós e a música haja uma visão de mundo, a música, a partir da conexão imediata que estabelece entre a linguagem e as coisas, interage com esta visão de mundo, renovando-a no âmbito da linguagem;

150

5) a música é uma não síntese entre o som (phýsis), que, genericamente, pode ser matéria potencial da música ou da linguagem, e os significados que podem ser associados ao som. Como não síntese entre som e significado, a música traz em si mesma a condição para o acontecimento da verdade, abrindo-nos para a dimensão ontológica da linguagem. Esta proposição sustenta a concepção de que a música é lógos (mousiké).

REFERÊNCIAS. HEIDEGGER. A Caminho da Linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. RJ: Ed. Vozes, 2003. ___________. A Origem da Obra de Arte. Trad. De Maria da Conceição Costa. Lisboa: Ed. 70, 1977. ___________. A Origem da Obra de Arte, trad. de Maria José Rago Campos In: números 76,79,80 e 86 Revista Kriterion. BH: Departamento de Filosofia da UFMG, 1986/1992. ___________. Carta sobre o Humanismo. Trad. Rubens Eduardo Farias. SP: Centauro Editora, 2005.

___________. Hölderlins Hymnen Germanien und Der Rhein. 2a Ed. GA 39. Frankfurt a/M Klostermann, 1979. ___________. Metafísica de Aristóteles – Livros 1-3. Sobre a essência e a realidade da força. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Ed. Vozes, 2007. ___________. Ser e Tempo. Trad. de M. de Sá Cavalcanti (2 vol). RJ: Vozes, 1988. ____________. Tempo e Ser, trad. de Ernildo Stein, Vol. Heidegger, col. Pensadores. SP: Ed. Abril Cultural, 1984.

NUNES, Benedito. BH:UFMG, 1999.

Hermenêutica

e

Poesia



O

pensamento

poético.

PINHEIRO, Paulo J. M. Sobre a Noção de “ajlhvqeia” em Platão (a tradução heideggeriana), in: O que nos faz pensar. RJ: PUC, 1º Semestre, 1997. ________. STEIN, Ernildo. Nota do tradutor. In: OS PENSADORES: Martin Heidegger. SP: Nova Cultural, 2000.

_____________. Seminário Sobre a Verdade – Lições Preliminares Sobre o Parágrafo 4 de Sein und Zeit. RJ: Vozes, 1993. TENNEY, James. Review of Music as Heard.Journal of Music Theory, 29/1 – 1985, pp 197-213. VATTIMO, Gianni. As Aventuras da Diferença. Trad. de José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições 70, 1980. _______________. Introdução a Heidegger. Trad. João Gama. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. VOLPE, Maria Alice. Análise Musical e Contexto: Propostas Rumo à Crítica Cultural. In: Debates – Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música – ISSN 1414-7939 – vol.7 – Rio de Janeiro: Centro de Letras e Artes UNIRIO, Julho 2004 – p.111-134.

151

LINGUAGEM E ESCUTA MUSICAL ONTOLÓGICA Vagner Geraldo Alves 1 [email protected] Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: O estudo da escuta musical ontológica está diretamente ligado à busca do conhecimento originário em música. Compreender seus conceitos é fundamental para desenvolvermos um discurso filosófico relacionando a escuta, música e linguagem em harmonia com o pensamento de Heidegger. Qual e como deve ser o diálogo entre filosofia e música? Mesmo antes de construirmos qualquer teorização ou sistema de cunho filosófico ou não, a compreensão da música só é possível quando nos dispomos como escutadores autênticos da unidade musical. É a escuta e somente ela que proporciona o acesso, a aproximação do homem com a música. Palavras-chave: música, escuta e linguagem.

INTRODUÇÃO O presente artigo traz como principal objetivo uma discussão sobre escuta musical ontológica, tomando como base conceitos aplicados na filosofia heideggeriana relacionados principalmente à questão da linguagem, ser e escuta. A hipótese aqui discutida se refere à possível relação entre a escuta musical e a escuta do logos (linguagem), em qual âmbito se desenvolve esta relação e como podemos nos valer do discurso ontológico para compreender o que é escutar em seu sentido originário. O texto está dividido em três partes, a primeira trata da diferença entre o escutar e o ouvir, problematizando a questão da essência e aparência. A segunda parte é uma reflexão sobre o conceito originário de logos através do aforismo cinquenta do filósofo Heráclito, além de, uma análise etimológica da escuta. Por fim abordaremos a questão da escuta musical, aduzindo todos os conceitos estudados para o âmbito da música. ESCUTA ESSENCIAL E AUDIÇÃO APARENTE

Em 2009 foi aluno do projeto de iniciação científica (PIVIC) da UFES com carga horária de 960 horas sob orientação do prof. Dr. Celso Garcia de Araújo Ramalho (UFES/UFRJ), com quem desenvolveu pesquisas envolvendo conceitos ligados à música, filosofia e linguagem. Participação como comunicador no XIV Congresso Nacional de Folclore, realizado no campus da Universidade Federal do Espírito Santo, com o simpósio temático: “O Estudo Musical a Partir de seu Fenômeno e Acontecimento”. Atualmente professor de violão e musicalização no Projeto Vida Pe. Gailhac, projeto social mantido pela Sociedade civil casas de educação, colégio Sagrado Coração de Maria Vitória. Professor de violão e teoria no Centro de artes e música Acordes. Professor de violão do Centro educacional Agostiniano. 1

152

Comparticipa na mesma experiência escutar e pensar, quando nos dispomos na real condição de escutadores encontramos o caminho para a multiplicidade do pensar musical. Somente é possível pensar música porque escutamos além dos limites naturais do ouvir, sendo o exercício da escuta o que permite ao pensamento conhecer o fenômeno musical de forma participativa. Todo pensar musical, desde a interpretação, a composição, sua teoria e história têm origem na escuta. Partiremos desta afirmação, pensando de forma originária os conceitos inerentes à linguagem para compreender os fenômenos da escuta musical. O empenho em conhecermos o conceito de escuta incorre na reflexão da proveniência de sua essência2, recorrendo à essência e mais ainda quando buscamos desvelar a escuta em sentido originário nos remetemos a duas perguntas, o que é? E como se dá? Tais questões são primordiais para o desenvolvimento da tese aqui levantada que propõe a busca do conhecimento essencial da escuta e os conceitos envolvidos em sua construção ontológica, portanto, anteciparemos o fim que ao mesmo tempo é início colocando nosso pensar e escutar musical em xeque nas questões: o que é escuta musical? E como se dá? Por mais óbvias que possam parecer as respostas buscamos profundidade na investigação, perceber além do que salta às nossas vistas adentrando no caminho aberto pelas questões. Nosso questionamento não coaduna com a busca de uma solução objetivada em derrubar a própria questão através de uma resposta que dê fim ao problema do conhecimento da escuta, ao questionar propomos originar a abertura de um caminho ao conhecimento da escuta em essência, adentrar nesse âmbito é caminhar para conhecer. Poderíamos remeter o caminho a alguma espécie de metodologia de como usar meios para se chegar ao fim, entretanto, estamos a desfrutar da caminhada e aprendendo como caminhar, de modo não relativista, sem lugar para se alcançar. O mais próximo é dizer que andamos em uma estrada sem fim ou caímos em um abismo sem fundo, não pelo fato de estarmos perdidos na questão, mas, porque adotamos a consciência do quão grande é o entreaberto do questionamento. Não é nosso dever criar ou desvendar um determinado conceito de escuta para ser usado como certo ou errado, nosso objetivo é conhecer o vigor do que é escutar e saber como adentrar nos caminhos das questões levantadas. É necessário e prudente dizer que a escuta aqui discutida distingue-se do significado fisiológico da audição, o ato de ouvir, o simples fato de recebermos os estímulos sonoros externos e processá-los em nosso cérebro não nos remete à verdadeira essência da escuta, e sim a sua aparência, ao que através da lógica, da explicação biológica, nos é reiterado cotidianamente como escutar. Não é propósito negar ou invalidar o estudo sobre questões relacionadas ao ouvido

2

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70

153

biológico ou outras perspectivas sobre audição, todavia, vivemos em meio a um emaranhado de sons de várias espécies diferentes, sejam eles da natureza, de automotores, industriais ou ainda comerciais. Principalmente nas grandes metrópoles, onde essa gama sonora é mais abrangente a audição tende a selecionar qual o tipo de som pretende doar mais sua atenção. Esse fluxo sonoro intenso e presente no cotidiano do homem é o que poderíamos chamar de paisagem sonora, que devido à evolução tecnológica desde a revolução industrial até nossos tempos se torna cada vez mais espessa, mais densa de informações que não conseguimos acompanhar a maneira e a velocidade com que acontecem. O conceito de paisagem geralmente nos remete ao sentido da visão, entretanto, tomaremos de empréstimo o termo para representar todo esse constante sonoro que chega aos nossos ouvidos diariamente. Para a medicina esse fluxo intenso de sons é um fator agravante no que diz respeito à saúde do ouvido humano, porém, algumas linhas musicais o conceituam de forma artística, utilizando os diversos timbres encontrados na paisagem sonora dentro de composições musicais. Sem julgar se essa paisagem é poluição sonora ou não, o que pretendemos neste caso é exemplificar o que apenas ouvimos de maneira distraída, e o que realmente estamos dispostos a escutar com atenção. No livro “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago o autor sugere um paradoxo pertinente ao nosso modo de vida moderno, “a visão nos cega”, o contraste se dá pelo fato de não estarmos constantemente atentos ao que vemos, no movimento cotidiano desenfreado não enxergamos efetivamente. Poderíamos relacionar esse paradoxo com nossa escuta? Será que cada dia mais nós estamos apenas ouvindo música e não escutando de forma efetiva e participativa? Para entendermos o conceito de escuta devemos antes diferenciar duas palavras equivocadamente ditas com o mesmo significado, ouvir e escutar. A compreensão do significado de cada uma é inerente aos conceitos de essência e aparência. Compreender um conceito é conter em si a ideia de seu oposto, exemplificando, apreendemos a ideia de noite porque conhecemos o dia, o silêncio porque escutamos o som e vice-versa. Ouvir e escutar não são admitidos com significados opostos a um primeiro julgamento, porém, não são sinônimos como cotidianamente o pensamos ser. Poderíamos pensar a essência como uma criação ‘platônica’ irreal, religiosa, fruto da imaginação humana que submete suas inquietações ao julgamento de um ser ou seres superiores. Sob esta concepção de essência o mundo real seria o mundo das aparências, sendo a essência um ideal humano de cura à efemeridade e multiplicidade da nossa existência, porém, não é o sentido metafísico de essência que queremos conceituar e sim a essência como realização do modo de ser, ou seja, como vigor. No limiar da questão é essência o vigor, o âmago, a natureza real de algo e, aparência o aspecto, a figura, o exterior de algo. Vivemos sob uma tendência moderna muitas vezes fanática, de somente re-produzir a aparência em vários seguimentos e aspectos.

154

Na música não é diferente, buscamos a todo o momento apreender o melhor momento da produção para logo em seguida re-produzirmos uma imagem do que é música. O som que re-produzimos através do fonograma não é a verdadeira produção musical, é uma imagem da música, uma re-presentação. Empregamos as mais modernas tecnologias de gravação para apreender o aspecto da produção musical em fonogramas, afim de re-produzir seu suporte em larga escala. A ideia de o fonograma ser um aspecto pode causar certo incomodo, justamente por esse fanatismo da aparência, não significando que desta forma estamos julgando o valor da aparência, mas, desfazendo uma confusão meramente linguística, somos acostumados a dizer que ouvimos música, isso é uma verborragia que parte do senso comum, dizer com propriedade reorganizando esses conceitos é dizer que escutamos música e ouvimos um fonograma. A música é uma arte sem valor, sem suporte material que se possa fixar um preço, a solução que o sistema encontrou para lucrar sobre a produção musical foi justamente anexar valor de mercado ao fonograma. Seguindo esse raciocínio deveríamos nos perguntar, fonograma é música? Se não neste caso onde está a música? A música está na música e não em sua reprodução, o fenômeno se mostra no momento em que acontece, sua essência não pode ser apreendida, sua produção abriga técnicas musicais, sua re-produção abriga outros tipos de tecnologia. É importante ressaltar que estamos falando estritamente de fonograma, e não de técnicas de produção musical que utilizam tecnologias avançadas como, música eletrônica, música eletro-acústica entre outros estilos de composição. Poderíamos empregar uma comparação não artística, mas, funcional do fonograma com a fotografia e a filmagem, o que é revelado na fotografia e na filmagem não é de certo a natureza real do que se pretende revelar, é um parecer, uma aparência. Se produzido de maneira artística, teremos evidentemente o conceito de arte como o cinema e fotografia com seus devidos valores artísticos. De tal modo o fonograma possui seu valor, entretanto, devemos nos atentar no dizer dos conceitos. Ao dizer não estamos apenas despejando no ar frases gratuitas, a fala convoca para presença o que nela é dito, quando escutamos música efetivamente estamos nos dispondo como escutadores ativos, ao passo que quando anunciamos estarmos escutando música através de um fonograma cometemos um erro semântico. Escutar está ligado ao auscultar, escutar com atenção e ativamente, uma gravação não apresenta a música propriamente dita, mas, uma aparência, um aspecto da realidade artística antes produzida. Ouvir é a ação de nosso ouvido, que nos permite captar de forma geral os sons que circundam nosso dia-a-dia, escutar música compete não apenas a uma ação isolada do órgão auditivo, ouvimos não apenas com o ouvido e sim com o corpo, todo nosso corpo se coloca na presença da música através da escuta, somos inteiramente participantes do acontecimento musical. Uma primeira impressão do texto diria que essência e aparência são elementos dicotômicos, se assim o fossem estaríamos estabelecendo uma

155

separação entre o ente aparente (ouvir) e o ser essencial (escutar) dos entes. Nomeamos nossos entes porque a linguagem nos permite e os distinguimos através da aparência, do aspecto em que cada um se apresenta à nossa memória, cheiro, gosto, visão, sons e afetividade de uma forma geral, de tal modo não poderíamos promover naturalmente essa cisão porque a existência de um depende do outro, entretanto, é objetivo de nossa investigação promover um estudo do ser e, por conseguinte da escuta autêntica do homem. Para compreender a essência é necessário tocar na questão ontológica (ser). O homem é intrínseco ao seu ente, ele convive no mundo como parte da physis e sofre suas constantes transformações naturais assim como os outros entes e coisas, desse modo o homem é parte das coisas da physis, portanto necessita delas para sua subsistência, contudo, ele nunca é absorvido completamente por essas coisas, mesmo em sua condição ôntica (ente), o homem ‘ex-iste’, se projeta para além da physis como jamais qualquer outra coisa o conseguiria, porque somente a ele compete cognição para questionar o ser (HEIDEGGER, 1988, Vol. 2, pr. 62). É esse o questionamento que torna o homem capaz de pensar na estrutura existencial ligada ao ser e ao tempo. Estabelecemos nossos valores, nosso contrato social através da afetividade com o passado, com os paradigmas impostos historicamente nos processos civilizatórios, desde o nascimento somos condicionados culturalmente à não exceder os limites da moral determinados pelos nossos meios sociais, desta forma o passado não se resume ao que passou, ele é o que se projeta diante de nossos olhos, é o que está à frente e não atrás porque estamos constantemente olhando para seus acontecimentos. No presente o homem se situa na linguagem, é na fala que o homem se estabelece no tempo imediato, o tempo que não se pode apreender porque está sempre a passar e a todo instante é velamento e dês-velamento. É quando o homem inclina seu questionamento para o futuro que surge a angústia, a preocupação com o inevitável, a morte, só assim é que ele assume sua singularidade perante aos outros entes (HEIDEGGER, 1988, Vol. 2, pr. 62). O homem passa a existir quando percebe a estrutura temporal do ser, esta percepção é que o proporciona questioná-lo e pensá-lo. Tendo a concepção da existência sob essas três estruturas, a afetividade (passado), a fala (presença) e a angústia (vir-a-ser), compreendemos o porquê de o ser está inevitavelmente ligado ao tempo, a estrutura temporal de passado, presente e futuro. A escuta essencial não deve assumir um caráter metafísico, ela está diretamente ligada ao ser e ao o que condiciona o ser, a linguagem, está para além do plano aparente. A escuta do homem não é simplesmente ôntica, é uma escuta ontológica, temporal e que nele se estabelece enquanto ser na linguagem. “A linguagem é a casa do ser e nessa morada habita o homem” (HEIDEGGER 1991, p.591). Habitar na linguagem é o que condiciona o homem percorrer o caminho para conhecer o ser, e somente habitamos essa morada porque escutamos a linguagem de forma autêntica, não é possível escutá-la de maneira

156

inautêntica. Perceber essa autenticidade é compreender a diferença entre ouvir e escutar, entre a verborragia, o ‘falatório’ e o dizer com propriedade. A busca de compreender o que é escuta se define não em descobrir um modelo perfeito e superior de escutar, e nem mesmo tratar a aparência como realidade menor, contudo, o dever do escutador enquanto habitante da linguagem é escutar muito além da aparência e mover seu conhecimento em um âmbito profundo da escuta. LOGOS DE HERÁCLITO “Auscultando não a mim, mas o logos é sábio concordar que tudo é um”

3

Nesse aforismo Heráclito propõe aos escutadores do seu discurso, auscultar não a ele, ou seja, sua fonética aparente, porém, estar atendo ao que diz o logos. Estar atento nesse sentido é mais do que simplesmente tombar o ouvido em direção ao discurso do orador, é pertencer, participar, obedecer ao apelo da fala, escutar o logos. Somente o cuidado em obedecer à invocação do logos proporciona a ausculta da virtude essencial do que é dito. O logos apresenta em ‘con-junto’ assumindo no falar um dizer acolhedor, a reunião de tudo aquilo que é na linguagem, esse apresentar é dizer e mostrar, trazer para a presença o que está sendo falado, ou seja, reúne e traz para a presença seu dizer próprio através da fala, o logos encerra o papel de juntar, de colher, quando dizemos que esse juntar é colher já de antemão assumimos que não estamos falando de qualquer juntar e sim de um cultivo, para escutar e proferir na fala o dizer do logos precisamos deste cultivo em seu sentido mais originário, o de plantar e colher, sobremaneira estamos falando da própria cultura. Quando Heráclito propõe o auscultar, ele se refere à disposição do auscultador em estar atento ao que é mostrado, participar ao que é posto em presença pela fala do logos, a ausculta é participativa e se dispõe para o entendimento do ‘con-junto’ apresentado, cada escutador tem sua própria experiência com o que é dito, somente é estabelecida uma comunicação se houver entendimento, é desta comunicação que surge uma intensificação do conhecimento, passado adiante através de novas falas, de novas escritas e novas experiências. O logos torna presente a unidade, a qualidade do que é um, esse um significa o que é primeiro, não o primeiro pensado de uma maneira linear como sendo que vem antes, porém, primeiro no sentido de estar sempre presente, de ser sempre real, assumindo esse caráter, a unidade instaura toda forma de desencadear realidade. A proposta de auscultar o logos não apela para uma Fragmento 50 de Heráclito In: OS PENSADORES ORIGINÁRIOS: Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999. 3

157

escuta simples, somente ele dispõe da capacidade de nomear tudo que é realidade, “tudo é um”, tudo é unidade. A ausculta exerce um papel tão fundamental na instauração da realidade que é o primeiro contato com a unidade, desta forma não se reduzindo à uma simples força, a unidade é a condição de um conceito não se estabelecer sem o seu oposto, ela é constituída na diferença entre dois conceitos, por exemplo, som e silêncio é unidade em sua diferença, são unos porque dependem um do outro para compreendermos seus verdadeiros significados, é nesse sentido que o logos não apresenta a unidade como uma simples força. Tomar conhecimento dessa tensão que se estabelece na diferença é enxergar muito além do óbvio, é evidente que som e silêncio são opostos, saber que um depende do outro para significar e que estabelecem uma unidade é o passo dado em direção à compreensão do logos. A fala do logos é dizer e mostrar, essa disposição de trazer à tona, de revelar chamamos de fenômeno, em grego, phainomenon, fazer brilhar, trazer à luz, essencialmente é ‘o que se mostra em si mesmo’. O desencadear do fenômeno ‘des-velador’ do ser, não significando efetivamente que o ser esteja atrás do fenômeno, o des-velamento acontece sob uma dinâmica não linear ─ não define o que vem antes ou depois ─ e sim circular, no movimento incessante de ocultação e ‘des-ocultação’, no claro-escuro do ser, tal dinâmica de movimento não se apreende, é presença e ausência. O logos no dizer permite ao fenômeno vir à tona, e o fenômeno desencadeia o ‘des-velar’ do ser, auscultar o logos é participar do que é dito, é se colocar presente na virtude essencial do ser, ‘entrever’, ou ainda, ‘entrescutar’ o Ser em sua presença/ausência. É do levgein depreendemos o que é lovgoς. O que significa levgein? Todo mundo que conhece a língua grega sabe a resposta: levgein significa dizer e falar; lovgoς significa: levgein [...] Todavia, igualmente cedo e de modo ainda mais originário e por isso mesmo sempre, portanto, no significado de dizer e falar já mencionado, levgein diz o mesmo que a palavra alemã legein, a saber: de-por, no sentido de estender e prostrar, pro-por, no sentido de adiantar e apresentar. Em levgein vive colher, recolher, escolher, o latim legere, no sentido de apanhar e juntar. 4

Dizer e falar, apresentar em con-junto no sentido acolhedor/recolhedor da fala é legein (em grego levgein), e escutar homolegein (oJmologei`n) que claramente participa da mesma origem etimológica que o primeiro. Porém como se dá a escuta? Falar ao homem somente é possível quando ele escuta, atenta-se ao que diz o logos, quem proclama o discurso somente o faz porque o escuta, assim como quem está presente ao discurso escuta o logos e não apenas a verborragia, a língua de quem fala; todos são auscultadores quando se 4

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferencias. Petrópolis: Vozes, 2002

158

disponibilizam na dimensão da escuta, escutador com escutador, quem pronuncia e escuta o logos e quem escuta e participa do que é trazido pelo dizer do logos, um com o outro, caracterizando uma homogeneidade. Extraindo-se deste conceito o radical homo (oJmo),formamos a unidade que vigora sob a disponibilidade de escutadores. O próprio escutar que se diz em: homolegein (oJmologei`n). Como o escutar pode apresentar-se como auscultar? O escutar como auscultar proposto por Heráclito, não se reduz a qualquer escutar passivo, disposto a apenas perceber os estímulos sonoros através do ouvido fisiológico, da fala fonética (phoné) da própria voz humana. O ouvido não é uma parte isolada do corpo, ele é corpo, é con-junto, unidade da qual não se permite separação entre ‘um-e-outro’, já que ‘um-e-outro’ é ‘outro-e-um’. À unidade não é permitida separação, um todo não se apresenta em pedaços; efetuamos cortes ao todo porque analisar pedaços menores parece ser o caminho mais fácil para compreendermos suas implicações, a análise dispõe do movimento de cortar e reunir novamente, todavia, esse movimento desfaz a condição de uno, de unidade, mesmo ideologicamente não é possível separar a unidade sem que haja um deslocamento de seu verdadeiro significado. Como pode existir o uno, a unidade em pedaços? Escutamos não somente com os ouvidos e sim com o corpo inteiro. O auscultar é escutar o que apresenta o logos, escutar o sentido acolhedor de sua fala só é possível estando em presença, pertencendo ao que é apresentado, auscultar é a escuta da presença.  é a postura recolhedora (acolhedora). Mas para os gregos levgein continua sendo também: apresentar, expor, narrar, dizer. oJ lovgoς seria, então, a palavra grega para a fala, como dizer para a linguagem. E não somente isto. Pensando como a postura acolhedora, oJ lovgoς seria a essência da saga, pensada de modo grego. Linguagem seria saga. Linguagem seria: deixar dispor-se recolhedoramente o vigente em sua vigência. De fato: os gregos ‘moravam’ nesta essência da linguagem, embora nunca tivessem pensado esta essência, nem mesmo Heráclito.5

Heráclito disse sobre o logos em uma língua que tomamos de empréstimo, entretanto, como se apresentaria esse conceito nos dias de hoje? O homem pensa, escuta, fala e nomeia porque é o único ser vivo dotado de linguagem. Não é simplesmente a linguagem um saber humano dentre várias outras faculdades que nos difere dos outros animais, a linguagem nos condiciona a existir como homem, nossos modos de habitação, nossa cultura provém da linguagem. Toda definição de escuta discutida até agora nasce da linguagem, assim como o logos de Heráclito é linguagem, pertencer e escutar seu apelo é co-nascer, nascer junto

5

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferencias. Petrópolis: Vozes, 2002:

159

para conhecer, o nascimento que gera ‘co-nhecimento’. Nascemos e somos condicionados seres culturais na medida em que habitamos a linguagem. Dizemos, falamos por que escutamos, assim, através da escuta, nos é permitida toda possibilidade de nomeação, de dicção, o falar do homem é a resposta ao apelo do dizer acolhedor da Linguagem que reúne diferentes conceitos em unidade; “tudo é um”, tudo é unidade, a escuta da linguagem ‘des-vela’ a unidade, e a unidade é a vigência de todo real. Não em sentido literal, mas, em sentido profundo. Perguntar sobre o que é, adentrar na pergunta, no grego nos voltamos para a origem, para a origem da civilização e o pensamento ocidental, um caminho que já vem sendo trilhado à muitos séculos e que agora o começaremos a trilhar... Lentamente vislumbramos em nossa reflexão que a língua grega não é uma simples língua como as européias que conhecemos. A língua grega, e somente ela, é logos.6

A etimologia nos possibilita investigar como uma palavra vem sendo dita ao longo dos tempos, nesse sentido acompanhamos sua evolução e podemos comparar o que determinada palavra nos diz nos dias de hoje e o que realmente é dito no seu estado originário, em seu étimo. Nesta busca conhecemos qual o real significado que vigora sobre determinados conceitos. Durante os séculos devido a traduções, choques culturais, religiosos, entre outros fatores encontramos deturpações dos significados atribuídos a várias palavras, todavia, não estamos julgando se a palavra é dita de forma incorreta ou não, estamos apenas afirmando o quanto uma palavra pode se afastar de sua forma original devido a todos esses fatores. Pensar o conceito como originário é aproximar-se do dizer autêntico da palavra, não sendo esse pensamento uma tentativa de voltar ao passado e remontá-lo historiograficamente, porém, recair sob uma forma originária de pensar o significado e a experiência que cada palavra guarda em si. Refletindo sobre o passado com uma perspectiva não linear, já citada acima, compreendemos que o passado não é o que está atrás e sim é o que se projeta à nossa frente, devido ao fato de estarmos olhando para ele o tempo todo. O futuro por sua vez ainda não foi ‘des-velado’ portanto não se encontra à nossa frente, é a possibilidade, é o vir-a-ser onde nos deparamos com a angústia, o saber tragicômico da nossa efemeridade, é a certeza da não realização por completo de todos os nossos empenhos. O conceito de logos para Heráclito é o que hoje chamamos de linguagem, pertencer ao seu apelo, auscultá-la é o que se traduz como escuta autêntica, essencial e ontológica. Acreditando nesses conceitos adentramos na principal investigação do presente estudo, a escuta musical.

6

HEIDEGGER, Martin. O que é isto a filosofia? Trad. Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2006.

160

ESCUTA MUSICAL Como através da escuta essencial, ontológica, podemos compreender o que é escuta musical? Compreender a escuta musical “através” da escuta essencial, é pressupor um meio para se chegar à escuta musical, seria admitir a escuta musical só ser “através de”, todavia, o empenho neste caso não é somente conhecer “através de”, e sim, compreender a escuta musical como propriamente escuta ontológica. Nosso empenho até o momento foi em discutir a escuta da linguagem e seus desdobramentos na questão do ser, porém, perduram as inquietações sobre música: o que é escuta musical? Para chegarmos ao entendimento sobre escuta musical, poderíamos dividir a escuta em dois segmentos diferentes, um a própria escuta musical e o outro a escuta da linguagem? Segmentar não compreende na melhor forma de pensar a escuta, nesse caso compartilham da mesma experiência escuta musical e da linguagem? Poderíamos então afirmar que música é linguagem? Como e porque unir estas duas forças em uma só questão? Se a música é ou não linguagem o que define a afirmação ou negação desta igualdade? A impossibilidade de responder a estas questões de antemão nos obriga a desistir de encontramos um ponto de chegada, entretanto, nos permite acesso ao caminho, assim dizemos de um caminho e nada mais, para conduzirmos nosso pensamento e eliminarmos as diversas confusões que poderiam nos distanciar da unidade, nossa resposta então será o caminhar na unidade para conhecer o que é escuta musical, uma questão que por si só abrange e significa todas as outras posteriores convocando sentido ao escutar com propriedade que pretendemos estudar. A linguagem conjuga ao homem todas as possibilidades de habitar enquanto homem, o determina e o condiciona ser para o mundo. Diferente dos que com ele são physis o homem se projeta para além através de sua capacidade de pensar o ser, sofremos todas as mudanças da physis e também nela interferimos de maneira não natural, mas cultural. Um exemplo bem ilustrativo, que pelo encantamento do ser humano pela beleza da natureza é reproduzido de forma generalizada: “o pássaro canta”. É natural que em algum dado momento todos tenham escutado uma frase como esta, porém, se realmente ele canta, como o faz e por quê? A capacidade dos pássaros de emitir sons na verdade não é cantar, porque emitir tais sons faz parte de sua ordem genética, assim como voar, e suas outras atividades fisiológicas. O pássaro por mais que emita qualquer tipo de som, e que esse som nos pareça tão belo quanto um instrumento musical bem tocado, o animal nunca terá a capacidade de pensar qualquer composição artística com as ferramentas que dispõe, porque ele não pensa na manipulação dessas ferramentas de forma cultural, ao contrário do ser humano ele não habita a linguagem, seus sons sempre servirão para desempenhar as atividades naturais que a ele confere. O pássaro assim como os outros animais e demais coisas são physis, o homem mesmo fazendo parte não é somente physis, a linguagem o

161

projeta para além dos instintos naturais. Ao falar de linguagem não nos referimos apenas ao uso cotidiano do conceito, não estamos falando de linguagens separadas, ou seja, linguagem não significa o complemento ao empenho de uma modalidade artística ou de trabalho (a dizer linguagem corporal, artística, computacional, entre outras), a linguagem é unidade, portanto indivisível, supor que as linguagens são as divisões da linguagem em vários segmentos é afastar-se da unidade. O homem fala e produz seus empenhos à medida que co-responde à linguagem, co-responder é escutar, o escutar que se dá como condicionador ao produtivo, que confere ao homem suas habilidades de manipular os elementos da physis transformando-os de acordo com suas necessidades. Tocando nesta questão dizemos que a produção autêntica está etimologicamente ligada ao fazer, em grego dito na palavra poiesis, ou seja, verdadeiramente o fazer humano é o fazer poético. Causa estranheza à primeira vista dizer que o fazer do homem é poético, porque vivemos em uma dependência tão grande do trabalho que mal podemos enxergar a poética em nossas atividades diárias, todavia, dizer que poético é o próprio fazer, não é descrever o modo de vida que o homem moderno leva, é compreender o homem e sua existência de maneira originária, falamos aqui de um fazer proveniente da escuta do logos. O poeta alemão Hölderling diz no seu poema “In lieblicher Bläue...” (No azul sereno floresce...) a seguinte frase “Poeticamente o homem habita” 7 (poema analisado por Heidegger no livro ‘ensaios e conferências’). Pensando sobre o sentido desta frase, que é habitar? Com certeza não é qualquer forma de habitar, é uma forma de habitar o logos, o homem habita à medida que produz, e essa produção está ligada ao sentido mais originário de habitar, o de cultivar e colher suas produções. O homem co-nasce com a linguagem, não o nascimento biofísico, mas o nascimento que gera conhecimento, o nascer para conhecer, é impossível determinar uma medida que de conta do momento exato desse co-nascimento, de forma alguma conseguiríamos explicar se é antes, durante ou depois do nascimento biofísico. Verdadeiramente não é nosso propósito demonstrar como isso acontece, consideremos apenas que esse co-nascer é condicionado pela linguagem. Como dito acima a linguagem não se dá na soma de linguagens e sim na dimensão dela própria, afirmação que não a entrega a outra coisa que a fundamente, a linguagem é desde a linguagem, unidade originária em que o homem transita e co-nasce escutando-a. Escutamos poeticamente a linguagem e é nesse escutar que se dá a origem da produção cultural, evidentemente da produção musical. Poderíamos então remontar a questão sobre música e linguagem dessa forma: a música não é a linguagem propriamente dita, porém, a

7

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferencias. Petrópolis: Vozes, 2002:

162

música é na linguagem, portanto o escutar musical também se dá como essencial, como ontológico. A música ser na linguagem não anula seus méritos de existir como música e mostrar-se ‘em-si-mesma’, a linguagem entrega a música ao modo próprio de ser musical, seu acontecer possui brilho próprio, desta forma concretiza-se como fenômeno e ‘des-veladora’ do ser. É no movimento de ‘dês-ocultação’ e ocultação que o ser se deixa entrever, quando a música acontece e nos dispomos como escutadores estamos em meio à sua realidade, estamos ‘entrescutando’ o ser musical. A música instaura realidade e dispomos no seu fenômeno de tempo e espaço, o fazer musical traz à tona a unidade da diferença entre som e silêncio. A presença musical estabelece um real próprio, no âmbito deste habitamos como escutadores, escutar música é participar, é pertencer à sua dimensão, ao seu tempo e espaço. Talvez seja mais fácil pensar o tempo na música do que o espaço, os dois conceitos neste caso não assumem formas lineares ao ponto de podermos calcular suas medidas, o tempo musical é não cronológico, não é o objetivo da escuta prever no futuro quando a música chegará ao fim e sim escutar sua presença, seu tempo que não se pode apreender. Escutamos ainda seu passado que na verdade é presente, exemplificando ao escutarmos a interpretação de uma obra musical composta há séculos estamos escutando um diálogo entre o passado e o presente, assim como escutamos um diálogo entre obra, compositor e intérprete se desdobrando no ‘des-velar’ musical que é presente. O espaço na música não é a distância que o som pode alcançar de um local ao outro, porém, é um espaço de acomodação, dizemos dessa forma que tempo e espaço musical é a densidade que o fenômeno provoca, nos sendo permitido seu acesso através da escuta, da disponibilidade do indivíduo para com a música. A escuta se dá no silêncio, não no silenciar da linguagem o que seria impossível ao homem cessar o seu próprio motivo de vida, porém, o silêncio de resguardar com atenção o que estamos escutando. Pensar no silêncio é conceber toda sua eminência de abrigar o som a qualquer instante, o silêncio é o nada que guarda toda potencialidade musical. O caos musical é a ausência de som, sobre esse caos é que movemos e articulamos a unidade da diferença entre som e silêncio, a música não é qualquer articuladora desta diferença, ela é a própria unidade, articular nesse caso é unir, juntar e também pronunciar, assim a música além de unir os dois elementos de uma forma totalmente própria, é capaz de pronunciar som e silêncio juntos musicalmente. Como se da verdadeiramente a diferença? Pensaremos a diferença não como dicotomia ou justaposição entre opostos, o conceito aqui está ligado à diferença que corta, porém, não esquarteja e sim promove um rasgo entre, a abertura em que o ser se deixa entrever, a música como fenômeno é a clareira do ser, possuidora de brilho próprio que atrai para si toda escuta presente em seu âmbito, instituindo a dimensão musical. O homem retira o véu da música ao trazê-la do esquecimento inaugurando o deixar aparecer, o apresentar-se do fenômeno musical, a música é a resposta do homem

163

ao silêncio que o inquieta, é escutando que ele consegue compor musicalmente se valendo da unidade som e silêncio, como artista é angustiante ao homem suportar o caos musical, suportar o silêncio sem nele interferir. A poética musical é inaugural, ao compreendermos o fazer música como originário entendemos que a mesma composição a cada vez que acontece será revelada aos escutadores de forma diferente, talvez não se torne uma nova música a cada apresentação, mas, uma nova dimensão do que estamos presenciando, por isso cada música é início, uma mistura de composição, interpretação e poética, um diálogo novo a cada apresentação entre escutador, intérprete e música. O desvelar-se música guarda a forma radical de ser originário ao ponto de não tomar meios para acontecer, o início, o meio e o fim são musicais, são enquanto fenômeno, enquanto música. Para compreender o ser devemos nos questionar, investigar toda questão pertinente à ontologia, mesmo que essas questões não nos entregue respostas prontas elas proporcionam sentido existencial para compreendermos a nós mesmos e o mundo. A dúvida inquietante que deve ser o primeiro empenho para qualquer estudo musical é: O que é música? Essa é a questão que incomoda todo músico, todo teórico musical e todo escutador, recaindo com atenção sobre a dúvida conseguiremos nos aproximar cada vez mais do sentido existencial que a música proporciona, entretanto, a resposta não se dá em outro meio que não seja a própria música, música é música e nada além, tal asserção por mais simples e fossilizadora que pareça não é dita com um sentido de estagnação, ao dizer música é música nos dispomos a pensá-la desde ela mesma, com isso adentramos no cerne da questão em tese, como pensar música desde ela mesma, como ter acesso a unidade originária musical? O suporte para compreender o entreaberto da questão co-nasce com o homem culturalmente, sem o qual o homem não habitaria como ser poético musical: falamos aqui da própria ausculta, a escuta participativa, que é a forma originária de assumirmos presença no fenômeno musical, somente estando presente no fenômeno somos capazes de conhecê-lo, nos tornamos música à medida que nos dispomos em sua dimensão, essa disposição se dá na escuta. Quando nos dispomos a escutar para conhecer o fenômeno relacionamos o conceito de escutar e pensar, é esse o sentido que entendemos como auscultar, é a atividade que nos proporciona acesso à unidade musical e nos aproxima da compreensão do que é música verdadeiramente. Toda análise musical vem da escuta, nós homens ocidentais temos o sistema tonal como uma escuta ocidental da música, porém, o fazer musical não se resume apenas aos sistemas, a poética está no que é mais originário, o que mais traz para proximidade a unidade musical, sempre tentaremos elaborar sistemas na tentativa de explicar como funciona a técnica, entretanto, a escuta sempre será originária, brutalmente nasce com a música. De maneira originária é a escuta ontológica que permite ao homem fazer música, segundo Heidegger no livro “A origem da obra de arte” o artista é a origem da obra, assim como a obra é

164

a origem do artista e se fazem estes em um terceiro que na verdade é o primeiro: a arte. Em nosso caso a música não é simplesmente a soma de obra e artista, mas a dimensão que abarca todos os escutadores, intérprete, público e obra musical habitam dessa forma o fenômeno. A dimensão musical absorve todos os escutadores para si, tudo se torna música naquele momento único de seu acontecimento, nos tornamos música quando pertencemos a esta dimensão, a escuta musical originária é o ‘sumir-de-si’ do homem para apresentar-se como música. Traçamos nosso caminho até o momento dispostos a discutirmos os conceitos relacionados à escuta musical e linguagem, dessa forma podemos concluir que a escuta ontológica se apresenta em um âmbito mais profundo da escuta, está para além do ouvir comum e não se dá sem a participação dos escutadores com o logos e com a música. Assim como não deve ser raso pensar e tocar música, não deve ser raso a escutar. Significando de forma objetiva a escuta é fundamental para se chegar aos verdadeiros conhecimentos sobre música, estes por sua vez não muito simples de serem apreendidos em sua totalidade, ou seja, não há um pensar musical profundo sem uma escuta profunda. Sobremaneira sem a escuta ontológica a questão do conhecimento, apreciação musical e composição perdem o sentido existencial. Pretendemos com esse estudo voltar à atenção para o sentido originário do escutar, sempre pensando em como a escuta ontológica se faz presente em todas as instâncias dos estudos musicais. Sendo essa presença uma constante devemos trazer à tona a importância da escuta para essas instâncias, para o músico e para a música. Não é nosso dever pensar a escuta como algo óbvio, queremos ver além do óbvio e isso somente se faz possível quando percebemos que o escutar brota junto da música. Sendo brotamento a escuta está na origem e nos revela a impossibilidade de conceber música sem escutar, não somente com o ouvido, mas, uma escuta do corpo e do ser como unidade.

REFERÊNCIAS HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70 ___________, Martin. Ensaios e conferencias. Petrópolis: Vozes, 2002 ___________, Martin. Ser e Tempo, trad. Marcia de Sá Cavalcante Schuback. 2 vol. RJ: Vozes, 1988. ___________, Martin. A caminho da linguagem, trad. Marcia de Sá Cavalcante Schuback. 5. Ed. Petrópolis: Vozes, 2011. ___________, Martin. O que é isto a filosofia? Trad. Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2006. MOURA, Geraldo de. Radicais gregos e latinos do português. Vitória: Edufes, 2007.

165

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 19a. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. OS PENSADORES ORIGINÁRIOS: Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999.

166

LÉVI-STRAUSS: MITOS EM MELODIAS Betania Maria Franklin de Melo [email protected] UFRN Resumo: Este trabalho é centrado no estudo das Mitológicas 1 e 2, (1964-1967) de Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido, que corresponde ao 1º volume, e Do mel às cinzas, o 2º volume, no qual as linguagens mito e música estão relacionadas. O autor realizou pesquisa de campo na região central do Brasil e depois seguiu à Amazônia, este foi seu propósito ao chegar da França e lecionar na Universidade de São Paulo. As Mitológicas é uma gigantesca obra em tetralogia repleta de narrativas míticas dos ameríndios do sul e do norte, resultado de 20 anos de pesquisa elaborada a partir de 1935, período que permaneceu no Brasil. O autor propõe que a compreensão dos mitos ocorre de maneira similar com a partitura orquestral, assim procuramos investigar no estudo antropológico a análise mito e música apoiando nos procedimentos: tema com variações, sonata e fuga, e também nos compositores destacados pelo autor. Palavras-Chave: Lévi-Strauss, Mito, Música, Narrativa.

LÉVI-STRAUSS: MITOS EM MELODIAS A compreensão do mito relacionado à música foi inaugurada por LéviStrauss na estrutura de sua pesquisa realizada no Brasil, intitulada Mitológicas, sobre mitos de diferentes tribos indígenas. Com teor transdisciplinar palavras do pleito musical disseminam a análise antropológica e incorporam também a música vivida pelo autor. Nesta modalidade, o artigo seleciona algumas narrativas ao lado da estrutura básica de alguns procedimentos de composição. Em seguida, pela influência da abordagem não ocultar o pessimismo sulamericano visto pelo autor, como também, pelo caráter melancólico de algumas histórias, exemplos melódicos passearão nos temas: incesto, assassinato, origens, transformações e outros acontecimentos que regularam a sociedade de tradição através das crenças dos mitos. Na elaboração da tetralogia, compositores da música ocidental como: J. S. Bach, L. V. Beethoven e R. Wagner foram categorizados no cenário como músicos do código, da mensagem e dos mitos, respectivamente. Lévi-Strauss como estruturalista pôde expandir e relacionar os compositores em pares, de acordo com aspectos da composição musical. Vejamos: Nesse sentido poderíamos dividir os compositores em três grupos, entre os quais há todo um tipo de passagens e todas as combinações. Bach e Stravinsky apareceriam como músicos do código, Beethoven e também Ravel, como músicos da mensagem, Wagner e Debussy como músicos do mito. Os primeiros explicitam e comentam em suas mensagens as regras de um discurso musical;

167

os segundos contam; e os últimos codificam suas mensagens a partir de elementos que já pertencem à ordem do relato (LÉVISTRAUSS, 2004a, p. 50).

A experiência musical de Lévi-Strauss refletiu no conhecimento da cultura indígena e a comparação rezada pelo autor, entre a estrutura do mito com a partitura musical, foi a essência de nossa pesquisa de doutoramento, concluída em 2012. Em continuidade, partimos para contribuição melódica. A sombra dos mitos de nossa cultura, o saber das sociedades que nos precederam foi aprofundado pelo antropólogo, porém, não melodiado e nesta intenção o objetivo se mantém no alcance da transmissão da narrativa pela melodia. Lévi-Strauss em, Olhar Escutar Ler, refere-se à harmonia com um fundamento de Rousseau, como forma mais que inesperada no olhar do músico: “A harmonia é inútil, pois que já se encontra na melodia. Não é acrescentada, mas redobrada.” (LÉVI-STRAUSS, 2001, p. 71). Quando Lévi-Strauss se coloca como ouvinte mediano da música destaca obras musicais e compositores, enfatiza o compositor, Richard Wagner como o compositor dos mitos, reitera a ópera O Anel dos Nibelungos (1876) e reconhece o “deus Richard Wagner” como o pai irrecusável da análise estrutural dos mitos. (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 34). E como compositor dos mitos destaca mais uma vez a melodia ao centrar o leitmotiv. O diferencial em Wagner é a presença do leitmotiv, tanto nas partes vocais como nas orquestrais, se constitui de uma ideia musical que podemos chamar de tema ou motivo que caracteriza a ação ou um objeto, que ao surgir em determinado momento da ópera, logo é associado ao personagem. É um tipo de referência melódica que induz o ouvinte a personificar a melodia ou defini-la relacionando-a ao personagem e também a um objeto como o ouro, a espada, ou a um lugar, no decorrer da ópera. Wagner descobriu que a ópera histórica havia acabado e assim se reportou ao conto mítico sendo ele próprio o libretista. Enquanto outros buscaram o libreto na poesia, no romance, Wagner organizou a ópera e a expandiu, no que se refere ao cenário, à orquestra e outros fatores. No decorrer das quatro óperas, em O Anel do Nibelungo, este leitmotiv aparece e reaparece em diferentes momentos ligados aos personagens. (BENNETT, 1986). Na segunda ópera, A Valquíria, o leitmotiv reaparece na renúncia do amor entre dois irmãos que estavam apaixonados, e, no surgimento da espada, o incesto não acontece: No primeiro ato de A Valquíria quando Siegmund, apaixonado por Sieglinde, descobre ser seu irmão gêmeo ‘precisamente quando iam iniciar uma relação incestuosa, graças à espada que se encontra espetada na árvore e quando Siegmund tenta arrancar – nesse momento, reaparece o tema da renúncia ao amor’. (MONIZ, 2007, p. 45).

168

O leitmotiv aparece também quando a renúncia se dá do amor do pai para com a filha. O terceiro momento em que o tema aparece é também nas Valquírias, no último acto, quando Wotan, o rei dos deuses, condena a sua filha Brunilde a um longo sono mágico, rodeando-a com uma barreira de fogo. Poder-se-ia pensar que Wotan estava a renunciar ao amor pela filha; mas tal interpretação não é muito convincente. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 70).

Lévi-Strauss (1978) mostra que este tema musical acontece na mitologia sendo o incesto um paralelo encontrado como tema musical e mitológico e que aparecendo três vezes em uma história tão longa - referindo-se às duas primeiras óperas da tetralogia de Wagner - pretenderia mostrar que estas aparições embora diferentes, podem ser tratadas como de um mesmo acontecimento. Tanto o ouro como a espada e Brunilde representam o mesmo significado. A proposta da relação do mito com a partitura orquestral nutre um grande desafio: Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante [...] E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair seu significado (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 68).

As histórias míticas na obra são ordenadas numericamente, a primeira narrativa corresponde ao Mito de número um, M1 Bororo: o xibae e iari, “As araras e seu ninho” esta é considerada o mito referencial; em seguida, a segunda história, o M2 Bororo: origem da água dos ornamentos e dos ritos funerários e assim por diante. Nas narrativas a sequência dos acontecimentos não se dão como um romance que se espera um final feliz. Muitas vezes, não se sabe o herói da história, porque um personagem da maldade adiante se torna a vítima, como no mito referencial. Lévi-Strauss aplica: “O pensamento mítico, totalmente alheio à preocupação com pontos de partida ou de chegada bem definidos, não efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 24). De repente um animal se transforma em humano e vice-versa, esta questão entre animalidade e humanidade, e também os termos utilizados na obra, em oposição como as categorias empíricas, O cru e o cozido, o seco e o molhado, o mel e as cinzas refletem ambigüidades míticas. Lévi-Strauss mostrou que os mitos não têm fim e que a terra da mitologia é redonda: “Porém, se a cadeia se fecha no mito dos gêmeos, que encontramos duas vezes no caminho, talvez isto se deva ao

169

fato que a terra da mitologia é redonda ou, dito de outra maneira, porque ela constitui um sistema fechado” (LÉVI-STRAUSS, 2004b, p. 219). O Mito opera como um ritornello. Têm meios, voltam, repetem são recriados, continuam e aparentam ter um fim. Porém, são infinitos. “Não existe um verdadeiro término na análise mítica, nenhuma unidade secreta que se possa atingir ao final do trabalho de decomposição. Os temas desdobram ao infinito” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 24). O ritornello é um elemento presente no itinerário mítico, seja o herói ou outro personagem ele sempre retorna ao seu lugar, propondo um estado de repetição ou de circularidade. Em, O cru e o cozido escreveu: “De modo que ao ouvirmos música, atingimos uma espécie de imortalidade” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 35). As formas musicais é uma possibilidade de compreender os mitos, para tanto, nomeou na organização das seções e dos capítulos algumas e explicou: [...] as formas musicais nos ofereciam o recurso de uma diversidade já estabelecida pela experiência já que a comparação com a sonata, a sinfonia, a cantata, o prelúdio, a fuga etc., permitia verificar facilmente que em música tinham sido colocados problemas de construção análogos para que a análise dos mitos levantara, e para os quais a música já tinha inventado soluções (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 34).

Das formas citadas, três foram desenvolvidas neste estudo: Tema e variações, Sonata e Fuga. Tema e variações é a primeira onde constam cinco primeiros mitos da obra assim nomenclaturados1: M1, M2, M3, M4, M5. Com base na primeira narração os acontecimentos históricos do desaninhador de pássaros, segue: as mulheres vão colher folhas para fabricação dos estojos penianos para enfeitar os rapazes, uma delas é violentada, e ao chegar em casa, o marido percebe que em sua cintura havia penas do enfeite dos rapazes, e assim resolve provocar uma dança para observar qual dos rapazes usa a mesma pena que a esposa trouxera no cinto. Para sua surpresa, era seu próprio filho. Sedento de vingança manda o filho para o Ninho das Almas. Várias categorias estão envolvidas no mito, como: os personagens: mulher, rapaz, esposo, avó; como os instrumentos: maracá, chocalho; os animais: colibri, juriti, gafanhoto, lagartixa, urubu, peixe, veado; os territórios: floresta, casa, praça da dança, a casa da avó, o ninho das almas, a montanha e outros lugares. No universo destas categorias é possível assinalar um pentagrama como a leitura de cada instrumento musical, nas alturas específicas, nesta abrangência de

M1 Bororo: o xibae e iari, “As araras e seu ninho”. M2 Bororo: origem da água dos ornamentos e dos ritos funerários. M3 Bororo: após o dilúvio. M4 Mundurucu: o rapaz enclausurado. M5 Bororo: origem das doenças. 1

170

pentagramas a linguagem dos mitos pode ser estabelecida conforme uma grade orquestral, simbolicamente. A forma, Tema e variações pode ser analisada de acordo com os estágios da história. Lévi-Strauss deixou a escuta dos mitos como um caleidoscópio a ser desvendado, como age a música em repetição. A variação ocorre em função do Mito 1, como uma derivação de um tema central. No M2 Bororo, a mãe demonstra reação contrária à insistência do filho, em segui-la, enquanto no M1, ela é seguida inocentemente. O filho no M2 parece agir com proteção e não com violência conforme o tema principal, neste M2, não mais o menino, outro personagem é quem faz o estupro e a morte acontece no início da história mítica ao invés do final, como no M1. A vingança não somente instaura-se sobre o personagem do estupro como também com a mãe. Os animais (tatus) auxiliam a enterrá-la, e não ajudam a dar vida, como no M1. Quando o herói esteve abandonado, os “pássaros saciados resolveram dar a vida” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 57-72). Há um desdobramento do tema, no que concerne a inversão de ações e papéis tomados pelos componentes do Mito. Esta variação do tema em inversão acontece na música. Apresentamos em seguida, um exemplo musical deste mito de referência. Por se tratar de um mito longo, os demais mitos da tetralogia surgem em consonância com alguns dos elementos constitutivos inseridos neste, promovendo maior análise.

171

172

Sonata das boas maneiras foi o título dado por Claude Lévi-Strauss, para iniciar a composição da segunda parte das Mitológicas 1. Nesta, constam narrativas do Mito 14 ao Mito 64. Sublinhamos dois mitos de mesmo título para contextualizar a forma Sonata: o M14 A Esposa do Jaguar da tribo Ofaié e a o M46 A Esposa do Jaguar da tribo Bororo. Descriminamos as três partes básicas da sonata: exposição, desenvolvimento e coda e a exemplo da exposição: no tema um do M14, o Jaguar deixa uma carcaça no mato e não aparece literalmente, e uma jovem ao encontrar o objeto revela seu sonho, (desejo de comer muita carne). Ele se aproxima, promete o sonho e casa-se com a jovem. A figura do Jaguar aparece como bom e sedutor. No tema um do M46 o Jaguar como recompensa em ter salvado a vida do índio, recebe a filha e casa-se, ela fica grávida. Novamente a figura do Jaguar aparece como bom e sedutor. No desenvolvimento: o episódio um do M14, a mulher afirma a bondade do Jaguar em proporcionar carne para todos da aldeia e permitir que escolham até o tipo da caça. Há como uma modulação diante da dúvida anterior de seus familiares sobre a bondade do Jaguar. No episódio um do M46, a mulher não conteve o riso estando grávida, conforme a recomendação do Jaguar antes de ir caçar, ela então sente dores. O Jaguar volta e faz o parto de gêmeos. Também há uma modulação diante do pedido do Jaguar, que “Não risse”, em meio a sua bondade. (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p.108-151). A presença das ambigüidades dá referencia ao compositor do código, Beethoven, o compositor das ambigüidades que tanto reconsiderou a estrutura sonata, ampliou e mostrou criativamente novas possibilidades. A informação em destaque: “Não se deve esquecer, com efeito, de que nos tempos míticos os homens se confundiram com os animais” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 141). Em decorrência, a questão da animalidade em contraposição à humanidade ou viceversa, é muito presente nos mitos nesta parte, Sonata. Lévi-Strauss explica a mediação que enquanto um animal passa a ser destinado, o outro é destituído de uma natureza humana original, por um comportamento social. (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 113). Os Mitos e a forma musical Sonata estão em circulação nesta análise. As equivalências entre as narrativas descritas e a estrutura musical aferem aos signos como notas, as ideias, fraseados e estrutura do domínio da linguagem convencional narrada, que é o mito com a estrutura da sonata clássica. A convergência dos elementos da linguagem articulada com a musical se dá pelo fato de Lévi-Strauss escrever sobre a perfeição da música com a mitologia. O mito, conforme disse, faz o papel mediano entre a música e a linguagem: Se, dentre todas as obras humanas, foi ela que nos pareceu mais adequada para instruir-nos sobre a essência da mitologia, a razão disso é a perfeição de que ela goza. Entre dois tipos de sistemas de signo diametralmente opostos – de um lado, o sistema musical, do outro, a linguagem articulada –, a mitologia ocupa uma posição mediana; convém encará-la sob duas perspectivas para

173

compreendê-la. Contudo, quando se escolhe como fizemos neste livro, olhar do mito em direção à música e não em direção à linguagem, como tentamos fazer em obras anteriores, o lugar privilegiado que cabe a música aparece com mais evidência. (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 47).

Como a leitura musical exige conhecimento prévio dos significados tornando um modelo rígido de pensamento, o entendimento da escrita musical elaborado pelo compositor não se define no olhar da partitura por leigos que não dispõem da prática da percepção. Neste sentido, a estrutura musical no papel é uma partitura que sugere música, mas por si só não produz som: é uma linguagem. Já na leitura da narrativa mítica, a linguagem narra o mito no conhecimento da escrita. Ela põe em ação a história no pensamento do leitor. A partitura soa na mente do leitor músico quando os sons passam a ser entoados pelos símbolos antes da interpretação. Esta mediação ilustra a mitologia entre a música e a linguagem articulada, incidindo a música como ideal. Nos sons estão imbricadas ideias e subjetividades que estimulam a imaginação a respeito dos mitos. Nosso propósito perpassa no desenvolvimento de atividades para as disciplinas que trabalhamos com alunos de piano em grupo. Nossa intenção é fomentar leituras de Mitológicas e dirigidas à composição. Estas composições podem dialogar com pesquisadores de outras áreas que queiram compreender os mitos, a partir das sonoridades, como sendo um resultado geral da pesquisa. Nesta proposta, o resultado de criação sonora transmite o plano do discurso musical com significados próprios de expressão do autor. Uma elaboração criativa a ser apreciada pelo modo de escuta dos mitos, e os critérios usados nas intenções das sonoridades elegem um material baseado no mito: a inspiração dada pela narrativa. Se o texto for inserido na música, fará o papel norteador da compreensão da estrutura. Comumente, a apreciação de uma obra musical revela o intelecto do ouvinte e se acompanhado da poesia – que é um elemento na música a favor do canto melódico – fará o ouvinte pensar na junção desta linguagem com a música; uma subordinada a outra. Esta perfeição esteve na música sacra, depois na ópera. Wagner a respeito disto, une-se ao pensamento de Schopenhauer: As vozes do cântico são tratadas, inteiramente, como instrumentos humanos, no sentido em que Schopenhauer, muito acertadamente, pretendeu ter-lhes atribuído; nessas grandes composições sacras, o texto que subjaz o canto não é compreendido por nós segundo seu significado conceitual, mas serve no sentido da obra de arte musical [...]. (WAGNER, 2010, p. 69).

Wagner (2010) apresenta o filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860) como o primeiro a dizer que a música diz a linguagem e se faz compreendida sem a

174

necessidade prévia de conceitos. Isto a diferencia da poesia e das artes plásticas, porque a condição da consciência na escuta musical move o cérebro em dois planos: o estado interior (quando o conhecimento é voltado para si mesmo) e o exterior (a consciência de outras coisas). Wagner o acompanha na concepção da música ligada ao interior de si, na capacidade intelectual. Mas, ainda assim o filósofo diz que a ideia de mundo é reconhecida na própria música sem necessidade da elucidação conceitual. O som e a recepção das mensagens sonoras, por parte dos ouvintes, necessariamente não precisam de armação para serem recebidos. Por outro lado, Wagner relata que por Schopenhauer não dominar conhecimento musical e ser leigo, procedeu este pensamento porque seus estudos não alcançaram o conhecimento do músico que falou ao mundo pela primeira vez sobre o segredo da música: Beethoven. Revelou então: “Pois de fato, a própria obra de Beethoven não pode ser analisada a fundo sem que antes seja corretamente esclarecido e solucionado o profundo paradoxo que Schopenhauer apresentou ao conhecimento filosófico.” (WAGNER, 2010, p. 16). Esta ênfase de Wagner (2010) a Beethoven como o músico que falou ao mundo, faz relação com a indicação de Lévi-Strauss, o compositor da mensagem. O músico que tinha suas obras postas mediante a política traduziu ao mundo a partir da nação alemã o espírito alemão derramado na música, em renovação, em profunda transformação, pondo esta linguagem em compreensão para o povo. Esta foi sua marca singular, a expansão da forma sonata. Wagner o compreende tal como iluminista: [...] ele nos revelou um modo de compreensão desta arte que torna o mundo tão nitidamente claro à consciência quanto a mais profunda filosofia é capaz de esclarecê-lo ao pensador versado em conceitos. [...] Agora, porém, Beethoven coloca essa imagem no silêncio da noite, entre o mundo dos fenômenos e a profundidade interior da essência de todas as coisas, conduzindo a luz da clarividência para trás da imagem [...] De fato, mergulhamos em um estado de encantamento quando ouvimos uma verdadeira obra musical de Beethoven. (WAGNER, 2010, p. 42-45).

Particularmente, Beethoven construiu algo pessoal da sua emoção para o mundo. Sua música traduz até hoje um encantamento. Wagner, ao contrário, tem como característica ímpar, a música a partir dele e em retorno a ele como o próprio mito. O público é atraído a entender sua música e as pessoas se voltam para ele. Constatamos tal ponto de vista quando lemos: “Wagner queria fazer crer ao mundo que Beethoven e ele pertenciam à mesma família musical. Mas isto não é verdade. No plano musical, Beethoven era filho de Mozart e essa linhagem extinguiu-se com Beethoven.” (BUCH, 2001, p. 283). Como exemplo disto, ao ser reconstruída no neoclassicismo, a ópera tem desígnio nas suas fundações, e mediante a discussão da intenção poética, diz: “Pensando mais cuidadosamente,

175

eles não deviam ignorar fato de que na ópera, além da música, o que prende a atenção é a ação cênica e não o pensamento poético que a explica; que em particular a ópera dirige para si, alternadamente, o escutar algo, ou olhar para.” (WAGNER, 2010, p. 71). A ópera antiga é convergida à inovação de Wagner. O olhar do mito endereçado à música, estando esta em maior evidência (como expressou Lévi-Strauss) demonstra que ela abre as possibilidades interpretativas como os mitos, tanto aos intérpretes, como aos ouvintes quando se põe em liberdade de pensamento. Um mito não apresenta uma única interpretação, assim como a música. Cada exemplo musical ouvido receberá a significação da obra que se abrirá às infinitas interpretações. O campo de variação representa a história de cada ouvinte. Os mitos estão como na partitura, adormecidos nas narrativas enquanto sons a serem encarnados no plano sonoro. Voltado para a construção dos mitos, há sempre um material que manifesta a linguagem musical nas narrativas, possível de elaboração na partitura. Como exemplo, citamos o canto dos pássaros, as passadas do jaguar na floresta, um sentimento de dor, sons que podem ser expressos musicalmente. Lembramos Jardim (1995 apud PENNA, 2008) quando ressalta que os pássaros não sabem que cantam. Eles não fazem política. Sabemos que vivem em bando, se comunicam e seu canto tem registros melódicos quando a música, enquanto atividade estritamente humana estabelece a linguagem dos pássaros. Os mitos podem ser lidos pelas criações sonoras. O que podemos entender entre o sensível e o inteligível, quando LéviStrauss procurou transcender a oposição? Vemos que são as percepções compreendidas no plano das significações ou relações lógicas que refere ao inteligível. O inteligível é o termo do conhecimento que vem do sujeito, do domínio dos signos. Ou seja, seria o olhar sobre as significações do que se conhece bem. A oposição entre o sensível e inteligível, embora adote uma interdependência, se coloca no nível dos signos. Seria entender o sensível como uma noção de primeira ordem, oriunda da experiência e das percepções do sujeito. Um exemplo é ouvir uma obra orquestral e se sensibilizar a partir de um plano cultural. O inteligível de segunda ordem estabelece no ouvir da mesma obra orquestral a compreensão dos temas, das modulações, em caráter de domínio, remetendo ao conhecimento dos signos da partitura musical. Diante disto, questionamos: como entender o mito? Pelo inteligível ou pelo sensível? Sua compreensão corresponde a um nível de coerência fornecida pelo ouvinte num dado momento porque no tempo seguinte esta leitura não será a mesma: não há um sentido fechado. Em tudo que escrevi sobre a mitologia, quis mostrar que nunca chegamos a um sentido último [...] O significado que o mito pode proporcionar a mim, aos que o narram ou escutam neste ou naquele momento e em circunstâncias determinadas, só existe em relação a outros significados que o mito pode oferecer a outros

176

narradores ou ouvintes, em outras circunstâncias e num outro momento. O mito propõe um quadro somente definível por suas regras de construção. Esse quadro permite decifrar um sentido, não do mito em si, mas de todo o resto: imagens do mundo, da sociedade, da história, escondida no limiar da consciência, como as interrogações que os homens fazem a seu respeito. (LÉVISTRAUSS; ERIBON, 2005, p. 200).

Enfim, a visão do público pela música da Forma Sonata foi ressaltada pelo compositor dos mitos: A regularidade da forma-sonata foi estabelecida e perpetuada por Emanuel Bach, Haydn e Mozart, tendo sido o resultado do compromisso firmado entre o espírito musical alemão e o italiano. Seu caráter interior lhe foi conferido pelo modo de emprego: com a sonata, o pianista apresentava-se ao público, ao qual devia deleitar com sua virtuosidade e, ao mesmo tempo, entreter agradavelmente como músico. (WAGNER, 2010, p. 38).

Jean de Léry colocou a música dos índios no pentagrama 400 anos antes da elaboração mítica. Lévi-Strauss (2009a) deu louvor à expedição de Léry, mas não pontuou o apanhado musical indígena por não ser este, o foco da pesquisa. A discussão da cultura musical ameríndia – no âmbito da partitura – não é traçada em Mitológicas. O pesquisador põe em ação a música ocidental europeia na linguagem metafórica dos termos, da mesma maneira que Léry pôde discriminar no pentagrama a utilização dos códigos da linguagem musical para dizer da música dos índios. Diante da enormidade de mitos – 813 – e da desarticulação desta música na obra, a inquietação decorre da ausência da partitura. O discurso da música origina-se do universo da cultura do pesquisador, da formação na erudição europeia e é demarcado pelos períodos quando pôde referir aos compositores e obras. Se pensarmos que a isenção da música indígena brasileira em Mitológicas foi ausente, dado o enobrecimento da música europeia (quando Lévi-Strauss menciona os franceses Milhaud, Rameau, Debussy, Ravel, Alembert, Berlioz e suas obras), então a condição daquela. Uma vez afastada de nossa cultura, invalidaria o documento de Léry, posto registro de nossa história sobre a escrita musical convencional. A música, inicialmente trazida pelos jesuítas para os indígenas, no período do barroco rococó europeu promoveu à escrita musical decodificação até os dias de hoje. Não se põe oculta a música dos Bororo e demais tribos, porque em Mitológicas o esteio das fontes que precedem à obra, Lévi-Strauss exalta com muita precisão e nelas se revela um Brasil munido de informação musical após a colonização. Em um tempo que até as cinzas e a linguagem musical dos códigos gregos nos alcançaram, preconcebe-se que sem ela a música dos índios não seria assinalada só por meio da escuta. Desta maneira, não há dissonância entre as etnias musicalmente tratadas em Mitológicas. Oportunamente, o que seria da

177

riqueza rítmica presente nos rituais se este resultado sonoro não fosse apreciado, talvez apenas, pelo sensível? Ocultá-los nos pentagramas não representa ausência da música indígena. Ocasionalmente, foram estes percebidos junto às melodias na década de 1935, quando há descrição da percepção num par harmônico entre antropologia e emoção musical: Lá fora, os cantos já iam se modulando numa língua baixa e sonora e gutural, com articulações bem marcadas. Só os homens cantam; e seu uníssono, as melodias simples e repetidas cem vezes, a contraposição entre solos e os conjuntos, o estilo másculo e trágico lembram os coros guerreiros de algum Männerbund germânico. Por que esses cantos? (LÉVI-STRAUSS, 2009a, p. 204205).

Lévi-Strauss (2009a) quando descreve sua chegada à Guanabara-RJ em Tristes Trópicos ressalta Léry, porque ao levar no bolso o breviário do etnólogo pôde reviver a experiência através da obra Viagem feita à terra do Brasil. Conta o autor que Léry esteve no Brasil há aproximadamente 378 anos em companhia de mais dez suíços protestantes. Seu desejo de vir ao Brasil, além da missão, não invalidava o anseio de refugiar protestantes perseguidos que gostariam de sair das metrópoles: Há quase exatos 378 anos, ele aqui chegava com outros dez genebrinos, protestantes enviados por Calvino a pedido de Villegaigonon, seu antigo condiscípulo que acabava de se converter, apenas um ano após seu estabelecimento na baia de Guanabara [...] Ao idílio que se cria entre eles devemos essa obraprima da literatura etnográfica, a Viagem feita à terra do Brasil, de Jean de Léry. (LÉVI-STRAUSS, 2009a, p. 77-79).

Também encontramos Léry em: Do mel às cinzas, no contexto dos instrumentos, relatando os chocalhos de cabaça aos sinos. Em alguns destes chocalhos havia mandíbula articulada: “Certos exemplares eram confeccionados e decorados para representar o rosto, outros tinham até a mandíbula articulada”. (LÉVI-STRAUSS, 2004b, p. 419). Ainda sobre Léry, lemos no Jornal Folha de São Paulo, quando Carvalho escreveu sobre o cineasta Marcelo Fortaleza Flores e a edição do documentário Trópico de Saudade com Lévi-Strauss na Amazônia, para a TV Cultura. Na matéria constava: Lévi-Strauss queria saber o que ocorrera com os índios que o pastor calvinista e escritor Jean de Léry (1534-1611) conhecera no Rio quando os franceses estabeleceram a França Antártica na baía de Guanabara entre 1555 e 1557. As observações feitas por Léry sobre os índios disseminaram-se pela Europa, em boa parte por causa de Montaigne (1533-1592), e foram fundamentais para a criação do mito do bom selvagem, uma ideia que seria disseminada pela Revolução Francesa

178

(1789). Flores concorda em parte que havia algo de pós-moderno na expedição de Lévi-Strauss, já que sua inspiração era uma obra literária. (CARVALHO, 2009).

Importante fato musical é rememorado por Kiefer (1997), quando Léry, (no momento de descoberta do Brasil) incluiu na investigação histórica dos índios uma ação musical e registrou partitura. “Devemos a Jean de Léry, aqui chegado em 1557 em função da ‘França Antártica’, o primeiro documento em notação musical relativo à música dos índios.” (KIEFER, 1997, p. 10). Léry (1972) recompôs a paisagem musical ao traduzir por meio de partitura a expressão cultural vivida entre os indígenas no final da cerimônia da 1ª missa, na chegada dos colonizadores ao Brasil. Após o ato religioso foram demonstrados sons repetitivos de instrumentos de percussão com crânios humanos e danças. Era a música indígena. Esta narração sublinhada exalta este dado antropológico da história da colonização brasileira que permeia a nossa cultura musical e harmoniza a música dos índios à dos jesuítas. Retomemos a descrição de Léry: Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem música [...] Para começar, os jesuítas, assustados com o caráter selvagem do instrumental da música indígena – trombetas com crânio de gente na extremidade, flauta de ossos, chocalhos de cabeças humanas, etc. (LÉRY, 1972, p. 164-165).

O vazio sugerido pela ausência da música não é justificado porque não há vazio quando o conhecimento da erudição musical se revela no uso de muitos termos. Essa falta pode emergir pela ausência do registro musical da cultura indígena em Mitológicas diante da saturação dos mitos, mas baseada na nossa cultura, que é espelhada pela observação analítica no âmbito das formas musicais, pode fazer dialogar as linguagens, mito e música, as quais propomos avaliar neste trabalho. Então, com base na narração dos mitos, e por meio do desafio que matrimoniou a música com a mitologia, há muito mais que o ver das partituras na transversalização entre a estrutura da obra Mitológicas. Buscando enxergar a música nesta pesquisa, nos dirigimos às formas musicais e também conduzimos uma varredura do vocabulário musical nos quatro volumes. Vemos que há sons nos mitos e estes se abrem às infinitas ações musicais. As músicas registradas em partituras se diluem no itinerário dos padres salesianos, como mostra Colbacchini; Albisetti (1942). Estes padres são mencionados em Mitológicas 1, quando Lévi-Strauss (2004a) enfatiza suas contribuições com os demais aspectos à sua empiria: Tal objeção assume um relevo particular diante das circunstâncias que atrasaram a publicação deste livro. Ele estava quase pronto quando se anunciou a publicação da Enciclopédia Bororo e esperamos que a obra chegasse à França para explorá-la antes de

179

dar ao texto sua forma final. [...] Nós temos mais respeito pelos informantes, tanto os nossos quanto os antigamente utilizados pelos missionários, cujo testemunho tem, por isso, um valor particular. Os méritos dos salesianos são tão notórios [...]. (LÉVISTRAUSS, 2004a, p. 25).

Outra importante fonte etnográfica destaca a pesquisadora da música dos Bororo: “A Brasilian musicologist, Helza Cameau, has made transcriptions of the songs of an Indian woman who belonged to the kadiueu tribe.”2(TARASTI, 1979, p. 42). Seria mais específico à discussão musical se na tetralogia Mitológicas constasse a compilação de partituras bororo, kadiweu, xerente e demais tribos, na mesma proporção em que os mitos foram abordados, mas este conteúdo não foi apresentado na obra. A música foi utilizada numa linguagem metafórica dos termos. Na expedição faltou o olhar do músico. As formas musicais indicadas contribuem no caráter mais abrangente das representações e fomentam uma concepção análoga à riqueza de organização nos dois primeiros volumes, quando são recolhidos mitos, sobretudo do triste trópico de capricórnio, mitos da América do Sul. Ainda que a nomeação Sonata fosse dada livremente, a densa construção dos mitos M14 ao M64 estabeleceria à composição mítica a grande habilidade do autor na correspondência préconcebida, Sonata. Mas nada é aleatório em Mitológicas. Este momento que concede a combinação dos compositores em pares, categorizando-os como músicos do código a Bach e Stravinsky, da mensagem a Beethoven e Ravel, do mito a Wagner e Debussy consagramos o ponto de investigação musical na proposição de uma nova tese para que os segundos compositores, dentre os pares sejam estudados: Stravinsky, Ravel e Debussy. Lévi-Strauss (2004a) elegeu os pares e identificou pressupostos nas expressões dos compositores como apreciador de música e do cultivo às obras de arte em geral. A formação cultural europeia potencializou esta apreciação, como ele próprio disse: “a arte foi o leite de minha alimentação”. (PASSETI, 2008, p. 24). Os cem anos de vida (embora tenha definido os pares bem antes) revelam conteúdo de experiência musical solidificada em torno das repetições. Quantas vezes pôde ouvir a mesma obra musical por diferentes intérpretes? Como princípio de vida fundamentada na pesquisa, Lévi-Strauss ressaltou os pares dos compositores na abrangência do conhecimento desta arte. Ele acrescenta que propositalmente classificou um compositor antigo e um mais recente: “Foi igualmente com a intenção de simplificar que nos limitamos a citar

2“Um

músico brasileiro: Helza Cameau fez transcrições das canções de uma mulher indígena que pertencia à tribo de kadiueu.” (Tradução nossa).

180

três pares, cada um deles com um antigo e um moderno.” (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 50). Conceder a Beethoven o lugar da mensagem impõe a si mesma apropriação do universo musical, mesmo sem compor música e sem a habilidade de tocar um instrumento. O pensamento nesta amplitude cabe restritamente à capacidade de compor os passos da transformação musical no ato da apreciação. Para entender Beethoven como compositor da mensagem, redefinimos pelo confronto da inovação que deu à Forma sonata um novo caráter. Fuga dos cinco sentidos dá nome à terceira parte de Mitológicas 1 – O cru e o cozido. Neste capítulo, mais uma informação musical é nomeada, o procedimento composicional fuga abrange narrativas do M70 ao M86a E para ilustrar os mitos, exemplifica a Fuga: É, por exemplo, extraordinário que a fuga, como foi formalizada no tempo de Bach, seja a representação ao vivo do desenvolvimento de determinados mitos que têm duas espécies de personagens ou dois grupos de personagens. Digamos: um bom e outro mau, embora isto constitua uma super-simplificação. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 72).

No procedimento, Fuga, Lévi-Strauss ilustra os mitos e destaca o fato de iniciar a tonalidade após o modalismo, assim colocou Bach, como autor do código. Apresenta a característica da Fuga, como originalmente dois personagens ou dois grupos de personagens, da forma que a história mítica narra um fugindo do outro e nesta análise comparativa, explica a analogia mítica-musical de uma melodia correndo da outra, como o sujeito e a resposta. Leiamos: “A história inventariada pelo mito é a de um grupo que tenta escapar ou fugir do outro grupo de personagens. Trata-se então de uma perseguição de um grupo pelo grupo chegando às vezes o grupo A alcançar o B, distanciando-se depois novamente o grupo B, tudo como na fuga. Tem-se o que se chama em francês de, ” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p 72-73). Como aconteceu no M3 Bororo: após o Dilúvio, um grupo afogou-se, enquanto outro foi levado por turbilhões (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p.74). Wisnik escreve: [...] posso adiantar que esse momento é, para Lévi-Strauss o do nascimento do tonalismo e da invenção da fuga. [...] Lévi-Strauss privilegia sem dúvida a fuga, entre todos os mitos que a música realiza... É nela que ele mais se detém, mesmo que aponte inequivocadamente para o caráter mítico das demais formas tonais (WISNIK, 1989, p. 162167).

Afinal, o que foge na obra A fuga? O que foge no Mito? Em A fuga é a melodia que caminha entre as vozes, o elemento básico na construção musical. Burnett (2008) faz várias alusões em relação à canção popular refletindo o pensamento de Nietzsche sobre a fonte da poesia buscada na Grécia. A música é uma linguagem com uma capacidade de elucidação infinita,

181

proferiu o filósofo ao destacar o nascimento da canção popular, dado pela melodia e declara também ser a geradora da poesia e a mais originária e universal na estrutura musical. Sobre isto, descreve: Para Nietzsche, a canção popular nasce da melodia, que por sua vez, é o elemento “primeiro e universal” capaz de gerar a partir de si o formato estrófico dos poemas. Essa melodia, diz Nietzsche, “é também de longe o que há de mais importante e necessário na apreciação ingênua do povo” Podemos perguntar se a melodia é o motivo central da canção popular porque a inspiração melódica independe da técnica – que as construções harmônicas não podem geralmente prescindir – ou se, por ter esse fundamento popular, conteria um suposto elemento primordial. (BURNETT, 2008, p. 111).

Sendo A fuga mobilizada continuamente pelo discurso melódico, na travessia entre as vozes, Lévi-Strauss sublinha também a travessia especular entre música e mito como imagens invertidas: “Pois bem, parece claro que o momento em que música e mitologia começaram a aparecer como imagens invertidas, uma da outra, coincide com a invenção da fuga. Ou seja, uma forma de composição [...].”(LÉVI-STRAUSS, 2011a, p. 629). O papel das imagens invertidas se sustenta na noção da leitura, tanto nos pentagramas musicais como nos acontecimentos dos mitos. Pelo viés da música o tema se multiplica entre as vozes. No mito acima o percurso triplo ao ninho das almas, em cada uma das vezes se dá com animais distintos. A composição musical focaliza a ação de fuga entre as vozes. A narrativa focaliza o significado de fuga quando o herói se afasta no mito. Nesta análise recolhemos quatro mitos com a ideia de um coro básico de quatro naipes: M70, M72, M77 e M79 ressaltando o universo das alturas pelas narrações no plano das alturas, sendo esta a característica comum presente entre estes quatro mitos. No olhar musical, as noções de altura pelas espacialidades presentes das narrativas inspiram a composição, a utilização dos registros grave, médio e agudo. Como exemplo, citamos a narração do M70: o plano de altura é instaurado quando o Kaboi, que vivia nas entranhas da terra, vê seus companheiros subirem à superfície da terra por meio de um orifício. Ele não o consegue por ser obeso. No final da história todos voltam e contam que viram a árvore cair e apodrecer e, na observação do significado de finitude dada pela natureza, Kaboi que permaneceu no plano subterrâneo, manifesta que no seu território não existe morte. Neste primeiro mito do capítulo, a noção de plano interior, identificado no estado onde permaneceu Kaboi e o plano de conquista dos companheiros acima da superfície se põe no sinônimo de verticalidade que corresponde ao plano das alturas dos sons. Enquanto os companheiros de Kaboi ultrapassam o orifício, ele não o consegue por ser obeso. Este fator remete à origem do redondo quando a passagem se dá pelo círculo. Mais uma concepção de esfera nos mitos exemplifica que a terra da mitologia é redonda.

182

Por que Kaboi não conseguiu passar? Este personagem também representa uma ação de domínio do território em que a morte não tem acesso. Só há vida. É o tema do mito. A ação da natureza em um mundo em que a morte não existe se nomeia a negação da própria morte no mito. Enquanto os companheiros vão acessar um plano mais alto, embora se decepcionem ao declarar que viram a morte pela nulidade da natureza em permanecer viva – no caso a árvore caída e apodrecida – deu sustentação a Kaboi se manter no plano de isenção, da fuga. Ao ouvir detalhes da vida da superfície, Kaboi faz crer a todos que o local em que habita é destinado à vida em abundância. O plano das alturas é utilizado como material temático e também na alusão filosófica, porque este mito remete à caverna de Platão. A riqueza deste material temático tem abrangência quando transversaliza a outros conhecimentos de interpretação. Como na fuga, a melodia passeia entre as diferentes vozes. Não apenas a forma Fuga, mas a ária, o recitativo, variação, suíte, sonata e demais formas colocadas por Lévi-Strauss (2004a) na divisão dos capítulos, ou das seções de Mitológicas 1 são propostas de compreensão dos mitos estudados e que dispõem de análise. Propositalmente, declara: “[...] há mitos, ou grupos de mitos, que são construídos como uma sonata, uma sinfonia, um rondó, ou uma tocata, ou qualquer outra forma que a música na realidade não inventou, mas que foi inconscientemente buscar a estrutura do mito” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 73). Este, ao se referir à partitura, escreve: Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante [...] E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair seu significado. (LÉVISTRAUSS, 1978, p. 68).

No paralelo apresentado entre música, mito e linguagem, a referência é dada à música ocidental desenvolvida nos últimos séculos (LÉVI-STRAUSS, 1978). Mais uma vez, faz referência ao período da música até Stravinsky. As indicações de formas musicais desafiam o procedimento da análise entre as dimensões música e mito por assim serem solucionadas às razões das narrativas míticas, seriamente aludido à música.

REFERÊNCIAS: BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Tradução de Maria Teresa Resende Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. (Cadernos de Música da Universidade de Cambridge).

183

BUCH, Esteban. Música e política: a nona de Beethoven. Tradução de Maria Elena O. Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2001. (Filosofia e Política). BURNETT, Henry. Notas sobre Nietzsche e a música popular do Brasil. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música: VII Simpósio Internacional de Filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2008. p. 109-124. CARVALHO, Edgard de Assis. Enigmas da cultura. São Paulo: Cortez, 2003. (Questões da nossa época, v. 99). CARVALHO, A paixão pelo entendimento: Claude Lévi-Strauss e a universalidade da cultura. Cronos: revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, Natal, v. 9, n. 2, p. 301-314, jul./dez. 2008. COLBACCHINI, Antonio; ALBISETTI, Cesar. Os Boróros orientais: orarimodogue do Planalto Oriental do Mato Grosso. São Paulo: Nacional, 1942. v. 4. (Série 5ª). KIEFER, Bruno. História da música brasileira: dos primórdios ao início do Século XX. 4. ed. Porto Alegre: Movimento, 1997. (Coleção Luís Cosme, v. 9). LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1972. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Tradução de Antonio Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1978. ______. A noção de estrutura em etnologia; Raça e historia; Totemismo hoje. Tradução de Eduardo P. Graeff, Inácia Canelas, Malcom Bruce Corrie. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores). ______. Olhar escutar ler. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004a. (Mitológicas, 1). ______. Do mel às cinzas. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2004b. (Mitológicas, 2). ______. A origem dos modos à mesa. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2006. (Mitológicas, 3). ______. O homem nu. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2011a. (Mitológicas, 4). ______. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 8. ed. Campinas, SP: Papirus, 2008a. ______. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009a. ______. ERIBON, Didier. De perto e de longe. Tradução de Léa Mello, Julieta Leite. São Paulo: Cosac Naify, 2005. MONIZ, Luis Claudio. Mito e música em Wagner e Nietzsche. São Paulo: Madras, 2007.

184

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O caso Wagner. Tradução de Antonio Carlos Braga, Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007. (Grandes obras do pensamento universal, 86). PASSETTI, Dorothea Voegeli. Lévi-Strauss, antropologia e arte: minúsculo incomensurável. São Paulo: EDUSP: EDUC, 2008. PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2008. TARASTI, Eero. Myth and music. New York: Mouton, 1979. (Approaches to Semiotics, 51). WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução do alemão e notas de Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Estéticas). WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

185

UM CONCERTO NO GRANDE HOTEL ABISMO: O DIÁLOGO ARTÍSTICO DE THOMAS MANN E ADORNO EM DOUTOR

FAUSTO Kaio Felipe [email protected] Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ) Resumo: Este artigo trata da colaboração entre o escritor Thomas Mann e o filósofo Theodor Adorno para o romance Doutor Fausto (1947). Ambos desenvolveram uma fecunda relação intelectual que permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística no Século XX. Começo pela síntese de algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno, como a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise e as questões filosóficas suscitadas pela música dodecafônica de Arnold Schönberg. Os dois capítulos seguintes são mais especificamente sobre Doutor Fausto: no primeiro deles tratarei também da correspondência entre Mann e Adorno, por meio da qual desenvolveram uma colaboração decisiva para o romance; no segundo, demonstrarei a influência das idéias deste filósofo na criação dos personagens Adrian Leverkühn, Kretzschmar e mesmo do Diabo com o qual o protagonista Leverkühn pactua, e também comento sobre o personagem-narrador Serenus Zeitblom e sua relação com um ensaio de Adorno sobre a narrativa contemporânea. Palavras-chave: Thomas Mann; Adorno; estética; música.

OUVERTÜRE O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) fez em 1901 suas primeiras anotações para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista o e diabo. Foi, no entanto, apenas em Março de 1943, que Mann finalmente decidiu escrever seu romance baseado no mito fáustico. Esta decisão evidenciava “uma aura de sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático” (MANN, 2001: 21), afinal um tema recorrente em sua obra é a crise moral do artista, dilacerado entre seus impulsos estéticos e suas obrigações sociais, entre a irresponsabilidade que há na dedicação exclusiva ao “espírito” e os difíceis fardos da “vida”. Publicado em 1947, Doutor Fausto deu uma dimensão metafísica e histórica para essa temática, ao transformar o drama pessoal do pianista Adrian Leverkühn, o protagonista do romance, em uma alegoria do próprio destino do povo alemão sob o regime nacionalsocialista e a II Guerra; em outras palavras, Doutor Fausto une a tragédia da Alemanha ao esgotamento da arte contemporânea. O gênio de Leverkühn, que não quis sucumbir à mediocridade, apela para o demônio, enlouquece e a redenção de sua arte torna-se sua própria condenação: “O talento que se fundiu com o mal pelo pacto paga, na esfera artística, com a aniquilação do compositor e, embora de forma distinta, na esfera política, com a aniquilação da Alemanha.” (BACKES, 2003: 253) Para elaborar os momentos mais técnicos do romance (por exemplo, as composições de Leverkühn e suas reflexões sobre música), Thomas Mann contou com a contribuição de um dos pensadores mais contundentes do Século XX: Theodor Adorno (1903-1969). Este filósofo, mais conhecido por ser o líder da primeira geração da Escola de Frankfurt, escreveu

186

obras importantes sobre estética e arte contemporânea, sendo que uma delas em particular – a Filosofia da Nova Música – incentivou Mann a procurá-lo em busca de auxílio para a gestação de Doutor Fausto. A colaboração de ambos prolongou-se durante quatro anos, e Adorno foi influência crucial para as digressões artísticas de pelo menos três personagens importantes da obra: Adrian Leverkühn, seu professor Kretzschmar e o Diabo que aparece ao protagonista em uma das passagens mais perturbadoras da obra. Ao longo deste artigo trato desta colaboração artística entre Mann e Adorno, pois a relação que ambos desenvolveram por meio de suas correspondências e em Doutor Fausto permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística e da teoria estética no Século XX. No próximo capítulo (Leitmotiv) descrevo de forma sucinta algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno: o ensaio como forma adequada à crítica de arte; a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise; a questão do Novo e a importância da vanguarda artística; as questões filosóficas suscitadas pela música moderna (em particular a dodecafônica de Arnold Schönberg); e, por fim, a posição do narrador no romance contemporâneo. Em Contraponto há um breve resumo da trama de Doutor Fausto e tratarei do diálogo propriamente dito entre Mann e Adorno, por meio de suas correspondências entre 1943 e 48 – período em que o romance fáustico e A Gênese do Doutor Fausto (obra autobiográfica em que Thomas Mann relata as circunstâncias em que seu romance foi gestado) foram escritos. Em Concerto, apresento a influência adorniana sobre os personagens Leverkühn, Kretzschmar e o Diabo; além disso, discutirei brevemente sobre o narrador de Doutor Fausto, na medida em que Adorno o cita explicitamente em um ensaio de 1954 (Posição do Narrador no Romance Contemporâneo) para exemplificar soluções que os romancistas do Século XX estão utilizando para lidar com os paradoxos da narração em uma literatura que já não tem mais a objetividade épica de outrora. Por fim, apresento minhas considerações finais sobre o tema (Finale), que incluem um balanço crítico sobre Adorno e Mann. Cabe uma última observação antes de prosseguir. O “Grande Hotel Abismo” citado no título deste artigo é um termo sardônico criado pelo filósofo Georg Lukács (1885-1971), desafeto de Adorno e da Escola de Frankfurt, presente no prefácio que escreveu em 1962 à sua Teoria do Romance: “Uma parte considerável da inteligência alemã, inclusive Adorno, alojou-se no ‘Grande Hotel Abismo’ (...), um belo hotel, provido de todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo, entre refeições ou espetáculos comodamente fruídos, [o que] só faz elevar o prazer desse requintado conforto.” 1 Se esta crítica de Lukács ao tão alardeado pessimismo dos frankfurtianos é válida ou não, é algo que veremos no decorrer deste artigo.

LEITMOTIV: AS REFLEXÕES ESTÉTICAS DE THEODOR ADORNO Theodor Ludwig Adorno Wiesengrund nasceu em Frankfurt no ano de 1903. Filho de um empresário judeu e uma cantora corso-genovesa, ele cresceu numa atmosfera dominada por interesses artísticos, teóricos e políticos. Adorno estudou filosofia e música e lecionou em 1

Vide LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 18.

187

sua cidade natal até 1933, quando foi expulso pelos nazistas. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 37) Passou algum tempo em Oxford e se mudou junto com os demais membros do Instituto de Pesquisa Social (a “Escola de Frankfurt”) rumo à cidade de Nova York. Em 1941 instalou-se em Los Angeles, e era vizinho de Thomas Mann e do músico Arnold Schönberg (1874-1951) – como veremos adiante, duas figuras com quem cultivou fortes relações artísticas e intelectuais. Oito anos depois de seu exílio nos Estados Unidos, Adorno voltou para Frankfurt, onde lecionou na universidade local, da qual chegou a ser reitor. Faleceu devido a um ataque cardíaco, em 69. De certa maneira, a filosofia de Adorno é monolítica, demonstrando uma notável constância, o que corrobora a sua crença de que – pelo menos até agora – a História foi apenas a repetição mítica, o eterno retorno. (Cf. VANDENBERGHE, 2009: 181) Em seu instigante texto O Ensaio como Forma, Adorno discute o processo de escrita da crítica de arte. Para este autor, o ensaio pode ser definido como uma forma expositiva que não tem uma preocupação sistemática, na medida em que nele o autor apresenta livremente suas ideias. O estilo ensaístico possui um impulso anti-sistemático, aproximando-se assim da concepção romântica do fragmento, “uma vez que a própria realidade é fragmentada”; sendo assim, o ensaio “encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas”. O ensaísta busca se aprofundar em seu objeto, e não o reduz a outra coisa, mas sim “unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua escolha”. Além disso, no ensaio a dimensão da experiência do concreto, ao invés da mera abstração, reside no fato de que “o pensador faz de si mesmo o palco da experiência individual.” O ensaio é a forma crítica por excelência; embora não parta de um ponto de vista pré-determinado, isso ocorre porque ele parte daquilo sobre o que deseja falar, portanto de algo já formado; ou seja, o ensaísta “se recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que lhes é subjacente.” (ADORNO, 2003: 19-35) Já em Teoria Estética, sua última obra, Adorno afirma que o lugar da arte se tornou incerto na contemporaneidade. A autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da sua função cultual, vivia da idéia de humanidade; contudo, esta foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana. Eis um paradoxo: quanto mais livres as obras de arte se tornaram dos fins exteriores, tanto mais perfeitamente se definiram enquanto organizadas, por sua vez, na dominação. (Cf. Idem, 1988: 11) Se por um lado a autonomia da arte – isto é, quando ela se guia apenas por seus próprios critérios, por mais “anticomerciais” que estes possam ser – suscitou a cólera dos consumidores de cultura, por outro a arte contemporânea está marcada pelo caráter fetichista das mercadorias, isto é, predomina a tendência segundo a qual o consumidor pode projetar à vontade as suas emoções na obra de arte. Até antes desta fase da “administração total”, o sujeito que contemplava, ouvia ou lia uma obra devia esquecer-se de si, tornar-se indiferente, desaparecer nela. Ou seja, a identificação deveria ser segundo o ideal de assemelhar-se à obra, e não tornar a obra semelhante a si mesmo. Porém, ao tornar-se tabula rasa de projeções subjetivas, a obra de arte desqualifica-se. (Cf. Ibidem: 29) A obra de arte, segundo Adorno, é também Artefact, isto é, produto do trabalho social. Com isso, a obra comunica-se e tira o seu conteúdo da realidade empírica que recusa; eis uma posição intermediária entre o sociologismo vulgar (presente, por exemplo, em boa parte da crítica literária marxista) e o uma teoria idealista que separa radicalmente a atividade artística

188

das demais atividades humanas (Cf. JIMENEZ, 1977: 72-73) – por exemplo, o credo do “L’art pour l’art”, que acaba por desligar a arte do Uno e o Todo do qual ela necessariamente deve partir. Em outras palavras, se por um lado, a obra de arte, enquanto mônada, é fechada e possui sua lei formal, essa autonomia não a torna algo simplesmente externo à sociedade, uma vez que reflete em seu interior todo o exterior: “A posição adorniana ressalta essa ambigüidade da obra de arte, de ser ao mesmo tempo autônoma e heterônoma, o que impede as leituras simplificadoras dos dois extremos.” (ALVES, 2009: 8) Para Adorno, a definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, “mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se.” (Ibidem: 13-17) A arte movimenta-se, e põe tudo em risco para manter este movimento. Eis onde reside a “aposta” de Adorno nas vanguardas, no Novo: nada é tão prejudicial ao conhecimento teórico da arte moderna como a sua redução a semelhanças com a arte anterior: “Através do esquema do ‘Tudo já foi feito’, esvanece-se a sua especificidade.” O desencantamento do mundo, marca da modernidade, exige uma arte que expresse a situação soturna da qual emerge, que desvele a irracionalidade desta realidade: “A arte representa a verdade numa dupla acepção: conserva a imagem do seu objetivo obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existente (...) da sua absurdidade.” (ADORNO, 1988: 31; 68) Adorno, contudo, logo depois afirma que a arte, por preservar um elemento mágico, também precisa negar o caráter reificado do mundo moderno: “O factum da arte, imitação do encantamento, é um escândalo que [esse mundo] não suporta.” (Ibidem: 74) Portanto, graças ao Novo, a crítica torna-se momento objetivo da própria arte. Segundo Adorno, uma frase de Arnold Schönberg poderia ser um slogan do Novo: “Quem não busca não encontra”. (Ibidem: 34) Aliás, este compositor, cuja obra envolve uma fase atonal e se consolidou em uma dodecafônica, será alvo da maior parte das discussões da obra Filosofia da Nova Música. Em poucas palavras, pode-se dizer que seu caráter revolucionário de Schönberg reside no fato de que seu sistema tonal pretendeu substituir o de Bach-Rameau2, que foi o padrão da música ocidental durante mais de dois séculos. Em vez das 24 tonalidades do sistema tradicional, “Schönberg só admite uma única tonalidade: os 12 sons, entre os quais nenhum é destacado e todos desempenham a mesma função. Não há mais tom maior nem menor. Não há consonâncias nem dissonâncias.” (CARPEAUX, 1999: 379) Estas inovações musicais levaram Adorno a considerá-lo o maior compositor vivo. Sendo assim, considera necessário fazer um esclarecimento construtivo de sua música, que se permanecesse incompreendida, ameaçaria recair no obscuro e no mitológico. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 38) Este risco é expresso de forma explícita já na introdução da obra: A música dodecafônica diz ‘nós’, mesmo quando viva unicamente na fantasia do compositor, sem alcançar nenhum outro ser vivente; mas a coletividade ideal, que esta música ainda leva em si como coletividade separada da empírica, entra em contradição com o inevitável isolamento social e o caráter expressivo particular que Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764), compositores do período barroco, são considerados um momento de transição na música moderna por terem restabelecido a ordem tonal. 2

189

o próprio isolamento lhe impõe. (...) A incoerência de uma obra solipsística para grande orquestra não somente reside na desproporção entre a massa numérica do cenário e das poltronas vazias ante as quais se executa a música, mas também atesta que a forma como tal transcende necessariamente o eu em cujo âmbito se experimenta, enquanto a música que nasce nesse âmbito e o representa não consegue superá-lo positivamente. Esta antinomia consome as forças da nova música. Sua rigidez deriva da angústia da obra diante de sua desesperada falta de verdade. (ADORNO, 2009: 24-25)

Schönberg, segundo Adorno, é subversivo por mudar a função da expressão musical: “as primeiras obras atonais são documentos no [mesmo] sentido dos documentos oníricos dos psicanalistas.” As obras deste compositor são simultaneamente documento e construção: “Nelas nada permanece das convenções que garantiam a liberdade do jogo.” A técnica dodecafônica, portanto, culmina na “vontade de superar a oposição dominante da música ocidental, a oposição que há entre a natureza polifônica da fuga e a natureza homofônica da sonata.” Além disso, esta técnica escraviza a música ao liberá-la; o sujeito impera sobre a música mediante o sistema racional, mas sucumbe a ele, pois nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que impomos a nós mesmos: “O sujeito subordina-se-lhe e busca proteção e segurança, porque se desespera de poder dar por si só verdadeira realidade à música.” (Ibidem: 40-41; 50; 60) Ao se colocar como intérprete filosófico de Schönberg, Adorno pretende explicar seu isolamento: como artista, ele não foi anti-social; o mundo lhe foi hostil porque não suporta ouvir, na sua música, as desarmonias gritantes de nossa época. “Schönberg teria assumido a tarefa ingrata de dizer a verdade, que sempre é dura, para expiar a mentira da arte acadêmica e os crimes que esta esconde sob o manto da pseudobeleza; a música de Schönberg tollit pecata mundi [tira os pecados do mundo].” (CARPEAUX, 1999: 381) Sendo assim, Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena, expressas na técnica atonal e posteriormente dodecafônica de composição, haviam produzido as condições de possibilidade para se pensar um conceito renovado de sujeito e de razão. (Cf. SAFATLE, 2009: 174) Destarte, em Filosofia da Nova Música Adorno se empenha em compreender as potencialidades estéticas abertas por esta vanguarda musical: A música de Schönberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera as pulsões [Triebhafte] ameaçadoras, que outras músicas só deixam transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...). Embora sua música canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schönberg, algo “estranho ao eu”. (ADORNO apud SAFATLE, 2009: 177)

190

Já em seu ensaio Posição do Narrador no Romance Contemporâneo, Adorno afirma que o romance foi a forma literária específica da era burguesa, contudo no Século XX enfrenta uma crise: não consegue mais dominar artisticamente a existência, o que é uma decorrência do subjetivismo, “que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade.” (cf. ADORNO, 2003: 55) Não basta mais ao romance a linguagem do relato, e a narrativa se tornou impossível com a desintegração da identidade da experiência, “a vida articulada em si mesma e contínua, que só a postura do narrador permite.” (Ibidem: 56) Para Adorno, o impacto da II Guerra Mundial e das intensas transformações sociais e econômicas desde o fim do Século XIX feriram o tecido comunitário do qual o narrador partia; isto é, a objetividade épica não é mais possível. Diante desse cenário, os melhores romancistas são justamente os que apresentam as soluções mais inteligentes para essa “crise da narrativa”. Além de autores como Proust, Kafka e Joyce, o autor cita “o último Thomas Mann”, isto é, a fase final da obra deste escritor, cuja principal expressão é Doutor Fausto: Só hoje a ironia enigmática de Thomas Mann, que não pode ser reduzida a um sarcasmo derivado do conteúdo, torna-se inteiramente compreensível, a partir de sua função como recurso de construção da forma: o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma da suas palavras pode, no entanto, escapar. (Ibidem: 60)

CONTRAPONTO:

SUMÁRIO DE DOUTOR CORRESPONDÊNCIA DE THOMAS MANN E ADORNO

FAUSTO

E

A

Já nos primórdios de sua carreira literária Thomas Mann demonstrava sua paixão pelo tema da música, entrelaçado com a tensão entre o artista e a sociedade sobre a qual já comentei na Introdução. O personagem Hanno de Os Buddenbrooks, que é filho de uma violinista holandesa, demonstra grande talento no piano, tocando com extrema melancolia: Era o motivo, o primeiro motivo que ressoava! (...) No culto fanático desse nada, desse fragmento de melodia, curta e infantil invenção harmônica de um compasso e meio, havia algo de brutal e embotado e, ao mesmo tempo, de ascético e religioso, alguma coisa de crença e abandono de si próprio... Manifestou-se certa viciosidade, no exagero e na insaciabilidade com que o menino gozava e explorava essa sua invenção; um desespero cínico, desejo de volúpia tanto quanto do ocaso, mostrou-se na cobiça com que sugava dela a derradeira doçura, até o esgotamento, até o nojo e o tédio. (MANN, 1975: 656)

Mais de quarenta anos depois, seu romance fáustico combinará questões artístico-musicais com uma reflexão sobre o contexto histórico alemão, país que à época ainda estava sob o regime nacional-socialista, o qual forçou o próprio

191

Thomas Mann, crítico contundente dos ultra-nacionalistas desde meados da década de 20, a se exilar em 1933. O narrador de Doutor Fausto é o humanista Serenus Zeitblom, que conta a sombria história de seu melhor amigo, Adrian Leverkühn, dotado de grande genialidade artística, mas melancólico e atormentado, a ponto de pactuar com o diabo para adquirir maior inspiração artística. O pacto foi selado quando em 1906 (quando Adrian tinha apenas 21 anos), por meio do intercurso sexual com uma prostituta, a qual portava o vírus da sífilis. Esta doença degenerativa fez com que Leverkühn oscilasse, nos vinte e quatro anos seguintes, entre momentos de profunda debilitação física com outros de intensa criatividade. É possível dizer que o Fausto de Mann é um músico porque, “se foi especialmente em termos musicais que a Alemanha enriqueceu enormemente a cultura ocidental, também já estava presente nesse dom as sementes da catástrofe germânica.” (MISKOLCI, 1998: 197) O meio artístico do protagonista Adrian Leverkühn é a música serial, dodecafônica, a qual apresenta uma racionalidade quase escolástica, mas cuja “constelação” – e seu amigo Serenus Zeitblom logo o percebe – pertence ao “irracional” campo da astrologia: “o racionalismo que Leverkühn invocava tinha, para a contida humanidade de Serenus, boa parcela de superstição, de crença num demonismo vago; um sistema que, antes de racional, parecia mais apropriado a ‘dissolver a razão humana em magia’.” (BACKES, 2003: 254) A primeira das duas obras-primas de Adrian Leverkühn é Apocalipsis cum figuris, terminada em 1919. Com essa obra marcada pelo negativo teológico e pelo caráter impiedoso, o compositor procurou revelar o segredo mais profundo do homem: “a sua ambigüidade, nossa identidade tanto de bestialidade quanto da mais pura nobreza de sentimentos.” (RIEMEN, 2011: 78) Sua última composição é a cantata sinfônica Lamentação do Doutor Fausto, um sombrio réquiem – afinal, pouco após concluir esta obra, Leverkühn sucumbiu à sífilis e ficou em estado vegetativo pelos dez anos seguintes, até falecer em 1940 – que foi descrita da seguinte forma por seu amigo Zeitblom: O final é puramente orquestral: um adágio sinfônico, ao qual passa aos poucos o lamentoso coro, que começou poderosamente após o galope infernal. É, por assim dizer, o caminho inverso ao Hino à Alegria, a negação congenial daquela transição da sinfonia ao júbilo vocal, é sua revogação... (...) Quão definitivamente não ressoa isso de cada compasso, cada nota desse Hino à Tristeza! Não há dúvida de que a cantata foi concebida com olhos fixos na Nona de Beethoven, como seu contrapeso no sentido mais melancólico do termo. (MANN, 1996: 659-660)

Doutor Fausto evidencia o caráter problemático e em última instância fracassado de uma arte criada com base em um isolamento da realidade, isto é, em uma tentativa de realizar-se humanamente na pura interioridade. Antes de

192

perder completamente a razão, o próprio Adrian Leverkühn faz uma dura autocrítica de sua opção pelo isolamento: ... ao invés de cuidarem sabiamente de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem suscetível de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual queira adaptar-se, os indivíduos freqüentemente preferem (...) se entregar à embriaguez infernal. (Ibidem: 673)

Resumida a trama, cabe agora entrar no tema central deste artigo. Um fato decisivo para a criação deste romance é que o filósofo Theodor Adorno, que era vizinho de Mann em Hollywood, a partir de 1943 tornou-se o conselheiro do escritor em matéria de música, depois que este leu e se interessou pelo escrito de Adorno sobre Schönberg presente em Filosofia da Nova Música. Eis uma passagem do diário de Thomas Mann que revela a importância da leitura dos manuscritos de Adorno para a gestação do Doutor Fausto: À noite, outra vez o texto de Adorno sobre música, que me elucida alguns pontos e ao mesmo tempo evidencia toda a dificuldade do meu intento. (...) Eu tinha nas mãos, de fato, algo ‘importante’. Era uma crítica profunda da situação artística e sociológica, de extremo refinamento e atualidade, que apresentava uma singularíssima afinidade com a idéia de minha obra, com a ‘composição’ que eu estava vivendo, tecendo. (Idem, 2001: 39)

Segundo Mann, o interesse de Adorno pelo seu livro “crescia à medida que ele se inteirava de seu conteúdo e que começou a mobilizar para o romance sua faculdade imaginativa musical.” (Ibidem: 95) O autor de Teoria Estética também disse, numa carta de 03 de Junho de 1945, que quando encontrou Thomas Mann na “remota costa oeste” teve a sensação de estar, pela primeira e única vez, pessoalmente de frente com a tradição alemã na qual foi educado, e mais do que isso, também à capacidade de resistir a essa tradição. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 19) Em uma correspondência de 30 de Dezembro do mesmo ano, Mann pediu auxílio na questão da “montagem”, técnica narrativa que buscou utilizar em seu romance: Aquilo sobre o que anseio receber uma resposta comentada é principalmente o princípio da montagem, que se estende de maneira peculiar, e talvez bastante chocante, por todo esse livro - e, com toda a franqueza, sem fazer nenhum segredo. Ainda há pouco voltou a me chamar a atenção, de forma meio divertida, meio inquietante, como tive de caracterizar uma crise de doença do herói, recolhendo no livro, de modo literal e exato, os sintomas de Nietzsche, como eles aparecem em suas cartas, junto com cardápios prescritos etc., por assim dizer colando-os uns sobre outros, eles que são conhecidos de todos. Desse modo, utilizei, de acordo com a montagem, o motivo da venerada e da amada, permanecendo invisível, nunca encontrada, evitada na carne, a senhora Von Meck de Tchaikóvsky. Historicamente dado

193

e conhecido como é, eu o colei e fiz as bordas se desvanecerem, afundando-o na composição como um tema mítico e sem lei, sabido de todos (a relação é para Leverkühn um meio de tratar a proibição do amor, o mandamento da frieza feito pelo Diabo). (Ibidem: 21)

Além disso, Mann encontrou-se regularmente com Adorno durante os quatro anos em que escreveu o romance; leu-lhe passagens da obra e pediu ajuda para as descrições da música que Leverkühn compunha. Embora o destino do personagem tenha mais a ver, como ficou explícito acima, com Friedrich Nietzsche do que com Arnold Schönberg, a crise artística enfrentada por Adrian (e a sua resolução diante da mesma) se assemelha bastante à análise que Adorno fez da situação com que Schönberg se deparou com suas inovações, na medida em que este “elucida a fatalidade que lança às trevas míticas a iluminação construtiva e objetivamente necessária da música, por motivos também objetivos, e, por assim dizer, por cima da cabeça do artista.” (MANN, 2001: 41)

CONCERTO: OS PERSONAGENS ADORNIANOS EM DOUTOR FAUSTO Há três personagens que parecem ter sido inspirados por essas reflexões estéticas de Adorno. O primeiro deles é justamente Adrian Leverkühn, que constrói uma técnica de composição bastante inspirada no estilo dodecafônico analisado por Adorno em Schönberg: “Tal estilo, tal técnica (...) não admitiria nenhuma nota, nem uma única, que não cumprisse na construção geral sua função de motivo. Não haveria mais nenhuma nota livre.” (MANN, 1996: 655) O coração da experiência musical de Schönberg, da forma como foi capturado por Adorno - e nesse ponto fica evidente a inspiração que forneceu para a criação do protagonista de Doutor Fausto - “é uma dialética da solidão. Ele leva ao paroxismo a concepção da música como expressividade, como canto da alma, insufocável – e tragicamente incompreendido.” (MERQUIOR, 1969: 64) Um aspecto de Leverkühn que lembra o próprio Adorno é sua personalidade introspectiva e até misantrópica; o filósofo de Frankfurt era constantemente criticado pela sua “atitude high-brow, cheia de mal disfarçado desprezo pela cultura popular de qualquer espécie.” (Idem, 1987: 160) O segundo dos personagens “adornianos” é Wendell Kretzschmar, professor de música que conduz a vocação artística de Adrian. No início do romance ele faz uma palestra sobre vários temas que interessam profundamente a seu pupilo: a relação entre cultura e barbárie, Música e ascetismo, o reencontro com o Elementar... – e, por fim, a história do anabatista Beissel, que inventou uma teoria musical heterodoxa, “por demais extravagante e arbitrária para que pudesse ser aceita pelo mundo exterior.” (MANN, 1996: 90). Kretzschmar terá um papel decisivo (e, por assim dizer, mefistofélico) na decisão de Adrian de se tornar um músico. Os manuscritos de Adorno, segundo Mann, foram uma leitura estimulante e de muita importância para a criação de Kretzschmar (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 9), que herda de Adorno várias digressões, dentre elas uma sobre a importância da “personalidade absoluta” na música: “A Arte progride (...) e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e

194

instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros.” (MANN, 1996: 181) Por fim, ironicamente ou não, o Diabo com quem Leverkühn faz o pacto também se assemelha a Adorno. No início de sua soturna conversa com Adrian, “Ele” se parece com um rufião, “falando alemão e espalhando frio”; porém, à medida que seu interlocutor começa a se sentir à vontade, o Diabo muda de fisionomia, tomando a forma de um elegante musicólogo, “um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e crítico, que ele mesmo faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades.” (Ibidem: 322) Qualquer semelhança com a vida do próprio Adorno seria mera coincidência? Este parentesco se reforça quando o Diabo começa a tecer considerações sobre a crise da arte moderna que parecem fortemente inspiradas nas de Adorno. Segundo “Ele”, a composição tornou-se mais difícil na arte emancipada, devido à submissão à técnica. A aparência auto-suficiente da Música se tornou impossível: A cada instante, a técnica, na sua totalidade, exige dele [do artista] que se submeta a ela e impõe a única resposta certa, que no momento lhe parece admissível. Chega-se então ao ponto no qual as composições do artista (...) não passam de soluções de rebus técnicos. A Arte transforma-se em crítica. Conversão muito honrosa, inegavelmente, e que requer muita rebeldia em plena subordinação, muita independência, muita coragem. (...) A crítica ao ornamento, à convenção e à generalidade abstrata é uma e a mesma. O que permanece objeto dela é o caráter ilusório da obra de arte burguesa, do qual a Música participa, ainda que não crie nenhuma imagem. (Ibidem: 324-326)

Cabe dizer, no entanto, que Mann ficou com a consciência aliviada quando Adorno não “torceu o nariz” para a utilização de seus comentários de crítica contemporânea a fim de levar o personagem demoníaco a, conforme diz Adrian, “cortejar a arte”. (Cf. Idem, 2001: 122) Porém, há quem sugira que o pensador frankfurtiano também não ficou exatamente contente com o fato de que seu modernismo estético foi associado ao Diabo. Segundo José Guilherme Merquior, a arte do compositor Leverkühn é uma consumada metáfora do pathos demoníaco embutido no apocalipse do esteticismo moderno, e quando Adorno contribuiu para a descrição da música de vanguarda de Leverkühn, “o fez, é claro, inadvertidamente – e não ficou nada satisfeito quando viu como Mann acabou usando a sua ajuda...” (MERQUIOR, 1987: 193) Podemos, contudo, tomar isso como um gracejo do sempre sarcástico Merquior e recorrer ao que disse Donald Prater, um biógrafo de Mann: “Adorno tratou de forma benevolente o fato de Mann ter se apropriado de muitas de suas próprias observações sobre o cenário musical contemporâneo, tal com as expôs em sua Philosophie der neuen Musik, utilizadas sobretudo nos comentários ácidos do Demônio de Mann. (...) Theodor Adorno, embora permanecendo em silêncio, deu a impressão de estar descontente com a falta de crédito à sua colaboração, (...) [mas] ficou satisfeito quando Mann lhe

195

garantiu que escreveria um balanço autobiográfico completo sobre a gênese e o desenvolvimento do romance, no qual o filósofo receberia o merecido crédito por sua inestimável ajuda.” (PRATER, 2000: 481-499)

A promessa de Thomas Mann foi cumprida: de fato várias páginas de A Gênese do Doutor Fausto demonstram a importância de Adorno para a construção de seu romance. Aliás, este não se fez de rogado e, numa carta de 1948, expressou sua empolgação com o “romance sobre o romance”: “Mal posso esperar para ver a portinhola para a eternidade que o seu romance abrirá para mim. Não preciso lhe dizer o que significa para mim o seu reconhecimento de meus esforços excêntricos, bem como a sua intenção de trazê-los à luz.” (ADORNO & MANN, 2006: 38) A amizade entre ambos perdurou até a morte de Mann, em 1955; durante os últimos anos, trocaram cartas sobre, por exemplo, o último romance deste (Confissões do impostor Felix Krull) e a música de Wagner. Finalmente sobre a questão do narrador Serenus Zeitblom à luz de Adorno, nas palavras de Mann “decidi não contar eu mesmo a vida de Adrian Leverkühn, mas inseri um outro que a contasse, portanto escrevendo não um romance, mas uma biografia com todas as características pertinentes ao gênero.” (MANN, 2001: 30) A inserção deste narrador – no caso, o professor universitário Serenus Zeitblom, o melhor amigo de Leverkühn – permitiu situar a narrativa num plano temporal duplo, entrecruzando polifonicamente os eventos que abalam o narrador enquanto escreve com os fatos por ele apresentados, de tal forma que seu tremor advém tanto das vibrações de bombardeios distantes quanto ao terror interno que tem ao se lembrar da trajetória do amigo. (Cf. Ibidem: 30-31) Zeitblom constantemente “quebra a quarta parede” e confessa ao leitor a incapacidade de fazer uma narração neutra e imparcial diante dos terríveis acontecimentos que afligiram seu amigo Leverkühn e seu próprio país. Várias passagens de Doutor Fausto simbolizam esta autoconsciência de Zeitblom quanto à limitação de seu papel enquanto narrador; por exemplo, a seguinte: Para mim, cada palavra que escrevo nestas páginas tem o mais ardente interesse, mas quanto não devo cuidar-me em considerar isso uma garantia de sentimentos iguais da parte de pessoas indiferentes! Por outro lado, cumpre não esquecer que não escrevo para o momento nem para leitores que por hora nada saibam de Leverkühn, de modo que não possam pretendem receber informações pormenorizadas a seu respeito; pelo contrário, preparo esse relato para um tempo em que as premissas da atenção pública forem totalmente diversas e, como posso assegurar, muito mais propícias, numa época em que a curiosidade pelas peripécias dessa vida pungente, apresentadas com habilidade ou sem ela, for mais intensa e menos fastidiosa. (Idem, 1996: 42)

Este trecho deixa explícita a situação precária do narrador deste romance, na medida em que revela uma mistura de ceticismo e pálida esperança: se por um lado Zeitblom afirma a impossibilidade de que seu relato consiga “tocar” seus leitores sobre a tragédia de seu amigo da mesma forma que esta o afetou, por

196

outro ele espera que, no futuro, caso a guerra e o totalitarismo já sejam coisas passadas, haja um ambiente propício para que sua biografia de Leverkühn possa servir como retrato de uma época. FINALE O esforço que procurei empreender neste artigo foi o de mapear os principais aspectos do diálogo artístico de Thomas Mann e Theodor Adorno durante a criação do romance Doutor Fausto. Fascinava a Mann a peculiar afinidade com que o programa estético de seu romance se comunicava com a estética vanguardista de Adorno. Em ambos é possível encontrar uma reflexão sobre a possibilidade da construção de uma nova subjetividade por meio das inovações técnicas da “nova música”. A diferença é que Doutor Fausto explora esse tema também em sua dimensão moral, alertando para o risco de um esteticismo diabólico – do qual, segundo Mann, não escapava a própria música moderna na qual Adorno via tantas potencialidades. Como já expus sinteticamente as idéias de Adorno, agora posso ser mais normativo: não compactuo com o tom amargo que permeia a estética adorniana. Lukács tem certa razão quanto critica o “desespero cultural” deste pensador; mas, bancando o “advogado do diabo”, é preciso reconhecer que Adorno vê uma luz no fim do túnel; basta lembrar sua defesa das vanguardas artísticas, em particular a música dodecafônica de Schönberg. Por outro lado, não posso deixar de concordar com Merquior quando este diz que Adorno possui um ascetismo melancólico, segundo o qual só o martírio da forma poderia refletir, se não espelhar, a miséria do homem moderno. Para Adorno, “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro”, e a arte já não pode mais ter um caráter afirmativo: “O único humanismo que resta a compele a representar, em formas torturadas, ‘nossa idade satânica’.” (MERQUIOR, 1987: 192) A arte da ruptura seria assim, em sua reação à repressão iluminista da civilização moderna, uma “falência necessária”. (Idem, 1969: 94) Thomas Mann oferece em seus romances uma perspectiva mais humanista que esta, mas sem deixar de ser realista. O que fica evidente em Doutor Fausto é o caráter problemático e em última instância fracassado de uma arte criada com base em um isolamento da realidade, em uma tentativa de realizar-se humanamente na pura interioridade. Mann chegou a dizer que, ao escrever Doutor Fausto, pretendia elaborar “um romance da minha época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa.” (MANN, 2001: 35) É a sua obra mais política; constitui-se numa tomada de posição, em reação contra o esteticismo e a decadência e em prol dos valores humanistas. Mann como mais ninguém estava convencido do fato de que o nazismo não era essencialmente um fenômeno político, mas estava enraizado na cultura alemã; Zeitblom expressa tal consciência austera ao maldizer “os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias!” (MANN, 1996: 648-649) Mann também acreditava que, embora nem a arte possa salvar o homem, ela poderia libertar a alma humana do medo e do ódio, e assim auxiliar o homem em sua viagem pela vida. (Cf. RIEMEN, 2011: 83) A maneira como expôs os dilemas da música erudita moderna

197

por meio da trágica história de seu Fausto mostram uma sensata desconfiança com relação aos excessos das vanguardas artísticas. Colocar na boca do Diabo as mais progressistas e ousadas opiniões sobre arte mostra que Thomas Mann não via nesse “niilismo aristocrático” - ora ironizado, ora preconizado pelo Diabo e por Adrian - uma panacéia para as angústias humanas diante da modernidade. A arte pode ter, no máximo, um papel consolador e pedagógico, inclusive pelo exemplo negativo, ao mostrar que os impulsos esteticistas têm um caráter perigoso e até mortal – algo, aliás, que o próprio “pecador” Leverkühn reconheceu, à beira do colapso.

PARTITURA (REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS) ADORNO, Theodor. Filosofia da Nova Música (3ª Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2009. ________________ Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. ________________ Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1988. ________________ & MANN, Thomas. Correspondencia 1943-1955: Theodor W. Adorno y Thomas Mann. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006. ALVES, Marco Antônio Sousa. Reflexões sobre a obra de arte a partir da Teoria Estética de Adorno: efemeridade, fragmentação, hibridismo e isolamento social. Trabalho apresentado no III Encontro de Pós-Graduandos em Filosofia, PUC-SP, São Paulo, 2009. Disponível em: http://academia.edu/867169/Reflexoes_sobre_a_obra_de_arte_a_partir_da_Teoria_Estetica_d e_Adorno_efemeridade_fragmentacao_hibridismo_e_isolamento_social BACKES, Marcelo. A Arte do Combate: a literatura alemã em cento e poucas chispas poéticas e outros tantos comentários. São Paulo: Boitempo, 2003. CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. JIMENEZ, Marc. Para Ler Adorno. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. MANN, Thomas. A Gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001. _____________ Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Record, 1996. ______________ Os Buddenbrooks: decadência duma família. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. MERQUIOR, José Guilherme. Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. _________________________ O Marxismo Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. MISKOLCI, Richard. “A filosofia da história no Doutor Fausto”. In: Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, pp. 191-208. São Paulo, 1998. PRATER, Donald. Thomas Mann: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

198

RIEMEN, Rob. Nobreza de Espírito: um ideal esquecido. Petrópolis: Vozes, 2011. SAFATLE, Vladimir. “Theodor Adorno: a unidade de uma experiência filosófica plural”. In: Pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção no Brasil, volume 1 (org.: Jorge de Almeida e Wolfgang Bader). São Paulo: Cosac Naify, 2009. SCHMIDT, James. “Mephistopheles in Hollywood: Adorno, Mann and Schoenberg”. In: The Cambridge Companion to Adorno. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 148-180, 2006. VANDENBERGHE, Frédéric. A Philosophical History of German Sociology. New York: Routledge, 2009.

199

SOBRE O CONCEITO DE FETICHISMO NA MÚSICA NA OBRA DE CRÍTICA MUSICAL DE T. W. ADORNO. Jéssica Raquel Rodeguero Stefanuto [email protected] Mestranda em Educação Escolar pela UNESP - Araraquara; Professora na Faculdade Orígenes Lessa – FACOL, Lençóis Paulista. Ari Fernando Maia [email protected] Professor do Departamento de Psicologia da UNESP - Bauru e do Programa de PósGraduação em Educação Escolar da UNESP - Araraquara.

Resumo:O presente trabalho tem como objetivo discutir o conceito de fetichismo na música presente na obra de crítica musical de T. W. Adorno. Parte-se do pressuposto de que é pertinente estudar esse conceito num contexto em que os espaços são ubiquamente preenchidos por músicas de sucesso sem qualidade artística e em que o desenvolvimento técnico permite aos sujeitos acesso e posse de bens musicais que são corriqueiramente idolatrados, sem que haja reflexão a respeito. Para tanto se retoma uma seleção da obra de crítica musical de Adorno, buscando discutir o conceito de fetichismo na música nos níveis composicional, social e subjetivo. Espera-se com isso somar esforços no sentido de compreender os feitiços conformistas que são ideologicamente mantidos na nossa cultura que, por meio das músicas que enaltecem uma falsa harmonia, recusa a experiência estética e torna tabus sons provocativos. Palavras-chave: T. W. Adorno, filosofia da música, fetichismo na música, experiência estética.

O conceito de fetichismo na música nos estudos de crítica cultural e musical de T. W. Adorno é discutido em diversas mediações, que podem ser identificadas em pelo menos três âmbitos: o composicional, o social e o subjetivo. Este conceito está vinculado a uma condição social e estética em que a música aparece como elemento encantatório que se coaduna com o conformismo, com a insensibilidade e com a recusa do contraditório e do provocador. Essa condição decorre da chamada indústria cultural (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2009) mas também tem relação com características imanentes à música, por um lado, devido ao seu papel como elemento ordenador desde tempos remotos da história da humanidade (ADORNO, 1938/1991), o que a mantém em relação intrínseca com o medo dos homens e com o esforço destes em dominar e controlar a natureza e, por outro lado, devido a sua técnica intrínseca de ordenação de sons e silêncios no tempo que culmina em sua manifestação etérea (ADORNO, 1978/1999). Por tudo isso, a música se faz um campo rico em contradições e ambiguidades que no decorrer do processo de desencantamento do mundo passam a ser recusadas e

200

administradas. No entanto, até hoje, a música é capaz de fascinar e assustar os homens, acalmar e perturbar, provocar recusa e idolatria. Este trabalho pretende, assim, discutir esses três âmbitos já citados, buscando ampliar a compreensão acerca dos feitiços conformistas que, de diferentes maneiras ao longo da História, vêm sendo ideologicamente mantidos em diferentes organizações sociais. A presença de sons ordenados desde os primórdios da História humana aponta para uma relação entre música, linguagem e o processo de dominação da natureza que leva a crítica adorniana para além da crítica a Indústria Cultural. Tal crítica remete a uma discussão sobre a relação entre elementos míticos no material musical e o gradual processo de racionalização que se reflete nele, assim como à relação entre música e linguagem e, finalmente, aos problemas da regressão da audição. O fetiche na música, portanto, para Adorno, abrange feitiços que vão além do fetiche na música enquanto mercadoria, mas sem desconsiderá-lo. Quando Adorno (1970/2011, p.135) afirma que “analisar as obras artísticas equivale a perceber a história imanente nelas armazenada”, ele remete a um raciocínio histórico para pensar os modos como foram sendo organizados os sons e os modos como diferentes formas de feitiços são passíveis de envolver o material musical. É necessário marcar que a organização dos sons e as formas de fetichização da música acontecem em uma lógica que se relaciona inseparavelmente com as formas de organização das sociedades, com o desenvolvimento extramusical da racionalidade e com as formas de recepção dos ouvintes. MÚSICA E FETICHE ANTES DO CAPITALISMO – MEDO E MIMESE A origem da música é buscada nas manifestações coletivas, ritualísticas, de culto sacrificial, compreendendo-se que ela nasce vinculada ao mito, à magia e aos ritos de oferenda aos deuses em troca do apaziguamento dos homens. Isso implica que, desde a origem, e ainda hoje, a música é repleta de elementos de fantasia, mas também de racionalidade que, já nos primórdios, buscava o controle da natureza por meio da ordenação dos sons. No entanto, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da racionalidade musical acompanha o desenrolar da racionalidade extramusical, por sua linguagem intrínseca nãoconceitual, a organização dos sons ainda se mantém como refúgio para elementos de fantasia que manifestam resistência à administração desmedida e expressa uma contradição: ao mesmo tempo esse encanto é desejado e buscado por meio da música e é temido, como expressão da conexão com a natureza a que o homem não pode retornar. A flauta de Pã e o pânico correspondente ao seu som, no mito grego, apontam o caráter ambíguo da experiência musical desde o seu início, uma vez

201

que ela ao mesmo tempo manifesta aqueles instintos e desejos que foram reprimidos pela civilização e representa um meio para dirigi-los e racionalizá-los (ADORNO, 1938/1991). O potencial da música como refúgio para aquilo que, expulso da cultura, fascina e aterroriza os homens, permanece pela idiossincrasia de sua técnica intrínseca. No entanto, também permanece o potencial, que parece ser predominante, de a música pregar uma falsa harmonia e uma falsa conciliação do homem com o âmbito da natureza, do finito e do assustador, através de um encantamento agradável que conforta e conforma. As funções mágica e sagrada são características das primeiras execuções musicais, pois essas acontecem num contexto de medo e tentativas de delimitação da natureza. Presente desde os primórdios da relação do homem com a natureza, a música tem uma de suas raízes no fetichismo. Wisnik (1989) afirma que No mundo modal, isto é, nas sociedades pré-capitalistas, englobando todas as tradições orientais (chinesa, japonesa, indiana, árabe, balinesa e tantas outras), ocidentais (a música grega antiga, o canto gregoriano e as músicas dos povos da Europa), todos os povos selvagens da áfrica, América e Oceania, a música foi vivida como uma experiência do sagrado [...] (p.34).

Nesse momento da história da racionalidade, a produção musical é marcada pela sua função mágica e ritual. É executada apenas em situações específicas e pelos sujeitos iniciados. Neste passado pré-histórico, “a vida e a morte haviam se explicado e entrelaçado nos mitos” (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.19). Num tempo anterior à linguagem alfabética racionalizada e escrita, o canto ocupava um lugar sagrado, mítico e dependia da transmissão e da memória. Para Wisnik (1989) os mitos centram as narrativas sobre a música no âmbito do símbolo sacrificial. A origem dos instrumentos musicais também remete à lógica do sacrifício: “as flautas são feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores são feitos de pele, as trompas e as cornetas de chifres” (p.35). Nesse contexto, “o animal é sacrificado para que produza o instrumento, assim como o ruído é sacrificado para que seja convertido em som, para que possa sobrevir o som”. (p.35). Para Wisnik, a música modal, pré-capitalista “é a ruidosa, brilhante e intensa ritualização da trama simbólica em que a música está investida de um poder (mágico, terapêutico e destrutivo) que faz com que a sua prática seja cercada de interdições e cuidados rituais” (WISNIK, 1989, p.35). Essa música é centrada no ritmo e tem a forte presença das percussões. Também tem forte presença de timbres, vozes, vocalizes e sotaques (idem). No entanto, “as músicas modais são músicas que procuram o som puro sabendo que ele está sempre vivamente permeado de ruído”, afinal, “os deuses são ruidosos” (idem, p.39, grifos do autor).

202

No contexto ritualístico e sagrado, a música é um elemento mágico e, por isso, fetichista. Ela possui um fetiche que Adorno chamará na “Teoria Estética” (1970/2011) de fetiche arcaico. Arcaico por ser retrospectivamente discutido: aos sujeitos modernos é possível discutir que esse fetichismo remete ao contexto, um tanto nebuloso, dos primórdios da música, em que as produções musicais relacionavam-se aos trabalhos mágicos de feiticeiros e eram restritas a determinadas cerimônias rituais. Essa forma de fetichização do material musical parece circunscrever-se a esse momento intrinsecamente mágico da História das músicas, podendo, no entanto, aparecer velado, como um sintoma, em produções musicais no decorrer do processo evolutivo da técnica musical, quando a magia for brutalmente reprimida. A forma arcaica de fetichização do material musical diferencia-se do fetiche que se desenvolve ao longo do processo de desencantamento do mundo porque, no contexto de magia, a dominação aparece escancarada e não camuflada em ilusões ou confortos ideológicos: a intenção é, de fato, dominar a natureza em prol da sobrevivência humana. E a relação dos homens com essa natureza, no contexto mágico, considera aquele animismo contra o qual o processo de esclarecimento voltou o machado, acusando-o de mito. Nas palavras de Horkheimer e Adorno: “a magia é pura e simples inverdade, mas nela a dominação ainda não é negada, ao se colocar transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu” (1947/2006, p.21). Para Adorno (1970b/2006), a técnica, em seu sentido grego - techné – a qual é identificada à arte, situando-a junto ao artesanato e aos ofícios, é a representação externa de algo interior, objetivação de ideias em conteúdos materiais. Em música, isso ganha um sentido um tanto diverso, significa a realização do conteúdo espiritual por meio dos sons, seja por meio da produção ou da reprodução dos sons: “a totalidade dos recursos musicais é a técnica musical: a organização da própria coisa e sua tradução para o fenomênico”1 (idem, p. 233). Tal organização fornece a objetividade da obra e lhe dá um sentido, por isso, a técnica se faz chave para o conhecimento da arte. É, portanto, necessário conhecer a linguagem técnica da música para adentrar seu conteúdo. Porém, se a música não pode ser compreendida sem que se compreenda sua técnica intrínseca, também a técnica deve ser compreendida mediante compreensão da obra (ADORNO, 1970/2011). A música artística, no entanto, não é apenas técnica, mas também conteúdo. Para o pensamento dialético de Adorno, conteúdo e técnica são idênticos e nãoidênticos: nãoidênticos porque a obra de arte tem sua vida justamente na tensão entre o interior e o exterior e porque a obra só pode ser considerada artística quando apontar para além de si mesma, apontamento que Na versão em espanhol: “La totalidad de los recursos musicales es la técnica musical: la organización de la cosa misma y su tradución a lo fenoménico”. 1

203

apenas se vislumbra quando se mantém em relação dialética elementos contrários, como interno e externo; porém, como em composição, só existe o que é realizado, a manifestação do conteúdo espiritual só se dá por meio da técnica. E aqui se identificam conteúdo e técnica: interior e exterior se geram reciprocamente (ADORNO, 1970b/2006). A concepção atual de técnica como procedimento é resultado de um longo processo de racionalização extramusical que, ao buscar a identificação e a unidade de todos os âmbitos da vida com a ciência, cinde método e conteúdo (ADORNO, 1970/2011, 1970b/2006). Porém, para Adorno, esse processo de racionalização não consegue ser completo na obra de arte: “sobre toda a técnica artística paira, em relação com o seu telos, uma sombra de irracionalidade” (1970/2011, p.331). Nesse movimento de racionalização, as obras de arte são também condenadas à ruptura violenta entre matéria e espírito: “nos traços do que foi ultrapassado pela evolução geral, toda arte está maculada de uma suspeita hipoteca de tudo o que não foi bem seguido e é regressivo” (ADORNO, 1970/2011, p. 500). Mais uma vez, Adorno (1958/2009) remete a essa antiquíssima dívida que a música contraiu ao separar o espírito do físico: A dialética hegeliana de senhor e escravo chega por fim ao senhor supremo, ao espírito que domina a natureza. Quanto mais este espírito avança para a autonomia, mais se afasta da relação concreta com tudo o que domina, homens e matéria por igual. Logo que domina em sua própria esfera (que é a da livre produção artística), o espírito domina tudo até a última entidade material; começa a girar sobre si mesmo como se estivesse aprisionado e desligado de tudo quanto lhe é oposto e de cuja penetração havia recebido seu significado próprio (ADORNO, 1958/2009, p.26).

A partir da brutal cisão entre matéria e espírito, rompe-se a necessária dialética e tensão que permitem à música manifestar seu conteúdo de verdade. Assim, a música pode ser construída tendendo a ser demasiadamente espiritual, ou seja, recusando a dialética e não reconhecendo sua base material e determinação objetiva que lhe dá substancialidade. Arvora-se aí, na pretensão de uma expressão que seja puramente espiritual, e se entrega ao fetichismo. A crítica de Adorno ao processo de racionalização, porém, não vem em defesa à desconsideração da técnica musical em prol de uma pureza ou legitimidade da obra de arte: a técnica é um dos elementos necessários à música e a obra de arte só existe enquanto dialética entre o conteúdo subjetivo e a técnica que torna exprimível tal conteúdo: “seria agradável ao hábito vulgar eliminá-la; mas seria falso, porque a técnica de uma obra é constituída pelos seus problemas, pela tarefa aporética que essa obra se põe objetivamente” (ADORNO, 1970/2011, p.323). É possível afirmar que, para Adorno, tanto a obra musical que se arvora numa espiritualidade descolada da determinação material quanto a extrema

204

objetivação do material musical, produzem uma fetichização da música, ou seja, a desconsideração do material musical enquanto dialética e tensão entre elementos distintos e contraditórios, entre espírito e matéria, entre objetividade e subjetividade, produz uma música enfeitiçada ao recusar sua tarefa histórica. Uma nova elaboração para a fetichização do material é que o artista enfrente a tarefa aporética da música frente às contradições históricas e mantenha a necessidade de tensão e dialética no interior da obra, concebendo a composição “como uma resposta a problemas históricos configurados no conjunto de possibilidades sonoras e formais que se impõem ao artista” (ALMEIDA, 2007, p.101) como o faz, ao menos em uma fase de seu trabalho, Schoenberg, o compositor dialético (ADORNO, 1934/2008). Por sua vez, a possibilidade de manter a dialética e a tensão na estrutura musical, bem como possibilitar as diferenças entre interior e exterior, se dá pela própria linguagem técnica da música, pelo “aspecto incondicionalmente técnico do seu poder encantatório” (ADORNO, 1970/2011, p.327). No entanto, mesmo a música que composicionalmente acolhe sua tarefa histórica e enfrenta as possibilidades técnicas junto à fantasia do artista pode ser ideológica quando é envolta por funções utilitárias, por exemplo, ou pelo fetiche típico do âmbito das mercadorias. Outra possibilidade é que uma música artística não chegue a ser compreendida pelo ouvinte, do que decorre que mesmo músicas artísticas e não apropriadas pela lógica da indústria cultural podem ser fetichizadas quando chegam ao ouvinte que as recusam ou idolatram sem qualquer reflexão. O canto gregoriano inaugura a tradição ocidental que caminha para a música barroca, clássica e romântica dos séculos XVII, XVIII e XIX. Ele caracteriza-se por evitar o acompanhamento instrumental, e preferir vozes masculinas cantadas em uníssono e à capela, “na caixa de ressonância da igreja” (WISNIK, 1989, p.41). Quando o canto gregoriano evita o acompanhamento colorístico de instrumentos e evita a pulsação rítmica, transformando-a na pronunciação do texto litúrgico, ele desvia música modal para o domínio das alturas. Essa configuração prepara o terreno para o surgimento da música tonal (WISNIK, 1989, p.41). Cabe marcar que essa modificação na estrutura interna da música evita o ruído: “quer filtrar todo o ruído, como se fosse possível projetar uma ordem sonora completamente livre da ameaça da violência mortífera que está na origem do som” (WISNIK, 1989, p.42). É essa ordem sonora que vai acompanhar a ordem burguesa no capitalismo. MÚSICA E FETICHISMO NO CAPITALISMO – TONALIDADE E ORDEM BURGUESA. O capitalismo, desde seus primórdios, é impulsionado pela transformação de todas as coisas em mercadorias, em produtos que podem ser trocados por um

205

equivalente em dinheiro e cujo objetivo último é a reprodução ampliada do capital. Para que a música fosse envolvida com o feitiço típico das mercadorias, era preciso que antes ela se tornasse uma mercadoria e que as músicas já tivessem, em grande medida, se afastado de seu caráter sagrado ou secreto e pudessem então ser adquiridas ou ao menos pagas por consumidores desejosos de reproduzir uma peça musical que se encontrasse codificada na partitura ou de ouvir música em salas de concerto. No âmbito das mercadorias importa mais que o próprio objeto o convencimento que é proporcionado pelo feitiço que o torna uma necessidade para os sujeitos. Nesse sentido, falar da música que foi sequestrada pelo fetichismo típico das mercadorias diz mais respeito à condição de mercadoria da arte determinada pelo momento social, do que propriamente ao conteúdo musical – embora este também venha a se adequar a formas vendáveis. A inserção da música no campo do mercado foi ganhando lugar num contexto de oposição a um sistema inteiramente feudal, no qual as produções artísticas, como tudo o mais, eram propriedades do senhor e não tinham existência autônoma. Quando a discussão sobre a propriedade da obra artística tem seu início, ela caminha no sentido de ser um instrumento do capitalismo contra o feudalismo e não uma proteção ao artista ou à obra (ATTALI, 1977/2003). Assim, a evolução geral da sociedade tem peso determinante na forma como passam a ser valorizadas as obras musicais e aqui se dá ênfase à organização social que possibilita – ou obriga – que a obra cultural seja tornada mercadoria. O desenvolvimento técnico da época tem caráter determinante na consolidação da música como mercadoria: embora os copistas de manuscritos literários e de partituras tenham mantido um monopólio nos séculos XV e XVI, a prensa, inventada em meados do século XV, passa a ser a forma dominante de se realizar cópias, e a impressão reconfigura a lógica de distribuição das obras musicais. Evidentemente, com o surgimento de tecnologias de áudio, como o fonógrafo (1876) e o gramofone (1888), a música ganhou novas formas de reprodução, que por sua vez continuam a se desenvolver a passos largos. A valorização da música como mercadoria se deu, então, a partir de um objeto concreto – a partitura - e uma utilização – a apresentação e execução musical. Assim, a música não surge como mercadoria antes que comerciantes tivessem o poder de controlar sua produção, vender sua produção e encontrar um público pagante (ATTALI, 1977/2003), porém, seu surgimento como mercadoria acontece com o capitalismo ainda incipiente. A França, pioneira no reconhecimento da propriedade sobre a obra musical, garantiu aos músicos compositores o direito de propriedade da música em 1786, durante o governo de Luiz XV, quando o Concílio do Rei, tendo reconhecido a intangibilidade da música, determinou uma regulamentação geral acerca dos registros que assegurassem a propriedade da obra de arte (ATTALI, 1977/2003).

206

A mercadoria musical na lógica de desenvolvimento do capital vai sendo conformada a uma estética da mercadoria, conceito que designa “um complexo funcionalmente determinado pelo valor de troca e oriundo da forma final dada à mercadoria, de manifestações concretas e das relações sensuais entre sujeito e objeto por elas condicionadas” (HAUG, 1971/1996, p.15). No âmbito das mercadorias, vale lembrar, as coisas deixam de ser valorizadas ou percebidas pelas suas características próprias, passando, ao invés disso, a ser reconhecidas pelo seu arbitrário valor de troca, e tornando-se, ao mesmo tempo, adoradas e cultuadas por características que não têm qualquer relação com o que realmente são. No caso da música, adorada pelo seu valor de troca, o culto se dá por características que passam distantes de qualquer relação com critérios musicais. Emergem critérios como o valor do ingresso pago pelo concerto, o número de compradores ou de ouvintes apontado pela propaganda do produto, o estilo ao qual determinada música é filiada pela indústria cultural, a performance do artista, a voz dos cantores, o número de cópias reproduzidas e vendidas, a perfeição da execução técnica, o aparato, “imponente e brilhante” que produz o som, o maestro ou líder da banda, entre outros (ADORNO, 1938/1991). Haug aponta que a linguagem artística “é usada para falar de Deus, e contudo é o capital que está em cena dessa maneira sacra, produzindo impressões semelhantes às que a teologia judaico-cristã determina como características de Deus” (1971/1996, p.180). A música, nesse contexto social em que tudo é mercadoria, ganha propriedades metafísicas e se descola da ação humana, apesar de necessariamente ser fruto dessa atividade. Essa condição de adoração da mercadoria musical, mais que da própria música, aproxima-se da concepção marxiana de fetiche da mercadoria à qual Adorno conceitualmente se refere no texto de 1938, O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição (ADORNO, 1938/1991). Marx (1867/2006) afirma que, pelo modo de produção na economia das sociedades capitalistas, os produtos do trabalho humano têm seu processo de produção ocultado, mostrando-se como meros suportes de valores de troca. Esses valores, arbitrariamente e a despeito do valor de uso, são postos como uma medida que permite a calculabilidade de todo trabalho humano por meio de uma “forma-equivalente” pela qual todo corpo possa equivaler a outro (MARX, 1867/2006). Adorno aponta que uma das evidências da condição de mercadoria da música é o fato de ela ser consumida como valor de troca, como sucesso fabricado pelo consumidor, sem que as características específicas sejam sequer apreendidas pelo ouvinte (ADORNO, 1938/1991). Nas palavras do autor: Se a mercadoria se compõe sempre do valor de troca e do valor de uso, o mero valor de uso – aparência ilusória, que os bens da cultura devem conservar, na sociedade capitalista – é substituído pelo mero valor de troca, o qual, precisamente enquanto valor de

207

troca assume ficticiamente a função de valor de uso. É neste qüiproquó específico que consiste o específico caráter fetichista da música: os efeitos que se dirigem para o valor de troca criam a aparência do imediato, e a falta de relação com o objeto ao mesmo tempo desmente tal aparência (ADORNO, 1938/1991, p. 87).

Para Adorno (1970/2011), no entanto, não há uma coincidência total entre o caráter de fetiche na música e o fetichismo da mercadoria, o que ainda não fica plenamente esclarecido no texto de 1938 sobre fetichismo, mas aparece nitidamente em obras posteriores: “se os fetiches mágicos são uma das raízes históricas da arte, permanece mesclado com as obras de arte um elemento fetichista que se distingue do fetichismo das mercadorias. Elas não podem nem desembaraçar-se dele, nem negá-lo” (ADORNO, 1970/2011, p.343). O duplo caráter do fetichismo tanto denuncia a funcionalização da música como ideologia da harmonia entre os homens no mundo burguês como preserva o encantamento onde se refugia o potencial crítico presente na arte. Na era burguesa a música tonal cumpriu a função de ideologia na medida em que a suposta harmonia entre particular e universal justificava a exploração, a violência e a dominação. Segundo Adorno (1968/1986, p. 155): “não por acaso a tonalidade foi a linguagem musical da era burguesa. A harmonia do universal com o particular correspondia ao modelo clássico-liberal de sociedade”. Por outro lado, a música dodecafônica preserva de forma sublimada o encantamento que é recalcado pela tonalidade. Ainda segundo Adorno (1968/1986, p. 154): “a música moderna não conhece nenhuma harmonia preestabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la, em nome de sua própria verdade”. A harmonia, como utopia de uma relação não esquematizada entre particular e universal, é ao mesmo tempo preservada e superada na música dodecafônica. A existência de aceitação da música tonal que é ouvida pelo grande público demonstra que, ao lado da incompreensão dos aspectos musicais, existe uma promoção, na música condenada ao sucesso comercial, de uma falsa conciliação que supõe a existência de harmonia entre particular e universal. Daí a ironia de Adorno (1938/1991) quando afirma que a música popular escuta pelo ouvinte, pois já não é preciso fazer qualquer esforço, é oferecida sempre a mesma coisa. Os ouvintes “não conseguem manter a tensão de uma concentração atenta, e por isso se entregam resignadamente àquilo que acontece e flui acima deles, e com o qual fazem amizade somente porque já o ouvem sem atenção excessiva” (ADORNO, 1938/1991, p. 96). E nessa dialética da capacidade compreensiva e da apreciação permanece uma ambivalência: “uma passagem que agrada aos sentidos causa fastio tão logo se nota que ela se destina apenas a enganar o consumidor” (ADORNO, 1938/1991, p. 97). Tal forma regredida de relacionar-se com a música acaba por desenvolver certas habilidades que, justamente na dissociação em relação ao que é ouvido, passam a ser “mais compreensíveis em termos de futebol e automobilismo do que

208

com os conceitos da estética tradicional” (ADORNO, 1938/1991, p. 94). Adorno (1973/2011, p. 114) afirma que o próprio idioma da tonalidade “é idêntico à linguagem musical universal dos consumidores”, produzindo automaticamente relações superficiais e familiares e tornando impossível discernir o que se diz em tal linguagem das obras musicais. Passa a ser característico da música fetichizada trazer algo da qualidade culinária “que é a única que a consciência extra-artística consegue degustar” (p. 114). Com a predisposição dos ouvintes a uma audição fetichizada moldada socialmente por um processo que “consiste em diabolicamente levar os consumidores a concordarem com os critérios ditados pelos produtores” (ADORNO, 1938/1991, p.91), mesmo obras artísticas que ainda contenham algum elemento de resistência, acabam não sendo experienciadas em sua potencialidade emancipatória, restringindo-se à apreciação do valor de troca, e assim, forma-se “um tipo de estilo musical que, por mais que proclame a pretensão irrenunciável do moderno e do sério, se assimila à cultura das massas em virtude de uma calculada imbecilidade” (ADORNO, 1958/2011, p. 15). Existe sintonia entre a consciência da massa de ouvintes e a música fetichizada: Ouve-se música conforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse resistência por parte do público, se os ouvintes ainda fossem capazes de romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado lhes oferece (ADORNO, 1938/1991, p. 93).

O autor (1973/2011) afirma ainda que “o sujeito que, por meio da forma de seu trabalho, foi desapropriado da relação qualitativa com a esfera do objeto, torna-se com isso, necessariamente vazio” (p. 127), vindo a música a colorir esse vazio de sentido interior. Ante tal tempo, “estrangulado pela repetição”, a função da música se reduz a criar a ilusão de que, afinal, algo se transforma e se move, o que não é senão um embuste, uma falsa promessa de felicidade que se instala no lugar da felicidade mesma (p. 123). Porém, Adorno (1973/2011) argumenta que os homens têm medo da passagem do tempo, inventando, por isso, “metafísicas temporais compensatórias” (p.128), culpando a passagem do tempo por já não se sentirem mais vivos no mundo reificado. A música, por sua vez, dissuade os homens desse incômodo com a reificação, confirmando a sociedade que ela mesma entretém e operando como ideologia ao atestar o existente (ADORNO, 1973/2011). Ela conforma, no sentido em que “arvora-se em uma insípida afirmação da vida, própria aos anúncios de casamento e que nunca é assombrada pela lembrança do mal ou da morte” (ADORNO, 1973/2011, p. 121). Na contrapartida subjetiva da fetichização do material musical está o que Adorno conceitua “regressão da audição”, que é discutida não como “um regresso do ouvinte individual a uma fase anterior do próprio desenvolvimento, nem a um

209

retrocesso do nível coletivo geral” (ADORNO, 1938/1991, p.93), já que seria impossível qualquer confronto entre os ouvintes atuais e ouvintes do passado. No texto intitulado “Por que é difícil a nova música?”, Adorno reforça: Quando, há trinta anos, introduzi o conceito de “regressão da audição”, eu não me referia a uma regressão generalizada do ouvir, mas me referia à audição das pessoas regredidas, desmedidamente acomodadas, nas quais falhou a formação do ego, pessoas que nem sequer entendem as obras de modo autônomo, mas sim numa identificação coletiva. Regressão no ouvir não quer dizer que a audição tenha caído abaixo de um padrão anteriormente superior. Antes, deslocou-se a relação global do ouvinte adequado com o ouvinte inadequado. Os tipos que hoje dominam coletivamente a consciência musical são regressivos no sentido sóciopsicológico (ADORNO, 1968/1986, p. 158).

Fica clara a ideia do autor de que “o que regrediu e permaneceu em um estado infantil foi a audição moderna” (ADORNO, 1938/1991, p. 93-94, grifos nossos). Essa audição regredida, infantil, não pode ser assim caracterizada se referindo a um novo tipo de audição que surge nos ouvintes até então alheios à música, já que “o seu primitivismo não é o que caracteriza os não desenvolvidos, e sim o dos que foram privados violentamente de sua liberdade” (ADORNO, 1938/1991, p. 94). A música dissonante, aquela que supera a lógica tonal, ainda que não compreendida musicalmente e fadada muitas vezes a uma escassa recepção, é compreendida à medida que relembra e escancara a própria condição dos sujeitos, o que a torna insuportável. Nas palavras do autor: O medo que, hoje como ontem difundem Schoenberg e Webern não procede da sua incompreensibilidade, mas precisamente por serem demasiadamente bem compreendidos. A sua música dá forma àquela angústia, àquele pavor, àquela visão clara do estado catastrófico ao qual os outros só podem escapar regredindo. (ADORNO, 1938/1991, p. 105)

CONSIDERAÇÕES FINAIS O conceito de fetichismo na música segundo Adorno remete às discussões realizadas com Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, que em sua tese central afirma: o mito já era uma forma de esclarecimento e este retorna ao mito (HORKHEIMER e ADORNO, 1047/2009). O fetiche arcaico, tal como os mitos, foi um elemento humanizador na medida em que contribuiu para a elaboração do medo, para a saída de um estado de mimese entre o homem e a natureza ao qual tanto não é possível retornar como parece ser impossível abandonar. No contexto ritualístico a música serviu como elemento fetichizador, como mobilizadora de

210

emoções e ações que precisavam ser purgadas visando à sobrevivência dos homens, mas ao mesmo tempo já era ideologia na medida em que o sacrifício era justificado em sua crua violência. No mundo burguês a música se torna fetichizada ao mimetizar a formamercadoria, ao ser inserida entre as ferramentas da indústria cultural. Nesse contexto o fetichismo se confunde com a ideologia própria da era burguesa, a mera afirmação de o que o existente é perene, uma mentira manifesta. Assim, torna-se evidente aos ouvintes que as funções da música como cimento social são perceptíveis, ou seja, não são mais sequer disfarçadas. Que a música ainda seja eficaz como ideologia apesar da transparência de sua função social é algo que merece estudos a partir de uma psicologia social do ouvinte. Ao lado de uma maior compreensão sobre os mecanismos psicológicos de adesão ou resistência às modas musicais torna-se urgente também pensar formas de educação musical que reforcem as capacidades relacionadas á compreensão e à crítica musicais, de forma que seja possível formar ouvintes mais críticos. Só assim será possível experienciar o encantamento intrínseco à música sem recair em sua fetichização.

REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. e SIMPSON, G.: Sobre música popular. In: COHN, G. (org): Sociologia,; Ed. Ática, São Paulo, 1986. Reproduzido de ADORNO, T. W. & SIMPSON, G: On popular music. In HORKHEIMER, Max, ed. Studies in philosophy and social science. Nova York, Institute of Social Research, 1941, v. IX, p. 17-48. Trad. de Flávio R. Kothe. ADORNO, T. W.: O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores: Horkheimer e Adorno, Nova Cultural, São Paulo, p.77- 105, 1991. Título original: Ueber Fetisghcharakter in der Musik und die Regressio dês Hoerens, 1938, Suhrkamp. Trad. de Luiz João Baraúna e Wolfgang Leo Maar. ADORNO, T. W.: Minima Moralia. Editora Ática, São Paulo, 1993. Título Original: Minima Moralia ©Suhrkamp Verlag, 1951. Trad. de Luiz Eduardo Bicca e Revisão de Guido de Almeida. ADORNO, T. W.: Filosofia da Nova Música; Ed. Perspectiva, São Paulo, 2009. Título original: Philosophie der neuen Musik, Copyright© 1958 by Europaische Verlagsanstalt GmbH, Frankfurt am Main. Trad. de Magda França. ADORNO, T. W.: Por que é difícil a nova música?. In: Theodor W. Adorno; Cohn, Gabriel (org), Ed. Ática, São Paulo, p. 147-161, 1986. Reproduzido de ADORNO, T. W.: In der Auffassung neuer Musik. In: ________. Improptus. Frankfurt, Suhrkamp, p. 113-130, 1968. ADORNO, T. W.: Teoria da semiformação. In. PUCCI, ZUIN e LASTÓRIA (orgs): Teoria Crítica e Inconformismo, Autores Associados, Campinas/SP, 2010. Traduzido de ADORNO, T. W. Gesammelte Schriften, Band 8. Frankfurt am

211

Main: Suhrkamp Verlag, 1972-80. Trad. de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci, Cláudia B. M. de Abreu e Paula Ramos de Oliveira, 2010. ADORNO, T. W.: Introdução à Sociologia da Música: doze preleções teóricas; Ed. Unesp, São Paulo, 2011. Título original: Einleitung in die Musiksoziologie: Zwölf theoretisch Vorlesungen, Suhrkamp Verlag Frankfurt AM Main, 1973. Trad. De Fernando R. de Moraes Barros. ADORNO, T. W.: Música, lenguaje y su relación en la composición actual [Fragmento sobre la música y el lenguaje]; In. CRUZ, M. (dir): T. W. Adorno: Sobre La Música, Col. Pensamiento Contemporáneo; Paidós I.C.E/U.A.B, Barcelona, p. 25-39, 2000. Publicado em 1956 com o título: Musik, Sprache und

ihr Verhältnis im gegenwärtingen Komponieren. ADORNO, T. W.: Music and Technique; In: ____________ Sound Figures; Standford University Press; Standford, California, USA, 1999. Traduzido de ADORNO, T. W., Musikalische Schriften I-III, vol, 16 of Gesammelt Schriften, ed. Rolf Tiedmann, copyright 1978, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main. ADORNO, T. W.: Dialética Negativa; Ed. Zahar; Rio de Janeiro/RJ, 2009. Título original: Negative Dialektik. Trad. Marco Antonio Casanova, autorizada da segunda edição alemã, publicada em 1967 por Suhrkamp Verlag, de Frankfurt am Main, Alemanha. ADORNO, T. W.: Teoria Estética; Edições 70, Coimbra, Portugal, 2011. Título original: Aesthetische Theorie. Copyright© Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1970. Trad. Artur Morão. ADORNO, T. W.: Música y técnica. In._____________: Escritos Musicales I-III – Figuras Sonoras/ Quase uma fantasia/ Escritos musicales III, Obra completa, 16. Título original Gesammelte Schriften in zwanzig Bänden, 16. Musikalische Schriften I-III, copyright© by Suhrkamp Verlag, 1970b. Trad. de AlfredoBrotons Muñoz e Antonio Gómez Schneekloth. . Edição de Rolf Tiedemann com colaboração de Gretel Adorno, Susan Buck-Morss e Klaus Schultz. Ed. Akal, Madrid/Espanha, 2006. ATTALI, J.: Noise – The Political Economy of Music. Título original Bruits – essai sur l’économie politique de la musique, Ed. Universitaires de France, 1977. Trad. Universidade de Minnesota, USA, 2003. ALMEIDA, J. de: Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte; Ateliê Editorial, Cotia/SP, 2007

212

WALTER BENJAMIN E A OBRA DE ARTE: A REPRODUTIBILIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A PRÁTICA E ENSINO MUSICAL Tiago de Lima Castro Graduando em Filosofia pela Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo.

Resumo: O artigo analisa as consequências da obra A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935) de Walter Benjamin delineando mudanças da prática e ensino musical advindas da mudança na percepção da obra musical, a qual é educada por meio de reproduções técnicas. Tais desafios são vivenciados por educadores e músicos profissionais, mas nem sempre refletidos, daí a importância do texto de Benjamin como início de uma reflexão sobre a prática e ensino musical na era da reprodutibilidade técnica da obra musical.

Palavras-chave: Walter Benjamin, música, educação musical, percepção.

INTRODUÇÃO Ao ler o texto ”A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin (1882-1940), percebe-se todo um caminho para refletir a prática musical de nossa época e o ensino decorrente dessa prática. Como compreender a prática musical, e seu ensino decorrente, sendo que a percepção estética da obra musical começa a ocorrer principalmente através de suas reproduções, porém ainda influenciado por outro momento histórico em que a experiência estética ocorria através de execuções ocorridas uma única vez no tempo e são, portanto, irrepetíveis. Este problema é concreto na experiência dos educadores musicais em relação às expectativas dos educandos que tem sua percepção formada através da reprodutibilidade técnica. Na primeira seção (“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin), se analisa o contexto em que foi escrita. Na segunda seção (A percepção na era da reprodutibilidade), se analisa como Benjamin articula a relação entre a reprodutibilidade técnica e a percepção da obra de arte. Sendo a base conceitual em que as demais seções são fundamentadas. Na terceira seção (A experiência estética musical), se desenvolverá os conceitos de Benjamin sobre a percepção para a música, para compreensão da percepção em nosso tempo. Ela não pretende dar conta de todas as consequências, mas sim aquelas que afetam diretamente as mudanças ocorridas na percepção da obra musical, para em seguida aplica-la em três setores da música em nosso tempo, sendo uma divisão prática aos objetivos deste artigo.

213

Na quarta seção (Música folclórica), o foco é a mudança de uma produção originalmente espontânea de contextos socioculturais, para sua diluição num contexto afastado dos eventos que geravam essa prática espontânea. Na quinta seção (Música popular), compreendendo-se música popular enquanto obras musicais produzidas para serem reproduzidas, tendo base em elementos tonais da música folclórica e erudita, analisa como a execução musical em shows busca reproduzir a reprodução advinda de técnicas de montagem em estúdio. Também se delineia as expectativas dos alunos de também reproduzirem uma reprodução. Na sexta seção (Música de concerto), compreende-se música de concerto enquanto obras musicais pertencentes a uma tradição ocidental iniciada nos cantos gregorianos entendendo-se aos dias hoje, verificando-se o paradoxo de uma prática originada antes da reprodutibilidade técnica, mas que paradoxalmente buscar vivenciar seu contexto originário em nossos dias, gerando exigências diversas de intérpretes, educandos e mesmo no público em geral. “A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA” DE WALTER BENJAMIN Walter Benjamin fora um filósofo membro do círculo da Escola de Frankfurt. Como todos os seus membros, ele teve uma peculiaridade pessoal ao tratar de algumas questões, o que lhe rendeu críticas de Theodor Adorno (19031969) e Max Horkheimer (1885-1973), mas o círculo frankfurtiano não era exatamente homogêneo. Havia muita influência das ideias de Horkheimer, mas o como o diálogo entre os filósofos do círculo era amplo, havia visões pessoais para alguns aspectos. (MATOS, 1993) A reflexão deste círculo filosófico tem como fio condutor compreender o porquê os auspícios iluministas de tornar o humano autônomo através da razão não caminharam nesse sentido, realizando uma crítica aos iluministas com alicerces no marxismo. Ao invés de ver o desenvolvimento da razão iluminista como promotora de autonomia, verificou-se que a razão se desenvolveu em um aspecto dominador, reificando, tornando coisa, o humano para sua dominação pelo próprio humano. Os membros buscaram compreender esse processo realizando uma genealogia da razão moderna e buscando alternativas e possibilidades de ir contra o processo de reificação com sua teoria crítica. Benjamin enquadra-se nesse método, analisando a materialidade histórica, porém considerando a experiência estética com possível experiência de ruptura e choque com a reificação estabelecida. Por isso, utiliza a análise histórica de como a alteração da percepção estética propiciou um anestesiamento nas pessoas, possibilitando sua reificação, para daí compreender a possibilidade de ruptura da experiência estética.

214

A obra fora escrita no exílio do autor na França, sendo publicado pela primeira vez em 1935, havendo publicações posteriores da obra com mudanças. 1 O fato de este exílio ser devido à ascensão de Hitler ao poder em 1933, a análise da estética do fascismo perpassa o ensaio. Por analisar a reprodutibilidade técnica da obra de arte, esse texto é base de uma série de reflexões sobre a arte no século XX e XXI, principalmente no cinema, o qual é analisado por ser a primeira forma de arte em que sua existência necessita da técnica de reprodução para haver a experiência estética. Por mais que Benjamin aprofunde a reflexão sobre o cinema, ele abre caminhos para pensar as diversas artes, inclusive a música, ao levantar as consequências da reprodução técnica tanto em aspectos da produção da obra de arte, mas também na mudança de percepção gerada pelo processo de reprodução técnica. A PERCEPÇÃO NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE Benjamin realiza uma análise história da reprodução da obra de arte não a tratando como algo existente somente do séc. XX, pois está presente em todas as épocas, como nos alunos reproduzindo as obras de seu mestre com objetivos didáticos, reproduções menores de estátuas de cidades sendo vendidas, a xilogravura e litografia são outros exemplos. Porém, ao longo da história ocorre um aperfeiçoamento das técnicas de reprodução, até no séc. XIX surgirem à fotografia e gravação do som. A grande virada no final do séc. XIX é que a observação e apreensão da obra de arte, a experiência estética; tenderá a ocorrer através do contato com uma reprodução técnica, e não com o original. Ao invés de apreciar música através de concertos, recitais, shows, festas folclóricas, entre outros; a música será apreendida através de suas reproduções técnicas, através de pianolas, rádios, discos, fitas cassetes, CDs, iPods e outros dispositivos similares. Por isso o autor escreve: No século XIX a reprodução técnica atingiu tal grau, que não sói abarcou o conjunto das obras de artes existentes e transformou profundamente o modo que elas podiam ser percebidas, mas conquistou para si um lugar entre os processos artísticos. (BENJAMIN, 2012, p. 11)

Pois, se a obra de arte será apreendida através de sua reprodução, o realizador da obra já a criará tendo essa realidade em foco, o seu fazer artístico

Em Schröttker (2012) pode-se entender o porquê de diversas edições e as alterações realizadas nas diversas edições do texto. 1

215

começou a não somente levar em consideração a reprodutibilidade técnica, mas mesmo incluindo-a em seu processo de criação artística. O autor não se detém nesse ponto, pois como tem a história como fio condutor de sua reflexão, ele dirá que: “No decorrer de longos processos históricos, modifica-se não só o modo de existência das coletividades humanas, mas também a sua forma de percepção”. (BENJAMIN, 2012, p. 13) A percepção não é tratada por Benjamin como algo somente natural ou biológica, mas também histórica. Em uma concepção de ser humano enquanto um ser histórico – como é característico da Escola de Frankfurt, é natural que a própria percepção humana seja analisada em um ponto de vista histórico, onde a história também influi no modo como o indivíduo percebe as coisas, já que ele se constrói na história e pela história. A percepção da obra de arte numa época marcada pela reprodutibilidade técnica fará com que o indivíduo aprenda a perceber, e mesmo a apreender, a obra de arte a partir de suas reproduções. A experiência com as reproduções das obras de arte que educarão os sentidos para a realização da experiência-estética. É esse o fenômeno de perda da aura, como tratado por Benjamin, onde não mais existirá uma experiência única e fecunda com o original, já que a experiência se dará com sua reprodução técnica. Pensemos em um quadro como a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Antes, para sua apreensão era necessário estar à frente do quadro, com seu desgaste ao longo do tempo, com as dimensões físicas específicas, numa posição específica na parede do museu. Nos dias de hoje, a percepção desta obra se dá através de reproduções, seja por revistas, livros ou Internet, as quais naturalmente alteram a obra, seja em suas dimensões, seja na possibilidade de aproximar o rosto da reprodução – o que no museu nem sempre se consegue, ainda mais com o a Mona Lisa –, as quais você pode virar, ampliar, ver de ângulos diferentes, sendo que são processos feitos sobre a reprodução e não no original. A relação com a reprodução técnica chega mesmo a tornar desnecessário o contato com o original, sendo a percepção do original, como no caso da Mona Lisa, algo contingente advindo de um interesse pessoal do que necessidade a sua apreensão. Daí a perda da aura da Mona Lisa original, já que a percepção de suas reproduções pelos meios técnicos diversos é suficiente para a realização da experiência estética com a Mona Lisa. Como a percepção do indivíduo vai ser desenvolvida através desse contato com a reprodução, a maneira como ele percebe é diferente daquela maneira das pessoas contemporâneas a da Vinci. Há muitos aspectos possíveis de serem analisados e refletidos neste texto de Benjamin, mas o foco do artigo é sobre as consequências na prática e educação musical. A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA MUSICAL

216

Em um contexto anterior a reprodutibilidade técnica da música, a sua percepção e apreensão se dava através do contato direto com a execução musical. Independente do contexto sociocultural da pessoa, ela escutava música a partir de sua execução, seja por ela mesma ou por estar em um ambiente em que pessoas executam música. Dessa maneira, a escuta musical não é algo tão banal ou cotidiano, necessitando de um evento ou ocorrência que permita o ato de escutar música. Evento que pode ser desde uma cerimônia religiosa, uma festa ou um concerto. Há atividades cotidianas como lavar roupas ou transportar coisas que podem ser oportunidades, por aqueles que estão participando, de executar e perceber a música ao longo do afazer. Nestes contextos, há um certo ritual, pois o evento está plenamente ligado ao processo de execução e percepção musical. Mesmo que seja um partícipe do evento em que a música ocorra, a sua percepção dela está unida ao próprio evento. No barroco, ouvir uma Missa escrita por Bach, por exemplo, implicava em estar inserido no evento religioso em que a música acontecia. Ouvir um cântico de lavadeiras lavando roupa implicava em estar inserido naquele local e no próprio contexto sociocultural das lavadeiras, ou pelo menos a sua volta. Em ambas as situações, o evento e a experiência estética estão plenamente ligados, o que impossibilita, de certa maneira, a nossa percepção destas obras musicais como em sua época, exatamente porque as percebemos, principalmente, através de suas reproduções técnicas e distantes do evento em que elas ocorriam. Antes da reprodutibilidade técnica, a única possibilidade de perceber música sem algum evento, seria se a pessoa produzisse música cantando ou executando algum instrumento. Mesmo assim, a percepção se dá partindo de uma execução, mesmo que seja a própria. Nesse momento, a música é uma arte que existe somente durante sua execução, havendo uma aura nessa execução exatamente porque ao seu final, aquele evento único não mais existe no tempo. Ouvir um concerto de Chopin implicava em apreender a música através de sua execução naquele instante temporal, naquele evento, pois mesmo Chopin executando as mesmas peças em outro contexto, já não era mais a mesma execução, era uma nova experiência estética, já que experiência estética com a música jamais poderia seria ser repetida, já que seria uma nova experiência estética. Pode-se extrapolar isso para toda experiência estética com a música antes de sua reprodutibilidade técnica, independente do contexto sociocultural em que ocorre mesmo extrapolando-se o Ocidente. Seja na África, Ásia, Oceania, entre outros; a experiência estética é um evento que ocorria uma única vez no tempo. Neste contexto, as pessoas aprendiam a perceber e apreender música neste processo onde a execução é única e ligada a um evento. A unicidade de cada experiência musical leva-la a percebê-la nesse prisma de pessoas reais e concretas executando a obra musical.

217

Após o processo de reprodutibilidade técnica, iniciada pelas pianolas e caixinhas de música chegando aos iPods de nosso tempo, a experiência estética com a música se dá através de reproduções particularmente. A primeira consequência desse fator é o desligamento da experiência estética com o evento em que a execução musical ocorre. Pode-se escutar música de concerto, sem estar numa sala de concerto; pode-se escutar uma Missa de Bach, sem estar num evento religioso; podem-se escutar cantos de lavadeiras sem estar à margem de um rio onde mulheres lavam roupa. Não há mais o ritual intrínseco a execução musical, sendo que a apreensão musical ocorre desligada de seu evento gerador. A segunda é que como a reprodução é duradoura, deixa-se de perceber a música enquanto algo que existe somente aquela execução. A reprodução pode ser repetida muitas vezes mudando completamente a relação da pessoa com a execução, que ao invés de ser algo que ocorre unicamente no tempo, torna a experiência estética passível de repetição, o sentido que ela se estabelece primariamente com a reprodução ao ponto da execução musical não é mais o critério da experiência estética e sim a reprodução. O fato de poder voltar a perceber a mesma reprodução leva também a não vivenciar aquela experiência estética em plenitude, podendo dividir-se a atenção entre ela e outro afazer, naturalmente diluindo essa experiência que não é mais única naquela temporalidade, mas compartilhada com outros afazeres. A terceira é que sabendo de antemão que a experiência estética se dará principalmente pela reprodução, a própria criação musical passa a ser realizada para ser reproduzida posteriormente. A criação musical sucessivamente vai não somente levando a reprodução técnica em conta, mas começa a vê-la como um fim a sua criação. A quarta refere-se à própria percepção do músico do que é uma boa execução musical. Anteriormente, essa percepção dava-se pela execução, por aquele momento único e não repetível. Após a reprodução técnica da execução, ela torna-se o critério valorativo para perceber-se uma boa execução. Com o caminhar da história, a reprodução técnica passa a não ser feita através do registro de uma única execução, mas passa-se a registrar uma série de execuções e posteriormente realizar uma montagem com os melhores trechos deste conjunto de execuções, sendo reprodução técnica fruto de uma colagem e montagem de trechos. Consequentemente, o músico não mais quer executar a obra dentro do contexto de uma execução única, mas passa a perceber uma boa execução quando esta se aproxima de uma reprodução feita a partir de uma colagem e montagem de múltiplas execuções. Sendo a reprodução técnica, portanto, uma ilusão e é essa ilusão que se torna o critério de valorativo da execução musical. As consequências para a prática e educação musical se dividirão entre: música folclórica, aqui compreendida como práticas musicais espontâneas de contextos socioculturais; música popular, enquanto a música produzida visando

218

sua reprodutibilidade a partir do início do começo do séc. XX em rádios e gravações; e a música concerto, aquela música pertencente à tradição musical que perpassa dos cantos gregorianos aos compositores contemporâneos. Essa divisão é problemática, mas tem o objetivo de facilitar a análise realizada, não havendo um juízo de qualidade nela, sendo somente uma divisão instrumental para este texto. Este texto não tem a pretensão de esgotar a análise da percepção estética musical partindo das propostas de Benjamin, mas iniciar uma discussão em âmbitos comuns a prática musical e ao seu ensino. MÚSICA FOLCLÓRICA No contexto da reprodutibilidade técnica, a música folclórica desliga-se completamente de seu evento gerador, de maneira que a percepção pelas reproduções destas práticas espontâneas, talvez impeça a sua realização dentro da espontaneidade oque havia antes. Pensemos num exemplo como a prática de quem executa viola caipira em folias de reis, que originalmente eventos onde a música faz parte de um contexto de religiosidade e espontaneidade católica. A busca de instrumentistas executarem as folia de reis desligadas desse evento praticamente impossibilita-a, tornando-a mais uma lembrança de uma prática musical passada do que um retorna a uma experiência estética genuína, a não ser em contextos onde ainda a espontaneidade do evento gerador ocorra. A música folclórica passa a ser registrada com a finalidade de inspiração para criação de música popular, ou de música de concerto, ou para um registro histórico e antropológico. No exemplo da folia de reis, a denominada música caipira advém dessa tradição espontânea, modificada por exigências da reprodutibilidade técnica, como ter um tempo determinado, entre outros. Aprender uma prática folclórica só é possível numa busca de inserção no contexto sociocultural que a gera. Como a pessoa já tem uma formação sociocultural, uma individualidade e toda a complexidade que constituiu uma pessoa, sua busca por inserir-se em outro contexto é possível até certa medida, pois se perceberá aquele contexto partindo-se do contexto anterior, criando uma nova forma de experiência estética, talvez com alguma proximidade a experiência folclórica, mas não igual. MÚSICA POPULAR A partir da reprodutibilidade técnica, surge uma nova forma de criação musical voltada ao rádio, inicialmente, partindo de elementos tonais do folclore como da música de concerto. Essa definição inclui desde a música caipira ao mais sofisticado jazz, passando pela bossa nova, samba, rock, tropicalismo, heavy metal, música instrumental brasileira, entre outros.

219

Este é um caso em que a música é pensada para ser reproduzida tecnicamente, e a própria execução é pautando na sua consequente reprodução técnica. Pode-se ver esse processo no uso cada vez maior de meios eletrônicos, começando com seu uso para amplificação, que a aproximava da reprodução, principalmente no quesito timbre. Busca-se aproximar timbres de instrumentos e a dinâmica das execuções por meios eletrônicos como se fará nas gravações. Nos dias de hoje, chegou-se a deixar instrumentos de lado para utilizar recursos completamente eletrônicos na composição musical. A mudança tímbrica da voz nas execuções, com em shows, é comparada as gravações, que se tornaram o critério valorativo de perceber uma boa execução, sendo que questões fisiológicas, como o envelhecimento ou ocorrências de saúde levam, cada vez mais, a prática do cantor, ou cantora, fingir o canto dublando a reprodução. Portanto, escuta-se a reprodução técnica na própria situação em que se estaria uma execução, que não pode ser mais temporalmente única, mas necessita reproduzir a própria reprodução. Para o educador musical, o conhecimento dos meios de reprodutibilidade torna-se essencial para a sua prática, como conhecer amplificadores, microfones, métodos de captação e edição de som, entre outros. No caso da voz e instrumentos também acústicos, como violão, por exemplo, torna-se difícil exigir dos educandos o trabalho com timbre e com dinâmica, afinal os meios eletrônicos realizariam isso. Tal desafio é enfrentado pelos educadores, mas ignora-se que ele advém da maneira como se aprende a perceber música. O próprio fato dos alunos buscarem reproduzir a reprodução exige um processo de educação que pense nessa questão e mesmo mostre a impossibilidade de reproduzir uma reprodução, uma ilusão, e nem sempre o educador está consciente deste processo. O educador pode tornar-se refém de sua própria percepção ter sido educada a partir de reproduções técnicas, levando-o a criar exigências ilusórias e impraticáveis. MÚSICA DE CONCERTO A música de concerto torna-se um paradoxo, pois vem de uma tradição anterior a reprodutibilidade técnica, mas busca continuá-la no contexto de reprodutibilidade sem conseguir fugir as questões advindas desta. O paradoxo pode ser sentido na música da câmara, a qual originalmente visava à execução por músicos amadores em seus lares, sendo ali o local também de sua percepção. Após a reprodutibilidade, ela passa a não ser percebida através de execuções domésticas, mas em concertos e em reproduções técnicas. Ao invés de percebê-la como uma prática doméstica, passa-se a vê-la como uma prática artística semelhante a uma sinfonia, o que não ocorria na época de sua composição.

220

A música eletrônica, acusmática, concreta, entre outras, são prática da música de concerto que utilizam a técnica de reprodutibilidade como meio de sua produção, o que cria uma nova maneira de perceber a música de concerto. O intérprete cada vez mais busca a perfeição da reprodução advinda do processo de colagem e montagem. Certos erros, antes imperceptíveis devido à unicidade temporal da execução, da distância do músico em relação ao público, tornam-se essenciais de serem corrigidos, já que o processo de reprodução exige aproximarem-se em demasia os microfones dos instrumentos ou das vozes. A ilusão de chegar-se a perfeição da reprodução gera exigências na execução musical e no aprendizado musical que são simplesmente impossíveis e ilusórias, por advirem do uso da reprodução como critério valorativo. A própria exigência do público perante os intérpretes de chegarem a esta perfeição ilusória de sua reprodução técnica, torna-se uma exigência impossível de ser satisfeita. A prática da música de concerto, mesmo nos aspectos administrativos e financeiros, exige um público que valorize a experiência estética como uma execução única no tempo, exigindo um processo de educação e ressignificação dessa execução para o público de nosso contexto, que não percebe este paradoxo, sendo que mesmo os próprios músicos podem não compreendê-lo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Primeiramente, analisou-se o contexto em que Walter Benjamin escreve no círculo dos filósofos da Escola de Frankfurt onde a materialidade histórica e a genealogia da razão moderna são os fios condutores da reificação do humano e da busca de experiências promotoras de ruptura a reificação. Em seguida analisou-se o texto de Benjamin para compreender como a reprodutibilidade técnica altera produção da obra de arte com sua própria percepção, já que ela se dará a partir das reproduções e não das obras originais. Tal mudança leva a perda da aura da obra original em sua unicidade e originalidade. Na seção seguinte, aprofundaram-se as perspectivas apontadas anteriormente na experiência estética musical delineando algumas consequências, sem a pretensão de esgotá-las. Principalmente, com a percepção da obra musical é educada a partir de suas reproduções, podendo ser feitas com o uso de técnicas de colagem e montagem, e deslocadas de seu evento gerador. Com isso, perde-se a percepção da execução musical como um evento único no tempo e o critério valorativo torna-se a própria reprodução. Nas próximas seções, delinearam-se algumas consequências para a prática música na música folclórica, compreendida como uma produção espontânea em contextos socioculturais específicos; música popular, compreendida como toda música que visa sua reprodução técnica, o que incluiu da música caipira ao mais sofisticado jazz; e a música de concerto, como uma tradição iniciada com o canto

221

gregoriano e estendendo-se aos dias de hoje. Os grandes desafios é a transição do critério valorativo da execução, antes única no tempo, para a reprodução concebida por técnicas como colagem e montagem, e as mudanças de percepção decorrentes desse processo. Não há pretensão de esgotar o assunto tratado, mas de iniciar uma discussão sobre estes aspectos. O ensino e a prática musical exigem a valorização da execução musical, mas como educadores e educandos tem sua percepção da obra musical advinda das reproduções técnicas principalmente, traz a necessidade de repensar o próprio conceito de educação musical.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Tradução Marijane Lisboa In: CAPISTRANO, T. [Org.]. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 9-40. BUCK-MORSS, S. Estética e anestética: Uma reconsideração de A obra de arte de Walter benjamin. Tradução Vera Ribeiro In: CAPISTRANO, T. [Org.]. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 155-104. FUBINI, E. Estética da Música. Tradução Sandra Escobar. Lisboa: Edições 70, 2008. 183 p. (Convite à Música) MATOS, O. C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo, Moderna, 1993. 127 p. (Coleção Logus) SCHRÖTTKER, D. Comentários sobre Benjamin e a Obra de Arte. Tradução Marijane Lisboa In: In: CAPISTRANO, T. [Org.]. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 41-154.

222

COMPÊNDIO MUSICAL DE DESCARTES: CLAREZA E DISTINÇÃO NA ESTÉTICA Tiago de Lima Castro1 Graduando em Filosofia pela Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo Prof. Dr. João Epifânio Regis Lima2 Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo Resumo: O artigo analisa a obra Compendium Musicae (1618) de Descartes, tendo como eixo o racionalismo estético intrínseco a ela. Ele compreende música como tendo a finalidade de provocar paixões e movimentos na alma, mas para isso utiliza a razão como meio de análise do som, que é meio utilizado pela música, para chegar a regras estilísticas para a composição musical. Dessa forma, possibilita-se analisar o racionalismo estético na música como o próprio desenvolvimento da razão na modernidade, não somente como núcleo epistêmico, mas também como núcleo estético.

Palavras-chave: Descartes; música; racionalismo estético; estética; filosofia, modernidade

INTRODUÇÃO Esta pesquisa se origina da busca de compreensão do processo de estabelecimento do racionalismo no século XVII, centrando-se no domínio da estética, onde, a princípio, este domínio estaria mais ligado à sensibilidade do que a razão, mas com o desenvolvimento do racionalismo estético, torna-se necessário compreender esse processo. A obra Compendium Musicae (1618), de Descartes, merece reflexão porque expressa o racionalismo estético francês do século XVII, em sua assimilação da ideia de belo com a ideia de verdade (BAYER, 1978), onde o belo se expressa através da clareza e distinção que regem a obra de arte, sendo o prazer estético derivado dessa organização racional da obra e não somente da sensibilidade. Nesta obra, Descartes realiza uma investigação sobre música através das relações matemáticas entre os sons, considerando-as como geradoras dos efeitos nos sentidos do sujeito que aprecia a obra musical. O autor compreende a música Graduando em Filosofia pela Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso com vistas à obtenção de grau de Licenciatura em Filosofia, sob a orientação Prof. Dr. João Epifânio Regis Lima. 2 Possui doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, na área de Estética (2002), mestrado em Psicologia pela Universidade de São Paulo - Instituto de Psicologia (1995) e graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo - Instituto de Ciências Biológicas (1986), Atualmente é professor titular da Universidade Metodista de São Paulo. Atua também no Ensino Médio (Colégio Bandeirantes). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em ESTÉTICA e HISTÓRIA DA ARTE, atuando também em FILOSOFIA DA CIÊNCIA. 1

223

como tendo a finalidade, através do som, “[...] de deleitar e provocar-nos paixões diversas [...]” 3 (DESCARTES, 2001, p. 55), mas utilizando a razão tanto para investigar esse processo, como para organizar a própria composição musical. Veremos que a forma como o autor realiza esta pesquisa segue o modelo geométrico, como faz em obras como o Discurso do Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641). Assim, nosso objetivo com este estudo é compreender como o autor analisa a música compreendendo-a como tendo a finalidade de movimentar afetos, paixões no sujeito através do som, mas utilizando-se da razão como faculdade de compreensão das relações entre os sons e, ao mesmo tempo, propondo que é a organização racional e criteriosa destes sons que permite o movimento de afetos e paixões no sujeito. Para tanto, o texto que se segue está organizado em três seções principais. A primeira delas (O racionalismo estético francês do século XVII) tem como objetivo colocar um panorama geral sobre o uso da razão como núcleo estético das artes. A segunda seção (A razão cartesiana) concentra-se em descrever a maneira como Descartes compreende a razão, tendo como fio condutor o critério de clareza e distinção. Na terceira seção (Compendium Musicae), e suas subseções, há uma análise de cada seção do texto em como expressam elementos do racionalismo estético, e de sua organização, que é semelhante à de suas obras mais conhecidas, onde, primeiramente, há um processo de busca por um fundamento, para então deduzir as consequências deste fundamento para compreensão dos problemas discutidos na obra. Na última seção (A influência do Compendium Musicae), há uma breve reflexão sobre a influência desta obra na música e na modernidade em geral. O RACIONALISMO ESTÉTICO FRANCÊS DO SÉCULO XVII Este foi um momento em que as artes apresentaram a razão como núcleo estético simultaneamente ao processo de estabelecimento da razão como núcleo epistêmico. A ideia de arte e belo “[...] consistem essencialmente na representação mais direta, mais pura, mais clara e mais distinta da verdade” (BAYER, 1978, p. 129). Neste contexto, divide-se o homem em duas esferas, a da sensibilidade e da racionalidade, sendo esta considerada como superior à outra, e, portanto, deve-se dirigir a sensibilidade através da razão, subordinando as artes às regras e leis de caráter racional.

3

Foi utilizada uma tradução espanhola da obra, sendo as citações traduções nossas.

224

Não é de se estranhar que Descartes, como fundador da razão moderna, ao debruçar-se sobre a música, também expressará as ideias de mensuração, medida e proporção, mediadas por critérios de clareza e distinção, como se verá adiante. É importante ressaltar que nesta época mantêm-se uma clara divisão entre o músico teórico, o que compõe e reflete sobre música; e o músico prático, que efetivamente executa a obra música (FUBINI, 2008). A RAZÃO CARTESIANA Descartes, em seus estudos no colégio jesuíta de La Flèche, estudou Lógica, compreendida como os procedimentos silogísticos, ou seja, procedimentos linguísticos para inferir uma conclusão partindo-se de duas premissas como maneira de demonstrar uma proposição, mas a qual ele considerava “[...] completamente estéril” (SILVA, 2006, p. 30), por ser uma técnica útil para expor conhecimento, mas não no processo de investigação. Devido a este caráter, desde o colégio, Descartes teve preferência pela matemática (GAUKROGER, 1999; RODIS-LEWIS, 1995), pois seu método permite a perscrutação de novas verdades de maneira clara e distinta. 4 Como a matemática tem aplicações específicas aos números e formas geométricas, a grande busca do autor é conseguir utilizar a matemática para explicar fenômenos físicos, para além da utilização da ideia de clareza e distinção no uso da linguagem. 5 A ideia de clareza e distinção em Descartes tinha o sentido de “[...] nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” (DESCARTES, 1973a, p. 45). Todo o método cartesiano busca chegar até ideias que apresentam clareza e distinção, que, à semelhança da geometria, são apreendidas de maneira simples e imediata (SILVA, 2006). Partindo de tais ideias, podem-se formular ideias mais complexas, mas desde que amparadas por este sedimento. COMPENDIUM MUSICAE Esta é uma obra de juventude, escrita em 1618 devido ao contato de Descartes com o físico e matemático Isaac Beeckman (GAUKROGER, 1999; Segundo Gaukroger (1999), a crítica de Descartes teria origem na maneira como o silogismo era explicado pelos manuais jesuítas, que seria uma teoria psicológica para regular o pensamento, dessa forma, composta de regras exteriores ao próprio processo do pensamento, ou seja, “[...] uma explicação de como a mente deveria funcionar” (GAUKROGER, 1999, p. 83). 5 Na obra Regras para a Direção do Espírito (1628), principalmente na terceira regra, vemos o autor utilizando exemplos matemáticos para explicar os termos intuição e dedução, o que Gaukroger (1999) aborda como o processo de busca do método que resultará em seu Discurso do Método (1637). 4

225

RODIS-LEWIS, 1995). Esta obra fora publicada postumamente e, mesmo sendo anterior aos textos em que Descartes expõe seu método, já se podem ver elementos de clareza e distinção em sua análise da música. Nos próximos tópicos, será analisado o racionalismo estético expresso pelo autor em cada seção do texto. SEU OBJETO É O SOM No título da seção, o autor aponta o som como sendo o objeto da música, dizendo que sua finalidade é “[...] deleitar e provocar-nos paixões6 diversas” (DESCARTES, 2001, p. 55). Ao colocar no próprio som o objeto de análise, o autor demonstra que seguirá por uma análise de algo que pode ser mensurável, mesmo tendo o objetivo de provocar paixões, o que se relaciona diretamente à sensibilidade. Destarte, mesmo a música, sem seu papel de provocar paixões, pode receber uma análise racional, o que expressa o racionalismo estético do século XVII no próprio início de seu texto. Em seguida, o autor coloca duas propriedades do som como responsáveis por provocar as paixões, que são a duração ou tempo, ou seja, o tempo em que um som é produzido, e a altura, ou seja, a propriedade do som ser mais grave ou mais agudo. Estas duas propriedades escolhidas são possíveis de serem medidas, ou seja, analisadas de maneira clara e distinta. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS O autor começa lembrando seu leitor que todo sentido pode provocar algum prazer, mas para isso o objeto deve ter certa proporção em relação ao sentido correspondente. Exemplifica com o estrondo dos mosquetes ou dos trovões, que não seria apropriado à música por prejudicar o ouvido. Além desta proporção, ele continua trazendo o elemento de clareza do objeto, o qual não deve ser tão complexo a ponto de o sentido não conseguir distinguir com clareza suas linhas. Também comenta que o sentido percebe melhor o objeto em que a diferença entre suas partes é menor, e para quanto maior a proporção entre as partes, maior a clareza do objeto. Esta proporção, segundo o autor, necessita ser aritmética e não geométrica, já que a primeira – a qual exemplifica com linhas desenhadas – tem diferenças proporcionais, ou seja, podem ser claramente diferenciadas, diferentemente das proporções geométricas que não podem ser apreendidas com clareza pelos sentidos. Dessa maneira, o critério de clareza realiza-se na arte em conjunto com o critério da proporção aritmética, com a qual as partes do objeto são organizadas. 6

O termo utilizado na edição na edição original para paixões, em latim, é affectus.

226

Mesmo assim, o autor adverte que “[...] os objetos dos sentidos mais agradáveis ao espírito” (DESCARTES, 2001, p. 60)7 não são nem os percebidos com muita facilidade, o que naturalmente atrai os sentidos, nem aqueles percebidos com muita dificuldade, que cansam o próprio sentido. Vemos nesta consideração a exigência do equilíbrio, outro elemento característico do racionalismo estético do século XVII. Em seguida, ele assinala que a variedade é sempre agradável, e coloca estas considerações como prévias ao desenvolvimento do texto, antes de analisar a propriedade da duração. Tais considerações formam o fundamento racional para a análise pormenorizada de cada propriedade do som, de forma que cada sessão dialogará metodicamente com estas considerações. Tal modo de proceder é fruto direto do modelo geométrico por lembrarem o processo de demonstração de um teorema da geometria, à semelhança do que é feito nas Meditações Metafísicas (1641). DO NÚMERO OU TEMPO A SER OBSERVADO NOS SONS Partindo das considerações prévias, o tempo musical é concebido como unidades iguais que se repetem, onde estas unidades podem ter uma divisão dupla ou tripla, seguindo as ideias previamente colocadas, ou seja, de proporções aritméticas e simples para melhor apreensão pelos sentidos. Daí ele comentar que se estas medidas fossem desiguais não seriam facilmente reconhecidas pelo ouvido, e a divisão em cinco partes levaria a grandes problemas para cantá-las. Ao perguntar-se sobre a possibilidade se usar quatro divisões de uma unidade, ou mesmo oito, ele nega seu uso por não serem números primos entre si, mas somente múltiplos. Também avança a discussão colocando que ao se colocar uma unidade inteira seguida por dois sons que, juntos, equivalem a metade da unidade, têm-se uma proporção matemática que torna possível seu uso, agora, ao seguir de uma unidade inteira um som que equivale a um quarto desta unidade, perde-se a proporção, portanto, não permitindo o seu uso. Desta análise, vemos que é a ideia de proporção e clareza, já que se utilizam proporções simples, pois são mais bem apreendidas pelos sentidos, segundo o autor. Ele realiza uma análise onde o tempo é marcado por uma percussão – na época, os músicos ensaiavam com uma batida constante realizada pelo regente batendo uma madeira no chão, em épocas mais recentes, passou-se a utilizar a batuta para o mesmo fim – que se expressa no instrumento. Ele exemplifica com a flauta, começando a executar a música com um somam pouco mais forte, o que

É interessante notar que o fundamento da subjetividade já ronda o pensamento de Descartes, mesmo de maneira incipiente comparado ao Discurso do Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641). 7

227

convencionou chamar de acentuação rítmica, de maneira a tornar claro ao ouvido o tempo musical, trazendo clareza na experiência estética. O autor também propõe que esta marcação do tempo musical leva o corpo a movimentar-se, mas não somente pelo movimento do ar, mas por impulsionar nosso espírito, levando-nos à dança. Neste ponto, traz o elemento de clareza e distinção para compreensão da dança. Ele também sugere que medidas mais lentas, ou seja, ritmos mais lentos levam a tristeza, languidez, medo, soberba, entre outros; ao mesmo tempo propondo que medidas mais rápidas levam a alegria e paixões mais vivas. Como ele não tem maiores conhecimentos sobre os movimentos da alma, prefere não dizer mais nada sobre a influência do ritmo sobre as paixões, mas não deixa de enfatizar que o tempo tem tamanho efeito que sua medida por si mesmo pode produzir qualquer prazer, exemplificando com o tambor militar. DA DIVERSIDADE DOS SONS RELATIVOS AO AGUDO E AO GRAVE Deste ponto em diante, Descartes analisará a propriedade da altura do som, da qual derivam-se as notas musicais, por ser a propriedade do som que permite sons graves e agudos. Ele divide esta diversidade em consonância, sons emitidos simultaneamente por vozes ou instrumentos diferentes; graus, que são sons emitidos sucessivamente por uma mesma voz – pode-se lembrar da melodia como exemplo; e as dissonâncias, que diferem das consonâncias pelo efeito não tão agradável ao ouvido. Para haver equilíbrio, ele considera que a diversidade de sons nas consonâncias deve ser menor que nos graus, para não cansar o ouvido por aqueles serem emitidos simultaneamente. Em relação às dissonâncias, propõe analisar sua diferença com os graus que são permitidos quando em relação. Ele passará a sessões específicas para cada um dos casos. DAS CONSONÂNCIAS Inicialmente, ele assinala que não considera o uníssono – que ocorre quando duas ou mais vozes ou instrumentos emitem o mesmo som – como consonância, já que entre eles não há relação de grave ou agudo, mas que esta se relaciona com as consonâncias à semelhança da unidade que se relaciona com os números. A posição acima advém de que na relação de grave e agudo, o grave tem predominância, pois em si mesmo, o som grave contém as notas agudas. Ele alude ao fato de, ao tocar uma corda grave no alaúde, as cordas agudas em intervalos de oitava ou de quinta vibrarem espontaneamente. Partindo dessa experiência, ele propõe que, ao dividir a corda em partes iguais, trazendo novamente as

228

considerações iniciais sobre a proporção aritmética em unidades iguais, derivamse os sons das demais cordas. Ao dividir o comprimento de uma corda por dois, têm-se o intervalo de oitava, a primeira das consonâncias; ao dividir-se o comprimento da corda por três partes iguais, surgem três sons agudos, as consonâncias de décima-segunda e de quinta. Ele comenta poder dividir em mais partes, em quatro, cinco ou seis, mas que se continuasse dividindo, o ouvido não distinguiria claramente as diferenças entre estes sons. Isso mostra que, ao partir das mesmas regras inicias, como feito com o tempo, têm-se de maneira clara e distinta a organização dos intervalos musicais, partindo da ideia de proporção aritmética de unidades iguais, mas tendo o equilíbrio de respeitar os limites do ouvido na percepção dos sons, para haver clareza na apreensão do objeto pelo sentido da audição. DA OITAVA Primeiramente, Descartes descreve experiências com a flauta e o alaúde para provar que, ao escutar um som grave, tanto sua oitava está presente de maneira discreta como ao soar dois sons em relações de oitava, a nota mais grave soa com maior intensidade. Estes dados empíricos somente corroboram o que autor analisou no item anterior através das proporções. Para isso, ele voltará a dividir proporcionalmente uma corda, tanto explicando o efeito descrito acima como mostrando como as divisões proporcionais da corda geram as demais consonâncias, inclusive possibilitando a classificação destas consonâncias. Ele divide uma corda em três partes iguais e, com isso, têm-se a quinta, em um terço da corda, e a duodécima com dois terços. Ao analisar as proporções dessa divisão da oitava em três partes, percebe-se que a duodécima é a união de uma quinta com uma oitava. Desta maneira, a quinta torna-se uma derivação racional da oitava. Ele também percebe que, ao manter-se a proporção, mesmo duplicando, como em divisões por seis e por nove, também derivam outras quintas e duodécimas. Da mesma maneira, ao dividir-se a oitava em dois, ou seus múltiplos quatro e oito, também oitavas são geradas. Destas divisões ele classifica que cada consonância gera três espécies diferentes: a primeira simples, a segunda formada de uma simples e uma oitava e a terceira, de duas simples e duas oitavas. Ele não continua o processo, pois os números de proporções se multiplicariam excessivamente, o que romperia a regra inicial do equilíbrio perante os sentidos.

229

Continuando o processo de derivação de consonâncias, ele chega à terça na proporção quatro por cinco; na quarta, na proporção três por quatro; nas sextas maiores, na proporção três por cinco; nas terças menores, na proporção cinco por seis; e nas sextas menores, na proporção cinco por oito. Estes intervalos funcionam de maneira diferente na sua relação numérica, pois enquanto as proporções de quintas e oitavas, mesmo se duplicadas, continuam a gerar estes intervalos, nesse caso pode-se duplicar somente o segundo número da proporção, o que Descartes analisa, dentro de seu método de dividir a consonância de oitava em unidades iguais para daí derivarem outras consonâncias, como sendo consonâncias por acidente. O autor demonstra preocupação de que sua organização numérica seja somente fruto de sua imaginação, então busca uma experiência empírica com o alaúde, ou qualquer instrumento, na qual, ao tocar uma corda grave, esta faz ressoar cordas mais agudas desde que estejam em intervalos de oitava e de quinta. Novamente, o elemento empírico serve somente como argumento, sendo prioritariamente importante ao autor a própria relação matemática nas proporções. Daí ele poder classificar as consonâncias em perfeitas, a quinta e a oitava; e em imperfeitas, todas as demais, sendo as perfeitas diretamente derivadas da oitava e as imperfeitas derivadas por acidente. Para continuar sua argumentação, o autor traça uma linha representando uma oitava e transformando-a em círculo, compondo círculos com todos os intervalos, mas de maneira que, ao vê-lo, vemos o diapasão, tido como sinônimo da oitava no centro, e, em volta tendo os demais intervalos, mas dentro das proporções, demonstrando agora, por meio de um desenho geométrico9, que cada intervalo é somente uma proporção interna da oitava. Daí ele classifica todas as consonâncias também em três gêneros: o primeiro deriva-se do uníssono, que são as oitavas; o segundo nascem da divisão da própria oitava em razões iguais, sendo estas as quintas e quartas; e o terceiro é derivado das divisões da própria quinta, ou seja, todas as demais consonâncias. Toda esta classificação relaciona-se diretamente com a prática musical da época10, onde as consonâncias de oitava e de quinta eram usadas de maneira maior8,

Na tradução que estamos utilizando, utiliza-se o termo espanhol de ditono, que pode ser traduzido por dois tons. Como em português utiliza-se normalmente o termo terça maior para falar do intervalo de dois tons, demos preferência pelo uso deste termo. 9 Convém esclarecer que este desenho não tem um caráter meramente ilustrativo em sua argumentação, a possibilidade de representar a relação dos intervalos de maneira geométrica é uma prova da possibilidade do uso da razão, à semelhança da geometria, para a explicação dos efeitos da música. 10 Não é o objetivo de o presente artigo analisar a relação desta obra com a prática musical da época, ou mesmo colocá-la em debate com outros tratados teóricos. A alusão à época tem o objetivo de esclarecer a necessidade do autor de relacionar as demais consonâncias com a oitava e a quinta. 8

230

prioritária em relação às demais. Tal prática não fora derivada de uma explicação racional de caráter universal, sendo práticas correntes nas diversas escolas da época. DA QUINTA Ao entrar na análise da quinta, o autor partirá das considerações prévias sobre o equilíbrio, em nem usar aquilo que cansa o sentido nem aquilo que se apresenta com muita facilidade ao sentido, buscando um equilíbrio entre estes extremos. No caso da quinta, como ela pertence ao segundo gênero de consonâncias, estando, portanto, em posição central, daí uma explicação racional para o seu maior uso e de ser mais agradável aos ouvidos. Como ele classificou a quinta no gênero de consonância, mas dividida em três espécies diferentes, recomenda a utilização da duodécima, por ser a segunda espécie da consonância de quinta, e, portanto, está entre as demais satisfazendo a regra do equilíbrio, constante nas considerações prévias. Levando em conta a possibilidade de receber uma contra-argumentação de que há momentos em que se usa somente a consonância de oitava, como quando duas pessoas cantam uma voz aguda e outra grave dentro deste intervalo, ele explica que é natural, pois a oitava contém em si o uníssono, mas que a quinta “[...] ocupa mais plenamente o ouvido” (DESCARTES, 2001, p. 77) e que o uso constante da consonância de oitava entedia o ouvido pela falta de variedade, complementando o argumento do equilíbrio. DA QUARTA O autor considera este intervalo o mais improdutivo da música, sendo somente usado por acidente ou com a ajuda de outros intervalos. O motivo colocado é que sua proximidade com a quinta a faz perder sua beleza. Dentro de sua análise das proporções, partindo do princípio que o uníssono faz com que ressoe sua oitava no alaúde, e da mesma forma quando se escuta a quinta se apresenta naturalmente seu complemento dentro da oitava, que é a quarta. Daí ele classificar a quarta como “[...] a sombra da quinta [...]” (DESCARTES, 2011, p. 79). Como, no item anterior, a quinta fora colocada como o principal intervalo utilizado, mas seguindo a ideia de equilíbrio, os demais intervalos têm a função de fazer variações sobre o intervalo de quinta para não cansar o ouvido, de maneira que pela proximidade da quarta com quinta, ele classifica seu efeito como desagradável, já que seria como se uma sombra, ou imagem, fosse colocada no lugar do corpo. Tal ideia perpassa pelo conceito de clareza, pois se a quinta é naturalmente superior em toda argumentação tratada, e a quarta é muito

231

próxima, perde-se a clareza da quinta ao utilizá-la, daí seu uso somente em casos muito específicos e com a ajuda de outras consonâncias. DA TERÇA MAIOR, DA TERÇA MENOR E DAS SEXTAS Inicialmente o autor relembra que a análise da perfeição de uma consonância não depende somente de si mesma, mas de seus harmônicos, ou seja, dos sons ouvidos por ressonância que sempre a complementam dentro da relação de oitava. Esse ponto de partida assinala a necessidade da tendência de buscar um fundamento único para a perfeição da consonância, do qual derivam-se as diversas considerações sobre as demais consonâncias, e que tal sistema sempre obedeça um processo geométrico de proporções. Começará com a terça maior, que seria tida como mais perfeita do que a quarta devido ao valor de sua proporção, quatro por cinco, ser menor do que a quarta, três por quarto. Daí ela ser preferível à quarta. Como ela nasce da terça menor, em analogia ao processo utilizado na quarta, por consequência, dentro das propostas do autor, ela é menos perfeita que a terça maior. O complemento da terça menor, para gerar a oitava, gera a sexta maior, e da mesma maneira a sexta menor surge como complemento da terça maior. Tais intervalos são mais imperfeitos do que os anteriores, mas têm a função de trazer variedade à quinta, que, se repetida continuamente, causa cansaço ao sentido. Daí, para haver maior variedade – deve-se lembrar que estas colocações derivam-se diretamente das Considerações Prévias – a perfeição dos intervalos sempre relativa ao intervalo anterior. O autor comenta que, partindo destes princípios, pode-se deduzir as capacidades que têm as consonâncias de movimentar as paixões, mas evita tal discussão por sua extensão. Coloca que os músicos práticos perceberam que a terça maior e a sexta maior são mais agradáveis que a terça menor e sexta menor, o que se pode deduzir da explicação apresentada. Vemos neste ponto a confiança de Descartes na explicação racional, já que ela explicaria a escolha que os músicos práticos fizeram pela própria prática musical. Ao propor que por estes princípios poderiam estudar-se os efeitos das consonâncias em movimentar paixões, vemos aí a razão como núcleo estético da música, já que as paixões geradas são meramente efeitos dessa organização racional dos sons. DOS GRAUS OU TONS MUSICAIS Ao analisar os graus ou tons musicais, dos quais se utiliza para fazer melodias, Descartes busca derivá-las das consonâncias tratadas nas seções anteriores. Ele argumenta que, ao passar de uma consonância a outra, as

232

diferenças entre as notas que as constituem geram os graus, que têm a função tanto de realizar a transição entre consonâncias quanto de permitir que se divida a melodia em graus que possibilitem que a voz cante com maior comodidade, gerando a melodia. Neste aspecto, vemos que, para realizar uma explanação racional, Descartes utiliza as consonâncias como fundamento do qual deve derivar-se as demais explicações.11 Ele começa dizendo que podemos classificar os graus em quatro tipos: tom maior, na proporção um por nove; tom menor, na proporção um por dez; semitom maior, na proporção um por dezesseis; e o semitom menor, na proporção um por vinte e cinco12. Outro aspecto deste racionalismo estético é partir de quatro intervalos básicos, advindos de uma proporção matemática, para daí explicar a escala diatônica. Seguindo o fundamento utilizado nas seções anteriores, ou seja, a oitava, ele coloca a divisão da oitava em terça maior, terça menor e quarta. Ao transformar estas consonâncias em tons musicais, realiza-se a seguinte divisão: a terça maior, em tom maior e tom menor; a terça menor, em tom maior e semitom maior; e a quarta, em terça menor e tom menor, sendo esta terça menor novamente dividida em tom maior e semitom maior; gerando uma estrutura de graus na oitava em que esta era composta de três tons maiores, dois tons menores e dois semitons maiores. Nesta divisão racional, ele argumenta que os tons mais agudos exigem um sopro com maior força que os graves, o mesmo ocorrendo ao tocar um som agudo no alaúde, exigindo mais força, fazendo com que o som golpeie o ouvido com maior intensidade, também recordando que a proporção dos sons agudos é mais complexa que a dos graves. Ele propõe levar-se isso em conta na ideia do equilíbrio, outro elemento do racionalismo estético, para utilizar os intervalos entre os graus de maneira a não gerar sons que incomodem o ouvido. Novamente trazendo a ideia de equilíbrio colocando a necessidade de utilizar os graus como forma de equilibrar as desigualdades entre as consonâncias, de maneira que a experiência estética advém deste equilíbrio racional. Utilizando-se das proporções em busca de conseguir proporções que não desagradem o ouvido, chega-se à escala ut (chamado atualmente de dó), ré, mi, fá, sol e lá; sendo que se estruturam de maneira que entre ut e ré, há um tom menor; entre ré e mi, um tom maior; entre mi e fá, um semitom maior; entre fá e sol, um tom maior; e entre sol e lá, um tom menor. Por mais que ele chegue à prática Ao pensar a história da música, o ato de colocar como principal importância as consonâncias, ou seja, sons emitidos simultaneamente, propiciou o processo de verticalização da música, onde se pode ver que o estabelecimento da Harmonia, como compreendida ainda nos dias de hoje, foi possível graças ao racionalismo estético do século XVII. 12 Esta nomenclatura não é mais utilizada nos dias de hoje, por se utilizar o sistema de afinação temperado. Veja mais informações em Kayama e Pacheco (2003). 11

233

musical da época com esta estruturação, ela não advém de uma análise empírica desta prática, mas sim de um processo racional, à semelhança da geometria, em que é através da razão que se chega à explicação harmônica. Utilizando os mesmos princípios, também as alterações possíveis de cada grau advêm da ideia do equilíbrio e simplicidade das proporções, que gera equilíbrio e simplicidade na execução musical, sendo esta sempre consequente das explicações racionais, e não o contrário. Ao final da seção, Descartes desenvolve as proporções entre os tons para divisão de cordas de um instrumento. O tradutor comenta, em nota de rodapé, que Descartes utiliza também para descrição de um instrumento, um “[...] bandolim [...]” (DESCARTES, 2001, p. 96), construído com precisão matemática. DAS DISSONÂNCIAS Descartes inicia dizendo que os intervalos não comentados são as dissonâncias, os quais são evitados na composição musical. Novamente, tais considerações dialogam com a prática musical da época, mas o fio condutor da explanação é a razão através dos fundamentos das Considerações Prévias. Ele inicia classificando as dissonâncias em três gêneros. O primeiro gênero, originado da oitava e dos graus, são as sétimas e nonas, sendo a sétima uma oitava sem um grau, e a nona uma oitava mais um grau. Ambas dividem-se entre maior, menor e mínima. O motivo de não utilizá-las melodicamente, segundo Descartes, é o grande esforço necessário de executar o som mais grave e depois o mais agudo, já que estes intervalos, por terem uma distância grande também causarão maior dificuldade de percepção pelos sentidos, quebrando a ideia de simplicidade e equilíbrio. O segundo gênero, que é diferença entre tom maior e tom menor, o schisma, atualmente chamado de coma, o qual tem um intervalo tão pequeno, levando a diferenças numéricas tão pequenas nestes sons, sendo difíceis, portanto, de perceber, que podem até ser utilizados em conjunto com as consonâncias, para trazer variedade. Aqui o autor dialoga com seus fundamentos, em que a variedade gera beleza, mas desde que utilizada com o equilíbrio. O terceiro gênero, o trítono e a falsa quinta, os quais apresentam proporções muito complexas, o que desagrada o ouvido, e ao compará-la com as consonâncias mais próximas, vê-se a diferença de doçura destas em relação ao trítono e a falsa quinta causada no ouvido, devido sua complexidade numérica. E ao finalizar as explicações das propriedades do som, que toda variedade possível de utilização na música nascem dos números dois, três e cinco, e das divisões por estes, sendo aí a unidade à qual se pode reduzir racionalmente, e da qual se pode deduzir todo o material musical. Este fundamento racional expressa tanto uma obsessão cartesiana pela racionalização do conhecimento e da própria arte, no caso a música, já que

234

também as Meditações Metafísicas (1641) e o Discurso do Método (1637) apresentam a mesma busca de um fundamento claro e evidente pelo qual se pode alinhar e deduzir todo o conhecimento, à semelhança de um teorema geométrico. Também vemos um percurso similar, pois até aqui Descartes vai buscando estes fundamentos na análise das duas propriedades do som, e a partir de agora delineará dedutivamente as consequências de sua descoberta para a prática da composição musical. DA MANEIRA DE COMPOR E DOS MODOS Primeiramente ele propõe três princípios: que todos os sons emitidos devem ter a distância entre si de consonâncias, podendo usar a quarta quando não ocorre no baixo; que na mesma voz mova-se por graus ou consonâncias somente; e que em nenhuma circunstância se utilize o trítono e a falsa quinta. Para haver maior “[...] elegância e simetria [...]” (DESCARTES, 2001, p. 102) ele dará algumas recomendações estilísticas. Em tal ponto, vemos com clareza o racionalismo estético, já que agora não se trata de estruturar uma teoria musical, e sim de derivar racionalmente elementos estilísticos utilizandose da simetria, clareza e proporção. Inicialmente, propõe começar pelas consonâncias mais perfeitas, já que chamam a atenção e mesmo começar por uma pausa (silêncio) em alguma voz, pois o fato de não ouvir-se esta voz, e logo em seguida a ouvir, já que uma voz calada que começa a cantar traz variedade e novidade. Também diz que nunca deve haver séries sucessivas de quintas e oitavas, pois sua perfeição numérica satisfaz tão plenamente o ouvido levando-o a perder o interesse, diferente de quando se intercala oitavas e quintas com terças e sextas – estas podendo ser utilizadas sucessivamente, como são numericamente menos perfeitas, a atenção se mantém, já que o ouvido procura escutar constantemente uma consonância mais perfeita que estas duas. Propõe que os movimentos das diferentes vozes ocorram por movimentos contrários, gerando variedade e propiciando sair-se de consonâncias perfeitas para aquelas menos perfeitas. E cada voz, preferencialmente, deve mover-se por graus ao invés de realizar saltos. Recomenda que ao chegar-se a uma consonância perfeita, a quinta e a oitava, preferencialmente se utilize a anterior mais próxima. Ele explana esta regra com a ideia que ao ouvir uma consonância não tão perfeita, o ouvido espera pela consonância perfeita, daí essa regra é seguir o impulso natural do ouvido. Mas, ele adverte que as minúcias deste procedimento são algo que os músicos práticos podem verificar por si mesmos, já que esta regra varia em cada situação, daí ele contar com a experiência dos músicos práticos, e da possibilidade da própria dedução destes partindo das regras postas anteriormente.

235

Ao final da peça o ouvido deve sentir-se plenamente satisfeito e, para isso, deve-se utilizar de procedimentos que encaminhem a uma consonância perfeita, que os músicos práticos denominavam cadências. É interessante que ele cita um teórico da época, Zarlino, que havia feito tabelas enumerando tais procedimentos, mas Descartes diz que as mais plausíveis podem ser deduzidas naturalmente dos princípios expostos anteriormente. Depois, termina esta análise recomendando que as peças ocorram dentro de modos, que ele explicará na seção seguinte. Antes de falar sobre os modos, partindo dos princípios já trabalhados anteriormente, ele fará considerações sobre o contraponto a quatro vozes13, focando agora na tarefa de cada voz para a composição musical. A primeira voz, e a mais grave, é o baixo, sendo a principal e que suporta o movimento das demais vozes, as quais normalmente movem-se por saltos, e não por graus, dando a explicação racional de que o movimento por graus choca menos o ouvido, e como esta é uma voz mais grave, não causa tanto desagrado e essa diferença mantém equilíbrio na peça como um todo. A segunda voz, o tenor, por estar próxima ao baixo, funciona como um nervo que sustenta os demais membros da peça, daí ele recomendar que esta siga preferencialmente por graus, para que sua parte tenha maior unidade e distinção das demais vozes. O contratenor, a terceira voz, como está entre duas vozes que se movimentam prioritariamente por graus, deve manter em saltos, para haver equilíbrio e proporção, de modo que, de quatro vozes, duas movimentam-se prioritariamente por saltos e as outras duas por graus. A superior, a quarta e mais aguda voz, opõe-se naturalmente ao baixo, de maneira que tende a realizar movimentos contrários a este e por graus, cumprindo o ideal de clareza e equilíbrio. O fato de na prática musical esta voz ser mais rápida advém, segundo o autor, de que o som mais grave golpeia o ouvido com maior lentidão, e, portanto, se sons mais graves se movimentassem com maior velocidade, não se apreenderia bem este movimento por não ter o repouso necessário, o que não ocorre com esta voz que é mais aguda. Neste ponto, ele faz algumas considerações colocando em diálogo sua teoria racional com a prática musical de sua época, e também da época anterior, no uso das dissonâncias, das práticas da imitação, do cânone. Esta discussão não será discutida aqui, por ser de âmbito mais musicológico do que filosófico, mas há um pequeno comentário que merece análise:

Podemos entender o contraponto como “[...] arte de coordenar linhas melódicas de expressão autônoma, tornando-as independentes (do latim punctus ontra punctum = nota contra nota)” (KOELLREUTTER, 1996, p. 9). Cada linha melódica é chamada de voz, a exemplo de um coral a quatro vozes. 13

236

enquanto aqueles contrapontos artificiais, como o chamam, em que tal artifício se mantém desde o princípio ao final da Música, não considero que interessem mais à Música que o Acróstico aos poemas retrógrados à Poética, que se inventou, como nossa Música, para provocar os movimentos da alma. (DESCARTES, 2001, p. 110)

Tal consideração constitui um claro retorno à função da música como um provocador de paixões na alma colocada inicialmente, sendo este elemento fundamental à compreensão da música, lembrando que tal movimento ocorre quando se organiza racionalmente os elementos musicais. De maneira que, nesta frase, ele condena procedimentos que têm caráter estritamente teórico, o que, em si mesmo, não tem nenhuma razão racional de ser, já que, em si mesmos, não geram movimentos na alma. DOS MODOS O autor coloca que os modos derivam-se da própria divisão da oitava em sete graus, sendo que cada ordenação destes graus gera diferentes modos, e que sua utilização deve basear-se na maneira estes modos apresentam as consonâncias perfeitas, sendo que aqueles privilegiem o trítono não são utilizados, pelos motivos expostos acima. Neste ponto, mais uma vez o autor confia na razão dos práticos que podem deduzir de qual modo utilizar, ou mesmo não utilizar, as regras expostas ao longo da obra. Ao final desta breve seção, Descartes despede-se de Beeckman, inclusive pedindo para não mostrar a outras pessoas por necessitar de maiores desenvolvimentos e por ser um diálogo entre os dois. A INFLUÊNCIA DO COMPENDIUM MUSICAE Como dito no início, esta obra foi um diálogo entre Descartes e Beeckman, e somente fora publicado postumamente. Não é objetivo do artigo colocar este texto em diálogo com a prática musical da época ou mesmo em diálogo com outros autores do período, mas cumpre fazer uma pequena observação a esse respeito. Fora assinalado ao longo do artigo que as propostas de Descartes dialogam com aquilo que era feito pelos músicos práticos, mas sem ter uma explicação racional que fundamentasse essa prática, onde se afigura a própria busca de Descartes. Autores como Vincenzo Galilei, Gioseffo Zarlino, Marin Mersenne e o próprio Descartes, empreenderam esta reflexão. (FUBINI, 2008; GABILONDO, 2001)

237

É importante verificar que este Compendium Musicae irá influenciar Rameau na escrita de seu Traité de l'harmonie (1772), pois este irá compor uma estruturação racional da harmonia musical que vai influenciar toda produção musical até o final do século e mesmo aos dias de hoje. Tal influência demonstra como o racionalismo estético expresso nesta obra não tem somente a importância de analisar o pensamento de Descartes, mas permite pensar a própria modernidade em si mesma, em seu processo de racionalização dos diversos âmbitos da vida, no caso específico, da racionalização da música. CONSIDERAÇÕES FINAIS Primeiramente, analisou-se o que é o racionalismo estético francês do século XVII, onde se viu a busca de utilizar a razão como maneira de organizar as artes, através das ideias de mensuração, da medida, da proporção e do equilíbrio. Em seguida, analisou-se a compreensão de Descartes da razão, que é partir de ideias claras e distintas, apreendidas de maneira simples e direta pelo espírito, para daí seguir-se a ideias mais complexas. Este método tem clara semelhança com a demonstração de um teorema geométrico. Passou-se à análise da obra, onde Descartes, conceituando a música como a arte de provocar as paixões, utiliza o som como a base de análise, o qual pode ser claramente mensurado e por isso analisado. Apresentando alguns princípios gerais, como a simplicidade de não cansar os sentidos, buscar sempre proporções simples e aritméticas, o equilíbrio entre o que percebe com maior facilidade e com maior dificuldade para assim gerar variedade sem fatigar os sentidos, o que não geraria prazer. Com estes elementos, passou-se a ver como o autor disseca as relações de proporções no tempo musical e na variedade de sons do grave ao agudo, sempre norteado pelos princípios mencionados. Nesta análise, vai deduzindo algumas consequências, até que chega a um fundamento de proporção, pelo qual pode se guiar para deduzir regras estilísticas para conduzir a composição musical, advindas não da prática musical, mas da análise racional dos fundamentos da própria música. Nesta análise, vimos paralelos entre a maneira de desenvolver esta obra, com a realizada posteriormente no Discurso do Método (1637) e nas Meditações Metafísicas (1641). E, por último, vimos a influência que a obra terá em Rameu, possibilitando uma reflexão sobre a influência do racionalismo estético cartesiano na música. Podemos concluir que a obra Compendium Musicae (1618) tem uma importância na produção cartesiana por já prenunciar caminhos seguidos nas obras mais maduras; por expressar o racionalismo estético na música, mesmo compreendendo-a como tendo a finalidade de provocar paixões; e a possibilidade de pensar a própria modernidade em seu processo de racionalizar os diversos

238

âmbitos da vida, não somente do conhecimento, já que a obra propõe uma maneira racional de investigar o próprio ato estético de provocar paixões e “[...] movimento da alma” (DESCARTES, 2001 p. 110). 14 REFERÊNCIAS BAYER, R. História da Estética. Tradução José Saramago. Lisboa: Editora Estampa, 1978. 49 p. DESCARTES, R. Compendio de Música. Tradução Primitiva Flores e Carmen Gallardo. Madrid: Tecnos, 2001.122 p. (Coleccion Metropolis) ______. Discurso do Método. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973a. Vol. XV. p. 33-150. ______. Meditações Metafísicas. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973b. Vol. XV. p. 81-150. ______. Regras para a Direção do Espírito. Tradução João Gama. Lisboa: Edições 70, s/d. 123 p. (Textos Filosóficos) FUBINI, E. Estética da Música. Tradução Sandra Escobar. Lisboa: Edições 70, 2008. 183 p. (Convite à Música)

Agradecemos ao Prof. João Regis por todas as orientações e a oportunidade de um trabalho sobre filosofia da música; as indicações bibliográficas do prof. Hérmiton Freitas; o Diego Muniz Costa por possibilitar o acesso à obra analisada; aos amigos do GESF e do IEEF; a meus pais, Paulo Sérgio e Tuka, pela possibilidade de existência e tudo mais; e a meus irmãos Beatriz, Cristina e Tauan, por todo o carinho. 14

239

ESTÉTICA E MODERNIDADE: A ARTE MUSICAL DE ASTOR PIAZZOLLA Antonio Rago Filho (PUC-SP) Programa de Estudos Pós-Graduados em História

Resumo: O artigo se propõe a refletir no âmbito da estética, da filosofia e da música, as categorias que permitem a compreensão de formas vivas da música em sua relação com a vida cotidiana. Valendo-se das reflexões do filósofo húngaro György Lukács, cujas categorias centrais se balizam na mimesis e na catarsis, amplamente expostas em sua Estética, de talhe aristotélico e hegeliano, mas com forte rebatimento das teses ontológicas de Karl Marx. Na pesquisa histórica que pretendemos apresentar o foco está dirigido à figura de um músico argentino magistral: Astor Pantaleón Piazzolla. Odiado pelos tangueros tradicionais, amado por setores da intelligentsia portenha, desprezado pela esquerda, por suas posições ambíguas, contraposta a esta discussão, retomamos os propósitos de H. Heine, cuja premissa é em primeiro lugar a fruição da obra-de-arte. Os juízos estéticos não se separam da historicidade do próprio objeto. A música de Astor Piazzolla expressa com alta densidade os dramas e tragédias da vida moderna, onde “tudo está impregnado de seu contrário”.

Os estudos ontológicos sobre o fenômeno estético receberam forte impulso com os trabalhos de György Lukács (1885-1971), especialmente em sua monumental Estética. Balizado pelas reflexões filosóficas de Aristóteles, Kant, Goethe, Hegel e Marx, o filósofo húngaro atou a criação das obras de arte às suas condições materiais de produção, em sua historicidade vital e nutrida pelas relações subjetivas entre indivíduos ativos, em seus afazeres cotidianos, seus dramas e tragédias, paixões e enlaces afetivos que se encorpam na vida social. A arte brota da vida cotidiana. E, como tal, fala dos sentimentos vividos, dos sofrimentos e prazeres, dos desejos e fruições que permitem aos indivíduos compartilharem de experiências que os comovem e transfiguram a si próprios. O pressuposto aqui é que a arte é essencialmente mimética. A arte, todavia, não se confunde com à mera reprodução factual, a empiria abstrata ou “reflexo fotográfico” do vivido, sem as mediações concretas que a instauram, mas que desvela, extrai e expõe as manifestações de possibilidades e destinos humanos. A arte reproduz a lógica de múltiplas singularidades em seu complexo social. O indivíduo é sempre um produto histórico, um produto de relações recíprocas que estabelecem em seu mundo concreto. Refigura tramas de ações que por conta de tomá-las em sua necessidade e verossimilhança não se atém a um mero receptor de uma singularidade em si, porquanto “Aristóteles assevera que a mimese poética opera rigorosamente uma generalização, pois sua finalidade é engendrar um personagem que porte em si as disposições típicas de uma dada natureza – de uma classe, de uma lógica específica, e não meramente as suas próprias inalienáveis. A arte (...) não se atém ou esgota na singularidade,

240

mas a extrapola porque propõe e expressa a natureza ou essência de um homem singular, o que necessariamente conduz a poesia à superação do meramente imediato, contingente, particular”. Desse modo, “Superar o singular, então, é movimento inerente à mimese artística, pois a arte só pode revelar a essência do objeto tomado da vida quando o conforma, avigora e nutre com a substância de seu próprio gênero, quando reconhece e apresenta a natureza que lhe é própria – ou sua generidade. (...) A mimese não é ou se reduz à cópia fenomênica da porção da vida posta em arte” (CHASIN, 2004, p. 53-54). Lukács deu devida ênfase, em sua Estética, a este momento vital que enlaça ontologicamente o ser social que responde a alternativas postas no seio do evolver histórico, na medida em que é preciso “sublinhar a vinculação de todo ato emocional com o mundo externo que o desencadeia, o fato elementar que as reações humanas emocionais estão originária e concretamente vinculados à ocasião do mundo objetivo circundante que as desencadeia. Mesmo que não tenham por que conter afirmações acerca dos objetos que as suscitam, estão intensamente ligadas a eles quanto a seu conteúdo, sua intensidade etc.; nunca se tem imediatamente um afeto, um sentimento de amor ou de ódio sem motivo, mas sempre amor ou ódio de uma pessoa determinada em uma ocasião determinada”. (LUKÁCS, 1982, p. 17). Os renascentistas compreenderam com muita clareza os traços característicos da arte musical e da expressividade subjetiva do cantar como um modo de dizer. Desde as formulações dos artistas da Camerata Bardi, se tem essa precisa determinação humano-societária que o falar comum contém em si a potência da dimensão melódica. Uma vez que a música é sonoridade organizada e modelada pela sensibilidade e afetos humanos, o canto como ser fundante, nervura a modulação musical, expõe o som combinado com as expressões anímicas da vida cotidiana. Uma vez que “no canto – arte da palavra melodizada – o mélos assume função estrutural, dominante, transfundindo-se em elemento estético preponderante, isto é, atraindo para si, mais intensamente do que o texto poético logra, a alma dos ouvintes”. De modo ainda mais substancial: “quando o melódico se faz presente na poesia, tornando-a letra cantada, a força expressiva desta sonoridade acoplada, sua dimensão determinante, a fazem substância artística absorvente, e neste contexto a poesia se transubstancia em canto, canto que nada mais é do que um específico modo de dizer” (IBANEY, 2004, p. 104-105). A música traduz de forma visceral essa identidade objetiva entre a interioridade humana com o mundo concreto, a poética que se nutre da subjetividade traduz a força estética com os componentes da vida cotidiana. Se nós ganhamos a consciência humanista, segundo a qual os indivíduos vivos e atuantes são autoproducentes, são criadores de si próprios – o que não significa de por si que a vida seja experimentada sem conflitos e contradições –, a arte humanista foi uma verdadeira conquista. Lukács levou às últimas consequências a defesa da arte humanista, pois, repisava que “Nas grandes obras de arte os homens revivem o

241

presente e o passado da humanidade, a perspectiva de seu desenvolvimento futuro, mas não os revivem como fatos exteriores, cujo conhecimento pode ser mais ou menos importante, e sim como algo essencial para a própria vida, como momento importante para a própria existência individual (deles, homens).” (LUKÁCS apud KONDER, 1967, p. 150) E, essa concepção também foi enfatizada por Leandro Konder: “A arte faz com que revivamos as experiências de todas as épocas e nos reconheçamos imediatamente nelas. Através da arte, participamos de novas relações humanas, vemo-nos envolvidos em novas situações humanas que nos solicitam reações de tipo especial.” Se para a filosofia hegeliana, o ouvido e a vista eram sentidos essencialmente teóricos. Daí, em sua visão especulativa, a forma de sua representação ultrapassava o mero soar natural para ganhar esse conteúdo anímico. Pois, “por meio desta dupla negação da exterioridade, a qual reside no princípio do som, o mesmo corresponde à subjetividade interior, na medida em que o ressoar, que já é em si e para si algo de mais ideal do que a corporeidade real para si mesma subsistente, também abandona esta existência mais ideal e desse modo torna-se um modo de exteriorização adequado ao interior”. Não bastava a sonoridade, como a arte pictórica que a pedra e as cores acolham a exterioridade multiforme dos objetos, esse emolduramento objetivo. “A tarefa principal da música consistirá, por isso, em deixar ressoar não a objetividade mesma, mas, ao contrário, o modo no qual o si-mesmo mais íntimo é movido em si mesmo segundo a sua subjetividade e alma ideal”. (HEGEL, 2002, p. 279-280) Nessa linha filosófica, Hegel introduz o movimento efetivo da processualidade histórica, reclamando a condição de uma arte que não só deveria comover os receptores, mas que, ao mesmo tempo, participa dos jogos da vida cotidiana. Segundo Hegel: “O que exigimos de uma obra de arte é que participe da vida, e à arte em geral exigimos que não seja dominada por abstrações como a lei, o direito, a máxima, que a generalidade que exprima não seja estranha ao coração, ao sentimento, e que a imagem existente na imaginação tenha uma forma concreta”. O filósofo alemão sabia que a arte não deveria ser reduzida, portanto, a representações abstratas e gerais para fazer valer sua função e dignidade. Se Hegel insistiu que a arte moderna se afastava das experiências vitais de homens e mulheres na sociedade burguesa; Marx, de sua parte, denunciou o caráter hostil da produção capitalista no que tange a elevação poética da vida. As formas da alienação e do estranhamento engendradas por esta forma de organização produtiva que pelo trabalho objetiva a riqueza genérica, mas que simultaneamente inverte as criações humanas com a reprodução de uma sociabilidade reificada; note-se, ao revés da posição hegeliana, acerca da parcialidade da arte no mundo de corte mercantil, Marx sustenta que as obras de arte cumprem a função de desfetichizar a crosta desse mundo invertido, desvelar a topicidade das relações humanas em sua essencialidade concreta, coisificadas

242

pela lógica do sociometabolismo do capital, que tomada em fragmentos, não teria condições de atingir a a vida em sua concretude histórica. A superação da relação coisificada, nessa forma social regida pelo valor, não pode ser retida pelas representações superficiais do cotidiano mercantilizado. A arte – para não ficar submissa e adulterada pela forma mercadoria – só seria possível como expressão revolucionária. Marshall Berman, ao comparar as produções espirituais em nossa modernidade, alinhou-as em suas múltiplas formas da sensibilidade moderna no interior de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”1, e que se ancora numa unidade paradoxal, numa “unidade de desunidade” onde mal o novo se manifesta e tudo parece se volatizar, o que se vivifica imediatamente desaparece, torna-se caduco, petrificado, porque sob a ordem humano-societária do capital, essencialmente desumana e corrupta, particularmente em nossos tempos sombrios, colado a pena marxiana: em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. Além disso: “Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’. Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis.” (BERMAN, 2003, p. 12). Após essas considerações iniciais, nos interessa focar na arte musical de Astor Pantaleón Piazzolla. A escolha de seu nome já continha uma espécie de premonição do pai do futuro músico e compositor. “Em 1921, Vicente Piazzolla, aquele que mais tarde seria conhecido como Nonino, batizou seu filho com um nome ambicionado. Desejava homenagear um amigo italiano que tinha este nome”. No fundo, modificado, de Astorre para Astor. Pois, “ainda que ninguém pudesse imaginar que nos casebres de imigrantes a poucas quadras do mar (viviam em Mar del Plata), estava esse filho que daria para sempre a sonoridade

Estas linhas se encontram na “Introdução: modernidade, ontem, hoje, amanhã” que abre Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 15. 1

243

a outra cidade, Buenos Aires, inaugurara um nome”. (FISCHERMAN & GILBERT, 2009, p. 9). A música comovedora de Astor Piazzolla se tornaria ao largo de uma vida constrangida por muitas adversidades na expressão manifesta da alma da cidade de Buenos Aires. Se é fácil intuir com certa segurança que a música de George Gershwin está diretamente ligada à cidade de Nova York, da mesma forma, as composições de Astor exprimem o modo de ser determinado historicamente da cidade de Buenos Aires. Como escreveu o psicanalista Kuri: “O misterioso enlace entre a cidade e o musical tem a persistência de um axioma. Não só o tango, também, como é sabido, o jazz invoca uma entranha urbana. Que é esta flexão da cidade sobre si mesma através da música? Que procedimento une estas duas coisas até forjar ali uma marca distintiva?” (KURI, 1997, p. 32). Se o pressuposto ontológico da vida social é a interatividade humanosocietária, não devemos nulificar a matriz existencial das contradições sociais, cuja anatomia forjam categorias sociais antagônicas e, nesse sentido, os combates travados que nascem daí deixam sua canga nas ruínas que compõem as cidades como marcas culturais de dramas e conflitos vivenciados pelos de baixo. Longe de se manifestar como uma sonoridade abstrata que se nulifica, a música de Astor Piazzolla exprime uma gama variada de dramas cotidianos, o dilaceramento familiar, a separação amorosa, a melancolia do exílio, a vida migrante, a dor da perda de entes queridos, o eterno retorno, a sangria que permeia a luta de classes da cidade, em suma, a força de uma música que torneia esses afetos e paixões de uma vida social trágica com suas formas autocráticas de poder, que deitam raízes sobre a incompletude do capital atrófico, forma específica de entificação histórica da sociedade burguesa, substância social que sacrifica permanentemente a liberdade e impossibilita a realização de indivíduos livres em sua plenitude humana. A partir de certo momento o leitmotiv Piazzolliano – “Pinta tu aldea y pintarás el mundo”, tomado de empréstimo das reflexões estéticas de Tolstoi –, aponta para o fato de o compositor de “Adiós Nonino” ter plena consciência de sua revolução musical. A determinação particularizadora das composições piazzollianas é explicitada com todas as letras por seu grande amigo Lalo Schifrin que “(...) lo considera ‘um músico universal, que necessitaba concentrarse en el lenguaje de Buenos Aires. Cuanto más local era, más universal se hacía... Era un compositor completo. No solamente el contenido era importante en él, [sino] la estructura y forma’. Es tan fuerte la impronta de Piazzolla en su música que se la reconhece al instante. Su estilo gravitó en una multitud de admiradores e imitadores. Sus características más sobresalientes son la forma en que fusionó procedimientos tomados de la música clássica (en especial de sus héroes, Stravinsky y Bartók) y del jazz norte-americano, en la música de tango que escribía y tocaba. A partir de estas influencias primordiales, y de la formación

244

que recibió de Ginastera y Boulanger, destiló algo completamente único e diferente” (AZZI & COLLIER, 2002, p. 266). A história de sua vida é exemplar para que se possa compreender as influências e experiências vividas. A Argentina recebeu um contingente imenso de imigrantes. Os italianos – os tanos – eram sua maioria.2 Os tempos difíceis de sua infância, a pobreza e a dor advinda do tratamento físico de seu pé direito, mais a coragem na luta pela sobrevivência de Vicente Piazzolla e Asunta Manetti, ambos filhos de imigrantes italianos, os Piazzolla de Trani, localidade de Puglia, do Mezzogiorno, e os Manetti de Lucca, região da Toscana. Os pais se aventuram de Mar del Plata, na Argentina, para o Lower East Side de Manhattan, correndo os riscos do começo de uma vida sem suportes, sem propriedades a não ser a força de trabalho e tendo de conviver num bairro violento dominado por máfias e habitado por uma população de imigrantes que congregava, em sua maioria, italianos, irlandeses e judeus. O pai sempre sonhou que o menino fosse músico de tango e solista de bandônion. “Yo crecí en ese clima de violencia. Por eso me hice peleador. Y acaso haya marcado también mí música. Todo se va metiendo pela piel. Mis acentuaciones rítmicas, tres más tres más dos, son similares a las de la música popular judía que yo escuchaba en los casamientos” (PIAZZOLLA apud GORIN, 1998, p. 22). Se na cidade de New York, o pibe Piazzolla extrai sua vontade de romper barreiras, de superar as agruras do cotidiano violento, um encontro imprevisível o marcará para sempre. Carlos Gardel produzindo e atuando no filme “El día que me quieras” o convidará para uma figuração de canillita, o menino que vende jornais nas ruas. Depois fará pequenas apresentações como solista, mas tendo que ouvir a advertência de Gardel, “Pibe, vós tocás el bandoneón como um gallego”. Todavia, o tango não fazia parte de sua dedicação, mais fundamental para sua formação seriam as lições da grande música barroca pelas mãos de Bela Wilda. Piazzolla recorda as condições desumanas que este músico polonês enfrentava, da mesma maneira como tempos depois, terminava obscuramente a vida do maestro Gil Evans. “Como nosotros tampoco teníamos dinero, mi mama decidió pagarle con comida. Pero no fue una formalidad. El matrimonio Wilda y mis padres trabaron Em seu escrito “Buenos Aires: Cidade, Política, Cultura”, Osvaldo Coggiola observa que: “A Argentina moderna, no entanto, aquela que resultou da ocupação do seu território atual, é um produto do século XIX, em especial do processo de imigração européia, que levou ao país milhões de trabalhadores europeus – 160. 000 estrangeiros lá aportaram entre 1861 e 1870, e o número de imigrantes chegou a 841.000 de 1881 a 1890, e a 1.764.000 de 1901 a 1910. No total, de 1857 a 1930, o deserto argentino recebeu 6.330.000 imigrantes, o que, levando-se em conta o retorno dos trabalhadores sazonais (ou golondrinas), deixa um saldo de 3.385.000 imigrantes. A Argentina contava, logo no seu primeiro recenseamento em 1869, com 1.737.000 habitantes. Isso demonstra o peso da imigração na formação da Argentina moderna, através de uma transfusão de população que foi, em termos relativos, a mais intensa do Novo Mundo (incluindo os Estados Unidos).” (COGGIOLA, 1997: 103) 2

245

una profunda amistad, en donde Ia pobreza y Ia música eran cosas en común. Recuerdo su parche en el pantalón, un solo traje para los conciertos, el piano de cola con un teclado viejo y destartalado y Ios cigarrillos Camel. Fue mi primer gran maestro. Con é1 aprendí a amar a Bach. Fue el hombre que me ensenío a encarar la música con pasión, no como un simple ejercicio. Sus clases no eran aburridas. Charlábamos de jazz, de los canelones, de la amistad, de Ia necesidad de estudiar seis y hasta ocho horas diarias; hasta lograr la perfección. Con é1 conocí el verdadero amor a la música. Amor en medio de dificultades, de hambre, de techos con goteras, de frío. Y nunca dejaba de tocar y tocar. Con esfuerzo, yo trasladaba Bach al bandoneón. Logré hacerlo cada día mejor... DeI tango ni me acordaba.” (PIAZZOLLA apud DIANA PIAZZOLLA, 2005, p. 87). O retorno à cidade de Buenos Aires, o prepara para nova surpresa. O domínio da obra de Bach e de Mozart em New York, acoplado ao virtuosismo do jovem músico, abre passagem para outro território musical: o tango praticado pelas orquestras típicas. Piazzolla aprende a música porteña: “La década del ’40, que para mí se extiende como hecho artístico hasta 1955 es el punto más alto en materia de grandes orquestas. Tuve la fortuna de mamar em todas esas fuentes: Aníbal Troilo, Alfredo Gobbi, Osvaldo Pugliese, Francini-Pontier, Miguel Caló, Horacio Salgán. Hasta tuve el gusto de conocer y escuchar personalmente a Pedro Maffia, el de los discos de Julio de Caro que mi papá escuchaba embelesado en New York”. (PIAZZOLLA apud GORIN, 1998: 37) É desta experiência em tocar ao lado de Aníbal Carmelo Troilo, o Pichuco, com sua orquestra típica3, da admiração pela “mão esquerda” do pianista Orlando Goñi, do pulsar de Enrique ‘Kicho’ Díaz, é que Piazzolla pode desenvolver, experimentar e praticar suas idéias musicais de arranjador. Do encontro com Arthur Rubinstein, em 1941, ao ouvi-lo tocar uma sonata e não um “concerto” como ele próprio anunciara sua composição, o pianista sugere que aprofunde seus conhecimentos com um dos maiores músicos clássicos de Argentina: Alberto Ginastera. Se do encontro com Rubinstein lhe restou uma foto, porém, “aquel número de teléfono para llamar a Ginastera empezó a cambiar mi vida”. Nasce desta relação o estudo intensivo de composição e orquestração e o vivo interesse pela obra “A Sagração da Primavera”, de Igor Stravinsky, dissecada em seus elementos constitutivos diuturnamente. Para Piazzolla, “Ginastera fue el maestro que me enséñó casi todo lo que sé. Él hizo hincapié en la orquestación, que hoy es Em 1946, Piazzolla constituirá sua própria orquestra típica, como conseqüência de sua atividade criativa no grupo de Pichuco, pois, “na década de 40 meus arranjos para Troilo já chamavam a atenção por uma certa originalidade na escrita. Em 46, achei melhor formar minha própria orquestra – 4 bandônions, 4 violinos, piano, contrabaixo e viola, os críticos me perguntavam se eu pensava fazer música para Teatro Colón; quando pus 2 bandônions em minha ‘Sinfonieta’ os eruditos diziam que teatro municipal não é cabaré... Em 56, quando voltei da Europa, formei o Octeto Buenos Aires e uma orquestra de cordas, época em que se iniciou uma verdadeira revolução na música de Buenos Aires, quando eu ouvia, diariamente, a expressão ‘no te metas’.” (PIAZZOLLA apud MEDAGLIA, 2003, p. 188) 3

246

mi fuerte; sus clases eran esencialmente de composición. Me mandaba al Colón a observar los instrumentos. Decía que yo debía conocer cada uno de ellos a la perfección, porque si no era imposible orquestar. Yo me íba: al Colón todas las semanas, a veces con Di Filippo, que ya era un gran bandoneonista, a veces solo. A mi juicio, Ginastera fue un gran compositor, no un gran maestro. No hay que olvidar que fui su primer alumno y que él no era enérgico conmigo. Yo hubiera necesitado alguien que me rompiera dos o tres dedos con una regla, como hacía Scaramuzza con sus alumnos. Necesitaba que me exigieran al máximo. Y en 1954 llega mi salvación: Nadia Boulanger. Ella era exigente, sabia, maravillosa... No sólo me enseñó de todo, especialmente contrapunto, sino que además me ayudó como persona, me ayudó a encontrarme a mí mismo, a ser Astor Piazzolla. (PIAZZOLLA apud DIANNA PIAZZOLLA, 1987: 215) Ginastera sugere a Piazzolla que mostre suas composições ao compositor Juan José Castro, em especial a obra sinfônica em três movimentos chamada Buenos Aires (Opus 15) escrita em 1951. Castro, de sua parte, anima Piazzolla a um concurso de música. Com esta peça Piazzolla ganha o prêmio Fabien Sevitzky. Elogiado por alguns, depreciado por outros, Piazzolla ganha uma bolsa do governo francês por um ano. Após este enlace e ampliação de seus recursos técnicos, Piazzola com a sua esposa Dedé Wolff, artista plástica, deixando suas crianças Diana e Daniel com os “noninos”, dirigem-se a Paris. O encontro com Nadia Boulanger, em 1954, amiga íntima de Stravinsky, condiscípula de Ravel, e célebre professora de músicos como Aaron Copland, Igor Markevitch, Virgil Thompson, Jean Françaix, Lennox Berkeley, Leonard Bernstein, dentre outros, dará, segundo as palavras de Astor, o remate final. “Qué instrumento toca?”, desconfiada da timidez do aluno pergunta Boulanger. “Uma vez más, a duras penas se atrevió Astor a confiarle que tocaba el bandoneón. Ella lo tranquilizó: había escuchado la música de Kurt Weill em bandoneón, y dijo que el próprio Stravinsky apreciaba sus virtudes. Finalmente, lo persuadió para que ejecutara uno de sus tangos em el piano. Él eligió ‘Triunfal’. En ele octavo compás ella lo interrumpió, o tomo de las manos y le dijo com firmeza: ‘No abandone jamás esto. Esta es su música, aqui está Piazzolla’. Cada vez que en su vida posterior el recordaba esse momento, lo describía siempre como uma epifanía: ‘Me ayudó a encontrarme a mi mismo’, le dijo a su hija Diana”. (AZZI & COLLIER, 2002, p.104-5) A exigente professora o fez aprofundar seus conhecimentos sobre a arte da fuga e do contraponto de Bach. Todavia, é bom duvidar do fato de que ela o tenha empurrado finalmente para o tango e para as rupturas com as formas tradicionais, uma vez que Piazzolla já compunha sob a lógica do “Nuevo Tango”, o certo é que as tentações de se direcionar para a destituição do sistema tonal, com a nova ordenação musical do dodecafonismo e do serialismo, que retiram a memória própria das canções populares, do mélos extraído da própria vida cotidiana, a partir daí, cessam. Ao menos, enquanto vanguardismo dominante.

247

Em 1956, já de volta a cidade porteña e com a formação do Octeto Buenos Aires, Piazzolla expande sua revolução musical4. Na súmula do jornalista Natalio Gorin: “Efectos sonoros y rítmicos nuevos, contrapuntos entre cuerdas, un violín sonando como um tambor, el cello y el bajo haciendo de bombos; todo ello más el sonido propio de formidables solistas y la presencia agresiva de uma guitarra eléctrica improvisando en la mayoria de los temas. Alguns arreglos parecían una falta de respeto”. (GORIN, 1998: 187) Se os tradicionalistas o questionaram como sendo mais uma versão jazzística, há que mostrar qual o vínculo que Piazzolla costura sem que a forma tango seja diluída. Para o músico argentino, há que ampliar os experimentos, as inovações musicais, permanecendo na essencialidade do tango, no interior do sistema tonal, ampliando suas fronteiras com elementos dialógicos da música de Bach, Mozart, Stravinsky, Béla Bartók, com a música norte-americana, o jazz. O que lhe interessa é o suingue da música negra. As idéias e os elementos melódicos não são coletados do cancioneiro popular, ao modo de Bartók5, mas são sustentados pela rítmica, pulsão e impulsão próprias do tango. Por isso, a “música límite” de Piazzola “alcanza uma identidad extremamente sólida, a pesar de hacer sonar uma diversidad de músicas. La clave reside em trabajar los procedimientos formales de la música desde el corazón del tango, y no al revés” 6. (KURI, 1997: 37)

Em entrevista dada ao maestro Júlio Medaglia, a 29 de março de 1972, em Buenos Aires, o compositor argentino sintetiza o seu método compositivo: “Eu parto, porém, do princípio de que o tango moderno é música para ser ouvida e não dançada ou cantada – pelo menos das formas mais tradicionais – e por essa razão o meu tango é cavocado a duras penas das mais diversas e, às vezes, impossíveis formas de execução instrumental. Às vezes não são frases acabadas, são apenas fragmentos melódicos ou células. Esses fragmentos melódicos não estão sempre na voz mais aguda, mas passam por outros instrumentos, obedecendo a um princípio estrutural de composição e arranjo. Gosto muito, por exemplo, de escrever contraponto e muitas vezes fugas, onde um motivo melódico passa de um instrumento para o outro sendo contraponteado por outras vozes. Às vezes, é muito difícil um tema escrito para guitarra elétrica ser respondido pelo contrabaixo, mas meus músicos superam com trabalho e técnica qualquer problema de execução”. (Piazzolla apud Medaglia, 2003: 189-190) 5 Um trabalho rigoroso e consistente sobre as concepções e métodos de pesquisa de Béla Bartók, confrontados com as de Mário de Andrade, e que nos permitem ver as diferenças composicionais de ambos se encontram na obra Os Mandarins Milagrosos (1997) de Elizabeth Travassos, em especial os desenvolvimentos do quarto capítulo intitulado “Cartografias”. 6 O psicanalista argentino Oscar Cesarotto em seu Tango Malandro (2003) faz uma arqueologia do lunfardo. O que lhe interessa é desvendar as razões do lunfardo exprimir uma linguagem marginal, em sua gênese histórica, que se materializa como um traço distintivo da identidade nacional. Também para este autor, o itinerário do tango ganhou foro de cidadania, de cidadania porteña, haja vista que “Aquilo que começou como uma forma marginal de expressão foi irreversivelmente tomando conta dos corações, das mentes e das almas. Justiça seja feita, o tango, embora atingindo a população do país como um todo, sempre fez mais sentido para aqueles que moravam na capital. De fato, a gente do interior, campônios e descendentes dos índios e dos gaúchos, tinham outras músicas e danças para apreciar e identificar com seus valores”. (Cesarotto, 2003: 56) 4

248

Posto nesses termos, esta renovação musical está inteiramente impregnada de uma substância dramática. “La música de Piazzolla desclasifica, trabaja em zonas de fronteras, crea constantemente bordes. Impone la violência cortante, quizá del tango primitivo, em médio de um diseño de fuga o de um recurso politonal”. (KURI, 1997: 37) Mais ainda: “Alcanza la frontera precisa, la intersección justa de sonoridades heterogêneas. Encuentra, em definitiva, uma identidade estética que em su solidez puede alojar sin deformación ni espanto, a la fuga, la improvisación del jazz o las tentaciones atonales. Este carácter le cambia el rumbo a la historia de la música de Buenos Aires”. (KURI, 1997: 45) O maestro Schiffrin consubstancia essa mesma idéia afirmando que “Astor Piazzolla ha sabido encontrar um lenguaje universal que tiene color de tango. Pero su manejo de los contornos melódicos, densidades armónicas, pulsos rítmicos y timbres orquestales revelan una musicalidad sólida y transcendente. Y cuando más se encierra dentro de límites, patios, muros y tranqueras, su actividad creadora vuela libremente más allá de las fronteras, hacia el infinito.” (SCHIFFRIN apud PIAZZOLLA, 1987, p. 211). Se tomarmos o “Decálogo”, datado de outubro de 1955, documento que estabelece os cânones da revolução piazzolliana e os objetivos coletivos do Octeto Buenos Aires, demarcado o comando hierárquico e os rigores da aplicação instrumental, ficam nítidos que a atuação desse grupo musical deveria se nortear para fins artísticos e não comerciais. Tratava-se, de modo explícito, de ampliar as possibilidades do tango, não só no plano nacional, mas promover pela qualidade musical uma “embaixada artística” no exterior. Haveria que dar o máximo de si, no domínio técnico, introduzindo a guitarra com os acordes do jazz e liberando o piano, para fazer soar as paixões, o fluxo dos sentimentos, aflorar os afetos que o tango exige. A fim de torná-lo potência social, como música instrumental, se evitaria o canto, assim como a dança, salvo para casos excepcionais7. Além disso, haveria de explicar as inovações, como o uso de instrumentos não utilizados nas orquestras típicas, como a guitarra elétrica, da mesma forma, os efeitos percussivos não habituais da música tradicional. No artigo 9.º reza o seguinte: “Considerando que nada es fruto de improvisación... las partituras estarán escritas dentro del mayor perfeccionamiento musical posible que pueda lograrse en este género, lo que facultará a que sean consideradas por los más exigentes.” (AZZI & COLLIER, 2002, p. 115).

Há que registrar que Piazzola também produziu mélos que intensifica a expressão poética dos afetos extraídos da vida humano-societária. Com Horacio Ferrer, Jorge Luis Borges, Fernando Solanas, escreveu várias obras, tais como Maria de Buenos Aires, o oratório popular El pueblo joven, ambas com Ferrer. A valsa Chiquilín de Bachín, com alma “tanguera”, também com a poética de Ferrer evoca o drama da criança abandonada. Vuelvo al Sur, rumo à cidade nativa e ao reencontro íntimo com o ser amado, letra de Solanas, foi gravada por Caetano Veloso no CD intitulado Fina Estampa (1994). É o tema do filme Sur de Fernando Piño Solanas. 7

249

Expressão das ruínas e tensões da cidade de Buenos Aires, Piazzolla pinta a sua “aldeia” com tons dramáticos. O compositor argentino o confirma: “Yo nunca pude entender por qué cuernos escribo lo que escribo, por qué todo es tão dramático si yo no lo soy.”8 (PIAZZOLLA apud KURI, 1997: 14) Piazzolla pode atingir este ponto nodal a partir do próprio instrumento musical que enriqueceu técnica e expressivamente e, nesse sentido, se torna extensão de seu próprio corpo. Suas mãos grandes e dedos grossos, desproporcionais como ele mesmo dizia, sua força descomunal aliada a sua respiração que imprime os movimentos do fole do bandônion9, permitiram ao compositor realçar os tons dramáticos por meio de blocos tonais em camadas superpostas e contrastantes, valendo-se de elementos dissonantes, com os glissandos e a persussão dos próprios instrumentos, às vezes mesmo com aportes atonais, ao lado de músicas românticas. Esta é a chave de sua música que podemos escutar em seu “Concierto para Bandoneón”, com a Orchestra of St. Luke’s sob a regência do maestro argentino Lalo Schifrin, compositor da música original do filme “Missão Impossível” que lhe projetou internacionalmente, com as três partes que a integram, 1. Allegro marcato; 2. Moderato e 3. Presto. É visível a presença da sonoridade de Béla Bartók e de Paul Hindemith. O critico Eric Salzman sugeriu uma aproximação com a elaboração das “Bachianas” de Villa-Lobos, denominando o “Concierto para Bandoneón” de “Bacchianas argentiniensis”. Em sua análise musical, Salzman especifica os conteúdos da parte três – Presto, salientando que “El final, um presto rítmico, alterna tonos llevando a LA menor a um elegante FA menor sostenido, asi como também tutti y solo en la modalidad del concierto grosso. Al final, el tiempo cambia a moderato y el tono de LA mayor, por un apasionado e inesperado melancólico final. La conmovedora melodía de bandoneón, aparentemente sin relación con nada anteriormente escuchado, parece sin embargo de um resultado lógico. Trece repeticiones de 2 (dos) barras (rayas de compás), pp a fff, proporcionan un cierre de gran intensidad.” (KURI, 1997, p. 38-39). O historiador Coggiola, ao falar de sua terra portenha, recorreu aos escritos de Jorge Luis Borges que, todavia, “não se esqueceu das origens do tango Mesmo não tendo espaço para um desenvolvimento sobre a determinação e função social do drama, esta dimensão dramática da música piazzolliana, face ao destino trágico do povo argentino, exigiria uma reflexão mais apurada da questão, todavia, importa registrar, como bem o faz Ibaney Chasin, que “No drama, não obstante, dá-se forma ao movimento humano-social que busca o caminho da humanização, onde a colisão classista está presente, mas sob forma profundamente mediada”. (CHASIN, 1999: 140) 9 Segundo o músico Rufo Herrera, o Doble A (AA de Alfred Arnold, filho mais novo do luthier Ernest Ludwic Arnold) foi a marca preferida pelos argentinos. “Porém, este instrumento não foi inventado para a música popular ou profana de qualquer época, e sim para a música sacra. Sua função primordial era o acompanhamento dos corais nas cerimônias religiosas como procissões e outros cultos das comunidades pobres da Alemanha, em que o bandoneón substituiu o harmonium. Isto procede, uma vez que o bandoneón possui a mesma tessitura e características tímbricas do harmonium, avantajando-o em potência sonora”. 8

250

para elevá-lo à altura de expressão cultural típica de Buenos Aires e, através dela, de arte universal”. Mais ainda, os tangos se referiam a várias facetas da vida cotidiana de pessoas concretas: “tangos de recriminação, tangos de ódio, tangos de desprezo e de rancor foram escritos, obstinados na transcrição e na lembrança. Todo o perfil da cidade foi entrando no tango; o subúrbio e a vida marginal não foram os únicos temas. No prólogo das sátiras, Juvenal memoravelmente escreveu que tudo aquilo que move os homens – o desejo, o medo, a ira, o prazer carnal, as intrigas, a felicidade – seria matéria de seu livro; exagerando-se, mas não demasiadamente, poderíamos aplicar o seu quidquid agut homines ao conjunto das letras de tango. Também poderíamos dizer que estas formam uma desconexa e vasta comédie humaine da vida de Buenos Aires.” (BORGES apud COGGIOLA, 1997, p. 113). Marshall Berman, ao comparar as produções espirituais em nossa modernidade, alinhou-as em suas múltiplas formas da sensibilidade moderna no interior de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”10, e que se ancora numa unidade paradoxal, numa “unidade de desunidade” onde mal o novo se manifesta e tudo parece se volatizar, o que se vivifica imediatamente desaparece, torna-se caduco, petrificado, porque sob a ordem humano-societária do capital, essencialmente desumana e corrupta, particularmente em nossos tempos sombrios. Pois, insistimos: “em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário”. Certa feita, Heine escreveu com sua verve intempestiva: “Que é a música?”. Independentemente da correção ou falsidade de sua resposta, daí a surpresa, Heine não exercita uma exposição teórica, mas fala aquilo que pertence ao senso comum: “A música é qualquer coisa de especial, quase milagrosa; estou mesmo inclinado a achar que se trata de um milagre. Paira ela entre pensamento e fenômeno, como mediadora crepuscular entre o espírito e a matéria; aparentada a ambos e, entretanto, diferente de ambos; é espírito, mas espírito que necessita do compasso do tempo; é matéria, mas matéria que prescinde do espaço.” (HEINE, 1967, p. 123). Heine se insurge contra aqueles que julgam a música fora dela, por critérios apriorísticos e subjetivos exteriores à música. Ou melhor, aquilo que a música por si mesma revelaria. Por isto ele escreve: “A melhor crítica musical, a única que talvez comprove alguma coisa, ouvi o ano passado em Marselha, na Estas linhas se encontram na “Introdução: modernidade, ontem, hoje, amanhã” que abre Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 15. Piazzolla reflete esse paradoxo da modernidade que fala Berman, quando se autorretrata com 10

tintas fortes e antinômicas: “Tengo que decir la más absoluta verdad. Yo puedo contar una historia de ángeles, pero no sería la verdadeira historia. La mía es de diablos mezclada con ángeles y un poco de mezquindad. Hay que tener algo de todo para seguir adelante en la vida.” (PIAZZOLLA apud GORIN, 1998, p. 02).

251

grande mesa do albergue, onde dois caixeiros-viajantes discutiam sobre o assunto do dia – Rossini ou Meyerbeer, quem seria o mestre maior.” E a história se prolongaria um pouco mais! “Bastava que um atribuísse ao italiano qualidades superiores, para que o outro manifestasse a opinião contrária; mas isso não foi feito com palavras secas; um deles cantarolava melodias particularmente belas de Robert le Diable. Os argumentos mais convincentes do outro eram, por sua vez, trechos do Barbiere di Siviglia e os dois continuaram nisso pelo resto da refeição; em vez de uma barulhenta troca de lugares-comuns nos ofereciam, na mesa, um delicioso acompanhamento musical, findo o qual fui forçado a admitir que, sobre música, ou se discute por meio deste método realista, ou se deixa de discutir.” (HEINE, 1967: 124) E, acá entre nosotros? Piazzolla faz arte ou faz trapaças! É tango ou não? Então, ouça outra vez esta peça de Astor... e compare com a de Aníbal Troilo, o nosso Pichuco. Ouça então este trecho do piano de Pugliese e aquela composição de Julio de Caro... Não, acredites, outro dizia, a de Tom Jobim é sagrada… Certamente Piazzolla se nutriu e foi forjado por problemas existenciais de sua cidade porteña, vincada pela modernização excludente; mas não só, pois viveu o “exílio” em cidades como Paris, Roma, Nova York. Há que reconhecer, entretanto, que ao fusionar estruturas musicais de outras origens nacionais, Piazzolla consubstanciou uma identidade musical enraizada no solo argentino, a música popular contemporânea de Buenos Aires, ultrapassando as fronteiras de sua aldeia particular, para se tornar um cidadão universal do patrimônio cultural da humanidade.

BIBLIOGRAFIA OBRAS: AZZI, María Susana & COLLIER, Simon (2002). Astor Piazzolla: su vida e su música. Buenos Aires: Editorial El Ateneo. BERÚ, Mauricio (2006). “Cinema, Astor Piazzolla e a Polifonia da cidade de Buenos Aires”. In: Rago Filho, A. Projeto História n.º 32. Polifonia e Latinidade. São Paulo: Educ, 2006. BERMAN, Marshall (2002). Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. CHASIN, Ibaney (1999). “A forma-sonata beethoviana. O drama musical iluminista”. Revista Ensaios Ad Hominem. Tomo II – música e literatura. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem. CHASIN, Ibaney (2004). O Canto dos Afetos. São Paulo: Perspectiva. CESAROTTO, Oscar Angel (2003). Tango Malandro. São Paulo: Iluminuras. COGGIOLA, O. & BILSKY, E. (1999). História do Movimento Operário Argentino. São Paulo: Xamã.

252

COGGIOLLA, Osvaldo.(1997). “Buenos Aires: Cidade, Política, Cultura”. In: Dossiê: travessia: migrações. Revista Brasileira de História. São Paulo: Humanitas Publicações/Anpuh, vol. 17, n.º 34. COLLIER, Simon. Carlos Gardel. Su vida, su música, su época. Buenos Aires: Plaza & Janés Editores, 2003. DELLASOPPA, Emilio (1998). Ao inimigo, nem justiça. São Paulo: Hucitec/Departamento de Ciência Política, USP. DEVOTO, Fernando J. & BORIS F. Brasil e Argentina (2004). São Paulo: Editora 34. FERRER, Horacio (1999). El Tango: su historia y evolución. B. Aires: Peña Lillo. GILBERT, Abel & FISCHERMAN, Diego(2009). Piazzolla, el mal entendido. Edhasa. GILBERT, Abel & FISCHERMAN, Diego. Piazzolla, el mal entendido. Edhasa, 2009. GILIO, María Ester (1998). Aníbal Troilo – Pichuco: conversaciones. Buenos Aires: Perfil Libros. GORIN, Natalio (1998). Astor Piazzolla – a manera de memorias. Libros Perfil. HEGEL, G. W. F. (1996). O Belo na Arte – curso de estética, São Paulo, Martins Fontes. HEINE, Heinrich.(1967). “Discutindo sobre Música” in: Prosa política e filosófica de Heinrich Heine. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. KONDER, Leandro (1967). Os Marxistas e Arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. KURI, Carlos (1997). Piazzolla – la música límite. Buenos Aires: Corregidor. LUKÁCS, G. (1982). Estética IV, 2.ª ed. Barcelona: Grijalbo. MAMMI, Lorenzo et alli (2004). Três canções de Tom Jobim. São Paulo: Cosac & Naify. MEDAGLIA, Júlio (2003). Música Impopular. 2.ª Ed. São Paulo: Global. PIAZZOLLA, Diana (1987). Astor. Buenos Aires: Emecé. TRAVASSOS, Elizabeth. Os Mandarins Milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók (1997). Rio de Janeiro: Funarte; Jorge Zahar Editor. WERLE, Marco Aurélio (2011). A questão do fim da arte em hegel. São Paulo: Hedra. YANAKIEW, M. & CARMO, M (2005). Mitos, manias e milongas. São Paulo: Planeta. CD: BARTÓK, Béla (1992). Concerto for Orchestra. Music for Strings, Percussion and Celesta. USA: New York Philharmonic. Sony Music. HERRERA, Rufo (2000). Rufo Herrera – Bandoneón e Orquestra Experimental da UFOP, Belo Horizonte, MG-Brasil.

253

HINDEMITH, Paul (1995). Paul Hindemith. The Philadelphia Orchestra. USA: EMI Records. LUSOTANGO Quinteto (2006). Lusotango. Lisboa: Companhia Nacional de Música. MORENTE, Estrella (2006). Mujeres. Espanha: EMI. PIAZZOLLA, Astor (1987). Astor Piazzolla – Concierto para bandoneón & Tres Tangos. Orchestra of St. Luke’s. São Paulo: WEA Discos. PIAZZOLLA, Astor (1998). Astor Piazzolla – Sur. Warner Music Brasil. VELOSO, Caetano (1994). Fina Estampa. Polygram do Brasil.

254

A HISTÓRIA ENQUANTO FUNDAMENTO DA AUDIÇÃO MUSICAL E A MÚSICA COMO AFIRMAÇÃO DO REAL NO SEGUNDO NIETZSCHE Felipe Thiago dos Santos

[email protected] UNESP (FFC) Agência de fomento: FAPESP

Resumo: O século XIX assistiu a um debate encabeçado pelo compositor Richard Wagner e o crítico musical Eduard Hanslick. O que movia tal querela era a indagação acerca de qual seria o critério da audição musical. A partir da exposição das ideias desse debate mostraremos na filosofia de Nietzsche uma terceira via de se pensar o problema da audição musical, isto é, uma audição que não se baseia unicamente, segundo Nietzsche, nem em relações sonoras tampouco funciona como linguagem efetiva dos sentimentos. Todavia, entender os motivos pelos quais Nietzsche não tomou partido de Hanslick ou Wagner leva-nos a certa concepção singular e original que, desde Humano, demasiado Humano, visa afirmar, a partir do ponto de vista da história, os processos humanos que envolveram e educaram a fruição musical e a possível experiência afirmativa que se pode obter da música frente à vida. Palavras-chave: Nietzsche, música, Hanslick, Wagner.

I Ao nos depararmos com as pesquisas em torno do pensamento nietzscheano - principalmente no Brasil - percebemos que as obras referentes ao segundo Nietzsche1são relegadas a um patamar inferior frente às obras dos ditos primeiro e terceiro períodos. Existem razões para esse fato. Como Nietzsche retoma em sua terceira fase alguns conceitos da primeira, pensa-se muitas vezes que o segundo período de sua obra seria apenas um momento de transição. Outro motivo que nos leva, aparentemente, a dar pouca atenção para as obras deste período é o fato de ter–se atribuído a elas, segundo Ernani Chaves “... uma espécie de anátema [...] como se elas fossem expressão do positivismo de Nietzsche. (CHAVES. In: Kriterion. 2005. p. 274). Pelos motivos acima mencionados, pretendemos nesse artigo tratar do papel da música dentro do segundo Nietzsche. Destarte, acreditamos que há uma 1Dentre

as divisões que foram feitas acerca da obra de Nietzsche, a que apresentamos aqui é a mais difundida e aceita entre os comentadores. Tal divisão foi feita por Karl Löwith. A segunda fase é entendida entre a produção de Humano, demasiado humano (1876-8) até a composição do quarto livro d’A Gaia Ciência (1882). Além das já citadas, estão entre as obras: Humano, demasiado humano II e Aurora.

255

originalidade nestes escritos, os quais, se esmiuçados com devido cuidado, podem nos indicar, com muita propriedade, caminhos que nos guiam para alguns problemas filosóficos de cunho musical que Nietzsche viria dar acabamento ou remodelar em sua terceira fase. De porte dessa hipótese, a segunda fase não seria apenas uma ordinária transição entre a primeira e a última, mas o lugar onde algumas questões puderam ganhar terreno ou ser repensadas. Julgamos, ainda, que o elemento da música pode ser uma das chaves para compreensão desta intersecção de períodos. O que sugere olhar para Humano, demasiado humano (1878), primeira obra da segunda fase, interpretando-a como se Nietzsche estivesse em plena desilusão com o fazer artístico, é uma perspectiva corroborada, de fato, por certa apologia do autor à ciência. Não apenas a música, mas, tanto as artes como o artista passam a ser criticados por Nietzsche. Tal detração aponta para uma defesa incondicional da ciência? A resposta não é tão simples. Primeiro é necessário, antes de prosseguir em nosso intento, regressar um passo, isto é, caracterizar qual arte Nietzsche está denunciando e quais são seus motivos. Por sua vez, essa tarefa de identificar o sujeito que se assenta sobre o banco dos réus do julgamento em Humano nos submete à outra tarefa, a saber, a de destacar as principais características que evidenciam a mudança do primeiro para o segundo Nietzsche. N’O Nascimento da Tragédia (1872) Nietzsche fornece uma justificação para o mundo do ponto de vista da arte. Esta seria o instrumento por excelência que reconduziria a humanidade para uma nova forma de interpretação da existência. O pensamento intuitivo ganha força neste escrito, o que já não ocorre com o conhecimento racional. Não todas as artes, mas a música, para o jovem Nietzsche, liga o homem à essência do universo, portanto, “ela representa para nós toda arte e todo mundo artístico”. (KSA VII, 9[90])2. É preciso que fique claro que o autor d’O Nascimento concebe a arte, nesta fase, enquanto atividade que se atrela à essência, isto é, uma realização metafísica da vida, e que, além do mais, esse pensamento encontra seu alicerce nas duas principais influências de Nietzsche: Schopenhauer e Wagner. Analisando de um ponto de vista panorâmico3, Schopenhauer limita, em O Mundo como vontade e representação,4 o papel da razão, restringindo-a a explicação do mundo fenomênico. Dito de outra forma: a razão é cerceada pelo As citações dos póstumos, e, quando necessário, da obra publicada, seguem a edição de ColliMontinari: Kritische Studienausgabe (KSA), Berlin/New York/München: Verlag Walter de Gruyter , 1982. Todas as traduções das citações oriundas da KSA são nossas. 4 Dado que não é nosso foco e que sobre esse assunto há uma bibliografia consideravelmente extensa. Ver: HOLLINRAKE. R. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo . Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1986. 4 SCHOPENHAUER. A. O Mundo como vontade e representação. 1º Tomo. São Paulo: Editora Unesp, 2005. 2

256

princípio de razão suficiente, portanto, sua atividade atinge apenas o mundo empírico. Mas o filósofo vai além, para ele: a Vontade seria aquela essência – coisa-em-si – a qual não alcançamos pela razão. A forma pela qual nós podemos conhecer para além do mundo dos fenômenos – ver além do “véu de Maia” - se efetiva pela contemplação estética, pois assim: Não somos mais indivíduos que conhece em função do próprio querer incansável [...] mas somos o sujeito eterno do conhecer purificado de Vontade, correlato da Ideia. Sabemos que tais momentos, quando, libertos do ímpeto furioso da Vontade, nos elevamos, por assim dizer, acima da atmosfera terrestre, são os mais ditosos que se conhece. (SCHOPENHAUER. A. 2005. p. 494-495). É visível o quanto tal pensamento está arraigado sobre o solo da metafísica. A música, para Schopenhauer, é uma cópia direta da Vontade, ou seja, é através do fazer musical que a Vontade se manifesta de modo mais efetivo. Se as outras artes fazem o mesmo processo por meio das Ideias, a música o faz de maneira mais aguda. E aqui se tem um pensamento que, até certo ponto, está em consonância com a geração romântica: a ideia de que a música é a linguagem do inefável, da essência do universo que não se manifesta por conceito, mas que se mostra por relações de consonância e dissonância, características próprias da música. Neste ínterim, o pensamento estético de Schopenhauer é “pensado do ponto de vista filosófico no contexto da metafísica da música absoluta”. (DAHLHAUS. C. 1994. p. 37). É neste alicerce que Wagner repousa seu pensamento. Para o compatriota de Schopenhauer a música “não representa o mundo objetivo nem qualquer recorte dele, mas sim a essência metafísica que nele se expressa”. (BENCHIMOL. M. In: Kriterion. 2012. p. 184). Wagner, no entanto, dá um passo adiante de Schopenhauer. Para o compositor de Parsifal a música é uma Ideia do mundo e não, como em Schopenhauer, uma representação da Vontade. Por isso, se o autor de O Mundo defende que o efeito da música sobre o ouvinte é análogo ao das outras artes; todavia, apenas ocorre de forma mais completa, o compositor, por sua vez, não compara em nada a música com as outras artes, para ele: [...] o efeito da música sobre nós produz uma tal despotencialização da visão que, com os olhos abertos, não conseguimos ver com a mesma intensidade. Fazemos essa experiência em qualquer sala de concertos ao escutar uma peça musical que verdadeiramente nos comove, enquanto se desenrola diante de nós um espetáculo que é em si o mais dispersivo e o mais insignificante, e que, intensivamente observado, nos desviaria inteiramente da música e nos pareceria até mesmo ridículo. (WAGNER. 2010. p. 28)

257

Voltemos ao Nietzsche. O filósofo tinha profundo conhecimento das obras de seus compatriotas, ambos citados aqui. De maneira que as ideias desses faziam parte do repertório filosófico do primeiro Nietzsche. É na segunda fase que o autor de Humano passa, não apenas a romper com suas principais influências, mas também a reformular seu próprio pensamento. O que ele deixa claro já antes da publicação de Humano: “Eu quero esclarecer aos leitores das minhas obras anteriores que abandonei as opiniões metafísico-estéticas que dominam em essência”. (KSA. IV. 23[159]). O que significa este “abandono”? Para o autor de Humano a pergunta acerca das realidades suprassensíveis, típico das filosofias anteriores, já não tem legitimidade. Para argumentar em defesa dessa tese Nietzsche pretende mostrar os fundamentos humanos, demasiadamente humanos concernentes a moral, religião, arte e cultura. Para ele a filosofia sempre tendeu ao erro de contrapor ontologicamente o mundo em aparência, de um lado e, essência, do outro. Dessa forma supunha-se “para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da “coisa-em-si”. (NIETZSCHE. 2008. p. 15). Portanto, Humano está denunciando os ditames da metafísica pelo ponto de vista da imanência. A oposição essência-aparência já não existe para Nietzsche, pois o sensível é a única realidade possível. Ora, a própria razão passa a ser resignificada, pois “para Nietzsche a razão não é nada mais do que o movimento de uma ‘elucidação infinita’ e não manifestação de uma verdade absoluta como na metafísica dogmática”. (PERRAKIS. M. 2011. p. 14)5. O alicerce argumentativo de Humano é a história. A concepção presente nesta obra é a de que tudo tem uma história, isto é, todas as coisas do mundo possuem um devir que remonta a um processo e desenvolvimento imanente. A abrangência desse pensamento visa combater o “defeito hereditário dos filósofos” de acreditarem em realidades fixas e imutáveis. Como “tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas” (NIETZSCHE. 2008. p. 16) a nova perspectiva tomada por Nietzsche pretende, pois, partir de uma filosofia histórica, para mostrar a origem demasiadamente terrena das coisas humanas. Através da história, não apenas a razão, a filosofia e o homem são repensados por Nietzsche em Humano, mas também a própria arte. Destacamos, a seguir, alguns temas referentes à arte tratados por Nietzsche nesta obra. Se, quando jovem, o filósofo pretendeu uma justificação do mundo a partir do ponto de vista da metafísica do artista, e mais ainda, da música propriamente dita, o Nietzsche do Humano terá como base “uma estética musical formalista, que se Für Nietzsche ist die Vernunft nichts als anderes als die Bewegung einer „unendliche Verdeutlichung“ und keine Manifestation einer absoluten Wahreit wie in der dogmatischen Metaphisik. (tradução nossa). 5

258

alimenta do fervor criativo sem perder de vista, ao mesmo tempo, a posse dos procedimentos de criação”. (BARROS. F. M. 2007. p. 16). A propósito da arte, a tarefa de Nietzsche será análoga aos elementos de que o filósofo lança mão em sua crítica à filosofia. Mas, aqui, o foco será aqueles ideias que na arte foram determinantes para a estética do Oitocentos, a saber, as ideias de “gênio”, “inspiração divina”, “música enquanto linguagem do e para o sentimento”, entre outras. É possível ler em Wackenroder, por exemplo, a seguinte passagem de Phantasien über die Kunst für Freunde der Kunst: [...] No jogo dos sons, o coração humano aprende a conhecer a si mesmo, eles são o meio pelo qual aprendemos a sentir nosso sentimento; eles dão consciência vivente aos espíritos sonhadores escondidos nos recantos da alma e enriquecem nosso interior com espíritos dos sentimentos totalmente novos e encantadores [...] nenhuma arte pinta as sensações de um modo tão artístico, corajoso e poético. (WACKENRODER. 1968. p. 127)6. Dentre vários autores do Oitocentos, Wackenroder é mais um a interpretar a arte do ponto de vista de seu vínculo com a natureza, além de sua origem supostamente miraculosa. Logo, arte e natureza se relacionavam, na interpretação do Romantismo, pois as duas tinham como fundamento o “divino”. Para desmitificar a origem “oculta” da arte e, também, para mostrar que ela “não pertence à natureza, mas somente aos homens” (KSA. IV. 23[150]), Nietzsche começa por mostrar o processo humano que há no fazer artístico, mais especificamente, no do “gênio”. No aforismo 162 de Humano intitulado Culto ao gênio por vaidade, Nietzsche mostra que a ideia de gênio é originada por uma fraqueza do público ante a criação de um artista. Pela incapacidade da maioria dos homens de fazer “um esboço de um quadro de Rafael ou a cena de um drama de Shakespeare” (NIETZSCHE. 2008. p. 115) tais homens acabam por atribuir ao artista uma capacidade sobre-humana e à obra uma expressão excessiva de maravilha (übermässig Wunderbar). Assim, os artistas são postos acima dos homens para que esses não se sintam inferiores – dado que a “inspiração” divina foi concedida apenas aos poucos gênios escolhidos. Dessa forma, “o gênio não fere” (Ibid). Mas esse culto em demasia ao gênio não beneficia apenas ao povo, mas também valoriza o processo criativo do gênio, assim como o faz acreditar em seus In dem Spiel der Töne lernt das menschliche Herz sich selber kennen; sie sind, es, wodurch wir das Gefühl fühlen lernen;. Sie geben vielen in verbogenen Winkeln des Gemüts träumenden Geistern, lebendes Bewusstsein, und bereichern mit ganz neuen zauberischen Geistern des Gefühls unser Inneres. [...] keine Kunst schildert die Empfindungen auf eine Art so Künstliche, Kühne und dichterisch. (tradução nossa). 6

259

dons inatos. Para Nietzsche o próprio artista criador se esquece do processo pelo qual ele mesmo se dispôs a passar para criar sua obra. A longo prazo os efeitos são: [...] o sentimento de irresponsabilidade, de direitos excepcionais, a crença de estar nos agraciando com seu trato, uma raiva insana frente à tentativa de compará-los a outros [...] Como deixa de criticar a si mesmo, caem, uma após outra as rêmiges de sua plumagem: tal superstição mina as raízes de sua força e talvez o torne mesmo um hipócrita. (NIETZSCHE. 2008. p. 117)7. O gênio, como nós vimos na citação, se torna mortal, assim, nem é um receptáculo de uma inspiração extraterrena nem “é mais um artista solitário e incompreendido, extemporâneo e divino” (BURNETT. H. In: Estudos Nietzsche. 2010. p. 321), tal como se “a ideia da obra de arte, do poema, o pensamento fundamental da filosofia, caísse do céu como um raio de graça” (NIETZSCHE. 2000. p. 111). Mas então, o que é o artista? No entender de Nietzsche “a atividade do inventor mecânico, do sábio em astronomia ou história, do mestre na tática militar” (2008. p. 115) tem a mesma natureza e forma da atividade do artista. A comunhão desses ofícios para com a arte está no processo laborioso a qual elas recorrem. Para Nietzsche a arte é fruto de um processo árduo e contínuo, demasiadamente humano e histórico. É por isso que não se separa o oficio do músico, por exemplo, como ofício do mecânico, pois o músico, e, de modo geral, todos os artistas, “são grandes trabalhadores, incansáveis não só em inventar mas também em aprimorar, transformar, ordenar e até mesmo reprovar todo material armazenado na produção de uma obra”. (DIAS. R. M. In: O que nos faz pensar. 2000. p. 59). Assim, a “receita” de Nietzsche seria que o homem aceitasse para si a “seriedade do oficio”, isto é, torna-se necessário aceitar que, para a criação de uma grande obra de arte, pressupõem-se a utilização e aprovação de métodos, modelos e professores. A arte não seria o oposto da ciência, neste sentido, pois ela

7Esta

citação é extremamente curiosa, pois é muito provável que Nietzsche esteja se referindo ao compositor Richard Wagner, que, como vimos, era uma de suas principais influências. Wagner era muito conhecido por sua personalidade forte, não apenas do ponto de vista psicológico. Enquanto intelectual Wagner queria “alcançar ainda mais longe. Ele não queria apenas reformar e reordenar a música e a ópera, mas também a completa contemplação artística, por fim até mesmo a conexão dos homens em seu meio ambiente espiritual, social e político”. (NESTLER. G. 1990. p. 484). Nietzsche está mostrando o quanto Wagner ficou cego com relação ao seu papel dentro da sociedade. (Segue a citação de Nestler no original: Wagner wollte jedoch weit mehr erreichen. Er

wollte nicht nur den Klang und die Oper, sondern auch die gesamte Kunstanschauung, schliesslich sogar das Verhältnis des Menschen zu seiner geistigenm sozialen und politischen Umwelt reformieren und neu ordnen. (Tradução nossa).

260

também constrói “pedra sobre pedra” até chegar num resultado. Esse pensamento está bem metaforizado na seguinte passagem do aforismo 231 de Humano: [...] para recorrer a outra imagem: alguém que se perdeu completamente ao caminhar pela floresta, mas que, com energia invulgar, se esforça para achar uma saída, descobre às vezes um caminho que ninguém conhece: assim se formam os gênios, do quais se louva a originalidade. (NIETZSCHE. 2008. p. 147).

Não apenas a concepção de gênio foi repensada no segundo Nietzsche, mas também a música. Existe em Humano uma revisão do posicionamento de Nietzsche quanto à forma que ele interpretava a música nos tempos d’O Nascimento. A música, evidentemente, já não tem, em Humano, o papel principal nas considerações do filósofo. Todavia, isso não significa que a música não tenha importância no segundo Nietzsche, pelo contrário, existe aqui uma nova interpretação da música que se nos afigura talvez mais significativa, do ponto de vista filosófico musical, do que àquela d’O Nascimento. Primeiramente, pois essa nova interpretação foi admitida e discutida dentro da filosofia da música posterior e, por outro lado, ela se introduziu dentro de um debate vigente no século XIX. É nesse debate que iremos nos debruçar. II As considerações feitas por Nietzsche são partes integrantes de uma querela presente no século XIX, no campo da música, que envolvia o crítico musical vienense Eduard Hanslick e o compositor Richard Wagner. Em suma, tratava-se de responder a questão sobre a autonomia do discurso musical, isto é; se a música é uma linguagem que expressa e representa sentimentos, ou, se ela é, ao contrário, a materialização de estruturas estritamente musicais. De um lado havia o cortejo romântico, encabeçado pelas ideias de Richard Wagner, defensores da música enquanto uma linguagem imediata, pois “...a linguagem dos sons é comum a toda humanidade [...] e a melodia é a língua absoluta pela qual o músico fala diretamente aos corações”. (WAGNER. 2010. p. 9). Portanto, dentro dessa concepção da estética do sentimento, a música é uma linguagem que toma por parâmetro e meta seus efeitos sobre o ouvinte. O próprio Wagner deixa claro, em Beethoven sua divergência com seu opositor Eduard Hanlick: [...] a arte musical sofreu uma evolução que a expôs a um tão grande mal-entendido quanto a seu verdadeiro caráter que dela se exigiu um efeito semelhante aos das obras de artes plásticas, ou seja, o de suscitar o prazer nas belas formas. (2010. p. 32).

261

Nesse contexto, a história não tem qualquer importância, para Wagner, no que se refere à fruição e criação de uma obra musical. Para que seja comunicada, a melodia é entendida, nesse pensamento, como autônoma, não precisando nem recorrendo a intermediários. Para o compositor, a validade da melodia é universal e atemporal, não se vincula a um período específico, mas se comunica com o homem sem a interferência de elementos que se situam na história de um individuo ou de um povo. Em contraposição a Wagner, o crítico Eduard Hanslick escreve, em Do Belo Musical, que o único objetivo da música é a expressão de suas relações sonoras, por isso, para ele, a música é entendida enquanto “formas sonoras em movimento” (HANSLICK. 1989. p. 62). Para Hanslick, “os efeitos emocionais não tem conexão necessária com as características musicais de uma peça, esses efeitos dependem de outros fatores, como premissas fisiológicas e patológicas” (GRENZDÖRFFER. K. 2008. p. 38).8 Ainda em oposição à estética do efeito defendida por Wagner, “Hanslick procura estabelecer uma autonomia da obra de arte não em seu efeito sobre o sujeito, mas, pelo contrário, uma autonomia baseada no próprio objeto de arte” (VIDEIRA. M. In: Músicahodie. 2005. p. 46). Para Hanslick, o critério da audição e da própria crítica da arte tem de ser o objeto mesmo da fruição artística e não seu receptor. Mas há um elemento que parece unir as considerações de Hanslick com as de Wagner: o papel da história. Na obra de Hanslick, a historicidade da audição musical e da composição não são temas ausentes, contudo, para o crítico vienense esse é um problema de segunda ordem. No que tange a recepção do material musical pelo ouvinte, Hanslick afirma que há “certas leis fundamentais primitivas que a natureza estipulou para a organização do ser humano e para as manifestações sonoras externas” (HANSLICK. 1989. p. 66). Assim, o ato de compor uma peça musical, para o autor, não tem relação com a representação de um sentimento ou de uma imagem tampouco depende de fatos externos ao próprio fazer musical. [...] A pesquisa estética nada sabe e nada saberá das relações pessoais e do ambiente histórico do compositor; ela só ouvirá o que a própria obra de arte exprime e acreditará nisso. [...] O caráter de toda peça musical tem, por certo, “uma ligação” com o do seu autor, mas essa ligação não existe para o esteta; a ideia da relação necessária de todos os fenômenos, em sua

Die emotionale Wirkung steht nicht in notwendigem Zusammenhang zu den musikalischen Eigenschaft des Stücks, denn sie sind abhängig von anderen Faktoren, wie physiologischen und pathologischen Voraussetzungen. 8

262

concreta demonstração, pode ser exagerada até a caricatura. (1989. p. 81-82). Hanslick, portanto, fundamenta que a história não tem prerrogativa na análise do esteta, justamente, pelo fato da obra e do material sonoro serem analisados independentemente. Assim, o autor faz uma separação entre “compreensão histórica e o juízo estético” (Ibid) entendendo que essas formas de compreensão musical são intimamente distintas, cabendo ao historiador da arte – e não ao filósofo - fazer o paralelo entre uma arte e seu tempo. Parece-nos que tanto Hanslick como Wagner cometem, para Nietzsche, um erro categórico: o de reduzir a importância da histórica na análise da música. Nietzsche chama, em Humano, a audição, do ponto de vista daquela defendida por Wagner, de audição simbólica (2008. p. 132), pois nessa escuta somos conduzidos por sentimentos e representações. Para Nietzsche, esses sentimentos ou representações gerados não têm um fundo miraculoso, mas, ao contrário, na base deste tipo de audição se encontraria “uma ousada generalização de hábitos e atividades bem localizáveis” (BARROS. F. M. 2007. p. 73), ou seja, de fundo histórico. Assim, ao longo de um processo, o intelecto colocou “sentido” aos intervalos, às consonâncias e dissonâncias, de modo que, por exemplo, a melodia composta em escala menor nos suscite um sentimento de tristeza. Por isso “em si, nenhuma música é profunda tão pouco significativa” (NIETZSCHE. 2008. p. 132), mas, “graças ao extraordinário exercício posto pelo intelecto” (Ibid. p. 133) o homem acredita que a música fala diretamente aos corações. Já em oposição a Hanslick, Nietzsche reconhece que o processo e desenvolvimento da música são determinantes na análise que fazemos dela. Se, para o crítico vienense, a audição se dá de forma unicamente autônoma, o filósofo argumenta a favor de uma fruição musical que se efetiva por meio de uma educação auditiva. Em relação à discordância de Nietzsche a Wagner, o filósofo aponta para um fundo histórico no processo de audição simbólica da música. As origens do sentimento da música, Nietzsche reconhece na religião. No aforismo Origem religiosa da música (Ibid. p. 135) o filósofo mostra que a música dotada de uma carga sentimental não é uma prerrogativa do Romantismo. Para Nietzsche, do Renascimento ao Barroco, isto é, de Palestrina a Bach, a música religiosa se valeu cada vez mais dos “artifícios da harmonia e do contraponto” (Ibid), portanto, foi aos poucos conciliando aspectos formais e estruturais com uma carga de sentimento, próprio de sua relação – principalmente nas composições de Bach – onde adquire uma função litúrgica. Com Bach, o contraponto chega a um grau de refinamento sem precedentes, portanto, agregaram-se cada vez mais os elementos estritamente musicais; contudo foi trazendo elementos da Ópera, “na qual o leigo manifestava seu protesto contra uma música que se tornara fria, excessivamente douta...” (Ibid) que a música religiosa introduziu sentimentos de profundidade e espiritualidade.

263

Diante das posições de Hanslick e Wagner acerca do sentimento na música, parece-nos que em Nietzsche encontramos uma terceira via de interpretação. Pois o filósofo constata que se a música ficasse afastada da religião, ela “teria permanecido douta ou operística...” (Ibid. p. 136). A interpretação nietzscheana parece defender uma audição em que o ouvinte é guiado pela organização e relação das notas, pelo ornamento e todos os elementos formais da música, isto é, pelo estado “cru” da música (Ibid. p. 132), mas, ao mesmo tempo, que o grau de profundidade sentimental que a música adquiriu também não deve ser deixado de lado na fruição musical. Com a explicação da origem religiosa da música moderna, Nietzsche aponta para a própria história como responsável por nossa forma de audição. Se, por um lado, escutar a música apenas enquanto “formas sonoras em movimento”, é, para Nietzsche, apenas um modo reduzidamente douto de audição, pois assim estaríamos nos portando unicamente como cientistas da técnica musical, por outro, ouvir uma obra musical tomando por critério a capacidade de tal obra estimular a sensibilidade é o mesmo que deixar de contemplar o próprio objeto musical, que são suas relações sonoras. Veremos que o elogio à música e à arte não se reduz nesta interpretação histórica. Já estamos aptos a mostrar outra parte afirmativa do segundo Nietzsche, pois já identificamos os sujeitos em Humano, alvos das críticas de Nietzsche: Schopenhauer, Wagner, Hanslick, o Romantismo e, sobretudo, o próprio Nietzsche da primeira fase. Por isso, parece-nos que a apologia do autor à ciência se assemelha mais a um antídoto contra as redes do dogmatismo as quais o próprio Nietzsche se achava preso do que uma recusa cabal da arte. O movimento contrário a esse imbróglio começa em Humano, mas se desenvolve e se torna mais claro em Aurora e A Gaia Ciência. III Nos escritos posteriores a Humano, Nietzsche parece abdicar, em parte, do seu pacto com a ciência. A atividade artística se fundamenta, nestes escritos, em relação à vida, isto é, possibilita uma forma específica do homem se guiar pela existência – concepção que será trabalhada ainda mais em sua terceira fase. Já em Humano, no aforismo 222, intitulado O que resta da arte Nietzsche, ao se perguntar sobre o que resta da arte, afirma: Antes de tudo, durante milênios ela nos ensinou a olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a levar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: ‘Seja como for, é boa a vida’. Esta lição da arte, de ter prazer na existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem excessivo envolvimento [...] vem agora

264

novamente à luz com necessidade todo-poderosa conhecimento. (NIETZSCHE. 2008. p. 140-41)

de

A arte é, para Nietzsche, uma forma específica de experiência. Diferente do que faz o cientista, o artista nos faz olhar para a existência de uma maneira distanciada, sem a seriedade da ciência. Portanto o fazer artístico é o modelo antimetafísico, pelo qual a vida é interpretada e o conhecimento resignificado. Se o processo artístico é encarado como o construir e destruir, sempre num movimento constante e sem determinação, a vida também o é, pois, como afirma Nietzsche em Aurora: “Quando se exalta o avanço, exalta-se apenas o movimento [...] eu louvo o passo avante e aqueles que prosseguem, isto é, que sempre deixam a si mesmos para trás...” (NIETZSCHE. 2004 b. p. 277). Como numa música, em que cada nota se fixa e, logo, se dissolve, dando lugar a uma correlativa, a vida também passar por esse processo em que tudo se constrói para logo se destruir, sem determinar uma fixação. Assim, a arte não é mais interpretada por Nietzsche da mesma forma que a tradição a tratou. Não se trata mais em falar de arte como uma exclusividade dos objetos artísticos, mas de um modo afirmativo de existência, isto é, musical por excelência. No aforismo 54, A consciência da aparência, d’A Gaia ciência, Nietzsche se coloca na posição do “homem do conhecimento”, que acorda de um sonho. Mas essa passagem do “homem do conhecimento” para um estado de vigília não ocorre para que o homem se livre do estado de sonho, de engano e ilusão, ao contrário, o homem acorda para se tornar consciente da necessidade do sonho, pois ele tem de “...prosseguir sonhando para não cair por terra”. (NIETZSCHE. 2004. p. 92). Assim, a aparência, para Nietzsche, não é mais o oposto da essência, mas “aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência” (Ibid). Nesta perspectiva, o que seria audição musical? Primeiro Nietzsche fornece uma visão hanslickiana. Em É preciso aprender a amar, aforismo 334 d’A Gaia ciência, o filósofo afirma que o processo da audição é um caminho pelo qual nos habituamos às figuras do discurso musical, “delimitando, isolando, marcando como uma vida para si...” (KSA. FW. 334). Vemos aqui uma concepção formalista do discurso musical. Mas entendemos que Nietzsche vai além. A experiência musical tem de estar para além da audição que se volta para o jogo de notas e acordes de uma música, isto é, perceber a música apenas como um discurso formal de relações seria algo análogo a um cientificismo musical. Além disso, ouvir a música como se ela nos transmitisse sensações e representações, ou seja, como se fosse uma linguagem para nosso interior – posição semelhante àquela de Wagner citada anteriormente - é, no entender de Nietzsche, fazer uma descaracterização da beleza da aparência. Essa audição vinculada aos efeitos nos tira da mencionada consciência da ilusão, logo, da aparência. Na explicação de Maria João Branco:

265

Para Nietzsche, a experiência de ouvir música pode promover o exercício do pensamento e da liberdade justamente quando exige, no momento de sua escuta, uma suspensão das categorias já existentes e uma atenção que não é uma imposição de sentidos ou significados já conhecidos, mas aquilo que Nietzsche define como um exercício de aprendizagem e auto-aprendizagem. (BRANCO. In: Cadernos Nietzsche. N. 31. 2012. p. 229) As condições que envolvem a escuta musical, já nas caracterizações feitas por Nietzsche em sua segunda fase nos remetem ao O Caso Wagner. Em Aurora podemos ler: “A – [...] Não falo verdadeiramente de música “boa” e “ruim” [...] Chamo de música inocente aquela que apenas em si pensa e acredita, e consigo esquece do mundo”. (Aurora. 2004 b. p. 173). Posteriormente Nietzsche afirma: Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço sua causa. Parece-me presenciar sua gênese – estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatam-me os acasos felizes de que Bizet é inocente. (NIETZSCHE. 1999. p. 12) Ou seja, o que Nietzsche reconheceria mais tarde na música de Bizet é uma concepção de música que já encontra seu fundamento em Humano e, posteriormente, em Humano II, Aurora e A Gaia Ciência. A experiência artística paira por sobre a moral sem mesmo levá-la a sério, por isso, mesmo que o objetivo de Aurora, por exemplo, seja a moralidade – conforme seu subtítulo: Reflexões sobre os preconceitos morais – Nietzsche nunca perde de vista a base artística de seu argumento. Pensamos, assim, que o segundo Nietzsche faz uma defesa da ciência – coisa que será repensada em sua terceira fase – mas não perde de vista o esteio da arte enquanto condição de interpretação da vida. Nisto ele não apenas se afasta do seu pacto com a ciência, evidente em Humano, mas compõe um pensamento original, e, nesse contexto, a arte tem um papel fundamental, pois quem “o possibilita (Nietzsche) esse ficar ‘acima’ da moral é também a arte ou, mais propriamente falando, a küntlerische Ferne, a ‘distancia artística’”. (CHAVES. In: Kriterion. 2005. p. 281).

BIBLIOGRAFIA: WAGNER. R. Beethoven. Trad. Anna Hartmann Cavalcanti. São Paulo: Editora Zahar, 2010. BARROS. F. M. O pensamento musical de Nietzsche. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.

266

BENCHIMOL. A música como Aia da Vontade: Ensaio sobre a leitura wagneriana de Schopenhauer. In: Kriterion. N. 125. Belo Horizonte. 2012. BOLTEN-KÖLBL. R. Das Pathos des Dionisischen Zum Verhältnis von Philosophie und Musik bei Nietzsche. Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde der Philosophischen Fakultät der Universität der Bonn. Bonn. 2001. BRANCO. M. J. A música, nossa percursora. Acerca da música na filosofia de Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo: N. 31, 2012. BURNETT. H. O silêncio das musas: a música em Humano, demasiado, humano. In: Estudos Nietzsche. Curitiba: V. 1, N. 2. 2010. CARPEAUX. O. M. O Livro de Ouro da História da Música: da Idade Média ao século XX. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 2001. CAZNÓK. Y. B, NETO. A. F. Ouvir Wagner – Ecos Nietzschianos. São Paulo: Editora Musa, 2000. CHAVEZ. E. O trágico, o cômico e a “distância” artística: Arte e conhecimento n’A Gaia ciência, de Nietzsche. In: Kriterion. N. 112. Belo Horizonte. 2005. DAHLHAUS. C. Die Idee der absoluten Musik. Basiléia: Verlag Bäarenreiter, 1994. DIAS. R. M. Nietzsche e a Música. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994. ___________. A Música em humano, demasiado humano. In: O que nos faz pensar. São Paulo. 2000. GRENZDÖRFFER. K. Eduard Hanslicks Musikästhetik. In: Sound Studies. Seminararbeit. Universität der Künst. Berlim. 2008. HANSLICK. E. Do Belo Musical. Trad. N. Simone Neto. Campinas: Editora Unicamp, 1989. _________________. Vom musikalisch-Schönen: Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der Tonkunst. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973. HOLLINRAKE. R. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1986. LAUTER-MÜLLER . W. Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wanger. São Paulo: In: Cadernos Nietzsche. Volume 6. 1999. MILLINGTON. B. (Org.) Wagner, um compêndio. Rio de janeiro: Editora Jorge Zahar, 1995. NIETZSCHE. F. Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Verlag Walter de Gruyter, 1982. ____________________, A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ____________________, Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004.

267

____________________, Humano demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000. ____________________, Humano demasiado humano II. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008. PERRAKIS. M. Nietzsche Musikästhetik der Affekte. München: Verlag Karl Alber, 2009. SCHOPENHAUER. A. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

268

O PROCESSO DE EMERGÊNCIA MUSICAL: UM ESTUDO SOBRE AS PERSPECTIVAS NATURAIS E SOCIAIS DO COMPORTAMENTO MUSICAL Felipe Pacheco [email protected] Graduando em música pela UFPR

Resumo: Este artigo tem por objetivo situar a música como um fenômeno que pertence ao âmbito natural intríseco do ser humano, bem como ao âmbito social. Portanto busca-se reduzir a dualidade natural-social, entendendo-se a emêrgencia do comportamento musical como um processo contínuo entre os fatores naturais e sociais da música. Nessa perspectiva, entende-se a linguagem musical como o ponto principal desse processo, pois seria através dela que se daria a construção das características e funções musicais, em uma cultura específica. O trabalho está dividido em três momentos: do fator natural, do fator social, e da junção de ambos, isso é, da síntese natural-social pela analogia da linguagem. Palavras – chave: musicalidade natural, fatores sociais culturais, emêrgencia do comportamento musical.

INTRODUÇÃO Segundo Hauser E Mcdermott, 2003, e Gray e colaboradores (2001) apud Rodrigues (2009), a música é uma arte e forma de expressão humana presente em todo mundo, independentemente de classe social, língua, idade ou gênero. Dito isso, sob uma perspectiva de análise superficial, poderíamos dizer que a música é um elemento essencial para o ser humano. No entanto, o pesquisador Steven Pinker (2001), em seu livro Como a mente funciona, defende outra opinião, ao tratar a música como um elemento inútil do ponto de vista evolutivo e adaptativo do homem: No que se refere à causa e efeito biológicos, a música é inútil. Ela não aponta para um caminho que garanta objetivos como uma vida longa, a existência de netos, ou uma percepção e previsão exatas do mundo. Se comparada à Linguagem, visão, pensamento social, e conhecimento físico, a música poderia desaparecer de nossa espécie deixando o resto de nosso estilo de vida praticamente inalterado. (PINKER, 2001, p. 528).

Ao assumir tal posição, o autor lança inevitavelmente o questionamento sobre as funções da música, sua origem e principalmente sobre como sobreviveu tanto tempo entre todas as sociedades humanas que se tem notícia. A resposta de Pinker a esse questionamento consiste em reduzir a música a um coquetel de prazer que “ingerimos” através do ouvido, e que não comunica nada. Para o autor, a inutilidade da música está diretamente relacionada à linguagem e seu potencial

269

de comunicabilidade. Nesse caso, segundo o autor, apesar de ter alguns aspectos em comum com a linguagem, a música seria realmente inútil, pois não comunica nada, enquanto que a linguagem seria um elemento essencial para o desenvolvimento humano justamente devido a seu poder de comunicação. Obviamente esses questionamentos sobre a essencialidade e características evolutivas da música levantaram argumentações contrárias. Daniel Levitin (2011) contrapõe-se a Pinker no sentido de tentar provar que a música é na verdade um elemento essencial ao ser humano, pois pode ter sido anterior a própria linguagem. Ilari (2006) também destaca que, ao sugerir que a música é inútil do ponto de vista biológico e que se não existisse, nada se alteraria em nosso estilo de vida, Pinker realmente desconsidera a inegável importância da música enquanto elemento social e cultural, muito embora não negue que a música possa vir a ser um elemento evolutivo indireto (um subproduto). Considerando essa relevância social/cultural da música, bem como suas possíveis origens evolutivas e biológicas fundamentais ou parciais, verdadeiras, emerge o questionamento inicial de qual seria a importância de cada uma das duas premissas (natural e social) e qual o papel de cada uma delas no comportamento musical resultante em cada indivíduo. Assim, distanciando-se um pouco da questão da essencialidade ou não essencialidade evolutiva da música e se aproximando da questão do processo do comportamento musical, o presente trabalho busca, através de revisões bibliográficas, situar a música como um elemento natural pertencente à espécie humana, e ao mesmo tempo, um elemento cultural pertencente à sociedade em que existe. A hipótese levantada será detalhada dialeticamente em três momentos: do fator natural, do fator social e da junção de ambos, isto é, da síntese natural-social pela analogia da linguagem. O primeiro consistirá em uma abordagem mais biológica, que tenta explicar o comportamento humano através de um viés evolutivo. Essa abordagem propõe que as estruturas mentais psicológicas e as características sociais básicas do ser humano (relacionadas à música) são inatas e universalmente compartilhadas, provindas da seleção natural. Assim, nesse primeiro momento se busca afirmar a naturalidade musical, bem como investigar qual o seu papel na evolução do ser humano. O segundo terá o foco mais voltado para a cultura, sociedade e instituições sociais. Essa abordagem considera que os padrões do comportamento musical são aprendidos através do contato e interação com a cultura, através das instituições sociais, sendo assim específicos de cada cultura em particular. Assim, nesse segundo momento, busca-se afirmar que a música é um elemento essencialmente cultural e que, portanto, suas características e funções dependem do contexto cultural e social. Finalmente, no terceiro momento, se buscará explicar o processo de emergência do comportamento musical, através da junção complementar dos

270

fatores natural e social. Nesse sentido, tentar-se-á definir de que forma a música, que seria um fenômeno natural, se estrutura a partir da linguagem musical da cultura onde está inserido. A MUSICALIDADE NATURAL O problema apresentado na introdução sobre a importância evolutiva da música pode ser bastante pertinente para analisar a questão da musicalidade natural. Ora, se o comportamento musical é comum a todos por ter origem na adaptação evolutiva, poder-se-ia sustentar, de maneira consistente, que a musicalidade é realmente biologicamente inata ao ser humano. Daniel Levitin (2011) baseia sua argumentação na biologia evolutiva, sustentando que o comportamento musical teria sido um elemento importante para a evolução humana por conta de vários aspectos que ele distribui em quatro possíveis argumentos: 1. Reprodução e linguagem: Primeiramente o autor cita Darwin, ao afirmar que a linguagem se desenvolveu a partir dos sistemas de comunicação dos animais baseados em chamados sonoros e que o comportamento musical foi determinante na seleção reprodutiva. A capacidade musical, de cantar e dançar (atividades que eram inseparáveis em sociedades primitivas), que exige complexas habilidades, indicaria uma boa saúde física e mental e uma riqueza de recursos materiais, pois se houve tempo disponível para o desenvolvimento da musicalidade, a necessidade de recursos básicos já estava suprida. Além disso, segundo Levitin (2011, p. 284), “Darwin considerava que a música antecedia a fala como ferramenta para fazer a corte, equiparando-se à cauda do pavão”. Um dos fatores que comprovariam isso é o fato de que a música está há muito tempo em nossa história. De acordo com o autor, existem instrumentos musicais datados de 50 mil anos e que provavelmente o canto já era praticado antes do advento de qualquer instrumento, assim a música seria anterior à agricultura e provavelmente anterior à linguagem. Para Levitin, uma atividade de pouco valor adaptativo não tem muitas chances de ser praticada durante tanto tempo na história da espécie, ocupando uma parte tão significativa desse tempo e energia. 2. Coesão social: A segunda possibilidade levantada sobre a importância evolutiva da música é a da utilização da música para a vinculação e coesão social. O fazer musical coletivo poderia estimular a coesão e sincronia grupal, fortalecendo os laços sociais. Sobre a influência da música na interação social e interpessoal, Ilari (2006) afirma que a música exerce alguma função em todas as culturas e sociedades, e uma das principais funções, no mundo ocidental, é a interferência nas relações interpessoais em atividade como: “ninar crianças, dançar, contar histórias, comemorar eventos especiais, vender produtos, entreter, curar e rezar”. Segundo Huron (1999) apud Ilari (2006), a música exerce,

271

portanto, um papel importante para a evolução da espécie criando cenários para os relacionamentos humanos. Em uma pesquisa com um grupo de indivíduos diagnosticados com a síndrome de Williams (SW) e outro grupo diagnosticado com transtornos do espectro autista (TEA), Levitin e Bellugi obtiveram alguns resultados que podem reforçar a teoria da relação entre música e coesão social. Nessa pesquisa foi observado que indivíduos acometidos de TEA, que costumam ter grande incapacidade de empatia social e de entender emoções, apresentaram em sua maioria total incapacidade de apreciação de qualidade estética e emocional da arte e música. Segundo Levitin, os poucos indivíduos com TEA que se tornam músicos relatam não entender emocionalmente a música, mas a apreciam pela complexa estrutura que ela pode apresentar. Por outro lado, Indivíduos acometidos da síndrome de Williams, que normalmente são extremamente sociáveis, apresentam-se particularmente musicais. Essa dupla dissociação reforçaria a teoria de que possivelmente um mesmo agrupamento de genes influenciaria ao mesmo tempo a sociabilidade e a musicalidade. De fato, de acordo com o autor, os comprometimentos cerebrais de ambas as disfunções são complementares. O neocerebelo é maior que o normal em indivíduos com SW, e menor em indivíduos com TEA. Levitin conclui esse argumento afirmando que essa região cerebral (cerebelo) já é muito relacionada à música por estudos de cognição musical. 3. Cognição: O terceiro argumento levantado é de que a música teria promovido o desenvolvimento cognitivo humano. Para o autor, as habilidades musicais teriam ajudado a espécie humana a desenvolver habilidades motoras precisas, que seriam necessárias para o desenvolvimento da fala vocal ou gestual. Como apresenta semelhantes características com a linguagem, nessa argumentação a música poderia ser também um fator importante para o desenvolvimento de estruturas mentais necessárias para a prosódia linguística e interação social. A música funcionaria como um jogo que ajuda a desenvolver a capacidade exploratória e generativa, desenvolvendo competências necessárias à linguagem falada antes mesmo que o cérebro esteja pronto para processar elementos fonéticos. 4. Comportamento musical em animais: O quarto e último argumento para a importância evolutiva da música é baseado em comportamentos musicais de outros animais. Segundo Levitin (2011, p. 297), “[...] se pudermos comprovar que outras espécies usam a música com finalidades semelhantes, teremos aí um forte argumento evolutivo”. De acordo com o autor, animais como os pássaros, as baleias, os gibões, os sapos e outras espécies fazem vocalizações e as usam para diferentes fins. Os chipanzés, por exemplo, fazem chamados de alerta diferentes e específicos para cada tipo de predador. Esses chamados são diferenciados por uma questão de proteção, pois o grupo deve tomar atitudes diferentes conforme o tipo de predador. Algumas espécies de pássaros machos utilizam vocalizações

272

para marcar território e também alertar a aproximação de um predador. Outras espécies de pássaros fazem vocalizações relacionadas à corte, aproximando-se mais da teoria de Darwin quanto à origem da música. Segundo Levitin, para alguns pássaros, o tamanho do repertório do macho representa a sua capacidade intelectual e de bons genes, atraindo assim mais fêmeas. Para o autor, a capacidade generativa musical não é exclusivamente humana, estando presente também nos pássaros. Supostamente várias espécies vão além da imitação e geram seus cantos a partir de sons básicos, criando novas melodias e variações. O macho que apresenta cantos mais elaborados é o mais bem sucedido em acasalamentos. Concluindo, Levitin afirma: As origens evolutivas da música estão estabelecidas porque ela está presente em todos os seres humanos (atendendo, assim, ao critério de disseminação numa espécie adotado pelos biólogos); envolve estruturas cerebrais especializadas, entre elas sistemas mnemônicos específicos que podem continuar funcionando quando outros falham (quando um sistema cerebral físico se desenvolve em todos os seres humanos, presumimos que ele tem uma base evolutiva); é análoga ao fazer musical em outras espécies. Em condições ideais, as sequências rítmicas estimulam redes neurais recorrentes no cérebro dos mamíferos, entre elas circuitos de “feedback” entre o córtex motor, o cerebelo e as regiões frontais. Os sistemas tonais, as transições entre alturas e os acordes desenvolvem-se segundo certas propriedades do sistema auditivo que, por sua vez, são produtos do mundo físico, da natureza intrínseca dos objetos vibrantes. Nosso sistema auditivo desenvolve-se de formas que jogam com a relação entre as escalas e as séries harmônicas. Em música, a novidade atrai a atenção e neutraliza o tédio, aumentando a memorabilidade. (LEVITIN, 2011, p. 299).

Por outro lado, utilizando da perspectiva pertencente à psicologia cognitiva, Sloboda (2008) concluiu, através de estudos neurais, que a música utiliza várias regiões cerebrais: “[...] a música não é uma capacidade única e monolítica, que existe ou não existe em um indivíduo.” (Sloboda, 2008, p. 346). Com essa afirmação o autor pretendeu explicitar que existem várias subhabilidades musicais independentes e que, portanto, também são anatomicamente independentes. O cérebro especializou diferentes regiões para a concepção da música. Portanto, além da estrutura do sistema auditivo para simplesmente ouvir os sons, há a diferenciação das características musicais por distintas regiões cerebrais, resultando em relações musicais muito mais complexas. De acordo com Sloboda, as emoções e significados atribuídos a essas relações são um dos principais elementos que explicam a universalização da música: “Não se explicaria que a música tenha penetrado até a base de tantas culturas diferentes, se não existisse alguma atração fundamental pelo som organizado que transcende as barreiras culturais” (Sloboda, 2008, p. 3). Ao discorrer sobre as origens e funções da música, Sloboda (2008) difere em parte à argumentação de Levitin, afirmando que a teoria proposta por Darwin

273

para explicar o papel da música na seleção sexual está longe de ser convincente. Em sua explicação, Sloboda considera relevante a observância do comportamento “musical” de macacos, que são os animais mais próximos ao ancestral humano, afirmando que as vocalizações dos macacos servem somente para chamados de perigo ou coisas análogas, não se baseando em qualquer padrão de escala ou ritmo e estão longe da qualidade organizacional da música humana. Portanto, segundo o autor, apesar das semelhanças, há uma grande “lacuna qualitativa” nessa comparação, além de que não há nessa relação um indício claro de como o comportamento musical teria proporcionado melhores condições de sobrevivência, para ser caracterizado como uma adaptação evolutiva, diferentemente da linguagem ou outras habilidades, cuja vantagem adaptativa é muito mais óbvia. Assim o autor levanta inevitavelmente uma questão parecida com a que foi apontada inicialmente por Pinker. Segundo Sloboda: O homem precisa da música? Se ele precisa, então sua privação deveria ser de alguma maneira prejudicial. Sabemos, por exemplo, que o sono é necessário aos seres humanos, já que a privação contínua do sono tem efeitos prejudiciais, físicos e psicológicos. Nesse sentido, a música é bem diferente do sono. As pessoas podem ficar sem música por períodos muito longos sem sofrerem quaisquer danos notáveis. Pode ser, contudo, que essa seja uma abordagem demasiado ingênua. Há diversas atividades que são vitais para a continuação da espécie (como o sexo), das quais os indivíduos podem se abster sem sofrer qualquer prejuízo aparente. A música pode ser assim, necessária à espécie e não a um indivíduo em particular. (SLOBODA, 2008, ps. 351 e 352).

Logo para que pudesse se experimentar essa abstinência musical, ela deveria ser aplicada a toda uma cultura. Assim, possivelmente a música ocupa um papel fundamental, pois segundo Sloboda, culturas sem música não existem. No entanto é difícil imaginar quais seriam as consequências negativas reais que seriam causadas pela abstinência da música. Para o autor, isso se explica se considerarmos que a música exerceu maior valor, em termos de sobrevivência, para as sociedades primitivas, e que as sociedades modernas desenvolveram um tipo de necessidade de música. Assim o autor sugere que a importância da música está mais propriamente situada no seu poder de coesão social, um dos argumentos apresentados por Levitin. Esse poder mnemônico da música poderia ter sido fundamental em sociedades primitivas não letradas que dispunham de poucos artefatos que ajudam na organização social. Segundo Sloboda: Para sobreviver, toda sociedade exige organização. Em nossa sociedade, dispomos de muitos artefatos complexos que nos ajudam a exteriorizar e objetivar as organizações de que precisamos e que valorizamos. As culturas primitivas têm poucos artefatos desse tipo, e a organização da sociedade precisa ser expressa, em maior grau, através de ações transitórias e através da maneira como as pessoas interagem umas com as outras. Talvez a música propicie um quadro mnemônico singular, através do qual os humanos podem expressar, através da organização temporal do som e do gesto, a estrutura de seu conhecimento e de suas

274

relações sociais. Canções, poemas ritmicamente organizados e dizeres formam o principal repositório do conhecimento humano nas culturas não letradas. Isso parece ocorrer porque tais sequências organizadas são mais fáceis de lembrar do que o tipo de prosa que as sociedades letradas usam nos livros. Seria provavelmente um exagero dizer que não havia alternativa lógica para a música, enquanto recuso mnemônico. Contudo, parece-me que há pouquíssimas coisas que as pessoas ‘naturais’ poderiam fazer de modo solidário com a fala, sem ir em direção àquilo que entendemos por música. Elas podem mover seus corpos e modular o tempo de sua fala. Quando isso acontece de forma organizada, cria-se o ritmo. Elas podem modular a altura da voz. Quando isso acontece de maneira organizada cria-se a melodia e alguma forma de estrutura tonal.(SLOBODA, 2008, p. 352).

Sloboda ainda sugere que, na falta de métodos científicos empíricos, as sociedades primitivas já sabiam dominar seu ambiente com sucesso através de comportamentos que pareciam atraentes, não necessariamente lógicos racionais, mas instintivos. Ou seja, comportamentos adaptativos. A música seria um deles por apresentar esse forte apelo mnemônico: “[...] a evolução [...] proporcionou à música uma motivação, de modo que entregar-se a ela tornou-se agradável e “natural” para as pessoas.”. (Sloboda, 2008, p. 353). Para o autor, as sociedades modernas, mesmo dispondo de muitos recursos mnemônicos mais poderosos do que a música, ainda a apreciam e a fazem porque existem em nós instintos e motivações de um passado primitivo. Com a diferença que hoje a música pode ser separada de sua origem, servindo a propósitos estéticos e transcendentes. No entanto, segundo Sloboda (2008, p. 353), “Como os nossos instintos para a música têm raiz nas condições que vigoravam na infância da humanidade, as formas que estavam disponíveis aos primeiros homens (homem primitivo) são de influência primordial e inescapável.”. O autor explica que essas formas são a voz e o corpo humano em movimentos rítmicos, por serem componentes constituintes elementares da música. Assim, segundo o autor, quanto mais a música se distancia dessas características, mais ela perderá seu poder e seu sentido. De acordo com Sloboda (2008, p. 354), “Os instrumentos eletrônicos precisam ser sempre limitados pelos parâmetros do fazer musical “humano”, realçando e enriquecendo esses parâmetros ao invés de dar tiros em direções arbitrárias.”. Concluindo sua argumentação, o autor sugere que em uma situação hipotética, na qual os nossos complexos arranjos sociais fossem desestruturados pela destruição dos delicados equilíbrios que os preservam, a música poderia voltar a ser um poderoso artefato mnemônico. Segundo Sloboda: Em tal situação, aqueles de nós que sobrevivessem encontrar-se-iam num mundo em que os artefatos de nossa sociedade atual teriam desaparecido por completo. Os recursos que carregaríamos em nossas cabeças seriam, novamente, uma forma de manter nossas tentativas de sobrevivência. Canções e poemas seriam transformados em armas coesivas e mnemônicas vitais para a construção de uma nova sociedade, e a habilidade musical seria, de fato, uma habilidade para a sobrevivência. Portanto, alcançar uma compreensão melhor da habilidade musical não é

275

simplesmente uma tarefa de curiosidade desinteressada. A música é um recurso humano fundamental que já desempenhou, e pode vir a exercer novamente, um papel fundamental na sobrevivência e no desenvolvimento da humanidade. (SLOBODA, 2008, p. 354).

Outra justificativa importante apresentada para afirmar a teoria da musicalidade natural do ser humano se baseia no fato de que a música é uma constante em todas as culturas de que se tem notícia. Essa justificativa se completa com os argumentos apresentados por Sloboda sobre a coesão social, pois o autor sugere que foi um artefato fundamental por esse motivo. Nesse sentido, além da música ser comum a todas as culturas, há também indícios de que haja algumas constantes universais musicais. Ou seja, existem elementos e características musicais que se repetem em várias culturas diferentes. De fato, essas semelhanças podem ser um forte argumento para sustentar a hipótese da musicalidade natural. Sloboda (2008) discorre sobre essas características e explica algumas delas como sendo justificadas na maneira como nosso cérebro ouve a música. Dentre essas características, Sloboda (2008) destaca a referência fixa, divisão da escala em intervalos alternados, divisão e organização hierárquica do tempo. Assim pode-se considerar possível ideia de que de fato haja uma musicalidade natural, pois a música possui uma origem biológica evolutiva e é um forte artefato mnemônico e de coesão social, sendo assim, um elemento fundamental para a espécie humana. Por esses motivos a música é presente em todas as sociedades, sendo que, entre a maioria delas, existem aspectos musicais em comum. No entanto, apesar do aspecto natural apontar para semelhanças, como citado por Ilari (2006), obviamente os conceitos, definições e valores sobre música são muito variados em diferentes sociedades. Portanto é óbvio que há uma influência social muito forte em relação ao comportamento musical dos indivíduos. Nesse sentido, esse aspecto da importância social também deve ser analisado. FATOR SOCIAL CULTURAL Como analisado anteriormente, um dos prováveis argumentos sobre a essencialidade e naturalidade da música é o seu poder mnemônico e de coesão social. Portanto fica claro que a música também é essencialmente um fenômeno cultural, sendo muito mais fundamental para a sociedade do que para o indivíduo. Nesse sentido, busca-se a reafirmação do teor cultural da música e, portanto, sua diversidade. Ridley (2008) afirma que a música está presente em todos os aspectos de nossa vida, ocupando uma posição central e, portanto, fazendo parte dela: Segundo Ridley (2008, p. 10) “Bem vindos, ou não, a música e os sons musicais são onipresentes [...]”. O autor ainda afirma de forma categórica que, sendo parte

276

da vida, a música é “inteiramente histórica”. Ridley justifica que as concepções, funções e importância dadas à música são muito distintas em diferentes sociedades, de diferentes períodos históricos: Os papéis musicais mudam: o lugar da música na dança tribal é diferente do seu lugar no ritual cristão, e tampouco é o mesmo que seu lugar no Albert Hall, no Groucho’s ou no Yanke Stadium. As concepções de música mudam: tivemos a metafísica pitagórica, a harmonia das esferas, a música devocional, a música como ornamento, a música como arte elevada, a música volkisch, a música de protesto, a música mercadoria. O propósito da música, o que foi considerado música e a maneira como foi ouvida e como se pesou nela – todas essas coisas mudaram, o que significa que, para compreendermos a música e as experiências musicais que agora temos, elas terão de ser compreendidas historicamente, pelo menos em parte – como produtos complexos de acréscimo, assimilação, atrofia e decadência. Sua historicidade relaciona-se com outro dos traços da música que são semelhantes à vida: sua inserção. Em comum com todas as outras coisas, a música ocupa um espaço conceitual, não em um vácuo, mas nos interstícios de um conjunto indefinidamente maior e mutável de outros interesses, cada um dos quais ela condiciona e pelos quais é condicionada. Assim, por meio da dança, a música une-se reciprocamente ao sexo e à sociabilidade, por meio dos hinos e cânticos religiosos à saúde da alma, por meio das canções de ninar à brincadeira, por meio de marchas ao exército, por meio dos hinos à solidariedade, por meio da proporção à matemática, por meio do chantier ao trabalho, por meio de lamentos fúnebres à morte etc. É essa inserção que confere à música boa parte da sua riqueza, assim como sua importância, por meio da composição flutuante do seu ambiente conceitual, toda a sua história. “Estou convencido de que qualquer tentativa de compreender a música que tente suprimir isto a respeito dela – o fato de que ela é inserida e histórica – será, na melhor das hipóteses, débil e insatisfatória, e quase certamente pior que isto [...]. (RIDLEY, 2008, ps. 10 e11).

Esse aspecto histórico citado por Ridley pode ser entendido como o pertencimento social, pois o conceito entendido de sociedade é aqui entendido não somente espacialmente, mas também temporalmente. Uma sociedade atual de um determinado local pode não ser a mesma, e nem possuir os mesmos valores que tinha há algumas décadas, portanto pode-se considerar que, nesse caso, seriam sociedades diferentes. Nesse entendimento, pode-se afirmar, de acordo com Ridley (2008), que a música carrega uma carga social e cultural inseparável. Para o autor, é inviável investigar o fenômeno musical de forma pura, isto é, livre, desvinculado e não inserido em qualquer contexto, pois o nosso envolvimento com a música é baseado no contexto. De acordo com o autor, a investigação científica que busca excluir o elemento humano para investigar o objeto de forma não inserida não deve ser usada para compreender um elemento essencialmente humano e histórico como a música, pois apresentaria resultados falsos. Como exemplo, em analogia à música, o autor utiliza a culinária e o sexo, que, se investigados de forma puramente cientifica, não passam de química e instintos reprodutivos, mas que efetivamente são muito mais do que isso, por serem também parcialmente

277

constituídos da cultura. Indo mais além em sua argumentação, Ridley destaca o conceito romântico da suposta autonomia da música instrumental (que supostamente não faz referência a nada, além de si mesma – “música pura”) e o critica pela razão de que a existência de associação a elementos extramusicais (como as emoções que podem ser suscitadas através da música) é inegável e inevitável. De forma conclusiva, Ridley (2008, ps. 29 e 30) afirma: “Devemos [...] pensar em peças musicais não como padrões autônomos de som, mas, talvez, como padrões de som que estão (em um ou em outro grau, mas sempre em algum grau) inseridos no resto do mundo, impregnados de história [...]”. Paralelamente a Ridley, que sustenta a ideia da música como um fenômeno essencialmente social, Piana (2001) afirma que a música se constitui em uma “praxis social” totalmente integrada à cultura que pertence, sendo um objeto cultural carregado de uma tradição que determina a modalidade da prática e escuta musical Segundo Piana: “Um trecho musical é eminentemente um “objeto cultural” – a música é antes de mais nada uma práxis social que deve ser considerada na sua integração com a cultura a que ela pertence. Isso significa que a música traz consigo o peso de uma tradição que determina não só as modalidades da ação musical, mas obviamente também as modalidades da escuta”. (PIANA, 2001, p. 19).

Assim Piana (2001) também defende que a música só pode ser considerada em integração com a cultura a que pertence, assim como poder determinista que a cultura exerce. Segundo o autor, as repetições dessas práticas musicais determinadas vão se impondo cada vez mais com o passar do tempo e acabam gerando um hábito de escuta sistemático que se estrutura na expectativa de sucessões de eventos em um trecho musical. Por reiteração e repetição, essa práxis vai se tornando tão estável, que assume um caráter legítimo de regra. De acordo com Piana (2001, p. 19), “Uma práxis que de início certamente podia ser instável, tende progressivamente a se estabilizar assumindo a dignidade de uma regra [...]”. Frente à conclusão de que a música é essencialmente um fenômeno social/cultural e adquire diversas funções e formas em culturas específicas, e que a prática e a escuta musical é determinada pela cultura musical vigente, entendese que não há como compreendê-la de forma pura e dissociada da carga cultural e histórica de que ela está impregnada. Logo se conclui que a música, sendo um elemento essencialmente social e histórico (como foi concluído anteriormente), também é provavelmente construída de acordo com as características impostas pelas instituições sociais especificas de onde está inserida. O PROCESSO DE EMERGÊNCIA DO COMPORTAMENTO MUSICAL

278

Apesar da argumentação do fator social parecer contraditória em relação à do fato natural, por conta da dualidade entre natural e social, elas podem ser complementares se pensadas em um fluxo. Daí surge o conceito de “processo de emergência do comportamento musical”, pois se supõe a existência de um contínuo que flui do âmbito natural intrínseco para o âmbito social, sendo o comportamento musical o resultado desse fluxo. Assim, a música seria um produto natural e social ao mesmo tempo. Natural, quando se entende que ela seja um elemento de origem evolutiva importante, para qual cada indivíduo possui uma estrutura biológica que permite a capacidade musical; e social, por se manifestar de acordo com as regras da sociedade onde existe. Esse conceito parece entender o ser humano de duas maneiras: por um lado como indivíduo único e por outro como coletivo em sociedade. No entanto, não há sentido em pensar no ser humano como indivíduo único, pois ele é essencialmente social. Segundo Bussab e Ribeiro (2004), o ser humano é biologicamente cultural, pois à medida que começou a depender da vida cultural, a seleção natural favoreceu os genes desse comportamento. Para o autor, o desenvolvimento biológico favoreceu o desenvolvimento cultural, como também o contrário, em aspectos anatômicos e também psicológicos. Bussab e Ribeiro (2004), sobre o desenvolvimento e especialização cerebral: Pode-se dizer que uma coisa puxou a outra: um cérebro maior permitia novos desenvolvimentos culturais; um contexto cultural mais desenvolvido promovia a seleção de nova especialização cerebral. Não indefinidamente, nem ponto a ponto, convém dizer. Há uma relação de custos e benefícios a ser considerada. Há limites para o crescimento da cauda do pavão. Há ainda descompassos. Todavia, tomados alguns cuidados para não simplificar indevidamente o processo, pode-se dizer que biologia e cultura caminharam juntas. (BUSSAB e RIBEIRO, 2004, p.183).

Bussab e Ribeiro (2004) também afirmam que a linguagem é uma característica biológica que se relaciona intimamente com a vida cultural. Para os autores, essa característica evolutiva se deu por conta da vida cultural, pois a comunicação pela linguagem é um comportamento vantajoso para este modo de vida. Segundo (Bussab e Ribeiro (2004): Se de um lado ela [linguagem] pode ser entendida como essencial à cultura, como fruto desta, por outro, está fortemente enraizada em propriedades biológicas ligadas à estrutura cerebral, à anatomia do sistema fonador e à herança da capacidade linguística. A aquisição da linguagem pelo recém-nascido não é a imposição de um sistema arbitrário ou convencional de códigos por parte dos adultos a um aprendiz inteligente. Não se trata de um processo de ensaio-e-erro com reforçamento dos acertos. O talento do recém-nascido humano para adquirir a linguagem é uma habilidade específica dotada de motivação própria. O ser humano é biologicamente linguístico; nasce com os recursos cognitivos, motivacionais, fisiológicos e anatômicos para entender e usar a linguagem humana que se estiver falando em seu

279

ambiente. Por sua vez, as línguas humanas são construídas, mantidas e transformadas por esses mesmos seres humanos que as adquirem a cada geração. E todos os seus aspectos - sonoros, rítmicos, melódicos, léxicos, sintáticos, etc. - decorrem das características dos indivíduos que as produzem. Para entender as línguas - suas características e evolução - é preciso entender o ser psicobiológico que as inventou. A diversidade linguística - o fato de milhares delas terem sido criadas - não nos deve confundir. Não apenas o que é comum a todas elas, mas também a própria variedade constituem indicadores importantes sobre o curso da evolução biológica da habilidade linguística. (BUSSAB e RIBEIRO, 2004, p.184).

Assim, segundo os autores, a relação entre o natural e o social é muito próxima, visto que o comportamento cultural é fruto da seleção natural e, por outro lado, a seleção natural posteriormente se deu em acordo com os meios sociais. A música pode então compartilhar de forma análoga dessa mesma situação híbrida entre biológico e social, exemplificada pelo autor pelo fenômeno da linguagem, entre bilógico e cultural. Pode ser realizada então uma analogia entre música e linguagem, na qual se tentará entender melhor a maneira como se estrutura o comportamento musical a partir da influência social cultural. Como citado anteriormente, Pinker (2001), em seu questionamento sobre as funções da música, afirma que ela é um “subproduto” acidental criado pelo prazer proporcionado por atividades de maior relevância evolutiva, sendo a linguagem uma delas. Levitin (2011), no entanto, baseado em Darwin, afirma que a música é anterior à linguagem, pois a última se desenvolveu a partir dos sistemas de comunicação dos animais baseados em chamados sonoros para a reprodução da espécie, sendo o comportamento musical um fator determinante nesse processo. Independentemente dessa relação evolutiva, os estudos de Sloboda (2009) sobre psicologia cognitiva da música revelam que há certo grau de independência neural entre as sub-habilidades musicais, ou seja, a música não é processada em uma única parte ou hemisfério do cérebro, e que há uma sobreposição parcial entre as áreas utilizadas para a música e para a linguagem, porém essa sobreposição é bastante incompleta, sendo que um indivíduo pode apresentar lesões cerebrais que danifiquem significativamente a capacidade linguística, deixando intactas as capacidades musicais. Sloboda: “A música, se não faz uso de uma função neural totalmente distinta, quase certamente faz uso de uma configuração diferenciada dos recursos neurais” (Sloboda, p. 349). Percebe-se que essas argumentações tem em comum uma relação entre música e linguagem. Essa analogia já é longa data e apresenta grande diversidade de estudos. Sobre isso, Medeiros (2009) discorre sobre a atribuição linguística que eventualmente pode ser dada à música, fazendo uma divisão da linguagem em dois sentidos distintos, sendo um mais abrangente e outro mais restrito. O sentido mais amplo seria o sentido de linguagem como comunicação independente de sua estrutura, cabendo ao campo de estudo da semiótica, podendo ser representada por costumes vestuários, como a utilização de roupas

280

pretas para representar luto, e o sentido mais restrito se refere à estruturação a partir de segmentação e combinação, se referindo à nossa capacidade de combinar de forma hierárquica unidades cognitivas e fonológicas sem sentido formando palavras com sentindo. Medeiros apud Borges (2009) afirma que, no sentido restrito de linguagem, a música não possui unidades equivalentes a combinações de morfemas ou mesmo a palavras, sendo impossível se fazer uma análise semântica musical, visto que não é possível fazer referência direta a coisas do mundo através de música. Para Cerqueira (2009, p.1), “[...] a Música por si só não oferece elementos semânticos, porém, os elementos de seu discurso podem possuir significados sob uma perspectiva histórica, sendo o ouvinte capaz de identificar tais elementos caso possua conhecimento para decifra-lo.”. Portanto, tomando essa perspectiva, essa análise se apoiará nas relações mais prováveis entre música e linguagem: as que se dão no âmbito desse sentido mais amplo apontado por Medeiros. Piana (2001) utiliza a analogia entre música e linguagem, a partir dessa perspectiva semiológica, para explicar sua argumentação sobre a influência cultural sobre a musicalidade. Sua argumentação se apoia na ideia de que a música não seria dotada de valor intrínseco, mas sim, acrescida do valor cultural de onde está inserida, assim como ocorre na linguagem. Segundo o autor, o significado de uma suposta linguagem musical está atrelado às próprias relações entre os elementos dessa linguagem. O autor considera a tonalidade como uma linguagem musical aprendida e significada por convenção. Assim, no âmbito da linguagem tonal, ao contrário das justificativas de que as consonâncias e dissonâncias sejam percebidas de forma circular, por representarem naturalmente uma sensação intrínseca de tensão (dissonância) e relaxamento (consonância), Piana defende a ideia de que essas supostas circularidades internas são na verdade constituintes da linguagem musical. Essa sensação seria apenas uma relação de contiguidade entre dois eventos sonoros que, segundo o autor, pode ser chamada de hábito auditivo. Para o autor, um conjunto desses hábitos auditivos criaria o “sentimento de tonalidade” que confere a essas relações caráter de regra. Essa analogia entre música e linguagem feita por Piana parece ser esclarecedora, quando este conceitua linguagem como uma unidade conceitual à qual se subordinam as espécies, como a linguagem verbal ou a linguagem musical. É ainda mais apropriada a ideia de múltiplas linguagens musicais que estabelecem suas regras e relações de contiguidade, como a tonalidade. A partir dessa abordagem pode-se fazer uma analogia mais profunda entre música e linguagem enquanto instituição social, pois os seus conjuntos de regras, relações de contiguidade e relações extramusicais afetam diretamente a escuta musical dos indivíduos da sociedade detentora dessa linguagem. Valendo-se das características que Berger e Berger (In Foracchi, 1997) atribuem às instituições sociais (exterioridade, objetividade, coercitividade, autoridade moral e

281

historicidade), pode-se analisar até que ponto é válida a analogia proposta acima. E se, de fato a tonalidade é uma linguagem musical, pode-se toma-la como exemplo: A exterioridade é primeira característica das instituições sociais, na qual se argumenta que a Instituição social é algo imediatamente externo, não intrínseco. Portanto está além da vontade, não representando os pensamentos e sentimentos exatos do indivíduo, sendo ele obrigado a adequar esses pensamentos e sentimentos à instituição. Desta forma, a tonalidade compartilha desta característica, pois, segundo Piana, suas relações e regras são apreendidas por aculturação, definindo os hábitos de escuta e o sentimento de tonalidade, sendo que é através deste sentimento que o indivíduo se expressa musicalmente. A objetividade é característica na qual se entende que a instituição é comum à maioria dos membros da sociedade em questão e que, por esse motivo, mesmo que um indivíduo não concorde com suas regras, ela permanecerá inalterada, pois já é determinada e objetiva. Nesse aspecto, se a argumentação de Piana estiver correta, pode-se dizer que a tonalidade também apresenta esta característica, pois o sentimento de tonalidade que se cria na maioria dos indivíduos de uma sociedade não se modificará se um indivíduo não concordar com alguma regra. A relação de contiguidade entre dissonância (tensão) e consonância (relaxamento), por exemplo, irá permanecer como um consenso geral, mesmo que um indivíduo não concorde com ela. A coercitividade e a autoridade moral são características bastante claras na linguagem verbal, pois visivelmente há uma forte repreensão ao indivíduo que difere das regras, levando-o a situação vexatória. Na linguagem musical (no caso, a tonalidade), a história, de modo geral, pode trazer exemplos mais claros de coercitividade e autoridade moral, pois toda mudança em relação à linguagem musical vigente é recebida com preconceitos auditivos. Neste sentido pode-se falar do “sentimento de tonalidade”, pois este conceito entende o preconceito auditivo como a não capacidade de apreciação de algo que fuja à regra da linguagem. Portanto, a linguagem tonal apresenta certa autoridade moral, pois quando os indivíduos se opõem as regras impostas sofrem alguma forma de repreensão por conta da existência de um preconceito auditivo. Como historicidade se entende as características atuais de uma instituição que se devem às relações e práticas realizadas no passado. Como citado anteriormente, a música não pode ser plenamente observada e entendida senão à luz de sua carga histórica. Da mesma forma, de maneira mais específica, uma práxis musical é fruto de reiterações de relações de contiguidade assimiladas no decorrer da história. Portanto, a linguagem musical apresenta caráter histórico. Diante dessas argumentações, pode-se entender que é possível fazer uma analogia interessante entre música e linguagem, enquanto instituição social. Obviamente essa analogia metafórica não é profunda ao ponto de permitir afirmar com certeza que a linguagem musical é de fato uma instituição social,

282

mas também é inconcebível a ideia de que o fenômeno musical não seja em nada caracterizado e definido, em teor e função, pela cultura musical da sociedade em que acontece. Também parece bastante razoável que essa cultura musical possa ser conceituada como “linguagem musical” (de acordo com a conceituação de Piana), e que esta se manifesta como a maneira que os indivíduos se expressam musicalmente, seja passivamente através da escuta, ou ativamente através da prática. Assim, conclui-se que os aspectos natural e social podem ser complementares e que, no caso da música, essa relação pode ser feita através de uma analogia com a linguagem – instituição social. Nesse sentido poderia se falar em linguagem musical enquanto uma possível instituição social. Logo, entende-se que existe um processo que flui do âmbito natural para o âmbito social, por mediação da linguagem musical. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das perspectivas tomadas, pode-se fazer uma série de considerações que, apesar de serem parcialmente conclusivas, também levantam uma série de outros possíveis problemas demasiadamente complexos, que obviamente não podem ser resolvidas por este trabalho. No entanto, talvez a perspectiva adotada aqui possa vir a ser um ponto de partida para outros estudos que se proponham a resolver esses possíveis decorrentes. Logo, a fim de tentar responder a pergunta feita na introdução – Quais são os papeis e a importância dos fatores natural e social para o processo de emergência musical? Adotaram-se as seguintes perspectivas: a importância do fator natural para a emergência musical se dá inicialmente por um “instinto natural” evolutivo para a prática da música, ou seja, uma pré-disponibilidade biológica para a música; a música está sempre carregada de um significado incorporado socialmente, além de que suas relações externas e até mesmo internas são impostas através das instituições sociais; e finalmente, procurou-se entender o conceito de processo de emergência do comportamento musical como uma “união” entre disponibilidade natural da música e a estruturação social do comportamento musical, através da utilização de uma analogia com a linguagem. Dessa maneira, pôde-se sugerir que a música é: um fenômeno, que por ser de caráter biológico evolutivo, é natural intrínseco e fundamental ao ser humano; sua essencialidade se deu por seu grande poder mnemônico e de coesão social; e se constrói culturalmente na relação com a linguagem musical vigente da sociedade a que pertence. Nessa perspectiva podese entender que há inicialmente uma musicalidade natural intrínseca, mas que esta se estrutura e toma forma através do contato com a sociedade. Portanto, a emergência da música seria um processo que flui do âmbito natural para o âmbito social, tendo como meio a linguagem musical.

283

A respeito dessas possíveis conclusões podem ser feitas considerações importantes que, além de explicitar melhor as delimitações deste trabalho, apontam para outras possíveis perspectivas: A primeira é de que a perspectiva biológica não é a única possível quando se fala em musicalidade natural, pois são vários os significados para “natural”. No caso da música, vale lembrar a origem e o significado dessa própria palavra. Segundo Tomás (2002), “o conceito de mousiké, portanto ultrapassa a organização gramatical da linguagem musical e entende a música não só como entretenimento ou um ato de fruição estética, mas como um universo de características mágicas, cosmológicas e metafísicas”. Assim a música seria algo cosmológico muito maior do que a música auditiva propriamente dita. Nesse sentido, talvez a música auditiva tenha sua origem natural por ser justamente uma representação em menor escala de uma música macro cosmológica. A segunda consideração é de que se deve atentar para o fato de que se utilizou uma perspectiva sociológica bastante extrema, na qual se entende que o comportamento dos sujeitos é imposto de forma unilateral pelas instituições sociais. O trabalho se delimitou a essa corrente mais extrema justamente para criar uma relação dialética mais intensa entre os fatores naturais e os fatores sociais, para então posteriormente tentar a dissolução dessa crise, entendendo os dois fatores como complementares, e não como uma dualidade. Assim parece ficar claro que obviamente essa crise existe, mas que, no entanto, ela pode ser atenuada se vista por outra perspectiva. Finalmente, a terceira consideração é de que não se pretendeu em momento algum afirmar a existência de um talento musical natural, no entanto também não se delimitou exatamente até que ponto se dá a influência do fator natural sobre o comportamento musical. Ao mesmo tempo em que a perspectiva utilizada para a analogia com a linguagem considera que as relações musicais são aprendidas, se ressalta a existência de universais musicais. Aqui então fica mais clara a discussão sobre essa crise entre o fator natural e o fato social mencionada na consideração anterior. Talvez seja esse o ponto que mais precise ser aprofundado e que, portanto, mais levante problemas. A influência social sobre o processo de emergência musical parece ser muito mais clara e evidente, mas ainda é um tanto quanto obscuro até que ponto se dá o movimento contrário. Obviamente essa discussão não pôde ser aprofundada neste trabalho, no entanto, através dessa consideração, pode-se sugerir uma nova possibilidade de enfoque deste problema: Na argumentação do fator natural, se sugere que a música pode ter se originado tenha se originado a partir de chamados reprodutivos. Nesse sentido, ter um bom repertório musical seria um sinal de estabilidade de recursos básicos, pois só com essa estabilidade sobraria tempo para o desenvolvimento musical. O bom repertório também poderia ser um sinal de criatividade, que seria uma característica adaptativa importante. Segundo Levitin (2011), alguns estudos

284

sugerem que mulheres que estão no auge de seu período fértil são muito mais atraídas por características que indicam criatividade, do que as mulheres que estão em outra etapa do ciclo menstrual. Talvez a criatividade seja uma palavra importante para entender esse processo. Se por um lado as instituições sociais impõem uma linguagem musical a ser seguida, por outro, existem forças contrárias que impulsionam as mudanças. Na história da música, é bastante clara essa relação cíclica de mudanças. Parece haver uma força motriz que impulsiona a quebra das regras postas pela linguagem. Se essa sugestão estiver certa, seria a criatividade essa força. Uma força natural em resposta às imposições sociais. No entanto essa oposição de forças talvez não seja um problema, pois há uma troca e é nessa troca que está o movimento das coisas. Como foi abordado, uma das características das instituições sociais é a historicidade, na qual se entende que a as características de uma instituição são frutos de interações passadas. Regras que foram quebradas levaram a novas regras, e assim por diante. Nessa perspectiva poderia ser respondida a pergunta inicial: qual é o papel e a importância de cada fator (natural e social)? Por um lado, a linguagem musical estrutura as funções e as regras do comportamento musical. Por outro lado, a pré-disponibilidade natural para a música e a criatividade seriam os fator naturais necessários para a busca pelo fazer musical e a renovação destas regras impostas socialmente. Logo, este processo seria como uma força motriz que, através destas duas forças, impulsionam o fazer musical no decorrer da história.

REFERÊNCIAS: BERGER, P.L; BERGER, B. Sociology – a biographical approach. In: FORACCHI, M. Sociologia e sociedade (leitura de introdução a sociologia). São Pauto: L.T.C., 1997.p. 193-199. BUSSAB, V.S.R; RIBEIRO, F.L. Biologicamente natural. São Paulo, 2004. Disponível em: www.ip.usp.br/portal/images/stories/Articles/2004_Bussab_Ribeiro_Otta_biologic amente_cultural.pdf. Acesso em 25/05/2012. ILARI, Beatriz. Música e relações interpessoais. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, jan./abr de 2006. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 01/12/2011 LEVITIN, D.J. A música no seu cérebro. Tradução de Clóvis Marques. 3.ed. Rio de Janeiro, 2011. MEDEIROS, B. R. Ritmo na língua e na música: um elo possível. Música em perspectiva, Curitiba, v.2, n. 2, 2009. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/musica. Acesso em: 25/05/2012. PIANA, G. A filosofia da música. Tradução de Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2001.

285

PINKER, S. Como a mente funciona. Tradução de Laura Teixeira Motta. 2. ed. São Paulo: Schwarcz ltda, 2001. RIDLEY, A. A filosofia da música, tema e variações. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Edições Loyola, 2008. RODRIGUES, F.R. Fisiologia da música: Uma abordagem comparativa. Revista de biologia, São Paulo, v. 2, Junho de 2009. Disponível em: http://www.ib.usp.br/revista/node/33. Acesso em: 25/05/2012.

286

FETICHES E FE(I)TICHES: A CRÍTICA DE THEODOR ADORNO À INDÚSTRIA CULTURAL SOB A ÓTICA DA ANTROPOLOGIA SIMÉTRICA DE BRUNO LATOUR Fernando Nicknich [email protected]

RESUMO: O objetivo do presente artigo é propor uma rápida análise da crítica de Theodor Adorno à indústria cultural por um viés antropológico. Adorno acusa a indústria cultural de fetichizar os bens culturais, tomando esse conceito emprestado da teoria marxista. Sobrepõe-se, aqui, a essa acusação do filósofo alemão, as reflexões mais recentes da antropologia simétrica de Bruno Latour, para quem o fetiche se caracteriza como algo distinto. Através da ótica antropológica, reavalia-se a crítica adorniana reposicionando-a em relação ao objeto da sua crítica. Por fim, apresenta-se o conceito de fe(i)tiche, cunhado por Latour, como uma alternativa para uma possível compreensão do valor e sentido do fazer artístico na atualidade. Palavras-chave: Fetichismo; Adorno; Latour; Indústria Cultural; Frankfurt

INTRODUÇÃO O surgimento da noção de indústria cultural na história do pensamento crítico é inseparável da noção marxista de fetiche. O conceito, cunhado pelos filósofos da Escola de Frankfurt na primeira metade do século passado – em especial, Theodor Adorno e Max Horkheimer – designava certa transformação a que vinham passando as sociedades industrializadas na sua esfera cultural. Segundo os filósofos, a industrialização da produção artística transformava artefatos culturais em mercadorias, levando-os a ser regidos não mais pela lógica da fruição estética pura – que se voltava ao desvelar do valor artístico intrínseco ao objeto artístico, o que era possível somente através de um olhar capacitado para tal –, mas sim, pelas lógicas do mercado e do consumo. A denúncia de Adorno, então, consistia em fazer notar que a possibilidade de adquirir uma gravação de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, não significava que o comprador se tornaria capaz de experimentar uma profunda e verdadeira fruição da obra. Portanto, a ampla difusão das obras artísticas não contribuía verdadeiramente para uma ampliação da vivência cultural das pessoas, mas antes, acabava por disseminar uma prática que vinha a constituir uma verdadeira fetichização da cultura: a idéia de que simplesmente por comprar bens culturais a pessoa estaria participando ativamente de uma vida cultural genuina. Há nessa fetichização, segundo Adorno, uma substituição de valores que a um só tempo provoca e garante a sustentação desse estado de coisas. O valor de uso de uma obra de arte – ou ainda, aquilo pelo que ela teria algum valor real – é

287

substituído pelo seu valor de troca (ou ainda, o seu valor comercial). Nessa substituição, a apreciação e valoração passam a se dar não mais pelas qualidades que são próprias à obra, mas pelo seu valor de mercado. O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que ‘valores’ sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria. (ADORNO, 1996, p.77)

Nessa substituição, encontra-se precisamente o conceito de fetiche cunhado por Marx em O Capital: de acordo com a teoria marxista, na economia de mercado os artefatos adquirem um valor independente das suas qualidades próprias ao serem transformados em mercadoria – o valor de troca –, valor este que passa a intermediar a relação entre os homens na medida em que estes se relacionam entre si para trocar seus produtos. Essa intervenção da mercadoria nas relações humanas transforma a própria mercadoria em algo mais do que ela própria, e é justamente por incorporar essa força que lhe é externa que ela acaba transformada em fetiche. Não só o seu valor e suas propriedades acabam deslocados e transfigurados, mas também as origens e os fundamentos das próprias relações entre os homens, que não mais acontecem de forma imediata. (PIRES, 1998). Para Adorno, então, o fetichismo musical diz respeito a determinada forma de relação dos homens com seus produtos artísticos, caracterizada por certa confusão acerca do significado real dessas relações. O conceito de fetiche foi também tratado mais recentemente pelo antropólogo francês Bruno Latour, contudo, num sentido bastante diverso daquele dos filósofos alemães. Em Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches, Latour caracteriza o fetiche menos por uma determinada forma de relação dos homens com os objetos por eles fabricados do que por uma crença mais profunda. O fetiche estaria menos entre os próprios (supostos) fetichistas do que nos olhos do observador, naquele que faz a denúncia. Utilizaremos aqui o artigo O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição para ilustrar as razões pelas quais Adorno vem a considerar todo fruto da indústria cultural como fetiche, apontando os argumentos centrais que o levam a essa caracterização. Em seguida, contraporemos a essa conceituação a noção de fetiche desenvolvida pela reflexão de Latour para, por fim, ver de que forma esta nos obriga a reconsiderar a crítica adorniana, reposicionando-a no âmbito do pensamento crítico contemporâneo e reavaliando os valores e críticas culturais por ela defendidos. O FETICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL A primeira das denúncias feitas por Adorno ao sistema de industrialização das obras de arte é que a oferta de produtos artísticos pela indústria acaba por

288

tirar a liberdade dos indivíduos. A eles resta escolher entre um produto ou outro, mas ninguém mais questiona se esses produtos são de fato justificados e coerentes para si. “Já não há campo para escolha;” diz Adorno, “nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados (...).” (ADORNO, 1996, p.65-66) Essa não-justificação subjetiva das obras tem importância para Adorno porque denota uma determinada postura dos indivíduos perante seus próprios julgamentos de valor: esses indivíduos simplesmente aceitam o que lhes é oferecido; não são capazes de entrar em contato genuíno com uma obra de arte, compreendendo-a verdadeiramente, mas apenas absorvem sua aparência externa. Sua capacidade de reconhecer o que diz respeito a si – o que é subjetivamente justificado – é turvada, de modo que eles passam a travar contato com obras de arte não porque reconhecem o seu valor intrínseco, mas simplesmente por elas serem conhecidas da multidão. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. (p.66)

Adorno complementa: “As categorias da arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para apreciação musical de hoje.” (p.66). Com a impossibilidade do exercício da individualidade, não são mais possíveis experiências de valoração genuínas. Nesse meio, a música se transforma em mero entretenimento, e a essa função sucumbe inclusive a música (assim denominada) séria. Essa música de entretenimento de modo algum é proveitosa: parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. (...) A música de entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. (p.67)

O ponto central dessa crítica é bastante claro. Há, para Adorno, uma separação irreconciliável entre a música de entretenimento e a música séria. A música de entretenimento não requer do ouvinte que ele esteja atento à escuta, enquanto que a música séria necessita da atenção para se realizar. Sem atenção, a música se decompõe em momentos isolados e desconexos, a audição se fragmenta e o interesse se desvia do ponto ao qual deveria se ater. Não é mais a construção musical em sua unidade formal que passa a ser apreciada, mas os

289

meros atrativos sensoriais do som. A questão central, aqui, é que “o prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa.” (p.70, grifo nosso). Em outras palavras, para Adorno a apreensão justa de uma obra de arte só pode se realizar através de uma escuta atenta, voltada à busca da compreensão do todo musical em sua coerência interna, pois é somente essa compreensão que possibilita ao ouvinte atingir a essência da obra. É por essa capacidade de sintetizar os momentos musicais isolados numa totalidade coerente que a música séria é supostamente de mais valor. Diz Adorno: “na variedade dos encantos e da expressão comprova-se sua grandeza como força que conduz à síntese.” (ADORNO, p.69) A importância dessa capacidade de síntese está no fato de que ela, a síntese, “conserva a unidade da aparência e a protege [a música] do perigo de derivar para a tentação do ‘bonvivantismo’.” (p.69) Em seu reflexo social, a síntese garantiria a fundação de uma realidade verdadeira – uma realidade comungada por todos – que possibilitasse a experiência de uma felicidade que não fosse apenas ilusória: Em tal unidade, também, na relação dos momentos particulares com um todo em produção, fixa-se a imagem de uma situação social na qual – e só nela – esses elementos particulares de felicidade seriam mais do que mera aparência. (p.69)

As críticas adornianas à música ligeira derivam, então, do fato que ela se compõe de fragmentos que nunca chegam a uma síntese, oferecendo ao ouvinte apenas aparências de verdade e felicidade que, justamente por não terem força de síntese, nunca deixam de ser ilusórias. A verdadeira felicidade, ao contrário, estaria na observância do todo musical, na síntese dos encantos e prazeres, apenas encontrados na correta apreciação da música séria. Há ainda mais uma questão a ser notada para a caracterização definitiva do caráter fetichista da música da indústria. Segundo o filósofo, o que a indústria oferece não são obras de arte, mas apenas uma imagem já pronta delas. Se os ouvintes só entram em contato com a aparência das obras de arte, é também porque no campo das artes, aquilo que se comercializa é de natureza peculiar: “tal setor se apresenta no mundo das mercadorias precisamente como excluído do poder da troca, como um setor de imediatidade em relação aos bens, e é exclusivamente a esta aparência que os bens da cultura devem o seu valor de troca.” (ADORNO, 1996, p.78, grifo nosso). Em outras palavras, a apreciação artística só se realiza num contato imediato do ouvinte com a obra. Ninguém pode substituir o ouvinte na função que lhe compete de compreender a música que lhe é apresentada, pois é na consciência do ouvinte que a música se constrói e passa a existir como tal. Essa relação imediata não pode ser comercializada, e em nenhum momento um produto da indústria consegue garantir a realização dessa interação.

290

Além disso, as gravações contribuem a seu modo para esse estado de coisas. Elas eliminam os aspectos de espontaneidade da execução musical e reificam as performances gravadas. Simplesmente por estar no catálogo da indústria, a obra se torna uma espécie de referência a partir da qual todas as performances posteriores tendem a se reportar. As gravações sedimentam a obra, engessando-a e atribuindo-lhe o estatuto de um artefato supremo e intocável. O que se conserva, no entanto, não é a própria possibilidade de realização da obra, mas apenas sua aparência, o seu caráter fetichista. (p.81-82) Nesse campo, o novo fetiche (...) é o aparato como tal, imponente e brilhante, que funciona sem falhas e sem lacunas, no qual todas as rodas engrenam umas nas outras com tanta perfeição e exatidão que já não resta a mínima fenda para a captação do sentido do todo. A interpretação perfeita e sem defeito, característica do novo estilo, conserva a obra a expensas do preço da sua coisificação definitiva. Apresenta-a como algo já pronto e acabado desde as primeiras notas; a execução soa exatamente como se fosse sua própria gravação no disco. (p.86)

A fetichização da música se caracteriza, então, de dois modos: por um lado, numa atenção desviada, onde o verdadeiro valor musical, somente encontrado na síntese dos seus elementos, desvia-se para os atrativos sensoriais do som, que nada oferecem se não uma aparência de verdade. Nessa forma de escuta, “exaltase o material em si mesmo, destituído de qualquer função” (p.76). O valor da música é substituído pelo dos próprios instrumentos. Os meios – o material com que a música é produzida – são trocados pelos fins – a própria música. Por outro lado, o fetiche se evidencia na propagação de obras estereotipadas cujos valores jamais são questionados e cuja aceitação se dá menos pelo fato de haver uma apreciação genuína acerca dessas obras do que pelo fato delas serem amplamente conhecidas. Vejamos, então, de que modo Latour define o fetiche, e de que modo a crítica de Adorno se configura ao ser tomada através das lentes da reflexão de Latour. O FE(I)TICHE DE LATOUR O caminho percorrido por Latour para chegar a uma compreensão dos fetiches é deveras distinto daquele de Adorno. A substituição que estaria na gênese dos fetiches não é mais aquela que Adorno tomara emprestada de Marx. Não se trata de substituir o valor de uso pelo valor de troca de um determinado artigo fabricado pela mão humana, mas antes, trata-se de uma “substituição” na própria visão de realidade daqueles que se colocam na posição de antifetichistas. Vejamos o que isso significa. Latour ilustra a chegada dos navegadores portugueses à costa da África, onde se deparam com negros cujos cultos se desenvolviam em torno de estatuetas e artefatos que aos olhos portugueses não tinham qualquer caráter sagrado.

291

Inconformados com aquela idolatria, os portugueses questionam: “Vocês realmente pensam que essas estatuetas sejam divindades?” Frente à resposta afirmativa dos negros, os portugueses, indignados, acrescentam outra pergunta: “E vocês também afirmam que vocês mesmos fabricam essas estátuas?” Naturalmente, a resposta é afirmativa uma vez mais. Ora, se eles mesmos criavam seus deuses, como poderiam imaginar que esses mesmos deuses os determinavam? Acusados de serem adoradores de fetiches, os negros aparentemente não percebiam a contradição em que se encontravam. Era preciso que eles tomassem uma decisão: ou bem os seus deuses existiam de fato, objetivamente, de modo a realmente influenciá-los, ou bem eles os fabricavam, projetando as próprias forças subjetivas naqueles objetos inertes. Se os deuses de fato existiam, era dever dos negros perceber quanta presunção havia na idéia de que eles próprios tivessem o poder de fabricá-los. Por outro lado, se de fato os negros os fabricavam, deveriam então reconhecer que não poderiam ser determinados por aqueles deuses, já que eles não eram reais. Essa descrição, apresentada nas primeiras páginas de Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches (LATOUR, 2002, p.15-16), certamente fala mais do mundo dos portugueses do que do mundo dos negros. Ora, não é para os negros que o paradoxo existe, mas sim, para os portugueses. Aos olhos destes, filhos da cosmovisão cristã, o mundo é um dado já criado e pronto, um em-si. Assim sendo, ou o indivíduo conhece a verdade acerca do mundo – os fatos – ou vive segundo crenças quaisquer – fetiches. Surge daí, então, a noção de crença, que para os portugueses designava o estado daqueles que não conhecem o mundo, mas que julgam conhecer; aqueles que não conhecem o sagrado, mas julgam (erroneamente) reconhecer a sua força em determinados artefatos não-sacros. A noção de crença promove ou faz notar uma divisão do mundo em duas partes aparentemente irreconciliáveis: aquela do conhecimento real e aquela das crendices. A noção de crença (...) permite aos modernos [os portugueses] ver em todos os outros povos, crentes ingênuos, hábeis manipuladores ou cínicos que iludem a si próprios. (...) Os modernos acreditam na crença para compreender os outros; os adeptos não acreditam na crença nem para compreender os outros nem para compreender a si próprios. (p.23)

A origem daquela noção de fetichismo é, então, encontrada no próprio seio da visão de mundo dos modernos, mas obviamente, não entre aqueles que se acusa de fetichismo. É a divisão do mundo em dados reais e dados imaginários que permite aos modernos povoar o mundo de crentes fetichistas. A extinção dessa divisão significaria a extinção da própria condição que permite ler a realidade em termos de verdade e erro, ou seja, a noção de crença ganha um sentido bastante peculiar: “A crença não tem por objetivo nem explicar o estado mental dos fetichistas nem a ingenuidade dos antifetichistas. Ela está ligada a algo inteiramente diverso: a distinção do saber e da ilusão (...).” (p.31)

292

Essa distinção funda, segundo Latour, dois modos de vida. Ao modo de vida que assume a distinção, Latour dá o nome de teórico. Em contrapartida, o outro modo de vida, que não faz a distinção, não compreendendo nunca a separação entre ambos os pólos, Latour o chama prático. (p.41) A noção de crença novamente adquire um papel no sentido de auxiliar na manutenção dessa separação. “A crença”, diz Latour, “(...) é o que permite manter à distância a forma de vida prática – onde se faz fazer – e as formas de vida teóricas – onde se deve escolher entre fatos e fetiches.” (p.44) Se na vida teórica é paradoxal imaginar que um fato possa ser construído, na vida prática, construtivismo e realismo se mantêm sempre sinônimos. Não há paradoxo entre construir um fato e observar o fato como real. Se antes só podíamos nos alternar violentamente entre os dois extremos do repertório moderno (...), podemos, agora, escolher entre dois repertórios: aquele onde somos intimados a escolher entre construção e verdade, e aquele onde construção e realidade tornam-se sinônimos.” (p.49, grifos do autor)

É, então, precisamente a distinção essencial entre fato e fetiche, realismo e construtivismo, que não permite aos modernos compreender um aspecto essencial dos fetiches: eles são, a um só e mesmo tempo, feitos e feitores. Ainda que os brancos pretendessem que o fetiche fosse um objeto inerte, ineficaz e sem ação alguma, no exato momento em que se busca desmistificá-lo ele passa a agir e deslocar o mundo. Ainda que o fetiche não seja nada senão aquilo que o homem faz dele, ele acrescenta, contudo, alguma coisa: ele inverte a origem da ação, ele dissimula o trabalho humano de manipulação, ele transforma o criador em criatura. Mas o fetiche faz ainda mais: ele modifica a qualidade da ação e do trabalho humanos. (p.26-27, grifos do autor)

É precisamente o fetiche que permite à atividade humana transcender sua própria esfera e se transformar num ser autônomo na medida em que se realiza no mundo. A dupla via de ação dos fetiches garante que toda atividade humana, ao se realizar, ganhe autonomia e ultrapasse ligeiramente a própria força humana que a originou. Ao assumir aquela divisão originária, os modernos estavam fechando as portas à possibilidade de realização desse passe, característico dos fetiches. Para demarcar essa concepção diferenciada, Latour cria, então, um neologismo, visando a incorporar na palavra o duplo sentido que a caracteriza: o de ser a um só tempo criador e criatura. Acompanhemos o próprio Latour nessa composição: A palavra "fetiche" e a palavra "fato" possuem a mesma etimologia ambígua (...). Cada uma das palavras insiste simetricamente sobre a nuance inversa da outra. A palavra "fato" parece remeter à

293

realidade exterior, a palavra "fetiche" às crenças absurdas do sujeito. Todas as duas dissimulam (...) o trabalho intenso de construção que permite a verdade dos fatos como a dos espíritos. (...) Ao juntar as duas fontes etimológicas, chamaremos fe(i)tiche a firme certeza que permite à prática passar à ação, sem jamais acreditar na diferença entre construção e compilação, imanência e transcendência. (p.45-46)

O termo fe(i)tiche demarca, então, a capacidade criativa desses artefatos que, justamente por não serem nada além daquilo que são, cumprem seu papel. Dizemos isso porque, aos olhos dos antifetichistas, o fetiche significava justamente uma confusão acerca das propriedades daquele determinado objeto. Mas, ao contrário, o objeto supostamente fetichizado não é mais do que ele mesmo. Como nos diz Latour, “todos concordam com isso, só o denunciador, o destruidor de ídolos não o sabe.” (p.54) Assim, o fe(i)tiche é aquilo que garante uma passagem tranqüila da criação à autonomia. “Graças aos fe(i)tiches, construção e verdade permanecem sinônimos. Uma vez quebrados, tornam-se antônimos. Não se pode mais passar. Não se pode mais criar. Não se pode mais viver. É preciso, então, reestabelecer os fe(i)tiches.” (p.55) O FE(I)TICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL: UM PROGNÓSTICO A crítica adorniana adquire um caráter distinto daquele que originariamente tinha ao ser confrontada com a reflexão de Latour. Retomada por um viés antropológico, a ela se impõe a necessidade de questionamento dos próprios pressupostos que lhe permitem realizar uma determinada leitura do outro. Adorno provavelmente nunca colocou a questão nesses termos, principalmente por não estar tratando propriamente de um outro povo de cultura distinta da dele, mas simplesmente de um modo de produção cultural distinto que passava a existir dentro do seu próprio meio cultural. No entanto, ao proferir acusações contra um sistema de produção artística com o qual ele não compactuava, ele claramente delineava um modo de relação entre um eu e um outro. Dada a interferência de um modo de produção e fruição cultural no outro, a crítica era inevitável e a antropologização da questão muito pouco provável, uma vez que não se tratava de uma tentativa de compreensão mútua, mas sim, de um ataque ao outro, já que a existência desse outro – a indústria cultural – causava o deterioramento do fazer cultural defendido e praticado pelo filósofo alemão. Assim, a crítica mantinha um caráter absolutista, apenas questionável por um ataque do mesmo porte vindo do outro lado. Contudo, ao atacar os bens da indústria cultural imputando-lhes o caráter de fetiches, Adorno age precisamente como o antifetichista definido por Latour. O antifetichista, diz Latour, “é aquele que acusa um outro de ser fetichista.” (LATOUR, 2002, p.26). O antropólogo continua:

294

Qual é o conteúdo desta denúncia? O fetichismo, segundo a acusação, estaria enganado sobre a origem da força. Ele fabricou o ídolo com suas mãos, com seu próprio trabalho humano, suas próprias fantasias humanas, mas ele atribui este trabalho, estas fantasias, estas forças ao próprio objeto por ele fabricado. (LATOUR, 2002, p.26)

Em que pese essa definição, ela em nada se distancia da conceituação marxista do fetiche, como se pode ver a seguir: ela [a mercadoria] reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtos com o trabalho total como uma relação existente fora deles, entre objetos. (MARX, apud PIRES, 1998, p.140, grifo nosso)

De fato, Adorno acusa, como já vimos anteriormente, os ouvintes da indústria cultural de nunca chegarem a uma fruição objetiva e consciente das obras, mas sim, de confundirem o valor das obras pelos detalhes biográficos do autor, ou pelo aparato instrumental utilizado, entre outros fatores. Eis aí a confusão sobre as origens da força; eis aí a substituição do valor do produto pelo valor das características sociais que o produziram. Contudo, do mesmo modo como os portugueses não compreendiam o rito dos negros na costa africana, podemos colocar a seguinte questão: não teria estado Adorno frente a um rito que ele não compreendeu, cuja fundamentação e razão de ser não era exatamente o que ele imaginava, o que no entanto não o impediu de fazer uma leitura daquilo de acordo com pressupostos que eram válidos para a visão de mundo dele, mas não para a realidade do outro? Não teria estado ele frente a um novo fazer cultural e uma nova forma de relação entre os homens que criaria um novo panorama social, precisamente esse em que vivemos hoje? Em nenhum momento Adorno se questiona sobre a validade universal dos critérios de audição que ele expõe, embora ele argumente claramente a favor disso. Contudo, se tomamos a música enquanto experiência individual, posicionando-a lado a lado com o fe(i)tiche de Latour – esse elemento originado na fantasia do indivíduo e que, ao retornar para ele, converte-o de criador em criatura –, podemos nos perguntar: seria razoável imaginar que todo ouvinte tenha ou devesse ter o mesmo tipo de interesse e experiência com uma determinada música, uma mesma relação e uma mesma ordem de percepção, como Adorno supunha? Não seria mais próprio imaginar que cada indivíduo crie uma relação com uma determinada forma musical que lhe diga respeito, de acordo com os anseios e verdades existentes na sua imaginação pessoal, e que tome suas decisões estéticas de acordo com essa realidade interior que lhe é particular? Pode-se argumentar, contra isso, que Adorno tinha consciência de que a música ligeira nunca foi apreciada segundo as categorias que ele mencionava. Ele

295

próprio deixou isso claro, dizendo que seria possível objetar, às suas críticas, que “a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram experimentadas segundo as mencionadas categorias” (ADORNO, 1996, p.66). Contudo, a ele era inadmissível que a música séria, ao ser industrializada, acabasse também ela levada à ordem do entretenimento. A despeito disso, a própria categorização, que separa a experiência da fruição estética, essa experiência tão humana, em experiências sérias ou ‘de entretenimento’, precisaria ser repensada. Pois, no reino da prática, a prática que atesta a sabedoria do passe dos fe(i)tiches, não há outra coisa que a simples ação, que se sedimenta em realidade sem qualquer necessidade de que seja categorizada ou classificada em experiências válidas ou inválidas. Como justificar, afinal, que uma experiência cultural não seja válida para um determinado indivíduo? Há, ainda, um aspecto que é preciso notar, que remete ao sentido da criação artística. Para Adorno, como vimos, a significação da música – a única possível – estava na existência de uma construção lógica dessa música, que pudesse ser apreendida intelectualmente por um indivíduo que estivesse apto para tal. Por outro lado, o aparecimento dos fe(i)tiches parece deslocar o sentido da arte para outro lugar. Estaria a significação de uma obra musical diretamente ligada à ordenação objetiva de materiais musicais de que ela se compõe, ou estaria ela ligada a uma relação mais profunda e imediata, uma integração do criador com a sua criatura, do artista ou do próprio ouvinte com o seu fe(i)tiche particular? Latour traz uma observação interessante a esse respeito: Todos aqueles que se sentaram na frente de um teclado de computador, sabem que tais romancistas tinham consciência do que pensavam sobre aquilo que estavam escrevendo, mas que não se pode, por isso, confundilos em um jogo de linguagem ou imaginar que um Zeitgeist lhes diria o que escrever à sua própria revelia (...). Experiência banal, tornada incompreensível pela dupla suspeita da crítica e remetida, por esta razão, ao meio-silêncio da "simples prática". (LATOUR, 2002, p.47)

Parece-nos que, seguindo a ótica de Latour, a amplitude do impacto de uma obra de arte definitivamente não está ligada simplesmente à construção lógica ou linguística, por assim dizer, que ela apresenta. Quando a criação se sedimenta apenas como jogo de linguagem, como no caso dos teóricos, nada se cria daí, pois os fe(i)tiches que permitiriam o passe da construção à autonomia permanecem ausentes. A única coisa que resta, então, a essa experiência banal é o meiosilêncio da “simples prática”, a prática que acontece pelo formalismo de acontecer, mas que não vivifica um anseio presente numa imaginação viva, seja de um ouvinte, seja do próprio autor. Retomaremos, por fim, algumas palavras de Adorno que, sob a luz dos fe(i)tiches, parece-nos agora trazer um novo sentido. Vale reescrevê-lo aqui: Em tal unidade [a unidade sintética da música séria], também, na relação dos momentos particulares com um todo em produção, fixa-se a

296

imagem de uma situação social na qual – e só nela – esses elementos particulares de felicidade seriam mais do que mera aparência. (ADORNO, 1996, p.69)

A ênfase de Adorno ao fazer esta menção parece estar em ressaltar a importância da força de síntese da boa música, pois só nela os aspectos da obra musical seriam mais que mera aparência. Contudo, parece-nos também possível dizer que somente em relação à situação social em que a obra foi concebida suas características se tornam mais do que mera aparência. O que fundamenta a obra e a preenche de profundidade são os valores que ela carrega, que só são verdadeiramente compreendidos e percebidos no contato com a sociedade que os concebe e os sustenta, a sociedade em que se originou a própria obra. Cada manifestação cultural precisa ser lida a partir dos germes vitais que a originaram, e de acordo com o espaço ou papel que lhe é atribuída naquele determinado contexto social, caso contrário, incorre-se no perigo de traçar uma avaliação errônea dos propósitos e valores específicos das múltiplas formas de manifestação cultural existentes, atribuindo-lhe valores e julgamentos que não lhe são próprios e que não fazem jus à sua verdade de ser particular. Trocando em miúdos, se o valor de uma manifestação artística está na existência de uma vida imaginária que a sustenta antes mesmo de ela existir objetivamente, ou seja, na existência de fe(i)tiches que a suportam e a carregam até o âmbito do real, uma crítica unilateral e absoluta das manifestações culturais torna-se inviável e impraticável. É possível, certamente, avaliar diferentes formas culturais de acordo com pressupostos ou expectativas em relação a essas formas culturais, mas nunca de forma absoluta. Não é praticável propor uma valoração estética da cultura do rock, por exemplo, com valores e expectativas apropriados para as salas de concerto, ou invalidar uma por não suprir as necessidades estéticas da outra. Ambas as manifestações tem razões de ser distintas, buscam efeitos distintos e oferecem ao ouvinte experiências diferentes e não necessariamente excludentes. Concluímos, por fim, com uma reflexão de Latour: O pensamento crítico oferece, de fato, um repertório rico – demasiado rico demasiado fácil, demasiado vantajoso – para mergulhar o sujeito nas causas objetivas que o manipulariam. Nada mais fácil que fazer do sujeito o efeito superficial de um jogo de linguagem, a capacitância provisória que emergiria de uma rede neuronal, o fenótipo de um genótipo, o consciente de um inconsciente, o "idiota cultural" de uma estrutura social, o consumidor de um mercado mundial. (LATOUR, 2002, p.77)

Se há o que se almejar atualmente é que consigamos restaurar os fe(i)tiches em sua naturalidade, simplicidade e imediatidade, afastados da necessidade da crítica. Se nosso fazer cultural, seja lá qual for, estiver desprovido da vitalidade dos fe(i)tiches, estaremos plantando em solo estéril.

297

BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor W. [1938]. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores/Adorno. São Paulo: Nova Cultura, 1996. p.65-108. DUFRENNE, Mikel [1972]. Intencionalidade e Estética. In: Estética e Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1981. LATOUR, Bruno [1984]. Reflexão Sobre o Culto Moderno aos Deuses Fe(i)tiches. Trad. Sandra Moreira. Bauru: EDUSC, 2002. PIRES, Valdemir [1998]. Fetichismo na Teoria Marxista, Um Comentário. Revista Impulso, Vol. 10, Nos. 22 e 33. Piracicaba: UNIMEP, 1998. p.139-146. Disponível em: . Acesso em 28 de junho de 2010.

298

BEETHOVEN E NIETZSCHE: UMA MÚSICA HEROICA PARA UMA FILOSOFIA TRÁGICA Francisco Gleydson Lima da Silva* [email protected]

Resumo: Critica a primazia da racionalidade na cultura ocidental e aponta o afloramento da sensibilidade como alternativa ao reducionismo conceitual propugnado pela tradição socrática. Explicita a categoria filosófica do trágico enquanto cosmovisão e a identifica musicalmente em cada um dos movimentos na Sinfonia Eroica de Beethoven, assinalando a retomada desse entendimento de mundo na figura do artista trágico quando imbuído do mesmo ideal heroico dessa sinfonia. Palavras-chave: Eroica. Estética. Sensibilidade. Trágico.

O umbral do século XX, tendo consigo a vitória germânica na Guerra Franco-Prussiana, vê surgir, assentada na filosofia pessimista de Schopenhauer e na música romântica de Wagner, a obra inaugural do filósofo e filólogo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Quando ele concluiu O Nascimento da Tragédia, toda a ciência ocidental fora revista à luz de uma metafísica de artista e a arte trágica helênica fora indicada como antídoto ao veneno do socratismo que arrefecera a potência criadora do espírito alemão. Num tempo pleno de exaltação patriótica e arroubos políticos, o jovem Nietzsche enxerga a gestação do novo “ser alemão” (deutsche Wesen), um tempo favorável ao desabrochamento da energia artístico-criadora ensejando o “renascimento do mito alemão” e uma consequente exuberância numa era trágica onde os gregos seriam tomados como os mais autênticos inspiradores. Deles tomamos por empréstimo até agora, para a purificação de nosso conhecimento estético, aquelas duas imagens de deuses, das quais cada uma rege por si um reino estético separado e acerca de cujo contato e intensificação recíprocos chegamos a ter uma idéia graças à tragédia grega1.

No entendimento de Nietzsche, o elemento dionisíaco da cultura alemã estava apenas adormecido e precisava ser desperto. Tal ressurgimento deveria ocorrer tal qual sua gênese na tragédia grega, isto é, no espírito da música. Emanado do coro ditirâmbico lá na Grécia, na Alemanha é igualmente na música o seu berço. Questiona-se, então, de onde se precipitou tão inexorável força?

* Especialista em Estética pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. 1 NIETZCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2. ed. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia da Letras, 2006, p. 136.

299

Do fundo dionisíaco do espírito alemão alçou-se um poder que nada tem em comum com as condições primigênias da cultura socrática e que não é explicável nem desculpável, a partir dela, sendo antes sentido por esta como algo terrivelmente inexplicável, como algo prepotentemente hostil, a música alemã, tal como nos cumpre entendê-la sobretudo em seu poderoso curso solar, de Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner2 (grifo do autor).

Está, assim, situada a origem musical e a manifestação da força artística que engendraria o novo futuro. É na música desses gênios que reside um chamamento eminentemente ativo ao povo alemão para que, tal qual na tragédia ática, opte por uma ação de caráter elevado: enfrentar o otimismo socrático através do helenismo ou ceder a um pessimismo da fraqueza. Portanto, numa cultura onde a pujança criativa tem como primícias a arte de Bach, de Beethoven e de Wagner, a eleição da segunda alternativa seria, no mínimo, colidente. Beethoven, o “compositor trágico por excelência”3, foi, juntamente com Bach, e, principalmente, Wagner, objeto das análises de Nietzsche. Wagner idolatrava Beethoven, o sol a pino daquele curso solar, porque em sua obra, além da tragicidade marcante, sobressai-se uma laboriosa capacidade expressiva dos sentimentos e emoções humanos, como se fosse possível traduzi-los em imagens musicais. Desse modo, o jovem filósofo e também compositor romântico Nietzsche creu que seria possível afastar os ventos técnico-científicos a que estava exposta a sua civilização. Nesse ponto, cumpre investigar a vinculação das posições nietzschianas com os ideais românticos e até mesmo com os pré-românticos, posto que voltar-se a tal propósito monumental já em sua gênese aproximou Nietzsche do ideário pré-romântico contido no Sturm und Drang4, posto que tal movimento intentava emancipar a cultura germânica do racionalismo iluminista e do classicismo francês. Porém, Nietzsche pretende ir além — “ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...”5 — quando aufere aos gregos e à sua tragédia o poder de libertar peremptoriamente o ser alemão dos estrangeirismos, fazendo surgir um genius que em sua tarefa de apresentar o fundo metafísico da existência, mantivesse inextricável comunicação com o gênio criador supremo. Para Nietzsche, só a música era capaz de significar a existência e quando não se espera mais do metafísico há que se empreender uma navegação sem o porto seguro do conceito, restando à vontade a querente propensão de ser-mais, sempre mais vida. Portanto, Nietzsche abraçou uma postura destoante e

NIETZSCHE, 2006, p. 118. SOLOMON, Maynard. Beethoven: vida e obra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, passim. 4 Tempestade e Ímpeto: movimento cultural alemão do século XVIII que se opunha ao classicismo literário do Ancien Regime desejando instaurar um primado da emoção sobre a razão, cujos maiores expoentes são Goethe e Schiller. 5 NIETZSCHE, 2006, p. 15. 2 3

300

totalmente diversa para destituir a razão de seu caráter de formadora do mundo, até mesmo para evitar a contradição, que consiste em [...] lutar contra a razão através de uma forma de pensamento submetida à razão; sua tentativa mais radical de seguir a via da arte para levar a filosofia além ou aquém da pura razão; sua tentativa mais radical de fazer a forma de expressão artística criar a temática filosófica trágica 6.

Por isso, é possível encontrar vestígios românticos na estética de Nietzsche, pois este assemelhou o gênio romântico ao artista trágico grego. A este, com a música e o mito, cabe propiciar ao homem comum a sapiência da verdade mais contraditória do Uno-primordial, qual seja, Ver a sua existência, tal como ela é inelutavelmente, em um espelho transfigurador e proteger-se com esse espelho contra a medusa — essa foi a genial estratégia da ‘Vontade’ helênica para poder viver. Pois de que outra maneira aquele povo infinitamente sensível e tão brilhantemente dotado para o sofrer poderia suportar a existência, se a ele não se mostrasse essa mesma existência nimbada de uma glória mais alta nos seus deuses!7

Assim, Nietzsche encontrou no artista trágico grego o arquétipo mais adequado à sua empresa, ou seja, era necessário reanimar a arte trágica através dos gênios do seu tempo e que estes, por sua vez, inaugurassem uma nova metafísica — metafísica de artista — onde o ato de criar apreendesse a profundeza mais íntima da arte e forjasse o mundo, tal qual o artista primordial. E a música, como a mais imediata das artes, seria o território deveras apropriado da parição desta nova cosmovisão. A especificidade da admirável tarefa do artista no engendramento desse novo mundo o tornaria um ser humano singular, uma espécie de elo privilegiado, um sátiro do cortejo de Dionísio a quem este benevolentemente permite-lhe sorver vivificantes gotas de mel e leite, um hermeneuta do deus Apolo, a quem a luz da verdade não ofusca porque a dedilha na sua cítara imediatamente. Ao artista, as musas bafejam-lhe a face e o povo lhe concede lugar distinto. Ninguém antes, na história da música ocidental, imprimira com extrema fidedignidade em sua arte esse genius nietzschiano quanto Ludwig van Beethoven (1770-1827). O compositor destaca-se pela fidedigna conjugação entre vida e arte. Um pioneiro tanto romântico quanto trágico. Nascido em Bonn, filho e neto de músicos da corte do príncipe-eleitor de Colônia Maximilian Friedrich, desconhece-se a data exata de seu nascimento, apenas que foi batizado aos 17 de dezembro de 1770, embora o mesmo tenha MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 18. 7 NIETZSCHE. A visão dionisíaca do mundo. Tradução: Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Sousa. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 16-17. 6

301

contestado veementemente essa data durante toda a vida anotando de próprio punho na certidão de batismo a data que julgava correta, a saber, 1772. O menino herdou o nome de seu avô, a quem sempre devotava enaltecedores comentários e tinha nele a figura do herói, por oposição à mediocridade alcóolatra e à tirania de seu pai Johann8. À maneira de Leopold Mozart, o pai de Beethoven desejou notoriedade ao filho, porém diferiu daquele quanto ao tratamento para com o pequeno. As tenras inclinações do gênio de Bonn à improvisação e criação no teclado e no violino eram duramente atalhadas e desprezadas pelo tirânico pai a pretexto de boa educação e formação de um grande músico a partir do cumprimento de um programa rijo de estudo. Já a relação maternal foi de alienação, uma vez que Maria Magdalena nunca intervinha nos rigores paternos e não constam fontes que atestem sua benevolência, exceto uma vez que, durante uma viagem a Rotterdam, manteve os pés do pequeno Beethoven em seu colo impedindo que enregelassem. Portanto, em sua primeira década de vida, o menino teve um pai ébrio e uma mãe ausente que sempre trouxeram dificuldades psicológicas a Beethoven, posto que nunca abordou esses vínculos familiares com serenidade. Aos doze anos, os conhecimentos musicais de Beethoven estão em franco desenvolvimento e passou, ainda sem rendimentos, a assessorar Neefe, o organista da corte, recebendo deste a tarefa de assumir o pleno comando da orquestra nalgumas vezes. Como seu desempenho foi incomum, aos treze foi admitido formalmente como organista suplente da corte, agora com proventos oficiais, e Neefe, atraído pelo Sturm und Drang, tutelou os estudos e composições iniciais de Beethoven. Já nesse tempo, Beethoven já apresentava aquilo que Solomon, usando conceitos psicanalíticos, denomina “oscilações de estado de ânimo características do adolescente criativo”9, a saber, “o auge da exultação e ou a profundidade do desespero, os entusiasmos repentinos, a desesperança profunda, as candentes... preocupações intelectuais e filosóficas, a sensação de opressão pelos pais, a ira impotente ou a aversão ativa dirigida contra o mundo adulto... as fantasias suicidas”10. Dado seu progresso como pianista, em 1787, o príncipe-eleitor decidiu apresentar Beethoven a Viena, talvez para que a então capital da música europeia atestasse a prosperidade de suas apostas artísticas. Todavia, logo após duas semanas em Viena, Beethoven foi convocado por seu pai a retornar a Bonn por causa do iminente falecimento de sua mãe. Tal infortúnio ocorre em julho, quando o adolescente contava dezesseis anos, e outro revés viria logo em novembro, agora fora a vez da irmãzinha de apenas um ano e meio de idade. Cf. SOLOMON, op. cit., p. 87. SOLOMON, op. cit., p. 72. 10 Ibid., p. 72-73. 8 9

302

Certamente, tais fatos afligiram o compositor a ponto de desanimá-lo a voltar a Viena, mesmo diante do progresso como artista que certamente auferiria lá. Permaneceu compondo em Bonn ainda cinco anos, naquela época uma miniatura intelectual e cultural de Viena, mas nesse ínterim ainda não demonstrava toda a sua potencialidade composicional e artística. Nessas obras, Beethoven manteve-se dentro dos padrões tradicionais de expressão musical. Suas composições de Bonn raras vezes penetram além da superfície das emoções, talvez precisamente porque correspondem de maneira tão harmoniosa ao ideal do principado benevolente em que foram criadas — um esteticismo sereno que exaltava a beleza abstrata e tinha prazer na constante repetição de padrões e formas graciosamente previsíveis11.

Entretanto, Bonn ainda testemunharia o prenúncio do futuro na Cantata Fúnebre sobre a Morte de Joseph II, WoO 87 e a Cantata sobre a Subida ao Trono Imperial de Leolpold II, WoO 88, ambas de 1790. Não fosse por essas duas obras de caráter excepcional talvez o estilo beethoveniano tivesse permanecido fiel ao classicismo conceituado acima. Nelas encontra-se adiantado o desdobramento ulterior de laivos estilísticos inconfundíveis, especialmente o estilo heroico. Tanto que quase um século depois da composição da Cantata Joseph, Brahms atesta a Eduard Hanslick, o mais influente crítico musical do século XIX: Mesmo que não houvesse qualquer nome no frontispício, nenhum outro poderia ser conjeturado: é Beethoven de ponta a ponta! O belo e nobre patos, sublime em seu sentimento e imaginação; a intensidade, talvez violenta em sua expressão; além disso, a voz principal e declamação, e, nas duas seções exteriores, todas as características que podemos observar em suas obras subsequentes e associadas a estas12.

A Cantata Joseph parece constituir a administração de uma pequena dose de audácia a fim de preparar o ouvinte para o provir heroico e Solomon relaciona esta cantata à vindoura Sinfonia Eroica enxergando que, “por exemplo, o significado extramusical da passagem ‘desintegrante’ nos compassos finais do movimento de marcha fúnebre é confirmado pelo uso por Beethoven de uma passagem semelhante na cantata para acompanhar a palavra ‘Tot’ [morte]”13 (grifo do autor), como se verificará adiante no movimento correspondente a ser tratado analiticamente. Em 1792, conhece Haydn e lhe apresenta uma de suas cantatas. Em novembro desse ano, parte novamente para Viena a fim de tomar aulas com o primeiro da Trindade Vienense e para seguir novos caminhos que o conduziriam SOLOMON, op. cit., p. 72. Ibid., p. 83. 13 Ibid., p. 83-84. 11 12

303

a uma autocompreensão e brilhante carreira. O pai morre sete semanas após sua chegada, porém Beethoven nunca mais volta à terra natal. Agora Beethoven experimentava a libertação total do jugo paterno e o mundo respira os novos ares da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No período pós-revolucionário, não só a música que exalta a dor e a glória dos heróis pátrios se tornou bastante apreciada, mas também a música de Beethoven, que parecia propugnar um modelo ético e a construção de um cabedal ideológico. O esboço desse estilo tem sua origem ainda em Bonn, mas agora ganhava contornos mais definidos, tanto por causa do aprendizado e do manuseio das técnicas musicais clássicas quanto por causa do contato com as ideias iluministas circulantes na Europa au fin du siècle. Observa-se, então, o delineamento da principal característica do gênio beethoveniano: o herói que sacrifica a si por um motivo nobre e total, a diluição do particular no universal. O próprio Beethoven afirma de si: “Desde a minha mais recuada infância, o meu zelo em servir a nossa pobre humanidade sofredora de qualquer modo através da minha arte não pactuou com qualquer motivo mesquinho”14. Mais tarde será o protótipo do compositor livre, isto é, não esteve obrigado a responder a nenhum mecenas, com a responsabilidade de compor somente para si e seus coetâneos. De tal maneira que, certa feita, ao recusar-se a tocar para o príncipe Lichnowsky, seu subvencionador até ali, proferiu desaforadamente: “Príncipe, o que sois, sois pelo acaso do nascimento. O que sou, devo-o a mim mesmo. Príncipes, há e haverá ainda milhares. Beethoven há apenas um”15. Tal independência trouxe sempre muitos dissabores a Beethoven, posto que ele tivesse de negociar a publicação de suas obras diretamente. Esse fato também explica porque Beethoven compôs e executou somente nove sinfonias, ao passo que o catálogo de Haydn, patrocinado pelo príncipe Esterházy, contou 106 sinfonias após sua morte. Todavia, há quem afirme que, apesar de poucas, as sinfonias de Beethoven são verdadeiros monumentos. O apreço consistente e crescente de Beethoven pelo heroísmo o impele a uma nova fase em sua carreira: a fase heroica. Costuma ser consenso entre os estudiosos do mestre a demarcação cronológica dessa fase coincidir com a conclusão da grandiosa Sinfonia Eroica, no entanto, segundo Solomon, essa fase se deu por conta de uma conjugação de diversos eventos externos e uma audácia interior. Ainda assim, o primeiro concerto público para angariar fundos para si, Beethoven só deu em 02 de abril de 1800 e mesmo assim a crítica não o poupou. Somente com a suíte As Criaturas de Prometeu, WoO 43, é que o sucesso logrado BEETHOVEN apud SOLOMON, op. cit., p. 66. BEETHOVEN apud PLATZER, Frédéric. Compêndio de Música. Tradução: Laura Maria de Almeida. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 233. 14 15

304

lhe entronizou no mundo aristocrático da música vienense como excêntrico criador. Já na metade do ano seguinte, como que pressagiando algo assombroso, Beethoven escreveu a Franz Wegeler, seu amigo mui estimado, expondo certas perturbações interiores que atribuiu a um sucesso imerecido, à pungente angústia sofrida por causa da audição mais prejudicada nos três anos anteriores e à aflitiva doença estomacal que o debilitava dia após dia. Como lhe era próprio, no entanto, na resposta ao amigo, vê-se quão resolutamente o artista lutou para não sucumbir: “Estou inteiramente na minha música [...] e mal terminei uma composição quando já iniciei uma outra; no meu atual ritmo de composição, produzo com frequência três ou quatro obras ao mesmo tempo”16. Não obstante essa força interior que lhe foi caractere até o fim da vida, tal qual numa tragédia onde o malogro e o infortúnio temperam as ações, na primavera de 1802 o estado geral de saúde do maestro piorou, mormente a surdez que deu seus primeiros sinais já em 1795, e seguindo conselhos médicos se retirou à pacata Heiligenstadt, cidadezinha nos arredores de Viena. De lá, o testemunho da dor e aflição experimentados ao extremo naquele ano só pôde ser conhecido após sua morte, quando se encontrou entre suas anotações, um documento que os estudiosos costumam denominar como “a versão literária da Sinfonia Eroica”, a saber, o Testamento de Heiligenstadt. Nele o compositor assume a surdez que tanto o oprimiu, esclarece os motivos da aparente misantropia e o temperamento irascível, solicita aos irmãos Caspar Anton Carl e Nikolaus Johann que se encarreguem de desconstruir a má fama a ele cominada e explica que pensou em suicidar-se, mas somente a sua arte o manteve vivo porque de tudo que lhe fora confiado, muito ainda carecia ser musicado. Beethoven assumiu sua sina, e sendo privado dos sons exteriores, voltou-se mais detidamente às harmonias que habitavam seu mundo interior. No codicilo do testamento, escrito pouco depois, vê-se o heroísmo de Beethoven em toda sua pujança quando ele determinado “[...] já manifesta a resolução heroica de ‘pegar nas faces do destino’. Viverá. Criará sua obra. Terá sucesso triunfal como poucos compositores obtiveram em vida”17. No regresso a Viena, sua resolução e afinco na tarefa de transformar em música as ideias interiores o impeliram a produzir ainda mais. Entre maio e novembro de 1803 surgem, então, os primeiros rascunhos daquela que seria sua terceira sinfonia e a estreia da Eroica ocorreu em maio de 1804, no castelo do príncipe Lobkowitz em Raudnitz. A Eroica marca uma segunda fase do compositor, onde predomina uma carga dramática acentuada que propicia uma escalada trágica também na vida BEETHOVEN apud SOLOMON, op. cit., p. 162. BEETHOVEN apud CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 193. 16 17

305

pessoal. Nessa obra tributa-se, a princípio, o herói revolucionário francês Napoleão Bonaparte, cujo nome intitulava a sinfonia. Entretanto, uma lenda apregoa a desilusão de Beethoven para com o acinte absolutista de Napoleão quando se autoproclama imperador e reza que o compositor teria riscado a dedicatória do frontispício da partitura original e substituído pelos seguintes dizeres: À memória de um grande homem18, e por derivação, à memória de qualquer herói universal. A obra está dividida em quatro movimentos e o título original em italiano é Sinfonia Eroica composta per festeggiare il sovvenire de um

grand’ Uomo, e dedicata a Sua Altezza Serenissima il Principe de Lobkowitz, da Luigi van Beethoven. Op. 55. Nº III delle Sinfonie. A duração de sua execução oscila entre 46 a 51 minutos. Todo esse percurso histórico traçado até aqui tem por finalidade não somente dar a conhecer a vida do músico, mas notadamente averiguar a convergência entre a estética de Nietzsche e a arte musical de Beethoven, ou seja, avaliar movimento a movimento a Terceira Sinfonia de Beethoven como protótipo de uma arte trágica já no princípio do século XIX, assim constituindo recurso contra o pessimismo da fraqueza assinalado pelo filósofo na cultura alemã nos anos finais do mesmo século. A rigor, trata-se de buscar encontrar em apenas uma das tantas obras de Beethoven, redução indubitavelmente injusta, o mesmo pathos ou sequer vislumbres dele, o qual Nietzsche creu abrigar-se perfeitamente na obra musical de Richard Wagner (1813-1833), muito embora tenha renunciado a tal crédito posteriormente, não cabendo ao presente estudo considerações acerca. Tem-se por certo, apenas, que o próprio Wagner se considerava o herdeiro direto de Beethoven, a ponto de elaborar uma homenagem póstuma no centenário de falecimento de seu mestre através de seu Beethoven, um livro que aborda a formação e o desenvolvimento do genius beethoveniano. Originalmente seria um discurso, mas o mesmo não pode ser proferido em virtude da eclosão da Guerra Franco-Prussiana. Essa extrema adesão de Wagner a Beethoven só reforça a convicção motivadora desse estudo, uma vez que em Beethoven estaria o princípio trágico ressurreto na música romântica. Entretanto, na estética nietzschiana, tal como menciona Fernando de Moraes Barros, “não deixa de ser relevante a constatação de que, em sua filosofia, não há uma concepção unívoca da música e que tampouco o pensador deixa de entreter ligações com outros autores revelando afinidades e divergências de acordo com o período em que escreve”19. Daí que a reflexão a que se propõe este trabalho está especificamente relacionada ao primeiro escrito de Nietzsche, posto que a partir da obra Humano, demasiado humano, o filósofo furta-se de ouvir a

Cf. SOLOMON, op. cit., p. 183. BARROS, Fernando de Moraes. O pensamento musical de Nietzsche. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2007, p. 14. 18 19

306

música romântica de outrora e doravante envereda numa concepção de música mais ligada à discussão respeitante à música absoluta. Dentre essas fases da estética nietzschiana, àquela atinente a‘O Nascimento da Tragédia, bem pode referir-se à obra musical heroica de Beethoven, uma vez que o romantismo musical é solo sobre o qual floresceu o pensamento trágico a que se empenha Nietzsche, este, herdando do movimento cultural em questão, a noção de dionisíaco, obviamente expandindo-a qualitativamente depois. Tanto quanto Beethoven despertou o mundo para a vindoura música romântica através da expansão dos princípios do classicismo, Nietzsche também acordou a Modernidade do seu endeusamento autorreferente encetando a primeira crítica ao seu cerne. Ambos, cada um no seu ofício, porém de modo identicamente trágico, viveram o limiar de um novo tempo como preparadores de um porvir que se pretende diverso daquele tempo no qual existiram. O Romantismo enquanto movimento filosófico, literário e artístico que preconizava a valorização do sentimento trouxe ideias opostas às pretensões racionais iluministas, pois que, por exemplo, na música há uma predileção pelos temas dramáticos, ressaltando a manifestação da subjetividade e orbitam em torno da trivialidade da vida; concomitantemente, invocam a irrupção da natureza mais primeva e dos desejos humanos mais intrínsecos. Por isso, o imperativo aparecimento de uma nova espécie de músico que fosse capaz de ordenar e comunicar o desregramento essencial da música era urgente em Nietzsche. Nesse sentido, o músico original não se confunde, para o filósofo alemão, com aquele que, em nome de seus próprios arroubos, dedica-se apenas à tarefa de transgredir as regras tonais, mas com o artista que, conferindo um ponto de aplicação ao inextirpável caos de seus impulsos, subverte e inova os princípios compositivos a partir das próprias regras 20.

Cumprida a etapa de contextualização histórica e características técnicas da referida obra musical, proceder-se-á a análise temática de cada movimento da sinfonia, tal como proposto anteriormente. ABERTURA: ALLEGRO CON BRIO Na obra Humano, demasiado humano, Nietzsche observa a fecundidade da produção musical beethoveniana enquanto expressividade de um povo de “raça forte e de um tipo hoje desaparecido”21.

BARROS, op. cit., p. 19. MARTINS, Maria. Nietzche. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 39. (Coleção Deuses Malditos) 20 21

307

Nietzsche assegura que tanto quanto outros compositores dignos de admiração, tais como Schültz, Bach, Häendel, Chopin, Liszt e Rossini, estes, artistas desligados da crença na inspiração fortuita, o “Napoleão da música”22 se destaca por seu juízo apurado, especialmente quando “[...] rejeita, seleciona, combina; como vemos hoje nas anotações de Beethoven, que aos poucos juntou as mais esplêndidas melodias e de certo modo as retirou de múltiplos esboços. [...] Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar”23.

Tais caracteres estão consignados na Sinfonia Eroica de modo muito novo. Habitualmente, aponta-se essa composição como marco inicial do período romântico na música erudita e principia um novo caminho na sua trajetória musical, pois Beethoven alargou o tempo de uma sinfonia para cerca de uma hora, consolidou o a substituição do minueto por um scherzo vivaz e expandiu a linguagem tonal aos extremos numa eurritmia acabada, de tal sorte que os compositores futuros se viram compelidos a referenciarem-se em sua grandiosa estatura. Vale ressaltar a diferença das orquestras daquela época em comparação com as atuais. A orquestra que Beethoven utilizou para a estreia da Eroica era típica de sinfonias daquele período, composta de cordas, flautas, oboés, clarinetes, fagotes, trompetes e tímpanos. A inovação ficou por conta da adição de outro corno para um total de três. Beethoven disse que, em sua opinião, o resultado soou heroico. Nesse primeiro movimento, colossal e baseado no alargamento da forma sonata em todas as partes, o tutti inicial da orquestra tem expressão grave chamando a atenção ao que se segue: o compositor quer musicar a dor experimentada pelo herói ao decidir renunciar a si em favor de todos. Com ínfimas modificações num acorde musical muito simples executado pelos violoncelos, após um breve floreio harmônico, Beethoven acrescenta as violas e os segundos violinos tocando em uníssono, os primeiros violinos respondendo e completando o primeiro motivo de modo dramático e ansioso. Tal acorde referido foi retirado da ópera Les amours de Bastien et Bastienne, a qual Mozart compusera aos 12 anos parodiando a bem-sucedida ópera-cômica Le devin du village do filósofo e também compositor Jean-Jacques Rousseau. Acerca deste efeito aflitivo provocado pela execução sincopada dos primeiros violinos, La Guardia explica:

Cf. SOLOMON, op. cit., passim. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 119-120. 22 23

308

Em uma ideia alheia muito simples, Beethoven constrói um monumento formidável e começa, através da fisionomia sutil e misteriosa dos matizes, a trocar o colorido, rústico, ingênuo do motivo ("sol maior") para o profundo, escuro, quente e poderoso que ressoa ao ser transportado para "mi bemol", tom heroico por excelência. Muitos acreditaram ver no início da Terceira Sinfonia a imagem musical do herói24 (tradução nossa).

Tal efeito é reforçado pela repetição do motivo que a flauta, clarinete e trompa realizam em diálogo com os primeiros violinos. Observa-se aí a ênfase no contratempo e novamente num tremante dos violinos irrompe outra vez o motivo heroico, ao que La Guardia denomina como “magnífica afirmação da vontade” 25 (tradução nossa). Vale ressaltar que a utilização do compasso 3/4, comumente associado à dança, foi um tanto incomum num movimento de abertura, soa feroz. E ainda há as batidas e o sincopado que perturbam o ritmo e desorientam o ouvinte. De fato, Beethoven explorará o dinamismo de toda a orquestra, especialmente sobrepondo partes contrastantes a fim de conseguir a dramaticidade desejada. Em seguida, inicia-se a transição em tom rogativo para um novo motivo encetado pelo conjunto de oboé, clarinete, flauta e primeiros violinos. Após um crescendo das cordas um vigoroso tutti reaparece afirmando a vontade do herói e entrecorta a retomada do arrojado motivo heroico. Nesse segundo motivo o contraste suplicante e ascendente das madeiras conduz a uma diminuição do movimento onde somente as cordas dialogam, pois a orquestra mantém-se retida. Novamente são as cordas que agitadamente conduzem o crescendo que leva a mais um tutti numa variação do primeiro motivo. Em golpes intempestivos as cordas se lançam voluntariosamente por sobre os acordes da orquestra impondo a passagem do compasso ternário para o binário, jornada que soa dissonante. Nesse ínterim, La Guardia diz que “parece escutarem-se gritos de furor”26 (tradução nossa). O herói é tomado de cólera e por um momento parece maldizer sua escolha. Entretanto, as madeiras invocam pacificamente a retomada do ritmo ternário, cuja calma leva ao final da exposição desse motivo. A tranquilidade no desenvolvimento seguinte é apenas aparente, posto que os violinos tenazes não preterem o diálogo com as madeiras e logo se precipitarão em alternâncias rápidas de decrescendo até se coligar com o robusto tutti. Aliás, também é extraordinária e inimaginável a audácia de Beethoven ao compor 246 compassos para marcar a contraste de sentimentos brotados no espírito do herói. “[...] Diálogos expressivos, lutas, luzes, sombras, tormentas, sonhos se sucedem e a LA GUARDIA, Ernesto de. Las sinfonias de Beethoven: su historia y analisis. 4. ed. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1948, p. 97. 25 LA GUARDIA, op. cit., p. 98. 26 Ibid., p. 100. 24

309

orquestra canta, ruge, estoura, se aniquila, para lançar novos relâmpagos ou adormecer numa calma ameaçadora”27 (tradução nossa). O motivo heroico reaparece tangido pelas cordas graves, ecoa nos violinos, que clamam a toda a orquestra e esta responde ligeira até encontrar as síncopes que aumentam a agonia num ritmo frenético, como se o herói suspendesse sua respiração ou fosse sucumbir. Um dolente oboé parece chorar sobre ruínas e um abatimento paira enevoando a brava resolução do herói. Esse desgosto é reforçado pelas flautas, pelo segundo oboé e pelos primeiros violinos que soam pungentes, enquanto que segundos violinos e violoncelos exasperam a dor através de um uníssono. A tendência delongada dos violinos e das flautas se dissipa quando ainda uma vez o herói abatido, mas ainda resoluto “[...] se afirma viril, majestoso, tanto na luz, tanto sombra [...]”28 (tradução nossa) e ouve o clarinete emitir sua queixa sofrida, mas terna e acolhedora. Em movimentos ásperos e rudes, em staccato, as violas e as cordas graves preparam uma rememoração da ideia principal do movimento e vão se acrescentando as imitações das madeiras enquanto os violinos persistem intermitentes na harmonia. Seguem-se algumas modulações e o crescendo conduz ainda uma vez a outro tutti. Em seguida, os oboés e fagotes corroboram o acorde, assim também o fazem as madeiras e as trompas, só que num uníssono lamentoso, enquanto um furor teimoso deseja escapar das cordas em pizzicato. Agora, “[...] sobre a orquestra retida se estendem véus noturnos [...]”29 (tradução nossa) e por um momento a irresolução paira misteriosa e convidativa. Os violinos só sussurram e as trompas soam ao longe lançando uma ânsia por desbravar e conhecer o ignorado. Porém, o inquebrantável tutti ressurge para dissipar toda espécie de malogro, trazendo consigo a luz e o medo esvai-se, a harmonia retoma sua casa com o “mi bemol” inicial. Vê-se a recapitulação e uma série de acordes alterados modulando de sustenidos a trêmulos e de staccati a pizzicati. O tema principal é tomado progressivamente num uníssono pianíssimo que violentamente se mantém através dos segundos violinos, enquanto que os primeiros tremem um pouco e o baixo apoia os suspiros dos violinos e das flautas na conclusão do tema heroico. Toda a orquestra rende sua homenagem ao herói numa coda que afirma a sua vontade e faz triunfar através das trombetas e do portentoso tutti a sua decisão de lutar com todas as suas forças. Não se observa em momento algum, conforme o exposto e mesmo durante a angústia, que a vontade de verdade, um sintoma de degenerescência, apodera-se do espírito ativo do herói trágico. Antes, por conceber a existência como cruel e LA GUARDIA, op. cit., p. 101. Ibid., p. 103. 29 Ibid., p. 104. 27 28

310

contraditória em si mesma, nada lhe faculta hesitação. Para a certeza do horror não reclama piedade, para a angústia não busca qualquer consolação metafísica, a ação é-lhe imperativa. Ainda que lhe sobrevenha o sofrimento e a desgraça, cabe-lhe a trágica perplexidade de afirmar sua vontade, afastando, assim, a desonra e o desdém. MARCIA FUNEBRE: ADAGIO ASSAI Enquanto na abertura o tom heroico retumbante do “mi bemol” domina toda a execução, neste movimento o tom dominante é o trágico lamentoso “dó menor”. Aqui se consegue ouvir o lamento ou o choro pelos heróis sucumbentes às suas ações resolutamente assumidas. O artista é o herói que em sua dor coloca a todos em contato com o horror da desagregação e o declínio da existência. Nesse movimento, o herói individualizado se desintegra na participação do indivíduo no Uno-primordial e a música seguinte, mais que um canto fúnebre, é “[...] um desolado poema, profunda e imensa oração, sombria, heroica, trágica [...]”30 (tradução nossa). Os primeiros violinos executam acordes distantes e carregados, sendo que a harmonia cabe ao quarteto e os contrabaixos imprimem um tom suave ao início desse movimento. Os primeiros violinos continuam a executar uma melodia terna. Tal melodia é imitada pelo oboé e seguidamente pelo naipe dos sopros, ficando a cargo das cordas súbitas e suaves intervenções entrecortadas. Soam conjuntamente e sobrepondo-se os violoncelos, os violinos, os contrabaixos, as trompas e os surdos expõem o tema num giro melódico que vai do heroico “mi bemol” ao trágico “dó menor”. Ao longe se escutam surdos golpes do tambor. As cordas mantém o tom pesaroso até o oboé e a flauta afirmarem a dor languidamente num encerramento dessa primeira parte. Para iluminar moderadamente a tristeza, as violas e as cordas baixas constroem o fundamento onde se apoiam as madeiras destacando gradações delicadíssimas. Tais acordes vão ganhando entusiasmo e num crescendo anunciado adquirem proporções grandiosas num tutti vigorosíssimo. As trombetas e os tambores se associam num tom glorioso. Os violinos empreendem modulações mais apressadas quando irrompe a flauta nervosa e persistente e, outra vez, mais potente ainda, as trombetas e os tambores repetidamente anelantes conduzem a um novo tutti triunfal. Todavia, não necessariamente brandas, as cordas se encarregam de rememorar o pranto inicial num fugado em que dialogam os segundos violinos com as violas e os fagotes. Novamente os primeiros violinos absorvem esse tema e se unem aos segundos em staccato.

30

LA GUARDIA, op. cit., p. 107.

311

As violas e os violoncelos se põem a puxar toda a orquestra a um tutti. A angústia dos primeiros violinos é sentida pelos segundos, as violas e os violoncelos precipitam toda a orquestra numa luta dolorosa, na qual as trompas e os contrabaixos são a base, parecendo conduzir todos ao lamento quase desesperado, chega a soar ameaçador, trágico. La Guardia define essa passagem como “[...] horrível, imponente visão da morte”31 (tradução nossa). O fortissimo evanesce logo em seguida. A flauta juntamente com os primeiros violinos executam acordes soluçantes que perduram na plangente resposta do contrabaixo. Mais uma vez, nesse intermédio, surge o “dó menor” no oboé e no clarinete. Segundo La Guardia, “[...] dir-se-ia que o cortejo, após contemplar visões além da sepultura, retoma sua marcha entre rumores de pranto”32 (tradução nossa). A orquestra mantém-se retida enquanto os segundos violinos iniciam a coda num ritmo quebrado. Consolantes, os primeiros violinos surgem depois, parecendo suspirar. O oboé e o clarinete lamentam juntamente com o surdo rufar do tambor. Este propugna um pianíssimo que é obedecido por toda a orquestra e lentamente aquele cortejo vai sumindo na escuridão. À medida que as cordas graves executam um pizzicato, os primeiros violinos reexpõem em sotto voce, ainda uma vez, o tema principal. Enquanto as cordas ressoam abafadas, os oboés e as trompas concluem executando um decrescendo em piano que conduz ao final do poema. A despeito da trágica profecia do Sileno, o herói tem a firme convicção de que, embora horrores e fúria o enredem em enorme sofrimento, a vontade tem como sua tarefa primeira a autoconservação e, assim sendo, sua vida não cessará. Tanto que, de acordo com Nietzsche, [...] Não é indigno do maior dos heróis anelar pela continuação da vida, ainda que seja como trabalhador a jornal. Tão veementemente, no estádio apolíneo, anseia a “vontade” por essa existência, tão unido a ela se sente o homem homérico, que até o seu lamento se converte em hino de louvor à vida33.

A morte do herói nesse movimento nada mais é que o completo esquecimento de si, cujo referimento fora já empreendido nas considerações acerca do estado de embriaguez haurido do culto a Dionísio. A morte referida aqui não é levada a termo, mas um retorno, que nada tem de apaziguador, ao seio Uno-primordial. O herói trágico não expirou, antes cessou sua individualidade num canto divinatório que produz calma ameaçadora, pois percebe-se uma diluição do som, o cortejo some na escuridão sem um final específico.

LA GUARDIA, op. cit., p. 112. Ibid., p. 113. 33 NIETZSCHE, 2006, p. 37. 31 32

312

Alguns musicólogos revidam a denominação desse movimento como “marcha fúnebre”, tanto que no movimento seguinte a ideia funérea é completamente afastada. SCHERZO: ALLEGRO VIVACE Uma das inovações de Beethoven, já referidas anteriormente, mas que agora carece explicação, consiste em substituir o aparatoso minueto pelo vivaz scherzo. O minueto predominou no classicismo e teve sua origem na música da aristocracia francesa, aquela que era executada nas cortes e se prestava às danças, uma vez que sempre adotava o compasso 3/4. Depois passou a intermediar peças como sonatas, sinfonias e músicas de câmara. Já o scherzo, embora conserve o mesmo compasso e se aplique aos mesmos gêneros musicais, apresenta caráter mais leve e animado. Foi com Beethoven que tal movimento adentrou firmemente na composição e se consolidou no romantismo. A palavra em italiano significa “brincadeira” e quer expressar justamente a ludicidade dessa leveza intrínseca. Esse movimento curto, porém bastante eloquente, expressa a extraordinária capacidade que Beethoven tinha de, a partir de algumas ideias musicais muito simples, construir verdadeiros monumentos. Esse scherzo é igual aos anteriores, mas não se compara ao antigo minueto. Posto que Beethoven não definisse programa específico, muitas são as hipóteses levantadas para explicar essa parte da sinfonia. Por hora, basta considerar que o espírito heroico motivador da obra como um todo se encontra reafirmado também nessa parte, especialmente no tempo do movimento. As cordas e as madeiras reunidas em staccato realizam um diálogo constante em pianissimo que, de princípio, não se pode determinar sua natureza, se de mistério ou de alegria. Por sobre a agilidade das cordas, destacam-se especialmente o oboé, a flauta e o fagote que expõem a ideia central. Após a exposição, tal diálogo continua no desenvolvimento do tema através de modulações até atingir um fortíssimo tutti em “mi bemol”. Logo em seguida, retorna o ritmo geral onde se estabelece, através de outro tutti, uma afirmação tonal. Uma segunda parte se inicia guiada pelas trompas e com acentuações das cordas, dos oboés e dos fagotes. La Guardia assevera que se “[...] pode evocar, efetivamente, uma cena de caça, com suas chamadas através da floresta [...]” 34. Essa conversa é repetida pelo quarteto de cordas e pelas flautas, mas depois, somente as cordas que, alerta e vivamente, unem-se as madeiras e as trompas como que perseguindo uma caça.

34

LA GUARDIA, op. cit., p. 117.

313

No mesmo ritmo, seguem-se variações na flauta, no oboé e no fagote que, vinculados às cordas, retomam a tonalidade de “mi bemol” executada anteriormente pelas trompas. Em pianissimo, o tom misterioso é recomposto pelas cordas e oboés reproduzindo o scherzo, até que um uníssono transforma o compasso em 2/2. Após uma segunda execução do scherzo, agora mais acelerada, aparece a coda que se inicia pelos tambores sozinhos e se propaga por toda a orquestra até desembocar num tutti final, ao qual as trompas respondem explosivas e os dois acordes finais são dois golpes imponentes. Tais acordes ilustram perfeitamente a seguinte conclusão: apesar de Beethoven utilizar uma melodia de compasso binário, tipicamente monótona e repetitiva, teoricamente com poucas variações e de certa forma criativamente limitada, habilmente ele força toda a música a soar com melodia de compasso ternário, o qual garante maior agilidade. A peça está escrita na tonalidade de mi bemol, só que muito frequentemente ele emprega notas fora dessa escala se utilizando de bequadros. Nesse movimento, Nietzsche enxergaria na ação do herói a árdua tarefa empreendida pelo artista a fim de conjugar sua vontade de vida à superação de sua individualidade, a cessação da consciência conceitual em favor da alegria primordial assentada na experiência dionisíaca extática universal. Não se trata da negação da aparência em favor da essência, já que sem apolíneo não há dionisíaco e a recíproca é condição sine qua non para que a autêntica experiência estética vise o equilíbrio entre a ilusão apolínea e a verdade dionisíaca, evitando, assim, um aniquilamento. Em grande parte dessa seção, o tom de lamento evoca a morte, porém, como num legato, se transmutará em vida novamente exuberante no movimento seguinte. FINALE: ALLEGRO MOLTO A forma desse movimento se assemelha a de uma sonata, pois parte de um tema que é exposto para ganhar variações e, após algumas modulações, retoma o tom principal “mi bemol”. O conjunto se lança a empreender gradações contínuas constituindo ideias simples que se reafirmam obstinadamente. Em vista dessa insistência, La Guardia garante que tal passagem “[...] recorda um pouco o ‘basso ostinato’ do clássico ‘pasacalle’ [...]”35 (grifo do autor). Este tem origem espanhola e se configura como a repetição animada de um motivo sempre na mesma altura, executado originalmente enquanto os músicos andavam pelas ruas. Mais uma vez o compasso 2/4 domina a criação, mas não impede de modo algum o fluxo criativo do compositor. 35

LA GURDIA, op. cit., p. 120.

314

De início, percebe-se uma súbita e violenta atuação do quarteto de cordas que favorece os acordes tutti que se seguem, cujo último se executa alongado. Essa ideia foi retirada da suíte para balé As criaturas de Prometeu e de Variações para piano sobre um tema dessa mesma suíte. Segue-se a exposição do tema e as variações persistentes referidas acima através de um uníssono das cordas. As madeiras reagem repetindo a contratempo o pizzicato das cordas. O segundo motivo começa com outro uníssono, só que desta vez dos sopros e dos tambores e, com algumas pausas, as cordas mantém o pizzicato. Entressachadas, ao modo de perguntas e respostas, as cordas e os sopros se fazem ouvir. Após a exposição temática, iniciam-se as variações referidas. Nesse primeiro momento, as cordas dialogam entre si, onde os primeiros violinos e os violoncelos são entrecortados pelos segundos violinos que executam um contraponto. Em segundo, é a vez dos primeiros violinos empreenderem o contraponto com o baixo num movimento contrário. A variação em si, consiste no ritmo do acompanhamento das violas, primeiros e segundos violinos. Em terceiro, a severidade das duas primeiras variações se flexibiliza e a melodia do oboé destaca-se entre as madeiras. O ritmo agora é mais acelerado, quase uma dança. Esta ideia melódica, desenvolvida pelos primeiros violinos e pelas violas, é reforçada pelas trombetas e pelos tambores e seguida pelas trompas e madeiras, enquanto os segundos violinos, os violoncelos e os contrabaixos se empenham em conduzir a orquestra a uma modulação a “sol maior” e outro tutti. Na quarta variação, à maneira de uma fuga, as cordas vão se aglomerado e incitando as madeiras a uma batalha que resulta em imponentes acordes das cordas. Concluído o fugato, ressurge o “dó menor” inicial e aparece uma súbita modulação a “si menor”. Em quinto, por sobre o “si menor” anterior, as flautas modulam a “ré” juntamente com os primeiros violinos, para em seguida, acompanharem-se dos oboés e primeiros violinos em rápida execução. Uma reafirmação do tom continua em sutis matizes das flautas que se apoiam no tremante dos primeiros violinos e no pizzicato do baixo. O ritmo é respondido pelas madeiras e as cordas em fortissimo tom de “ré” para modular novamente a “sol menor”. A sexta variação, se constrói alegre e heroica sobre a última dominante. Os segundos violinos e as violas executam a harmonia com seu tremante. O ritmo imponente e enérgico das flautas, fagotes e primeiros violinos, se distribui pelos

315

clarinetes e violas, até ligar-se com o oboé. Nesse instante, La Guardia pergunta: “[...] Quem não evoca aqui um cortejo marcial?”36 (tradução nossa). Após agressivas cadências, um contraste impensável reaparece no “dó menor” em pizzicato. Mas o ar se abruma quando oboé, trompa, flauta, clarinete e violinos retomam o “mi bemol” da composição original. La Guardia identifica nesse resgate a semelhança desse movimento com a forma sonata, conforme referência anterior. A sétima variação se apoia no fugato da quarta para que os segundos violinos comecem a variante, enquanto os primeiros executam rápidas escalas. Os outros instrumentos do quarteto vão se achegando descendentemente até as trompas se insinuarem sobre o desenvolvimento completo e agitado do baixo. Logo sobrevêm um tutti afirmativo de glória e vitória. Mas o alongamento final do acorde recambia a execução a um moderado andante. A oitava variação começa moderada porque se encaminha para uma apoteose final. O ritmo é muito lento e, desse modo, a música mais se assemelha a uma oração que transmuta “[...] o triunfo em ação de graças [...]”37 (tradução nossa). As cordas soam suplicantes. As madeiras, as trompas, os violinos e os oboés, anelantes. O baixo pizzicato ampara a harmonia do clarinete. De repente, um novo tutti se impõe e arrasta toda a orquestra numa profusão de sons. Uma melodia média a grave se ouve nos clarinetes, nos fagotes, na trompa e nas cordas baixas. Os sopros e os tambores marcam os tempos centrais do andamento. Os violinos e as violas executam arpejos sustenidos e tremante. Essa superabundância rítmica encaminha a orquestra para um desfecho. Entretanto, ainda se ouvem os debates entre as cordas, o clarinete e o fagote. Resistem melancolicamente à sua dissolução. As trompas marcam fortemente o pedal. Debaixo desse clima quase dolente, por um instante, poderse-ia vislumbrar aqui o segundo movimento da sinfonia. Mas, eis que prorrompe e assusta o ouvinte um tutti fortíssimo que modula imediatamente a “mi bemol”. As cordas se agitam tremulantes, as madeiras numa rajada em uníssono, as trompas proclamam vitória e o ritmo anda ligeiro. Outro tutti se precipita e causa um tumulto entre cordas, metais e tambores. Agora toda a orquestra está em meio a um redemoinho triunfante de sons e numa ascendência perfeita, a escala de “mi bemol” resiste até o final. Apesar de respeitar o tom original da sinfonia, “mi bemol”, considerado por La Guardia o tom trágico por excelência, Beethoven consegue desenvolver um tema alegre, usando como artifício o emprego de notas rápidas e na grande maioria agudas. Ele “escolhe pontos determinados, frases curtas. Interpreta-as com extrema precisão, deixando à imaginação do ouvinte o cuidado de conceber e 36 37

LA GURDIA, op. cit., p. 126. LA GUARDIA, op. cit., p. 128.

316

de recompor o conjunto, conciliando a unidade formal de cada parte com a liberdade do todo”38. O herói trágico reafirma nesse último movimento sua dionisíaca precipitação no torvelinho do Ser. Sua exuberância o reconcilia não só com os outros homens, mas também com a natureza. Aquilo que antes estava apenas na potência imaginativa, ele o experimenta em ato e ele próprio mudou. Surge, então, dessa consideração estética da existência uma nova espécie de homem: uma espécie que não só produz arte, mas que se torna arte. O que são para ele agora imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem 39.

Por conseguinte, Nietzsche tem tão nítida em seu pensamento filosófico inicial a certeza do aparecimento desse neue Mann: um homem que só pode ter sua vida justificada esteticamente e não mais por conjecturas de um Além metafísico.

REFERÊNCIAS BARROS, Fernando de Moraes. O pensamento musical de Nietzsche. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2007. CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música. São Paulo: Ediouro, 2001. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Rio de Janeiro: Imago, 1994. LA GUARDIA, Ernesto de. Las sinfonias de Beethoven: su historia y analisis. 4. ed. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1948. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A visão dionisíaca do mundo. Tradução: Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Sousa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _____. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2. ed. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia da Letras, 2006. PLATZER, Frédéric. Compêndio de música. Tradução: Laura Maria de Almeida. Lisboa: Edições 70, 2009. SOLOMON, Maynard. Beethoven: vida e obra. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. 38 39

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 88. NIETZSCHE, 2005, p. 09.

317

O BELO QUE NÃO SE VÊ Francisco Gleydson Lima da Silva* [email protected] Resumo: Aborda a profícua relação já consagrada entre música e filosofia. Investiga as referências cosmológicas da música no diálogo Timeu de Platão, cujo mote é o desejo de simetria e proporcionalidade a que está submetida toda a cultura clássica da Grécia e do Ocidente. Apresenta o entendimento do belo musical como harmonia entre as almas do homem e do universo, após investigar a mecânica celeste num viés estético platônico. Palavras-chave: Cosmologia. Harmonia. Estética. Música.

Seja pela crença numa inspiração divina, seja por sua natureza estritamente matemática, desde a Antiguidade até a Modernidade, a arte dos sons sempre esteve envolta em brumas metafísicas. Essa origem indefinível, porém demonstrável da música suscitou através dos tempos um sem-número de teorias que pretenderam explicar essa arte como sendo uma consonância perfeita entre a sabedoria dos deuses e o logos do homem. A música seria, então, uma linguagem imediata a expressar o fundamento sobre o qual os deuses engendraram os mundos divino e humano. Uma tarefa tão árdua requereu extrema agudeza de espírito a homens que se imbuíram de audácia ao arriscar-se penetrar no mundo proibido dos deuses e traduzir em sons os seus segredos na harmonização do existente. Na Grécia Antiga, mas anteriormente noutras civilizações estabelecidas ao longo das margens férteis dos rios da Ásia central, a origem da música se encontra intimamente associada à cosmogonia desses povos e à imitação de sons da natureza. A acepção música tem origem no grego μουσική τέχνη - musiké téchne, oriunda da mitologia grega que a define como arte das musas e consiste na repetição alternada e equilibrada de sons e silêncios num período de tempo. As nove musas da Beócia, filhas do todo-poderoso Zeus e a divina Mnemósina, habitavam o entorno da fonte Hipocrene, de cujas águas os bebedores recebiam a inspiração para a criação artística e científica1. No período clássico, o patronato específico da música coube à musa Euterpe. Os gregos, em particular, tinham a música presente em todos os momentos de suas vidas. Ao nascerem, os pais dançavam nus pela casa suspendendo o recém-nascido. As crianças cresciam no gineceu entre as mulheres que volta e meia entoavam cantigas populares e lhes contavam relatos mitológicos. Depois chegava a fase da educação propriamente dita onde os jovens eram conduzidos ao estudo da gramática e da música, sem descuidar também do preparo do corpo * Especialista em Estética pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. 1 Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1986.

318

através da ginástica, uma vez que um corpo saudável ofereceria um receptáculo adequado a alma. Também nas guerras eram entoados hinos militares a fim de aguçar o espírito do guerreiro. A música permeava todo agir daqueles homens educados para honrar seus deuses e praticar a justiça na vida pública. Tamanha estima devotada à música durante a história da humanidade, comumente requisitou a atenção de estudiosos de várias áreas do conhecimento. Platão, o primeiro pilar da filosofia ocidental, nomeia a música como um instrumento pedagógico para a excelência moral, tese expressa com ênfase no livro República, mas é no diálogo Timeu onde a música é tomada mais num caráter estético, visto que se alinha essencialmente a uma estética celeste. Nesse diálogo, o autor visa perceber cada ente gerado pela providência divina em sua própria natureza e explicar os motivos lógicos segundo os quais opera a mente do grande arquiteto universal na disposição de cada coisa lançada à existência. Reside nessa abordagem estético-cosmológica, promotora de uma visão de mundo crente na decifração do “Código Oculto da Natureza”2, o interesse de lançar mão desse diálogo tão peculiar do corpus platonicum para a composição deste trabalho relativo ao vínculo da música com a filosofia. Especialmente porque se, como o filósofo enuncia, o belo das grandes coisas nos escapa, a pequenez de uma audição musical nos apresentaria uma beleza de caráter grandioso? Se à música concerne a intangibilidade, nela está o belo que não se vê, mas se ouve? Nenhum avanço pode ser auferido nesse inquérito sem antes conhecer o maior dos perscrutadores dessa relação música e vida, o pioneiro em perceber a proficuidade desse vínculo estreito que conecta a arte dos sons à conduta proporcional dos homens: Pitágoras. Nascido por volta de 580 a.C. em Samos, ilha das Espórades protegida por Hera, pertencente à região do Dodecaneso próximo a Mileto, Pitágoras merece preeminência dentre esses homens estudiosos. Seu grande esforço teorético visava compreender a mecânica celeste a partir de uma harmonia universal derivada de parâmetros simbólico-matemáticos. Através do conhecimento místico-matemático, investigou estruturas abstratas, inteligíveis, isentas, pois, de tangibilidade, ao ponto de favorecer, tantas vezes no decorrer da História, a eleição da Matemática como um parâmetro explicativo transcendental, espiritual e místico da realidade. O “mestre Sâmio”3 preferiu manter a tradição do ensinamento oral, denegando a escritura de obras literárias ou documentos. Além de ter sido o primeiro a atribuir-se a denominação filósofo, foi também reformador religioso, Cf. GLEISER, Marcelo. Criação Imperfeita. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010, passim. Conforme Carlos Basílio Conte, este é um título dado a Pitágoras por seus seguidores. Sabe-se que jamais um seguidor o chamou pelo nome. Dirigiam-se a ele como “o Mestre”, e, postumamente, como “o Divino Mestre”. 2 3

319

taumaturgo e matemático, tudo o que se sabe sobre “o primeiro mestre universal”4, definição hegeliana, resulta da propagação de sua doutrina por meio dos escritos de seus discípulos, principalmente Filolau e Arquitas, sendo este o que mais se interessou pela música. É sabido que a filosofia da escola iônica, anterior ao pitagorismo, tinha assinaladamente um caráter pragmático, posto que investigasse a physis a fim de entender a realidade e nela intervir. Já no pitagorismo, vê-se a filosofia com um outro conceito, que é o de via contemplativa dissociada da realidade. É consignável, pois, que tal fato é resultante da influência órfica nesta corrente filosófica. A filosofia, desse modo, constituir-se-ia um meio de vencer as intempéries da vida, possibilitando, por conseguinte, escapar da “roda do destino”, visto que, conforme o pitagorismo, a alma passa por diversas transmigrações antes de encontrar a plena perfeição. A importância capital de Pitágoras para a filosofia ocidental se estende aos dias atuais. A acuidade de seus conhecimentos ecoa na obra de Platão e Fídias, estendida aos medievos Nicolau de Cusa, Plotino e Luca Pacioli, também no início da Modernidade em Kepler, Galileu, Descartes, Newton, até chegar a Contemporaneidade com Matila Ghyka e na Física hodierna, com seus expoentes Einstein, Hawking e Heisenberg. Porém, é a contribuição pitagórica atinente a musica que será aqui precisada, manifestamente porque Platão a retoma quase sem alterações e por condizer expressamente com a temática desse estudo. Chegou aos dias atuais, atestado nos escritos de Jâmblico, a narrativa sobre como Pitágoras teve seu tino desperto ao ouvir os três acordes de quarta, quinta e oitava nos golpes de um martelo sobre uma bigorna defronte de uma ferraria. Logo lançou mão de um monocórdio para verificar a intuição de que os sons variavam proporcionalmente ao peso dos martelos empregados. Concluiu que o martelo “[...] que produzia o som de oitava pesava a metade do mais pesado, o que produzia o de quinta pesava dois terços do mais pesado e o que produzia o de quarta pesava três quartos do mais pesado [...]”5. Pronto. Doravante estava estabelecida a simetria também na música e suas relações proporcionais numéricas infinitas alcançariam toda música ocidental, incluindo a criada e executada ainda hoje. É sabido que na música o zelo pela harmonia constitui o cerne da composição. A única diferença entre o modelo harmônico dórico, por exemplo, e o atual, resulta apenas do fato de que neste são medidas as vibrações das cordas e naquele eram medidas as cordas, porquanto variassem de tamanho conforme o som desejado. Platão herda dos pitagóricos a concepção de harmonia enquanto congruidade dos opostos. Desse fluxo contínuo de combinações, tem-se a geração 4 5

MATTÉI, Jean-Françóis. Pitágoras e os pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 8. Ibid., p. 101.

320

perpétua de tudo o que existe e que se dá por meio do movimento de desigualdade entre os corpos na tentativa de ordenação entre os maiores e os menores. O Timeu de Platão encerra um pitagorismo genuíno. O diálogo entre Sócrates, Crítias, Timeu e Hermócrates se inicia com o primeiro destes relembrando pontos principais do discurso que havia feito no dia anterior acerca do que lhe parecia mais adequado a cada homem segundo sua natureza e arrematou dizendo que ficou concordado que, desta feita, seriam seus interlocutores os discursadores. O texto informa que dos quatro, Timeu era aquele mais iniciado no estudo dos astros e o mais afeito à cosmologia, portanto o mais apropriado a tratar desde a origem do universo até a geração do homem e dos demais animais. Na abertura de sua exposição, Timeu garante ser o mundo a mais bela das coisas sujeitas ao devir e ao nascimento, uma vez que justamente o Demiurgo, após contemplar o modelo, forjou suas partes retirando-as do caos e ordenou-as segundo as leis da necessidade e da proporção, conferindo ao conjunto o caráter de imagem mais perfeita da beleza primordial, o cosmos. Ao artista cabe a transmissão da forma e da virtude a tudo o que realiza. Nisto consiste a nobreza de sua ação, ou seja, por derivação imperativa toda obra sua é bela. A ação gerativa desse Artífice se dá imperativamente reproduzindo a tautologia: “[...] O bem é sempre belo, e ao belo jamais lhe faltará proporção [e verdade] [...]”6. O Demiurgo emprega uma téchne orientada para a simetria e assim o faz porque contempla diretamente as Ideias. Tudo o que nasce se identifica na ação formativa com a melhor das causas. Daí que tudo concorre para uma unicidade cada vez mais íntima consigo e uma reprodução sempre harmoniosa. A ação ordenadora das coisas que devêm é necessariamente a melhor a que se presta o Demiurgo, pois desde que “[...] introduziu proporção nas coisas, tanto nelas como em suas relações recíprocas, na medida e da maneira que elas admitiam proporções e simetria [...]”7, tudo tende e tenderá, por causa divina e necessária, perenemente ao mais perfeito acabamento. No decurso de sua argumentação cosmológica, Platão se depara com intrincadas questões, tais como a impossível contemplação das Ideias em si mesmas e, consequentemente, da origem de tudo. Ele assinala a leviandade da vaidade dos homens tentando conhecer a causa da Primeira Causa e assegura que tal intento sempre malogrará devido à inconsequência de um projeto tão absurdo, a saber, proceder ao atingimento do infinito a partir do finito. Algo como ansiar pelo oceano inteiro em uma simples gota dele.

PLATÃO. Timeu. In: ____. Timeu, Crítias, O Segundo Alcibíades, Hípias Menor. Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001, p. 140, 87 c. (Coleção Diálogos) 7 Ibid., p. 116, 69 b. 6

321

Platão esclarece que todo o existente foi formado pela união proporcional do Ser permanente com o Ser móvel dos quatro elementos já apontados por Empédocles: fogo, ar, água e terra, sem nenhum deles abandonar o que é, porém ceder parte de si nessa geração. O autor prossegue garantindo que a visibilidade e a tangibilidade dos sólidos só são possíveis graças ao fogo, segue a premente obrigação de se pensar num elemento intermediário capaz de unir fogo (móvel) e terra (permanente), substâncias em si mesmas tão antagônicas. Isto é, como unir as naturezas do Mesmo indivisível e do Outro divisível numa exata e perfeita combinação para originar uma só Existência? Então, a divindade conjugou no mais belo dos laços o melhor para cada natureza acrescentando dois médios, de modo que “[...] o que o fogo é para o ar, o ar fosse para a água, e o que o ar é para a água, a água fosse para a terra [...]”8. Após dar cabo da unidade dos elementos e regozijar-se da inigualável beleza de sua tarefa, o grande arquiteto cósmico concluiu ser este o melhor dos mundos. Remate diverso não se justificaria, dada a improcedência ao excogitar que “[...] o melhor pudesse fazer uma coisa que não fosse a mais bela de todas. [...]”9. Também determinou que, exclusivamente, uma esfera poderia conter sua obra tão harmônica e tão única. Para abrigar seu belo animal, o Demiurgo formou o céu pondo nele a Lua, o Sol e os cinco astros errantes10, aplicando-lhes a mesma forma esférica e a todos dotou de órbitas circulares, a mais adequada forma de movimento para seres tão belos. Todavia, manteve a terra no centro desse sistema e subordinou a ela os demais, a fim de que mutuamente todos concorressem para a imitação da natureza eterna do modelo perfeito e inteligível sob o qual a mesma fora gerada. Diversamente, para os pitagóricos, a Terra não ocupava o centro do universo. Estariam aí as bases do vindouro heliocentrismo? Exatamente. Copérnico lançou sua hipótese em 1543 sem nenhuma verificação experimental. Quase um século depois, precisamente em 1609, somente com Galileu vieram as provas com a sua luneta desbravadora de mundos. No ano seguinte, a publicação das teses galileanas no Sidereus Nuncius corroborou definitivamente o sistema copernicano11. Ah, o tempo! Logo ele que em astronomia é tão dilatado... Sim, o tempo e só com ele os homens entenderam que durante quatro mil anos viveram a grande ilusão do sistema ptolomaico-aristotélico. Porém, agora fundada uma nova cosmologia, viria a reboque uma série de questionamentos intrincados acerca da PLATÃO, p. 68, 32 b. Ibid., p. 66, 30 a-b. 10 Como também eram denominados os planetas: Vênus, Mercúrio (após precisar uma órbita de três meses, Nicolau Copérnico advertiu o engano posicional em relação a Mercúrio e sugeriu que Vênus, com uma órbita de oito meses, cedesse a primazia do sistema), Marte, Júpiter e Saturno. 11 Cf. REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 5. ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2, p. 251-258. 8 9

322

primazia humana na Criação: a preferência de Deus pelos humanos, vida inteligente extraterrestre, necessidade de salvação dos seres dos outros mundos, se Deus teve outros filhos além de Jesus e se somente o único filho seria o salvador de todos os mundos engendrados, um Paraíso único para todos, etc12. Entretanto, não se deve ocupar dessas questões aqui. Mais proveitoso e condizente é indagar quando ocorreu o nascimento do tempo? À primeira vista, a pergunta “quando” acerca do tempo pode soar imprópria, mas, precisamente, ela busca a origem do tempo. E Platão responde que o tempo foi originado juntamente com o céu, para que participasse o mais possível da natureza eterna do modelo referido, sendo os planetas os instrumentos de demarcação do tempo com suas respectivas órbitas. Somente após o nascimento do tempo, surgiram as quatro raças de viventes: deuses, animais voadores, aquáticos e terrestres. E para uma espécie em particular, a humana, o tempo é a imagem da eternidade una que perdura refletida na razão, pois a unidade em si mesma não carece de passado e futuro para ser. Entretanto, o Demiurgo abdicou da tarefa de plasmar a alma humana. Recomendou aos deuses que executassem tal empreitada, acrescendo tudo aquilo que estimassem adequado, e depois se responsabilizassem em “[...] governar e guiar a criatura mortal da melhor e mais sábia maneira que pudessem, salvo nos casos em que eles próprios fossem os causadores de sua desgraça”13. Assim foi feito: formaram a alma humana sujeita ao prazer, a dor, a coragem, o medo, a cólera e a esperança. Atrelaram tudo isso com a sensação irracional e o amor, mas todas essas paixões assaltam de quando em quando o animal humano por necessidade ligada à porção mortal de sua alma. Somente cessam tais apetites e a alma retoma a circularidade natural de seu movimento quando os homens obedecem aos comandos da temperança oriundos da porção divina da alma, esta distante de todas as sedes passionais porque alojada na cabeça, atentam ao cicio das musas e desenvolvem a filosofia. Platão segue explanando em pormenores os aspectos da compleição física, da fisiologia e da psicologia humanas. Porém, comparadas às demonstrabilíssimas leis da ciência moderna, tais entendimentos talvez soem míticos em demasia ou mesmo desprezíveis para alguns. Cumpre louvar, porém, tamanho engenho ao descrever com admirável esteio tantos processos, desde os cosmológicos até os microbiológicos, numa época tão remota e tão carente de instrumentos auxiliares e verificadores. Fica a constatação de que a ciência refresca-se sempre na fonte da especulação, antes de enrijecer uma teoria. As conjecturas são benéficas e a curiosidade traz consigo o germe da criatividade, da inventividade, da novidade. De outro modo, quê seria o motor da ciência? Imbuir-se desse mérito não constitui 12 13

Cf. GLEISER, op. cit., p. 52. PLATÃO, op. cit., p. 80, 42 e.

323

objeto deste estudo, mas designadamente investigar os efeitos do som na alma do homem, o belo encerrado no carisma da arte dos sons e o motivo pelo qual Platão a recomenda. Para tanto, começar pelo órgão relativo à audição parece ser o mais apropriado. O ouvido, entendido enquanto aparelho da audição se estende dos ouvidos até o fígado, e é constituído quase integralmente de fogo e ar, assim como também a vista. Por esse motivo, esses são os órgãos que mais apropriadamente nos transmitem as sensações superiores. Na acepção platônica, o som é “[...] uma percussão do ar no cérebro e no sangue através dos ouvidos, até atingir a alma [...]”14. Devido a leve constituição do ouvido, a vibração gradativa de suas partículas atinge a consciência com sutileza e provoca um relaxamento. Quando a mensagem enviada à consciência é música, tem-se um prazer derivado da semelhança do movimento combinado dos sons com o movimento do pensamento universal. Já a alteração súbita dessas partículas não pode causar outra sensação senão desprazer, visto que interfere no curso circular da alma. Assim surgem todas as afecções da alma e que só a muito custo são anuladas. Mais precisamente: a diferenciação no movimento das partículas de um elemento leve, no caso o ar tangido pela sua própria natureza agitada, atinge os ouvidos no instante preciso em que o som mais lento e grave alcança o precedente som mais rápido e agudo, produzindo a conjugação da alma do mundo com a harmonia divina. Disso resulta uma música boa para alma, porque “[...] da mistura do agudo e do grave resulta um efeito único, que tanto causa prazer aos ignorantes como proporciona alegria aos sábios [...]”15. Isto é, o belo contido numa música alcança a todos de forma indistinta e neles promove a consonância. O que vem a ser, então, a música para Platão? Um presente de Euterpe para a expressão sonora da perfeição simétrica encontrada no curso dos astros em seus deslocamentos circulares no céu. A audição de sons em acordo ajuda o homem a debelar a desmedida e “[...] a combater a desarmonia interna que se estabeleceu na revolução da alma e deixar esta em consonância consigo mesma [...]”16. Nem a carência, nem o excesso. Tudo em favor do equilíbrio tanto na vida particular quanto na vida pública. Harmonia é a palavra de ordem. Num âmbito prático, se verifica em toda a cultura grega clássica um candente gosto pelo simétrico, pelo regular, pelo harmonioso. Sob o patrocínio dos deuses, tanto que Sócrates adverte Timeu para que não olvide a invocação das divindades antes de iniciar seu discurso, conforme o costume vigente, verifica-se na política, na arquitetura, no teatro, na poesia e na música um intenso movimento do logos intentando afastar tanto quanto

PLATÃO, op. cit., p. 113, 67 b. Ibid., p. 130, 80 b. 16 PLATÃO, p. 87, 47 e. 14 15

324

possível a hybris, embora nalguns momentos, por necessidade, os homens devam ser desamparados e sofrerem os saldos da desgraça. Sendo as divindades as forjadoras de todo homem, nenhum homem tem a maldade em sua natureza. Assegura Platão que “[...] os homens só se tornam ruins por educação mal dirigida ou alguma disposição viciosa do organismo [...]”17. O filósofo aponta aqui a obrigatoriedade da educação como complemento na formação dos homens e ainda a corrupção necessária a que estão submetidos todos os viventes pelo decaimento do nascimento. A tutela dos pais e dos educadores na formação dos cidadãos visa encaminhá-los ao encontro da virtude e o desprezo do vício. Defendida ferrenhamente a educação voltada a esse escopo, nota-se claramente o teor moral que perpassa toda a obra platônica e aparece na conhecida fórmula “ginástica para o corpo e música para a alma”18, também retomada no diálogo em questão como o meio mais excelente de harmonização. Segundo Platão, a música deve ser, entre todas as artes, a que mais deve esforçar-se por observar em sua feitura a harmonia do cosmos. Deve, necessariamente, contemplar o curso simétrico dos astros em suas respectivas distâncias e velocidades, prestando-se a reproduzir o som prodigioso proveniente de suas órbitas circulares no céu. Desse modo, o belo musical não está nas emoções provindas de uma excelente audição musical, mas expressamente na mímesis que enseja o perfeito alinhamento da alma do homem com as revoluções da mecânica celeste. A música é o instrumento que melhor conduz à perfeição e beleza cósmicas. Outrossim, ao homem que carrega consigo a bênção dos deuses e se esforça por contemplar por meio da filosofia e da música o belo encerrado na proporcionalidade de tudo, outra alternativa não há que, indubitavelmente, empregar a justiça no trato com seus concidadãos. É, portanto, um homem virtuoso, benquisto e útil à cidade. Assim se funda todo o desejo platônico de harmonia universal, cujo ciclo se inicia no nascimento, se prolonga na convivência entre os pares e finda no necessário retorno ao mundo das Ideias, o seio primitivo da alma.

REFERÊNCIAS BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1986. GLEISER, Marcelo. Criação Imperfeita. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. MATTÉI, Jean-Françóis. Pitágoras e os pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2000.

17 18

Ibid., p. 139, 86 e. Cf. ibid., p. 141, 88 c.

325

PLATÃO. Timeu, Crítias, O Segundo Alcibíades, Hípias Menor. Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001. (Coleção Diálogos) REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 5. ed. v. 2. São Paulo: Paulus, 1990.

326

BELEZA, ORDEM E PROGRESSO: RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE O POSITIVISMO E O SISTEMA TONAL Gleison Juliano Wojciekowski [email protected]

Mestre em História e Professor do Curso de Música da Universidade de Passo Fundo. Gerson Luís Trombetta [email protected] Doutor em Filosofia e professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS.

Resumo: A cultura de qualquer sociedade consiste na soma de ideias e comportamentos, constituindo-se em uma variante da herança social. A música faz parte da cultura e esteve presente na história do desenvolvimento do homem. O presente trabalho inscrevese nessa ideia geral e procurar apontar possíveis relações entre o positivismo e o sistema tonal. Tais relações são demonstradas a partir das seguintes categorias: ideia de progresso; racionalização; protagonismo do sujeito; e ideia de beleza (como algo ordenado e racionalizado). Palavras-chave: tonalismo, positivismo, progresso, racionalização.

POSITIVISMO, TONALISMO E RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO Toda corrente filosófica define-se em função dos princípios que por ela sãoconsiderados básicos e aos quais, em seus argumentos, sempre de novo retorna. O fim do século XIX e o início do século XX podem ser considerados marcos cronológicos, uma vez que nesse período, as ciências em geral viveram grandes transformações. O fato responsável por essas mudanças está alicerçado na concepção filosófica positivista, na qual tanto o saber quanto o conhecimento passaram por um processo de sistematização e compartimentação em que foram delimitados e definido sos objetos e os métodos de cada ramo científico. Segundo Comte, a experiência nunca mostra mais do que uma limitada interconexão entre determinados fenômenos. Cada ciência ocupa-se apenas com o certo grupo de fenômenos irredutíveis uns aos outros. A unidade que o conhecimento pode alcançar seria, assim, inteiramente subjetiva, radicando no fato de empregar-se um mesmo método, seja qual for o campo em questão: uma idêntica metodologia produz convergência e homogeneidade de teorias. O presente estudo objetiva evidenciar que a unidade do conhecimento não é apenas individual, mas também coletiva; isso faz da filosofia positiva o fundamento intelectual da fraternidade entre os homens, possibilitando a vida prática em comum. Estabelecido por Augusto Comte durante a década de 1830,

327

na França, como um conceito, foi posteriormente caracterizado por esse autor como princípio metafísico. Essa escola negava o princípio místico para a explicação dos fenômenos naturais e admitia a possibilidade de um conhecimento racional e objetivo do mundo apresentando um aspecto construtivo otimista. Comte foi o autor da Lei dos Três Estados, isto é, a divisão da evolução do pensamento humano em três etapas: a Teologia, de caráter simbólico e fictício; a Metafísica, de natureza abstrata; e a Ciência, representando um estágio mais evoluído e efetivamente positivo. A música “materializa”, além das demandas internas, diversos elementos extramusicais, tais como, a forma “filosófica” como uma sociedade se organiza e se auto-compreende. A harmonia é um dos elementos de grande importância na música, inclusive expressando estas influências extramusicais que se refletem em um conceito de tonalidade e progressão. Estas influências extramusicais produziram o conceito de tonalidade expandida. As transformações e sequências remotas de acordes passaram a ser vistas como estando dentro da tonalidade. Tais progressões podem, ou não, produzir modulações ou estabelecer as diversas regiões. (SCHOENBERG, 2004, p. 99)

A grande história da tonalidade é, assim, a história da modernidade em suas duas acentuações: a constituição de uma linguagem capaz de representar o mundo através da profundidade e do movimento, da perspectiva e da trama dialética, assim como a consciência crítica que questiona os fundamentos dessa linguagem e que põe em xeque a representação que ela constrói e seus expedientes. Esse movimento pode ser acompanhado ao longo de sua história que é sem dúvida um dos pontos mais altos daquilo que chamamos Ocidente (WISNIK, 1989, p. 115). Para Wisnik (1989), a música tonal não só é progressiva e evolutiva no interior do discurso musical, no qual se desenvolve por encadeamento de tensãoresolução, mas pode ser compreendida, no seu arco histórico, pela progressão (ou a impressionante “frase”) que vai do canto gregoriano à música eletrônica, como uma expansão centrífuga do campo das alturas, num verdadeiro big bang da música das esferas. A riqueza e a grande variedade da harmonia baseiam-se na relação entre uma tonalidade e suas regiões, nas alterações produzidas nos acordes por meio da influência destas relações e na possibilidade de utilização dos acordes de maneira diversa de suas derivações originais. O tonalismo e outras formas musicais também altamente racionais como o serialismo (atonalismo) têm em seus códigos internos uma estrutura totalmente lógica. Mas enquanto o tonalismo gera uma música com um claro sentido de progressão e tem um ideal estético relacionado com o positivismo, o serialismo, por sua vez, tem como resultado sonoro uma música com sentido de ruptura. E,

328

num sentido estético tradicional, o serialismo, assim como outras formas de arte expressionistas, geram verdadeiros “monstros”. Para Schoenberg, Por razões de uma lógica mais profunda, o “Método de composição com doze notas” deriva todas as configurações de uma série básica (Grundgestalt). A ordem das notas nesta série original e suas derivações, respectivamente, inversão, retrógrado e retrógrado da inversão, e, tal como no motivo [da música clássica], obrigatória para peça inteira. Não se deve, em geral, abandonar esta ordem, diferentemente do tratamento do motivo, em que a variação era indispensável. No entanto, a variedade não está descartada. As notas, em sua ordem correta, podem aparecer, quer sucessivamente, em uma melodia, tema ou voz independente, quer como um acompanhamento consistido de notas simultâneas (acordes) (2004, p. 216-217).

Quem fala em harmonia, fala de modo amplo, em “[...] relações ou proporção entre as diferentes frequências em jogo num determinado contexto musical” (SEKEFF, 1996, p. 81). O sentido tomado aqui é o de harmonia tonal, ou seja, combinação (sintaxe) de acordes como movimento sintagmático e paradigmático que, provindo da articulação intelectual do homem, resulta na articulação intelectual do próprio sistema. A harmonia de acordes que tem como base a tonalidade (predominância de um acorde sobre outro, determinada pela resolução obrigatória dos de movimento sobre um repouso) é resultado da combinação e relação de sons simultâneos, fusionados e em intervalos de terceira. O seu objeto é a formação, o encadeamento e a progressão de acordes, segundo leis da tonalidade do cromatismo. Sua base é o acorde perfeito, arquétipo de polaridade tonal. Sua ação envolve cor e tensão, e seu desenvolvimento implicou no aparecimento de um novo e poderoso elemento: a expressão (SEKEFF, 1996, p. 82). As contribuições da harmonia para o movimento, por outro lado, são diretas, já que ela possui um impulso para frente, um impacto cinético implícito no contraste tensão-relaxamento, determinando o chamado ritmo harmônico que, no sistema, é tributário da ação do acorde e da tonalidade. Na concepção de Sekeff (1996, p. 82), “a harmonia responde pela forma, com sua ampla gama de procedimentos, originando, definindo e reforçando uma articulação”. Em síntese, “a harmonia tonal, como determinada pelo Sistema, significa tridimensionalidade, ou seja, perspectiva, em razão da planejada direcionalidade harmônica (um projetado centro de fuga), a exemplo do que acontece na pintura e a despeito do timbre (SEKEFF, 1996, p. 129). A música harmônica de acordes construída sobre material sonoro mantém agora, por princípio, em sua configuração completamente racionalizada, para cada composição musical a unidade de escala “própria” [leitereigenen] produzida através da relação com o “som fundamental” e com os três acordes normais de três sons principais: o princípio da “tonalidade”. Toda tonalidade maior possui o

329

mesmo material sonoro próprio [leitereigenen] de uma tonalidade menor paralela, cujo som fundamental situa-se uma terça menor abaixo. Além disso, todo acorde de três sons sobre a quinta superior (dominante) e quinta inferior (subdominante oitava da quarta) é “tônico”, isto é, um acorde de três sons construídos sobre o som fundamental de uma tonalidade de “afinidade mais próxima e do mesmo modo (maior ou menor), que compartilha com a tonalidade de partida o mesmo material sonoro, exceto em um som” (WEBER, 1995, p. 5556). Segue Weber (1995): A harmonia de acordes rigorosa só conhece uma conclusão regular de determinada composição musical ou de um de seus segmentos por meio de uma sucessão de acordes (cadência) que caracteriza inequivocamente a tonalidade; portanto, normalmente, por meio de um acorde de dominante e de um acorde tônico de três sons, ou também por meio de suas inversões ou ao menos de fragmentos inequívocos de ambos. Os intervalos contidos em acordes harmônicos de três sons ou em suas inversões são consonâncias (“perfeitas” ou “imperfeitas”, conforme o caso). Todos os outros intervalos são “dissonâncias” (WEBER, 1995, p. 56).

O elemento fundamentalmente dinâmico da música de acordes, que motiva musicalmente o progresso de acorde a acorde, é a dissonância. Para resolver sua tensão contida, ela exige sua ‘resolução’ em um novo acorde, que representa a base harmônica na forma consonante; as dissonâncias típicas mais simples da harmonia de acordes pura, os acordes de sétima, exigem sua resolução em acordes de três sons (WEBER, 1995, p. 56).

A música está inserida no processo de racionalização do Ocidente e, se não apresenta uma importância tão marcante como o desenvolvimento do Estado moderno ou da moderna economia, possui, assim mesmo, seu cosmo específico e, ao mesmo tempo, relacionado ao mundo como um todo. Daí a arte estar inscrita nos “nexos universais da racionalização e da intelectualização da cultura” (WEBER, 1995). BELEZA, ORDEM E PROGRESSO: MENTALIDADE POSITIVISTA

SONORIDADES

TONAIS

NA

A partir dos aspectos característicos do sistema tonal, analisamos agora as relações entre o sistema social positivista e o sistema composicional musical tonal destacanto as seguintes categoriass: Ideia de progresso; racionalização; protagonismo do sujeito; e ideia de beleza (como algo ordenado e racionalizado). Essas quatro categorias têm por objetivo auxiliar a construir as pontes entre o tonalismo e o pensamento positivista, relacionando a questão da progressão harmônica tonal em um sentido amplo de progresso e racionalização

330

IDEIA DE PROGRESSO Weber apresenta o conceito de progresso, entendido não como um parâmetro valorativo da “qualidade” das obras, no sentido de valorizar determinadas obras, autores, épocas, etc., e desvalorizar outras, mas como um parâmetro técnico, objetivo e inequívoco. “Progresso”, na sociologia da arte weberiana, significa progresso dos meios técnicos. Já vimos, anteriormente, como na música em particular e na arte em geral que a racionalização atinge os próprios meios artísticos (WEBER, 1995, p. 48). [...] a aceitação e racionalização dos compassos de dança, do pai das formas musicais que deságuam na sonata, foi condicionada pelas formas sociais de vida determinadas da sociedade renascentista. Finalmente o desenvolvimento do piano, um dos mais importantes suportes técnicos do desenvolvimento musical moderno e de sua propaganda na burguesia, radicou no caráter de espaços interiores específicos da cultura norteeuropéia. Tudo isso são “progressos” dos meios técnicos da música, que determinaram muito fortemente sua história. Esses componentes do desenvolvimento histórico podem e devem desenvolver a história empírica da arte, sem por outro lado efetuar uma valorização estética das obras de artes musicais. (WEBER, 1995, p. 51).

O “progresso” técnico aparece frequentemente primeiro em realizações que, esteticamente avaliadas, são bastante insuficientes. A orientação do interesse, o objeto a ser historicamente interpretado é dado de modo heterônomo à história da arte pela sua relevância estética. Assim como a ordem, o progresso é um dos princípios básicos do positivismo e isso também se reflete no sistema musical tonal, já que uma sequência harmônica dotada de um ordenamento tonal é chamada em harmonia de progressão harmônica. Schoenberg (2004, p. 17), em análise sobre funções estruturais da música, refere que uma tríade sozinha é totalmente indefinida quanto ao seu significado harmônico; pode ser a tônica de uma tonalidade ou um dos graus de muitas outras. O acréscimo de uma ou mais tríades pode delimitar sua significação a uma menor quantidade de tonalidades. Uma determinada ordem transforma tal sequência de acordes em uma progressão. Como já dito anteriormente, quando os acordes de uma composição se movimentam em direção à tônica com um sentido claro de tonalidade, a sequência de acordes é considerada como sendo uma progressão harmônica. Se essa música não possui um movimento claramente definido, não mantém uma hierarquia tonal, o movimento de acordes é chamado de sucessão harmônica. Se a obra está baseada em uma determinada tonalidade, se está construída sobre uma estrutura tonal, cada acorde terá um papel bem definido, isto é, terá uma função harmônica no desenvolvimento desta composição.

331

Uma sequência não tem objetivo; uma progressão almeja um propósito definido. Alcançar este objetivo depende da continuação, que pode promovê-lo ou anulá-lo. A progressão tem a função de estabelecer ou contradizer uma tonalidade. A combinação dos acordes que formam uma progressão depende de seu objetivo, ou seja, se sua função é a de estabelecimento, modulação, transição, contraste ou reafirmação. Uma sequência de acordes pode ser afuncional, nem expressando inequivocamente uma tonalidade, nem requerendo uma continuação clara. Tais sequências são frequentemente utilizadas na música descritiva (SCHOENBERG, 2004). RACIONALIZAÇÃO Segundo o ideal positivista, o conhecimento científico é a única forma de verdade, e as formas de conhecimento humano devem ser comprovadas pela ciência através de um método racional. A racionalização nesse contexto está de comum acordo com o sistema tonal, pois seu funcionamento, assim como toda sua estrutura interna, tem como base a lógica e a racionalização de materiais sonoros. De acordo com Weber (1995, p.35), Com o desenvolvimento da música a uma “arte” estamental (seja sacerdotal, seja aoídica), com o ultrapassamento do emprego meramente prático-finalista das fórmulas sonoras tradicionais e, por conseguinte, com o despertar das necessidades puramente estéticas, inicia-se regularmente sua verdadeira racionalização.

A racionalização cultural é vista por Weber (1995) a partir da ciência e das técnicas modernas da arte autônoma e da ética guiada por princípios fundados na religião. Nesse contexto, não apenas a ciência, mas também a arte autônoma é incluída como manifestações da racionalização cultural. [...] “A arte constitui-se então como um cosmos de valores intrínsecos sempre conscientes, abrangentes e autônomos” (WEBER, 1995, p. 35). Weber ainda assevera que: Toda música racionalizada harmonicamente parte da oitava (relação de frequência 1:2) e a divide nos dois intervalos de quinta (2:3) e quarta (3:4), portanto em duas frações do esquema n/n+1, chamadas “frações próprias, que também estão na base de todos os nossos intervalos musicais abaixo da quinta. Portanto, se a partir de um som inicial subirmos ou descermos em “círculos”, primeiro em oitavas, em seguida em quintas, quartas ou em alguma outra relação determinada “propriamente”, então as potências dessas frações nunca poderão encontrar-se em um e mesmo som, até onde se possa continuar esse procedimento. A décima segunda quinta justa, igual a (2/3) 12, é, por exemplo, uma coma pitagórica maior do que a sétima oitava, igual a (1/2)7. Esse inalterável estado de coisas, e a circunstâncias de que a oitava é decomposta por frações próprias em apenas dois grandes

332

intervalos diferentes, constituem os fatos fundamentais de toda a racionalização da música. (WEBER, 1995, p. 35)

A racionalização como processo levou a música para o sistema tonal, assim como no ideal positivista. Ela é a única forma de busca pela verdade, além disso, o sistema tonal adequa-se aos princípios positivistas de ordem e beleza. Horkheimer e Adorno (1956) consideram que é preciso recordar a sociologia musical póstuma de Max Weber, que hoje é novamente acessível, como apêndice da nova edição de Economia e Sociedade (WirtschaftundGesellschaft). A importância fundamental desse estudo consiste na relação unitária em que a história da música é concebida por Weber dentro do processo geral da racionalização do mundo ocidental. Ele demonstra que só na base dessa racionalização, ou seja, do progressivo domínio conseguido sobre a natureza, se torna possível a aceitação humana do material sonoro e, por conseguinte, o desenvolvimento da grande música. Precisamente, a progressiva introdução de sentimentos subjetivos é redutível, em grande medida, ao avanço da racionalização e como tal é entendida. Weber, portanto, não só introduziu o desenvolvimento estético imanente nesse domínio artístico numa correlação inteligível com o desenvolvimento social, como também, sem que houvesse nele um propósito polêmico, nesse aspecto, despiu de todo e qualquer fundamento científico as concepções irracionalistas da música, ainda hoje difundidas. Ou seja, de um modo geral, a música é algo, que de certa maneira, tomba do céu, portanto, está bem armada contra as tentativas de introduzir nela reflexão racional e critica (WEBER apud HORKHEIMER & ADORNO, 1956). Sekeff (1996, p. 119) afirma que o sistema tonal é o resultado do desenvolvimento de duas teorias: da teoria da “progressão fundamental”, primariamente orientada para a música do início do século XVIII, da qual fazia parte o modelo harmônico da sequência de quintas, a prática do baixo figurado e a harmonização de melodias corais; e da “teoria das funções” que, com o princípio do metro e ritmo de Riemann, desenvolveu-se particularmente na música de Beethoven. O sistema tonal é por fim a conquista e expressão de sua verdade. Para Webber, trata-se de: Uma verdade marcada pelo racionalismo, iluminismo e determinismo lógico, fundamentando com seu corpus um discurso singular, baseado na repetição e contraste, na narratividade e na estrutura, no fraseado e no desenvolvimento sequencial em partos polares e pivôs harmônicos, refletindo o mundo burguês e esgotando-se em si mesmo (WEBER apud HORKHEIMER & ADORNO, 1956, p. 119).

Analisando a racionalização em termos musicais, pode-se considerar que a música tem relação com a filosofia positivista, que tem entre seus princípios básicos racionalizar a nova ordem social. Análogo a isso, a harmonia, através do

333

processo racional do sistema tonal, busca sempre pela sua “verdade”, o acorde com função de tônica. PROTAGONISMO DO SUJEITO Durante o movimento renascentista, os valores humanistas estimulam a curiosidade intelectual, o espírito de iniciativa, o desejo de aventura e de exploração do mundo. Nesse período, nas artes, nas ciências e na filosofia, destacavam-se novas ideias e valores. Em vez de exaltar excessivamente a fé religiosa, os intelectuais desejavam explicações mais racionais. Em vez da ênfase no “mundo de Deus” desenvolveram o antropocentrismo (homem como centro), valorizando a obra humana. O ser humano se descobre como criatura e criador do mundo em que vive. Isso levou ao racionalismo e ao humanismo. Uma nova visão da vida humana em sociedade se consolidou a partir de então. A visão teológica da sociedade foi dando lugar ao antropocentrismo (entendimento de que o homem é o centro das coisas). Dessa forma o ideal positivista propõe à existência de valores completamente humanos, contrariamente ao pensamento teológico e teocentrista. No contexto deste estudo procuramos relacionar o positivismo com a música tonal. porque, no positivismo temos uma ideia de antropocentrismo, enquanto no tonalismo temos uma ideia de tema (sujeito), que tem significados próximos. Na fuga, o tema pode se referir genericamente ao tema principal (ou sujeito), ou pode estabelecer a distinção entre a sua forma inicial e a forma resposta a que se segue. Na forma sonata, o termo é empregado para cada um dos dois temas principais na exposição. A filosofia positivista, apesar de antropocentrista/humanista, não é individualista, pois na religião positivista acreditava-se que cada indivíduo tinha uma dívida com os que vieram antes dele, assim como com os seus contemporâneos. Da mesma forma como o tema musical está relacionado com a composição em que está inserido, seja numa fuga, numa forma-sonata ou em qualquer forma tonal. Carvalho (2002) afirma que a única obrigatoriedade da fuga1 barroca é iniciar com o sujeito desacompanhado em uma única voz, com a entrada sucessiva nas vozes restantes, na tônica e dominante, alternadamente, menos frequentemente na subdominante. Sobre o sujeito, Carvalho (2002, p. 129) revela outro aspecto importante: “O sujeito é o aspecto mais importante da fuga, deve estabelecer a tônica”, e este sujeito tem como papel essencial transmitir uma

Uma composição, ou técnica de composição, em que um ou mais temas/sujeitos são expandidos e desenvolvidos principalmente por contraponto imitativo. 1

334

ideia completa, pois a partir deste sujeito acontecera todo o desenvolvimento da composição. A forma-sonata consiste em uma estrutura tonal em duas partes, articulada em três seções principais. Na primeira seção, o tema/sujeito é exposto na tonalidade da tônica (tese); em seguida um segundo tema/sujeito em outra tonalidade (antítese); na seção final reexpõe os temas/sujeitos da exposição (síntese), habitualmente na mesma ordem, em que o segundo tema/sujeito é ouvido agora na tonalidade da tônica. Esse tema/sujeito no âmbito musical carrega consigo as características que o determinam, sua personalidade, seus elementos que se farão presentes de forma direta ou indireta, ao longo de toda uma composição musical. O Renascimento não foi apenas um estilo da arte, mas uma época de mudanças na vida social, projetando sua visão de mundo pelos três séculos que se seguiram (SEVCENKO, 1994). Renascimento é, dessa forma, a valorização do ser humano, o que se torna o centro das preocupações culturais, incluindo-se a música. Sekeff (1996, p. 125-126) argumenta que: Em termos de música, o Renascimento não promove nenhuma ruptura com a etapa anterior, mas sim uma evolução estilística. Depois de um período essencialmente teocêntrico, o homem volta-se para si mesmo e para a natureza que o rodeia, ao mesmo tempo que busca as fontes da cultura clássica. O seu ideal e o humanismo, sua inspiração são as ideias neoplatônicas (a beleza ideal) e neopitagóricas (racionalismo, importância do número), e a música representa o veículo ideal para a difusão de todo esse pensamento.

Dessa forma, os períodos subsequentes da história da música e das artes recebem essa ideologia, de forma que tais elementos humanísticos continuam presentes. E, assim, o tema/sujeito tanto em música tonal quanto na vida social continuou sendo visto como protagonista principal durante toda a prática do tonalismo. Ideia de Beleza Contrariamente ao pensamento filosófico de sua época, que a música deveria expressar algo e que sua beleza dependia exclusivamente do sentimento despertado em seus ouvintes, Hanslick propõe uma nova concepção de “belo musical”, compreendida a partir de si mesma, cuja beleza seja o equilíbrio entre o conteúdo e forma. Esse pensamento de Hanslick se associa ao ideal positivista, no sentido que o positivismo busca a verdade por meios racionais, da mesma forma que Hanslick busca uma definição do belo musical através da racionalização. Ou seja, usamos como conceito de beleza o coroamento sensível do racionalismo. Algumas características do pensamento de Hanslick que não eram fundamentais, como a atitude analítico-científica, antiliterária, de especialista,

335

foram uma introdução de uma fase totalmente nova em âmbito de estudos musicais. O rápido e intenso desenvolvimento adquirido pelas ciências durante a segunda metade do século XIX, assim como a filosofia positivista deixaram também seu rastro no campo musical assinando a aceitação de uma nova postura frente ao esforço investigador por parte do estudioso da música (FUBINI, 2007, p. 352). Hanslick, em um primeiro momento, propõe como fim e missão da música suscitar sentimentos ou “sentimentos belos”. Em segundo lugar, aponta os sentimentos como o conteúdo que a arte sonora exibe nas suas obras. O próprio autor afirma que ambas as asserções têm igualmente a possibilidade de serem falsas e explica: A primeira não deve ocupar-nos por muito tempo, pois a filosofia mais recente há muito refutou o erro de que o fim de algo belo reside em geral numa certa tendência para sentir dos homens. O belo tem em si mesmo o seu significado, é certamente belo apenas para o deleite de um sujeito da intuição, mas não graças a ele próprio. Tal como a serpente nos contos de Goethe, ele completa o seu círculo apenas em si, despreocupado com a força mágica com que até o morto revive. O belo nada mais tem a fazer do que ser belo, embora admita igualmente que nós, além de intuir – a actividade propriamente estética – também façamos algo de supérfluo no sentir e no percepcionar (HANSLICK, 2002, p.15).

Hanslick defende a tese de que a beleza da música é especificamente musical, resultando exclusivamente das combinações sonoras estabelecidas, sem nenhuma relação com ideias extramusicais (SEKEFF, 2002, p. 61). Fubini (2007, p. 345) argumenta que o crítico austríaco Eduard Hanslick em um ensaio clássico (“Do Belo Musical”) defende que a subjetividade e/ou os sentimentos supostamente despertados pela música, não são base para a apreciação do Belo (valor artístico) nesta arte. Ele afirma que a beleza da música não está ligada à representação de qualquer sentimento, e sim à elaboração de ideias puramente musicais (conteúdos musicais). Assim, a representação do Belo em música está ligada ao binômio, forma concreta e sugestão à subjetividade e não apenas ao subjetivismo externo, ou seja, do ouvinte. Segundo Hanslick (2002), uma ideia musical é determinada por si mesma, e a forma artisticamente composta como algo autônomo também por si. Para ele, o elemento ideal da música é sonoro e não algo conceitual. O ponto decisivo de que parte toda a criação de um compositor não é o propósito de descrever musicalmente uma paixão, mas sim a invenção de uma determinada melodia. Hanslick (2002, p. 47) afirma que “o compositor eficiente tem o conhecimento prático das características de cada elemento musical, quer seja de um modo mais instintivo ou de um modo mais consciente”. Ele entende, entretanto, que “a explicação científica dos diversos efeitos e impressões musicais exige um conceito teórico dos já mencionados caracteres musicais e de suas riquíssimas possibilidades de combinações”.

336

Da mesma forma, Hanslick (2002, p. 47) afirma que “os ouvintes só podem ‘sentir e suspeitar’, mas a consequência indefectível dos fatores musicais que atuam nessas combinações são definidas”. Um ritmo conciso ou amplo, uma progressão diatônica ou cromática, tudo tem a sua fisionomia característica e o seu modo particular de impressionar o ouvinte. E, assim, o músico culto terá uma concepção incomparavelmente mais clara da expressão de uma obra que lhe é estranha, de que há nela demasiados acordes de sétima diminuta e trêmulos, e não a descrição poética das crises sentimentais por que o relator passou. Sobre a forma de composição musical, Hanslick sustenta que: O modo como o acto da criação ocorre no compositor proporciona-nos a visão mais segura da peculiarida do princípio da beleza musical. Esta actividade criadora é inteiramente analítica. Uma ideia musical nasce primitivamente na fantasia do compositor, que a vai elaborando – formam-se e agregam-se mais e mais cristais -, até que insensivelmente se encontra diante dele a figura do produto integral nas suas formas principais, e deve acrescentar apenas a realização artística, provando, medindo, modificando. O compositor não pensa NE representação de um conteúdo determinado. Se o fizer, põe-se num ponto de vista equivocado, mais ao lado do que no interior da música. A sua composição torna-se então a tradução de um programa em sons que, sem tal programa, ficam incompreensíveis. (HANSLICK, 2002, p.48-49).

Hanslick, na descrição de Fubini (2007), representa o anti-Wagner por excelência, a primeira reação violenta e radical sobre o romantismo, contra a concepção da música, como expressão de sentimento ou qualquer outro conteúdo. A importante obra científica de estudos musicais contribuiu para a modificação profunda do horizonte das investigações dentro do campo da estética musical. Isso foi favorecido pelo desenvolvimento que alcançara o positivismo, pela exaltação do método científico e pela confiança de poder estender a todas as atividades humanas, compreendidas a ética e artística. Para Fubini (2007, p. 355), “o escrito de Hanslick representou o primeiro signo desta transformação”. Os estudos se dirigiram em parte em direção à arqueologia e à publicação sistemática de textos antigos e, em parte, em direção à acústica, à psicofisiologia do som, à teoria musical, às indagações sobre a natureza da harmonia, da melodia e do ritmo. A música significou, além disso, um ideal de cientificidade, uma aspiração a um maior rigor nos estudos musicais, o que continuou, sem dúvida, a ser um dos aspectos mais positivos de todo o movimento demais limitado à música (FUBINI, 2007). Hanslick defende que a investigação sobre o valor do belo deve iniciar-se sobre o objeto do belo e seus materiais, e não sobre os prováveis sentimentos e sensações provenientes da apreciação deste. Segundo Fubini (2007), o compositor e teórico francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764), autor do primeiro tratado de harmonia da história, concorda com o pensamento racionalista cartesiano da música, e reivindica para a

337

música o papel de ciência, ou seja, analisável por meio da razão, fundada sobre princípios claros e indubitáveis. E assim se manifesta: Se a música, em seus fundamentos, pode ser reduzida a ciência, se pode ser racionalizada em seus princípios, se pode revelar em sua essência uma ordem natural e imutável, já não poderá continuar sendo considerada somente como prazer dos sentidos, nem estranha a nosso intelecto e a nossa racionalidade (FUBINI, 2002, p. 350).

Na mesma direção, Rameau, em seu Tratado de Harmonia (1722), define música como “ciência dos sons”, e acredita que a música pode ser analisada através de uma lógica racional, sendo a expressão da razão: Rameau estava convencido, como bom cartesiano que era, que a música era governada por leis racionais, e que essas leis poderiam ser deduzidas com rigor geométrico a partir de um único princípio. Ele acreditava que a tarefa mais crítica do teórico era identificar esse princípio único e demonstrar suas conseqüências musicais (CHRISTENSEN apud VIDEIRA, 2006, p. 36).

Para Valls (2002), a beleza ainda é definida como conveniência racional ligada à harmonia. Implica conhecimento científico e saber racional. Ainda se está longe de admitir que a imaginação, a intuição, a emoção, a paixão e outros afetos possam ser também faculdades criadoras capazes de engendrar a beleza. Só mais adiante se tomará consciência da complementaridade da razão e da sensibilidade. Fica assim evidenciado que o ideal humanista buscará um homem equilibrado, nem demasiado racional nem sentimental demais. Ainda segundo Valls (2002, p. 27): O ideal é a síntese, equilíbrio significa autodomínio, mas ele é sempre frágil: o século dos filósofos racionalistas. Para tornar-se autônoma, a esfera estética terá ainda de libertar-se das tutelas da ciência, da religião e da moral; mas é na Renascença que surgem a condições: reconhecimento do artista, a ideia de criação artística e do indivíduo criador, ideal de equilíbrio entre a razão e a sensibilidade.

A esse respeito Sekeff (2002, p. 61) acrescenta: “O que quer dizer que a emoção estética se fundamenta numa particular sensibilidade do homem aos valores sonoros, transcendendo a pura experiência sensorial e se assentando numa maior discriminação intelectual”. No século XX volta a se impor a questão da existência de uma racionalidade especificamente estética e da necessidade de critérios para a arte. Convém salientar, no entanto, que o sentimento estético se produz, então, não mais como consequência de determinadas vivências, mas como resultado da própria vivência musical. A racionalização nesse contexto está em comum acordo com o sistema tonal, pois seu funcionamento, assim como toda sua estrutura interna, tem como base a lógica e a racionalização de materiais sonoros. O ideal

338

estético definido através dessa racionalização, pode ser apontado, então, como fundamento do sistema tonal e do ideal positivista.

REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2009. CARVALHO, A. R. Contraponto tonal e fuga. Manual Prático. Porto Alegre: Editora Novak Multimedia, 2002. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva: Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo: Catecismo Positivista. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural, 2005. FUBINI, Enrico. La estética musical desde la antiguidad hasta el siglo XX. Madrid: Alianza Editorial, 2007. HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Lisboa: Edições 70, 2002. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. (Org.) Temas básicos da Sociologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1956. SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Leterra, 2004. SCHURMANN, Ernest. A música como linguagem: uma abordagem histórica. São Paulo: Brasiliense, 1989. SEKEFF, Maria de Lurdes. Curso e dis-curso do sistema musical (tonal). São Paulo: Annablume, 1996. _______. Da música, seus usos e recursos. São Paulo: UNESP, 2002. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual,1994. TROMBETTA, Gerson Luís. O círculo e a flecha: representações do tempo no desenvolvimento da música. História: debates e tendências. Passo Fundo, v. 8, n. 1, jan./jul, 2008. VALLS, Álvaro L. M. Estudos de estética e filosofia da arte: uma perspectiva adoriana. Porto Alegre: UFRGS, 2002. VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. VIDEIRA, Mário. O romantismo e o belo musical. São Paulo: Unesp, 2006. WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

339

ADORNO: A DIALÉTICA DA EXPRESSÃO NA MÚSICA TONAL Philippe Curimbaba Freitas [email protected]

Mestre em música pelo IA - UNESP Professor de filosofia no ICT – UNIFESP Resumo: O conceito de expressão delineia-se na estética musical a partir da ideia de que a música é uma exteriorização e de um eu interior. Embora a Estética do Sentimento tenha, a partir do século XVIII, desenvolvido um dos conceitos fundamentais para uma estética da expressão – o conceito de sujeito – ela se torna cada vez mais insuficiente para a compreensão da música pura, que ganhou destaque ao longo dos séculos XVIII e XIX. Tal insuficiência foi sentida por alguns autores do século XIX, como Eduard Hanslick, que empreendeu uma revisão dos princípios da estética musical. Ao pensar a música como uma arte autônoma e aconceitual, a estética de Hanslick desvincula a expressão dos conteúdos externos à música e não atribui a ela se não a capacidade de expressar ideias musicais. O conceito de autonomia da forma é fundamental para o pensamento de Adorno, que toma a forma, não obstante, como um dos momentos da expressão musical – o momento negativo –, inseparável do outro momento, qual seja, o do conteúdo expressivo. Porém, este conteúdo não pode mais ser pensado como um conceito: Adorno o pensa como o gesto, o qual, ao contrario do conceito, é não intencional. Palavras chave: Adorno, expressão. Hanslick, autonomia da forma.

Grande parte da musicologia que se deparou com o expressionismo musical abordou-o de um ponto de vista estritamente técnico-musical, secundarizando a questão da expressão ou apresentando-a de maneira genérica, ou a título de contextualização histórica, quando não omitindo. Ao contrário destes autores, em sua Filosofia da Nova Música Adorno identificou no próprio conceito de expressão o núcleo da transformação introduzida pelo expressionismo, e tomou as mudanças técnico-musicais como desdobramentos exigidos por uma ideia de expressão e de expressivo. O expressivo expressionista – cuja referência central é a produção de Arnold Schoenberg entre os anos 1908 e 1913 – é qualitativamente diferente do expressivo da música anterior ao expressionismo. Assim o expressionismo é uma crítica à expressão tal como era concebida até então: em primeiro lugar, à expressão romântica, e também à dramática, que se refere ao século XVII e a Monteverdi e se estende até o romantismo do fim do século XIX. Adorno qualifica esta expressão como uma simulação de paixões: a expressão se define aqui pelas relações da música com os sentimentos, e se baseia na capacidade que ela tem de representá-los. Em segundo lugar, o expressionismo é também uma crítica de um outro expressivo cuja formulação teórica – que encontramos na estética romântica, ou, mais precisamente, em Do Belo Musical de Eduard Hanslick (Hanslick, 2011) – estabelece relações estreitas com o conceito de autonomia da forma. Seu campo objetivo, entretanto, não se limita ao

340

romantismo musical, mas se estende ao classicismo. Trata-se da expressão compreendida como um comando da organização racional dos diferentes caracteres musicais em função de uma unidade formal, isto é, de uma totalidade articulada. O objetivo deste trabalho é estabelecer os principais referenciais históricos e estéticos que estão na base destes dois tipos de expressão que Adorno contrapõe à expressão expressionista. No caso do primeiro tipo de expressão mencionado, a referência central é a música de Richard Wagner; no do segundo tipo, é a estética musical de Eduard Hanslick. Pretende-se mostrar também como, a partir das críticas tanto à música de Wagner como à estética de Hanslick, delineia-se na obra de Adorno, um modo original de compreensão do expressivo da música tonal, em que a expressão emerge através de uma dialética com seu oposto, qual seja, a construção formal. O presente texto é parte de uma pesquisa de mestrado sobre o expressionismo musical de Schoenberg1. Durante a realização desta pesquisa, o autor sentiu a necessidade intransponível de determinar algumas bases históricas e estéticas sobre as quais o pensamento de Adorno se desenvolvia, e disto resultaram as principais ideias deste texto. PAIXÕES SIMULADAS O sentimento como conteúdo ou finalidade da música possui uma história. Dahlhaus apresenta, em um de seus ensaios – intitulado Transformações da Estética do Sentimento –, um desenvolvimento histórico da Estética do Sentimento que perpassa cinco séculos, desde o século XV até o XIX (Dahlhaus, 2003). O musicólogo baseia-se em uma distinção da teoria linguística de Karl Bühler entre três diferentes funções que as frases podem desempenhar: desencadeamento [Auslösung], representação [Darstellung] e notificação, ou manifestação [Kundgabe]. “As ações são desencadeadas [ausgelöst], os estados de coisas representados [dargestellt], os estados anímicos manifestados [kundgegeben]” (Dahlhaus, 2003, p. 31). Cada uma destas funções corresponde a uma época diferente na história da Estética do Sentimento. Para autores dos séculos XV e XVI como Johannes Tinctoris, Nicola Vicentino e Gioseffo Zarlino, a função da música era desencadear efeitos no ouvinte. Os estímulos sonoros incitavam sentimentos, os quais não eram objetivados por eles, mas simplesmente percebidos e sentidos como seus. Aqui não se pode falar em expressão dos sentimentos. A função da música é – baseando-se no modelo linguístico apresentado – “desencadear” sentimentos ou afetos, em um sentido

FREITAS, P. C. Antinomia da expressão: Adorno ante o sismógrafo de Erwartung, Op. 17 de Arnold Schoenberg. Dissertação de Mestrado em Música. IA – UNESP, 2012. 1

341

próximo ao de causalidade mecânica que permite afirmar que o atrito entre dois corpos causa elevação da temperatura. Contrariamente a isso, autores do século XVIII, tais como Charles Batteux, Friedrich Wilhelm Marpurg e Jean-Jacqcues Rousseau, esperavam que a música representasse ou imitasse as paixões, porém não as do compositor nem as do ouvinte. As paixões eram tomadas como coisas que existem objetivamente, independentemente de serem ou não experimentadas por este ou aquele compositor ou ouvinte, e que a música deveria representar, isto é, re-apresentar, assim como uma pintura representa – ou re-apresenta – uma catedral, uma pessoa etc. É apenas na segunda metade do século XVIII que aparecem autores daquilo que pode ser mais propriamente chamado de uma estética da expressão, entre os quais Dahlhaus destaca Daniel Schubart e Carl Philipp Emmanuel Bach. Aparece então a figura do compositor como sujeito que se encontra por trás da música e se expressa por meio dela. A expressão não se define mais pela representação objetiva de afetos nem tampouco pela capacidade que a música deve ter de incitar os sentimentos, mas pela exigência de que o íntimo do compositor torne-se apto para a música, o que implica a exigência de originalidade, pois “só quem retorna a si mesmo e cria a partir do próprio íntimo é ‘original’. O princípio da originalidade não exige a simples novidade, mas também e, sobretudo, que uma obra de arte seja uma ‘verdadeira emanação do coração’ ” (Dahlhaus, 2003, p. 35). Essa distinção que Dahlhaus apresenta entre a expressão até meados do século XVIII – representação dos afetos – e a expressão baseada na idéia de um compositor que expressa o seu íntimo – manifestação dos afetos – não parece ser aceita por Adorno, que reúne toda a música desde o século XVII até o final do XIX sob o mesmo nome de “música expressiva ocidental”. A ideia estética que Dahlhaus designa como expressão subjetiva, ou manifestação do íntimo não aparece no texto de Adorno, embora a música que lhe corresponde – isto é, a romântica – esteja incluída por Adorno no conjunto da “musica expressiva ocidental”. Este conjunto compreende três tipos de expressão musical: a expressão dramática de um Monteverdi, cuja formulação estética é identificada por Dahlhaus em autores do século XVIII, e para a qual o musicólogo julga mais adequado o termo “representação”; a expressão não dramática, cuja referência central parece ser a música romântica, baseada nos preceitos estéticos da expressão subjetiva do compositor encontrados nos textos estéticos a partir da segunda metade do século XVIII, conforme mostra Dahlhaus; e a expressão wagneriana, cujo gênero dramático remonta a Monteverdi, mas que apresenta, aos olhos de Adorno, elementos claramente românticos. Antes de mais nada, é importante ter em conta uma diferença metodológica entre Adorno e Dahlhaus que em parte explica essas tensões: enquanto a análise dos escritos estéticos constituem a força centrípeta do ensaio

342

de Dahlhaus, no ensaio de Adorno são as obras musicais propriamente ditas que aparecem no centro. Dahlhaus formula suas questões com base no conteúdo apresentado pelos escritos que analisa, enquanto Adorno se baseia na própria música e nas questões que ela mesma coloca. Isto não significa que Adorno negligencia as questões estéticas, nem que Dahlhaus negligencia o fenômeno musical propriamente dito. De qualquer modo, essa diferença de metodologia entre duas obras que versam sobre um mesmo objeto – a estética musical – talvez possa revelar bastante sobre a diferença entre os dois autores, cuja afinidade é, em todo caso, muito significativa. Para além das diferenças de metodologia, o que une a partir do conceito de expressão músicas tão diferentes entre si e as separa do expressionismo é o caráter de paixões simuladas, isto é, a ideia, latente a todas elas, de que os caracteres musicais são significantes, dos quais os afetos aparecem como significados. Assim, os caracteres musicais são um meio de acesso aos conteúdos afetivos, os quais pré-existem em relação aos primeiros, ou seja, a expressão como simulação de paixões é uma expressão mediata. Neste conceito de expressão mediata, ou de simulação de paixões, é difícil negar a referência ao lied romântico, no entanto é Wagner quem aparece como uma das referências mais importantes para Adorno, que dedica à sua obra operística uma grande monografia intitulada Ensaio sobre Wagner (Adorno, 2008). O livro é atravessado do começo ao fim pela questão da expressão, a qual se apresenta intrincada com outras questões, mas é no segundo e terceiro capítulos que ela é posta no centro da discussão. Adorno inicia a abordagem do expressivo wagneriano a partir daquilo que considera um impulso social presente na obra do compositor, qual seja, o de uma conciliação com o público da audiência, por meio da adequação da composição às condições de compreensibilidade desse público. Tal impulso se insere em um contexto musical em que as composições mais avançadas e inovadoras vão progressivamente se separando do público dos concertos e se fechando a estreitos grupos de espectadores e inclusive tornando-se economicamente insustentáveis. Entre o compositor e a audiência cava-se um fosso cada vez maior. Não obstante, Adorno não apresenta esse impulso social na forma de um comentário geral sobre a obra de Wagner, mas a partir de elementos técnico-musicais nos quais se manifesta: “Sua música está (...) concebida para o gesto de marcar o compasso e dominada pela imagem do marcar o compasso”. (Adorno, 2008, p. 31). O gesto é, para Adorno, o motor da expressão. Toda a expressão da música moderna ocidental deriva de seu conteúdo gestual. Não fosse essa capacidade de mimetizar o gesto, a música não seria mais do que um movimento agradável de formas, porém sonoras e não visuais (Adorno, 2002, p. 139). Se ela mimetiza os gestos, isto só é possível na medida em que o conteúdo gestual se apresenta nela como uma estrutura musical objetiva e tecnicamente descritível, isto é, como um motivo. Na medida em que se apresenta como um motivo, o gesto torna-se uma

343

identidade musical determinada, possível de ser apreendida, memorizada e consequentemente identificada a cada vez que é repetida, ainda que essas repetições não sejam exatas. A identidade musical baseia-se na unidade métrica do compasso, uma unidade que se estabelece a despeito do conteúdo que o gesto – convertido em motivo – apresenta, e se fixa como um denominador comum. A articulação não depende de um desenvolvimento dos caracteres internos do motivo. Em um ato de conivência ao ouvinte, o que há é uma repetição do padrão métrico, indiferente ao material com o qual os compassos são preenchidos: “toda a música parece primeiro estruturada em compassos e depois recheada” (Adorno, 2008, p. 33). Se o gesto torna-se apto para a música ao apresentar-se como um motivo, a repetição motívica torna-se fundamental. A expressão não pode se limitar a uma mera enunciação de um motivo que mimetiza um gesto, até mesmo porque um motivo não se constitui enquanto tal em uma única enunciação, isto é, como algo isolado: só se converte em motivo na medida em que é repetido. Por outro lado, a expressão como efusão do coração, como manifestação do íntimo (Dahlhaus, 2003, p. 37) e da singularidade do gesto orgânico, exige a originalidade e a irrepetibilidade contra a rigidez mecânica da repetição literal. É nessa tensão entre a necessidade de repetição pressuposta pelo motivo e pelo trabalho motívico e o impulso expressivo pela originalidade e irrepetibilidade que surge a necessidade de uma intensa articulação formal. Por meio de procedimentos compositivos como o desenvolvimento, a variação e a mediação de contrastes é possível desdobrar um determinado motivo em novas configurações que conservam certos elementos do primeiro motivo e transformam outros, de maneira que torna-se possível estabelecer musicalmente uma relação dialética entre identidade e não identidade, repetição e originalidade. Essa relação constitui para Adorno o cerne da expressividade de toda música moderna ocidental2. É exatamente neste ponto que Adorno identifica uma fraqueza técnica na música de Wagner, fraqueza esta que não decorre de uma insuficiência técnica ou incapacidade do compositor, mas precisamente do gesto de marcar compasso, isto é, da abstração do padrão métrico em relação aos elementos internos dos motivos que preenchem os compassos: Em Wagner as insuficiências da organização técnica da composição derivam sem exceção do fato de que a lógica musical pressuposta em toda parte pelo material de sua época é amolecida e é substituída por uma espécie de gesticulação (...). Certamente, toda música remonta a este elemento gestual e o conserva em si. No Ocidente, entretanto, ele foi O termo “música moderna ocidental” não é de Adorno, mas de Max Weber, sociólogo do início do século XX que escreveu uma obra de sociologia da música, intitulada Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música (Weber, 1995) e que Adorno tinha em conta em suas reflexões sobre a música. Este termo não designa a música de vanguarda do modernismo artístico, mas aquela cujo início remonta ao barroco até a música tonal de fins do século XIX e início do XX. 2

344

espiritualizado e interiorizado como expressão, enquanto simultaneamente todo discurso musical se submete à síntese lógica pela construção; a grande música se esforçou pela nivelação de ambos elementos. Wagner se opõe; sua música (...) não consuma em si nenhuma história. O momento expressivo potenciado ao máximo dificilmente se contém no espaço interior, na consciência do tempo, e se lança para fora como gesto. (...) A força do elemento construtivo é consumida pela intensidade exteriorizada, por assim dizer física (Adorno, 2008, p. 35).

Em Wagner o desdobramento e a renovação dos caracteres internos do gesto por meio da lógica musical e em nome da expressão é substituído pela gesticulação, isto é, não pelo gesto refletido musicalmente em caracteres motívicos, mas pelo gesto que se constitui pela mera obediência à unidade métrica abstrata, a despeito do conteúdo motívico que preenche os compassos. Essa expressão calcada nas potencialidades internas do gesto, e que ganha significância graças à articulação formal, está, para Adorno, bloqueada em Wagner. Nele, o conteúdo da expressão é exterior à forma musical: se lança para fora como uma gesticulação abstraída do material, de suas qualidades internas e das possibilidades de articulação formal que ele apresenta: Para exteriorizar-se como gesto tão sensivelmente como exige o procedimento wagneriano, a expressão não pode nunca contentar-se consigo mesma, mas deve acentuar-se e em seguida inclusive exagerar-se por sua crescente repetição. (...) a emoção expressiva, ao aparecer por segunda vez, torna-se comentário enfático de si mesma (Adorno, 2008, p. 38).

A expressão fica, por assim dizer, congelada no gesto e ganha sua força não da diferenciação, mas fundamentalmente das repetições exatas ou quase exatas do motivo expressivo inicial e da intensificação, por exemplo por meio do crescimento do volume sonoro pelo acréscimo de instrumentos na orquestração. A emoção expressiva torna-se, assim, “comentário enfático de si mesma”: uma autoreferência que não sofre nenhum tipo de resistência dos materiais musicais, isto é, dos significantes que a portam. Deste modo, aquilo que aparece como significado, isto é, os conteúdos expressados, não se encontra entre os caracteres musicais que imitam gestos anímicos, entre as “emoções musicais individuais que deveriam refletir as da alma” (Adorno, 2009c, p. 42), mas fora da música, como conteúdos que pré-existem em relação a ela, e que são por ela evocados. Assim, o conteúdo da expressão é um conceito extra-musical e não uma potência mobilizada pela música: Se a unidade de gesto e expressão não se alcança no Leitmotiv [pois o gesto é meramente repetido e não se diferencia por meio da construção temática], se o motivo, enquanto portador da expressão, se aferra sempre ao mesmo tempo ao caráter drasticamente gestual, isto não indica menos que o fato de que sem mediação o gesto nunca pode dotar-se de alma. Diferentemente, representa algo dotado de alma. O momento intencional é específico da expressão wagneriana: o motivo media enquanto signo um significado coagulado. A pesar de toda a ênfase e a intensidade, a música

345

de Wagner se comporta como a escritura com palavra. (...) Sua expressão não se representa, mas é representada. A apreensão de um elemento fragmentado da totalidade espiritualizada, meramente exterior, por significados que este deve representar e que podem permutar-se tão bem como seus representantes, faz dos Leitmotive wagnerianos alegorias (Adorno, 2008, p. 44).

É a essa representação de conteúdos anímicos exteriores à música e préexistentes em relação a ela que Adorno se refere como simulação de paixões, como expressão mediata, que toma os caracteres musicais como meios de acesso a conteúdos extra-musicais, representados por esses caracteres. O gesto musical propriamente dito só se torna expressivo, só pode “dotar-se de alma”, a partir do momento em que entra para a forma, isto é, em que ganha uma articulação técnica em virtude da qual ele se desdobra motivicamente em caracteres que apresentem uma formulação original da ideia gestual, e torna-se, assim, expressivo. A expressão musical só é possível, portanto, pela mediação da forma. Quando o procedimento técnico da expressão se limita à repetição do motivo gestual, o motivo não se apresenta como algo dotado de alma, que é em si expressivo, mas apenas “representa algo dotado de alma”. Os conteúdos expressados são indiferentes à música, a qual se limita a evocá-los. Adorno identifica no procedimento compositivo de Wagner uma tentativa de contornar essa limitação técnica, decorrente da abstração da unidade de compasso em relação ao material musical, por meio da fluidez harmônica, que se contrapõe à rigidez motívica e temática. Na análise que apresenta dos primeiros compassos do prelúdio de Tristão e Isolda, ele mostra que as repetições motívicas apresentam-se variadas, mas apenas com o intuito de se acomodar ao esquema harmônico, que nestes compassos está claramente desenvolvido em torno da tônica de lá menor, sempre pressuposta ainda que o acorde de tônica não esteja presente. O desenvolvimento harmônico molda, portanto, as repetições motívicas, e estas adquirem, portanto, uma plasticidade decorrente das alterações de notas exigidas pela sucessão harmônica que o motivo deve parafrasear. Essa plasticidade das repetições motívicas é o que aos olhos de Adorno confere a Wagner o caráter misterioso, de algo claramente apreensível, mas ao mesmo tempo paradoxalmente obscuro, expresso na fala de Sachs: “não o posso reter mas tampouco esquecê-lo” (Sachs apud Adorno, 2008, p. 43). É neste aspecto paradoxal e ambíguo da obra de Wagner que Adorno identifica um dos elementos fundamentais das configurações formais de Wagner: por um lado, a fixação nas partes isoladas do todo e, por outro, uma concepção da grandiosa obra de arte total como um todo contínuo, sem fissuras. “Wagner conservou ao longo de toda sua vida tanto o formato colossal de tais produtos como o vestuário com o que sonham os teatros de aficionados” (Adorno, 2008, p. 30). A compreensão mais sistêmica da recepção adorniana de Wagner passaria necessariamente por um desenvolvimento mais aprofundado dessa tensão. Como, porém, isto extravasaria os propósitos deste texto, apenas a mencionamos no intuito de evidenciar que a

346

posição de Adorno em relação a Wagner não é unívoca, já que se trata, para Adorno, de uma obra que articula muitas contradições estéticas e sociais que meio século depois o filósofo ainda não via superadas. Em Wagner, “progresso e reação não se deixam separar como as ovelhas e os carneiros, mas se imbricam quase indissoluvelmente” (Adorno, 2008, p. 47). AUTONOMIA DA FORMA E EXPRESSÃO O segundo conceito de expressão musical abordado por Adorno a compreende como um comando da organização racional dos diferentes caracteres musicais em função de uma unidade formal. Pelo princípio da forma autônoma, como expressão de uma subjetividade autônoma, o compositor comanda os momentos parciais, que se apresentam inicialmente isolados e carentes de relação entre si, estabelecendo entre eles relações e, por meio disso, articulando uma totalidade. A expressão musical aparece aqui intrincada com o princípio de autonomia da forma, isto é, com a idéia de que a música possui uma racionalidade e unidade interna que a torna capaz de fundar a partir de si mesma os critérios valorativos pelos quais seu julgamento deve se pautar. A idéia de autonomia musical foi formulada teoricamente pelo musicólogo e esteta Eduard Hanslick em um livro de 1854, intitulado Do belo musical (Hanslick, 2011). O autor se propõe, nesse trabalho, a empreender uma revisão da Estética do Sentimento, que abordava a música exclusivamente a partir da sua relação com os sentimentos, quer seja pelos efeitos anímicos desencadeados por ela, quer seja pela sua suposta capacidade de representar afetos. A crítica da Estética do Sentimento e o desenvolvimento de uma estética que fundamentasse o belo musical não na relação com conteúdos extra-musicais mas na configuração dos elementos musicais e na sua articulação interna, sem referência a algo exterior, não são gratuitos: Hanslick formula conceitualmente uma tendência na história da música no sentido do desenvolvimento das formas musicais autônomas – isto é, não associadas a ocasiões sociais, tal como missas, danças etc., e nem subordinada a textos ou programas – e da consequente valorização da música instrumental pura. Diante desse progressivo florescimento da música absoluta e da extensão de seus critérios também para as músicas com texto ou programa, a Estética do Sentimento mostrava-se para Hanslick insuficiente para a compreensão do artístico na música, o qual em sua época já havia adquirido suficiente autonomia frente às determinações extra-musicais a ponto de tornar necessária uma nova estética musical. Do belo musical é do começo ao fim uma crítica da Estética do Sentimento. Seus dois primeiros capítulos apresentam a tese negativa de Hanslick, isto é, mostram aquilo em que a estética musical não deve se fundamentar. A estética musical não deve se fundamentar nos sentimentos, quer sejam eles considerados como a finalidade da música – capítulo 1 – quer sejam como o seu conteúdo –

347

capítulo 2. É interessante observar que Hanslick aborda aqui duas das estéticas distinguidas por Dahlhaus a partir da teoria linguística: uma delas que via na música a função de desencadear efeitos, ou de incitar as paixões, e outra segundo a qual a música deveria representar paixões como estados de coisas. Nesses dois capítulos iniciais, as linhas gerais do desenvolvimento do texto mostram os problemas de se fundamentar a estética na relação da música com os sentimentos, já que O efeito da música sobre o sentimento não tem (...) nem a necessidade nem a constância nem, por fim, a exclusividade que um fenômeno deveria apresentar para conseguir fundamentar um princípio estético (Hanslick, 2011, p. 15).

Vários são os exemplos que evidenciam essa falta de necessidade, essa contingência que o autor identifica na relação da música com os sentimentos por ela suscitados ou representados. A mesma música, afirma Hanslick, suscita paixões diferentes “em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e circunstancias, mas ainda, na igualdade de todas estas condições em diferentes indivíduos” (Hanslick, 2011, p. 14). Uma música com texto, que adquire, portanto, uma função de representar conceitos, se presta tão bem para representar um determinado conteúdo conceitual como outro totalmente diferente, com mudança integral do texto. Isto ocorre, por exemplo “quando se representa a ópera Os Huguenotes de Meyerbeer, com mudança de cenário, de época, das personagens, da ação e das palavras, como os Gibelinos em Pisa” (Hanslick, 2011, p. 30), onde todo o conteúdo religioso e o sentimento piedoso desaparece. Não obstante, essa transposição não “lesa no mínimo a expressão puramente musical” (Hanslick, 2011, p. 30). Além disso, um mesmo trecho musical pode representar um sentimento determinado tão bem como o seu oposto (Hanslick, 2011, p. 29). São inumeráveis os trechos do livro em que o autor mostra esse caráter problemático da relação entre a música e os conteúdos que ela se põe a representar. Eles atravessam todo o livro, desdobrando-se a partir das questões desenvolvidas em cada capítulo e seria exaustivo e desnecessário enumerá-los aqui. Mais proveitoso é identificar a origem dessa incompatibilidade que o autor atribui à relação entre as estruturas musicais e os conteúdos representados por elas. Sua origem deriva do paradoxo de uma arte não conceitual como a música se propor a representar conteúdos conceituais. O caráter não conceitual da musica é, para Hanslick, consequência de sua não referência a conteúdos extra-musicais, isto é, do fato de que ela só pode ser compreendida esteticamente a partir de seus elementos internos. Os sentimentos, por sua parte, dependem essencialmente de definições conceituais e só assim podem ser compreendidos e distinguidos entre si. Adorno compartilha com Hanslick a ideia de que a música não pensa por conceitos, e muito da sua crítica a Wagner se baseia nisso. Muito da tensão interna que Adorno vê na obra dramática de Wagner deriva também do conflito

348

desse caráter conceitual presente em uma música que, ao mesmo tempo, reivindica o ideal de autonomia da música, a despeito das afirmações de Wagner de que a música é essencialmente uma arte não autônoma, subordinada ao drama (Wagner, 1893, p. 26-7). O ideal de autonomia se manifesta na aspiração à forma musical contínua e unitária, em virtude da continuidade harmônica, conforme vimos, mas também da melodia infinita, da orquestração e de outros parâmetros abordados por Adorno no Ensaio sobre Wagner. A continuidade sem fissuras – buscada por uma articulação intra-musical – é desmentida, afirma Adorno, pela falta de desenvolvimento motívico, a qual é substituída pela gesticulação. Assim, o expressivo se estabelece de fora para dentro, a partir de uma expressão que “não se representa, mas é representada” (Adorno, 2008, p. 44), que não se desdobra a partir da elaboração formal dos próprios materiais musicais – isto é, como aconceitual – mas se apresenta como um significado conceitual pré-existente em relação à música. A partir do terceiro capítulo de Do belo musical, o texto caminha no sentido de expor a posição que a arte musical autônoma toma em relação aos materiais musicais e que, consequentemente, a estética musical também deve tomar. Hanslick não nega o caráter simbólico de determinados sons, em virtude do qual eles são associados a determinados conteúdos. No entanto, afirma que a arte musical começa onde termina a simbologia dos sons, isto é, a partir do momento em que os sons passam a ser considerados não isoladamente, mas através de suas articulações formais. Aqui Hanslick já anuncia o giro da estética do sentimento em direção a uma estética da totalidade da forma. A crítica adorniana da expressão como simulação de paixões já é delineada, portanto, em Hanslick, que varre todos os conteúdos afetivos, todas as “paixões simuladas” para fora do terreno da música, traça uma linha que os separa inequivocamente da arte musical, na qual os sons “seguem leis inteiramente diversas” (Hanslick, 2011, p. 24). Conforme veremos mais adiante, a posição de Adorno no que toca à relação da música com os elementos extra-musicais é diferente da de Hanslick, no entanto é possível afirmar que Adorno vê em Hanslick um dos momentos da dialética da expressão, qual seja, o negativo, o da construção e da forma, em que a expressão imediata, pura e simples, é negada pela objetividade da forma. Hanslick traça um limite que separa nitidamente os sons musicais e os não musicais. Isto porque os sons seguem, na música, leis diferentes daquelas que seguem em sua “manifestação isolada”. Na arte musical, os sons não estão isolados, mas combinados entre si, e nisto consiste o salto do som simbólico – que já é algo em si mesmo, isoladamente – para o som musical – que só se torna algo através da relação com outros sons. Os conteúdos particulares tornam-se, assim, artísticos ao serem reconfigurados, relativizados, transformados, combinados, etc. no interior na forma artística espiritualizada e, portanto, intelectual. Não se trata de afirmar que certos sons são exclusivamente artísticos e os demais, exclusivamente naturais, simbólicos. Muitos dos sons são ao mesmo tempo

349

naturais e musicais, mas sua consideração enquanto som espiritual, ou artístico, exclui as referências às suas características naturais isoladas e à sua simbologia. Ao contrário do som natural, que se relaciona com os sentimentos, os sons musicais se movem no terreno da autonomia da forma. Seu caráter artístico e, portanto, sua beleza não deriva de sua relação com os sentimentos, mas das relações que estabelecem entre si. A ideia da totalidade da forma – que, conforme vimos, articula-se, em Hanslick à de uma determinada concepção de expressão musical – é levada pelo autor às últimas conseqüências. Em contrapartida, se é possível a ideia de um artístico musical para Adorno, ela se baseia em uma relação orgânica que a parte (os detalhes e os momentos isolados) e o todo nela estabelecem entre si. Se é verdade que os momentos individuais estão subsumidos pela unidade e totalidade da forma, também é verdade que essa totalidade só se legitima através do seu confronto com tais momentos, e não como um princípio hipostasiado de todo particular e que os deduz a partir de si. O valor estético da música depende dessa dinâmica entre a parte e o todo. Em Hanslick, a forma artística se separa da natureza e de todas as representações isoladas por uma linha bem traçada. O espiritual da música se move em uma esfera aparte do som natural. A ênfase incide, pois, sobre a unidade do todo formal: O mestre revela ‘estilo’ quando, ao realizar a idéia claramente concebida, suprime tudo o que é mesquinho, inconveniente, trivial, conservando assim uniformemente em cada pormenor técnico a atitude artística do todo (...). O aspecto arquitetônico do belo musical vem claramente para primeiro plano na questão do estilo. Uma legalidade superior (...) será danificada pelo estilo de uma peça musical por meio de um único compasso que, embora em si irrepreensível, se não harmoniza com a expressão do todo (Hanslick, 2011, p. 65).

Esse processo unilateral que Hanslick encontra na música, por meio do qual o princípio geral da forma desdobra as partes a partir de si mesmo, e estas, por seu turno, são dóceis à soberania da forma, ganha uma determinação técnica a partir do conceito de tema. O tema é “a unidade autônoma, esteticamente indivisível, musical de pensamento” (Hanslick, 2011, p. 110), a partir da qual todo o mais se desenvolve. Ele é a origem à qual todas as configurações formais remetem, e quase poderíamos dizer: a rigor não há nada além do próprio tema, já que todos os desenvolvimentos posteriores não são mais do que a sua confirmação, a evidência de seu caráter total e implacável, e de sua impermeabilidade a tudo aquilo que não proceda dele. Se é verdade que o compositor coloca o tema em diferentes situações, o ambienta de diferentes maneiras, também é verdade que tudo na criação musical é consequência dele, que tudo o que não é tema só é pensado e configurado em relação a ele (Hanslick, 2011, p. 111).

350

É difícil negar a importância do pensamento de Hanslick para Adorno. Embora as citações e as referências indiretas não sejam frequentes, a mobilização do conceito de autonomia para pensar a forma musical e tudo aquilo que se relaciona a esse conceito – a concepção da totalidade da forma e inclusive o conceito de expressão – mostra o tributo de Adorno a Hanslick, mais presente nas entrelinhas do que nas referências expressas. Assim como Hanslick, Adorno está atento para o caráter instável da relação da música com os significados que se lhes possa atribuir, e não nega que o artístico de uma arte autônoma como a música não pode ser buscado imediatamente nos conteúdos particulares que ela representa. No entanto, para ele a relação entre o musical e o extra-musical é bastante complexa e só pode ser encaminhada de maneira dialética. Adorno aborda a relação entre os caracteres musicais e os conteúdos afetivos que eles expressam em um texto sobre o caráter linguístico da música, intitulado Sobre a Relação Contemporânea entre Filosofia e Música (Adorno, 2002). Todo o texto gira em torno da questão sobre o significado na música, sobre a possibilidade ou impossibilidade de determinação de sua essência em termos conceituais, extra-musicais. Adorno compara a música com as artes que empregam signos verbais – tanto em poesia como em prosa – e com as artes visuais. A “participação no medium que é simultaneamente o medium da cognição [Erkenntnis]” (Adorno, 2002, p. 139) no primeiro caso, e as configurações formais a partir de objetos do mundo exterior – que inclusive na pintura abstrata se mesclam com o conteúdo – no segundo; em ambos casos tem-se a impressão de que a arte estabelece uma referência inequívoca entre significante e significado, embora Adorno reconheça que “aquilo que emerge como o significado” de uma obra é diferente do seu conteúdo. A referência inequívoca a conteúdos extraartísticos encobre um caráter enigmático que a arte apresenta diante da pergunta pelo seu significado, caráter este que a música, ao contrário, expõe a nu: (...) é impossível determinar de alguma maneira compreensível o significado da música, isto é, aquilo por meio do qual ela adquire seu direito de existir. (...) É algo enigmático que aparece em toda a música. (...) Trata-se (...) do fato de que não há absolutamente nenhum momento geral que pode ser encontrado, e que seja capaz de ir para além da descrição da música, que indique seu significado e justificação. Se então aproxima-se da música o suficiente para que ela seja vista com estranhamento; se, em outras palavras, não se associa sua existência enquanto fenômeno com sua justificação, então torna-se impossível entender de onde deriva a dignidade que foi atribuída a ela na nossa cultura (Adorno, 2002, p. 158).

Não é possível encontrar para a música nenhum tipo de significado que emirja categoricamente, tal como ocorre nas artes visuais, e na literatura. Adorno se refere a uma crise da música, “que não precisa ser introduzida” (Adorno, 2002, p. 135), pois trata-se de um diagnóstico geral da primeira metade do século XX, delineado a partir das últimas experiências musicais mais avançadas que

351

datam desde os primeiros anos do século. Alguns sintomas mais evidentes dessa crise são “as dificuldades de criação formal consistente e substancial”, “o endurecimento e nivelamento comerciais da vida musical” e “a ruptura entre a produção autônoma e o público” (Adorno, 2002, p. 135). As formulações mais comuns desta crise a atribuem a um “perigo radical” (Adorno, 2002, p. 137) que ameaça a música. No entanto, argumenta Adorno, se a música está exposta a um perigo radical, é necessário que se interrogue o que ela é, qual é sua essência, pois, para que algo esteja posto em perigo, é necessário que exista, e que apresente uma essência definível conceitualmente. Para que o seu final seja temido, é necessário que isso que existe e apresenta uma essência tenha uma dignidade em virtude da qual ganhe sua legitimidade, seu propósito ou sentido de existir [raison d’être]. No entanto, vimos que essa questão pelo sentido da música não pode ser solucionada, já que não é possível atribuir à música algum significado intrinsecamente musical, do qual derivaria sua essência e seu sentido de existir. Desta forma, até mesmo essa presumida crise que ameaça a música torna-se enigmática, pois não é possível identificar a que ela se refere. Essa aporia constitui a fibra do texto de Adorno, para quem a solução só pode ser dialética. Adorno é sensível às reflexões de Hanslick na medida em que reconhece a música como uma arte autônoma e recusa, portanto, a possibilidade de uma simples subsunção dela a uma essência universal e extra-musical, subsunção esta pressuposta na pergunta pelo seu significado. Mesmo assim, a posição de Hanslick não é acatada por Adorno: (...) a suposta felicidade que é provocada por formas sonoras em movimento é um princípio muito estreito e abstrato para servir de fundamento a uma forma arte altamente organizada. Caso se tratasse apenas disso, então não haveria diferença entre um caleidoscópio e um quarteto de Beethoven exceto a diferença no material (Adorno, 2002, p. 139).

O exemplo do caleidoscópio é uma metáfora usada pelo próprio Hanslick para ilustrar o belo musical como um auto-referido movimento de formas, umas em relação às outras. No entanto, o nível de articulação formal da música é imensamente superior ao de um caleidoscópio e um princípio tão vago não é suficiente para caracterizar a singularidade artística de uma música determinada, ou a especificidade de um estilo, já que apenas descreve algo que acontece a todas as música e, no melhor dos casos, afirma a própria singularidade do artístico de cada música, sendo que esta mesma singularidade, na medida em que é atribuída a todas elas, torna-se uma característica geral. Todas as músicas artísticas são singulares: nisto todas elas se assemelham. Adorno não vê com bons olhos qualquer tentativa de definir a música de uma maneira universal, já que isso necessariamente leva concepções demasiado abstratas incapazes de realizar aquilo que julgam realizar. É o que ocorre se a definimos como uma linguagem sui generis ou como um algo marcado por um

352

tempo e um espaço diferentes do tempo e do espaço empíricos, pois não podemos separá-la, enquanto linguagem sui generis, das outras linguagens e, enquanto algo temporal e espacialmente distinto do mundo empírico, do tempo e do espaço empíricos, a não ser por meio de um enunciado abstrato que não afirma mais que a própria diferença, dispensando-se de determinar em que ela consiste (Adorno, 2002, p. 142). Para ser categoricamente separada do não musical, a música deve tomar determinações tão abstratas que a acabam paradoxalmente fundindo ao não musical. A diferença característica da música frente ao mundo empírico, às outras formas de linguagem e a tudo aquilo que não é música não se baseia em uma formulação categórica, abstrata ou atemporal: concerne às particularidades, isto é, as diferenças concretas: os estilos particulares, as obras particulares de cada estilo e, além disso, os momentos particulares de cada obra musical, os quais Adorno, ao contrário de Hanslick, não vê como mera dedução lógica do todo. O elemento responsável por essas diferenças singulares é a expressão. Entretanto, (...) o momento de expressão, no qual percebeu-se o corretivo do princípio de Hanslick citado acima, é muito ambíguo, em qualquer instância isolada, e muito vago para representar o conteúdo da música por si mesmo (Adorno, 2002, p. 139).

A singularização expressiva é o elemento no qual a reflexão conceitual sobre a música deve se basear para superar a contradição das definições que, por demasiado abstratas, nada definem. No entanto, o momento expressivo nada soluciona “por si mesmo”, isto é, se considerado de maneira isolada, como um princípio independente do momento objetivo da obra unitária e organizada, pois assim permanece ambíguo. E aqui produz-se o curto-circuito do texto: “toda música é caracterizada de uma maneira primária por aquilo que, na linguagem, com as palavras, apenas ocorre como resultado de uma concentração alienante” (Adorno, 2002, p. 139). O que ocorre na música de uma maneira primária, isto é, sem a mediação dos conceitos, das palavras e, em suma, dos universais, só pode ocorrer na linguagem verbal por meio de um agrupamento de diversos singulares sob um conceito universal que abstrai as diferenças entre eles: por meio da perda da singularidade enquanto tal, enquanto não subsumida à universalidade do conceito, isto é, de uma alienação. A espinhosa tarefa de uma reflexão conceitual sobre a música torna-se um enigma insolúvel na medida em que a música, conforme já afirmava Hanslick, é uma arte não conceitual e, portanto, resistente ao esquema de subsunção do singular ao universal, que está na base de toda linguagem verbal. A música olha seu ouvinte com olhos vazios, e quanto mais profundamente se imerge nela, mais incompreensível torna-se sua proposta última, até que aprende-se que a resposta, se tal é possível, não está na contemplação, mas na interpretação. Em outras palavras, a única pessoa que pode solucionar o mistério da música é aquele que a toca corretamente, como algo total. Seu enigma se burla do ouvinte ao seduzi-

353

lo a hipostasiar, como ser, o que é em si um ato, um devir e, como devir humano, um comportamento (Adorno, 2002, p. 139).

A vacuidade conceitual da música, que “olha seu ouvinte com olhos vazios”, obriga a reflexão sobre ela a abandonar a pergunta pelo seu sentido extra-musical em prol de uma compreensão orgânica, da música como comportamento ou gesto. Em música, estamos diante de gestos e não de significados. Na medida em que música é linguagem, é, como a notação na história da música, uma linguagem sedimentada de gestos. Não é possível perguntar à música o que ela traz como seu significado; na realidade a música tem como seu tema a questão: como podem os gestos tornarem-se eternos? (...) Como linguagem, a música tende ao puro nomear, à unidade absoluta entre objeto e signo, que em sua imediaticidade está perdido para todo conhecimento humano (Adorno, 2002, p. 139).

Ao evidenciar o paradoxo de uma arte não conceitual que representa conteúdos conceituais, Hanslick já apresenta, não obstante, o corretivo do caráter abstrato de sua estética musical: a música não representa os sentimentos, mas apenas mimetiza os movimentos anímicos que podem acompanhá-los, isto é, os gestos. Adorno provavelmente diria que Hanslick tem razão contra si mesmo: se para ele esses movimentos estão subsumidos ao conceito, como adjetivos, e portanto varridos para fora do terreno da arte musical, para Adorno a possibilidade da expressão na música se baseia justamente na autonomia dos gestos frente às representações às quais se subsumem enquanto conceitos. Assim também, a autonomia musical reflete essa autonomia do movimento anímico e do gesto frente ao conceitual e abre espaço para a singularidade de uma expressão que não está subsumida à universalidade do conceito. Contudo, após serem negados em prol da gestualidade e do orgânico, o conceito e a razão reaparecem, ainda que transformados. Gesto e linguagem conjugam-se na música, segundo Adorno. As implicações de sentido extramusicais, “desde o eco de marchas e música bélica na grande sinfonia (...) até os reais e extra-estéticos shocks e emoções da alma, desde cujos documentos cristalizou-se a nova linguagem formal da música” (Adorno, 2002, p. 142), por um lado; e a articulação dos sons no interior de um processo, por meio de uma construção racional da forma, por outro: estes elementos opostos apresentam-se na música intrincados, e torna-se, portanto, impossível separá-los um do outro. O caráter linguístico da música não deve ser entendido como sua participação no mundo dos significados, pois não é possível separar, no gesto, significante e significado: no ato do “puro nomear” – diferente do de significar – “o nome aparece na música como puro som, separado de seu portador, e portanto como o oposto de todo ato de significação, de toda intenção de sentido” (Adorno, 2002, p. 140). Assim, o que a constitui como linguagem é sua participação no mundo da racionalidade, já que

354

A música não conhece o nome – o absoluto como som – imediatamente, mas, se é possível expressar-se assim, se esforça por uma construção que o conjure por meio de um todo, de um processo. Portanto ela está ao mesmo tempo entrelaçada no interior desse processo, no qual categorias como racionalidade, sentido, significado, linguagem ganham sua validez (Adorno, 2002, p. 140).

É nessa tensão entre o anseio pela nomeação de algo imediato e carente de sentido e a articulação racional em virtude da qual ela se torna possível que Adorno identifica a contradição essencial no interior da qual se move a criação musical: O paradoxo de toda música é que, como um esforço em direção àquilo não intencional para o qual foi escolhida a inadequada palavra “nome”, ela se desdobra precisamente apenas por causa de sua participação na racionalidade no mais amplo sentido (Adorno, 2002, p. 140).

A especificidade da linguagem musical não pode ser compreendida, segundo Adorno, a não ser a partir dessa essência contraditória. Por uma parte, [a racionalidade musical] implica que a música, através da disposição sobre o material da natureza, se transforma em um sistema mais ou menos rígido, cujos momentos singulares têm um significado independente do sujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda música, desde o princípio da época do baixo contínuo até hoje, está unida como um ‘idioma’, que em boa medida está dado pela tonalidade, e cujo poder continua ainda na negação atual da tonalidade. O que designa o termo ‘musical’ no uso mais simples da linguagem, se refere justamente a esse caráter idiomático, a uma relação para com a música na qual seu material, em virtude de sua objetivização, se converte em segunda natureza do sujeito musical. Mas, por outra parte, também sobrevive, no momento da música semelhante à linguagem, a herança do pré-racional, mágico, mimético: graças à sua linguistização, a música se afirmou como órgão da imitação (Adorno, 2002, p. 145).

A música é determinada, por um lado, pelos seus elementos abstratos e universais, que estão para além da singularidade de cada música determinada. O que se obtém por meio desta abstração é aquilo que é comum entre elas: os elementos musicais sedimentados que se abstraíram desta ou daquela música em particular para constituírem um referencial abstrato compartilhado daquilo que é “musical”, que estabeleceria os padrões de reconhecimento e legitimidade ante os quais os momentos expressivos e particulares de cada música deveriam se curvar para não se tornarem incompreensíveis. Dito de outro modo, um sistema, um idioma. Por outro lado, a música não pode ser compreendida sem uma consideração de seus momentos expressivos, nos quais vai além dos elementos convencionais, em direção a algo que tende ao informe e ao “pré-racional”: nesses momentos, ela se particulariza, se lança para além dos elementos universais criando, por meio de um processo, novas configurações que são irrepetíveis.

355

Isto pode explicar porque Adorno não menciona a expressão como “efusão do coração” no trecho que caracteriza a expressividade da “música expressiva ocidental”. A estética de Adorno, não só na Filosofia da Nova Música mas nos escritos sobre música e sobre artes em geral, se desenvolve a partir das questões técnicas e formais apresentadas por cada uma das obras. Adorno não propõe uma reflexão sobre as doutrinas estéticas enquanto tais, mas sim uma reflexão sobre as questões estéticas emanadas pelas próprias obras. Sua estética é algo que podemos chamar de uma estética materialista: não se trata de uma discussão das idéias enquanto tais, mas sim na medida em que elas estabelecem relações concretas com a criação artística e sua história. Essa exigência de uma expressão subjetiva e original deixa de ser apenas um preceito estético e passa a enredar-se em uma dinâmica histórica concreta na medida em que mobiliza os elementos construtivos intra-musicais da forma autônoma. A concepção da forma como um todo coeso e racional abriu um caminho para que a expressão subjetiva pudesse aparecer como uma força concreta no interior da música e ganhar o sentido de uma singularização irrepetível, que paradoxalmente só se torna possível em virtude dos elementos objetivos da forma. Ao tomar a expressão por princípio, a música se enreda, portanto, em uma contradição. Dahlhaus também tem isto em mente, conforme é possível observar em um trecho do mesmo ensaio Transformações da estética do sentimento (Dahlhaus, 2003), com o qual encerro este texto: Enquanto composição, enquanto letra escrita, a arte da expressão musical enreda-se num paradoxo que, no entanto, não se pode abolir como contradição morta, mas se deve conceber antes como contradição viva, que impele a evolução histórica. Se a música visa tornar-se (...) persuasiva e expressiva – e o princípio da expressão é, desde o final do séc. XVIII, o agente da sua história – deve então, por um lado, para ser compreensível, cunhar fórmulas: na ópera, constituiu-se um vocabulário que também se estendeu à música instrumental. Por outro lado, a expressividade, enquanto ‘efusão do coração’ e expressão do próprio íntimo, optou pelo desvio do habitual e do batido. (...) A expressão encontra-se, pois, contraditoriamente cruzada com a convenção, e o particular com o geral. Se, enquanto subjetiva, é irrepetível, incorre ao mesmo tempo, para ser clara, na coação à consolidação. No instante em que se realiza numa existência apreensível, abandona a sua essência (Dahlhaus, 2003, p. 37).

BIBLIOGRAFIA: ADORNO, Theodor. Essays on Music. Trad. Susan H. Gillespie. University of California Press, 2002. __________. Obra Completa. v. 13: Monografias musicales. Madrid: Akal, 2008. __________. Obra Completa. v. 12: Filosofia de na nueva música. Madrid: Akal, 2009b.

356

DAHLHAUS, Carl. Estética musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2003. HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a revisão da Estética da Arte dos Sons. Covilhã: Lusofonia, 2011. WAGNER, Richard. Opera and Drama. Trad. William Ashton Ellis. The Wagner Library, 1893. WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. Trad. Leopoldo Waizbort. São Paulo: Edusp, 1995.

357

O PROBLEMA DAS GRANDES FORMAS AUTÔNOMAS NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE ADORNO SOBRE SCHOENBERG E BERG Igor Baggio e-mail: [email protected] (FFLCH – USP)

Resumo: O presente texto visa comentar dois dos primeiros ensaios escritos por Adorno em sua juventude sobre a música de Schoenberg e de Berg. Tratam-se dos ensaios Schönberg: Serenade, op. 24 (I) e de Alban Berg: Zur Uraufführung des“Wozzeck”, ambos escritos em 1925. Argumenta-se que o foco da interpretação do filósofo nesses ensaios recai no assim dito problema das grandes formas autônomas no contexto da música póstonal, problema este a que se pretendia dar uma resposta com a implementação da técnica dodecafônica nos anos vinte. No primeiro desses ensaios, Adorno mostra em que sentido a recuperação de um ideal formal clássico na Serenata op. 24 de Schoenberg pode ser interpretada em chave irônica. Já no segundo, Adorno leva adiante a ideia de que por meio de uma radicalização dos princípios de variação temáticos Berg aprofunda a crítica de Schoenberg ao que o filósofo chamou de “psicologismo da expressão musical”. Palavras-chave: Adorno; filosofia da música; Segunda Escola de Viena; forma musical;

A música da escola de Schönberg surgiu imediatamente do enfrentamento crítico com as grandes formas “dinâmicas” da chamada música clássica, em particular a sonata e a variação. Adorno, Neunzehn Beiträge über neue Musik.

A despeito de ainda carecer da sofisticação filosófica e sociológica com que a mediação entre as formas e os gêneros musicais e a objetividade sócio-histórica é pensada em seus ensaios de maturidade sobre a música, desde seus primeiros textos a reflexão de Adorno sobre o universo formal da música moderna se orientou a partir da problematização do estatuto objetivo e universal ostentado pela cristalização das práticas artísticas do classicismo de Mozart, Haydn e do Beethoven das primeiras fases, com seus ideais de harmonia, simetria e unidade assentados sobre o sistema tonal junto a tipos formais e gêneros musicais determinados. Como sabemos a recolocação em circulação desses ideais no interior da composição pós-tonal era o foco das preocupações tanto do neoclassicismo de Stravinsky quanto do dodecafonismo serial no ambiente musical da década de vinte, ainda que em cada um desses casos a possibilidade dessa recuperação fosse tratada de maneiras extremamente diferentes. Frente a isso, o modo característico com que Adorno desde o início levou a cabo essa

358

problematização diz respeito ao que encontramos refletido em diversos de seus textos, alguns já de 1925, como “crítica da forma sonata”, “crítica da sonata”, ou simplesmente “crítica das formas”, expressões que se referem ao modo como diferentes compositores, notadamente Schoenberg e Berg, conceberam a relação entre as exigências inerentes a um material emancipado da tonalidade e aqueles ideais formais cristalizados em torno da forma-sonata de primeiro movimento, das grandes formas em geral e também de gêneros como a Suíte e a Sonata. Um bom ponto de partida para começarmos a discutir as ideias de Adorno sobre essa questão do estatuto das grandes formas no contexto que nos diz respeito é junto ao ensaio de 1925 sobre a Serenata op. 24 de Schoenberg. Composta em 1923, a Serenata é a primeira composição de Schoenberg a evidenciar seu impulso em direção à recuperação de um ideal formal próprio à música tonal e, além disso, juntamente com a Valsa das Cinco peças para piano op. 23, seu quarto movimento, o Soneto de Petrarca, constitui a primeira ocorrência de um movimento inteiramente serial na obra de Schoenberg. Em seu ensaio sobre a peça, portanto, será questão para Adorno justamente pensar, tendo em vista o modo como vinha sendo refletida a possibilidade para a instauração de um “novo estilo clássico de composição” junto às obras mais recentes de Schoeberg, a pertinência desse movimento. 1 A primeira vista, chama a atenção o modo como nesse ensaio Adorno introduz sua reflexão sobre a referência feita ao universo formal clássico na Serenata partindo de uma hipótese a primeira vista obscura: a aparente impossibilidade de toda ironia musical no âmbito da produção mais recente de Schoenberg, o que será encarado como um sintoma da “crise da música expressiva romântica” e de seu psicologismo. 2 Provavelmente a escolha desse enfoque se justifique na intenção de se afastar o proceder schoenberguiano mais Sobre a retórica neoclássica utilizada na defesa das potencialidades gerativas da técnica dodecafônica quando do aparecimento das primeiras composições dodecafônicas seriais de Schoenberg ver principalmente o texto de Hans Eisler Der musikalische Reaktionär e o artigo programático de Erwin Stein Neue Formprinzipien que, escrito a pedido e com a consultoria de Schoenberg, divulgou a prática dodecafônica ao grande público pela primeira vez. Ambos os textos saíram publicados originalmente na revista da editora Universal, a Anbruch, em 1924, num volume comemorativo ao quinquagésimo aniversário de Schoenberg. O texto de Eisler pode ser encontrado no site do Arnold Schoenberg Center na internet (ver referências bilbiográficas). Já uma tradução do artigo de Stein para o francês pode ser encontrada em: H. H. Stuckenschmidt (Ed.). Musique nouvelle. Paris: Buchet/Chastel, 1956. Para uma análise minuciosa do contexto jornalístico de política cultural por trás da emergência do conceito de neoclassicismo junto à música da década de 20 e em torno de Schoenberg e Stravinsky cf: Scott Messing. Neoclassicism in music: From de genesis of the concept through the Schoenberg/Stravinsky polemic . Rochester: University of Rochester, 1996. 2 Theodor W. Adorno. Musikalische Schriften I-III. In: Rolf Tiedemann (Ed.). Gesammelte Schriften 16. Frankfurt: Suhrkamp, 2003. p. 340. Todas as traduções são de responsabilidade do autor. Nas próximas notas abreviaremos os Gesammelte Schriften por GS seguido do número do volume e das páginas onde podem ser encontradas as passagens citadas. 1

359

recente daquele do neoclassicismo de Stravisnky. Contudo, se esse é o caso, tratase de uma intenção tácita, já que a música deste último nunca é mencionada no texto. Nesse texto, portanto, Adorno parte de uma reflexão de caráter geral sobre as condições de possibilidade para a ironia musical e, em uma segunda parte do ensaio, tece algumas considerações de caráter analítico visando elucidar em que medida deveríamos entender o proceder compositivo de Schoenberg nessa peça como de natureza irônica no que concerne à relação entre o material e às formas. Segundo o que nos diz Adorno, a princípio, no âmbito da música tonal, a ironia musical não é um fenômeno que se deixa reduzir à ordem da estrutura musical, a sua lógica imanente, mas sim algo que depende da associação subjetiva de elementos formais musicais com conteúdos psicológico-afetivos e da constatação posterior da arbitrariedade, insuficiência ou inadequação por trás dessa operação. Ou seja, a ironia musical só seria possível no interior de um estilo musical no qual um regime de associação entre elementos musicais e extra-musicais de ordem psicológico-afetivo estivessem razoavelmente bem estabelecidos e no qual a inadequação entre as duas ordens pudesse ser utilizada de modo a jogar com a expectativa dos ouvintes. Para o autor, esse mecanismo descreveria em larga medida o funcionamento expressivo de grande parte da música tonal na qual um modo de tratamento irônico do material e das formas podia ser notado. É isso a que Adorno se refere nesse texto como um procedimento psicologizante em relação ao material e às formas, como um psicologismo musical. Como exemplo desse uso da ironia Adorno cita o caso do poema sinfônico Til Eulenspiegel de Richard Strauss e a ironia em Mahler: Se não se soubesse nada acerca da velha cama de Eulenspiegel, não apareceria então com um comentário, e inclusive a ironia mais compreensiva de Mahler não se faz inteiramente legível de outro modo que por força de associações conceituais que a bizarrice da manifestação sonora só instaura psicologicamente. 3

Em outras palavras, para que a ironia musical fosse possível no âmbito da música tonal, portanto, Adorno afirma que a intervenção e a mediação pela linguagem conceitual junto à manipulação do material musical deveria ser o modo habitual a partir do qual se concebia a relação entre as intenções expressivas do compositor e o material e as formas musicais. Sendo assim, a ironia musical não recebe seu sentido unicamente de procedimentos formais musicais, mas descreve um modo de se conceber a lógica da expressão musical no interior da música tonal que denuncia o estatuto não autônomo da relação entre o sujeito, o material e as formas. Daí o sentido de colocações como as seguintes:

3

Ibidem.

360

A ironia, enquanto atitude de um ser quebrado concentra necessariamente sua irradiação na sabedoria do conceito linguisticamente eloquente, não quer como ainda na renúncia cantábile de Beethoven, introduzir-se na conceitualidade musical imediatamente significativa, cuja intenção pertence inseparavelmente ao acontecimento sonoro, enquanto que é precisamente na distância da exteriorização à intenção onde a ironia se confirma tacitamente. 4

Essa inadequação entre “o conceito linguisticamente eloquente” e a “conceitualidade musical imediatamente significativa”, ou seja, essa “distância” entre um conteúdo musicalmente heterônomo e uma forma musical autônoma como a base para uma expressão musical de caráter irônico é o que Adorno a primeira vista questiona ser possível no contexto da produção mais recente de Schoenberg em 1925, contexto onde a imbricação entre a forma, o material e o conteúdo expressivo seria concebida de modo estritamente músico-imanente, o que acabaria por determinar, a princípio, a tendência à univocidade do sentido musical. Não obstante, Adorno pretende sustentar que a Serenata op. 24 pode ser entendida em chave irônica, ainda que aí a ironia não seja mais encarada como índice de um procedimento psicologizante com as formas e com os conteúdos, mas algo constitutivo da própria forma, ou melhor, da própria atitude do compositor perante as exigências postas pelo material e pelas formas. Visando precisar o sentido com que entende o conceito de ironia em relação à composição da Serenata, Adorno ainda o distinguirá, então, de duas outras manifestações da ironia, uma que Adorno aproxima do gozo burguês das formas esvaziadas de sentido e reduzidas a clichês, e outra marcada pelo racionalismo exacerbado que fragiliza toda exigência universal posta pelas formas desembocando na recusa niilista da possibilidade de toda forma. Nas palavras do autor 5: Ali onde a ponderação e a produção se entrelaçam tão estreitamente, não tarda em pôr-se em movimento um mecanismo compositivo vazio, já seja que as formas, retidas sentimentalmente e choradas sarcasticamente, isentas de toda referência superior, se desvirtuem até converterem-se em clichês de fabricação artesanal, já seja que, no caso mais sério, que a univocidade racional que destrói e dita a referência das formas a seu objeto se converta no meio para transmitir esteticamente o desesperançado abandono da forma no mundo estético. No entanto, a ironia de Schönberg segue estando igualmente muito afastada do gozo burguês e da polêmica niilista. Sua aprioridade é a do ser que continua formando, sua conceitualidade está pré-desenhada na relação objetiva, crítico-dialética deste ser com as formas, não constatável na tomada de posição psicológica do compositor com respeito às formas; a distância Idem, p. 340. O primeiro desses tipos de ironia pode ser aproximado do procedimento neoclássico colocado em circulação por Stravinsky. Já o segundo se aproximaria da concepção de ironia própria aos primeiros românticos e geralmente indicada como “ironia romântica”. Ao tratarmos do conceito de ironia nesse texto, nos beneficiamos amplamente das reflexões contidas em: Vladimir Safatle. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 37-65. Do mesmo autor ver ainda: Nietschze e a ironia em música. In: Cadernos Nietschze 21, p. 7-28. 4 5

361

entre a exteriorização e a intenção não a cria como inadequação dos conteúdos às formas, não, ela mesma se condiciona a si mesma por meio desta distância e trata de superá-la configurando-a. 6

Podemos depreender dessa longa passagem que a ironia à base da Serenata não se refere a uma manifestação sintomática da deposição do imperativo de autonomia da forma musical impulsionada pelo reconhecimento da perda de resistência dos materiais e das formas. Isto é, a ironia aqui não é entendida como modo de expressão da inadequação entre formas tradicionais e um material melódico, harmônico e ritmicamente avançado, mas sim como o princípio de configuração à base da superação dialética dessa inadequação. A ironia aqui é sinônimo, paradoxalmente, do modo imanente de determinação entre as tendências postas pelo material e as exigências trazidas pelas formas. Daí o sentido da conclusão de Adorno: “O fundamento irônico da Serenata de Arnold Schoenberg é, sobretudo sua concepção formal [Formgebaren], que adjudica determinantemente a todo o musicalmente individual o lugar correto (...)”. 7 Espécie de tato musical, do modo como Adorno a descreve, essa “ironia constitutiva de forma” 8 se aproxima do conceito schoenberguiano de sentimento da forma [Formgefühl] que abordamos anteriormente e, de fato, podemos perceber logo no início da segunda seção do ensaio como Adorno concebeu essa formulação peculiar de ironia em relação ao problema formal à base dessa composição, sendo aí que suas reflexões sobre esse conceito em relação à Serenata ganham um sentido mais específico no tocante à postura crítica de Schoenberg frente às grandes formas. A proximidade entre essa noção de ironia desenvolvida por Adorno e àquela do sentimento da forma em Schoenberg fica mais evidente na segunda parte do ensaio sobre a Serenata, onde Adorno dialoga com a ideia posta em circulação no primeiro Festschrift em homenagem a Schoenberg comentado anteriormente de que a fonte do senso formal do compositor residiria na coincidência entre o movimento de rompimento com os limites da interioridade subjetiva, impulso expressivo para fora da interioridade, e a doação objetiva de forma. Essa impossibilidade de o sujeito permanecer alojado em sua interioridade e seu consequente questionamento da ilusão de uma forma amparada na pura autorreferência ao Eu através da crítica dos limites subjetivos, que como vimos no primeiro capítulo era vista como a base do expressionismo de Schoenberg, coincide para Adorno com um movimento em direção à busca pela objetividade das formas no âmbito da exterioridade do próprio material. 9 Contudo, o Idem, p. 341. Idem, p. 341. 8 Ibidem. 9 Fica claro, portanto, que o tipo de ironia situado por Adorno à base da Serenata se afasta da concepção romântica de ironia como esta fora entendida por Hegel em seus Cursos de Estética, onde a base da ironia romântica é situada justamente na onipotência do Eu absoluto frente à 6 7

362

movimento de rompimento, de quebra com a unidade e identidade subjetiva que garantia a aparência de universalidade das formas não significaria o simples recaimento no material amorfo, mas engendraria a expressão de uma forma fraturada, uma forma negada, porém sustentada em seu limite. Adorno utiliza essas reflexões no início da segunda seção de seu texto para se contrapor à habitual acusação de que Schoenberg teria, após romper com a tonalidade e com as grandes formas, entregue a música ao caos. É tendo esse contexto em vista que devemos entender o sentido das afirmações de Adorno no ensaio sobre a Serenata: A percepção da experiência de que já não existe nenhuma forma, a não ser a que emerge do abismo da interioridade subjetiva, para ele [Schoenberg] se converte na experiência do diametralmente oposto, no fato de que nenhuma interioridade pode viver e perdurar na cópia estética a não ser que encontre pontos de sujeição fora de si mesma. A dialética dessas experiências contrárias fundamentais – experiências fundamentais justamente do ser que se desdobra, não atos psicológicos, mas obtidos na mais pura imanência material – se converte na origem da ironia de Schoenberg. 10

Contrariamente ao que fora propagado pelos discípulos de Schoenberg no primeiro Festschrift de 1912, para Adorno o rompimento com o sistema tonal e com os ideais formais sustentados pela tonalidade através da afirmação radical da expressão da interioridade guiada pelo senso formal não pode significar simplesmente o abandono, a ruptura total com a ideia de uma forma musical autônoma, sendo a expressão da interioridade entendida pelo filósofo como dialeticamente determinante em relação à reconstrução das formas. No caso da Serenata, essa determinação dialética entre expressão e construção, entre material e forma é qualificada por Adorno como irônica na medida justamente em que a referência a formas típicas da tradição clássica não necessariamente deve desaparecer automaticamente com o rompimento com a tonalidade, porém tampouco essa referência se legitimaria no contexto pós-tonal como a simples reafirmação da aparência de objetividade dessas formas antes sustentadas pela tonalidade. Antes o proceder irônico de Schoenberg se traduz como crítica a essa mesma aparência, ainda que o saldo dessa crítica não seja simplesmente o abandono de toda expectativa de validade objetiva das formas. Ironia, portanto, determinidade de todo conteúdo material específico. Segundo Hegel, a formulação estética da ironia romântica procede em larga medida do Eu absoluto fichteano, um Eu que para conservar sua pureza, unidade e identidade precisa dissolver toda objetividade em mera aparência. A conclusão de Hegel sobre essa ironia subjetiva pode ser resumida com a seguinte passagem: “Mas o irônico, como individualidade genial, consiste na auto-aniquilação do esplêndido, grandioso e primoroso e, assim, também as configurações artísticas objetivas também somente necessitam expor o princípio da subjetividade absoluta por si, na medida em que mostram como nulo e em sua autodestruição o que para os homens tem valor e dignidade”. G. W. F. Hegel. Cursos de Estética. São Paulo: Edusp, 2001. V. 1. p. 84. 10 Idem, p. 342.

363

como forma de autolimitação do sujeito pela forma e desta por aquele. Nas palavras de Adorno: “a antinomia entre a demanda da forma e a subjetividade liberada, o obscuro fundo de toda sua graça [da Serenata]”. 11 Mas como podemos entender o saldo musical imanente desse tipo de autolimitação, dessa manifestação dialética do senso formal schoenberguiano, de sua peculiar ironia? Para Adorno a resposta a essa pergunta pode ser aproximada ao nos voltarmos para a relação entre a particularidade da composição dos temas da peça e a concepção da totalidade de sua arquitetura. A contradição entre essas duas dimensões da composição é encarada por Adorno como o desdobramento imanente da contradição entre os impulsos expressivos da subjetividade e as demandas objetivas do material e da forma. Adorno inicia suas considerações sobre a dimensão temática da Serenata avaliando o caráter do tema da marcha introdutória, que abre o primeiro movimento, constatando o caráter fechado do mesmo, que não exige complementação e que se mostra pouco propenso a um tratamento sonatístico por meio de variações em desenvolvimento. Para Adorno, trata-se mais de um tema de rondó e que é caracterizado pelo autor como silencioso, discreto: O tema da marcha é silencioso [verschwiegen]: silencioso porque não reconhece tempestuosamente o todo, silencioso porque não reivindica pleno sentido como algo individual, silencioso também no objetivismo não patético e misterioso da sonoridade. E seu silêncio é irônico, o sujeito se cala nele e a forma se adere tão frouxamente ao material que sempre obedece labilmente à vontade subjetiva quando essa, por exemplo, abre passagem. 12

Para Adorno, ao contrário do que seria de se esperar de um tema inicial de um movimento extenso de caráter sonatístico em um primeiro movimento de uma serenata neoclássica, o tema de abertura da peça de Schoenberg é uma ideia musical que não apenas carece de um caráter afirmativo, como não apresenta uma estrutura cuja abertura reconheceria a necessidade de desdobramentos posteriores. Por isso, dirá Adorno, a seção de desenvolvimento que podemos encontrar no primeiro movimento não terá um caráter de continuação dialética, mas sim de mero contraste. 13 No entender de Adorno, essa “fragilidade” no tratamento temático da obra se estende aos demais movimentos e determina um traço formal extremamente significativo da composição, o fato de que o tema do primeiro movimento, ao não se abrir à mediação dialética com os demais temas, volte a aparecer intacto no movimento final. Se a expectativa inerente ao início da composição era a de que se ouviria uma grande arquitetura musical clássica calcada no princípio do desenvolvimento temático, por fim, devido ao modo Idem, p. 343. Idem, p. 344. 13 Ibidem. 11 12

364

específico de tratamento das relações temáticas, nos encontramos frente a uma forma que sugeriria um grande e único rondó. Nas palavras de Adorno: Depois de um quid pro quo de todos os temas, cada um dos quais quase se disfarça de outro, regressa o início, a segura marcha, como se nesse ínterim nada houvesse ocorrido. A regressão ao início que se obtém com essa repetição e que quase faz crer seja indiferente com o que na Serenata se inicia ou se conclui é talvez o símbolo maior de sua ironia. Entretanto, sorrindo retrospectivamente, permite que toda a obra apareça como um rondó: a exatidão que o arremata apenas mascara fugazmente o azar que cessa, e o hermetismo que intencionalmente se exagera permite reconhecer mais agudamente a abertura da disposição que em boa parte constitui o sentido da Serenata. 14

Ou seja, mais uma vez, contrariando nossas possíveis exxpectativas do que poderia resultar de uma recuperação dos ideais formais tradicionais associados a um gênero clássico como a serenata, isto é, a resolução da contradição entre as demandas subjetivas e aquelas objetivas postas pelo material na harmonia da forma, o resultado da concepção formal peculiarmente irônica de Schoenberg nessa peça descreve antes um movimento de reformulação radical do sentido de objetividade com que talvez estaríamos dispostos a associar com um procedimento clássico. Em última análise, na ótica de Adorno, Schoenberg pretende compor uma serenata e acaba compondo algo próximo de um grande rondó e é essa indecidibilidade fundamental entre formas e gêneros, resultante da contradição entre os elementos gerativos da peça, seus temas e sua disposição macroestrutural, o que acaba por transparecer o caráter crítico da ironia schoenberguiana, seu senso formal. A nosso ver, é a isso ao que Adorno se refere ao afirmar que a Serenata é uma peça que repousa sobre um paradoxo, ela é uma peça que em relação à forma “abre ao fechar” 15 e ao concluir que: Talvez se possa levar ainda mais adiante a interpretação desse paradoxo e deduzir que a uma música no limite não lhe é própria a finitude nas formas nem a infinitude da transcendência subjetiva, mas que, ironicamente, sua última informação deveria seguir sendo a pergunta: a pergunta na forma e mais além da forma. 16

Manter a forma como pergunta significa, nesse sentido, pretender conservar como forma a própria crítica da forma. Mas esse “desvio” via ironia não seria a única resposta que Adorno detectaria na produção da Segunda Escola de Idem, p. 345. Para Adorno o caráter de rondó da grande forma da Serenata descreve uma estrutura aberta, paratática ou não orgânico-desenvolvimentista, e, portanto fragmentária, o que fica claro quando o autor constata a ausência de um Finale na peça: “Sob esse aspecto já não se há de apreender como momento parcial estético-reflexivo, senão como necessidade concreto-musical o fato de que entre os sete movimentos da Serenata nenhum devia ser de espírito sonatístico. Finalmente, somente sob esse aspecto fica claro o enigma de por que a Serenata não tem Finale”. Idem, p. 34445. 16 Ibidem. 14 15

365

Viena ao problema de como compor formas instrumentais extensas a partir de um material pós-tonal caracterizado por sua volatilidade e aparente indeterminação harmônica. Mas mais do que no recurso às operações seriais, que logo em seguida seriam estendidas à totalidade da forma por Schoenberg no Quinteto de Sopros op. 26, seria na música atonal livre de seu então professor de composição, Alban Berg, que Adorno reconheceria o potencial de uma música ao mesmo tempo livre da tonalidade e livre dos resquícios formais clássicos, sem que com isso o sujeito musical passasse a sofrer a interferência de outro procedimento formal cuja determinação objetiva junto ao material nunca pôde ser totalmente esclarecida aos ouvidos de Adorno. BERG E A CRÍTICA RADICAL AO PSICOLOGISMO DA EXPRESSÃO MUSICAL A ideia de que a técnica dodecafônica seria o meio mais eficaz ou até mesmo consistiria na única possibilidade de se garantir a composição de formas musicais extensas no âmbito da música pós-tonal é uma ideia que recebe uma crítica indireta já no primeiro ensaio de Adorno sobre a música de Berg, o ensaio de 1925 intitulado Berg: para a estreia do “Wozzeck”. Trata-se de uma crítica indireta porque a reflexão fundamental desse ensaio consiste justamente em mostrar como Berg, desde suas primeiras obras, pôde dar uma resposta ao problema referente à composição de grandes formas musicais autônomas já no contexto da música atonal livre. Em relação à gênese de sua atividade composicional, a música de Berg surge, segundo Adorno, assim como a de Schoenberg, do enfrentamento da mesma problemática referente aos modos de relacionamento entre o material emancipado da tonalidade e as formas, porém sua resposta evindeciará uma abordagem notavelmente distinta. É isso o que Adorno quer deixar claro já no início de seu texto ao tecer algumas considerações gerais a respeito do conceito de “escola” em relação à expressão Segunda Escola de Viena, considerações estas que o levam a afirmar como devemos entender a relação entre Berg e Schoenberg. Segundo o autor, a música de Berg não pode ser entendida apenas remetendo-a aos ensinamentos e ao modelo de Schoenberg, mas só se deixa entender quando conseguimos atentar para o modo como Berg, partindo das lições sobre a técnica de composição tidas com o mestre, passa a explorar um caminho totalmente individual a partir da Sonata op.1. 17 Segundo Adorno, a essência da técnica de composição que Berg aprendera com Schoenberg é a técnica da “forma de variação”, uma técnica cuja flexibilidade e natureza dinâmica mostravam-se, desde o início, propícias para a não fixação das práticas do aluno naquela do modelo fornecido pelo professor. A primeira

17

GS 18, p. 476.

366

distinção que encontramos ao compararmos a maneira como Schoenberg tratava os procedimentos de variação em suas obras com o modo como Berg passou a fazê-lo, nos dirá Adorno, nos mostram que enquanto o primeiro se valia da variação como um modo de extrair consequências de um tema, o segundo passa a submeter o próprio tema à variação. Essa diferença crucial marcará para Adorno uma característica fundamental da música de Berg, seu desejo em dissolver ao máximo a determinidade de toda unidade musical superior, incluindo unidades já mínimas como o tema, em um contínuo temporal onde nada permanece igual a si mesmo. Tratar-se-ia, portanto, de uma radicalização dos procedimentos de variação. 18 Mas para que essa diferença entre Schoenberg e Berg emirja devemos nos questionar: como Adorno entende e expõe o que chama de variação ou forma de variação nesse texto? Em primeiro lugar a forma de variação é designada pelo autor como o meio de se atingir: (...) a economia do [aspecto] técnico ao demonstrar de maneira perspicaz que o contexto musical é controlado como modificação de algo igual; sua legalidade se esgota no material musical ou, mais precisamente: seu material não necessita nenhuma outra legalidade que a musical, e sua totalidade musical é a totalidade de referências ao tema. 19

Concebida nesses termos a “forma de variação” ou simplesmente a “variação” é o procedimento formal que instaura o contexto de sentido musical como um contexto de sentido imanente, onde o sentido de um elemento é dado unicamente pelas relações que esse elemento estabelece com os demais. Em seu ensaio de 1928 sobre o Quinteto de Sopros op. 26 de Schoenberg Adorno tecera uma reflexão sobre a relação entre a técnica dodecafônica e os procedimentos de variação que dizia respeito ao fato de que aí, nessa composição, a relação entre a forma e a serialização da escala cromática coincidia com uma radicalização do princípio da variação, que passava a determinar de modo tão completo o material a ponto de a forma de uma peça passar a coincidir com sua estrutura temática. Contudo, essa coincidência, no caso de Schoenberg, dizia respeito a uma indiferença entre o tema de sonata e a forma-sonata. 20Isto é, a referência ao tema não desaparecia completamente da prática schoenberguiana. Já no caso de Berg, Adorno afirmará o seguinte: No lugar do discreto contraste entre tema e variação, aparece a gênese dos próprios temas na variação. Cada tema da sonata [op. 1 de Berg] é ambíguo e polissêmico, arranca de si o seguinte ou aparece como sua antecipação. Todos se comportam mutuamente como variações, só que seu sistema de referência temática já não se descobre, mas permanece oculto na alocação dos temas, de modo que, captando em termos paradoxais o sentido dessa técnica, pode-se dizer que o tema das 18 19 20

Idem, p. 478. Idem, p. 477.

Schönbergs Bläserquintett (1928). GS 17, p. 140-44.

367

variações é a forma sonata enquanto quintessência de todos os parentescos intermediários. 21

Aparentemente, até esse ponto Adorno não parece estar realmente dizendo nada de novo em relação aquilo que afirmara em relação à Serenata de Schoenberg. Como vimos, o que o autor chamou de “ironia constitutiva de forma” em relação a essa peça dizia respeito justamente ao caráter ambíguo e polissêmico ostentado pelos diferentes temas da peça e pelo seu relacionamento recíproco, o que por fim levava a desestabilização da referência aos modelos formais da tradição. No caso da Serenata, isso demonstrava que o compositor não teria forçado uma adequação entre o novo material e as antigas formas impondo um princípio de organização superior ao material, o que terminava por nos impedir de predicar uma forma-sonata ou um gênero antigo da peça de Schoenberg, restando a mesma uma obra aberta e não resolvida em termos formais. Qual a diferença em relação ao proceder de Berg? A diferença essencial resulta do fato de que ao fragilizar os próprios pontos de referência estáveis representados pelos temas, Berg abre a dimensão temática para um novo regime de articulação da forma, uma forma que superaria a aparência de acidentalidade com que as referências entre os elementos musicais tendiam a se estabelecer em peças como a Serenata, ao mesmo tempo em que contornaria a necessidade de se recorrer à técnica dodecafônica como um princípio formal garantidor de coerência e compreensibilidade. Segundo Adorno, a maneira com que Berg assegura a coerência no processo de construção imanente do sentido musical com um manejo dos procedimentos de variação que passam a dissolver até mesmo a unidade mínima representada pelo tema é por intermédio de uma técnica motívica que ficaria conhecida posteriormente, na monografia de Adorno sobre o compositor, como a técnica da transição ínfima. Contudo, há que se elaborar melhor esse modo de relacionamento entre os motivos e a forma se quisermos chegar até o fundo do que Adorno está nos dizendo nesse ensaio. Porque se parássemos aqui, o motivo poderia talvez ainda ser confundido como um substituto para o tema, o que não é exatamente o que o autor tem em vista. Isso fica claro quando Adorno passa a distinguir a prática motívica de Berg daquela fornecida como exemplo paradigmático por Beethoven, mais especificamente, pelo Beethoven das Sinfonias. No entender de Adorno a esse respeito: “O movimento sinfônico de Beethoven tem seu fundamento na repetibilidade do motivo rítmico, e, por outro lado, a existência do movimento sinfônico meramente permite que o motivo rítmico se repita.” 22 Mais do que isso, no caso de Beethoven essa tensão entre o motivo e o todo não apenas estava assentada na legalidade da tonalidade como servia para produzir novamente a mesma. No contexto pós-tonal, esse modo de 21 22

Idem, p. 478. Grifo nosso. Idem, p. 479.

368

relação entre a parte e o todo se perde e acaba por forçar a mudança na função do motivo em relação à forma. No caso da música atonal de Berg, o motivo perde a possibilidade de, através da reiteração rítmica, poder funcionar como o elemento gerador de coerência e forma por excelência. Ao se referir ao motivo em Beethoven como um “motivo rítmico”, Adorno está aludindo ao fato de que no âmbito da música tonal, ritmo e altura são indissociáveis no motivo. Já no caso da música atonal abre-se a possibilidade para o ritmo se separar das alturas na formação dos motivos. Isso quer dizer que o próprio motivo, nesse último caso, assim como o tema, passa a perder seu caráter estável e repetível. Disso advém que em Berg: “O motivo irrepetível já não aparece essencialmente como rítmico. Dispensado do respeito à simetria, submetido à metamorfose [Verwandlung], contem como núcleo a figura melódica [melodische Gestalt].” 23 Comparada com um motivo tonal, a figura melódica atonal se caracteriza como uma unidade mais “abstrata”, na medida em que não se encontra mais presa à repetição de um mesmo ritmo. Sua irrepetibilidade, nesse sentido, diz respeito ao processo de reiteração ao longo da textura temática no sentido tradicional. Contudo, a figura melódica, como cerne dos motivos, possui a possibilidade de ser reiterada em outro sentido, em outra dimensão, naquela da própria estrutura temática. Apenas que aí, no caso de Berg, tal reiteração nunca será apenas a repetição inalterada das figuras, mas sempre estará já modificada pelos procedimentos de variação. Isso significa que a variação no interior da música atonal não pode ser mais entendida apenas como uma técnica de composição responsável por fornecer à aparência do movimento musical uma forma amparada no jogo de relações de identidade e não-identidade, mas deve ser pensada em relação à própria constituição do material musical mais básico a partir do qual a percepção da forma é apenas um fenômeno posterior. No caso da música atonal de Berg, o estabelecimento de um modo de composição que encara a relação entre os elementos mínimos, seus “motivos”, e a forma temporalmente extensiva nesses termos corresponde a sua peculiar concepção de sinfonismo, um sinfonismo que, como fica claro no ensaio de Adorno, não se restringe à composição de sinfonias, mas determina o caráter mais geral da música do compositor. E é em relação a esse caráter que a distinção em relação não apenas a Beethoven, como novamente a Schoenberg, se clarifica ainda mais: Neste [Schoenberg] a metamorfose motívica tem seus limites na consistência do tema. Destruído o tema fechado pela variação, para Schönberg – que a cristalizou – a metamorfose não se converte na entidade musical sustentante. Ele chega, sem dúvida, à motívica particular. No entanto, ao invés de extrair de sua transformação as forças criadoras da forma, agrupa as partículas melódicas, a princípio inclusive renunciando a qualquer trabalho motívico-temático, em temas de ordem superior (...). O fato de que Schönberg ainda conserve o tema 23

Idem, p. 459.

369

depois de sua desaparição alude à origem lírica de sua música. Toda música lírica enraíza no tema e cresce desimpedida a partir dele. Para a sinfônica, por outro lado, o tema é meramente a fachada por trás da qual se prepara a identificação entre motivo e movimento. Cai [a fachada] enquanto este [o movimento] é levado a cabo. 24

Segundo Adorno, com as Três peças orquestrais op. 6, a direção seguida por esse peculiar sinfonismo berguiano ao mesmo tempo em que afastará o compositor do mestre Schoenberg o aproximará da maneira como a questão da grande forma fora pensada por Mahler. Para Adorno, serão nessas peças que a confrontação de Berg com a tradição do sinfonismo do século XIX tomará a forma mais característica no que toca ao modo peculiar com que Berg explora os meandros da técnica de composição baseada na variação motívico-temática. Para o autor, nas Três peças a “técnica da metamorfose de Berg coincide exatamente com a mahleriana”. 25 Portanto, no que diz respeito a Mahler, Adorno sustenta que seus amplos movimentos sinfônicos também foram construídos seguindo uma tensão máxima entre um material temático de base e as grandes formas, tensão esta justamente configurada a partir do modo como as unidades materiais musicais mínimas, pensadas a partir de um trabalho composicional que vê na técnica da variação um mecanismo de desagregação antes que de aglutinação, e que geralmente resulta em uma redução ainda mais drástica que desemboca nos materiais de aparência literalmente banais presentes em sua obra. A relação que Adorno percebe entre Berg e Mahler não diz respeito, portanto, somente aos aspectos sensivelmente mais perceptíveis em relação à sonoridade compartilhados pelas suas obras, mas sim diz respeito primeiramente a uma relação referente à técnica mesma de composição. Essa relação é mais bem apreciada se levarmos em conta aqui o que dirá Adorno em seus dois ensaios de 1930 dedicados a pensar as questões formais da música de Mahler. Aí podemos ler o seguinte: O princípio da figura fundamental [ Grundgestalt], enquanto unidade temática latente que quase nunca se revela, às vezes apenas reluz no contexto superficial do todo: esse princípio construtivo, que é o primeiro que verdadeiramente violou o direito da superfície formal dada de antemão já se encontra essencialmente desenvolvido em Mahler, e é aqui, não no âmbito melódico-harmônico ou instrumental, tampouco em uma lendária fácil compreensibilidade (...) aonde se encontra sua autêntica atualidade. 26

Seis anos após esse texto, Adorno introduzirá então o conceito de variante para distinguir esse tipo de trabalho de variação temática, que não possui como modelo de base um tema no sentido forte, mas que se exerce justamente com o Idem, p. 459-60. Idem, p. 461. 26 Mahler Heute (1930). GS 18, p. 232. Grifo nosso. 24 25

370

intuito de impedir que unidades de coerência de ordem superior como os temas se estabeleçam como o ponto de partida e de referência última do sentido musical da forma, do sentido tradicional de trabalho temático: Se se quisesse ousar expressar em uma palavra a lei formal da música de Mahler – essa totalidade extensiva que se subtrai à fórmula anatematizadora mais radicalmente que qualquer outra -, esta lei poderia chamar-se variante. (...) sua variante não conhece, como a variação, um modelo estabelecido e formalmente peremptório, pelo qual se provaria mediante intervenções dialéticas. Seu intento de evasão do espaço musical burguês se realiza tecnicamente melhor ao quitar a validade do tema como objetivação, como coisa musical em certa medida. Este é reduzido a escombros, àquelas banalidades que tanto enfastiam a todo gosto medíocre; os escombros do mundo das coisas, mas arrojado ao rio de lava da intenção, com o que perdem qualquer forma em si endurecida. 27

É importante notarmos que o que Adorno afirma nessas passagens não corresponde a dizer que Mahler partiria, acolheria ou usaria materiais oriundos de fontes musicais banais como a “música popular” como inspiração inicial ou referência básica de seus movimentos sinfônicos. Pelo contrário, é de uma reflexão sobre o problema formal próprio ao gênero sinfônico, uma reflexão que tradicionalmente se estabelecera como intimamente dependente do relacionamento recíproco entre unidades materiais como os temas, os motivos, etc, e a totalidade estrutural da forma, que sua “solução” é encontrada junto à reconcepção do papel mediador ocupado pela técnica de composição baseada na variação motívico-temática. Essa reconcepção inverte o sentido habitual com que o trabalho temático havia sido pensado tradicionalmente, isto é, como o meio através do qual o conjunto de relações ao tema é estabelecido como a forma. A técnica da variante diz respeito justamente a essa inversão, ao fato de que ao invés de compor a totalidade das relações materiais, o trabalho temático passa a ser exercido como o mecanismo através do qual o material musical altamente articulado da tradição clássica, e no caso de Mahler também o material “popularfolclórico”, pode ser decomposto. A aparência de banalidade resultante do tratamento dispensado por Mahler ao material advinha diretamente da tonalidade. Não são unicamente seus temas o que de fato estão sendo caracterizados como banais por Adorno, mas suas figuras fundamentais, e essas, como se pode depreender da citação acima, não são legíveis ou audíveis enquanto imediatamente temáticas. Banal aqui se refere antes de qualquer coisa ao fato de que o material estrutural básico que serve de ponto de referência “oculto” aos temas corresponde a relações tonais elementares e “abstratas”, como os intervalos de terça ou de quinta, por exemplo. Já no caso da música atonal, a aparência de banalidade do material desaparece ao mesmo 27

Marginalien zu Mahler (1936). GS 18, p. 235-36.

371

tempo em que a tonalidade, contudo o caráter simples e abstrato em termos temáticos das figuras fundamentais continua a existir. Antes do termo Grundgestalt tender a ser associado exclusivamente à serie de doze sons, conjuntos menores de notas que a escala cromática e mesmo aspectos ainda mais abstratos do material puderam servir como repositório formal para a tessitura das relações musicais de uma peça e cumprir, dessa maneira, a função de mediação entre unidades musicais maiores como os temas. Isso fica claro quando Adorno reflete sobre o conceito de figura fundamental em um ensaio de 1927 sobre as Seis Peças para Orquestra op. 16 de Schoenberg. O problema colocado por essas peças de Schoenberg seria a de conjugar a pequena forma da peça de caráter com uma textura polifônica amparada em processos de variação e desenvolvimento temáticos. Ou seja, aqui a justificativa da desvalorização do substrato temático em direção às figuras fundamentais virá da própria ideia da peça. Nesta, dirá Adorno: “A técnica da variação de Schönberg se mantém, certamente, como princípio de desenvolvimento. Mas a brevidade da forma assimétrica, posta como algo único, impede a ampla e autônoma apresentação dos temas (...)”. 28 As figuras básicas das peças orquestrais serão comparadas por Adorno à série dodecafônica em termos de função. No entanto, tais figuras se distinguirão das posteriores séries em que, além de não serem formadas pelas doze notas da escala cromática, consistem na maioria das vezes em meras estruturas intervalares. E, o que é mais importante, as figuras não perfazem uma técnica propriamente dita, mas consistem apenas no material de base a partir do qual as unidades de ordem superior, como as melodias mais amplas, os “temas” das peças, são compostos. Vale a pena reproduzir o exemplo musical fornecido por Adorno nesse ensaio. Como se pode observar no exemplo abaixo, cujo procedimento de análise é da mesma natureza do que será realizado no livro sobre Berg, as figuras fundamentais consistem em grupos de notas cuja estrutura intervalar pode ser mantida invariável através das inversões, transposições e retrogradações, mas que também podem ser manipulados de modo mais livre através de permutações entre suas notas, o que evidencia que para Adorno a fixação da ordem das notas aqui não representava um tabu. 29 Ao mesmo tempo essas figuras servem como Schönberg: Fünf Orchesterstück, op.16 (1925). GS 18, p. 336. Várias das figuras apontadas por Adorno correspondem a inversões e retrogradações literais umas das outras. Contudo, em alguns casos uma figura que corresponde a uma variação do contorno de outra figura anterior é considerada pela notação de Adorno como a mesma figura, o que acaba por relativizar até mesmo a estrutura intervalar dos grupos como o aspecto invariável do processo. Por exemplo, a quinta ocorrência de 2a, no contra-fagote, compasso 3 do primeiro exemplo (na numeração de Adorno pentagrama 2), varia a estrutura intervalar de 2m + trítono das ocorrências anteriores de 2a para outra que compreende uma 4J + 2M. Nesse caso, teríamos uma retrogradação do contorno de uma figura sendo tomada como ainda constituindo uma variação da mesma figura 2a. Outro caso importante que nos leva a não sobrevalorizar a importância da fixação da estrutura intervalar na determinação das figuras fundamentais para 28 29

372

elementos de coesão no interior de unidades melódicas mais amplas (não necessariamente temas, mas figurações mais longas, por exemplo). Contudo, raramente são ouvidas como elementos temáticos no sentido tradicional, isto é, dificilmente podemos tomá-las como ponto de referência auditivo, no sentido de identidades razoavelmente fixas às quais podem ser remetidas o produto da variação.

Exemplo de Grundgestalten nas Cinco peças orquestrais op. 16 de Schoenberg. 30

Se voltarmos agora ao ensaio de 1925 sobre Berg, podemos ver que o que Adorno situará como o modo característico de conceber os procedimentos de variação por parte do compositor pode ser entendido como uma extensão do que Schoenberg realizara no âmbito das peças de caráter op. 16 para o domínio de grandes estruturas sinfônicas. Percebamos que antes Adorno sublinhara o afastamento de Berg em relação a Schoenberg no que diz respeito ao modo de tratamento do problema das grandes formas. Isso não quer dizer que a reflexão sobre a técnica composicional feita por Berg não possa se encontrar com a reflexão de Schoenberg em peças como aquelas do op.16. Não devemos encarar o afastamento de Berg em relação a Schoenberg como uma separação absoluta. Adorno é o da figura 3a, que consiste na verdade em uma nota repetida, o que faz com que aqui, ao contrário do que ocorrem na maioria dos demais casos, o ritmo tenha peso na determinação da figura. Por fim, o exemplo 4 ao conter uma passagem inteira feita de acordes classificada como 1c, sendo esta figura posteriormente identificada com a estrutura intervalar de 3M + trítono, estrutura que não esgota as possibilidades de interpretação daquela passagem, também aponta para a relativização da fixação da ordem da estrutura intervalar. 30 Idem, p. 339. Imagem retirada da versão digital das Gesammelte Schriften.

373

Inclusive isso é o que podemos depreender também do ensaio de 25 em cuja parte final o argumento de Adorno dialeticamente passa a explorar então aquilo que finalmente aproxima Berg de Schoenberg, que por sua vez será o mesmo que acabará por afastá-lo de Mahler. É a partir desse ponto de sua reflexão que o modo berguiano de encarar o problema da grande forma passa a se comunicar com a crítica ao psicologismo musical levado a cabo por Schoenberg desde o princípio. Assim como em Schoenberg a liberação da expressão musical da esfera do psicologismo fora localizada junto ao rompimento com a tonalidade, também em Berg essa liberação descreverá o pressuposto fundamental da reviravolta em relação ao modo como tradicionalmente vinha sendo pensado o relacionamento entre o sujeito e o material musical através do trabalho temático amparado nos procedimentos de variação: A partir do momento em que a harmonia pontual e seu correlato formal construtivo se emancipam do domínio da expressão psicológica sob a vontade construtiva, se produz uma reviravolta. Os componentes formalmente constitutivos, cuja objetividade o individualismo psicológico conservava de maneira desfigurada, se fundem. Mas o indivíduo explosivo deixa de ser meramente indivíduo. Este se libera da limitação da esfera da má individualidade porque escapa da coerção de representála. Aqui Berg separa-se historicamente de Mahler, com quem está essencialmente aparentado, e sua decisão por Schönberg se faz visível como livre escolha. Apenas essa escolha, a abjuração do psicologismo por meio de sua consumação, fundamenta a consumada economia técnica. 31

Imbricam-se aqui, portanto, a dissolução da tonalidade e a dissolução do sentido tradicional do trabalho temático em relação à aparência de totalidade da forma musical, aparência esta que sustentava o psicologismo da expressão musical como a função ideológica de auto-representação do Eu musical em sua relação com as formas. Esse giro em relação ao sujeito musical coincide com a compreensão de que essa função dependia da não problematização do caráter objetivo ostentado pelas formas musicais tradicionais. Levados a seus pontos de inflexão, a tonalidade e o trabalho temático pensados como dispositivos de representação e constituição das relações musicais imanentes desembocam na crítica ao déficit objetivo de toda a lógica da expressão musical. Isso equivale à percepção de que os ideais formais e as formas tradicionalmente aceitas como objetos da composição musical perdem sua legitimidade. Ao fim desse processo crítico, restam como saldo as ruínas da objetividade e da subjetividade, que não desaparecem simplesmente. Frente a esse panorama, a imanência do trabalho composicional, aquilo que Adorno chamou de “economia técnica consumada”,

31

Idem, p. 482.

374

“exige a responsabilidade da pessoa em vista das formas caoticamente feitas saltar em pedaços. Seus escombros são sua matéria; seu objeto está oculto”. 32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W.. Musikalische Schriften I-III. In: Rolf Tiedemann (Ed.). Gesammelte Schriften 16. Frankfurt: Suhrkamp, 2003. ______. Musikalische Schriften IV. In: Rolf Tiedemann (Ed.). Gesammelte Schriften 17. Frankfurt: Suhrkamp, 2003. ______. Musikalische Schriften V. In: Rolf Tiedemann (Ed.). Gesammelte Schriften 18. Frankfurt: Suhrkamp, 2003. ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia: Ateliê, 2007. EISLER, Hanns. Der musikalische Reaktionär. In: Arnold Schönberg zum 50. Geburtstage, 13. September 1924. Sonderheft der Musikblätter des Anbruch, 6. Jg., August-September-Heft 1924. p. 312. Disponível na página do Arnold Schönberg Center: http://www.schoenberg.at HEGEL, G. W. F. HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2000. 1° vol. MESSING, Scott. Neoclassicism in music: From de genesis of the concept through the Schoenberg/Stravinsky polemic. Rochester: University of Rochester, 1996. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. ______. Nietschze e a ironia em música. In: Cadernos Nietschze 21, p. 7-28. STEIN, Erwin. Nouveaux principles formels. In: H. H. Stuckenschmidt (Ed.). Musique nouvelle. Paris: Buchet/Chastel, 1956.

32

Ibidem.

375

EMBASAMENTO FILOSÓFICO PARA UMA DERIVAÇÃO CONCEITUAL DA ANÁLISE SCHENKERIANA Ivan Chiarelli Monteiro [email protected] Instituto de Artes – UNESP Resumo: Minha pesquisa de mestrado investiga a aplicação da análise memética – defendida por Steven Jan em seu livro “The Memetics of Music” (Surrey/UK: Ashgate Publishing, 2007) – à música contemporânea. Ao discutir tal proposta de análise, faz-se necessário preencher certas lacunas no pensamento proposto pelo autor, bem como responder a questionamentos apresentados pela semiótica sobre a validade da memética como campo de pesquisa. O presente artigo busca apresentar uma possível solução para tais deficiências, partindo de uma análise comparativa entre memética e semiótica, realizada por Erkki Kilpinen, para então contrapôr as visões de Richard Dawkins e Susan Blackmore (autores proeminentes da memética) às proposições de Terrence Deacon. Este artigo também faz uma breve descrição da obra Der Jahreslauf, de Karlheinz Stockhausen, que é objeto de análise de minha pesquisa de mestrado. Palavras-chave: memética musical; semiótica musical; Karlheinz Stockhausen; Der Jahreslauf.

INTRODUÇÃO Meu objeto de pesquisa para a dissertação de mestrado é a aplicação da análise memética à música contemporânea. Tal análise, como apresentada por Steven Jan (JAN, 2007), se utiliza da metodologia analítica de Heinrich Schenker para estudar as replicações de ideias musicais, tanto internamente (dentro da própria obra) quanto externamente (entre a obra e uma ou mais peças do repertório de referência). Por conta disso, é necessário aplicar a ferramenta tal qual ela foi concebida ou, na impossibilidade de tal feito, da forma mais aproximada possível, considerando o objeto não-tonal de análise: a obra Der Jahreslauf, de Karlheinz Stockhausen (1977). Embora as diversas versões da partitura tenham sido unificadas naquela publicada no catálogo do compositor, a gravação de referência utilizada é aquela da versão de concerto, gravada em 19791. Há dois problemas centrais nessa pesquisa. O primeiro, referente à memética e seu status como ciência, objeto de discussão deste artigo; o segundo,

A primeira gravação da obra foi feita em Colônia, em fevereiro de 1979, e pode ser ouvida no volume 29 da discografia do compositor, a ‘Stockhausen Complete Edition’. 1

376

relacionado à aplicação da análise schenkeriana a um repertório não tonal, não será endereçado neste trabalho. O foco deste artigo é o debate filosófico entre a memética e a semiótica. Minha intenção é propor um contraponto à argumentação de Steven Jan, com base no entendimento de Terrence Deacon da memética como teoria específica do processo de semiose, ampliando as possibilidades de aplicação da metodologia apresentada por Jan em seu trabalho. COMPLEMENTAÇÃO DE PARES: MEMÉTICA E SEMIÓTICA De forma resumida, a memética é uma abordagem neo-darwiniana que estuda a cultura como produto de replicação e estabelecimento de padrões, que emergem por meio dos memes e suas relações, vistos como os blocos fundamentais da cultura humana. Richard Dawkins (DAWKINS, 2006, p. 192), criador do termo, assim definiu o meme em 1976: Exemplos de memes são: melodias, ditos espirituosos, roupas, moda, maneiras de se fazer jarros ou de construir arcos. Da mesma forma que genes se propagam no ‘pool’ genético ao saltarem de corpo em corpo por meio de espermas ou óvulos, também os memes propagam no pool memético ao saltarem de cérebro em cérebro via um processo que, num sentido mais amplo, pode ser chamado de imitação. Se um cientista ouve uma boa idéia, ou lê a respeito dela, ele a transmite para seus colegas e alunos. Ele a menciona em artigos e palestras. Se a idéia cria raízes, pode-se dizer que ela propaga a si mesma, espalhando de cérebro em cérebro.2

A elaboração é uma proposta acerca de diferentes tipos de replicantes fora do campo genético. Assim como o gene seria uma unidade biológica de informação, um meme seria uma unidade cultural informação, e estaria sujeito à um processo de replicação análogo ao de seu “parente” biológico. Além de Dawkins (biologia), muitos autores exploraram as potencialidades do paradigma memético em diversas áreas do conhecimento, entre eles Daniel Dennett (cognição e filosofia), Aaron Lynch (matemática), Richard Brodie (computação), Steven Jan (música) e Susan Blackmore (psicologia) – esta última sendo responsável pela extensão da definição do meme a "qualquer tipo de informação que é copiada de uma pessoa à outra" (BLACKMORE, online), afirmando que

Em tradução livre de: “Examples of memes are tunes, ideas, catch-phrases, clothes fashions, ways of making pots or of building arches. Just as genes propagate themselves in the gene pool by leaping from body to body via sperms or eggs, so memes propagate themselves in the meme pool by leaping from brain to brain via a process which, in the broad sense, can be called imitation. If a scientist hears, or reads about, a good idea, he passes it on to his colleagues and students. He mentions it in his articles and his lectures. If the idea catches on, it can be said to propagate itself. spreading from brain to brain.” 2

377

memes não são uma variação cultural do gene, mas sim que ambos são diferentes instâncias de entidades replicantes. Aplicado à música por Jan, o conceito proposto por Dawkins se converte em uma análise de padrões que visa estabelecer processos de replicação de unidades culturais (ou, mais precisamente, sonoras) internos e externos à uma determinada obra3. Tais unidades poderiam tomar a forma de fragmentos melódicos, harmônicos ou rítmicos, motivos musicais, cadências harmônicas, ou outros elementos constituintes da construção musical, de tal forma que sua manutenção e perpetuação seriam os responsáveis pelo surgimento de escolas composicionais, estilos e mesmo gêneros musicais. O autor se vale da análise schenkeriana para encontrar relações entre os materiais musicais utilizados na obra, recorrendo à análises em camadas para identificar o uso de ideias em diferentes planos, ‘foreground’, ‘middleground’ e ‘background’. Essas camadas são atingidas por meio de reduções graduais de elementos musicais, de forma a remover as informações ornamentais, até que reste apenas a estrutura da obra. Jan (JAN, 2007) elaborou uma metodologia analítica4 que estuda seu objeto em uma estrutura piramidal, dividida em aspectos contextuais da obra (leis universais da produção sonora, regras de referência e dialetos de gênero ou de época) e elementos particulares da obra (idioleto de um dado compositor, estilo de um determinado período da obra do compositor e estilemas5 de um trabalho em particular no conjunto de obras de um determinado compositor). Dada a implicação de elementos estruturais e culturais, podemos dizer que a estrutura proposta por Jan se divide em duas esferas: os elementos contextuais e pessoais da obra, onde as informações contextuais são aquelas pertinentes a todo um contexto de produção musical, acessíveis a virtualmente qualquer pessoa com

Em JAN (2000). Replicação interna: a multiplicação de padrões em diferentes estratos dentro de cada composição, ou seja, o micro-universo musical elaborado a partir do material sonoro utilizado em cada peça; Jan utiliza o termo “structural hierarchies” (hierarquias estruturais). Replicação externa: a replicação de padrões de diferentes estratos externos à própria obra, ou seja, a relação da obra com aspectos do macro-universo musical pertinentes ao seu discurso. Jan utiliza o termo “cultural hierarchies” (hierarquias culturais). 4 JAN, 2000. "(...) Such a viewpoint may be used, it is argued, to unify, under a systematic new paradigm, understanding of both local issues of musical structure and organization, and global issues of musical style configuration and its diachronic change". O autor utiliza a sequência leis > regras > dialetos > idioma > estilo > estilo de obra. No entanto, considerando que a língua portuguesa entende “idioma” como uma maneira de falar de um grande grupo, “dialeto” como uma variante de um grupo menor, e “idioleto” como a maneira de um indivíduo falar, optei pela seguinte estruturação: leis > regras > dialetos > idioleto > estilo > estilema (ver nota 5). 5 Faço uso, aqui, do conceito de estilema na obra de Umberto Eco. Para ele, estilemas são unidades mínimas definidoras de um estilo. Levando em consideração que: 1) o termo “estilo” já foi utilizado em relação àquilo que define as obras de um determinado período na vida de um compositor, em parte ou em sua totalidade; e 2) a noção de Eco implica uma unidade mínima; me parece que as características que dão unidade à uma obra individual se inscrevem dentro de tal conceito e substituem o termo “estilo interno à obra” utilizado por Jan. ECO, Umberto. Apocalíticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008, pg. 90 3

378

acesso àquele repertório; e as informações pessoais são aquelas relativas ao compositor como indivíduo, que realçam suas singularidades como criador.

Quadro detalhando as camadas de análise abarcadas pela análise memética (a partir de JAN, 2000)

No entanto, há um problema na argumentação da memética em sua aplicação à música: memes sugerem uma relação com a biologia. Como o som é algo pré-biótico e pré-linguístico, não é possível supor a existência de regulamentações culturais da produção sonora (um fenômeno físico), sendo necessário que o vejamos, na música, como produto cultural. Isso significa que somos nós, organismos dotados de sensores orgânicos e processamento cognitivo, quem lhes infundimos tanto emoção quanto significado (O’GARA, 2011, online). Ao apreendermos a música como som no tempo, encadeamos informações e buscamos padrões, memorizando percursos sonoros de uma maneira semelhante àquela do fruidor de uma narrativa verbal (tanto em sua forma escrita como em sua forma oral), impregnando aquilo que ouvimos com nossas vivências intelectuais, emocionais e psicológicas6. Embora Jan seja um dos poucos teóricos da memética musical, me parece que o autor ignora tal infusão de significado ao som, ou a restringe apenas à harmonia – o que é razoável, já que seu principal objeto de estudo é a música dos séculos XVIII e XIX, onde a organização musical é estruturada tendo a harmonia como principal mediadora de informação, uma vez que o discurso se dá entre relações de frequências e ritmos. No entanto, não é apenas o trabalho de Jan que faz um recorte deficitário. A memética também é contestada como campo estudo, particularmente pela semiótica7 (KILPINEN, 2008): sua elaboração carece da abrangência de uma teoria geral, bem como da profundidade de uma abordagem 6 7

Extrapolando a partir de BOYD, 2009. Para uma comparação mais detalhada entre memética e semiótica, ver KILPINEN (2008).

379

específica; ao mesmo tempo, seus principais teóricos (particularmente Dawkins e Blackmore) ignoram as discussões sobre a transmissão de informação no âmbito das ciências sociais8. AGÊNCIA E IMITAÇÃO Terrence Deacon (DEACON, 2004, p. 3) relaciona quatro problemas centrais à teoria do meme: 1. Memes parecem ter uma fidelidade de cópia insuficiente para poderem evoluir. Esse problema incomoda geneticistas desde antes da descoberta da base molecular da informação genética porque, se as unidades de informação herdadas pudessem se misturar ou graduar umas às outras, a evolução rapidamente regrediria e pararia. Qualquer informação seria rapidamente eliminada e desvios sutis nunca acumulariam. 2. Ninguém sabe como um meme é, fisicamente. Dawkins e outros autores falam de memes como informação e, em muitos contextos, escritores frequentemente substituem o termo ‘meme’ por ‘ideia’, já que memes são definidos como qualquer coisa que é passada quando algo é copiado de uma pessoa por outra, direta ou indiretamente. Isso é evidente quando autores descrevem memes com frases tais como “ideias começam a ter ‘vida própria’” e “uma unidade de informação residindo no cérebro”; também é evidente pela pletora de termos quase sinônimos (por exemplo: traços culturais, genes culturais [culturgens], corpúsculos de cultura), bem como pelos desacordos sobre o que se qualifica como meme: apenas a informação copiada ou qualquer característica cultural transmissível. 3. Há dificuldade em se chegar a um acordo sobre quão grande uma unidade precisa ser para merecer o nome ‘meme’. É tão pequena quanto uma palavra ou morfema (unidade raiz de significado que constitui uma palavra) ou um tipo de alça num jarro; ou tão grande quanto uma linguagem ou uma tradição religiosa? 4. Finalmente, há questionamentos sobre se existe um paralelo memético para a distinção genótipo/fenótipo em biologia. Por exemplo: uma receita é um meme e o bolo, seu femótipo9 (fenótipo memético)? A apresentação de uma música é um femótipo da ideia lembrada de uma canção? Em última instância, estes questionamentos se referem a duas características da teoria memética: 1) a agência ativa do meme, que implica que Jahoda, Gustav (2002). “The ghosts in the meme machine”. History of the Human Sciences, 15 (2): 55-68. Apud KILPINEN, 2008. 9 Na teoria memética, os femótipos estão para o meme da mesma forma que os fenótipos estão para o gene. 8

380

toda a produção intelectual e cultural seria um subproduto passivo; e 2) a imitação como base operativa do meme, ignorando que toda imitação pressupõe algo a ser imitado. Tanto Dawkins como Blackmore endereçam tais questões10, mas as consideram como algo que pode ser ignorado total ou parcialmente – pelo menos até que se estabeleçam as bases materiais para a memética. Como Deacon, não estou convencido de que tais problemas possam ser postergados sem que se perca a base legítima para uma ciência memética. A semiótica vê a memética como uma diluição da teoria peirceana, abordando o mesmo tema de forma muito mais superficial (KILPINEN, 2008). O fato de Dawkins e muitos outros estudiosos da memética cerrarem fileiras em torno das ideias de replicação do meme e deste como um reprodutor com vontade própria (que, de alguma forma, controla seus femótipos), apenas aprofundou a divisão estre estes dois campos. Seja como for, por uma questão de brevidade descritiva ou de convicção acadêmica, ambos os conceitos centrais da memética são profundamente questionáveis – o que não quer dizer que estejam de todo errados. Talvez o enraizamento dos memes na cultura – particular mas não especialmente na cultura popular – tenha sido responsável por sua manutenção como tópico de pesquisa, apesar da resistência de áreas mais estabelecidas. Porém – e em concordância com Deacon – acredito que sua resiliência se deva justamente por oferecer uma alternativa, ainda que mal enunciada, a um dilema da semiótica: “ela [a memética] endereça o processo de semiose, ou seja, a lógica dinâmica de como surgem os constituintes simbólicos e o concretos da cultura, como assumem as formas que têm, e de como evoluem e mudam com o passar do tempo.”11 O cerne da teoria memética é o conceito de gene egoísta (Dawkins, 2006, pp. 44-45), em que os memes são os agentes da replicação e a cultura, apenas um reflexo de sua agência. No entanto, “é o conteúdo de informação que define um replicante, não seu material ou encarnação energética.”12 – e o que é considerado informação depende de contexto. Alguns aspectos do processamento de informação em sistemas biológicos não podem ser tratados como derivações do conceito de replicante. Tal deslocamento de agência dá a entender que replicantes podem ser entendidos sem que se leve em consideração o sistema em que estão inseridos, e que os impregna com suas funções e conteúdo informacional. Sem Em BLACKMORE (2000) e DAWKINS (2008). DEACON, 2004, p. 4. Em tradução livre de: “It addresses the process of semiosis, i.e., the dynamical logic of how the symbolic and concrete constituents of culture arise, assume the forms they assume, and evolve and change over time. This ambitious promise can only be met, however, if the problems with memetic theory are remedied and if a synthesis within a broader semiotic theory can be realized.” 12 Idem, ibid, p. 5. Em livre tradução de: “It is the information content that defines a replicator, not its material or even energetic embodiment.” 10 11

381

esse contexto, a função e riqueza informativa se perdem, como uma cadeia de DNA isolada de seu ambiente. Se assumirmos que memes não são responsáveis por sua própria agência, não residem em cérebros, nem são capazes de afetar sua própria replicação (como não o são as cadeias isoladas de DNA, exceto em exames PCR13), temos que memes são signos – ou melhor, o que Peirce define como representamens14. Mesmo considerando a questão do ponto de vista de Dawkins e Blackmore, e utilizando sua terminologia, o meme não existe se não houver duas mentes que possam hospedá-lo. Assumindo que tais mentes sejam humanas (o que não equivale a dizer que outras espécies animais não tenham suas próprias culturas e, portanto, capacidade de criar, hospedar e transmitir memes15), é nossa extrema sociabilidade, nossa qualidade de animais hipersociais, que nos permite criar cultura de formas tão diferenciadas a partir de elementos em comum – cultura essa que é um contexto informativo, sem a qual qualquer dado informacional não tem sobre o que agir. Se isolado da cultura em que se insere, um meme é inerte e, portanto, não pode ser um agente ou autômato ativo. Embora isso não impeça sua tradução em um outro contexto, sua ressignificação se dará com base nos elementos constituintes desse novo “hospedeiro”, e o meme perderá sua integridade original, adaptando-se ao novo ambiente. Tal adaptação, no entanto, não é de todo equivalente à adaptação de organismos biológicos à diferentes ambientes. Falando do ponto de vista da música, o fato de uma determinada entidade sonora (um acorde, por exemplo) ser encontrado em obras musicais oriundas de culturas diferentes não implica que esta tenha a mesma função em ambas as composições. O processo evolutivo não conserva o meio físico, mas sim a informação contida neste, como bem ilustrado pela biologia. Não é a molécula genética que é transmitida, mas sim as informações e instruções presentes no DNA, o que equivale a dizer que tanto genes como memes não são replicantes, mas réplicas que manipulam elementos padronizados à revelia de sua interpretação enquanto símbolos, mas ainda produzem resultados que correspondem a operações simbólicas (DEACON, 2004, p. 6).

A reação em cadeia da polimerase (Polymerase Chain Reaction, ou PCR) é a técnica que permite a ampliação do DNA ou RNA in vitro, utilizando uma reação enzimática catalisada pela enzima polymerase. Utilizado para diagnóstico e prognóstico dos campos da microbiologia, oncologia, imunologia, hematologia e genética. 14 “A REPRESENTAMEN is a subject of a triadic relation TO a second, called its OBJECT, FOR a third, called its INTERPRETANT, this triadic relation being such that the REPRESENTAMEN determines its interpretant to stand in the same triadic relation to the same object for some interpretant." PEIRCE, Charles S. Lowell Lectures 1903. Collected Papers of Charles Sanders Peirce, v. 1, paragraph 540. 15 A esse respeito, ver BOYD, Brian. On the Origin of Stories. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009. Sua obra inclui uma detalhada relação de pesquisas sobre outras espécies animais que apresentam comportamentos culturais, ainda que incipientes. 13

382

Estamos todos familiarizados com o fato de que, em diferentes contextos interpretativos, as mesmas palavras tipográficas ou frases faladas podem funcionar de forma bastante diferente. Isso pode ser verdade em homófonos utilizados em diferentes sentenças ou em cognatos em diferentes línguas, que divergiram, historicamente, em suas denotações e conotações enquanto suas formas tipográficas e fonológicas permaneceram iguais. Isso também é evidente em genética: sequências de genes homeóticos, que contribuem para a montagem embriogenética de cabeças e cérebros em moscas têm contrapartes quase idênticas em seres humanos. Tanto que a inserção de gene humano correspondente, em moscas que sofreram mutação, pode restaurar o desenvolvimento normal da cabeça da mosca parcialmente. Porém, note-se que isso não produz cabeças humanas (como no paralelo da ficção científica). A similaridade sequencial entre espécies (e a evolução de um ancestral comum) é essencial à essa função, mas a informação é interpretada no contexto da mosca.16

Deacon resume da seguinte forma: índices são constituídos por relações entre ícones (sendo, portanto, re-presentações, literalmente “apresentados novamente”) e símbolos são constituídos por relações entre índices (logo, representações duplamente indiretas). Interpretar qualquer signo é, em última instância, analisar sua base icônica constituinte; nesse nível analítico, a mímese pode ser vista tanto como o modo primário de transmissão de informação quanto como a base interpretativa. Em termos evolucionários, essas duas relações (replicação do padrão significante e sua transcrição em algum outro meio e com respeito à alguma adaptação sistêmica) se sobrepõem ao explicarem formas evoluídas. A seleção natural favorece informação genéticamente codificada que, de alguma maneira, internalize características críticas do contexto ambiental de um organismo e que afetem sua replicação. Logo, uma adaptação é um tipo de mapeamento interno de alguma característica ambiental relevante; e sua manifestação externa (material), algo que afeta a probabilidade da sequência de DNA, que gerou tal adaptação, ser reproduzida alhures. Dessa forma, a adaptação é explicada pela replicação do gene e vice-versa, num processo complexo de interdependência. Sem qualquer adaptação, ainda que indireta, genes não possuem informação; sem algum substrato que incorpore e replique as informações implícitas na adaptação, não há nada a que se adaptar. De forma semelhante, em semiótica, a DEACON, 2004, p. 5. Em tradução livre de: “We are all familiar with the fact that in different interpretive contexts the same typographical words or spoken phrases can function quite differently. This can be true of homophones used in different sentences or of cognates in different languages that have historically diverged in their denotations and connotations while their phonological or typographical forms have remained the same. In genetics this is also evident. Gene sequences (homeobox genes, for example) that contribute to the embryogenetic assembly of heads and brains in flies have almost identical counterparts in humans, so much so that inserting the human gene into mutated flies with the corresponding gene damaged can partially restore normal fly head development. But notice, that it does not produce human heads (as in a science fiction parallel). The cross-species sequence similarity (and evolutionary common ancestry) is essential to this function, but the information is interpreted in a fly context.” 16

383

significância de um signo está amparada nas consequências do sistema de hábitos e disposições interpretativas que gera e pelo qual é gerado. Signos (memes) não competem por espaço na memória humana, eles agem como marcos físicos, competindo por representação na mídia física dos sistemas semióticos que nos cercam17. O meme é o locus físico onde as funções replicativas e adaptativas se encontram. As informações que constituem essas funções não está nesses loci, mas sim nas relações que existem entre o padrão da unidade física e o sistema em que está embutida. Isso resolve certas questões relacionadas ao meme (DEACON, 2004, p. 7): ● Ele é um tipo ou forma de artefato e não algo insubstancial – no caso da música, toda e qualquer forma de registro, que sirva para comunicar a informação sonora, seja ela de qualquer natureza; ● Seu conteúdo informacional não é intrínseco, mas um padrão físico que

pode ser copiado para e mapeado nas relações funcionais de outros sistemas – embora as técnicas de produção de som sejam bastante características e quase únicas em cada instrumento, a produção de determinada entidade sonora deve poder ser “traduzida” de um instrumento para outro (com possível perda de informação), como no caso de orquestrações de peças para piano; ● Ele transmite informação por meio de replicação direta desse padrão, ou ao

fazer com que esse padrão seja re-expresso (transcrito) em termos de características de alguma ordem maior – como no enunciado acima, a transcrição de um meio para outro (sejam esses meios instrumentos, sistemas ou estilos musicais) deve ser possível, ainda que com perda de informação ou significado; ● Suas fronteiras físicas tampouco são intrínsecas, mas uma função do

processo interpretativo em que é “recrutado” (como acontece com o DNA), embora um artefato que seja físicamente delimitado ajude uma interpretação delimitada. Posto que esse meio tem suas próprias características físicas e de cópia, irrespectivas de conteúdo informacional, esses limites físicos afetam as maneiras com que a informação transportada evolva – a transcrição em outros meios será mais ou menos bem-sucedida de acordo com o grau de similaridade entre eles. MUDANÇA DE PARADIGMA

De certa forma, pode-se argumentar que uma união entre a semiótica (como teoria geral) e a memética (como teoria de processo semiótico) levaria o estudo da transmissão de informação a algo de proporções semelhantes à Teoria-M na física. 17

384

Logo, a memética musical como proposta por Jan não poderia ser o cerne motriz de toda criação em música, já que “se a ação humana fosse mera imitação, isso extirparia sua conexão com o ambiente que a cerca, e isso seria um pecado imperdoável – ao menos do ponto de vista evolucionário – já que justamente o ambiente é o ‘juiz rigoroso’ (Dawkins) que decide se um ser, com seus genes e memes, deverá sobreviver ou não.”18. Meu ponto de vista, por outro lado, é mais consonante com aquele explicitado por O’Gara (2010): as fundações matemáticas e organizacionais da composição musical teriam origens arquetípicas, não meméticas19. Se assumirmos como corretas as afirmações de que o som antecede a biologia; que somos nós quem infundimos significado aos sons; e que um meme é algo físico que transmite informação (como a notação de uma partitura); logo, no contexto da música pós-moderna, pós-serial e influenciada (direta ou indiretamente) pelo pensamento da ‘musique concrète’ e da 'elektronische musik', não seria razoável argumentar que o som, a materialidade sonora de tais entidades musicais, se torna o principal mediador de informação? Para isso, é necessário observar o som por aquilo que é: uma somatória de frequência, timbre (instrumento, técnica instrumental e dinâmica) e ritmo (em maior escala, padrões ritmicos; em menor escala, a harmonicidade ou inarmonicidade de cada entidade sonora, ou seus padrões intervalares), avaliada mediante parâmetros culturais que estão sujeitos à materialidades distintas. Essa mudança paradigmática, assumindo a memética como um conceito que endereça o processo semiótico, nos permite aplicar o modelo de análise apresentado por Jan (JAN, 2004) sem nos prendermos à um sistema composicional ou a uma linguagem sonora específicos. Tal mudança também abre espaço para a observação de obras modernas e contemporâneas que utilizem mais de um sistema composicional, ou que dialoguem com tradições musicais díspares, como é o caso de algumas composições de Toru Takemitsu, Karlheinz Stockhausen e Igor Stravinski, entre outros. Observado por esse prisma, uma entidade sonora (seja ela de natureza melódica, harmônica, rítmica ou textural) pode ser transcrita entre meios – sistemas ou estilos composicionais, ou mesmo instrumentos musicais – sem ser

KILPINEN, 2008, p. 6. Em tradução livre de: “(...) if human action were mere imitation, this would excise its connection to the surrounding environment. And that would be an unpardonable sin, from an evolutionary viewpoint at least, because environment precisely is the ‘harsh judge’ (Dawkins) that decides whether a being with its genes and memes is to survive or not.” 19 Já que uma cadência transmite significados diferentes se executada “por um Stradivarius ou uma Stratocaster” (O’GARA, 2010, online). Quando digo arquétipo, não me refiro ao pensamento jungiano, mas sim ao de Gaston Bachelard, que vê os arquétipos como tendo materializações variáveis de acordo com a cultura em que é encontrado. 18

385

limitado pelas fronteiras imediatas de significação que a abordagem utilizada por Jan pressupõe20. UMA BREVE DESCRIÇÃO DA OBRA Karlheinz Stockhausen compôs a obra Der Jahreslauf (o correr dos anos) em 1977, por encomenda de Toshiro Kido, para a orquestra do Teatro Nacional de Tókio, que solicitara a criação de uma peça para dançarinos e orquestra de ‘gagaku’21. Nesse dialeto musical, o ensemble típico contém três flautas (‘ryûteki’ ou ‘komabue’), três oboés (‘hichiriki’), três órgãos de boca (‘shô’), dois alaúdes de quatro cordas (‘biwa’), duas cítaras de treze cordas (‘gakusô’), um pequeno gongo (‘shôko’), um tambor grande (‘taiko’) e um tambor pequeno (‘kakko’, normalmente é tocado com baquetas pelo líder do grupo). Cada instrumento tem uma função predeterminada: flautas e oboés tocam uma melodia heterofônica e podem harmonizar com os órgãos de boca, embora isso não seja obrigatório. Alaúdes e cítaras executam fórmulas melódicas, que são transpostas de acordo com o clima da peça; gongo e tambor pequeno indicam a periodicidade (semelhante ao compasso na música ocidental), enquanto o tambor grande marca a forma. Única no catálogo do compositor, por seu uso deliberado de gestos e instrumentos tradicionais japoneses, Der Jahreslauf reflete uma investigação constante do compositor acerca dos extremos de tempo, de mobilidade versus imobilidade. Stockhausen ficou impressionado com o senso de exatitude temporal dos japoneses, encontrando diversos exemplos, nas artes traicionais japonesas, de suas próprias preocupações: a velocidade de reação dos lutadores de Sumô, em contraste com seu peso; a calma e imobilidade, seguida de gestos precisos e rápidos da caligrafia tradicional22. Em sua primeira experiência com a cerimônia do chá, ficou encantado em saber que aquilo não tinha como foco as boasmaneiras, ou sequer o chá, mas sim sobre a precisão de tempo em saber quando e como beber, de forma a apreciar a perfeição do momento. Segundo o próprio compositor (MACONIE, 2005, p. 397), sua intenção foi criar um contador de tempo musical numa forma contemporânea. Isso se extende ao título: em alemão, ‘lauf’ e ‘läufer’ indicam não apenas curso a ser percorrido, Pode-se, inclusive, pensar em maneiras de avaliar a quantidade de informação que é perdida em transcrições que envolvem meios muito díspares (embora isso esteja fora do alcance deste artigo). 21 O termo ‘gagaku’ significa “nobre, refinado”, e se refere à música tradicional da corte japonesa, em prática desde o período Heian (784-1185), e é uma das práticas musicais harmônicas mais antigas do mundo. Para mais detalhes sobre esse dialeto musical ou sobre os instrumentos tradicionais japoneses, ver MALM, William P. Traditional Japanese music and musical instruments. Japan: Kodansha International, 2000. 22 Cabe lembrar que o idioma japonês, como muitas línguas do extremo oriente, também reflete essa questão. Diferente das línguas ocidentais, que são definidas por contrastes de sons fortes e fracos, o japonês é definido por sons curtos e longos. 20

386

mas também a ação de correr (em português, galopar) e o formato de barril de um odômetro. Na peça, quatro dançarinos-mímicos perfazem os movimentos (e, portanto, as escalas temporais) das quatro colunas de um tabulador de tempo (milênio; século; década; ano). Um contador de quatro colunas também fica visível ao fundo da plataforma, atrás dos músicos. À frente do palco, quatro pequenas passarelas com as formas dos dígitos do ano em que a peça está sendo apresentada (na instância original, 1-9-7-7). Detrás de cada dígito, um grupo de instrumentos, cuja música é calculada ara corresponder à velocidade de mudança associada: para os milênios, os ‘shô’; para os séculos, as flautas ‘ryûteki’ e, como contador, o’shôko’; para as décadas, os ‘hichiriki’ e o ‘kakko’ como contador; finalmente, para os anos, o ‘gakusô’ e o ‘biwa’, com o ‘taiko’ como contador. A música de Der Jahreslauf é dividida em: • Tutti – seções instrumentais, utilizando apenas os instrumentos no palco; • Tentações – seções que utilizam sons eletroacústicos e fala, suspendendo a ação musical; • Incentivos – seções que utilizam sons eletroacústicos e a participação da plateia, interrompendo as tentações e conduzem de volta ao tutti. Na primeira tentação, uma gigantesca máscara de demônio aparece, saída das coxias ao lado direito (o lado que representa o inferno em um tríptico religioso). No tape, um sino de navio é ouvido, e três oficiais em roupa de gala entram pela direita, portando flores. O compositor, em voiceover, comenta cuidadosamente “Blumen für der Jahresläufer: – er will sie nicht.” (“flores para o corredor dos anos: – ele não as quer”). Flores são oferecidas aos corredores que, um a um, recusam. Os oficiais se retiram e uma menininha de passadas saltitantes entra pela esquerda. Ela bate suas mãos rapidamente, de muitas maneiras e com alturas diferentes, bradando “Aplausos! Aplausos para os artistas, para que possamos começar novamente!”. Segundo Maconie, “um momento mágico tem lugar, quando as batidas esporádicas são acompanhadas por mais pessoas no playback (e pela plateia de fato), mágico no sentido de que a algazarra rápida e periódica dos passos da menina parecem se desfazer e transformar na textura aperiódica de palmas batendo.” (MACONIE, 2005, p. 398). Após as palmas, a música recomeça. Na segunda tentação, cujas ações são reminiscentes da commedia dell’arte, um carrinho de cantina traz comida, enquanto o narrador dá a improvável descrição “comida requintada”. A música fica suspensa, até que a tentação é afugentada pelos rugidos de um leão. Para a terceira tentação, um símio montado em uma vespa com múltiplas buzinas (klaxons) entra pela esquerda do palco e para em uma derrapagem, numa paródia dos discos voadores em Sirius. Em contraposição, uma mulher entra com o anúncio de um prêmio de 100.000 yen (à época, 10.000 marcos

387

alemães, pouco mais de R$2000 hoje) para o “vencedor” do curso dos anos. O correr dos anos é assim tranformado em corrida, embora seja difícil compreender como alguém poderia vencer uma corrida contra o tempo, ainda mais se o sujeito é um número num contador. Finalmente, a quarta tentação: a distração do sexo. Um holofote ilumina um nu feminino ao som de música para big band (não identificada), em uma alusão à uma comissão japonesa anterior, Inori. Descrita como “uma bela mulher”, “uma mulher nua” e “uma nudista” (embora fique clara a associação com uma ‘stripper’ em uma boate), a figura no palco se porta de forma casta, mais semelhante à uma modelo para um pintor que uma dançarina erótica. Voiceover do compositor: “Ho ho ho, splitternackt!” (“completamente nua!”). Para a apresentação com o Imperial Gagaku Ensemble, em 1977, providenciou-se uma versão mais discreta; na versão para concerto, conta-se apenas com os comentários e a música em tape para transmitir a sensação de deboche. Um trovão soa (a voz dos deuses?), sugerindo uma leitura de conflito entre natureza e natureza humana. A peça foi posteriormente adaptada para concerto com instrumentos ocidentais e tape, além de incorporada como primeiro ato da ópera Dienstag vom LICHT. Como a composição desta obra antecede a elaboração da super-fórmula que estrutura a criação do ciclo operístico de Stockhausen, sua incorporação à LICHT é um tanto tênue, de caráter mais conceitual que musical. Para costurá-la à trama de seu ciclo operístico, o compositor acrescenta partes cantadas e faladas para Lúcifer e Miguel. Ambas as adaptações buscaram manter o repertório de gestos e timbres instrumentais característicos da música tradicional japonesa. FONTES BIBLIOGRÁFICAS BOYD, Brian. On the Origin of Stories. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009. BLACKMORE, Susan. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 2000. DAWKINS, Richard. The Selfish Gene, 30th anniversary edition. Oxford: Oxford University Press, 2006. ______. The Extended Phenotype. Reimpressão da 2ª edição revisada. Oxford: Oxford University Press, 2008. DEACON, T. “Memes as signs in the dynamic logic of semiosis: beyond molecular science and computation theory”. In: Conceptual Structures At Work. Berlin: ICCS 2004, Proceedings, Springer-Verlag, pp.17-30. JAN, Steven. The Memetics of Music. Surrey (UK): Ashgate Publishing, 2007. KILPINEN, Erkki. “Memes versus signs: on the use of meaning concepts about nature and culture”. In: Semiotica (2008), 8, no. 171 (2008): pp. 215–37.

388

MACONIE, Robin. Other planets: the music of Karlheinz Stockhausen. Lanham: Scarecrow Press, 2005, capítulo 21 (Allegories), pp. 396~400. ACESSO ONLINE BLACKMORE, Susan. About http://www.susanblackmore.co.uk/memetics/about%20memes.htm Último acesso em 17 de julho de 2013.

memes.

JAN, Steven. “Replicating Sonorities: Towards a Memetics of Music. Journal of Memetics”. In: Evolutionary Models of Information Transmission, volume 4 (2000). http://cfpm.org/jom-emit/2000/vol4/jan_s.html Último acesso em 17 de julho de 2013. O’GARA, Terry. Music http://criticalnoise.blogspot.com.br/2010/05/music-memetics.html Último acesso em 17 de julho de 2013.

Memetics.

______. Pattern Recognition in Audio. http://criticalnoise.blogspot.com.br/2011/06/pattern-recognition-in-audio.html Último acesso em 17 de julho de 2013.

389

DISCÍPULOS DO CAOS: DO BLACK METAL COMO REPRESENTAÇÃO DA ESTÉTICA PÓS-MODERNA Jonivan Martins de Sá [email protected] Bacharel em Ciências Sociais – Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a construção de uma analítica acerca da estética do Black Metal e de sua relação com as concepções do pensamento pós-moderno. Para tal, reconstruiremos brevemente a história deste estilo musical, recapitulando seus principais personagens, bandas e fatos, dando especial atenção ao Movimento Black Metal Norueguês. Na seqüência, buscaremos intersecções possíveis entre a estética crua e primitivista do Black Metal com o pensamento pós-moderno, retomando o pensamento de Jean-François Lyotard. Palavras-chave: Black Metal, Estética, Pós-Modernidade.

INTRODUÇÃO Ainda na primeira metade da década de 1980, emerge no cenário da música mundial o que se pode definir como, no mínimo, um interessante fenômeno estético/musical, hoje mundialmente conhecido como Black Metal. O Black Metal se diferencia das demais representações estéticas/musicais da época, pela sua aparente estranheza, ou seja, quebra com os padrões estéticos disseminados à seu tempo. O seguinte trabalho tem como o objetivo uma analítica acerca de uma provável relação entre a estética Black Metal e o pensamento pósmoderno. Primeiramente, pretendo reconstruir brevemente a história deste estilo tão diferenciado, recuperando quem são seus principais personagens, as bandas pioneiras e os fatos que permeiam a gênese, significação, disseminação e efetivação do Black Metal como estilo musical. Como se poderá perceber, darei uma atenção especial ao que chamo de Movimento Black Metal Norueguês, como uma das principais células disseminadoras e significadoras do estilo1. Em uma segunda parte do trabalho, tendo em vista o objetivo central deste trabalho, pretendo ariscar uma intersecção possível entre a construção do Black Metal como fenômeno estético e sua ligação com as concepções do pensamento pós-moderno. Para tal, recapitularei o pensamento de Jean-François Lyotard, no sentido de uma aproximação entre a estética do estilo musical e o que as teses pós-moderna pensam por estética, arte e representação. Chamo de “Movimento Black Metal Norueguês” com inicias maiúsculas, por me parecer se tratar de um grupo mais ou menos definido, que surge na mesma época e lugar, com indivíduos que se influenciavam mutuamente e se comportavam de forma razoavelmente semelhante, se expressando segundo representações estéticas igualmente semelhantes. 1

390

CONTOS DO SUBSOLO: UMA HISTÓRIA DO BLACK METAL Traçar uma história do Black Metal dentro do âmbito acadêmico é tarefa nada simples, já que, não existem estudos relevantes que dêem conta da relação deste estilo tão particular com a sociedade2. Assim como não se tem notícias de produção dentro o âmbito acadêmico que descreva o Black Metal como movimento e estilo musical, apontando seus elementos estéticos e suas nuances históricas. O que temos é um emaranhado de informações que vem á tona através de sites, as antigas fanzine3, revistas, documentários e através das próprias bandas. Não sem risco de ser simplista – situarei, a nível de praticidade da pesquisa – como marco histórico da construção do Black Metal como estilo musical, o lançamento, em 1982, do álbum intitulado Black Metal da banda inglesa Venom. A sonoridade trazida pelo álbum parece representar uma mistura entre o Punk – estilo já estruturado não só na Inglaterra – e do Heavy Metal de bandas como Black Sabbath e Motörhead. Em suma, a sonoridade de Black Metal lembra pouco a estética do Black Metal que hoje consideramos como tradicional. A importância no álbum reside, como não poderia deixar de ser, no uso do termo. O “Metal Negro” como um grito contra-hegemônico, uma chamado à escuridão, chamado de uma juventude já cansada da rebeldia morna do Punk e do Heavy Metal. Apologia escancarada ao satanismo, ao obscuro como uma expressão da rebeldia, diferente das apologias satânicas tímidas que o Rock já conhecia. De certa forma, é de senso comum se pensar no Black Metal como um estilo musical influenciado pelo Movimento Thrash Metal Americano. Uma pesquisa rasa pode apontar que ambos os cenários se influenciam mutuamente, dado tanto a proximidade estética da musica quanto a proximidade de datas no que diz respeito a lançamento de álbuns e a gênese de ambos como movimentos estruturados. A sonoridade Black Metal parece ter aparecido pela primeira vez em 1984, no álbum Bathory4 da banda sueca de mesmo nome. Ainda mais arriscado que considerar Black Metal do Venom o primeiro passo à construção do estilo, é considerar Bathory como marco estético, já que, os brasileiros do Vulcano e os A obra mais popular escrita até então sobre o estilo chama-se Lords of Chaos, de autoria de Michael Moynihan e Didrik Søderlind. Não faço o uso desta obra como referência, na medida em que não cessam as críticas recebidas por seu conteúdo tendencioso e pouco verdadeiro, tanto acerca do Movimento Black Metal Norueguês, quanto acerca da construção do Black Metal como representação estética. 3 As fanzines são pequenas revistas ou panfletos publicados por fãs. Hoje em dia se tornam cada vez mais raras, mas, desde a época da construção do movimento punk, se tornaram populares nos undergrounds da música independente. 4 O nome escolhido pela banda remete à condessa húngara Elizabeth (Erszebet) Bathory, que viveu no século XVII. A condessa em questão é conhecida no folclore húngaro por supostamente banhar-se no sangue de virgens que ela mesma teria assassinado. 2

391

americanos do Possessed já apresentavam uma sonoridade, no mínimo, de uma agressividade incomum5. Considero o álbum como um marco estético devido a influência que este teve não só na Escandinávia, mas em toda a Europa e América. Tomas Forsberg, líder do Bahtory – que usava o pseudônimo Quorthon6 - é muito citado até hoje como um dos maiores gênios do estilo, sendo também precursor do que se chamou posteriormente de Viking Metal, estilo que mistura a sonoridade do Heavy Metal à temática da cultura viking. A sonoridade presente no álbum de lançamento do Bathory é das mais incomuns, se comparada com o Heavy Metal apresentado até então. Talvez as duas principais características do álbum sejam a rispidez sonora, fruto de uma produção precária, e a velocidade de execução das músicas. O vocal de Quorthon (que também gravou as guitarras do álbum) é um terceiro elemento a ser destacado como, no mínimo, inovador, apresentando a entonação ríspida e aguda de um vocal gutural. A arte de capa soma-se a estética crua apresentada pela sonoridade, trazendo o desenho de um bode (símbolo popularmente conhecido de culto satanista e pagão) de traços rústicos.

Figura 1: Capa do álbum de lançamento da banda sueca Bathory, de 1984. Apesar de, como já foi dito, outras bandas apresentarem uma estética crua, de sonoridade agressiva, um dos fatores que certamente fizeram da música de Quorthon um baluarte na construção estética do estilo, foi a influência que esta teve no que parece ter sido o principal elemento de construção do Black Metal como um estilo musical e representação estética contemporânea: Movimento Black Metal Norueguês. UMA CHAMA NO CÉU DO NORTE: O MOVIMENTO BLACK METAL NORUEGUÊS Em 1984 o Vulcano lança uma demo intitulada “Devil on My Roof”, já apresentando uma sonoridade agressiva e rápida. Ao passo que o Possessed, os primeiros a cunhar o tremo “Death Metal”, lançam uma demo deste nome também em 1984. 6 O uso de pseudônimos é comum dentro do estilo até os dias atuais. Os integrantes do Venom já os usavam, talvez como mais uma forma de demonstrar agressividade. Ainda sobre Quorthon, este veio a falecer no dia 03 de Junho de 2004, vítima de uma parada cardíaca. 5

392

Assim como a gênese da história do Black Metal não poderia ser descrita com todas as suas nuances em um trabalho tão pequeno, a descrição do que chamo de Movimento Black Metal Norueguês também não se faz aqui sem simplificações e riscos, já que, não são poucas as bandas surgidas no final dos anos 80 e início dos 90 nesse país aparentemente calmo e idílico. Dentro desta perspectiva de trabalho, tratarei de forma simplificada da história de três bandas – Mayhem, Burzum e Darkthrone – e de três fatos que considero importantes para a construção musical e estética do Black Metal como um estilo – alem da influência das bandas pioneiras, obviamente. Os pioneiros noruegueses do estilo que ainda se construía, foram, sem dúvidas, os integrantes do Mayhem7. A banda foi formada em 1984, na cidade de Ski, sendo liderada pelo guitarrista Øystein Aarseth (Euronymous). Euronymous era considerado como uma espécie de líder, não só no Mayhem, mas em todo o movimento que surge a partir da banda. A primeira demo da banda é lançada em 1986, com o nome de Pure Fucking Armaggedon, mas é com o lançamento do EP Deathcrush, em 1987, que a banda vem a ser conhecida no subsolo do Heavy Metal norueguês. A musicalidade exposta em Deathcrush lembra muito a do primeiro álbum do Bathory – apesar do EP trazer um cover do Venom. Guitarras estridentes, vocais guturais ríspidos e bateria de rápida execução são seus traços marcantes. A arte de capa traz a imagem de duas mãos amputadas, no que lembra um instrumento de tortura medieval. Depois de Deathcrush, esse tipo de capa, trazendo imagens fortes de amputações, pessoas e animais mortos e todo o tipo de atrocidades, se torna cada vez mais comum dentro do gênero. Outro elemento que certamente deve ser destacado, importante tanto como representação estética assim como elemento de identidade de um grupo, é a corpse paint. A corpse paint é um tipo de pintura que já vinha sendo utilizada por algumas bandas8, mas que certamente ganha força no Mayhem. Tal pintura remete ao aspecto pálido e sem vida de um cadáver e, unida ás roupas escuras e muitas vezes rasgadas, constrói o embrião daquilo que iria se tornar um estereótipo Black Metal. Diretamente influenciados pelo lançamento de Deathcrush, inúmeros jovens, já identificados com a música “agressiva” que se construía como movimento, decidiram montar suas próprias bandas, com o intuito de disseminar A banda é citada inúmeras vezes como a pioneira norueguesa no estilo por várias pessoas que fizeram parte da mesma conjuntura. Mais informações sobre a construção do cenário Black Metal na Noruega podem ser encontradas no documentário Until de Light Takes Us (2008) de direção de Aaron Aites e Audrey Ewell, largamente usado como referência neste trabalho, já que, traz entrevistas com os principais personagens deste movimento. 8 Dentre elas, podemos destacar os suíços do Celtic Frost, que em 1984 já usavam esse tipo de pintura. 7

393

o que parecia ser uma espécie de ideologia do macabro e obscuro, descontentamento estético em relação à arte e a sociedade. Dentre as várias bandas surgidas nesta época, duas se destacam, tanto pela musicalidade apresentada, quanto pela influência que seus integrantes vieram a ter no Movimento Black Metal Norueguês: Burzum e Darkthrone.

Figura 2: Fenriz, Zephyrous (ambos do Darkthrone), Euronymous e Hellhammer (ambos do Mayhem) em vestimentas típicas usadas pelas bandas da época. O Darkthrone foi formado em 1987, resultado da troca de nome da banda de Death Metal9, Black Death. Seu primeiro álbum foi lançado em 1991, intitulado Soulside Journey, mas é com A Blaze in the Northern Sky (1992), seu segundo disco, que a banda entra para o embrionário cenário Black Metal da Noruega. A formação deste segundo álbum conta com Ted Arvid Skjellum (Nocturno Culto), Gylve Nagell (Fenriz) e Ivar Enger (Zephyrous), sendo que os dois primeiros se tornaram músicos muito influentes no Black Metal mundial. O instrumental de A Blaze in the Northern Sky é basicamente Death Metal. A modificação estética reside na timbragem dos instrumentos – apresentando um timbre mais estridente que do álbum anterior, e de produção deliberadamente precária – assim como na adoção de pseudônimos e da vestimenta que se tornava um símbolo identitário da cena. Desde a data de seu lançamento, até os dias atuais, este é considerado um dos principais álbuns do gênero, já que, parece acentuar a criação do Black Metal como um estilo musical e representação estética. Todas as edições do álbum – inclusive as atuais – trazem uma nota de

O Death Metal é um estilo que tem sua gênese na mesma época do Black e Thrash Metal. Talvez, a diferença mais substancial na construção musical do Death Metal, se comparado ao Black Metal tradicional, seja a freqüência variacional dos riffs de guitarra, além do vocal, que geralmente é mais grave. No entanto, tais diferenças não impediram os estilos de se misturarem muitas vezes sob o signo de Death Black Metal. 9

394

dedicação à Euronymous10, já que, segundo Fenriz (UNTIL THE LUGHT TAKE US, 2008), este foi o grande inspirador, tanto do álbum quanto da mudança de estilo da banda. A história do Burzum começa com o fim da banda de Death Metal Satanael, em 1991. À época, inspirado pelo novo tipo de formação criado pro Quorthon, do Bathory, Varg Vikernes monta sua banda sob o modelo one man band, ou seja, uma banda que conta com um único integrante (e compositor, naturalmente), que grava todas as seções em estúdio, sem subir aos palcos 11. O termo “burzum” foi retirado da tão conhecida trilogia O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien e significa “escuridão”. Alem de temáticas obscuras e de musicalidade estridente, agressiva e deliberadamente mal produzida, a sonoridade do Burzum é construída, segundo as palavras do próprio Vikernes (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), “para se aproximar ao máximo de uma narrativa épica”, introduzindo Varg, muitas vezes, à mitologia nórdica, como uma forma de expressar o descontentamento com o cristianismo, descontentamento este já expressado anteriormente através da temática satanista e pelo “culto ao obscuro” expressado tanto pelo Burzum quanto pelas demais bandas do gênero. Parece-me importante citar aqui a relação entre Vikernes e os demais membros deste embrionário movimento, já que, à época de construção deste, o convívio dos indivíduos que se sentiam representados pela estética Black Metal começa a se estreitar, tendo como ponto de encontro a loja de discos de Euronymous, Helvete (“inferno” em norueguês). Alem desta relação, Vikernes ainda veio a tocar (baixo) no Mayhem em alguns shows e na gravação do álbum De Mysteriis Dom Sathanas, lançado só em 1994. Assim como toda forma de conjuntura artística dotada de certa relevância no meio social não é constituída apenas por artistas, mas também pelos acontecimentos que permeiam tais conjunturas, o Movimento Black Metal Norueguês traz em sua história alguns pontos que me parecem ter certa relevância, portanto, devem ser descritos aqui. O primeiro fato que gostaria de descrever aconteceu em 1991, no interior de Oslo, na casa onde os membros do Mayhem viviam e ensaiavam. O então vocalista Per Yngve Ohlin (Dead) comete suicídio durante a ausência dos demais integrantes da banda, sendo encontrado por Euronymous algum tempo depois do ocorrido. Extasiado pelo que parece ser a representação genuína da morte, ou seja, um elemento estético extremamente explorado pelo Black Metal, Euronymous, mesmo antes de comunicar as autoridades, fotografa diversas vezes A citada nota: "This album is eternally dedicated to the king of death/black metal Euronymous" (O seguinte álbum é eternamente dedicado ao eterno rei do Death/Black Metal Euronymous). 11 Esse estilo de formato se construiu como um dos principais na cena Black Metal mundial. Influenciados por Quorthon, muitas bandas do gênero se recusam a tocar ao vivo, dentre elas o próprio Darkthrone. Quorthon gravou sozinho apenas os dois últimos álbuns do Bathory, sendo que nos demais optava pela contratação de músicos. 10

395

o cadáver de seu colega de banda. Salvo julgamentos morais e, até mesmo, de cunho psicológico que poderiam interpretar tal fato, a relevância estética desse contato de Euronymous com a morte me parece residir no aprofundamento da relação entre o Black Metal e a morte, já que, a partir desse acontecido – e da publicação de uma das fotos tiradas na capa de um EP ao vivo do Mayhem, em 1995 – tal relação parece ter se tornado palpável, não mera representação abstrata de uma juventude descontente. A ocorrência de incêndios criminosos a igrejas cristãs, também pode ser citado como um fato que influenciou esteticamente o Black Metal. Juntamente com o advento do Movimento Black Metal Norueguês, cerca de 50 igrejas foram incendiadas na Noruega e em seu país visinho, a Suécia. O alvo principal dos incendiários eram igrejas históricas, construídas sob terreno considerado sagrado nos primórdios da cultura viking. Através de investigações e de uma entrevista dada por Vikernes em 1993, a polícia norueguesa aponta como responsáveis pelos incêndios pessoas ligadas ao grupo de bandas que constituíam a cena Black Metal na Noruega. Após grande alvoroço da mídia, sobre a existência de uma “máfia satânica”, que agia em torno do cenário musical, muitos membros do Movimento tiveram suas prisões decretadas – dentre eles, o próprio Vikernes, liberto no mesmo ano.

Figura 3: Capa do EP "Aske" (1993), do Burzum, traz uma imagem da Igreja de Fantoft, queimada em 1992. Segundo o líder do Burzum (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), o signo da igreja queimada só toma conotação satanista após a mídia expô-lo desta maneira, já que, substancialmente, representava a insatisfação do grupo com a colonização cristã da Escandinávia, que se dera a partir do século IX (BERNET 2011: 38). Tal signo, não só na época como até hoje, pode ser considerado como um dos principais elementos estéticos do Black Metal mundial, tomando muito mais a conotação imposta pela mídia do que a de seu verdadeiro significado. O

396

que se percebe é um embate da igreja queimada como representação satanista e da igreja queimada como representação de um fundamentalismo pagão. Alem do suicídio de Dead em 1991 e a queima das igrejas – que ocorreu entre 1992 e 1995 -, podemos apontar ainda como um fato que influenciou na construção do Black Metal tanto como estilo quanto como movimento, o assassinado de Euronymous, cometido por Vikernes, em Agosto de 1993. Segundo Vikernes (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008) não eram poucos os desentendimentos entre ele e Euronymous. Tais desentendimentos chegaram ao seu ápice quando, em meados de 1993, Vikernes acusa Euronymous de legitimar a opinião tendenciosa da mídia norueguesa ao considerar-se abertamente um “satanista”. Vikernes (ibidem) ainda afirma ter descoberto um suposto plano de Euronymous de assassiná-lo. Após discussões, Varg assassina Euronymous em seu apartamento, em Oslo, com 23 facadas, sendo condenado posteriormente a 21 anos de prisão, por homicídio e porte ilegal de armas e explosivos encontrados em seu apartamento, em Bergen12. O assassinato de Euronymous fecha um ciclo de construção simbólica que fez do Black Metal não só um estilo musical ou um movimento, mas também uma espécie representação estética do caos, da morte, do contra-hegemônico. Alem de sua carga simbólica, os fatos acima descritos certamente tornaram o Black Metal conhecido por inúmeras pessoas, já que, foram transmitidos em nível global. Além da própria música, tanto as idéias e ideais dos seus fundadores – um tanto efêmeras e disformes – quanto as interpretações simplistas da mídia da época, contribuíram para a construção do Black Metal como um estilo de complexa assimilação estética. UM FIM SÓRDIDO: A ASSIMILAÇÃO DA ESTÉTICA BLACK METAL PELO MERCADO Apesar de todo o caos causado pelo Movimento Black Metal Norueguês, envolvendo mortes e depredação de patrimônio histórico, apesar deste movimento ter-se construído como um representante genuíno do contra-hegemônico, isto não impediu a assimilação da estética Black Metal pelo mercado. Ainda na primeira metade dos anos 90 surgiram grandes gravadores que alem de solapar a nãoprodução – uma das marcas fundamentais da estética Black Metal – auxiliaram na construção de uma estereotipação e mercantilização deste estilo tão complexo e rico de nuances. Não só o mercado da música, como o mercado da moda se utiliza da estética Black Metal com fins de capital 13. Ann-Sophie Back, AntiSweden Jeans, Cheap Monkey, podem ser citadas como algumas das muitas marcas que disseminam o Black Metal como moda. Muitas vezes, a visão que se 12 13

Vikernes foi libertado em 24 de maio de 2009, após cumprir 16 anos de prisão. Ver mais em: .

397

tem do Black Metal hoje é pautada apenas pelo uso das roupas, pinturas e pela temática satanista, ou seja, uma visão desprendida de seus aspectos simbólicos, construídos através de processos históricos de significação que dizem respeito a um espaço/tempo determinado, alem de, acima de tudo, representarem o pensamento de um grupo diferenciado de indivíduos, que não se enquadram nos padrões estéticos tido como “normais”. Poucos são os artistas que fogem hoje da representação estética estereotipada que se construiu em torno do que um dia foi um movimento genuíno de representação inovadora. Nomes como Fenriz e Vikernes ainda reivindicam para si e para raros, a verdadeira expressão e compreensão do que foi o Black Metal um dia, condenando modismos e a brutal alteração que a música sofreu desde sua gênese.

Figura 4: Não foram poucos os elementos do Black Metal assimilados pelo mercado da moda. A corpse paint certamente está entre destaques. DO BLACK METAL COMO REPRESENTAÇÃO ESTÉTICA PÓS-MODERNA Tendo percorrido o que chamei até aqui de “uma história do Black Metal” – “uma”, já que esta é apenas uma forma de construção de sentidos sobre o Black Metal, dentre várias possíveis – o que se segue é a tentativa de uma aproximação das representações estéticas advindas do Black Metal e suas proximidades com o pensamento pós-moderno, por sua vez, representado aqui por Jean-François Lyotard. Em suma, buscar-se-á ver a construção do Black Metal como produto genuíno da pós-modernidade. “Pós-moderno não significa recente. Significa o estado de escrita, no sentido mais amplo, de pensamento e ação, após ter sofrido o contágio da modernidade e

398

ter tentado curar-se dele” (LYOTARD 1993: 69-70). Como se pode ver pela sucinta definição de pós-moderno apresentada por Lyotard em Uma Fábula PósModerna, o pós-moderno não é visto como um período histórico estritamente determinado, movimento ascendente pautado pela idéia do progresso como períodos históricos passados. O que Lyotard percebe por pós-moderno, nada mais é que a ruptura com o progresso, o eterno-retorno ao primitivo, em um movimento caótico, instável – uma espiral que avança na medida em que retrocede. O movimento retilíneo, tão almejado no passado, perde aqui todo o seu valor, dando lugar á idéias aparentemente disformes e desconexas, mas que, ao mesmo tempo, parecem formar esse mesmo espiral, um todo completo e conectado. Ainda sob a luz de Lyotard, pode-se ver a pós-modernidade sob a perspectiva de uma harmonia oculta, harmonia esta que não depende do homem para se dar, mas que se faz representar pelo próprio movimento caótico dos entes. A busca pelo antídoto que guarda em si a propriedade da cura da modernidade leva, dentro da perspectiva deste trabalho, diretamente às representações estéticas do Black Metal. Tal antídoto é posto à luz por elementos diversos que fazem deste gênero musical tão particular. Alem daquilo que parece ser a quebra com a estética da boa produção musical – ou “bons modos” no que diz respeito à construção musical -, tal gênero encerra em si um comportamento primitivo, uma forma “de pensamento e ação” que busca a quebra com o progresso, com a ordem, com o moderno. A misantropia, não explorada neste até então, pode ser considerada um dos principais elementos das representações (formas de pensamento) advindas do Black Metal. Misantropia como o refúgio, o distanciamento do solitário ao lugar remoto, longe da influência externa, influência social que se constrói com o convívio. Este encerrar-se em si e na natureza – já que, o misantropo no Black Metal é aquele que busca a floresta como refúgio e inspiração – representa alem do individualismo e do desgarramento do rebanho social, uma forma de quebra com progresso do todo, quebra com o movimento ascendente do progresso humano, para assim dar maior importância às instâncias pessoais de representação, mesmo que isso signifique a solidão. Não raramente se vê o culto à misantropia como elemento presente tanto nas letras quando na way of life de membros de bandas do gênero. Este, no entanto, parece ser um dos principais elementos solapados por parte da assimilação do Black Metal pelo mercado, na medida em que a lógica do consumo fatalmente liga os assujeitados entre si através de seus fetichismos massificados. É importante não deixar passar em branco o papel (talvez) paradoxal da misantropia no meio Black Metal. Na mesma em que o ente inserido na lógica deste estilo musical busca o isolamento, a própria idéia de isolamento como fuga do moderno é cultivada em grupo. Em suma, o culto a misantropia parece surgir,

399

justamente, dentro de um grupo14, como um dos elementos que definem a identidade deste grupo. A quebra com um padrão estético não se separa da quebra com o âmbito social existente até então, na medida em que as construções estéticas parecem não se desprender de um âmbito social particular. Mas o que está na base das considerações de Lyotard no relatório [da condição pós-moderna] é a conexão entre o saber, o vínculo social e a legitimidade a ele conferida pelo consenso de seus sabedores em termos de verdade e legitimidade. Desta forma, a questão de produção, transmissão e armazenamento do conhecimento estão fortemente ligadas às práticas culturais, à formação da identidade subjetiva e ao vínculo dos integrantes de uma suposta sociedade (NASCIMENTO, 2010: 28)

Se separar fisicamente e esteticamente dos demais (misantropia) parece, acima de tudo uma questão de deslegitimação de uma ordem que traz em si não apenas um padrão estético, mas também um padrão de convívio, um padrão de saber específico, fechado, estático. O jogo entre o signo da inovação e as representações que remetem a um passado distante (temática Black Metal), faz do Black Metal pós-moderno por excelência. A narrativa do Iluminismo, a dialética romântica ou especulativa e a narrativa marxista, embora secularizadas, usam a mesma historicidade que a Cristandade, porque mantêm o princípio escatológico. O fim da história, ainda que sempre adiado, restabelecerá uma relação plena e completa com a lei do Outro (capital zero), tal como esta relação havia sido no começo: a lei de Deus no paraíso cristão, a lei da Natureza nos direitos naturais sonhados por Rousseau, e a sociedade sem classes, anterior à família, à propriedade e ao Estado, imaginada por Engels (LYOTARD 1993: 70)

Inevitável não aproximar a repulsa que o gênero incita à Cristandade com esta quebra com a idéia de progresso já citada. Não só a Cristandade, mas as escatologias de uma forma geral parecem ser alvos da estética Black Metal, já que, a negação das lógicas constituídas até então são elementos presentes no gênero. O culto ao caos – e os produtos comportamentais vindos deste – é assumido como estilo de vida, assim como a própria misantropia. A negação do satanismo por parte de Vikernes e de diversos integrantes do Movimento Norueguês (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), parece residir justamente nesta quebra com as escatologias, na medida em que o satanismo – não sem razão, um dos elementos mais explorados pelo mercado em torno do Black Metal , apesar de representar contrariedade, está inserido em uma lógica cristã, como um dos lados da moeda. Ao passo que esta espécie de fundamentalismo pagão Podermos perceber isso nas entrevistas dadas por Fenriz e Vikernes no documentário Until The Light Takes Us. Ambos salientam a importância que tal elemento tem para as representações 14

ligadas à gênese do estilo e de como este elemento se faz presente em suas vidas atualmente.

400

defendido por muitos, reafirma o movimento, o caos como forma de expressão, comportamento. O desprezo pelo mercado, fator preponderante durante os tempos de gênese do estilo e que se arrasta até hoje, representado por algumas bandas, não deve ser deixado para traz como elemento secundário. Não só o desprezo às instituições religiosas, mas também em relação a tudo aquilo que multiplique, dissemine valores já enferrujados e impregnados de elementos subjetivos de dominação e assujeitamento. Pode-se dizer que tudo que leve de alguma maneira à convivência com um meio social já padronizado e pautado por regras estáticas, é alvo daquela estética inicial do Black Metal, apesar deste mesmo ter sido transmutado em mercadoria. No início dos anos 90 não era grande o número de gravadoras interessadas em lançar o novo estilo musical. Dentro desta perspectiva, pode-se afirma que não só elemento importante, este desprezo em relação ao mercado é um dos responsáveis pela própria construção do estilo. O mercado, através da propaganda, também pode ser considerado monumento escatológico, na medida em que constrói visões de mundo pautadas pela idéia do conforto como ápice da vida humana. Alem de desprezar para nascer, o Black Metal se constrói mais uma vez como não-escatológico ao desprezar o mercado como representação desta lógica. Apesar de não muito conhecido, o Black Metal certamente pode ser considerado como umas das representações artísticas mais complexas, controversas e interessantes de nossa época. Mais que um estilo musical, busca a quebra com um padrão estético cada vez mais fechado e influenciado por lógicas de mercado que parecem levar a arte para o terreno da mediocridade e da falta de sensibilidade no tocante às formas de expressão humanas. Os acontecimentos que ocorreram em torno desta representação estética, salvo julgamentos morais, podem se construir como símbolos da importância que nossas concepções artísticas podem tomar em nossas vidas, influenciando o quotidiano de forma drástica, mudando, muitas vezes, aquilo que tínhamos por estático e imutável. Esta junção entre representação artística e mudança (tanto no âmbito social quanto individual), faz do Black Metal, além de “uma história”, um fenômeno, signo do diferente, ímpar e obscuro.

REFERÊNCIAS: AITES & EWELL, Aites & Audrey. Until The Light Takes Us. Field Pictures and The Group Entertainment, 2008. 1 dvd. BATHORY. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 18 de Junho de 2013. BERNET, Anne. O Crepúsculo dos Deuses. Revista História Viva. Editora Duetto: São Paulo, 2011.

401

BURZUM. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. DARKTHRONE. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. LYOTARD, Jean-François. Uma Fábula Pós-Moderna. Cadernos de Sociologia: A Modernidade. Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 1993. MAYHEM. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. NASCIMENTO, João Paulo Costa do. Abordagens do Pós-Moderno em Música. Editora UNESP: São Paulo. 2010. POSSESSED. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 18 de junho de 2013. VARG VIKERNES. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. VENOM. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em 18 de Junho de 2013 VULCANO. Metal Archives. Disponível em: . Acesso em18 de Junho de 2013. Imagens: Figura 1, Capa Bathory. Dispovível em: . Acesso em 18 de junho de 2013. Figura 2, Imagem Darkthrone e Mayhem. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. Figura 3, Capa Aske. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013. Figura 4, Black Metal Fashion. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2013.

402

EDUCAÇÃO DA SENSIBILIDADE ESTÉTICA E MULTIDIMENSIONALIDADE: SENTIDOS DA EXPERIÊNCIA DA MÚSICA NAS ‘FILOSOFIAS’ DA EDUCAÇÃO MUSICAL Luís Fernando Lazzarin [email protected] Universidade Federal de Santa Maria Resumo: Este texto apresenta uma pesquisa que problematiza a experiência da música em duas obras basilares para a área de Educação Musical: a Filosofia da Educação Musical e a Nova Filosofia da Educação Musical. Ambas são esforços sistematizados para legitimar e fundamentar a experiência da música nos currículos escolares. A discussão diz respeito às possíveis implicações contemporâneas que a mudança de ênfase nas duas formulações centrais de cada uma das ‘filosofias’– a educação da sensibilidade estética e a multidimensionalidade da experiência da música, respectivamente – podem trazer para a Área na contemporaneidade. Os argumentos aqui desenvolvidos tem o objetivo de aprofundar a desconstrução da hegemonia de certas práticas, repertórios e abordagens pedagógicas que mantém uma “estética das belas artes”, na direção de uma abertura para a pluralidade das experiências musicais. Palavras-chave: Educação Musical, Filosofia da Educação Musical, Nova Filosofia da Educação Musical.

A Filosofia da Educação Musical (FEM) e a Nova Filosofia da Educação Musical (NFEM)1 dedicam-se a problematizar a natureza e o significado da experiência da música e seus lugares no curriculo. Separadas por mais de duas décadas entre si e incorporando as principais correntes de pensamento de seu tempo, as primeiras edições dessas obras tornaram-se fundamentais por sistematizarem o pensamento sobre a natureza e o significado da experiência da música e por se constituírem em esforços organizados para a legitimação do campo da Educação Musical (EM), através da criação de currículos de música para as escolas americanas, da luta política e institucional para sua implementação e pela qualidade da formação de professores de música. Por essa razão não é possível avançar na pesquisa na Área sem conhecer sua enorme contribuição e ao mesmo tempo considerá-las criticamente. Trazer para a discussão os conteúdos das duas ‘filosofias’ é relevante para as discussões atuais sobre o ensino de música, tendo em vista principalmente a lei brasileira de número 11.769/08 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de música no nível da Educação Básica. A relevância está principalmente no sentido A Filosofia da Educação Musical possui duas versões: Philosophy of music education de autoria de Bennett Reimer com uma edição em 1970 e outra em 1989. A edição mais recente, do ano de 2003, tem o título de Philosophy of music education: advancing the vison e, nos aspectos aqui analisados, não faz modificações no texto das edições anteriores. A Nova Filosofia Educação Musical tem o título de Music matters: a new philosophy of music education , de 1995, cujo autor é David Elliott. 1

403

de desbanalizar recorrências e desconstruir pressupostos estabelecidos em busca de novas possibilidades de compreensão da experiência com música e de seu lugar nos currículos. De forma geral, é preocupação central das ‘filosofias’ responder às questões de quando, porque e de que forma deve existir a experiência da música, seja em escolas de música ou em salas de aula do ensino regular. Na sua pretensão de fundamento, as duas ‘filosofias’ têm uma estrutura similar. Ambas procuram determinar a natureza da música e da experiência musical, que se torna a base da compreensão dos processos de EM, com o objetivo de justificá-la através de uma proposta de currículo. Por mais diferentes que possam ser seus pontos de vista, uma característica comum das ‘filosofias’ é o ecletismo com que usam as mais diversas teorias (estéticas, psicológicas, sociológicas e musicológicas por exemplo) na tentativa de explicar a natureza da experiência com música e seus processos de compreensão (LAZZARIN, 2004). Ao tentar legitimar a disciplina de música nas mesmas bases instrumentais das outras disciplinas curriculares, o sentido da palavra ‘filosofia’ nas duas obras é o mesmo: conjunto de conhecimentos e pensamento críticoreflexivo com finalidade de sustentar ações educativas. Ambas as ‘filosofias’ acreditam que a natureza e o significado da EM só podem ser entendidos se forem, efetivamente, entendendo-se a natureza e o significado da música. Para a FEM, O objetivo da filosofia que irei propor neste livro é prover um sistema de princípios para guiar a criação e a implementação de um útil e significativo programa de educação musical. Nossa profissão necessita tal guia em ambos os níveis coletivo e individual. A profissão como um todo precisa de um conjunto de convicções que possam servir de guia para os esforços do grupo (REIMER, 2003, p. 2).

Para a NFEM, o sentido de uma ‘filosofia’ é similar, “um conjunto de convicções fundamentais nas quais as pessoas buscam apoio para suas ações” (ELLIOTT, 1995, p. 6). É interessante e produtiva a analogia que o autor faz entre a filosofia e o mapa. O mapa não só fornece uma visão ampla do território, mas ajuda a chegar onde se quer, ajuda tanto a escolher caminhos diferentes quanto a descobrir destinos que não tinham sido antes supostos. Essa analogia pode ser entendida como uma pretensão de filosofia como projeto de EM. Fundamentar, organizar, manter, desenvolver e explicar educação musical requer uma filosofia: uma rede de conceitos criticamente arrazoados e convicções sobre a natureza e o significado da educação musical. Construir e manter uma filosofia requer estratégias de pensamento crítico e uma disposição pessoal para usar estas estratégias continuamente (ELLIOTT, 1995, p. 11).

404

Sem a pretensão de esgotar o conteúdo de cada uma das ‘filosofias’, dados os propósitos deste texto, faço um breve recorte descritivo de dois importantes argumentos recorrentes em ambas, pelos quais nelas se caracteriza a experiência da música como formação: educação da sensibilidade estética e multidimensionalidade. Basicamente, o que vai ser desenvolvido a seguir, dentro dos limites impostos, são as idéias de que 1- a música educa e dá forma ao sentimento e de que 2- existem muitas dimensões através das quais se pode experimentar música. Ao final, essas duas recorrências conceituais são recuperadas, em um pequeno exercício interpretativo, no qual são aproximadas das noções de vivência (Erlebnis) e de experiência (Erfahrung). Não se trata simplesmente de defender nem de rechaçar as idéias apresentadas nas duas obras, mas de, ao dialogar com elas, averiguar sua produtividade, ou seja, de que forma nelas constitui-se a experiência da música e como se pode alargar seus horizontes de sentido, tendo em vista as práticas artísticas contemporâneas. Essas observações que faço têm a pretensão de provocação de diálogo, de chamada à conversa, na qual as ‘filosofias’ são também interlocutoras. Afinal, “o que perfaz um diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência” (GADAMER, 2004, p. 247). Dialogar aqui não significa chegar a um consenso ou a uma conclusão sobre determinado assunto. Tampouco é possível dialogar se nos colocamos em uma posição superior aos outros, julgando suas opiniões ou as desprezando. Abrirmo-nos ao diálogo significa aceitar colocar em risco nossos próprios preconceitos, ou seja, as idéias, as opiniões e os condicionamentos que anteriormente trazemos sobre o assunto do diálogo. Eis por que o diálogo é um processo de auto esclarecimento, que se dá pelo confronto entre a minha experiência e a do outro. Dialogar é alargar e expandir horizontes de sentido, uma vez que a “verdadeira realidade da comunicação humana é o fato de o diálogo não ser nem a contraposição de um contra o outro e nem o aditamento ou soma de uma opinião à outra. O diálogo transforma a ambos” (GADAMER, 2004, p. 221). EDUCAÇÃO DA SENSIBILIDADE ESTÉTICA As ‘filosofias’ confrontam-se entre si através da polarização de duas concepções sobre a experiência da música em EM, que se inicia a partir da crítica, feita pela NFEM, ao aspecto central da FEM: a concepção de experiência musical como educação da sensibilidade estética. Nesse sentido, as outras artes (teatro, dança, pintura, escultura) teriam uma base comum com a música, já que em todas ocorre a experiência estética. Analogamente às artes visuais, em que a contemplação se dá visualmente, a FEM dá ênfase à atividade de audição, já que esta seria a maneira mais acessível e natural de experienciar a música.

405

A FEM tem seu ponto central na analogia entre música e linguagem, tomado de empréstimo de Langer, (1960, 1980), especificamente no que concerne aos conceitos de símbolo artístico (ou presentacional) e símbolo lingüístico (ou discursivo). Para a filósofa, diferentemente do símbolo lingüístico, o símbolo artístico não faz referência, mas apenas apresenta o movimento geral do sentimento. Ao contrário da linguagem, a música não representa, mas apresenta o insight2 da vida afetiva. A música seria um análogo formal da vida afetiva, assim como a linguagem verbal o é da vida cognitiva. A linguagem verbal organizaria os pensamentos, enquanto a música organizaria os sentimentos. Segundo a FEM, a música não exprimiria ou representaria sentimentos ou emoções particulares (alegria, tristeza, ódio, por exemplo) mas possuiria tensões e relaxamentos análogos ao conjunto da vida afetiva. Nesta qualidade, a música teria a propriedade de educar ( no sentido de controlar, nomear e objetivar) o sentimento. No domínio da linguagem, o símbolo convencional carrega a informação. Na arte, é a forma expressiva, carregada de insight, que traz em si a dimensão da expressividade humana. A música deve ser considerada como modelo para o entendimento de todas as outras artes, uma espécie de “morfologia” do sentimento (BOWMAN, 1998). A Filosofia da Educação Musical (REIMER, 2003) mantém esse ideal de controle e organização da consciência, ao qual dá o nome de educação da sensibilidade estética, apenas atingível pela experiência da música. Ou seja, através da experiência da música, educam-se instâncias da alma e do espírito inacessíveis à linguagem verbal. O que nós precisamos para ir além do fluxo dinâmico de nossa subjetividade, é um instrumento para abarcar o sentimento para que não se perca, um meio para fixá-lo. Nós precisamos ‘materializar’ o sentimento, isto é, fixá-lo em uma entidade que permaneça como é. Então o que podemos fazer? Você adivinhou: nós podemos capturá-lo em sons musicais – melodias, ritmos, cores de tons, harmonias, texturas, formas (REIMER, 2003, p. 99, tradução minha).

Para a Filosofia da Educação Musical é preciso controlar o movimento ou o fluxo cognitivo-emocional, que é confuso e passageiro, e objetificá-lo, ou seja, transformá-lo em algo distinto e organizado conscientemente. A consciência seria uma instância controladora de um movimento anárquico, ao qual a experiência da música daria uma forma organizada. Esse caráter inefável, do que vai além das palavras, conferiria à experiência da música uma característica que lhe garantiria um lugar único no currículo, porque possibilitaria conhecer e organizar as instâncias do sentimento inacessíveis através da linguagem verbal. Essa Em inglês insight significa ‘visão interior’. A psicologia da Gestalt designa assim uma espécie de iluminação intelectual, instantânea, global e direta. 2

406

qualidade que a música teria, quase a chave de um conhecimento misterioso da alma, teria ressonâncias românticas, no sentido de guardar uma correspondência entre a linguagem do pensamento e a linguagem do sentimento. A consciência seria ordenada e o prazer surgiria através do ‘aprender como’ e do ‘saber como’ situar o conhecimento do estudante em relação ao contexto e aos critérios particulares de ação. Algumas das principais críticas formuladas aos pressupostos da FEM dizem respeito à exigência de simetria entre o movimento da vida afetiva e da música. Permanece obscura a relação isomórfica entre sentimento e música em pelo menos dois pontos: como é possível determinar as formas do sentimento? Sendo isto possível, como se pode demonstrar a isomorfia entre estes e as estruturas musicais? A isomorfia é mais ou menos aceitável quando aplicada à música tonal, mas sua aplicabilidade pode ser questionada em relação ao sistema modal ou ao sistema atonal, que concebem e se utilizam, de maneiras diferentes, de tensões, relaxamentos e dissonâncias. Outra dúvida que surge é quanto ao repertório ideal para a educação da sensibilidade estética. Haveria práticas, estilos ou obras musicais que educariam de forma mais adequada o sentimento? Quais seriam elas? Como respostas dessas questões, a FEM parece naturalizar uma simetria e uma escolha que de fato são aprendidas e determinadas culturalmente por via associativa ou metafórica. Karbusicky (1998) diz que a sistemática de signos utilizada para compreender a natureza da arte é ontologicamente arbitrária, pois se apóia, contraditoriamente, em uma lógica verbal. Essa contradição pode ser assim resumida: arte e linguagem utilizam símbolos. Linguagem é instrumento do pensamento e arte é instrumento do sentimento. O símbolo lingüístico representa algo além dele próprio (tem um significado). O símbolo artístico, porém, não representaria nada além dele e, ao mesmo tempo, representaria a vida dos sentimentos. Essa inconsistência ontológica se encontra também na referência ao valor metafórico do símbolo artístico. O valor da metáfora está no quanto ela pode carregar de significado pela similaridade formal com o que significa, ao invés de uma lógica verbal. Uma metáfora é uma imagem, uma representação imediata e intuitiva que apresenta objetiva e economicamente o que o discurso pode tornar lento e arrastado. A idéia de iconicidade da metáfora é emprestada da linguagem, o que torna pouco clara a analogia proposta por Langer (1960) e incorporada pela FEM . MULTIDIMENSIONALIDADE Ao ser publicada na década de 1990, a NFEM se coloca também em uma posição de crítica aos postulados da FEM (até então única protagonista dos fundamentos da EM) em relação ao que considera quatro suposições relativas à educação da sensibilidade estética, que seriam: a música e as obras de arte

407

musicais são a mesma coisa, daí decorrendo a importância e a centralidade da obra de arte como objeto da apreciação; existe uma única maneira de ouvir estas obras (esteticamente), através de suas qualidades intrínsecas (forma, melodia, harmonia, por exemplo); as qualidades estéticas são internas à obra musical; quem aprecia uma obra musical passa por uma experiência estética, isto é, uma experiência desinteressada da mente, que deixa de lado qualquer experiência social, política, moral, cultural. Segundo essa crítica, a FEM compreenderia a experiência musical através de uma abordagem formalista da experiência da música, sendo a ênfase dada à atividade do ouvir musical, através da qual acontece a educação da sensibilidade estética. A experiência musical restringirse-ia, assim, a um processo individual privado, afastado da vida e dos contextos culturais em que ocorre. Por seu turno, a NFEM afirma que “os valores fundamentais das experiências com música são o auto desenvolvimento (self-growth), o auto conhecimento (self-knowledge) e o deleite (enjoyment)” (ELLIOTT, p. 126, tradução minha), através do equilíbrio entre desafios musicais apropriados e a capacidade de solução progressiva de problemas musicais. O objetivo da Educação Musical seria, então, proporcionar situações nas quais os próprios valores da experiência da música sejam vivenciados, através do ouvir e do fazer musicais. Esse objetivo seria atingido a partir das três dimensões da experiência da música: MÚSICA, como uma prática humana diversificada consiste em muitas diferentes práticas musicais ou Músicas. Cada e toda prática musical (ou Músicas) envolve duas correspondentes e mutuamente reforçadas atividades de fazer musical e ouvir musical. [...] A palavra música (caixa baixa) refere-se aos eventos sonoros audíveis, obras, que decorrem dos esforços dos praticantes musicais nos contextos de práticas particulares (ELLIOTT, 1995, p. 44).

Primeiramente, ‘MÚSICA’, a atividade deliberada de organizar os sons, faz parte de todas as culturas. Deliberada significa não natural, pois nem todos os sons podem ser música. Em cada cultura há sons e silêncios e possibilidades de organizá-los aceitas ou proibidas. Ou seja, cada cultura organiza os sons de forma própria, muito embora essa capacidade musical possa ser universalmente compartilhada por diversas culturas e em diversos contextos. Como cada contexto cultural organiza as estruturas sonoras de diferentes maneiras, decorre que entender ‘Música’ como organização cultural do material sonoro é estar aberto a reconhecer que, se existem estruturas básicas, préconstruídas e reconhecíveis do sistema tonal e que formam o sentido de música que se conhece no ocidente, esta organização não é única. Muitas vezes, contudo, se naturaliza e privilegia-se este sistema, o que impede de reconhecer e aceitar outras diferentes manifestações musicais.

408

‘Música’, como obra musical, possui também multidimensionalidade, pois é constituída pelo dinâmico interrelacionamento entre a tradição composicional e a tradição interpretativa. Inclui-se, nessa dinâmica, a audiência e a crítica musical. A obra de arte musical não é apenas o seu registro gráfico (a partitura, por exemplo). A obra de arte musical, segundo o modelo da NFEM, guarda a dimensão da composição, um design sonoro particular, projetado pelo compositor; a dimensão execução-interpretação, representada pela tradição interpretativa e a dimensão prático-específica, compartilhada pela tradição da prática musical. “A obra musical é a execução de padrões musicais organizados por uma ação artística, um design sonoro, que revela costumes e tradições de uma prática, e seus respectivos comprometimentos ideológicos” (ELLIOTT, 1995, p. 199, tradução minha). MÚSICA (a prática humana), Música (as manifestações contextuais de MÚSICA) e música (as obras de arte) seriam dimensões da experiência da música e o fazer musical deveria ser o centro de toda a EM. A educação da sensibilidade estética proposta pela FEM seria então, segundo a NFEM, uma forma específica, localizada culturalmente, de compreender a experiência da música. Como tal, não poderia ser universalizada ou naturalizada como modelo para todas as culturas, mas uma dentre tantas possibilidades de compreensão (e justificação pedagógica) da experiência com música. Embora a FEM não indique qual prática ou estilo musical seria a indicada para educar a sensibilidade estética, ficaria implícito que o parâmetro de qualidade seria o repertório da música tonal produzida no ocidente e as respectivas práticas de execução que tiveram seu ponto culminante na passagem do século XIX para o XX. Esse aspecto será retomado ao final desse texto, pois penso que constitui-se em importante possibilidade de abertura de sentidos para a discussão proposta. EXPERIÊNCIA Tendo em vista o que foi dito nas duas seções anteriores, é importante recuperar o sentido formativo da palavra ‘experiência’. Sua etimologia latina está ligada ao radical peri, que significa 'obstáculo' ou 'dificuldade'. O mesmo radical compõe a palavra periculum (perigo) e o verbo aperire (abrir). Assim, experiência sugere um ‘abrir-se para o perigo’ ou o ‘aprendizado que resulta do enfrentamento de dificuldades e perigos’, ligado à constatação dos próprios limites humanos. Na língua alemã existem duas palavras para descrever o vivido: Erlebnis (vivência) e Erfahren (experiência). Vivência serve para nomear um acontecimento não rotineiro, único, mas que se limita a sua pontualidade. Dois exemplos significativos são a aventura e o trauma. Experiência, de outra forma, envolve duração maior e está associada ao percurso e ao crescimento inerente à vida. A raiz fahren significa viajar e abrir novos horizontes e, por conseguinte, sugere que se adquiriu algo durante o trajeto. De forma esquemática, esse

409

movimento constitui-se na saída do sujeito de si, no encontro com o diferente e na volta a si mesmo, modificado por esse encontro. Ainda que existam vivências significativas ou traumatizantes, que podem modificar profundamente nossas vidas, o que perfaz a diferença entre Erlebnis e Erfahrung não é tanto a profundidade, mas o horizonte temporal em que se constituem uma e outra. A experiência como formação não é apenas um somatório de vivências, mas um encontro de quem experiencia consigo mesmo. A essência da experiência é a inversão, o voltar-se sobre si mesma. No movimento de saída de si, o outro não é como se pensava. Essa negatividade fundamental faz com que toda experiência tenha algo de doloroso, de trágico, “justamente porque toda experiência que mereça esse nome cruzou o caminho de alguma expectativa” (GADAMER, 1999, p. 525 ). A educação da sensibilidade estética tem a pontualidade do Erlebnis. Ela é constituída em um momento no qual o horizonte do tempo é eliminado. Simultaneamente, é exigido um distanciamento entre um sujeito que contempla/observa e um objeto que é contemplado, que não leva em conta a contingência de sua historicidade, mas os ideais de objetificação e de neutralidade frente ao vivido. A ‘consciência estética’ não é senão a cristalização de um gosto tornado fetiche que desconsidera quaisquer vínculos com o contexto histórico e cultural em que a arte foi produzida. “A qualidade estética definida assim abstratamente se dá ao individuo numa experiência que tem as características do Erlebnis, da experiência vivida, pontual, momentânea – no fundo epifânica”. (VATTIMO, p. 121, 1996). Lugar institucional dessa vivência, a sala de concerto torna-se o equivalente musical do museu, como depositário das obras de arte musicais. Um determinado lugar, especificamente destinado à contemplação estética da obra de arte musical, que pressupõe a audiência iniciada, silenciosa e atenta à performance musical realizada por um intérprete profissional que decodifica as prescrições musicais estabelecidas rigorosamente pelo compositor. O comportamento do freqüentador de concertos é análogo ao do visitante do museu de belas artes, que se detém diante do quadro ou da escultura do grande artista, e os contempla. A educação da sensibilidade estética viria ao encontro de uma positividade científica, em busca da melhor prescrição, da ‘melhor forma de aprender’, e isso retiraria a imprevisibilidade e a pluralidade da experiência. Originário das ciências da natureza, o modelo de conhecimento científico gradualmente penetrou todos os campos do conhecimento, inclusive o das ciências humanas, afirmando-se como única garantia para o acesso à verdade. Ele confere legitimidade ao conhecimento, através das possibilidades de controle, de repetição da experiência e de comprovação objetiva de seus resultados. A tutela, exercida pela racionalidade científica sobre a EM tornar-se-ia uma tentativa vã, à medida que não dá conta de entender o significado da existência, mas que impõe-se como

410

solução como hegemônica. Quando esse modelo é aplicado pela FEM, entretanto, a dimensão do Erfahrung, fundamentalmente histórica, irrepetível e incontrolável, fica esquecida. Reduzida a uma dimensão afetivo-cognitiva, a educação da sensibilidade estética anula a dimensão trágica do crescimento e as crises existenciais que lhe são peculiares são retiradas de cena. De outra forma, a experiência das artes pode criar uma resistência à objetividade e ao controle dos processos pedagógicos, dando lugar à imprevisibilidade da experiência formativa, inclusive com suas frustrações e interdições, pois A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude. [...] Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de que nada retorna. [...] A verdadeira experiência é a experiência da própria historicidade” (GADAMER, 2004, p. 467).

É significativa a recorrência do termo ‘atividade’, ou mesmo ‘vivência’, nas práticas pedagógicas, que, no limite, reiteram a funcionalidade e a sistematicidade científica de controle do objeto. A experiência deixa de ter uma continuidade formativa para transformar-se em conjunto de eventos compartimentados e ordenados. Assim, o lugar reservado à experiência da música no currículo corre o risco de transformar-se em aventura ou trauma, não em abertura para o inesperado. O colorido das datas comemorativas do calendário anual, nas quais a música é componente decorativo inconteste, afirmam sua condição de acontecimento pontual na vida escolar, mas superficial, sem tempo e espaço próprios no cotidiano. Algumas práticas ainda, como o uso da música como mecanismo de controle ou recreação, ou para ministrar conteúdos de disciplinas consideradas verdadeiramente importantes, podem contribuir para o afastamento e para a perda de interesse pela experiência da música, que poderia ter sido progressivamente aumentado e estimulado por uma regularidade e uma provocação constantes. Assim, a multidimensionalidade preconizada pela NFEM constitui-se em uma abertura para a temporalidade do Erfahrung. O fazer musical, em suas dimensões, incorpora a continuidade histórica, que expande a educação da sensibilidade estética para além de seus limites de experiência privada, ao mesmo tempo em que abre possibilidades para múltiplas formas de experiência da música. Ele ocorre dentro de contextos específicos e também possui várias dimensões: atividade de composição; atividade de performance (vocal ou instrumental); atividade de improvisação; atividade de arranjo; atividade de regência. Consideradas contextualmente, essas atividades estão imersas em práticas e tradições que surgem, extinguem-se, alteram-se graças à relação de diálogo bastante dinâmica entre quem as executa e quem as ouve. Por exemplo, podemos

411

cantar ou tocar algum instrumento, improvisar em um instrumento ou vocalmente, reger uma orquestra ou coral, criar arranjos musicais, executá-los e ouvi-los; compor, executar o que foi composto, arranjá-lo de forma diferente ou deixar alguém executar ou reger; ou ainda ouvir e ver (no caso de gravação áudiovisual) o que é ou foi executado pelos outros. A passagem da vivência inefável à experiência multidimensional desloca o ideal formativo da esfera da organização dos processos mentais e da vida afetiva individual para a amplitude da acontecência da vida. Cria também uma possibilidade de resistência aos ideais de neutralidade e objetividade científicas, pois assume que no agir pedagógico “não estamos diante das situações, estamos dentro delas e, portanto, não podemos ter sobre elas um saber objetivo” (GADAMER, 2004, p. 451). Diálogo pressupõe negociação, um jogo em que os interlocutores tem de aprender a ceder em certas questões e a impor-se em outras. Penso que um movimento que recupere a experiência como formação deve ser provocado não no nível das políticas educacionais, mas na atuação diária e cotidiana, na busca por alternativas que substituam a relação de dominação do sujeito sobre o objeto por outra, entre sujeitos que dialoguem. Para a música, assim como para os demais domínios do artístico, o encontro entre a obra de arte e o sujeito, inserido na continuidade dialética própria e de sua história, constitui-se em experiência formativa, pois a obra não nos fala da abstrata pontualidade do Erlebnis, ela é evento histórico, e evento também é o nosso encontro com ela, do qual saímos modificados, sofrendo também a obra, na nova interpretação que dela damos, um acréscimo de ser. (VATTIMO, 1996, p. 122-3).

Por isso, cada encontro com a obra abre novas possibilidades de sentido e de compreensão. Essa abordagem pode ajudar a opor resistência à racionalidade pedagógica que relega a experiência à etapa inicial de um processo de aprendizagem que tem por fim a abstração. Pode haver um lugar para a experiência da música que não seja o da captura pela racionalidade curricular, no qual o processo de abstração e de reflexão se torna mais importante e na qual a dialética da experiência das artes não tem sua consumação em um saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência (GADAMER, 1999). Penso que deva haver, por parte da EM, uma mudança de ênfase na compreensão da experiência da música. O entendimento de vivência da educação da sensibilidade estética pode ser superado pela ênfase na experiência da multidimensionalidade. Essa deve ser posta em funcionamento em seu limite, sem as exigências de abstração tão presentes em todas as outras instâncias escolares. A abertura para encontrar na experiência do outro o que não

412

encontramos na nossa tem sido dificultada pela captura da experiência pelo currículo disciplinar. Mesmo as práticas interdisciplinares não conseguem romper com a fragmentação das áreas, porque conservam a mesma lógica de compartamentalização científica. Uma compreensão da experiência da música como multidimensionalidade pode conduzir a uma abertura para novos sentidos da experiência das artes no curriculo. Isso envolve colocar em risco os próprios posicionamentos e abrir-se a uma experiência que não se limite em um conceito acabado, mas cujos traços centrais sejam a “finitude, a historicidade, a não objetificabilidade, a negatividade, a ambigüidade e a abertura” (ROHDEN, 2002, p. 93). IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL Mesmo após tantas e tão ostensivas críticas à abordagem da experiência musical como educação da sensibilidade estética não parece ser fácil operacionalizar a multidimensionalidade como um dos princípios formativos da experiência da música. Sobretudo, significa modificar convicções cristalizadas durante muito tempo, que se estabeleceram como naturais. A problematização sobre as condições de possibilidade da experiência da música no currículo está inserida no processo contemporâneo de desmistificação que a experiência das artes vem sofrendo, no sentido do transbordamento de seus limites de experiência estética pontual, desinteressada e contemplativa. Abrir mão de uma legitimação para a EM baseada unicamente na educação da sensibilidade estética em favor de uma abertura à multidimensionalidade da experiência da música significa ter em mente e aprofundar a compreensão dos pontos de crítica levantados pela NFEM. Uma das implicações do modelo multidimensional é de que não existe um modelo a-histórico universal de avaliação de qualidade musical nem tampouco uma propedêutica para a compreensão de cada prática musical. Os critérios para avaliação da qualidade musical precisam ser relativizados. O repertório canônico da música erudita, deixa de ocupar um lugar absoluto como parâmetro de qualidade da “boa música”. Dessa forma, o modelo de multidimensionalidade nos auxilia a compreender a experiência da música no sentido de que termina uma tradição de pensamento (uma metanarrativa) “que desde a modernidade se tornara o cânone na forma que nos foi confiada” (BELTING, 2006, p. 23). Termina uma tradição específica que coloca como central a idéia de uma evolução histórica linear dos estilos, preservada nos altares consagrados das salas de concerto. Ao retomar o tema hegeliano da morte da arte, Danto (2010) refere-se ao fim de uma narrativa mestra para a arte e sua história constituída por um imperativo estilístico que identificava o que são as obras de arte, através de uma evolução diacrônica dos estilos. O filósofo salienta que, na contemporaneidade (o

413

período pós-histórico), o problema filosófico é explicar porque (ou quando) algo se torna obra de arte. A produção artística contemporânea se dá no estranhamento e no questionamento dos limites da linguagem, pondo em questão o caráter das representações artísticas e a própria definição de arte, interpelando criticamente também o mercado e o sistema de validação da arte (incluídas a crítica e a produção acadêmica sobre a arte). As próprias ‘filosofias’ fazem parte desse processo que inclui as tentativas pedagógicas de democratização do acesso às artes, sua aproximação com o cotidiano e com a visibilidade das práticas artísticas consideradas periféricas. Esse transbordamento, intensificado pelas novas tecnologias digitais de produção e distribuição de informação e perpassado por interesses de mercado, ocorre não apenas com as artes tradicionais (música, plásticas, teatro e dança), mas também com o cinema, a televisão, o vídeo, a fotografia, a propaganda, no design e em tantas outras formas contemporâneas de produção artística. Portanto, cada prática musical, de acordo com o modelo multidimensional, deve ser avaliada e julgada por seus parâmetros intrínsecos e de acordo com princípios próprios do contexto em que é produzida. Essa é uma operação complexa e constitui-se em um desafio pedagógico, na medida em que, na contemporaneidade, as práticas e os estilos musicais se aproximam e se fundem devido aos processos globais contemporâneos de compressão de espaços e tempos, produzido sobretudo pelas tecnologias de informação e pela mídia. Há um movimento circular, nos dias atuais, de influências e sincretismos que a todo momento produz novas possiblidades musicais, subvertendo padrões e questionando o estabelecido. Nesse sentido, as práticas musicais nunca se dão separadamente e suas fronteiras tornam-se flexíveis. Abrir mão de um critério único de avaliação de qualidade musical também pode significar um deslocamento da polaridade entre o “erudito” e o “popular” e uma problematização dos critérios de qualidade e valor musicais. Esses são alguns riscos para os quais a EM tem que se abrir pois, em termos formativos, não pode deixar de reconhecer a fecundidade da experiência do estranhamento, pela constante necessidade de ruptura com a situação habitual, como exigência para penetrar no processo compreensivo. Assim, a desorientação e a desestabilização, que tanto mal-estar provocam pela quebra da regularidade metódica – que se orienta por uma expectativa de comportamento correto - , se constituirão em produtividade de sentido (HERMANN, 2002, p. 65).

Muitas práticas artísticas contemporâneas promovem o hibridismo entre as artes, ao propor uma “mundanização”, uma “cotidianização”, da experiência da arte para dentro da vida, na medida em que visibilizam e abrem espaço para repertórios, manifestações, práticas artísticas, etc. Neste sentido, questionam as vinculações entre uma “arte erudita” e uma “arte popular”, substituindo essa

414

polarização pelo borramento de fronteiras e pela fluidez com que as práticas são circularmente produzidas entre esses dois territórios. Trazer essa discussão proporciona o tensionamento entre a captura da experiência musical por parte do curriculo disciplinar e as possibilidades de resistência a essa disciplinaridade, proporcionadas pelas práticas contemporâneas híbridas de arte. As práticas contemporâneas também desconstroem a noção de que haja um tipo especial de pessoa que produz e outro tipo especial de pessoa que frui a obra de arte. O primeiro tipo precisa ter talento genial e o segundo tipo uma propedêutica, um convívio cultivado com a verdadeira arte para que aprenda a fruí-la. As mostras de arte contemporânea, por exemplo as Bienais de São Paulo e do MERCOSUL e as FILE (Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas), subvertem a noção de sala de concerto no sentido de “museu imaginário da música” (GOEHR, 1992, p. 53), pois ao invés de um o lugar ideal em que há uma audiência silenciosa e em uma atitude contemplativa, esses espaços provocam a participação do frequentador no processo artístico, através de sua interação com a obra. Um breve inventário das práticas contemporâneas que subvertem e desconstroem a idéia de educação da sensibilidade estética pode abranger, por exemplo, a performances, intervenções e instalações sonoras interativas, paisagens musicais, cada uma delas utilizando diferentes suportes que manipulam, além de timbres e sonoridades, imagens e materiais: eletrônicos, vídeo-fonográficos, digitais, corporais, através da hibridização de diferentes linguagens, desafiando a classificação das belas artes (o conjunto canônico de escultura, arquitetura, música, poesia, teatro e dança). As novas tecnologias para a arte contemporânea tornam-se mais um meio à disposição, que se somam às técnicas e aos suportes tradicionais, alterar a percepção, ajudar a pensar através de um enigma, ao invés de fornecer uma visão pronta do mundo (BELTING, 2006). Finalmente, ao incorporar esses traços multidimensionais presentes nas práticas contemporâneas, parece-me que a EM concretizaria uma virada com relação à compreensão da experiência da música para além da educação da sensibilidade estética. Música e obra musical não são a mesma coisa. A primeira diz respeito ao processo cultural de produção de significados e sentidos sonoros organizados intencionalmente. As obras são o produto dessa atividade intencional e culturalmente localizada, registradas graficamente ou não. Isso abre a possibilidade de pensar, em termos pedagógicos, no processo de produção musical em si em detrimento do culto de um produto final acabado e “artístico”. A ênfase na produção (composição ou improvisação) e posterior execução musicais que o modelo multidimensional dá à experiência da música coloca em primeiro plano a exploração, a descoberta, a manipulação de materiais, timbres, suportes e sentidos, tornam-se o centro da experiência da música, mas sem que haja necessidade de serem sempre tão meticulosamente sistematizadas e ordenadas

415

em uma lógica pedagogizada e teorizada. A experimentação e a exploração devem constituir-se em um fim em si, e não uma etapa inicial de um processo cujo ponto culminante é a abstração ou o controle e a organização dos processos mentais.

REFERÊNCIAS BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo : Cossac Naify, 2006. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Editora da USP, 2010. ELLIOTT, David. Music Matters: A new philosophy of music education. Oxford : University Press, 1995. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Petrópolis : Vozes, 1999. ______. Verdade e Método II. 2. ed. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis : Vozes, 2004. GOEHR, Lidia. The imaginary museum of musical works. New York : Oxford U. P. 1992. HERMANN, Nadja. Hermenêutica e Educação. São Paulo : DP&A Editora, 2002. KARBUSICKY, V. Fundamentos da semântica musical. Trad. não publicada de E. Beyer, 1998. LANGER, Suzane. Philosophy in a new key: a study in the simbolism of reason, rite and art. Cambridge, Harvard University Press, 1960. ______. Sentimento e forma. São Paulo : Perspectiva, 1980. LAZZARIN, Luís Fernando. Uma compreensão da experiência com música através da crítica de duas ‘filosofias’ da educação musical. Porto Alegre : UFRGS, tese, Faculdade de Educação, 2004. REIMER, Bennett. A philosophy of music education: advancing the vision : Prentice Hall, 2003. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo : editora UNISINOS, 2002. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo : Martins Fontes, trad. Eduardo Brandão, 1996.

416

POR UMA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO MUSICAL Pedro Carneiro [email protected] Prof. Dr. do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana – BA. Resumo: No âmbito de uma fenomenologia da percepção musical, os modelos tradicionais de análise musical, em sua grande maioria, trabalham sob a orientação de uma postura analítica: dividir um problema em tantas partes, quantas forem necessárias, para melhor resolvê-lo. Tal atitude favorece um certo entendimento da música alicerçado apenas na idéia de estrutura, ignorando, desse modo, a dimensão estética da experiência musical. Palavras-chave: estética, fenomenologia, musicologia, análise.

Sabemos, desde Husserl, que o trabalho do fenomenólogo consiste em permitir que as coisas se apresentem como elas são, livres de quaisquer construções intelectuais que, rotineiramente, projetamos nelas. No processo de experiência do conhecimento, não podemos, através de quadros teóricos de referencia, interferir nas coisas. São elas – as coisas – que se deixam revelar, que se mostram para nós. Aqui, não há ruptura entre o que é vivido e o que é pensado: o vivido e o pensado não são duas categorias separadas em planos diferentes. Ao contrario das atitudes racionalista e empirista, alicerçadas no pressuposto da dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento, a fenomenologia não faz distinção entre o papel atuante do sujeito cognoscente e a influência do objeto cognoscível. Merleau-Ponty observa que essas duas concepções (empirismo e racionalismo) estão impregnadas de construções artificiais acerca do fenômeno, com isso, nem uma nem outra é capaz de surpreender a consciência aprendendo, a dinâmica própria ao processo de conhecimento do conhecimento. O aprendizado da consciência ocorre no exercício do existir. Consciência e corpo dependem um do outro, funcionam em conjunto. Vivemos colados ao mundo exterior, portanto, o tradicional problema de se saber se o conhecimento parte das coisas para a consciência, ou da consciência para as coisas, não tem sentido para a fenomenologia, pois o objeto é sempre objeto para uma consciência e a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Tendo feito esses esclarecimentos introdutórios, passaremos a abordar algumas questões referentes ao exercício da análise musical. Jean-Jacques Nattiez, em seu artigo Semiologia Musical e Pedagogia da Análise, celebra a recente diversidade de modelos de análise musical, segundo ele, até pouco tempo atrás, todo musicólogo quando desenvolvia um novo modelo de análise, descrição e explicação dos fatos musicais, comportava-se como se o recém criado, não

417

apenas substituía os precedentes, como também os anulava. Prossegue ele, observando que o nosso momento atual é outro: “entramos numa nova fase da história da análise musical que nos obriga a admitir a coexistência dos diferentes modelos disponíveis” [1]. Em seguida, reporta-se a um “fenômeno novo e sintomático”, que confirmaria esse novo momento para o campo da análise musical, a publicação em um curto período de tempo (entre 1985 e 1988) de cinco obras que apresentam e descrevem todos os modelos de análise, revelando não apenas “a pluralidade dos paradigmas acessíveis”, mas o consenso em torno deles. Nattiez se refere às seguintes obras: o capítulo “Análise, teoria e música nova” do livro Musicologia de Joseph Kerman, publicado em 1985; o artigo “Análise” de Marc Devoto, publicado na edição do Harvard Dictionary of Music de 1986; a publicação, em 1987, em formato de livro de bolso, do artigo “Análise” de Ian Bent do New Grove Dictionary of Music and Musicians; o livro A Guide to Musical Analysis de Nicholas Cook, publicado em 1987 e o livro Music Analysis in Theory and Practice de Jonathan Dunsby e Arnold Whittall de1988. Com base nessas obras, Nattiez elabora uma lista que classifica como sendo “as principais tendências” da análise musical do século XX. São elas: - A teoria da harmonia tonal de Henrich Schenker; - A abordagem da harmonia, da forma e do motivo, proposta por Arnold Schoenberg; - A proposta de análise do tema e do motivo segundo Rudolph Réti; - A “Set-Theory” desenvolvida por Allen Forte, com base nos estudos de Milton Babbitt para análise da música serial; - A proposta de Leonard Meyer para análise rítmica e melódica; - O “Musical Critcism” desenvolvido por Joseph Kerman, Charles Rosen, Anthony Newcomp e Leo Treitler; - A Semiologia Musical do próprio Nattiez e de Nicholas Ruwet; - As várias propostas de análise por computador; - A Teoria Generativa de Fred Lerdahl e Ray Jackendorrff, desenvolvida com base nos escritos do lingüista Noam Chomsky; - As análises das musicas das várias tradições orais propostas pela etnomusicologia. Na perspectiva da fenomenologia, tais modelos de análise, a partir do que nos apresentam, apesar da aparente pluralidade celebrada por Nattiez, não diferem tanto assim, todos pressupõem um certo modo de se debruçar sobre a música que, stricto sensu, é comum à todos: a postura analítica – dividir um problema em tantas partes quantas forem necessárias para melhor resolvê-lo – está no fundamento de todas as propostas apresentadas. Tal orientação teórica está na base de um certo entendimento da música, comprometido apenas com a idéia de estrutura, com isso, o trabalho do analista não vai muito além da identificação de características (padrões e regularidades) que são imanentes ao texto da partitura.

418

Observa-se, no âmbito desse modo de entendimento da música, uma certa paridade entre as noções de ‘música’ e ‘estrutura’, quando a música se reduz e se define por sua estrutura. Questões “exteriores”, relativas ao processo composicional, ao contexto social que cerca o compositor, ou relativas ao ouvinte, à dimensão estética da experiência, ao gosto, à recepção pensada em um contexto sócio-histórico específico, não interessam ao analista, o foco recai apenas sobre o texto da partitura. Na lógica dessa dinâmica, música e partitura se confundem, se embaralham, parafraseando Umberto Eco (quando este se reporta a um texto de Jorge Luis Borges) é como se o mapa e o território fossem a mesma coisa, ou melhor, é como se o mapa fosse mais importante que o território [2]. Sobre isso, observa Joseph Kerman que os analistas padecem de uma certa miopia. A obstinada concentração destes nas relações internas é, na perspectiva de qualquer visão razoavelmente completa da música, em última instancia, subversiva. Entre os muitos elementos que contribuem para o significado e importância da música, a estrutura do texto da partitura é apenas um. O foco, quando limitado apenas à estrutura, negligencia questões e aspectos vitais – não só relativos a todo complexo histórico e social, mas igualmente à “tudo o que torna a música afetiva, tocante, emotiva e expressiva” [3]. Kerman chama nossa atenção para o fato de que a análise exerce forte influência sobre o modo como a teoria musical, enquanto uma matriz compreensiva da música (quando propõe e orienta acerca de como a música deve ser compreendida e pensada) é formulada. O campo da análise constitui – e institui – grande parte do que se conhece como teoria musical, “a teoria moderna não é (ou não é apenas) descritiva, mas, em certa medida, é também prescritiva” [4]. Talvez seja esta a maior miopia dos analistas, pretender traçar parâmetros para um modo singular de escuta musical em que a dimensão estética da experiência fica presa à questões que não ultrapassam os aspectos estruturantes relativos e limitados ao texto da partitura. A idéia de uma estrutura autônoma, que separa a música do todo da vida, é algo que nos reporta ao século XIX de Edward Hanslick e à idéia de ‘música pura’ (de certo modo análoga à idéia de ‘arte pela arte’). Para Hanslick, “a música compõe-se de série de sons, de formas sonoras; estas não têm outro conteúdo senão elas mesmas” [5]. Talvez aqui se encontre o germe para o desenvolvimento de toda teoria musical moderna de matriz positivista. É o compromisso com o ideal de uma estrutura autônoma que nos torna míopes para as possibilidades de uma ‘heteronomia’ musical (no sentido de que não se limita às questões inerentes ao texto da partitura) possível de ser percebida no âmbito de uma fenomenologia da percepção musical. O trabalho do analista, nestes termos, é procurar, identificar e classificar padrões e regularidades (melódicas, rítmicas, etc.) que caracterizariam e revelariam o ordenamento estrutural da partitura em estudo, ou seja, a identificação das invariantes estruturais responsáveis por sua singularidade e

419

forma. O problema das invariantes estruturais – e a própria noção de estrutura não se separa de tais invariantes, atômicas ou relacionais – é fundamental para a lingüística. A esse respeito, Gilles Deleuze e Felix Guattari, problematizando, no âmbito da lingüística, acerca dessas questões, observam que é apenas sob essa condição que “a lingüística pode reivindicar para si uma pura cientificidade, nada a não ser ciência..., a salvo de qualquer fator supostamente exterior ou pragmático” [6]. O lingüista, quando preso à idéia das constantes estruturais, sejam elas fonológicas, morfológicas ou sintáticas, fecha a língua sobre si mesma, escamoteando, desse modo, as questões referentes ao âmbito da pragmática, ou seja, ao acontecimento de fato da língua, portanto, à dimensão de sua experiência – região da heteronomia. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer, que os analistas musicais (na esteira dos lingüistas), quando comprometidos com o ideal de uma musicologia científica, fecham a música sobre si própria. Ocorre que – retomando a fenomenologia – como nos lembra Merleau-Ponty, o modo como a ciência manipula as coisas, pressupõe a renúncia de habitá-las [7]. No terreno de uma fenomenologia da percepção musical, alimentada pela dinâmica do fato musical, torna-se necessário “habitar” a música. Tarefa essa impensável quando se considera a postura do analista, sobretudo quando se postula um entendimento da música enquanto realidade autônoma. Porque comprometidos com o projeto de uma musicologia científica, os analistas preocupam-se apenas com as invariantes estruturais do texto da partitura, ignorando outras questões, referentes à ‘pragmática musical’, ou seja, ao acontecimento da música e à sua dimensão estética – irredutíveis ao método clássico de investigação científica. O método pede distanciamento, a música – no âmbito de seu acontecimento (situação pragmática) – pressupõe envolvimento. No que diz respeito à necessidade de uma ênfase na dimensão pragmática – ou, se preferir à importância das esferas do ‘performativo’ e do ‘ilocutório’ – o que Deleuze e Guattari observam é a emergência de três importantes conseqüências: primeiro, a impossibilidade de pensarmos a linguagem como um código, observando que esta é a condição que possibilita uma explicação; e, igualmente, a impossibilidade de se pensar a fala como a comunicação de uma informação: considerando que ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não se reduz à afirmação de um comando, uma dúvida, um compromisso, uma asserção, mas, de fato, consiste em efetuar esses atos imanentes específicos – necessariamente implícitos. Segundo, a impossibilidade de definição de uma semântica, uma sintaxe, uma fonética, enquanto campos científicos da linguagem, autônomos e independentes da dimensão pragmática; a pragmática deixa de ser uma problema, uma excrescência, as determinações do âmbito da pragmática deixam de estar submetidas à alternativa: “ou se voltar para o exterior da linguagem, ou

420

responder às condições explícitas sob as quais elas são sintaxizadas e semantizadas”[8], ao contrario, a pragmática emerge como o pressuposto fundamental de todas as outras dimensões, manifesta-se e se insinua em toda parte. Terceiro, a impossibilidade de assegurar a distinção entre língua e fala, considerando que a fala não pode mais ser definida, ou compreendida, simplesmente pela utilização extrínseca e individual de uma significação primeira, ou ainda, pela aplicação variável de uma sintaxe anterior: “ao contrario, são o sentido e a sintaxe da língua que não se deixam definir independentemente dos atos da fala que ela pressupõe” [9]. Ao fazerem tais reflexões, Deleuze e Guattari estão se reportando às teses de John L. Austin acerca dos aspectos performativos e ilocutórios da linguagem. O trabalho de Austin consiste em demonstrar que, muitas das relações que se estabelecem entre a fala e as ações que se realizam no ato da fala remetem-se mutuamente, na dinâmica de uma circularidade. É esse ‘remeter-se mutuamente’, porque intrínseco às circunstâncias próprias da enunciação, que define e qualifica o enunciado, melhor dizendo, na dinâmica dessa circularidade, enunciado e enunciação se confundem, poder-se-ia dizer que são a mesma coisa. Por exemplo, o performativo ‘juro’, ao dizer ‘eu juro’. Como observa Deleuze e Guattari: “um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. (...) ‘Eu juro’ não é o mesmo se for dito em família, na escola, em um amor, no interior de uma sociedade secreta, no tribunal” [10]. A ênfase na dimensão pragmática trás à tona questões relativas ao movimento da língua, aos aspectos que se mostram irredutíveis a uma gramática. No âmbito da dimensão pragmática, os problemas relativos à uma ‘agramaticalidade’ deixam de ser percebidos como contingência da fala – aquilo, de natureza exterior, que se oporia à ordem interna da gramática – para serem percebidos e compreendidos como uma característica própria da língua: algo que, estando em estado de variação contínua, atualizaria, permanentemente, um jogo de ‘diferença e repetição’, sempre alimentado e dinamizado pelas circunstâncias da enunciação. “A lingüística não é nada fora da pragmática (...) que define a efetuação da linguagem e o uso dos elementos da língua” [11]. No que diz respeito às questões relativas à análise musical, parafraseando Deleuze e Guattari, poderíamos dizer que: uma compreensão da música não existe independente de seu acontecimento – isto é, de sua situação pragmática – onde, igualmente, se verifica um jogo de ‘diferença e repetição’, que, permanentemente, atualiza o seu sentido, que, necessariamente, sempre emerge da situação e do modo em que a música é experienciada e vivida. No âmbito da música (ou da arte), as questões relativas à dimensão pragmática (ou estética) abrange às questões referentes ao estilo. Retomando mais uma vez Deleuze e Guattari, eles observam que “o que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do mundo, é precisamente o processo de

421

uma variação contínua”. Ora, entre todos os dualismos apresentados e instaurados pela lingüística, existem poucos com carência de fundamento como o que separa a lingüística da estilística: “sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agenciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro de uma língua” [12]. Muito embora tais questões se refiram à lingüística, acreditamos que sua transposição para o âmbito da música (em particular no que se refere à produção e recepção estéticas) é de fundamental importância, sobretudo dentro de um projeto que se propõe pensá-la nos termos de sua dimensão pragmática, ou melhor, na dinâmica de uma fenomenologia da percepção musical. As questões relativas ao estilo, tanto no âmbito da lingüística como no da arte, estão muito próximas. Maurice Merleau-Ponty, escrevendo sobre o trabalho do pintor, faz a seguinte consideração: “o que o pintor põe no quadro não é o eu imediato, o matizar-se do sentir, mas seu estilo, que conquista tanto por seus experimentos quanto pela pintura dos outros e do mundo” [13]. Mas afinal, o que é o estilo? Como vimos, em Deleuze e Guattari é um procedimento de variação contínua, mas é, também, um agenciamento de enunciação. Ou seja, algo que se atualiza, que se enuncia, na dinâmica de um jogo de diferença e repetição. Esse jogo que se dá a partir dos processos de desterritorialização e reterritorialização de pressupostos estéticos estabelecidos, é percebido, nos termos de MerleauPonty, como algo que se desenvolve a partir dos experimentos do artista em relação à tradição – ‘a pintura dos outros’ – e o mundo. Dito de outro modo, a dinâmica própria do jogo de diferença e repetição, se desenvolve do conflito, ou, se preferir, do dialogo, entre o artista, a tradição e o mundo os envolve. O estilo emerge do modo (situação pragmática) como esse conflito, sempre alimentado pelos processos de desterritorialização e reterritorialização de valores, se resolve numa obra de arte acabada. Simplificando, poder-se-ia dizer que o estilo é algo que desdobra-se do modo como se joga. Sobre isso, assinala Monclar Valverde que, em se concebendo a arte como um jogo, a criatividade artística surge como força resultante da tensão entre diferença e repetição. Todo processo simbólico, todo processo através do qual se verifica a configuração de um sentido partilhado, “só é possível com o permanente confronto e combinação de padrões sistemáticos, regrados e estruturais, com um regime assistemático”, envolvendo o acaso, a circunstância, a performance e o momento, que instaura e dinamiza a tensão entre diferença e repetição [14]. Tendo feito tais considerações, podemos dizer que a obra dos compositores não pode ser reduzida à noção de um encadeamento de sons numa determinada estrutura. Por outro lado, o estilo não é, simplesmente, o resultado de uma vontade estética. Na esteira de Alfonso Quintás: os estilos resultam da confluência de diversos elementos –estéticos, éticos, religiosos, econômicos, políticos e sociais – que possibilitam e dão lugar a uma certa concepção de existência e a uma atitude vital correlativa [15].

422

Enquanto jogo, a arte revela e apresenta, como alternativa, um modo singular de estar no mundo, de responder e reagir às resistências que o mundo impõe, de ouvir ao chamado dos valores da cultura e da tradição, de ver e de viver o mundo no âmbito do registro das singularidades que instaura e oferece. Nesse sentido, é legítimo pensar que a obra dos compositores encarnam mundos particulares: o mundo de Bach, o mundo de Mozart, de Chopin, etc. [16]. Desde quando é plasmada e atualizada na dinâmica de um jogo, a arte não pode, ou não deveria, ser percebida e pensada nos termos de uma estrutura que se revela a partir de suas constantes e invariantes estruturais. Enquanto resultado e produto de um processo que representa a atualização de uma condição existencial, a arte constitui-se como uma espécie de possibilidade para um mundo – alternativo – possível e passível de ser habitado, experimentado, fruído, vivido, e, enquanto tal, é abertura de/para possibilidades transformadoras. Tal compreensão não é possível enquanto permanecemos condicionados a aquela noção de estrutura subjacente aos modelos de análise musical tradicionais. O ato de compor pressupõe uma certa postura de abertura e disponibilidade para o todo da vida, melhor dizendo, abertura e disponibilidade para misturar o seu âmbito de realidade (ou, melhor, âmbito de vida) com o âmbito de outras realidades. Aqui, as noções de autonomia e heteronomia se confundem e coincidem, ambas conspiram em favor do jogo criativo. Nas palavras de Quintás: “essa atividade lúdica instaura vida espiritual, une o homem às realidades do meio ambiente com formas relevantes de unidade, põe-se na presença delas, porque supera a divisão entre o campo do interior e o do exterior. (...) A abertura à realidade sob o impulso dessa atitude concede ao homem liberdade interior, liberdade para a criatividade. (...) Esse modo elevado de liberdade (...) permite vincular de modo fecundo no homem a autonomia e a heteronomia, o poder de se governar por leis próprias, elaboradas em sua interioridade, e a necessidade de se orientar por critérios e normas recebidas em princípio de fora” [17]. O que é importante destacar do que foi colocado, é a percepção de que os ‘mundos particulares’, por exemplo, de Bach, Beethoven, ou Chopin, plasmados em suas obras, não são privativos destes. Como assinala Merleau-Ponty, em relação ao trabalho do pintor: “a obra não se passa longe das coisas e em algum laboratório íntimo cuja chave o pintor possuísse” [18]. A atitude de abertura e disponibilidade do artista, presente no jogo criativo, se estende até a obra. Os âmbitos de emoção da obra de arte, plasmados no âmbito do jogo entre a condição existencial do artista, as resistências do mundo e os valores da tradição, podem ser atualizados e vividos pelo fruidor. É, portanto, possível participar desse mundo – a obra de arte – de modo concreto, uma vez que pode ser habitado e partilhado. Retomando mais uma vez Merleau-Ponty: “a obra que se cumpre não é, logo, a que existe em si como coisa, mas a que atinge o espectador, convidando-o a

423

retomar o gesto que a criou e, saltando mediações, sem outro guia que não o movimento da linha inventada, a alcançar o mundo silencioso do pintor, ora proferido e acessível” [19]. Do que foi dito, gostaríamos de observar que, ao contrário de uma postura analítica que almeja a um entendimento objetivo da arte, que se pensa e se acredita autônoma do todo da vida; uma postura fenomenológica, alicerçada na experiência estética, pensa o fenômeno arte a partir do compromisso com uma participação ontológica entre obra de arte (enquanto jogo dinâmico que atualiza uma condição existencial) e o fruidor. No domínio dessa postura fenomenológica, tal modo de compreensão nos remete à etimologia da palavra ‘conhecimento’, no significado de ‘nascer com’. Significado que, vale lembrar, atualmente só se mantém no francês: connaissance que é co-nascimento. Portanto, uma reflexão de natureza fenomenológica, que se desenvolve do âmbito da experiência estética, desdobra-se do envolvimento entre compositor e fruidor, ou seja, da possibilidade de uma participação de natureza ontológica que envolve os dois. Explica-se: tal participação é possível a partir da compreensão de que as obras dos compositores são abertas, ou seja, podem ser fruídas, pois encarnam mundos, que atualizam uma determinada condição existencial, plasmada no jogo da relação entre o compositor, os valores da tradição a qual pertence e as resistências do mundo (valores sociais, políticos, etc.) que o cerca. O resultado desse encontro (ou embate) entre o compositor e as realidades que o circunda, não pode ser reduzido (ou pensado) a um mero subjetivismo: o mundo impenetrável do compositor. Trata-se de uma entidade (desde o início) relacional, de um ‘entre’, que, por ser desse modo, possibilita a participação do outro. É nestes termos que a ‘escuta’, base para a experiência estética da música, que se desdobra do âmbito de uma participação ontológica entre compositor e fruidor, pode ser descrita e compreendida nos termos da ‘lógica’ de uma fenomenologia da percepção musical.

REFERENCIAS [1] NATTIEZ, J.J. "Semiologia musical e pedagogia da análise", Opus, Vol., 2 No. 2, 1990, pp. 50-57. [2] ECO, U. “Da impossibilidade de construir a carta do império em escala um por um”. O Segundo Diário Mínimo, 1994, pp. 213-221 [3] KERMAN, J. Musicologia, 1987, pp. 93-94. [4] KERMAN, J. Musicologia, 1987, pp. 93-94. [5] HANSLICK, E. Do Belo Musical, 1989, p.155. [6] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 34. [7] MERLEAU-PONTY, M. “Textos escolhidos”, Os Pensadores, 1975, p.275.

424

[8] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 14. [9] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 14. [10] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 20. [11] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 26. [12] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, 1995, p. 41. [13] MERLEAU-PONTY, M. “Textos escolhidos”, Os Pensadores, 1975, p.341. [14] VALVERDE, M. “Estética e recepção”, Comunicação e corporeidades, 2000, pp. 87-100. [15] QUINTÁs, A.L. Estética, 1993, p. 156. [16] QUINTÁs, A.L. Estética, 1993, p. 77. [17] QUINTÁs, A.L. Estética, 1993, p. 78. [18] MERLEAU-PONTY, M. “Textos escolhidos”, Os Pensadores, 1975, p.343. [19] MERLEAU-PONTY, M. “Textos escolhidos”, Os Pensadores, 1975, p.340.

425

O BRASIL NA MÚSICA: REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA NA PRODUÇÃO MUSICAL DO SÉCULO XX Potiguara Curione Menezes [email protected] Doutorando - Universidade de São Paulo (ECA/USP) Resumo: O presente artigo trata do processo de construção de imagens na elaboração da identidade cultura expressa na música erudita brasileira durante o século XX. Para isso, buscou-se apontar algumas questões conceituais que são fundamentais para um entendimento da cultura brasileira como um sistema de representação cultural. Nesse sentido, tentamos traçar um quadro referencial de como se criaram algumas relações significativas entre os materiais musicais e os elementos da cultura brasileira. Para isso, tivemos que partir da definição dos conceitos de identidade e sujeito pós-moderno. Em seguida, procuramos entender o processo de construção das narrativas e imagens em torno de uma identidade cultural nacional, para, só então, compreender a relatividade das autoimagens coletivas que se fizeram presentes na música erudita brasileira neste período. Palavras-Chave: Identidade Cultural, Cultura Brasileira; Música Contemporânea.

USOS E CONCEPÇÕES DE ELEMENTOS DA CULTURA BRASILEIRA NA MÚSICA DO SÉCULO XX Sabemos que, desde o final do século XIX, muitos compositores se apropriaram e empregaram elementos étnicos e da cultura brasileira, transformando-os em materiais musicais. Neste percurso, estes criadores conceberam tais referências com intenções e maneiras distintas. Porém, o que viria a ser um elemento musical pertencente à cultura brasileira, é uma indagação que depende de uma série de fatores para ser compreendido. Para nortear um discurso sobre esse assunto, é preciso aclarar questões como: Que tipo de manifestação e que tipo de música concede a um elemento esta qualidade? Ser produzido no Brasil ou por autor brasileiro? Ser popular? Ter suas origens no nosso país? Haver sido produzido por etnias consideradas fundadoras da nossa cultura? Conceitualmente, a questão principal que se coloca, por detrás das indagações feitas acima, é o tema da identidade cultural. Neste sentido, faz-se necessário abordar tal conceito com o intuito específico de orientar uma discussão de foro musical. Assim, proporemos algumas inquisições que servirão de guia para o entendimento deste tema: O que, quem e/ou como se define um elemento como culturalmente brasileiro? Como foram criadas tais definições? Estas características são fixas? Existe uma cultura brasileira única?

426

Responder satisfatoriamente questões deste tipo não é tarefa fácil e demandaria muitas reflexões teóricas profundas, para além do que seria possível neste artigo. No entanto, queremos apontar aspectos fundamentais para o entendimento da construção de imagens da cultura nacional. Tais aspectos estão associados ao emprego dos elementos musicais, considerados portadores de brasilidade, por determinados compositores. Vários autores vêm abordando e discutindo extensamente o tema da identidade cultural, dentro das correntes da teoria social. Vamos encontrar, fora do Brasil, nomes como Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Benedict Anderson, Homi Bhabha, Ernest Gellner, Anthony Giddens, Richard Handler, Judith Butler, Craig Calhoun, Nestor Canclini e Anthony Smith – para citar apenas alguns. No plano nacional, Darcy Ribeiro, Renato Ortiz, Carlos Mota e Claudia Rezende – entre outros – são referências importantes para qualquer argumentação relacionada ao tema. Particularmente, três livros – por oferecerem uma visão panorâmica sobre o assunto – nos guiarão na explanação dos conceitos-chave que iremos trabalhar: A identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2006), Retratos do estrangeiro (REZENDE, 2009) e Cultura brasileira e identidade nacional (ORTIZ, 1994). Tendo em vista as observações acima, trataremos, de forma breve, dos processos de construção das narrativas e imagens relacionadas a uma identidade cultural nacional. Para isso, começaremos com uma curta explanação dos conceitos de sujeito, identidade e pertencimento. Em seguida, partiremos para a conceituação da cultura nacional. Por fim, chegaremos à questão-foco deste artigo, que é relacionar a construção da identidade cultural brasileira com o imaginário musical em torno dela no decorrer do século XX. OS CONCEITOS: SUJEITO, IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E CULTURA NACIONAL Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar... (Marx e Engels apud HALL, 2006, p. 14)

A epígrafe enunciada por Karl Marx, em relação à modernidade, prenunciava o processo de mudança na construção das identidades que estamos presenciando nos dias de hoje. Como denota Stuart Hall (2006): (...) o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (...) O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 2006, p. 12)

427

O descentramento do sujeito resultou nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas do sujeito pós-moderno (HALL, 2006, p. 46). Assim, este sujeito não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente, ao contrário, ele “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente” (HALL, 2006, p. 13). Essas identidades são constituídas e transformadas continuamente em relação às formas pelas quais somos representados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Portanto, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, nós somos confrontados por uma multiplicidade de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall apud HALL, 2006, p. 13). Neste sentido, referindo-se a autores como J. Butler, C. Calhoun, Dorinne Kondo e o próprio S. Hall, Claudia Rezende (2009) argumenta que “a identidade vem sendo tratada geralmente, na literatura das ciências sociais, como planos de identificação que são construídos continuamente – e não dados a priori – desempenhados de acordo com os vários contextos de interação, sempre em transformação” (REZENDE, 2009, p. 19). A identidade é realmente um elemento formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não um elemento inato. Portanto, “existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela [a identidade] permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada” (HALL, 2006, p. 38). Rezende (2009) aponta que “apesar da diversidade de enfoques”, há dois aspectos fundamentais, relativamente consensuais, para “compreender como a identidade gera pertencimento”. O primeiro seria a relação de unidade e semelhança de um sujeito com determinado grupo social, por contraste com os outros grupos. “Definir quem é uma pessoa implica definir quem ela não é.” Assim, a identidade é colocada como uma ocorrência “relacional e contrastiva”. Neste sentido, Roberto Cardoso Oliveira (apud REZENDE, 2009, p. 21) enfatiza “o caráter frequentemente latente das identidades étnicas, que só se manifestam em situações de contraste, o que também é comum às identidades nacionais”. O segundo aspecto seria o reconhecimento – tanto pelo grupo afim quanto por outros – desta relação de pertencimento criada pelo sujeito. Portanto, “a identidade articula duas instâncias de caráter igualmente social – a experiência individual e o pertencimento a grupos sociais” (REZENDE, 2009, p. 20). Para nós, é importante destacar estas duas maneiras de elaboração do vínculo de pertencimento do sujeito ao grupo, pois estas estão entre os principais processos envolvidos na formação das identidades nacionais. Esta sensação de pertencimento está ligada diretamente ao modo como este sujeito irá criar seu sistema de representações, que definirá as atribuições dadas por ele aos objetos ao seu redor. Autores como Katherine Verdery e Michael Herzfeld – citados por Claudia Rezende (2009, pp. 73-74) – apontam a existência dessa “subjetividade

428

nacional” no processo de construção individual dos significados do que é ser nacional. Tais afirmações nos ajudam a lembrar que, para um elemento musical ser considerado como parte integrante da cultura brasileira, é necessário que um indivíduo e/ou um grupo considere-o como tal. As manifestações de nossas identidades culturais podem se dar em muitas instâncias e surgem, principalmente, da sensação de “pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (HALL, 2006, p. 8). A identidade nacional é uma destas instâncias da identidade cultural. “O pertencimento a uma comunidade política é um dos elementos-chave da identidade nacional e traz consigo duas questões” (REZENDE, 2009, p. 21). A primeira é a ideia de pertencimento como algo consciente. Assim, a consciência de integrar uma comunidade política, com direitos e deveres comuns a todos, faria parte de qualquer identidade ou movimento nacional (Smith; Hroch apud REZENDE, 2009, p. 22). A outra questão é o caráter diferencial advindo da noção de “partilhar experiências em função de pertencer a uma nação” (Woodward; Anderson; Verdery apud REZENDE, 2009, p. 22), em oposição aos que não pertencem a ela. Novamente colocam-se, aqui, os dois aspectos relacionais e contrastivos da identidade, citados anteriormente. Conforme a argumentação apresentada, vimos que as identidades não são características com as quais nós nascemos, elas são, sim, “formadas e transformadas no interior das suas representações” (HALL, 2006, p. 48). De acordo com o raciocínio deste autor, nós só sabemos o que significa ser brasileiro, por exemplo, devido ao modo como a brasilidade veio a ser representada — como um conjunto de significados — pela cultura do país. “A nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos — um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos(ãs) legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional” (HALL, 2006, pp. 48-49). As culturas nacionais atuam tanto como uma fonte de significados culturais, quanto como um foco de identificação e um sistema de representação. As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...). Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma comunidade imaginada. (Anderson apud HALL, 2006, p. 50)

Essas comunidades imaginadas são perpetuadas pela memória do passado e pelo desejo de viver em conjunto. Porém, “as nações, tais como as narrativas,

429

perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente” (Bhabha apud HALL, 2006, p. 51). A frase de Homi Bhabha aponta para a relatividade da ideia de nação, reforçando a hipótese de Hall de que as culturas nacionais “são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural” (HALL, 2006, p. 62). Neste sentido, para o autor, as nações modernas são verdadeiros “híbridos culturais”. Para finalizar a conceituação da cultura e da identidade nacional, é necessário reafirmar que ocorre, na atualidade, uma desconstrução da ideia de cultura nacional como identidade unificadora. “As identidades nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas estão sendo agora deslocadas pelos processos de globalização” (HALL, 2006, p. 50). O próximo ponto a ser discutido é a maneira como se formam estes sistemas de representação e pertencimento que definem as identidades nacionais. Como é contada a narrativa da cultura nacional? Rezende (2009) e Hall (2006) apontam vários aspectos que constituem esta narrativa e têm pontos em comum em suas respostas a estas indagações. O aspecto principal dessa confluência seria o fato de que as noções de cultura e história (partilhadas por todos) carregam, em geral, visões homogeneizantes e essencialistas dessa cultura comum. Elas tendem a ofuscar a diversidade cultural e social existente no interior de qualquer nação através da criação e disseminação de uma autoimagem coletiva. Nesse sentido, Hall apresenta-nos cinco exemplos de como são contadas tais narrativas nacionais, todos eles relacionados de algum modo com o ideal aglutinador descrito acima: 1) O primeiro refere-se à formação de imagens comuns através da literatura e história nacional, mídia e cultura popular, conferindo à existência dos sujeitos “um destino nacional que pré-existe a nós e continua existindo após a nossa morte” (HALL, 2006, p. 52). 2) O segundo exemplo está relacionado à intemporalidade e refere-se à ênfase em representar a identidade nacional como algo primordial, tradicional, unificado, contínuo e imutável. 3) O terceiro é a constatação de uma estratégia discursiva, denominada por Hobsbawm e Heger (apud HALL, 2006), de invenção da tradição. Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas... Tradição inventada significa um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado. (HALL, 2006, p. 54)

430

4) O mito fundacional é o quarto exemplo de narrativa da cultura nacional dado pelo autor. Trata-se de “uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo real, mas de um tempo mítico” (HALL, 2006, p. 54). 5) O quinto – e último caso descrito – é de caráter simbólico e utiliza como base para a narrativa da nação a crença na existência de um “povo ( folk) puro original”. Rezende (2009) acrescenta a este quadro referencial que a elaboração das imagens coletivas associadas à identidade de um tipo nacional, geralmente, estão vinculadas a elementos de gênero e raça. Há uma preleção por determinadas características – corporais ou raciais – ou a adoção da mistura racial como narrativa da nação brasileira ou ainda a eleição de uma imagem tipificada como representante do sujeito nacional. Os argumentos apresentados até aqui nos mostraram alguns mecanismos de construção da ideia de nação, como comunidade imaginada, e das identidades nacionais através das estratégias de narrativas nacionais. Esses argumentos, muitas vezes, implicam a criação de estereótipos. A persistência e adesão a estas imagens tipificadas acontecerão, em maior ou menor grau, dependendo do sujeito e do contexto onde se manifestem as identidades em questão. Contudo, coloca-se aqui uma nova inquietação: como se manifesta a identidade nacional no sujeito pós-moderno? Tendo em mente as características relacionais e contrastivas da identidade, apontadas no decorrer deste trabalho, nota-se que sua manifestação torna-se mais visível em situações de contraste, no confronto entre grupos nacionais distintos. “Nestes contextos, as pessoas frequentemente recorrem a estereótipos do outro, tendo também que lidar com as imagens tipificadas de si mesmo, apresentadas pelos outros...” (REZENDE, 2009, p. 74). Em seu livro, citando também outros estudos similares, Claudia Rezende (2009) discorre sobre a utilização de estereótipos por brasileiros que viveram no exterior na descrição de suas brasilidades. As referências aos hábitos alimentares e às comidas – como a feijoada, o café, o pão de queijo e o churrasco – à afetividade e ao caráter festeiro dos brasileiros foram pontos comuns no discurso dos indivíduos estudados. Da mesma forma, este trabalho buscará, posteriormente, avaliar em que medida estão presentes elementos tipificados ou estereotipados – bem como a existência de traços comuns – na representação e utilização dos elementos da cultura brasileira pelos(as) compositores(as) em suas obras. No entanto, mesmo que “(...) a definição de brasilidade passe, em geral, por símbolos nacionais e outros estereótipos (...)”, ela “não escapa de ser tingida por um sentimento ambivalente”, pois há uma negociação dessas imagens no processo de elaboração identitária, uma “subjetividade nacional”. Portanto, “se há um imaginário acerca

431

do que significa ser brasileiro, ele é manipulado, com alguma variação, pelas pessoas, que constroem assim um sentido de pertencimento à nação, de modo não tipificado, com características individuais” (REZENDE, 2009, p.75). UMA VISÃO MUSICAL CULTURAL BRASILEIRA

DAS

NARRATIVAS

SOBRE

A IDENTIDADE

Chegamos assim ao ponto nevrálgico deste artigo. Se, antes, estávamos discutindo a maneira como é contada a narrativa da cultura nacional, queremos, agora, ir ao encalço das expressões desses aspectos no âmbito musical brasileiro no século XX. Sem muitas pretensões, tentaremos trazer para o universo da música os conceitos explorados na seção anterior deste trabalho. Primeiramente, retornaremos às questões levantadas no início deste texto – sobre as definições de relação entre elementos musicais e cultura brasileira – para elucidar alguns pontos. Em seguida, apresentaremos um pequeno painel histórico das aparições desses aspectos na composição musical no decorrer do século XX, buscando relacionar as estratégias de narrativa e os processos envolvidos na formação de um ideal de identidade cultural brasileira com as recorrências musicais de certos símbolos criados neste período. Vejamos o primeiro ponto ao qual nos referíamos: definir um elemento musical como culturalmente brasileiro continua uma indagação carente de resposta objetiva. Vimos que uma resposta convincente passaria pelo entendimento da construção fragmentada e subjetiva da identidade do sujeito pós-moderno e que a definição de uma cultura nacional não é fixa e definitiva, mas construída continuamente de acordo com as narrativas a seu respeito. Nesse sentido, o sociólogo e antropólogo Renato Ortiz (1994) procura mostrar que a identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro. Não existe, assim, uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos históricos. Tendo em vista a complexidade e o caráter abstrato dos conceitos envolvidos na definição da cultura e identidade nacional no Brasil, apresentaremos, a seguir, alguns exemplos de relação entre as narrativas em torno desta identidade e a criação de símbolos musicais brasileiros. O intuito desta exemplificação é compreender historicamente o surgimento de alguns símbolos e estereótipos musicais, consensualmente, tidos como nacionais. Para isso, utilizaremos os cinco exemplos de estratégias narrativas na construção de imagens, apontados por Stuart Hall (2006). O primeiro aspecto narrativo, denotado por Hall, de construção de imagens comuns numa cultura nacional, refere-se ao papel da literatura e história oficial do país, mídia e cultura popular. Tomemos como exemplo a mídia de um determinado momento histórico do Brasil (meados do século XX). O compositor e

432

musicólogo Mauricio Dottori (2005) destaca o papel fundamental da indústria fonográfica e da rádio na formação de uma visão comum do país – através da difusão em massa da canção brasileira. O autor assinala a influência musical nas representações que nós, brasileiros, temos de certas regiões do país, como a música de Dorival Caymmi na imagem Bahia; a bossa nova e o samba carioca no ideário sobre o Rio de Janeiro; e o baião na representação da região nordeste. “Estados brasileiros que não participaram deste projeto de construção musical da nacionalidade (como o Paraná ou o Espírito Santo) não pertencem ao imaginário brasileiro” (DOTTORI, 2005, p. 114). A ênfase na tradição, continuidade e intemporalidade, contida no segundo exemplo do antropólogo jamaicano, pode ser encontrada na adoção do folclore como expressão máxima da brasilidade pelo nacionalismo musical. A ausência de um compositor, e, portanto, de uma origem determinada, da manifestação folclórica abraça a ideia de representar a identidade nacional como algo primordial, tradicional, unificado, contínuo e imutável. Da mesma forma, o destaque (por estas correntes teóricas) da ancestralidade rítmica afro, atribuída à música urbana da primeira metade do século passado (XX) – como o maxixe, o tango brasileiro, o choro, e, posteriormente, o samba –, dilui suas origens num tempo imemorial. A terceira estratégia discursiva descrita é a invenção da tradição. Um exemplo deste aspecto é a ideia, muito difundida, de que o samba é algo que sempre foi tradicional na cultura brasileira. Esse argumento é falso e traz consigo duas questões. A primeira é que ele é uma manifestação urbana recente, datada do século XX e, portanto, tem apenas cerca de cem anos. A outra diz respeito à sua ocorrência, geograficamente localizada, e sua fundação étnica. O samba tem suas origens na música negra do Rio de Janeiro e da Bahia. No entanto, ao ser considerado como símbolo nacional, ele perde sua especificidade de origem e torna-se um elemento unificador de nossa cultura. O mito fundacional é o quarto exemplo, no livro de Stuart Hall (2006), de forma narrativa das nações. Ortiz (1994) aponta que, na virada do século XIX para o século XX, surge a “fábula das três raças” – como apresentada pelo antropólogo Roberto da Matta. Contudo, parece ser mais preciso considerar essa fábula como mito, pois, tal como ocorre nas sociedades primitivas, ela é um mito cosmológico e conta a origem do moderno Estado brasileiro. O texto de Darcy Ribeiro (1992) a seguir traça um paralelo entre o sujeito nacional do período colonial e do moderno (ou pós-moderno), descrevendo uma tipologia física comum aos brasileiros, “tanto os de ontem como os de hoje”, baseada nas raças consideradas como formadoras de nossa cultura. Apresenta-se, desta maneira, uma origem da identidade étnica e cultural da nação num tempo que se aproxima da ideia de tempo mítico, referido por Hall.

433

O brasileiro é aquele que se assume como brasileiro para deixar de ser ninguém. É filho da índia prenha por um branco, que não se identifica com seu gentio materno, subjugado e subalterno, mas também não é aceito como igual pelo gentio paterno, que o vê como filho da terra, bastardo e espúrio. É mulato, parido por uma negra prenhada pelo amo ou pelo capataz, que não quer ser negro, por ser mais claro e por rejeitar a condição servil da mãe, mas não é visto como igual pelos brancos, nem sequer, como gente verdadeira. Esses mestiços mulatos, Zéninguéns, já não sendo índios, nem afros, nem europeus, caem no vazio do não ser, de que só podem escapar assumindo outro ser, outra identidade, a de brasileiro. Brasileiro é, pois, esta gente nativa mestiça, sobrante e indesejada, que irrompe na sociedade colonial, partida entre senhores e escravos, como uma entidade nova e intrusa. A imensa maioria destes brasileiros, tanto os de ontem como os de hoje, tidos como brancos, deixa ver, nas feições, a marca de sua origem indígena; se morenos, sua ancestralidade africana. (RIBEIRO, 1992, p. 32)

O quinto exemplo de aspectos da narrativa nacional pauta-se na criação de um “povo (folk) puro original”, de caráter simbólico. Esta entidade representaria a etnia primordial da nação. No nosso caso, temos a figura do índio, apesar das diferentes representações nos diversos momentos da nossa história. Já desde o romantismo brasileiro, temos, na chamada fase indianista, a figura indígena representada na obra de diversos autores, como José de Alencar, na literatura, e Carlos Gomes, na música. Porém, este personagem aparece de forma fantasiosa numa busca pela sua europeização civilizatória e não se reflete sonoramente, através da incorporação de elementos musicais indígenas. Posteriormente, durante o nacionalismo modernista, a imagem indígena retorna, mas com um novo enfoque. Foi atribuído a esta figura um caráter de entidade germinal de nossa terra-mãe – juntamente ao elemento negro – através da reinterpretação do mito das três raças. Embebidos nestes ideais, alguns compositores buscaram fontes etnográficas da época para incorporar elementos musicais indígenas em suas obras. São muitos os exemplos musicais em que se ouvem melodias e ritmos de origem indígena na música de Villa-Lobos e demais compositores. Esta imagem de brasilidade musical exótica foi amplamente difundida na França durante a década de 1920 pela obra de Villa e por autores como Darius Milhaud. Agora que já observamos algumas das maneiras como as narrativas em torno da nação podem se refletir em imagens musicais, atenhamo-nos à questão de como se formaram e se manifestaram as questões de brasilidade na música erudita brasileira, no decorrer do século XX. Para responder a esta indagação e contextualizar o recorte desta pesquisa – as últimas duas décadas do século XX –, delineou-se um pequeno painel histórico das inserções de material relacionado à cultura nacional e/ou popular, na composição musical. Buscaremos pinçar pontos fundamentais onde as

434

narrativas em torno da identidade nacional expandiram-se para o âmbito musical erudito no Brasil. Desde o final do romantismo, a representação musical de elementos da cultura brasileira surgiu em obras de diversos compositores, com procedimentos e técnicas derivados de diversas correntes e estilos musicais. Críticos e musicólogos abordaram questões sobre o nacionalismo musical e a vanguarda cosmopolita. Manifestos e cartas foram publicados e discutidos. Até há poucos anos, ainda se fazia presente a oposição veemente entre esses dois partidos de militância. Ambos devidamente policiados ideologicamente pelos parâmetros respectivos de cada corrente. Ao início do século XXI a querela se dissolveu, talvez diante uma outra questão, o desinteresse da sociedade pela música contemporânea de concerto. (Coelho apud MARTINEZ, 2006, p. 1)

No Brasil, desde o final do século XIX, já se observam, na música, representações da cultura brasileira. Segundo a musicista, jornalista e escritora Léa Freitag (1985), tal fenômeno já havia sido prenunciado ainda antes, no período do Império, com a nacionalização da ópera por autores como Francisco Manuel da Silva (1795-1865) e Carlos Gomes (1836-96). Neste sentido, Arnaldo Contier (1978) denota o processo gradativo de rompimento com a temática religiosa e o crescimento das modinhas e lundus na primeira metade do século XIX, associado ao conceito de consolidação de Nação, como fatores que favoreceram as primeiras intenções de expressar a brasilidade na música. Podemos apontar alguns compositores entre os mais representativos do período que antecede o nacionalismo brasileiro. Tais autores demonstram em suas composições um reflexo das correntes dos principais polos artísticos europeus: França, Alemanha e Itália. São eles: Henrique Oswald (1852-1931), de linguagem musical fortemente afrancesada, Leopoldo Miguez (1850-1902), com influências de Wagner e Glauco Velásquez (1884-1914), de raízes italianas. Alguns musicólogos apontam A Sertaneja (1860-69) de Basílio Itiberê da Cunha (1848-1913) como uma das primeiras obras que inserem elementos da cultura popular brasileira em sua confecção, pela utilização do “fandango sulino” Balaio (RS) como tema central da peça. Inaugura-se nesse período a fase que Mariz (1983) chama de pré-nacionalismo na música brasileira. Esse momento é ainda muito influenciado pelo romantismo literário. Nomes como Gonçalves Dias e José de Alencar adaptaram modelos europeizantes a elementos nacionais, como por exemplo, na caracterização da figura do índio brasileiro. Tratava-se de mais uma tentativa de promover o elemento nativo a símbolo nacional. Nesse contexto, surgiram também Alexandre Levy (1864-1892) e Alberto Nepomuceno (1864-1920), músicos que continuaram com esse processo de busca por uma identidade composicional brasileira em suas obras. Simultaneamente, delineava-se uma corrente de pensamento preocupada com a problemática da identidade nacional. Os precursores das Ciências Sociais no Brasil, ao final do

435

século XIX e início do XX, Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, apresentaram um conjunto de teorias que teria contribuído para a superação do movimento romântico, com grande impacto junto à intelligentsia brasileira: “o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer”; teorias que em linhas gerais podem ser consideradas sob a ótica do aspecto da “evolução histórica dos povos” (ORTIZ, 1994). Numa pequena digressão, poderíamos dizer que a sociologia da época atenta para a questão racial e marca a superioridade da civilização europeia como decorrente das leis naturais que orientam a história da humanidade. É assim que, nesse período de virada de século, se torna corrente a afirmação de que o Brasil se constitui através da fusão de três raças – o branco, o negro e o índio – mas com um viés claramente racista, dando maior importância à raça branca. Atestando tal ideia, segundo Nina Rodrigues (apud ORTIZ, 1994), a absorção incompleta de elementos católicos pelos cultos afro-brasileiros demonstra uma incapacidade de assimilação da população negra dos elementos vitais da civilização europeia. Assim, emergiu a necessidade de se destacar o elemento mestiço, que representaria um ponto de equilíbrio. Daí surgiu a elaboração de uma identidade nacional, em que a mestiçagem moral e étnica possibilita a aclimatação da civilização europeia nos trópicos. Retomando a veia musical, concluímos que as primeiras representações das narrativas em torno da identidade cultural brasileira, em termos musicais, se deram através “de um trabalho composicional caracterizado pelo emprego de temas (quase sempre melódicos) da música popular, temas que eram tratados segundo métodos harmônicos e polifônicos europeus” (NEVES, 1981, p. 19). Essa subalternidade do elemento nativo à estrutura europeia está ligada, em parte, à visão intelectual da época citada. É preciso ter em mente a influência que a imagem da Belle Époque francesa teve sobre esta sociedade brasileira como um todo. Assim sendo, tal contexto influenciou também a geração seguinte de compositores, que inclui nomes como Luciano Gallet (1893-1931), Lorenzo Fernandez (1897-1948) e Francisco Mignone (1897-1986), entre outros. Porém, neste período, as maiores transformações na música virão de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), o compositor brasileiro mais conhecido até hoje: “as inovações da linguagem de Villa-Lobos estendem-se a diferentes áreas da criação, sejam elas afetas aos meios expressivos, às formas de elaboração ou à fatura específica do próprio discurso musical” (KATER, 2001, p. 33-34). Para entender melhor alguns matizes na formação dos símbolos nacionais criados durante o movimento nacionalista, faremos outra digressão sobre o pensamento social no Brasil da primeira metade do século XX. Já dissemos que a fábula das três raças surgiu no final do século XIX. No entanto, foi somente após a transformação da negatividade racista da imagem do mestiço (contida na visão de autores como Silvio Romero e Nina Rodrigues) em positividade (segundo

436

autores como Gilberto Freyre e Mário de Andrade) que o mito das três raças torna-se plausível, disseminando-se nacionalmente e possibilitando a delineação de novos contornos de uma identidade nacional. Esse mito, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos das diferentes classes sociais e dos diversos grupos étnicos interpretar, dentro do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Contudo, na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de um grupo étnico específico, integrando-as à unicidade nacional, elas perdem sua especificidade e esse impasse denota a ambiguidade da sociedade brasileira ao se considerar a construção de uma identidade nacional mestiça. Assim, se, por um lado, o mito das três raças “encobre os conflitos raciais”, por outro “possibilita que todos se reconheçam como nacionais” (ORTIZ, 1994, p. 44). Musicalmente, o mito das três raças terá algumas implicações. A principal delas é a valorização do popular. Como aponta o compositor e musicólogo Paulo de Tarso Salles, isto estaria em conformidade com “a tradição sociológica de explicar a realidade brasileira pelo aspecto racial...” (SALLES, 2005, p. 145). Por conseguinte, a apropriação por parte dos compositores de elementos advindos do folclore, das culturas indígenas e afro-brasileiras se tornará uma marca da música nacionalista. O modernismo paulista se não é propriamente nostálgico quanto ao ruralismo, assim será em relação ao mito das três raças, vistas fora do ambiente opressor de São Paulo. As pesquisas folclóricas irão se voltar para as regiões Nordeste e Norte em busca de manifestações mais puras, que se possam desvincular da cruel justaposição do expansionismo urbano. Nessas regiões, ainda é possível encontrar sociedades intactas, nas quais as tradições mantêm-se de acordo com as relações de poder político firmemente estabelecidas (o chamado coronelismo). A estética nacionalista irá então eleger a música folclórica (que Mário de Andrade chamava de popular) como verdadeira expressão sonora do povo brasileiro. (SALLES, 2005, p. 146)

Na década de 20, o projeto do nacionalismo musical – que tinha como um de seus defensores mais fortes o nome de Mário de Andrade – passaria a exercer total influência sobre os compositores brasileiros. José Miguel Wisnik nos dá uma boa visão dos propósitos deste movimento: “sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular, como forma de conquistar uma linguagem que concilie o país na horizontalidade do território e na verticalidade das classes (...)” (WISNIK, 2004, p. 148). O próprio Andrade (apud CONTIER, 1978, p. 6) aponta, neste período, cinco princípios norteadores do modernismo musical brasileiro: 1. O dever composicional de fundamentação no folclore, já que as músicas folclóricas representariam os anseios do povo. Juntamente a este princípio, vê-se a opção pela música pura em negação à música de programa romântica;

437

2. A maneira com que o compositor deve “sentir” o inconsciente coletivo presente nestas manifestações deve seguir três processos: o emprego integral da melodia folclórica, a modificação parcial desta e, finalmente, a criação de uma melodia própria de caráter folclórico; 3. A técnica de composição deve ser o contraponto (neoclassicismo); 4. Utilização de instrumentos folclóricos na instrumentação; 5. No plano formal, “a substituição das formas clássicas pelas das formas existentes no folclore brasileiro” (sic) (Andrade apud CONTIER, 1978, p. 6). Apesar de não haver consenso sobre sua origem exata, se aceita incontestavelmente a matriz africana da figuração de síncopa na música brasileira. Salles aponta “a presença do elemento africano na música brasileira” como o “aspecto mais enfatizado pelos teóricos do nacionalismo, principalmente pela rítmica” (SALLES, 2005, p. 203) e demonstra sua colocação citando Mário de Andrade: O africano tomou parte vasta na formação do canto popular brasileiro. Foi certamente ao contato dele que nossa rítmica alcançou a variedade que tem, uma das nossas riquezas musicais... (Andrade apud SALLES, 2005, p. 203)

Assim, nota-se que a associação da rítmica afro-brasileira à música popular estabeleceu-se como conceito. Ritmos como o maxixe, o choro ou o tango brasileiro (oriundo da polca) e posteriormente o samba se consagraram como expressão máxima desta ideia. Em razão disso, desde as primeiras aparições de temas de origem popular na música erudita brasileira, a síncopa supramencionada veio ganhando destaque na produção dos compositores. Desta maneira, tornou-se uma espécie de tradição o uso sistemático e estilizado da síncopa afro-brasileira, associada aos ritmos populares como o samba, o maracatu, a congada, o frevo e os temas do ritual do candomblé. Nesse sentido, Paulo de Tarso nos fornece uma excelente afirmação: Assim, a crescente valorização da música popular tendeu a enfatizar a rítmica sincopada até o ponto em que o próprio Mario de Andrade chegou a manifestar preocupação com o que já ameaçava se tornar um maneirismo. (SALLES, 2005, p. 203)

Villa-Lobos é apontado pelo estudioso alemão Manuel Negwer como “um dos primeiros compositores que se aproximaram da música afro-brasileira sem intenções políticas ou etnológicas” atraído predominantemente pelas “dimensões estéticas e a utilização em suas composições como um material novo nunca empregado” (NEGWER, 2009, p. 71).

438

A partir dos anos 30, o Estado Novo ajudou fortemente a disseminar os ideais nacionalistas. Nessa época, despontaram compositores como Camargo Guarnieri, José Siqueira (1907-85) e Radamés Gnattali, entre outros. Em meados dos anos 40, surgiu o movimento Música Viva. Este grupo, liderado por J. H. Koellreutter (1915-2005), foi responsável por restabelecer um ponto de contato do Brasil com as tendências da Europa, trazendo o sistema de Schönberg para cá. O movimento reunia vários autores, como Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Edino Krieger e Eunice Katunda, desenvolvendo entre nós a técnica dodecafônica em oposição ao nacionalismo musical dominante. Da dicotomia musical nacionalismo versus vanguarda, instaurada na década de 50 no Brasil, paradoxalmente, surgem alguns trabalhos – como os de Luis Cosme, Santoro, Katunda e Guerra-Peixe – que buscavam “associar elementos de música popular ou folclórica com a técnica dodecafônica” (KATER, 2001, pp. 131-132). Nesse sentido, José Maria Neves (1981, pp. 135-136) descreve alguns pontos levantados por Santoro, Guerra-Peixe e Koellreutter – no início do Música Viva – sobre as possibilidades de escrever uma música “em brasileiro”. Para isso, segundo estes compositores, seria necessário libertar-se da literalidade folclórica (composição sobre citações) e orientar-se para a sua essencialidade: isolando-se certos contornos melódicos, certas cadências, certas fórmulas harmônicas e certos processos de desenvolvimento, na construção de uma gramática e sintaxe musical brasileira. Mais tarde na década de 60, surge o Música Nova. A ele estavam associados nomes como Rogério Duprat (1932-2006), Gilberto Mendes (1922), Willy Corrêa de Oliveira (1938) e Damiano Cozzella (1928). O grupo “objetivava atualizar e internacionalizar a música brasileira” (CONTIER, 1978, p. 28). Este fato será de extrema importância, pois a partir do contato “com a pesquisa criativa desenvolvida nos diferentes países do mundo, os jovens compositores brasileiros seguirão praticando o serialismo integral, a aleatoriedade, a arte-total, a eletroacústica” (NEVES, 1981, p. 147). Essas ideias se refletiram na maneira de compor de muitos autores das gerações seguintes, como Jorge Antunes, Marlos Nobre e Almeida Prado (1943-2010). Tais tendências se estenderam até meados dos anos 70 e 80, podendo ser percebidas nas Bienais de Música Contemporânea (RJ) e no Festival Música Nova (Santos/SP). Em suma, pode-se dizer que os conflitos gerados entre as vanguardas e o nacionalismo, indiretamente, propiciaram inovações no discurso musical brasileiro. Estas mudanças só puderam ser absorvidas anos mais tarde, livrandose das feridas geradas durante as querelas ideológicas. Após essa breve explanação sobre a relação entre a narrativa nacional e os símbolos musicais criados no imaginário cultural brasileiro, de maneira geral, nota-se, ainda hoje, que eminentemente não só a música brasileira, mas também a imagem do Brasil no exterior é associada ao carnaval, ao samba, à capoeira, ao futebol, ao negro, ao índio, à selva, às belas mulheres e ao colorido. Fica evidente

439

que, para o entendimento mais amplo deste fenômeno, existe uma série de fatores que só o aprofundamento da sociologia musical poderia explicar melhor. Constatamos, no entanto, que, de certa forma, a noção de brasilidade está sempre contaminada com essa visão estereotipada, como denotou Rezende (2009). Portanto, não seria de se estranhar que, ao expressarmos características de nossa cultura brasileira em uma obra de arte, evoquemos, frequentemente, elementos relacionados aos símbolos criados no decorrer da história de nossa nação. Porém, haverá sempre uma “subjetividade nacional” em nossas identidades culturais. Para finalizar, é importante esclarecer que o conceito de elemento cultural brasileiro e de brasilidade delineado nesta discussão é parte da dissertação de uma pesquisa iniciada durante o mestrado e que segue em andamento. Estes preceitos serviram como uma espécie de denominador comum ou um eixo sobre o qual foram discutidas relações entre processos composicionais e a apropriação de elementos culturais e étnicos na obras do final do século XX na música erudita brasileira. Doravante, busca-se ampliar o debate em torno desta problemática para além das relações estabelecidas no ideário do nacionalismo musical e nas visões estereotipadas citadas há pouco. Finalizamos, assim, em conformidade com a metáfora da autora Eloisa Prati dos Santos: Hoje em dia sabedores que somos da impossibilidade de abarcar com uma única definição nossa vasta e diversa nação, nos embrenhamos em uma busca pessoal ficcional, a partir de um ponto geográfico ou histórico e iluminamos a aventura arqueológica com nossa experiência pessoal, nossa escolha de textos e mapas, do Prata ao Xingú. (SANTOS, 2006, p. 200)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário. Música no Brasil. São Paulo: Guaíra, 1941. CONTIER, Arnaldo Daraya. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1978. _______________________. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico e getulismo. Bauru: EDUSC, 1998. DOTTORI, Mauricio. As ideias e a música: influências europeias na música brasileira. Anais do colóquio Brasil musical. Paraná: De Artes - UFPR, Ed. Zélia Cheeke, 2005. FREITAG, Léa Vinocur. Momentos de Música Brasileira. São Paulo: Nobel: CLOCK S.A., 1985. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

440

KATER, Carlos Elias. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Editora/Atravez, 2001. NEGWER, Manuel. Villa-Lobos: o florescimento da música brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2009. NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981. ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. REZENDE, Claudia. Retratos do estrangeiro: identidade brasileira, subjetividade e emoção. Rio de Janeiro: FGV, 2009. RIBEIRO, Darcy. A invenção do Brasil. In: A Fundação do Brasil: testemunhos 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992. RIPPER, João Guilherme. Pós-Modernismo na música Latino-americana. Revista da “Sociedade Brasileira de Música Contemporânea”, Goiânia, nº4, p.76-83, 1997. SALLES, Paulo de Tarso. Aberturas e Impasses: o pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil (1970 – 1980). São Paulo: UNESP, 2005. SANTOS, Eloisa Prati dos. Uma Viagem até a Brasilidade: romance pós-moderno e pós-colonial e romance indianista brasileiro. Revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, n. 3, pp. 185-200, set. 2006. Disponível em: Acesso em: 14 out. 2008. WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense: Villa-Lobos e o Estado Novo. In: Música: o nacional e popular na cultura brasileira . Reimp. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. _________________. O Coro dos Contrários. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

441

DISCURSO E CONTEÚDO: DESDOBRAMENTOS DAS CONTRADIÇÕES NA TRAJETÓRIA DO MODERNO EM MÚSICA. Potiguara Curione Menezes [email protected] Doutorando - Universidade de São Paulo (ECA/USP)

Resumo: Este texto pretende discutir questões relacionadas às contradições e aos desdobramentos que as narrativas em torno da trajetória do moderno em arte suscitaram no pensamento musical no século XX. Ao observar as rupturas do movimento moderno em direção às vanguardas históricas, abordaremos temas como a autonomia da arte e a tradição moderna, na sua busca obsessiva do novo - normalmente relacionada como conseqüência uma resistência utópica deste status da arte na sociedade burguesa. Nosso foco incidirá num eixo de debate sobre o discurso e o conteúdo nas músicas deste período e nos reflexos dessa contenda em períodos subsequentes. Palavras Chave: Tradição Moderna, Modernidade, Vanguarda, Música Contemporânea, Música Brasileira. “O novo não pode se tornar uma tradição sem dar origem a contradições únicas, mitos e absurdos”. (ROSENBERG apud MAUCERI, 1997, p. 190)1 “Se a expressão tradição moderna tem um sentido – um sentido paradoxal – , a história desta tradição moderna será contraditória e negativa: será uma narrativa que não leva a lugar nenhum.” (COMPANGNON, 2010, p. 11)

Presentes também em textos de muitos outros autores, as afirmações do filósofo e crítico de arte Harold Rosenberg e do literato Antoine Compagnon apontam algumas características comuns sobre a trajetória da modernidade artística: a dialética, a contradição e a paradoxalidade. No entanto, muitos teóricos e críticos do pensamento moderno descrevem a trajetória moderna sob uma perspectiva histórica, de certa forma tautológica, progressista e evolutiva. Essas abordagens tiveram, e continuam tendo, influências sobre o desenvolvimento da arte no decorrer dos séculos XX e XXI. Para entender algumas destas contradições, é necessário observar os processos que delinearam as principais mudanças em relação à arte em sua trajetória rumo à modernidade. Tentaremos abordar e problematizar alguns conceitos chave e relacioná-los à prática musical numa discussão sobre o moderno

As tradução dos textos oriundos de publicações em outros idiomas, citadas neste artigo, são de nossa autoria. 1

442

na música até o período considerado o final das vanguardas, os anos 1970 (1980 no Brasil). As questões principais a que nos propomos discutir são alguns dos possíveis desdobramentos que as narrativas em torno da modernidade causaram no pensamento musical no século XX, direcionando-o de certa forma. Temas como a autonomia da arte, seguida do esvaziamento ou da decomposição de sua tradicional unidade e o esgotamento de sua linguagem, serão tratados sob um viés que nos levará a questionar a narrativa histórica da trajetória moderna da maneira com que muitas vezes ela é contada. Nosso foco incidirá num eixo de debate sobre o discurso e o conteúdo nas músicas deste período e nos reflexos dessa contenda em períodos subsequentes. Por fim, cientes dos impasses criados nessa tradição moderna, lançamos mão de um projeto futuro que pretende investigar de que maneira as apropriações de elementos musicais externos – a exemplo da citação de outras músicas, mais especificamente a música de origem étnica – se enquadram no cerne destas contradições. A primeira questão que queremos nos colocar é referente à autonomia da arte. O historiador da arte Edgar Wind (1985, pp.10-15) discorre sobre o processo de mudança de status da arte na sociedade burguesa. Citando Hegel, o autor aponta para a marginalização da arte, não num sentido pejorativo, mas na idéia de um deslocamento da função desta arte. O crítico de literatura Peter Bürger (2008) expõe tal mudança traçando um caminho – arte sacra - arte da corte - arte burguesa –, onde a finalidade, a produção e a recepção da obra de arte avançam para a individualidade. Neste sentido, a separação da arte em relação à práxis vital seria “o sintoma decisivo de autonomia da arte burguesa” (BÜRGUER, 2008, p. 90). Voltando a Wind, e evocando Baudelaire, teríamos “arte por amor à arte, uma arte orgulhosa que não é serva de ninguém, posando todos os seus problemas a partir de dentro dela mesma” (WIND, 1985, p.15). Em 1980, o pintor Maurice Denis, citado por Compagnon (2010, p. 46), ressalva que “um quadro, antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma cena qualquer, é essencialmente uma superfície plana, recoberta de cores, reunidas numa certa ordem”. Assim, costumava-se evocar a autorreferencialidade e autonomia de uma arte autêntica no final do século XIX. Porém, o Compangon faz esta citação com o intuito de questionar a narrativa surgida neste período em torno da tradição moderna, que se tornaria a “história da purificação da arte, de sua redução ao essencial” (COMPAGNON, 2010, p. 46), e a qual ele denomina como a ortodoxia do historicismo genético. A problemática de tal postura nessas narrativas, segundo o autor, seria o uso de “um discurso estereotipado”, que visa “reconciliar as tendências contraditórias da vanguarda” (SIC) em busca de uma arte pura e essencial. Seguindo em sua argumentação, Compagnon considera que estas narrativas ortodoxas da tradição moderna apontam para uma “dialética da purificação”, que tem a tendência a privilegiar certo tipo de atitude ou

443

característica artística em detrimento de outra, onde “o ponto de chegada dita o parâmetro da intriga”, e “a narrativa ortodoxa parece sempre escrita em função do desfecho ao qual ela quer chegar” (COMPAGNON, 2010, pp. 46-47). Dando um exemplo literário, sobre o período da modernidade baudelairiana, o autor belga denuncia – na narrativa ortodoxa – o privilégio do trágico em detrimento ao irônico e da poesia em detrimento à prosa. Na pintura, ele mostra a preferência em narrar-se um processo de achatamento como superação da profundidade e cita o crítico estadunidense Clement Greenberg – como um dos mais influentes depois da Segunda Guerra Mundial – que, teorizando o modernismo, traça uma linha evolutiva desde Manet até o expressionismo abstrato, desembocando em particular Jackson Pollock. Traçando um paralelo, na música, uma leitura ortodoxa da narrativa da tradição moderna nos desvelaria a imagem da superação do sistema tonal por um sistema serial. Assim sendo, poderíamos dizer que a postura de Theodor Adorno é comparável a de Greenberg, no que diz respeito ao território musical, favorecendo a ortodoxia narrativa. Em resumo do pensamento de Compagnon, diremos que ele delata uma tendência à narrativa ortodoxa na descrição deste período da modernidade, onde “todos os elementos heterogêneos do processo são reduzidos ao essencial” (COMPAGNON, 2010, p. 59). Podemos observar que também ocorre um processo similar ao que estávamos nos referindo, quando se constrói uma narrativa ortodoxa em torno da música experimental praticada pela vanguarda no período Pós-Guerra. Como defende o músico contemporâneo Frank Mauceri, embora esses vanguardistas desenvolvessem atividades musicais distintas e, por vezes, radicalmente opostas entre si, “o conceito de música experimental nos parece muito menos controverso atualmente do que realmente o foi nos anos 1950” (MAUCERI, 1997, p.188). Textualmente, grandes expoentes, como Pierre Boulez (1986) e John Cage (1970), rechaçaram, em primeira, instância a rotulação de suas músicas como sendo experimental, por considerarem o termo inferiorizante. No entanto, posteriormente, o próprio Cage adota a denominação e passa a referir-se a toda música e arte que lhe interessa e aprecia (CAGE, 1970, p.7). Após este primeiro passo, queremos discutir um segundo ponto: o esvaziamento ou a decomposição da tradicional unidade e o esgotamento da linguagem na obra de arte – normalmente visto como uma consequencia de seu status de autonomia alcançado na sociedade burguesa. Neste ponto, é importante diferenciar dois momentos da trajetória da modernidade em direção ao novo. O primeiro anterior as vanguardas ditas históricas e o outro a partir delas. Wind (1985, p.20) denota que no passado as inovações realizadas pelo artista – “ainda em conexão com o mundo das ações”, ou seja, numa arte inserida na sociedade – eram produzidas de maneira “quase incidental na função vital a qual a arte era subserviente”. Entretanto, com a emancipação da arte em relação

444

à práxis vital, “a inventividade tornou-se um fim nela mesma”. Todavia, de acordo com Compagnon, nem mesmo os primeiros modernos “imaginavam que representassem uma vanguarda”. Nesse primeiro momento da modernidade – que poderia ser considerado simplesmente como o período contemporâneo a Floubert e Baudelaire, na literatura ou Coubert e Manet, na pintura – o artista procurava “o novo no presente enquanto presente” e não voltado para o futuro, não era uma busca pelo progresso, pelo desenvolvimento, nem pela superação. Destarte, somente “no fim do século XIX, quando a consciência histórica do tempo generalizou-se (...)” é que as vanguardas puderam começar a se afirmar, “fazendose históricas, considerando o movimento indefinido do novo como uma superação crítica” (COMPAGNON, 2010, p.40). Podemos resumir tudo isso dizendo que a arte de vanguarda foi primeiramente a arte a serviço do progresso social e que se tornou a arte esteticamente à frete do seu tempo. Esse deslocamento deve ser relacionado com a autonomia da arte, (...) se a arte de vanguarda merece essa denominação antes de 1848, por seus temas, a arte de depois de 1870 a merecerá por suas formas. (COMPAGNON, 2010, p.41).

Assim, Compagnon proclama que a partir dos anos 1880, ocorre a passagem de uma negação da tradição para uma “tradição da negação”, “um academicismo da inovação”. Segundo Bürguer, Adorno posiciona no centro de sua teoria a categoria do novo, “da renovação dos temas, motivos, processos artísticos, estabelecidos pela evolução da arte desde a admissão da modernidade” (BÜRGUER, 2008. p. 106). Citando Terry Eagleton, o compositor Ricardo Tacuchian afirma que o modernismo foi a grande aventura do século XX e “se estruturou a partir de uma atitude de ruptura, desafio à autoridade e divinização do signo novo” (TACUCHIAN, 1995, p. 28). Sobre estes princípios se constituíram os inovadores do discurso musical, na sua necessidade de romper com as convenções burguesas de uma arte que havia se tornado velha, inofensiva e sem interesse naquele momento. Vale citar a maneira como Bela Bartók se expressa em relação a isso: “O início do século XX marca um momento decisivo na história da música contemporânea. Os excessos do pós-Romantismo tornaramse intoleráveis. Para certos compositores conscientes da impossibilidade de seguir este caminho, a única solução era fazer uma viravolta” (BARTOK apud BARRAUD, 1997, p.66).

Voltando a Tacuchian, vemos que ele destaca quatro principais características da música do século XX, até os anos 1960: a ruptura radical com a tradição, “a mutação contínua da música em múltiplas correntes que se sucediam ou mesmo coexistiam e que tinham durações efêmeras”, a preocupação, também radical, com a criação do signo novo numa obra de arte com “forte dose de

445

informação”, e, finalmente, a ultrapassagem “dos limites da dimensão sonora”, pela utilização de recursos como luz, imagem, movimento, teatro e através da expansão de uma “dimensão conceitual” da música (TACUCHIAN, 1995, pp. 2829). Nesta trajetória, veremos a linguagem musical se esvaziar de significações coletivas e se aproximar de uma categoria de obra de arte a qual Adorno se refere quando proclama que “as únicas abras que contam actualmente, são aquelas que já não são obras” (apud BÜRGER, 2008, p.101). Corroborando Adorno, Tacuchian, evocando Eagleton, profere que, a partir do momento em que arte torna-se uma mercadoria – devido ao status de autônoma adquirida em relação às funções sociais – a burguesia passará a se apropriar de qualquer arte contestatória. Em contrapartida, as vanguardas chamadas negativas tentarão evitar essa absorção “não produzindo objetos. Não há obras de arte, só gestos, happenings, manifestações, provocações” (EAGLETON apud TACUCHIAN, 1995, P.32). Henrry Barraud defende que “a musica é uma linguagem e, como essa é feita de sons não de palavras, acredita-se de bom grado que todo mundo deve compreendê-la obrigatoriamente, o que há muito tempo deixou de ser verdade.” (BARRAUD, 1997, p.1). Tacuchian (1995, p.29) aponta ainda que “enquanto o romântico diviniza o objeto (a aura romântica de Benjamin), o moderno idolatra o signo”. Estaríamos, portanto, diante de um movimento em direção ao referido esvaziamento do conteúdo semântico na música em detrimento do sintático ou formal, da fragmentação em lugar da unidade. Ortodoxamente, a arte estaria em vias de uma superação. Em música, analogamente, quando Arnold Schoenberg declara que o dodecafonismo assegurará a hegemonia da música alemã por mais 100 anos, ele está expressando a crença na construção de um sistema novo que superará totalmente o antigo. Seria a ruptura definitiva com a hierarquia tonal (o belo) em detrimento da emancipação total das alturas (o signo). Porém, o sucesso e a duração do sistema dodecafônico não foram exatamente como o autor austríaco previra, mas – sob o viés de uma narrativa ortodoxa – poder-se-ia considerar esta técnica como o germe das práticas serialistas, que se tornaram dominantes na Europa até meados dos anos 1960 até o surgimento das vanguardas negativas na música. Contudo, tomando radicalmente o referido acima, se estaria deixando de lado toda a produção schoenberguiana realizada fora das amarras do sistema serial, obras anteriores e posteriores a este período. Trabalhos interessantíssimos, que apresentam soluções magistrais aos dilemas tonais, por exemplo, a partir do atonalismo livre – como suas Cinco Peças para Orquestra, Op.16 (1909), as Sechs Kleine Klavierstücke, p/ piano solo, Op.19 (1911) e o Pierrot Lunaire, p/ narrador e orquestra de câmara, Op.21 (1912) – seriam desprezadas em detrimento do essencial: o serial.

446

Igualmente, se nos limitarmos a traçar uma linha histórico-genética da desagregação do sistema tonal como sendo apenas a história da emancipação das alturas e das estruturas tradicionais, construiríamos talvez três elos principais: um que ligaria Monteverdi, Scarlatti, Bach, Haydn e Mozart, outro que uniria de Beethoven, Brahms, Liszt e Wagner e, por último, ainda outro elo que enlaçaria Schoenberg e a 2ª Escola de Viena, Messiaen e desembocaria em Boulez e Stockhausen. Todos estes elos seriam baseados na evolução da linguagem propiciada por inovações de cada um destes mestres icônicos. Grosso modo, o primeiro grupo consolidaria o sistema e trabalharia primordialmente suas inovações de forma acidental – como se referia Wind anteriormente – de maneira intrínseca, no âmago da arte sacra e da arte da corte. O segundo chegaria a um impasse quanto à nova situação autônoma da relação da arte na sociedade, provocando uma crise de esgotamento no sistema, tamanha as inovações individuais. Finalmente, o terceiro grupo lançaria um golpe fatal ao sistema em negação ao afastamento da arte autônoma em relação à práxis vital. Dessa forma, resumidamente, pudemos demonstrar uma relação entre discurso e conteúdo, contida numa narrativa ortodoxa da modernização da arte. É claro que tal redução é absurdamente simplista, redigida com um fim definido de antemão – a comprovação das causas da aniquilação das estruturas e da hierarquia entre as alturas no sistema tonal – e, por este motivo, deixa de lado uma série de outras renovações por parte de compositores que levaram a linguagem musical para outras fronteiras, como é o caso de Schumann, Chopin, Debussy, Ravel, Stravinsky, Bartók, Lutoslawsky, entre outros. Estas inovações também poderiam ser narradas com a mesma ortodoxia historicista e novamente estaríamos deixando de lado invenções e contradições importantes. Portanto, o intuito dessa narrativa realizada por nós foi o de um exercício, de certa forma lúdico, para refletir um pouco sobre o que é marginalizado, muitas vezes, no instante em que aflora o pensamento tautológico, histórico-genético – nas palavras de Compagnon – sobre a trajetória da arte. Na verdade esta seria uma crítica a toda história da arte que adote um viés deste tipo na descrição do andar de bêbado com o qual parece caminhar a da arte ocidental em nossa sociedade. Nesse sentido, vale lembrar as palavras de Henry Barraud: Não há verdade absoluta em Arte. Certas direções tomadas pelos músicos podem levar a um impasse, outras podem dar origem a estéticas aparentemente opostas, mas igualmente válidas. (...) Cada criador progride penosamente às custas de um tatear obstinado (...) E é isso que lhe permite arriscar-se numa busca aventurosa, cujo perigo menor não será sua eventual solidão. (BARRAUD, 1997, p.13)

Voltemo-nos agora ao Brasil da primeira metade do século XX. Poderíamos considerar que a primeira vanguarda artística – imbuída de um desejo renovador explícito – foi o movimento modernista, que se desencadeou a partir da Semana

447

de Arte Moderna, em 1922. Porém, “embora tivesse traços de renovação artística, [ele] não apresentou uma proposta estética radical” (FABRIS apud SALLES, 2005, p. 145). Seu caráter renovador é apenas parcial e modesto, se comparado às propostas da vanguarda europeia. Ainda citando Fabris, vemos que “seu foco não é a máquina (...), mas o homem, a raça, a multidão urbana”. Como denota o pesquisador Paulo de Tarso Salles, “a tradição sociológica de explicar a realidade brasileira pelo aspecto racial (...), irá caracterizar a valorização do popular pelo modernismo brasileiro” (SALLES, 2005, p. 145). De modo geral, o que ocorreu na música foi uma adoção crescente do discurso modernista de Mario de Andrade como orientação da produção de muitos compositores até os anos 1950. Porém, esteticamente, a linguagem musical desejada pelo modernismo andradiano propunha a “adoção de uma linguagem musical que superasse o italianismo e o romantismo alemão, sem ingressar no mundo atonal de Schoenberg’ (SALLES, 2005, p. 147). Salles categoriza esta linha composicional adotada pelo nacionalismo como similar ao neoclsssismo de Milhaud e Hindemith. Notamos, portanto, que há um impasse criado pela divergência entre o discurso – que deseja a ruptura com o sistema tonal – proclamado por Mario de Andrade e o conteúdo musical desenvolvido pelos músicos nacionalistas. Entretanto, paradoxalmente, essa produção musical de caráter menos radical era endossada pelo próprio Andrade, quando da crítica escrita por ele em relação à música da época. Se nos debruçarmos sobre a obra de Heitor Villa-Lobos e compararmos de forma genérica os Choros e as Bachianas Brasileiras, podemos dizer que as inovações na linguagem musical estão muito mais presentes na primeira série de obras do que na segunda, em oposição a suas posições cronológicas. Na primeira série de composições – embora de formas distintas e com exceções, como o Choros nº1 – o autor estaria mais alinhado com as práticas dos músicos europeus, como Stravinky, na apropriação do material étnico indígena brasileiro. Já na segunda é percebida uma associação maior com o passado, uma espécie de neoclássismo, no tratamento e na mescla das referências bachianas e dos elementos da cultura nacional. Nota-se, então, que a música de Villa-Lobos parece caminhar em outra direção do que a da busca pelo signo novo, proposta pelo modernismo e pelas vanguardas na Europa. Vejamos rapidamente um outro caso interessante, a cerca deste período. Camargo Guarnieri é tido como o grande representante do nacionalismo musical. Normalmente referem-se sua “Escola de Composição”. Todavia, a obra deste compositor não é esteticamente estática – numa consonância aos princípios nacionalistas –, como se poderia querer contar. As nuances de seu percurso incluem obras que dialogam com a música de Bartók, como o Concerto para Piano e Orquestra nº1 e chegam ao uso do serialismo dodecafônico, em seu Concerto para Piano e Orquestra nº3.

448

Longe de querer desenhar a trajetória da linguagem musical de VillaLobos, de Camargo Guarnieri ou mesmo do nacionalismo modernista, queremos apenas apontar que existem contradições entre o discurso e o conteúdo da linguagem musical neste período. Estes paradoxos, comumente são negligenciados por uma narrativa ortodoxa, que tende a rechaçar os elementos heterogêneas, como fossem arestas sobressalentes de uma figura geométrica plana. Da mesma forma, uma narrativa historicísta da oposição nacionalismo vesus vanguarda deixaria de lado obras Claudio Santoro, Guerra-Peixe e Luis Cosme – dissidentes do Música Viva – que tentaram, em um dado momento, conciliar de alguma forma o dodecafonismo com elementos musicais de origem folclórica e étnica. Talvez tais buscas estéticas ainda permaneçam subjulgadas em detrimento ao posicionamento político de esquerda, que teria maior relevância histórica em muitas narrativas. Tomemos então um último período, no Brasil, para discussão: o final da década de 50 e início dos anos 60. “Como se vê, tanto a estética nacional associada ao uso ou valorização do folclore, características do modernismo oriundo da Semana de 1922 (cujos mentores musicais foram Mario de Andrade, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone), quanto o nacionalismo de esquerda proposto por Santoro e Guerra-Peixe estavam em descompasso com a radicalidade do movimento de arte concreta. Os integrantes do Música Nova se insurgiram contra esta defasagem”. (SALLES, 2005, p.152)

É neste contexto que surge o Música Nova. A vanguarda brasileira naquele momento. Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira trouxeram, em princípio, atualizações vindas das vanguardas europeias. Willy normalmente fala de seu primeiro contato com as peças de Pousser e Stockhausen, como novos paradigmas importantes para a música que ele passou a compor. Gilberto Mendes, nos conta da necessidade que ele sentia de serem inventores, à época, de criar obras a partir de novos processos e criar um signo novo (SALLES, 2005, p.151). A associação deste grupo com os poetas concretos, como Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, auxiliou neste processo, juntamente com a prática do serialismo integral, a aleatoriedade, a arte-total, a eletroacústica. Dessa maneira, seria impossível, naquele instante, para este grupo militante radical da nova música a apropriação de qualquer elemento oriundo das mesmas fontes em que bebera o nacionalismo musical até aquele momento. A ruptura tinha que ser total com aquela ideologia, não somente com a sua estética. As ideias desenvolvidas pelo Música Nova se refletiram na maneira de compor de muitos autores das gerações seguintes, como Jorge Antunes, Marlos Nobre e Almeida Prado. Tais tendências se estenderam até meados dos anos 70 e 80, podendo ser percebidas nas Bienais de Música Contemporânea (RJ) e no

449

Festival Música Nova (Santos/SP). No entanto, o compositor Marlos Nobre – em sua peça Ukrinmakrinkrin, de 1964 – mescla as correntes internacionais, com o uso do tratamento atonal, serial e da indeterminação, “preservando a sensibilidade para com a cultura nacional”, através dos textos indígenas. (SALLES, 2005, p.197) – apesar da forte oposição em relação a apropriação deste tipo de elemento na música de vanguarda. Mesmo assim, este tipo de abordagem nos pareceu ficar marginalizada na produção considerada como relevante pela narrativa ortodoxa deste período. Mais uma vez podemos notar a tendência de escamoteamento que poderia resultar uma leitura historicista do processo de desenvolvimento musical. Doravante, pode-se dizer que os conflitos gerados entre as vanguardas e o nacionalismo, acabaram propiciando inovações no discurso musical brasileiro. Entretanto, estas mudanças só puderam ser absorvidas anos mais tarde, livrando-se das feridas geradas durante as querelas ideológicas, a partir dos anos 1980. A partir das constatações realizadas neste pequeno trabalho, queremos trazer a luz um cuidado que devemos tomar ao analisarmos a trajetória da arte moderna para não cair numa simplificação de algo que no seu cerne já nasce irredutível e paradoxal. É com essa consciência que queremos propor um projeto futuro de análise da utilização de elementos musicais externos a obra na composição musical, mais especificamente a apropriação de material musical de origens étnicas em diversos momentos da trajetória musical do século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. 3.ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1997. BOULEZ, Pierre. Experiment, Ostriches, and Music, in: Orientations: Collected Writings. Cambridge, Harvard University Press, 430–31, 1986. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008 CAGE, John. Silence. Cambridge: The MIT Press, 1970. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. 2ª. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. MAUCERI, Frank X. From Experimental Music to Musical Experiment. Perspectives of New Music, vol. 35, no. 1 (Winter), 187-204, 1997. SALLES, Paulo de Tarso. Aberturas e Impasses: o pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil (1970 – 1980). São Paulo: UNESP, 2005. TACUCHIAN, R. Música pós moderna no final do século. Pesquisa e Música. Rio de Janeiro, vol. 1, n.2, p. 25-40, 1995. WIND, Edgar. Art and Anarchy. Illinois: Northwestern University Press, 1985.

450

A REFLEXÃO SOBRE A ESTÉTICA MUSICAL NO SÉCULO XX COMO UM SETOR IMPORTANTE DA REFLEXÃO FILÓSOFICA EM GERAL Rachel Louise Eckert [email protected] Universidade de São Paulo - Departamento de Filosofia Resumo: O presente trabalho pretende afirmar a música como um setor importante da reflexão estética em geral. Tal afirmação se apoia primeiramente na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer e, num segundo momento, na obra Filosofia da Nova Música, de Theodor Adorno. A argumentação, inicialmente se vale do conceito de esclarecimento, presente na primeira obra de referência, para explorar o seu antagonismo com o mito. O esclarecimento está para o preestabelecido assim como o mito está para o imaginário. Em seguida adentramos a noção de que há uma sociedade esclarecida, e que esta se cristaliza na industria cultural, que tende a tornar os indivíduos heterogêneos e a mercantilizar suas emoções e, até mesmo – ironicamente – seus pensamentos. Nesse sentido, a música erudita, que se manteve alheia ao processo de mercantilização no século XX – e nos referimos aqui a autores como Schoemberg e Stravinsky – apresenta-se como um setor importante para a reflexão filosófica. Sua relevância consiste no fato de ela extrapolar até os últimos limites a sua própria forma, de reconhecer que a estrutura já dada é material em ruína e insuficiente para expressar, em ultima instância, a reverberação do humano na composição. Nesse sentido, tomandoa como meio para a reflexão, assumimos uma reflexão que está além do próprio esclarecimento, e além dos interesses comerciais e econômicos já postos. Trata-se de um movimento em direção às emoções humanas mais sutis e intensas, ao mesmo tempo em que questiona a própria forma e o próprio modo de reprodução. É deste movimento feito pela músicas que desejamos aqui, tornar possível a apropriação para uma reflexão no além musical. Palavras-chave: Estética Musical; Música; Século XX; Filosofia da Nova Música.

INTRODUÇÃO Esta exposição objetiva afirmar que a reflexão estética musical, especialmente a do século XX, pode ser considerada como um setor importante para a reflexão filosófica em geral. Entendemos aqui como reflexão filosófica aquela capaz de diagnosticar o seu então contexto histórico social e, por reflexão estética musical, nos remetemos à obra Filosofia da Nova Música, de Theodor Adorno, publicada em 1958. A admissão de contributos de alcance extramusical oriundos da reflexão estética musical passará pelo reconhecimento da configuração social à época da escrita de Adorno. Deste modo, lidamos com a questão do esclarecimento.

451

Esclarecimento este que tinha em seu programa “o desencantamento do mundo”1, o desvencilhar dos mitos, o ideal da dedução de cada coisa. Este ideal culmina com o heterogêneo da sociedade, reduzindo-a ao equivalente, à aquilo que pode ser quantificado e medido.2 Deste quantificado, faz uso e proveito a indústria cultural, na qual os homens são desinvestidos de sua individualidade para compor contingentes previsíveis e manipuláveis. A diversão, as expectativas, os sonhos de redenção da grande massa de pessoas é manipulada por uma indústria perversa que prevê tanto o seu flagelo quanto as suas aspirações de transcendência abafadas ferozmente ao conformismo. O rádio, a TV, o cinema são meios usados para permear os indivíduos com imagens e comportamentos falsos facilmente assimilados que levam a crer num estado de bem estar social3. É interessante notar que, em meio a este contexto a arte, ou melhor, a verdadeira arte – aquela desprovida do caráter de vendibilidade praticado pela indústria, foi capaz de resistir. Ousamos aqui afirmar que, por ter mantido-se alheia a comercialização ela pode ser capaz de estampar a então sociedade condicionadora de indivíduos, de ouvintes. “As dissonâncias que o espantam falam de sua própria condição e somente por isso lhe são insuportáveis”4. O nosso trabalho aqui será perceber que essa articulação entre a música e a sociedade esclarecida é capaz de enriquecer o debate supramusical. O ESCLARECIMENTO TOTALITÁRIO Segundo Adorno e Horkheimer, o esclarecimento tem em seu projeto o desencantamento do mundo. Este desencantamento passa pela via da substituição dos mitos e da imaginação pelo saber.5 A tentativa de eliminar os mitos ignora que eles sejam fruto do próprio esclarecimento e que foram estes as tentativas do passado de dar conta dos fenômenos da natureza. E quando o mito se transforma em esclarecimento, a natureza se transforma em objetividade6. De natureza totalitária, o esclarecimento vai permeando todos os setores da existência individual e social dos homens. Trata-se de um saber sem retorno, que visa, a todo modo, eliminar o desconhecido e tornar o mundo explicado. Ora, o

ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento. Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P.17 2 Idem P. 20 3 ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento . Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 4 ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. P.17 5 ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento . Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 17 6 Idem, P.21 1

452

medo existe onde há o desconhecido e o desconhecido não é admitido onde se quer anular a angústia mítica. Este conhecimento deve ser exato, matemático, probabilístico. Os homens, ao se conduzirem à ciência moderna deram primazia à fórmula, à regra e à probabilidade, em detrimento do sentido, do conceito e da causa. É como se para o esclarecido tudo já fosse previsível de antemão. Até mesmo uma incógnita ao ser inserida numa equação, tem o seu exato lugar e, já se sabe desde o início o que ocorrerá com ela.7 Com natureza não é diferente. Ela não escapa ao totalitarismo do esclarecimento e passa a ser algo que pode ser apreendido e compreendido totalmente através da matemática, que por sua vez, com a sua previsibilidade do mundo, acredita mantê-lo a salvo do retorno ao mítico, pois Ele confunde o pensamento e a matemática. Deste modo, esta se vê por assim dizer solta, transformada na instância absoluta. (...) O pensar reifica-se num processo automático e autônomo emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa, finalmente, substituí-lo. O movimento de supressão do mítico visa apagar qualquer reminiscência do arcaico que possa ainda sobreviver. Nessa instância, o mito é aquilo que trás a tona vestígios do natural, do contato com o mana, de um corpo, de um sangue, de uma alma, de deuses imperfeitos e dotados, tanto quanto os homens, de vícios. Abandonar-se ao pensamento ou ao prazer é condenável. O sujeito que resta o progresso o coverte num eu “transcendental lógico”8, adequado à esfera social do trabalho para se tornar força produtiva. Nesse sentido, “Poder e conhecimento são sinônimos”9. O aumento de seu poder, os homens pagam com a alienação daquilo sobre o qual exercem poder. Após a alienação do mítico e, com sua força representativa, da eliminação da significação dos sujeitos e de seu processo de coisificação, a própria razão se tornou função da aparelhagem econômica que a tudo engloba. A razão se torna nada mais que um instrumento universal utilizado para produzir mais instrumentos. Rigidamente funcionalizada, ela é tão fatal quanto a manipulação calculada com exatidão na produção material e cujos resultados para os homens escapam a todo cálculo. Cumpriu-se afinal a grande ambição de ser um órgão puro de fins10.

ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento. Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 32 8 Idem, P. 36 9 Idem, P. 18 10 ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento . Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 37 7

453

O eu, capturado completamente por essa civilização, pelo poder do esclarecimento que a tudo penetra, desde a técnica utilizada no trabalho à vida privada permeada por esta lógica de existência, se reduz, finalmente, a um elemento desta inumanidade. Os homens são reduzidos a simples objetos do sistema administrativo que determina todos os setores da vida moderna, inclusive o da linguagem e a percepção.11 Podemos, enfim, sintetizar ironicamente a seguinte equação: na medida em que o poder do sistema avança sobre os homens, estes são desprovidos de sua natureza. “O esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua alienação.”12 A INDÚSTRIA CULTURAL ESCLARECIDA A sociedade esclarecida é a sociedade do homogêneo, pois é quantificada, matematizada, previsível por estatísticas. Segundo Adorno e Horkheimer, esta sociedade é aquela na qual “a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança.”13 Os meios de comunicação, como o cinema, o rádio e as revistas são, na verdade um sistema coerente. As manifestações estéticas, políticas, ainda que opostas, são também coerentes. Esse sistema formado pelos meios de comunicação é dotado de uma enorme força no seu contato com o grande publico. Tal força podemos atribuir ao avanço da técnica que, tão logo é descoberta, é utilizada para incrementar a vendibilidade de um produto, e ao publico, mas não no sentido de responsabilizálo. O publico, a grande massa, o grande contingente de trabalhadores é afinal, uma vítima inconsciente desse sistema onde, no fundo, todos acabam complacentes pela própria sobrevivência ou pela condição impossibilitada do pensamento. Max Horkheimer, no prefácio de seu Eclipse da Razão afirma: Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. 14 Essa redução do juízo e do poder de imaginação pode ser atribuída à permeabilidade do esclarecimento a todos os setores da existência humana, tais como o trabalho, as relações sociais, as relações afetivas e o lazer. A capacidade de oposição do indivíduo é colocada em cheque no momento em que ele próprio é

11 12 13 14

Idem, P. 43 Idem, P. 44 Idem, P. 99 HORKHEIRMER, M. Eclipse da Razão. 7ª Ed. São Paulo: Editora Centauro, 2007.P.7

454

invadido, colonizado por aquilo do qual deveria defender-se, excluindo assim a capacidade de escolha. Onde não há escolha, não há autonomia. O crescente mecanismo de manipulação de massas é o grande sistema coerente formado pelos meios de comunicação, quais, insistentemente transmitem a mesma ideia falida para milhões de expectadores iguais. Porém a “atitude do publico que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural, é uma parte do sistema, e não a sua desculpa.”15 A indústria, que assim se autodenomina, abriu mão de ser vista, no caso do rádio e do cinema, como arte. O seu produto é produzido objetivando o lucro. Com esse objetivo, atrizes são lançadas de acordo com certo perfil de beleza, para encenarem a promessa de uma vida glamourizada de suas expectadoras. Do mesmo modo é o perfil masculino. A escolha passa pela identificação do publico. Ao final o discurso que se tem é semelhante a um convite para que o expectador não desista de seu trabalho, de sua vida falsa, pois ele, também tem a chance de um dia chegar lá. Há ainda outro lado da produção, ressaltado por Adorno e Horkheimer, que é aquele de apresentar o sujeito sendo mal tradado e sofrendo as mais diversas desordens, como ocorre com o personagem Pato Donald. Tal personagem tem a função de estampar o trabalhador em seus infortúnio e, perversamente, fazê-lo rir de tal situação. Através do riso se ridiculariza. É como se o personagem tivesse a missão de fazer com que o sujeito se acostume com a sua condição negativa: Na medida em que os filmes de animação fazem mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.16

E para além da temática, há a necessidade de esgotar a técnica, de usar o que mais novo há de disponível para promover o consumo. E, ao invés de entregar o produto prometido aos expectadores – o prazer -, o que lhes é entregue é somente a mera promessa, a impossibilidade de acesso à coisa mesma. Porém a industria não sublima, ao contrário, reprime: expõe repetidamente as imagens dos corpos sobre os quais não se pode assumir desejo. “A produção em série do

ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento. Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 31 16 ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento . Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 114 15

455

desejo sexual produz automaticamente o seu recalcamento”17. Nesse sentido é possível afirmar que a pornografia é puritana18. Para além do mero puritanismo, podemos enxergar, neste movimento de exibição acompanhado da recriminação pelo desejo, de promessa da felicidade quimérica a ironia da indústria com o seu publico e consigo mesma. É Lea quem provoca os instintos e censura o desejo. É ela quem exibe a condição miserável do trabalhador e faz com que a própria classe se ria de seus infortúnios. É ela que, como industria do entretenimento, aproxima cada vez mais o entretenimento da função, reordenando o tempo livre daqueles que já a servem no trabalho, como tempo para que os mesmos consumam os seus produtos: O logro, pois, não está em que a indústria proponha diversões, mas no fato de que ela estraga o prazer com o envolvimento de seu tino comercial nos clichês ideológicos da cultura em vias de se liquidar a si mesma19.

A cultura em vias de se liquidar a si mesma é aquela que está corrompida, na qual a expressão mais sem sentido na base da escala da produção do entretenimento desaparece tão rapidamente quanto o que está no topo, a saber, o sentido das obras de arte.20 Admitir o sentido das obras de arte como um extremo da cultua é admitir que ele, não está de todo, execrado da cultura. Esta noção será importante para as reflexões desenvolvidas no item a seguir. A REFLEXÃO ESTÉTICA MUSICAL COMO UMA REFLEXÃO PARA ALÉM DO ESCLARECIMENTO A música foi uma das ultimas artes a ser absorvida pela indústria cultural, defende Adorno em seu Filosofia da Nova Música. Isso se deve, principalmente ao fato de que, inicialmente, não havia aporte técnico para tal introdução. Ela só apareceu no cinema com o advento dos filmes sonoros. E posteriormente no rádio e nas propagandas feitas por meio dele. Com sua natureza hegemônica, a indústria cultural transformara-se no único modo de ver, sentir, perceber e se emocionar. Ela, afinal tem o controle sobre a percepção dos indivíduos. Sendo um poder sobre o modo de recepção das coisas, isto é, controlando a percepção que os indivíduos têm da música, pode se admitir que ela controle a própria música, não no sentido de sua produção, mas sim de sua apreciação e alcance, restringindo-a por fim, àquele meio restrito o qual podemos chamar de cenário musical. Ao publico que está fora desse pequeno meio ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento. Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. P. 115 18 Idem, P. 115 19 Idem, P. 118 20 Idem, P. 118 17

456

a nova música parece estranha e desconcertante (...) As dissonâncias que o espantam falam de sua própria condição e somente por isso lhe são insuportáveis. Por outro lado, o conteúdo daquela outra música familiar a todos está tão distante do que hoje pesa no destino humano (...)21

O estranhamento com a musica pode ainda ser explicado com os mecanismos de produção exercendo total domínio sobre os indivíduos, e com a audição dos ouvintes já moldada pelo processo social. Assim, de fato, a música caiu num completo isolamento.22. Nesse isolamento, que pode ser compreendido como uma denuncia do caráter não comercial, não homogêneo com a cultura de massas, ela continua a produzir e afrontar problemas do interior de sua gramática. Adorno, no Filosofia da Nova Música destaca a falência da composição no interior do sistema tonal. Como se este fosse uma grande ruína, uma estrutura imprópria com a qual a composição já não pode mais se expressar: Se tudo não é engano, o compositor já exclui hoje os meios de tonalidade, isto é, os dados de toda a música tradicional. E o faz, não tanto porque esses acordes tenham envelhecido e não correspondam à época, mas porque são falsos. Já não cumprem a sua função. O estado mais avançado dos procedimentos técnicos musicais delineia tarefas frente às quais os tradicionais acordes parecem impotentes clichês.23 O reconhecimento de que há uma gramática já desprovida signos capazes de causar a expressão desejada mostra-se como um movimento de pensamento, de reflexão, a respeito de si próprio. Adorno nos alerta que as nuances de uma obra não são percebidas apenas na reflexão sobre ela, mas sim, na obscuridade da própria obra24. Ora, perceber a uma obra através de sua contemplação, através de seu próprio curso e ritmo ao invés de racionalizá-la é recorrer a outra instância qualquer que não o esclarecimento. Ir contra a fórmula do sistema tonal, contra a sua previsibilidade sonora é reforçar esse recurso semelhante a um desvencilhamento da música em relação aos domínios do esclarecimento. Esse desvencilhar-se opera também como um movimento de dar voz e condição de expressão a emoções humanas excluídas da heterogênea e superficial indústria cultural. A angústia, o desespero, o ódio, os instintos, aparecem na produção musical do século XX25 em formas de suma arte. Em Erwartung26, por ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. P.17 22 ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. 23 Idem, P. 37 24 ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. P.38 25 O destaque ao século XX deve-se a escolha bibliográfica. 21

457

exemplo, o drama da mulher que procura seu amado na noite é exposto entre dissonâncias. “As dissonâncias surgiram como simples como expressões de tensão, de contradição e de dor.” 27. E são também as dissonâncias uma forma de trazer à expressividade o inexato da existência. CONCLUSÃO Talvez, a contribuição que a reflexão estética faça aos demais setores da história da razão não seja tão facilmente mensurável. Mesmo porque o mensurável passa pelo bisturi do esclarecimento. Para além dessas medidas, um olhar atento pode apreender a diferença daquele sistema quase onipresente no qual nos inserimos. Diferença esta que se exprime através da negação do determinado pelo esclarecimento, através da busca por outras formas de expressão, através, finalmente, de um voltar de olhos para as próprias angustias e dar a elas voz para a expressão. A relevância da verdadeira música reside no fato de que ela, para se tornar aquilo que é, teve de reconhecer a fraqueza expressiva da gramática da qual se servia e tatear as próprias novas formas. Mantendo-se afastada da industria cultural, esse tatear pode ser feito com autenticidade, com sinceridade, sem negar às ultimas consequências a própria constituição. Nesse sentido nos é possível afirmar que a reflexão sobre a estética musical é a via de entrada a uma reflexão para além do totalitarismo do esclarecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. ADORNO, T., HORKHEIRMER, M. Dialética do Esclarecimento. Reimpressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. HORKHEIRMER, M. Eclipse da Razão. 7ª Ed. São Paulo: Editora Centauro, 2007.

ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. 2ª Reimpressão da 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. P.72 25

458

ADORNO E BENJAMIN: CINEMA E MÚSICA COMO PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA Robson da Rosa Almeida Mestrando em filosofia pela PUC-RS.

Resumo: Walter Benjamin e Theodor Adorno foram os filósofos que ousaram pensar a estética a luz de sua potência transformadora para além de qualquer valor em si da l'art pour l'art. Nessas reflexões, cada qual depositou esperança em uma determinada arte: Adorno no atonalismo da música de Schoenberg e Benjamin no teatro épico de Brecht, mas principalmente no cinema. O presente trabalho pretende, a partir de suas influências mutuas, de suas aproximações e tensões, confrontar os dois pensadores e ver a música de Schoenberg ou o cinema cumprem seu potencial transformador conforme os dois pensadores pretendiam. Além disso, o presente trabalho tem por objetivo dar ênfase na arte, através do pensamento de Benjamin e Adorno, como instrumento emancipador e como momento de realização mesma da transformação, ou seja, a arte como meio e fim, aquém de toda fetichização da cultura ou instrumentalização da arte. Palavras-chave: práxis, emancipação, revolução, transformação radical.

Adorno e Benjamin são comumente postos em lados opostos. Benjamin, por um lado, é aquele que viu no cinema uma função revolucionária. Adorno, por outro, não viu com tanto otimismo o cinema quanto Benjamin. Nessa distinção entre os dois pensadores com respeito ao cinema surgem falsos antagonismos que foi fortalecido por leituras equivocadas. Uma das mais recorrentes é falar de otimismo e pessimismo com relação a indústria cultural, respectivamente por Benjamin e Adorno, tendo como base o cinema. A música em Adorno não é somente um elemento base para sua contruí teórica como pensamento atonal que lhe confere Susan Buck-Morss1. Até mesmo Martin Jay concorda com o interesse mais epistemológico que estético de Adorno pela música atonal quando diz que Adorno enfatiza “antes a dimensão cognitiva que a dimensão expressiva da música”2. Mas se quisermos fazer justiça a Adorno temos que ver o potencial redentor da arte, e em específico, da música, para além da sua referência na construção teórica de seu pensamento. A redenção por meio da arte, mais especificamente na música em Adorno, não pode dissociar-se de sua crítica voraz a indústria cultural. O momento de reconciliação entre música séria e ligeira não pode ocorrer sem incorrer em falsa harmonia dada as condições objetivas sociais. O tema recorrente dessa harmonização forcada dos antagonismos sociais, em Adorno, é encarnada em sua 1AGUILERA, Antonio. Lógica de la descomposición. In: ADORNO, Theodor. Actualidad de la filosofía. pág. 39. 2JAY, Martin. As ideias de Adorno. pág. 28.

459

crítica ao jazz. O jazz como exemplo de reconciliação de música séria e ligeira, entre a música branca europeia e a música negra africana só faz com que a segregação violenta na prática norte-americana se transforme em conciliação cínica na música. A distinção entre arte séria e arte leve foi tomada como um preconceito estético elitista, mas essa distinção feita por Adorno não era um recurso arbitrário, mas antes o reflexo da divisão objetiva da sociedade em classes distintas. Essa reconciliação tinha sua realização para Adorno em a “Flauta mágica” de Mozart na qual em suas palavras “a utopia da emancipação e o aspecto do prazer e entretenimento coincidem exatamente na cançoneta do 'Singspiel'”3, porém, essa realização não passa de um momento, de um devaneio onírico. É justamente nesse aspecto que Adorno chama atenção, para as possíveis deformações na apreciação da música. O que antes era a arma para a emancipação, segundo Adorno, não passa agora de instrumento para a alienação A música que tem por trás de si imagens de um mundo harmonioso perde seu tom sugestivo da utopia para submetê-lo ainda mais ao existente. “Todavia, o que então se emancipa da lei formal não são mais impulsos produtivos que se opõe às covencões. O encanto, a subjetividade e a profanação – os velhos adversários da alienação coisificante – sucumbem precisamente a ela”4. Não há aqui, no ensaio de Adorno O fetichismo na música e a regressão na audição, nada que possa ser considerado algum tipo de revide ou resposta ao ensaio de Benjamin A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica no que diz respeito a técnica. A técnica em si não possuía para Adorno uma essência demoníaca, suas restrições com o cinema e o rádio estava muito mais ligado a dependência dos monopólios culturais aos bancos e a indústria do que com a sua mediação via a tecnologia de reprodução O que ocorre é de que, mesmo com toda as reservas de Adorno a respeito da ontologia de Heidegger, alguns ignoram e tentam traçar um paralelo inexistente da crítica a técnica de Heidegger como velamento do ser com a crítica a técnica de Adorno e Horkheimer como domínio sobre a natureza. Adorno condena o rádio, assim como o cinema, em seu uso atual e não em si mesmo como fica evidente na seguinte passagem: O rádio que projeta excessiva luz sobre a música, concorre para tanto. Talvez essa decadência ajude um dia a levar ao inesperado. É possível que um dia soe uma hora mais feliz para os jovens “moderninhos”, a hora que se requeira antes a adequação rápida de matérias previamente fabricadas, a alteração improvisadora das coisas, do que aquele gênero do começo radical que só floresce sob a proteção do inabalável mundo real.

3ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão na audicão. In:_______. Textos escolhisdos. Op. Cit. Pág. 69. 4Ibidem. Pág. 69.

460

Mesmo a disciplina pode ser expressão de livre solidariedade, quando seu conteúdo for a liberdade.5

É risível ver Adorno como aquele que desejava o regresso a um tempo remoto onde a técnica não mais influenciava de forma funesta o ser. A técnica, para Adorno, como dominação da natureza pode transmutar-se em seu contrário “quando seu conteúdo for a liberdade”. O que une essencialmente Adorno e Benjamin em suas visões acerca da arte é seu tonos emancipador, manifestamente ativo e transformador da realidade. Essa visão se opõe a l'art pour l'art como contemplação ou então como pura fruição Aqui se tem a antinomia da arte burguesa distendida em dois polos, o da ascese em sua correspondente contemplação da arte séria e o prazer em sua correspondente fruição da arte leve. Um dos momentos essenciais dessa arte era devolver a ela seu elemento de resistência, ou seja, devolver o peso da crítica à obra de arte. Isso porque, mesmo que uma estética marxista nada convencional e muito menos ortodoxa, ela repousava sobre fundamentos materialistas muito bem definidos, como a tomada de consciência crítica como o princípio par excellence da transformação radical. Essa tomada de consciência não seria possível sem a recusa do imediato, ou seja, da aparência parcial da obra de arte sem a sua relação com o todo. Esse ponto, também de natureza marxiana, se volta para o mesmo centro de Lukács ao interpretar a reificação A mercadoria tinha que desligar-se de seu aspecto imediato da economia para ser pensado em suas consequências na totalidade. O mesmo valia para Adorno e Benjamin ao tratarem do fenômeno estético em seus mínimos detalhes. A consciência crítica priva toda a sua potência quando se perde no imediato, ou seja, quando perde a noção de que o objeto percebido não se trata mais de uma fragmento sem conexões causais com o todo e que não encerra em si sua função Benjamin, como notou Kracauer, tinha tamanha aversão ao imediato que “nem mesmo pensa em confrontar com ela”6 como o fizeram tantos outros, como inclusive o fizeram Kracauer e Adorno. Talvez essa falta de embate com o imediato por parte de Benjamin seja a grande diferença com relação a Adorno. O que mais preocupava Benjamin era apontar as brechas do presente para a mudança e suas condições ao invés de confrontar diretamente a imediatidade. Entretanto, para Adorno, chocar-se com o imediato era condição de toda mudança Era necessário demonstrar o quão falso é a imediatidade para poder superá-lo. A parte essa distinção, como ressaltado anteriormente, há mais aproximações que diferenças separando Adorno e Benjamin. 5ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão na audicão. In:_______. Textos escolhisdos. Op. Cit. Pág. 107. 6KRACAUER, Siegfried. Sobre os escritos de Walter Benjamin. In:_______. O ornamento da massa. Pág. 284.

461

A passividade e a contemplação do espectador diante da obra de arte, seja ela leve ou séria, é contraposto por Adorno e Benjamin de formas distintas mas não antagônicas. Tanto um como outro veem nessa inversão, da passividade para o pensamento crítico, diante da obra de arte, seu elemento decisivo. Benjamin vê em Brecht aquele que soube refletir o teatro ante as mudanças vindas do cinema e do rádio. Para Benjamin, refletir diante do cinema e do rádio era, antes de tudo, pensar em todas as modificações que repercutiram na arte burguesa a reprodutibilidade técnica, ou na visão mais otimista de Benjamin, repensar a arte após a dissolução de suas formas burguesas e a sua sucessão por uma arte revolucionária. Nestes termos, para Benjamin, Brecht soube adaptar o teatro segundo as modificações vindas da consciência dessa dissolução da arte burguesa. A arte burguesa mediada pelas mãos dos críticos de arte, especialistas que mastigam as obras refinadas para então os espectadores em fim poderem desfrutar, é eliminado, segundo Benjamin, em Brecht. Para Benjamin, Brecht faz do espectador um crítico em potencial, devolvendo à crítica sua forca e retirando o sujeito da passividade e das mediações que a arte burguesa lhe infligia A posição de crítico de arte não é para Benjamin uma atitude contemplativa como prima facie poderia parecer. O crítico, para Benjamin, está mais para alquimista que, como bem notou Arendt, “pratica a obscura arte de transmutar os elementos fúteis do real em ouro brilhante e duradouro da verdade”7. Desta feita, o espectador do teatro épico de Brecht não absorve mais a peca de teatro como sendo portadora de um significado unívoco, mas tem que ele mesmo, o espectador enquanto crítico, preencher as lacunas que lhe faltam. O conteúdo de verdade de uma obra é devida então, para Benjamin, não mais exclusivamente das intenções ocultas na obra que o autor pôs e o espectador tem de descobrir, mas a obra toma vida própria em que o domínio e a autoridade sobre a sua interpretação não está mais sob o julgo de uma minoria de especialistas nem mesmo do autor. Em Benjamin, o momento de criação não se encerra na mente do criador, mas torna-se autônomo e toma vida própria, alheio ao poder de seu autor. É neste sentido que Martin Jay diz que “como gostavam de alegar Walter Benjamin e Leo Lowental, [...] os efeitos de um texto, desejados ou não desejados, são parte do sentido desse texto”8. Com relação a autoridade da compreensão obra de arte, Adorno está de acordo com Benjamin. Em seu ensaio sobre Kafka, Adorno diz que “o artista não tem obrigação de compreender a própria obra, e existe motivo especial para duvidar que Kafka tenha entendido a sua” 9. Obviamente, isso não

7ARENDT, Hannah. Walter Benjamin. In:_______. Hombres em tiempos de oscuridad. Op. Cit. Pág. 143. 8JAY, Martin. As ideias de Adorno. Op. Cit. Pág. 15. 9ADORNO, Theodor W. Apuntes sobre Kafka. In:______. Prismas. Op. Cit. Pág. 263.

462

faz com que Kafka perca seu valor para Adorno, pois o conhecimento pleno de uma obra de arte não é algo concebível tanto para Adorno quanto para Benjamin. Em verdade, para Benjamin, a capacidade de deixar em aberto um complexo de interpretações é a raison d'être de uma obra de arte. Isso torna-se evidente em sua admiração pelo historiador grego Heródoto, que mesmo depois de passarem séculos e séculos depois de serem escritas, suas histórias ainda são capazes de “suscitar espanto e reflexão”10. Novamente é emblemática a figura de Brecht para Benjamin. Em comparação com o palco naturalista, que tinha como compromisso essencial refletir a realidade, e por esse motivo já vinha desde o início determinada por essa premissa, o teatro épico de Brecht, em contrapartida, tem no final o seu clímax, quando a cena aparece aberta para o espectador “ordenar experimentalmente os elementos da realidade”11. É nessa confiança na autonomia do espectador que emergia de sua interpretação como criador que finaliza a obra inacabada de Brecht, que Benjamin via em seu teatro épico um instrumento de emancipação Mas temos que questionarmos se essa confiança na autonomia era realizável por meio do cinema ou se o teatro, ou pelo menos parte dele representada na figura Brecht, era sua única corporificação possível. A confiança sumamente otimista da dissolução das formas burguesas da arte por Benjamin não foi vista sem algum receio por ele mesmo. Em vários momentos, Benjamin vê os aspectos negativos e reacionários no cinema. Como p. ex. a associação entre o capital da indústria elétrica e o cinema 12 assim como alguns temas que iriam ser desenvolvidos por Adorno e Horkheimer em a A indústria cultural na Dialética do Esclarecimento, a saber, “a tendência estéril de copiar o mundo externo”13 executada pelo cinema. Foi, porém, Adorno que identificou já nessa suposta dissolução das formas burguesas por via do cinema e do rádio, tendências ainda mais reificantes que as presentes nas antigas formas burguesas de arte. Nisso, os dois ensaios A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica e O fetichismo na música e a regressão na audição se distanciam, pelo otimismo da primeira e o pessimismo da segunda. Tanto Adorno quanto Kracauer, que aliás este último viu de forma muito precoce os futuros desenvolvimentos do cinema, viram na sétima arte muito mais o aprofundamento das condições de submissão a totalidade do que sua independência dele. Kracauer, que como notou Martin Jay, “é evidente a 10BENJAMIN, Walter. O narrador. Cosideracões sobre a obra de Nikolai Leskov. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 204. 11BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico: Um estudo sobre Brecht. In:________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 81. 12BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 172. 13ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: o Esclarecimento como mistificacão das massas. In:_______. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Op. Cit. Pág. 177.

463

semelhança entre seu trabalho e alguns textos de Adorno” 14, em seu ensaio de 1927 As pequenas balconistas vão ao cinema, que em suas linhas gerais se assemelha A indústria cultural de Adorno e Horkheimer, traca um interessante paralelo entre o teatro e o cinema. Neste ensaio, Kracauer evidencia, mesmo a luz do revolucionário filme O encouraçado Potemkin de Eisenstein que tanto empolgou a ele e a Benjamin, seu pessimismo sobre o cinema cumprir uma função revolucionária. Para vermos que o entusiasmo transferido do teatro épico de Brecht por Benjamin para o cinema não poderia ser concretizado nos termos que ele desejava, Kracauer demonstra que o produtor não irá “satisfazer as necessidades de crítica social de seus consumidores” 15. Isso porque, caso ele satisfizesse tal necessidade, sua própria existência enquanto produtor estaria correndo sérios riscos. Ou seja, o produtor ou os monopólios culturais, como Adorno e Horkheimer postularam mais tarde em A indústria cultural, “têm de se apressar em dar razão aos verdadeiros donos do poder” que comparados aos “setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade e química […] os monopólios culturais são fracos e dependentes”16. O fato de o teatro possuir certa autonomia e ainda manter-se fiel a uma posição radical frente ao existente deviase para Kracauer a sua relativa distância do controle do capital: “Tanto para o dramaturgo quanto para o diretor de teatro pode parecer que são independentes do capital e, portanto, capazes de produzir obras de arte atemporais e desvinculadas de uma classe social”17. Essa situação desfavorável para a socialização dos meios de produção intelectual, conforme descreveu Kracauer, não era para Adorno exclusiva do cinema, mas se estendia a música por via da difusão do rádio. A música leve desfrutada em seus detalhes isolados não permite, segundo Adorno, ver além desse imediatismo das formas isoladas. Para uma apreciação justa da música, diz Adorno, é necessário “pensar no todo”. A música que se gaba por entregar divertimento por uma bagatela não cessa de ludibriar seu ouvinte com falsas promessas. Esse prazer instantâneo, ligado a objetos isolados na música, para Adorno, acaba por se tornar um escárnio ao próprio divertimento. Isso porque, esse prazer ligado ao imediato, como o fetiche pelo instrumento que no jazz demonstra sua contingência no momento da jã session onde pode ser permutado um instrumento por outro sem o ouvinte perceber, do timbre da voz do cantor mais brindada que a sua técnica, do achado da melodia como algo mágico e não 14JAY, Martin. Imaginacão dialética. Pag. 60. 15 KRACAUER, Siegfried. As pequenas balconistas vão ao cinema. In:_______. O ornamento da massa. Op. Cit. Pág. 311. 16ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: o Esclarecimento como mistificacão das massas. In:_______. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Op. Cit. Pág. 101. 17 KRACAUER, Siegfried. As pequenas balconistas vão ao cinema. In:_______. O ornamento da massa. Op. Cit. Pág. 314.

464

mais algo que possui um valor relativo no interior da obra, tudo isso leva, segundo Adorno, a uma superestimacão do instante que acaba por obnubilar o todo. Aqui, assim como para Benjamin, a obra de arte apresenta-se submetida ao seu objetivo revolucionário. Adorno não vê mais a estética a partir tão somente de suas inovações técnicas, mas primordialmente a partir do reflexo das condições sociais. Por essa razão, Adorno recrimina tanto o fetiche da música por seus componentes isolados, que no prazer instantâneo, o ouvinte deixa-se levar e esquece do sacrifício que é a regra do todo. Em relação a inovações técnicas, Adorno é categórico com relação ao jazz e a toda música que seguindo seu exemplo tente unir indiferenciadamente música séria e ligeira. Nenhum componente melódico, harmônico, instrumental, rítmico não exista que já não tenha apreciadoo em Wagner na técnica deorquestraçãoo, nos “artifícios de síncope” em Brahms e suasuperaçãoo por Schoenberg e Stravinsky18. Por mais que sua filiação o marxismo não seja de todo ortodoxa, Adorno vê o desenvolvimento objetivo da arte não ligado ao aspecto formal de seus elementos, ou seja, o atonalismo não representa somente uma evolução em termos de harmonia, mas essencialmente sua posição frente a sociedade. Assim, nas palavras de Adorno, “o que decide se uma determinada técnica pode ser considerada 'racional' e constitui um progresso, é o sentido original, a sua posição no conjunto social e no conjunto da obra de arte concreta e individual”19. A música de Schoenberg, como fonte par exellence de resistência frente ao existente, deve-se, para Adorno, entre outras coisas, pela necessidade de concentracão que ela exige em oposicão a música sintética do jazz que nas palavras de Adorno “o costumeiro jazz comercial só pode exercer a sua função quando é ouvido sem grande atenção, durante um bate-papo e sobretudo como acompanhamento de baile”20. O elogio ao hermetismo, seguindo a sua famosa frase “o cisco no teu olho é a melhor lente de aumento”21, é a forma de contrapor a letargia dos sentidos, tornando a contemplação da música, tanto a séria como a ligeira, em práxis revolucionária. É evidente que o alcance dessas obras, as quais se refere Kracauer, tornase limitado por sua natureza intelectual que era destinada à burguesia, que como ele mesmo admite, “as qualidades artísticas de uma peca de teatro podem também deslocá-la da esfera social”22. A possibilidade de transformação estava, portanto, impedida por via do cinema, já que esta estava sob o controle dos 18ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão na audicão. In:_______. Textos escolhisdos. Op. Cit. Pág. 104. 19KRACAUER, Siegfried. As pequenas balconistas vão ao cinema. In:_______. O ornamento da massa. Pág. 105. 20 ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão na audicão. In:_______. Textos escolhisdos. Op. Cit. Pág. 93. 21 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia – reflexões a partir da vida lesada. Op. Cit. Pág. 46. 22KRACAUER, Siegfried. As pequenas balconistas vão ao cinema. In:_______. O ornamento da massa. Op. Cit. Pág. 314.

465

monopólios culturais. Também estavam as pecas de teatro, romances e revistas de grande refinamento que tinham seu alcance limitado a classe média que a única mudança em suas existências é que após desfrutarem de uma peca voltam para o seu cotidiano burguês com a consciência pesada23. Adorno não estava disposto a diminuir as exigências e ver a obra de arte empobrecida ser entregue tão somente para o consumo. Isso reduzia as chances de uma comunicação com a classe proletária porém estas obras não estariam deformadas pelo uso do capital. Já Benjamin tinha como oposição a Adorno a postura de que “uma obra caracterizada pela tendência justa não precisa ter qualquer outra qualidade”24, porém não conseguiu ver que dificilmente esta arte não sofreria modificações essenciais ao ponto de perder toda sua potência de transformação Aqui nos encontramos num empasse. De um lado, Adorno não aceita diminuir a qualidade da obra de arte, e de outro, Benjamin esta disposto a sacrificar a qualidade em detrimento do seu conteúdo de justiça Para Benjamin, assim como Kracauer já havia notado, haviam certas obras de arte produzidas que não tocavam quem mais deveria tocar, pois no término da execução da obra os espectadores voltavam satisfeitos para seu cotidiano burguês. Ficava, então, vedada a possibilidade de mudança pelo abismo separando o proletário das obras refinadas exibidas, porque, nas palavras de Benjamin, “a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado”25. Por essa razão, Benjamin viu no cinema uma fonte poderosa de mudança dada o seu alcance e a possibilidade de fazer do espectador seu participante ou colaborador. Brecht já fazia isto ao deixar a cargo do espectador determinar o final inacabado. O cinema, para Benjamin, tinha a grande possibilidade de que o intérprete, ao contrário do teatro em que o ator “entra no interior de um papel”26, representa “a si mesmo diante da câmera”27. Era esse o papel do intelectuall para Benjamin, refletir a refunconalizacão da arte a luz darevoluçãoo e da consciência de classe, e não mais cair nofatalismoo da classe médiaprogressistaa, em que “transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria”28. Se para Benjamin “uma obra caracterizada pela tendência justa não precisa ter qualquer outra qualidade”, para Adorno, como dito anteriormente com relação ao seu elogio ao hermetismo, a perda de qualidade da obra de arte é ao 23Ibidem. Pág. 314. 24BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 121. 25 Ibidem. Pág. 136. 26BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 181. 27Ibidem. Pág. 182. 28 BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit. Pág. 130.

466

mesmo tempo a perda de seu caráter crítico e, consequentemente, de seu elemento transformador. É indissociável para Adorno qualidade formal e qualidade de conteúdo. Tanto que é denunciado ostensivamente na Indústria cultural, por Adorno e Horkheimer, a disjunção entre conteúdo e forma na arte de entretenimento, sendo esta reduzida abertamente ao formulismo vazio. A cultura de massas fez o inverso do que desejava Benjamin. Ela pôs o estilo acima da justiça em seu conteúdo. Vazio de conteúdo, o cinema e o rádio tornavam-se tão funestos quanto a arte que Benjamin acusou a esquerda melancólica de deformar. A socialização dos meios de produção intelectual, como pretendia Benjamin, se cumpriu como um pesadelo. Adorno não aceitava o empobrecimento do material estético, e isso não pode ser posto, como Martin Jay fez notar, como a posição de um “conservador cultural mandarinesco”29. Se a arte tinha um potencial crítico para Adorno, ela também tinha em si, em seu próprio conteúdo, o momento de felicidade que se cumpriria somente em uma sociedade justa. Não é somente por suas qualidades formais intrínsecas que Adorno recrimina a arte leve, mas por elas serem uma falsificação da situação existente. Quando Marc Jimenez diz a respeito de Adorno “quanto à própria obra, Teoria estética, desenvolve ela, permanentemente, a ideia da arte como 'promessa de felicidade' - cara a Stendhal-,”30 viu que a ideia de obra de arte não surge, para Adorno, somente como meio para a emancipação, para a libertação, mas carrega em si a imagem de sua realização É nesse sentido que Adorno diz não ser mais possível a conciliação feita por Mozart da arte séria e arte leve, pois a própria sociedade desmente essa unidade quando ela está cindida em dois polos. A maior parte das reflexões de Benjamin acerca do caráter revolucionário da arte só foram realmente postas em prática muito tempo depois de sua morte. No cinema, a participação de comunidades locais para representação foi posta em ação por Pasolini em filmes como O Decamerão de 1970. Em filmes como O dragão da maldade contra o santo guerreiro de Gláuber Rocha de 1969, trata do movimento dialético do alienado, Antônio das Mortes, o matador de cangaceiro, que toma consciência de sua classe e depois se integra na revolução ao lado do professor, que aqui representa o intelectual, na luta contra o Coronel Horácio. Também algumas críticas de Adorno com relação ao elemento dos filmes planosequência, de que eles “proíbem a atividade intelectual do espectador” pois as imagens “desfilam velozmente diante de seus olhos”31 foi assimilada por diretores como Godard em seu filme O Vento Leste de 1969 e Leone em Era uma vez no 29JAY, Martin. As ideias de Adorno. Op. Cit. Pág. 18. 30JIMENEZ, Marc. T. W. Adorno: uma estética da modernidade. In:_______. O que é estética? Op. Cit. Pág. 350. 31ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: o Esclarecimento como mistificacão das massas. In:_______. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Op. Cit. Pág. 104-5.

467

oeste de 1968 que experimentaram planos longos. Além do mais, neste último ocorre com o personagem Frank, o pistoleiro de aluguel, o mesmo movimento dialético corporificado por Antônio das Mortes no filme de Gláuber Rocha, alienação, consciência e revolta. Aliás, tal filme de Leone apresenta um tema caro a Benjamin e a Adorno, a violência do progresso na dominação da natureza e dos homens simbolizada na construção da ferrovia pelo barão ferroviário Morton. O cinema novo no Brasil, o neo-realismo e o western spaghetti na Itália, a nouvelle vague na Franca, o Novo Cinema Alemão, sem contar o cinema japonês com Kurosowa, reinventavam sua linguagem e tornava-se independente dos monopólios culturais, sendo mais que meras exceções em meio a uma multidão de daddy's cinema, como o foi O encouraçado Potemkin. Martin Scorsese falando do cinema revolucionário de 1968 disse certa vez que “foi uma época em que esperávamos que tudo pudesse acontecer através do cinema e que o cinema fosse, de certa forma, salvar o mundo”32. Isso confirma as expectativas de Benjamin, que só veio a tomar corpo muito tempo depois, por uma classe de intelectuais que assimilaram o papel revolucionário do cinema, em sua forma de socialização dos meios intelectuais de produção Esses intelectuais tentaram modificar a sua época por meio da reflexão de sua arte não mais com o intuito unívoco de entreter. Mesmo assim, porém, não assistimos a realização da arte na imagem da redenção que tanto Adorno33 e Benjamin desejavam com afinco.

REFERÊNCIA ARENDT, Hannah. Walter Benjamin. In:_______. Hombres em tiempos de oscuridad. Barcelona: Editorial Gedisa, 1990. ADORNO, Theodor W. Apuntes sobre Kafka. In:______. Prismas. Traducão Manuel Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel. ________. Minima Moralia – reflexões a partir da vida lesada. Traducão Daniel Kohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. ________. O fetichismo na música e a regressão na audição In:_______. Textos escolhisdos. São Paulo: Nova cultuval, 1996. p. 65 – 108. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: o Esclarecimento como mistificacão das massas. In:_______. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Traducão Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1985 p. 99 – 138.

32Entrevista cedida por Martin Scorsese à sessão de extras do filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro de Glauber Rocha. 33 “Da filosofia só cabe esperar , na presenca do desespero, a tentativa de ver todas as coisas tal como se apresentam sob o ponto de vista da redencão”. ADORNO, Theodor W. Minima Moralia – reflexões a partir da vida lesada. Op. Cit. Pág. 245.

468

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Traducão Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. Melancolia de esquerda. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Traducão Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. O autor como produtor. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Traducão Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. O narrador. Cosideracões sobre a obra de Nikolai Leskov. In:_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Traducão Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. Que é o teatro épico: Um estudo sobre Brecht. In:________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Traducão Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. JAY, Martin. As ideias de Adorno. Traducão Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cutrix, 1988. ________. A imaginacão dialética. Traducão Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra ponto, 2008. JIMENEZ, Marc. T. W. Adorno: uma estética da modernidade. In:_______. O que é estética? Traducão Fulvia M. L. Moretto. São Leopoldo – RS: Ed. Unisinos, 1999. p. 348 – 360. KRACAUER, Siegfried. As pequenas balconistas vão ao cinema. In:_______. O ornamento da massa.Traducão Carlos Eduardo Jordão Machado, Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 311 - 326. ________. Sobre os escritos de Walter Benjamin. In:_______. O ornamento da massa. Traducão Carlos Eduardo Jordão Machado, Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 279 – 285.

469

ÓPERA FRANCESA: A TRAGÉDIA LÍRICA, A DANÇA, “QUERELLE DES BOUFFONS” E ILUMINISMO Rodrigo Lopes [email protected] Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP PPGM – Mestrado em Musicologia Musicologia/Estética Musical Bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar, refletir e discutir a ópera francesa no período Iluminista. Até aproximadamente à metade do século, prevaleciam nos escritos sobre música comparações, paralelos, polêmicas e querelas em torno de assuntos de caráter preferencialmente geral, como questões de harmonia e melodia, de música francesa e italiana. A música, de um processo imitativo da natureza, passa a ser concebida como uma arte distinta no Século das Luzes, tanto em sua autonomia como em sua especificidade; progressivamente seu valor próprio passa a ser reconhecido, e, com as mudanças da sociedade, ela também sofre alterações. Daí a importância do que foi a tragédia lírica, a dança, as querelas dos bufões em contrapartida à ópera séria francesa, as polêmicas entre músicos e filósofos. A ópera, além de divertimento para as classes superiores, foi também cenário de uma luta entre diversas ideias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar o trabalho de pintores, dançarinos, coreógrafos, ocupando assim um espaço maior dentre as discussões da época. Palavras-chave: ópera; música francesa; século XVIII.

INTRODUÇÃO O Iluminismo foi fértil em relação à filosofia estética. Surgiram muitas obras no meio acadêmico deste período, superando outras anteriores na história deste pensamento. A efervescência causada pelo Iluminismo dá fôlego à filosofia da arte e à crítica estética, e surge nesta época a história da arte como a conhecemos hoje; uma história da arte como um meio de pensar a própria arte como manifestação cultural. Nos séculos XVII e XVIII a ópera, a dança e o teatro caminhavam juntos, e mutuamente compunham um estilo próprio na França. Devido aos estilos próprios de cada país, os chamados estilos nacionais, eles se compunham do caráter, da mentalidade e temperamento de um povo. O aspecto teatral teve como consequência uma manifestação peculiar na personalidade, como a de um indivíduo com todas as suas características, mas transposto na imagem expressiva e particular de um povo. Os franceses eram tidos normalmente como frios, formalistas, perspicazes e controlados, ao passo que, comparados com os italianos, tinha-se a ideia de que estes eram espontâneos, informais e sentimentalistas demais. E esta forma francesa de ser foi incorporada em seus espetáculos, fosse na ópera ou mesmo no teatro e na dança.

470

Segundo Nikolaus Harnoncourt, “As características essenciais do estilo francês eram: a forma clara e concisa, peças instrumentais de expressão condensada, movimentos curtos e muito simples e também a ópera, mas esta, de um gênero totalmente diverso da italiana. Era sobretudo uma música voltada para a dança, cujas formas racionais e lineares lembravam as da arquitetura dos jardins e palácios franceses. Era como se a forma clara e rígida das danças tivesse sido criada especialmente para que se pusesse em música o estilo desta nação”. (HARNONCOURT, 1988, p. 186).

Ocorre que uma crítica estética e literária por meio da filosofia se manifestará neste período, ocupando discussões em torno da beleza da arte e de sua constituição, desdobradas em duas correntes, segundo Cassirer (CASSIRER, 1997, p. 367): uma, intelectualista, unindo poética, estética e literatura como domínio racional; outra, sensualista, que questiona o conteúdo do pensamento por meio das regras da arte, do gosto e do belo, concebida por meio do raciocínio ou pelo sentimento. A corrente intelectualista orientava a arte do mesmo modo que orientava as ciências, como matemática, física e outros saberes, sem levar em consideração os sentimentos tidos perante a obra de arte, apenas alicerçado sobre as regras e críticas artísticas descobertas pela razão. Como as regras universais regem a natureza, as mesmas dirigem as artes, estas, mimeses da natureza, fundamentam o iluminismo ou classicismo francês. É introduzida nesse período a busca de um método dedutivo para as artes, que se resume ao “princípio da imitação em geral”, como um axioma, dado por Charles Batteux (BATTEUX, 2009, p. 17), em As Belas Artes Reduzidas a Um Mesmo Princípio. Esse axioma já estava presente no Renascimento, na ordem da pintura, como dizia Alberti, que “tão grande força tem o que é apanhado na natureza. Por essa razão devemos tirar da natureza o que podemos pintar, e sempre escolher as coisas mais belas” (ALBERTI, 1992, p. 133), onde os preceitos da mimese acompanhavam os artistas desde sempre. No século XVIII, diferentemente do Renascimento, a unidade das artes pela mimese eleva as artes à categoria de ciência. Música, esculturas, pinturas, poemas, tudo envolve a imitação da natureza, no sentido racional, intelectual. A contrapartida sensualista surge na Inglaterra, na figura de David Hume, cuja corrente foi levada para a França por Diderot, em que as artes eram analisadas a partir do gosto, contra os métodos dedutivos sobre a obra de arte; seus partidários subordinavam a razão aos fenômenos. Ao invés de analisar a arte pelo viés da matemática ou da física, analisava-se pela lente de uma espécie de “psicologia”, em que os fundamentos do belo estão sedimentados na natureza humana.

471

Surge, assim, a autonomia da obra de arte, em que Diderot trata do desmerecimento da obra de arte que desrespeita as regras estabelecidas, mas, que suscita os mais belos sentimentos. No Paradoxo Sobre o Comediante, Diderot diz que o “artista de gênio não busca imitar a natureza comum das coisas, mas sim entender e reproduzir os sentimentos dos homens” (DIDEROT, 1981, p. 23). Esse pensamento suscitará posteriormente a ideia que se tem atualmente do artista, como que produz suas próprias obras segundo seus sentimentos e sua maneira de ser, concepção esta que até então era diferente, pois os artistas seguiam os preceitos das artes imitativas, que, segundo um gosto estabelecido, tinham na mimese sua fundamentação. A razão não deveria ditar os parâmetros de gosto ou valor, mas explicar os efeitos do porque esses determinados parâmetros são valorizados, pois, apesar das preferências, as pessoas julgam através da aprovação ou desaprovação, dentro do que é e o que não é opinião comum. A mimese ou imitação era tão importante que mesmo as peças musicais instrumentais eram interpretadas como representações, por exemplo, de uma cena pastoral. Ela se subordinava a conteúdos específicos em sua representação, guardando em si mensagens didáticas. Na segunda metade do século XVIII temos então na história da estética musical a legitimação da música instrumental, que começa a se descolar da arte representativa, adquirindo “formas puras” de uma arte profunda. Quanto à ópera, a França viveu diversas modificações políticas e sociais no século XVIII, eclodindo na Revolução Francesa em 1789, o que se refletiu na ópera e nas artes como um todo. Os gostos do rei e da corte neste gênero musical eram uma maneira de se demonstrar os costumes, comportamentos e regras morais daquele momento. Pela educação pensava-se corrigir e moralizar no sentido de demonstrar os costumes corretos, o que era um traço do Iluminismo. Quando a corte passa a ser afetada pela burguesia em ascensão, essas prerrogativas sofrem modificações pelas transformações das regras de gosto, e as artes e a música sofrem consequências e reflexos desse momento histórico. A burguesia, ao mesmo tempo em que possui poder econômico, passa a ser agradada e “educada” para as regras de conduta do ambiente da corte em que deseja fazer parte, porém, em contrapartida, influencia a corte com seus modos e condutas. A ascensão da burguesia, para a música, traduziu-se na constituição de um novo público, maior e anônimo, que sob uma comercialização crescente, teve de adaptar-se e do qual se viu obrigada, não a receber ordens como as que lhe vinham de príncipes, mas a adivinhar seus desejos, expressos ou não. A luta da burguesia contra a aristocracia e o absolutismo manifestou-se também no plano cultural, e um desses sinais foi a expansão da música para lugares por ela antes pouco frequentados. Assistiu-se a um grande

472

desenvolvimento de concertos privados e execuções amadorísticas; e bem posteriormente ao período das grandes óperas e suas querelas, viu-se o nascimento das salas de concertos, de um lugar onde, na condição de quem pode pagar, podia-se ouvir música que não se havia expressamente encomendado. AS “PAIXÕES” HUMANAS NAS SOCIEDADES DOS SÉCULOS XVII E XVIII As paixões humanas deveriam ser educadas e usadas adequadamente pelo homem bem-educado. Deveriam ser condicionadas, tornadas servas da razão, e a virtude está em não reprimi-las, mas em controlá-las. Seu controle estava no poder pelo bom gosto, no saber equilibrá-las mediante as circunstâncias. As paixões poderiam existir e se manifestarem, mas controladas, não se saberia o que se passava de verdade na alma de uma pessoa, e neste caso, o que importava era a imagem que se via. As paixões eram condenadas segundo o grau de manifestação perante os outros. Segundo Lebrun: A “paixão” de que se trata não é um impulso que nos leva, malgrado nosso, a praticar uma ação. Ela é o que dá estilo a uma personalidade, uma unidade a todas as suas condutas. Trata-se da tonalidade específica de suas condutas, da tensão que unifica seus atos – sem importar que situação esteja enfrentando. Em suma, a “paixão” é então constitutiva de uma personagem (...) como da tragédia grega: sua paixão e seu caráter são indissociáveis. Essa vibração afetiva, que caracteriza os grandes personagens trágicos, pode levar um indivíduo à perda e também à glória; seja como for, ela escapa à nossa categorização “moral” (LEBRUN, 2006, p.

23). Dentre as paixões existentes nas sociedades do século XVII e XVIII, a glória, a honra e a reputação estavam entre elas. A honra tinha maior destaque, e dela, construía-se a imagem de reputação diante dos outros. Não importava o que se sentia dentro de si se o que valia era a aparência visível. O que interessava ao nobre da sociedade desta época era o que se aparentava ser. A vida íntima não significava nada sem as aparências. Após momentos políticos delicados na França até o estabelecimento do rei Luís XIV, a alta nobreza é concentrada à volta da figura do rei, e este transforma a realeza e a monarquia num espetáculo. Como espetáculo, imaginam-se elementos teatrais, cênicos, representações de papéis que terão importância na aparência em sociedade. A vida se teatraliza, embora isso não signifique uma falsificação da vida. Nasce uma psicologia da corte, calcada na aparência, marca da condição humana da corte real. Dominada pelas ilusões, a vida social se desenvolverá mediantes essas condições, pelo espetáculo do que se aparenta ser.

473

Essa psicologia valoriza a vivência de opiniões, o de ser amado e apreciado mediante o que se aparenta ser. Lidar com os fracassos será como um sonho, pois a vida é um sonho, é ele quem monta no dia-a-dia os prazeres da vida. Os nobres tornam-se técnicos dos prazeres, cultores de uma vida doce que não precisa ser modificada, pois sua vida o contenta. E diz Ribeiro: Antes da Revolução Francesa não havia muita diferença entre a vida pública e a vida cênica: o social, o político, concebiam-se partindo de máscaras, de imagens, de representações, que os próprios atores podiam sabê-las mais ou menos falsas; porém, que importância tinha a falsidade? Não é que a vida pública fosse mentira; é, simplesmente, que seria pequena a distância entre ela e a ficção (RIBEIRO, 2006, p. 114).

SOBRE A ÓPERA E SUAS POLÊMICAS 1. Segundo Enrico Fubini (FUBINI, 1983, pp. 81-85), nos primeiros anos do século XVII, a ópera se impõe como um novo gênero musical capaz de focalizar a atenção do público e dos filósofos. Durante o século XVII e boa parte do XVIII, filósofos, críticos, homens de letras e teóricos dedicaram escritos sobre essa música. O raciocínio comum era o de considerar a ópera como um espetáculo artificial, absurdo, e privado de lógica e inverossimilhança por parte do cantor, que representava, sem se importar, qualquer acontecimento da vida. Depois dos primeiros decênios do século XVII, a ópera tornou-se um fato artístico e social marcantes, surgindo, entretanto, um conflito entre a prática e a teoria. A nova linguagem musical será a harmonia tonal; a razão antiga considerava a música como uma segunda ordem. As letras contribuiriam para evidenciar a poesia. A ópera, como gênero novo, expressaria o humanismo do Renascimento, da contrarreforma, mas, culturalmente, a expressão é literária e racional; hierarquicamente está sobre os outros tipos de expressão não reduzidos aos modelos linguísticos. Compreende-se assim que os esforços efetuados para racionalizar a linguagem musical, conferem, através da sintaxe da harmonia, uma lógica capaz de elevar-se e adaptar-se à linguagem literária, como toda a insatisfação que não consegue dissipar este esforço e que surge da seguinte observação: apesar do fato de que a música continuava a manter um grande número de elementos não racionalizáveis, sob conceitos e gostos intraduzíveis, ela é capaz de, no entanto, influenciar a alma humana, naquilo a que o músico se recusa a desistir, e que a nova linguagem pode torná-la mais potente. De fato, a melodia encarna o poder irracional que o racionalismo barroco preferiu eliminar de seus horizontes. Seja porque as óperas se revelam rapidamente como um gênero híbrido, seja porque elas perfazem um jogo essencialmente teatral, e nesta dimensão logo se torna um gênero em que a

474

música prevalece significativamente evidente. A música e a poesia são artes que, na formulação hierárquica da mentalidade racionalista, devem ser diametralmente opostas uma a outra, uma vez que a primeira se endereça aos sentidos e a segunda, à razão, e elas se encontram unidas para ser um espetáculo, o que para a mentalidade de um filósofo ou um escritor do século XVII, era um absurdo, algo confuso, inverossimilhante, um espetáculo onde as personagens que se desenvolviam no palco de forma ridícula e antinatural chegavam ao ponto de morrerem cantando. É um absurdo a sensibilidade se apresentar em primeiro plano e a racionalidade em segundo, de acordo com a concepção de gosto do século XVII. O julgamento de escritores franceses do fim do século XVII, como Boileau, Bossuet, La Motte, e início do XVIII, como Cahusac, é a de que a ópera é em substância uma tragédia degenerada ou corrompida, como um ajuntamento extrínseco, onde sua função é a de manter o espectador entretido com uma estética do prazer, como num teatro, baseado num conteúdo intelectual e moral. Mas a ópera triunfa num sucesso crescente, atraindo um círculo de ouvintes cada vez maior. As personagens ali retratadas não fazem os espectadores saírem cheios de gravidade e sentimentos nobres, mas marcam uma ternura totalmente feminina, indigna das almas viris ou das pessoas fortes e sábias. Para aquele momento, quanto aos costumes, não havia dúvidas de que a música moderna dos teatros era prejudicial e estava entre os pontos mais altos quanto a perturbar os costumes e a moral do povo que entrava em contato com ela, inclinando-o a uma vida vil e plena de lascívia, segundo sua concepção. Diferente da ópera italiana, a França valorizou a dança em seu gênero musical dramático, e esta era o ballet de cour. O elemento formal da ópera francesa é marcante, cujas árias possuem a rigidez da dança; a ópera francesa combina vários materiais dramático-musicais, em que envolvem a dança, a música instrumental e o canto. O que era a “ópera séria” francesa foi a tragédie lyrique [tragédia lírica], cujo conteúdo envolvia uma ação mitológica conduzida pelos deuses sempre interrompida por um divertissement [divertimento] no final de cada um de seus cinco atos; o divertissement era um interlúdio dançado, que poderia ser cantado ou não, era um número como uma masque teatral, e normalmente não tinha relação com a ação principal. Era comum nesse momento existir o uso de maquinarias teatrais, como máquinas voadoras, fogos de artifícios, que geravam maior interesse ao espetáculo, e aqui as diversas danças francesas se faziam presentes, até terminar com uma tempestade desencadeada pelos deuses no último ato. Todos por natureza rejeitavam a ideia de uma boa ópera; ideia esta apoiada por teóricos dos séculos XVII e XVIII, o que é ausente do ponto de vista do racionalismo clássico. A música deveria ser expulsa da ópera, condenada na medida em que são reconhecidos seu poder negativo e seu fascínio secreto e

475

irresistível; o pior julgamento que se poderia fazer de um poeta é dizer que sua poesia se adaptava bem à música. A desconfiança se voltava para o elemento emotivo e passional, e o reconhecimento implícito de uma afinidade eletiva e secreta da música com base na negação, revela um medo para com a arte do som. A música desperta em nós uma disposição inquieta e vaga para o prazer, que não tende a nada e que tende a tudo. Num primeiro momento, a tragédia lírica parece ter causado um efeito devastador. A ópera havia se transformado num teatro verdadeiro, possuindo uma dimensão dramática de um mundo que se constitui com regularidade, se revelando como um desafio à ópera italiana, mas também erguendo a cena lírica à altura da cena dramática: ela se apoiou na comparação com sua rival, tornandose assim seu homólogo. Perto dela, a ópera italiana não pareceria mais que um conjunto desprovido de verossimilhança irregular, longo e confuso. Encarnação por excelência da ópera, ao ponto dos termos “tragédia em música” e “ópera” serem sinônimos, ela eclipsa e esteriliza os outros gêneros que pretendiam uma ocupação parcial no domínio lírico. A teoria da tragédia lírica e de seu esplendor possui basicamente quatro axiomas: o primeiro trata do axioma intelectual do conhecimento, em que supõe uma verdade da natureza como abstrata e que repousa em relações formalizáveis; o segundo axioma faz a ilusão cumprir a função de artífice revelador da verdade; este é o axioma sensualista da ficção teatral; o terceiro, chamado de axioma do “teatro dos encantamentos”, anuncia a tragédia lírica como o inverso da tragédia dramática. O quarto estipula a constância da relação material entre a música e a linguagem articulada, os significantes da língua e os sons da música; este é o axioma da necessidade do recitativo e da articulação da música. Esses axiomas envolvem um conjunto de sistemas que abraça uma concepção de mundo, do homem e da arte que remonta à ideia dos números a partir da filosofia de Descartes. A tragédia lírica ganhou partidários e também inimigos. Seus partidários pensavam ser ela um reviver dos preceitos da antiga tragédia grega, devido a seus temas mitológicos, e outros preferiam o riso, o burlesco, como ocorria na ópera italiana, até mesmo com personagens trágicas e cômicas atuando no palco ao mesmo tempo. A antiga pastoral foi absorvida; as transformações que fizeram dela a tornaram um laboratório poético da cena lírica e foram incorporadas pela tragédia. A introdução da dimensão heroica e da violência nas primeiras pastorais trouxe à ópera um novo colorido e novas nuances. Embora a história da ópera francesa comece com as pastorais, somente a tragédia lírica se fará entrar nas lendas e delícias das querelas literárias.

476

A música, com seus encantos íntimos e secretos, fornece uma disposição que suaviza a alma e abre o coração para o sensível, sem saber exatamente o que se quer. 2. O balé à francesa, o balé de cour, chamado de “grande balé”, se fará presente em qualquer tragédia. A dança será responsável pela verdadeira dramatização que inaugura a tragédia, além de realçar sua dignidade como representação dramática e confessa sua estranheza com o teatro clássico. Não seria eliminando a dança que a tragédia eliminaria o balé de corte, pelo contrário. Partindo disso, a ópera italiana revelou aos franceses certa distância considerável entre a ordem do espetáculo musical e do verdadeiro teatro lírico: a tragédia lírica, revelando as possibilidades dramáticas da dança, as diferenças entre o espetáculo coreográfico e a coreografia teatral, conquista e assume uma função poética plena. Por ser um dos componentes essenciais do teatro lírico, a dança tinha que ir além da simples propriedade, da simples pintura de caracteres. Ela tinha que se inserir não somente na economia geral dramática da obra, mas encontrar um lugar na unidade poética utilizada tanto no seu acolhimento como na sua utilização, mas possuir ela mesma um movimento capaz de fazer progredir a ação: o balé não deveria ser “inserido” na obra, ele deveria ser “introduzido”. É feita uma combinação das diversas Entrées do grande balé, de maneira que elas concorram ao objeto principal proposto, permitindo aos bailarinos desenvolverem, cada um em sua ocasião, as graças e belezas da dança simples; mas a dança deve compor, exprimir as paixões e por consequência ser digna do teatro. Cahusac (1706-1759), libretista que compôs obras para Rameau, considerava que, ao mesmo tempo em que a dança passava a viver uma situação estranha, por causa de um novo gênero de balé advindo entre 1673 e 1697 por La Motte, criticava o caráter episódico na economia geral da peça; a dinâmica poética deveria satisfazer a dimensão da obra, coisa que não acontecia, e para isso, deveria de ser bem construída. Nesse sentido, a tragédia lírica reporta à dança uma dimensão dramática que o balé é incapaz de possuir. O paradoxo da situação se explica pela natureza da representação teatral que inaugura a ópera: ele passa de um simples espetáculo a um mundo verdadeiro, da pintura de caracteres para uma função poética dramática. O paradoxo se acentua ainda mais se se examinar a realidade da tragédia lírica, sua execução e não mais somente sua concepção. Ela revela a função dramática da dança como se vê em autores como Lully e Quinault, seja como leitor ou ainda como espectador ideal, que Cahusac revela e aprecia no acontecimento dramático. Mas esta revelação não conhece a verdade efetivamente empírica, que continua latente como performance cênica; ela permanece como um acontecimento mais poético do que real. A admiração sem limites que Cahusac admite quanto ao texto poético propriamente dito das

477

tragédias líricas de Quinault e Lully se sucede um apontamento lamentável quanto à pobreza da realização cênica, em que diz que “o lugar das grandes e nobres ideias de Quinault é substituído por uma execução magra, de pequenas figuras mal desenhadas e de um colorido mal desenhado” (CAHUSAC, 2004, p. 81-82). Deve-se levar em conta que os espectadores reais devem ser satisfeitos; o acontecimento poético foi certamente um acontecimento histórico, mas não foi uma verdadeira efetivação artística real. A dança dramática fez ressurgir o balé como gênero; o balé moderno inventado por La Motte que, rico em aquisições dramáticas, revela uma poética trágica. Esse balé possui interesse por colocar a questão da dominação do gênero trágico em termos poéticos e por corresponder a uma realidade, a de que o balé sofre um eclipse, assim como se eclipsou a pastoral. A cena lírica francesa se caracteriza por sua grande diversidade: junto com a tragédia lírica disputam outros gêneros como pastoral heroica, a ópera-balé, a comédia, que disputam o mesmo sucesso daquela. 3. Dentre as polêmicas existentes nesse período, está a Querelle des Bouffons [Querela dos Bufões], que interessa em igual medida à história da música e à história das ideias. Ela possui dupla qualidade capital, e participaram dela Diderot, Rousseau e os enciclopedistas. Isso se deu devido à instalação de uma companhia itinerante italiana na Ópera de Paris em 1752, para dar espetáculos de intermezzi e de óperas bufas, o que fez a França dividir-se entre os adeptos dos italianos de um lado e os representantes da música francesa do outro. Antes já havia discussões em torno da música francesa e italiana, com Lecerf e Raguenet, em 1704. À primeira vista os italianos triunfaram de forma inexplicável; porém, ocorre que a ópera francesa não se renovava desde a morte de Lully em 1687. Rameau, que tomou seu lugar, foi contestado; e nisso o público sofria as investidas de autores secundários. Nesse marasmo, o público já estava cansado da ópera séria, que não emocionava mais, e as óperas bufas, trazidas pelos italianos, tornaram-se um grande sucesso dentre o público. O enredo padrão de uma ópera bufa (ou intermezzi) consistia de uma série de peripécias cômicas sem qualquer episódio estranho à ação, e para o que bastavam poucas personagens. O enredo tirava toda a sua força de sua rapidez, da expressão realista de sentimentos cotidianos, de sua linguagem musical. Exemplo disso é a Serva Padrona (Criada Patroa), de Pergolesi, que depois de um fracasso na França foi posteriormente de um sucesso muito grande. Contra isso estavam os partidários da música francesa que, adeptos da tragédia lírica, não toleravam o riso, e a queriam aos moldes do que para eles teria sido a tragédia grega. A tragédia grega, de acordo com a Poética, de Aristóteles, apresentava, como personagens, figuras elevadas da aristocracia: reis, príncipes, grandes heróis, ou figuras de deuses mitológicos, em que a

478

personagem principal sofre mudança de sorte, passando de um momento feliz para um infeliz. A personagem, por exemplo, como a de Édipo Rex, de Sófocles, comete um erro [neste caso o de ter assassinado o pai e se casado com a própria mãe, mas sem saber que eram seu pai e sua mãe], que ignora saber ter errado, porém, ele deve ser punido por sua falta, o que causa terror pelo tipo de erro cometido, mas, ao mesmo tempo, causa piedade, pois ignorava que tivesse feito tais coisas a pessoas do próprio sangue; a esses sentimentos contrários sentidos ao mesmo tempo, dá-se o nome de Catarse. Neste tipo de ação consiste a tragédia. É o prazer através do contato com experiências dolorosas. Com esse modelo, a música está vinculada muitas vezes aos modelos das tragédias de Racine e Corneille, que neste caso o tipo de tragédia é chamado de clássica, marcante no teatro francês do século XVII, que pensa reproduzir a tragédia antiga, ou seja, a tragédia grega de Sófocles, Eurípides, e outros, onde não se admitiam personagens cômicas em simultaneidade com personagens trágicas. Por este viés estão exemplos como os do compositor Lully, com Acis et Galatea [Acis e Galateia] e Campra, com Alphée et Aretusa [Alfeu e Aretusa]. Corneille, (...) ao lado de Racine, é considerado um dos grandes dramaturgos franceses, que também se dedicou à teoria, marcada por releituras de Aristóteles, reorganizando preceitos da composição da tragédia em favor dos deslocamentos que operava em suas obras e que, não raro, como foi o caso de El Cid, polemizaram com críticos de sua época. Questionou a regra das três unidades (de ação, de tempo e de lugar) pela qual o teatro clássico francês se pautava e que seus defensores supunham ser legitimamente derivadas de Aristóteles por atenderem a critérios rígidos da verossimilhança da ilusão teatral (FERREIRA, 2011,

p. 139). Rousseau escreveu a Carta à Música Francesa, que atacava de frente a música francesa versus música italiana. Para ele a música francesa abusava de uma mitologia mais que batida, utilizava-se de libretos pomposos, imperava a ausência de ação dramática, as montagens eram exageradas e aparatosas, as árias eram à base de trinados, gesticulações e brilharecos vocais, e tudo isso sem relação com os sentimentos que o texto expressava. Fora os comentários quanto à prosódia entre a língua italiana e francesa, que para Rousseau, a italiana possuía mais musicalidade e sempre estaria além de qualquer música de Rameau. Rousseau e os enciclopedistas foram os inimigos mais acirrados de Rameau, fazendo com que o compositor saísse de sua reserva que fora mantida por muito tempo. Este simbolizava a totalidade das forças aristocráticas conservadoras, e só foi visado enquanto sua ópera refletia os modelos estabelecidos por Luis XIV. Nem por isso Rameau deixou de ser atacado por suas

479

ousadias harmônicas consideradas “bárbaras”. Para ele, a música era sumamente racional, igual em todas as épocas, ou seja, a música é um fenômeno universal. Para Rousseau, a música expressa infinitas variedades do coração humano, e não saberia de modo algum ser universal em sua forma. O caráter da melodia não tem como não variar de um povo para outro, de um momento para outro da história: a compreensão da música é um fato histórico e cultural. Para Rousseau, a música é a expressão dos sentimentos como a matemática é para Rameau. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ópera, num primeiro momento, é recebida com desconfiança e como perigo para a educação de seu público, insuflando as paixões e maus costumes; em pouco tempo, passa a ter prestígio e muito sucesso, refletindo os gostos e modismos do rei e da nobreza da corte na tragédia lírica, a ponto de ganhar a atenção de filósofos e homens de letras. A dança era a marca principal desta nobreza, sendo seu reflexo por excelência. Com as querelas dos bufões, a ópera cômica começa a ganhar prestígio, principalmente dentro da classe burguesa que começa a ganhar ascensão e triunfo, constituindo um novo público para as artes. Um dos problemas capitais da estética musical nos séculos XVII e XVIII é a relação entre verbo e som, entre poesia e música. A arte como imitação da natureza, é um dos vetores desse debate, a ponto de uma história da estética musical poder coincidir, de forma geral, com a história desse conceito: todas as querelas entre França e Itália nos dois séculos estão presas nessa relação. Em 1704, Lecerf de la Viéville respondeu a Raguenet com sua Comparaison de la musique italienne et de la musique française [Comparação entre a música italiana e a música francesa], fazendo crítica aos italianos quanto a seus excessos e extremos, enaltecendo o comedimento e a naturalidade da música francesa; em 1753, Rousseau condenava nos franceses os excessos e a falta de naturalidade, encontrando somente elogios para os italianos. Em meio século, o conceito modificou-se radicalmente: a natureza já não era sinônima apenas de razão e equilíbrio, mas também de sentimento. Desta forma, pode-se ver nisso, o despontar do Romantismo.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas, Ed. Unicamp, 1992. BATTEUX, Charles. As belas artes reduzidas a um mesmo princípio. São Paulo, Humanitas & Imprensa Oficial, 2009. CAHUSAC, Louis de. La danse ancienne et moderne, ou Traité historique de la danse. Paris, Desjonquères, Centre national de la danse, 2004.

480

CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas, Ed. Unicamp, 1997. DIDEROT, Denis. Paradoxe sur le comédien. Paris, Flammarion, 1981. DIDIER, Béatrice. La musique des lumières: Diderot – L’Encyclopédie – Rousseau. Paris, Presse Universitaires de France, 1985. FERREIRA, Guilherme Ronan de Souza E. Dramaturgos-filósofos e a Poética de Aristóteles. In: Análogos Anais da XI SAF-PUC, Semana dos alunos de pósgraduação em filosofia, Rio de Janeiro, PUC, 2011. FUBINI, Enrico. Les philosophes et la musique. Paris, Librairie Honoré Champion, 1983. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminho para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1988. KINTZLER, Catherine. Jean-Philippe Rameau: splendeur et naufrage de l’esthétique du plaisir à l’âge classique. Paris, Le Sycomore, 1983. ____. Poétique de l’opéra francais: de Corneille à Rousseau. Paris, Minerve, 2006. ____. Théâtre et opéra à l’âge classique. Paris, Librairie Arthème Fayard, 2004. LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: Os sentidos da paixão. São Paulo, Funarte/Companhia das Letras, 2006. MASSIN, Jean & Brigitte. História da música ocidental. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1997. MEUCCI, Arthur. Ensaio sobre uma revisão crítica da história da arte. In: Estética USP 70 anos, São Paulo, Ed. Usp, 2004. NEUBAUER, John. La emancipación de la música: el alejamiento de la mímesis en la estética del siglo XVIII. Madrid, Visor Dis, 1992. RIBEIRO, Renato Janine. A glória. In: Os sentidos da paixão. São Paulo, Funarte/Companhia das Letras, 2006. SABATIER, François. Miroirs de la musique: la musique et ses correspondances

avec la littérature et les beaux-arts, de la Renaissance aux Lumières – XV° XVIII° siècles, tome I. Paris, Librairie Arthème Fayard, 1998. STEVENS, Jane R. The meanings and uses of caractère in eighteenth-century france. In: COWART, Georgia. French musical thought, 1600

481

A SOCIEDADE E O ENSINO DA MÚSICA Rodrigo Marcelo Sabbi [email protected] Universidade de Passo Fundo (UPF) Gleison Juliano Wojciekowski [email protected] Universidade de Passo Fundo (UPF)

Resumo: Este texto irá abordar alguns aspectos do desenvolvimento do ensino da música ao longo da história. A fim de centralizar o estudo e não torná-lo disperso, uma vez que a música se faz presente desde os primórdios da humanidade, achou-se por bem trabalhar apenas dentro de um pequeno recorte da história. O período abordado aqui é aquele que vai desde a Idade Média1até o início do século XIX, momento em que a sociedade passa por grandes transformações. Palavras-chave: corporação, conservatório, método.

Primeiramente, deve-se compreender a concepção não só de música, mas da arte como um todo em cada momento histórico específico. A concepção de música do homem pré-romântico, em muito se difere da de hoje. Antes de tudo, a música deveria ser ouvida em sua totalidade e, para isso, necessária era a sua compreensão. Em períodos como este abordado nessa pesquisa, o conhecimento era um privilégio que estava ao alcance de poucos e, desta maneira, a ciência musical por muito tempo esteve ao alcance de uma minoria. A apreciação musical com entendimento só poderá ser desfrutada pelo sujeito através de uma educação musical de qualidade. A música expressava aquilo que não podia ser dito. Falava diretamente aos seus ouvintes contemporâneos, pois era feita para aquela sociedade, para aquela época. A música cumpria uma função que transcendia o simples entretenimento e era parte indispensável da vida das pessoas. A criação musical devia transparecer à novidade, da mesma forma que as demais ciências, como a engenharia, por exemplo, deveriam inovar com novas moradas atendendo as exigências da sociedade. (Harnoncourt, 1990, p. 13) A música funcionava como uma linguagem realmente viva, no sentido que as composições executadas nos concertos eram contemporâneas e direcionadas 1A

Idade Média (adj. medieval) é um período da história da Europa entre os séculos V e XV. É o período intermédio da divisão clássica da história ocidental em três períodos; a Antiguidade, Idade Média e Idade moderna. A Idade Média é ainda frequentemente dividida em dois ou três períodos.

482

especificamente para aquele público, para aquele lugar. Com certeza era motivo de insatisfação para o público chegar a um concerto e ver no programa composições de música de tempos anteriores àquele atual. O pensamento dos ouvintes estava ansioso por receber informações novas, instigar a imaginação, ser surpreendido pelo compositor. (Harnoncourt, 1990, p. 17) Pode-se fazer uma comparação com o que acontece hoje. Nos programas dos concertos, raramente encontrarmos composições feitas para nossa época. O ouvido do homem moderno está mais habituado com a música anterior ao século XX do que propriamente com aquela música feita para o nosso tempo. Há uma mudança em nossa concepção musical que não cabe aqui maiores aprofundamentos, mas é um ponto a ser destacado para, assim, termos uma melhor visão da música do período precedente. Desde os tempos do início da polifonia2 até fins do século XIX, é interessante notar como a música contemporânea era tratada pelos seus ouvintes. Com certeza, músicas de épocas anteriores eram também apreciadas pelo público, porém, em geral, estas dificilmente vinham sem um novo tratamento ou na harmonia3, na forma4, na melodia5, instrumentação6, etc. Era próprio do pensamento musical da época executar a música antiga sempre com uma interpretação nova. (Harnoncourt, 1990, p. 17) Pode-se entender interpretação como a maneira como o instrumentista, o cantor ou o regente percebe ou entende o pensamento do autor da obra a ser executada. Uma boa interpretação está relacionada com o grau de qualidade da obra a ser interpretada. É necessário, porém, o intérprete ter o cuidado para apenas assumir o papel de intermediário entre o compositor e o público, não vindo aquele a interferir no trabalho deste, com intervenções e colaborações que possam a vir descaracterizar tal obra. (Borba/Graça, 1962, p. 25) O culto e a curiosidade do público pela novidade a cada concerto obrigavam os compositores a uma rotina de trabalho composicional intensa. A produção

É em princípio, a sobreposição de muitas vozes ou muitos instrumentos, exprimindo cada qual as suas ideias, quase sempre em ritmos diferentes (...) a polifonia atinge já no século XII uma expressão superior de grande arte. 3 Arte e doutrina da formação e encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade. (...) O que até fins da Idade Média não podia este vocábulo ter era a significação, que hoje lhes damos, de ciência ou arte de sobrepor sons musicais, porque semelhante fenômeno era a esta altura desconhecido. 4 Forma é a coordenação, num todo homogêneo, dos vários elementos que constituem a obra de arte. Na arte musical esses elementos são a tonalidade, o compasso, o ritmo, o andamento, motivos melódicos, temas, etc. 5 Em princípio, melodia é uma sucessão ascendente ou descendente de sons musicais a diferentes intervalos, cuja força vital lhe provém, não apenas de uma regular combinação de valores, mas muito especialmente a acentuação que o ritmo lhe determina. 6 Por instrumentação deve muito principalmente entender-se o contato mais ou menos direto, para bem os conhecer, com os instrumentos de que se compõe uma orquestra, uma banda ou outros agrupamentos constituídos por instrumentos de qualquer natureza (...) 2

483

musical no período barroco7, por exemplo, era tamanha que o período ficou conhecido pela expressão “a celebração do efêmero”. Segundo Haynes (2006, p. 20), essa expressão faz uma comparação com os modernos designers8 da moda do vestuário, que estavam sempre a criar novos modelos para o vestuário. Na Inglaterra do final do século XVIII, músicas que haviam sido compostas em um espaço de tempo de aproximadamente vinte anos, já eram tidas como música antiga: As pessoas hoje pensam em A Sagração da Primavera, de Stravinsky, como "moderno", por exemplo, apesar de ter sido estreada em 1913. A concepção atual da música contemporânea pode, assim, incluir a música de quase um século de idade. Por outro lado, na Inglaterra do final do século XVIII, a músicaque tinha sido composta a cerca de vinte anos, era executada no rol dos programas de música antiga. (Haynes; B., The End of Earley Music, 2006, p. 21)

O público se dirigia aos concertos ansioso por ouvir a novidade que o compositor havia preparado. Existia um grande interesse por uma música da qual nunca haviam escutado antes. A plateia participava dos concertos não apenas escutando mas também interagindo e expressando a sua emoção cada vez que a música atingia algum efeito particularmente eficaz. Semelhante comportamento temos hoje nas platéias de música rock, onde aplausos espontâneos entre uma música e outra, ou ainda enquanto o músico está tocando são comuns. (Haynes, 2006, p. 21) Outra característica do período pré-romântico9 refere-se a improvisação. O estudante de música desse período era treinado a estar sempre improvisando ou, de certa forma, compondo em determinados trechos da música. Nota-se que tal improvisação nem sempre vinha escrito na partitura. Era necessário o músico dominar esta habilidade, sem a qual dificilmente poderia executar a música desse período. (Haynes, 2006, p. 4) A escrita musical barroca caracterizou-se por seu reduzido volume de informações musicais. Era o que poderia se chamar uma escrita econômica ou, uma “thin writing”10. Os compositores raramente acrescentavam muitas indicações, como é comum hoje, tais como fraseado, dinâmicas, variações de

7Barroco

é o nome dado ao estilo artístico que floresceu entre o final do século XVI e meados do século XVIII, inicialmente na Itália, difundindo-se em seguida pelos países católicos da Europa e da América, antes de atingir, em uma forma modificada, as áreas protestantes e alguns pontos do Oriente. 8 Estilistas de moda. 9 O romantismo foi um movimento artístico, político e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII na Europa que perdurou por grande parte do século XIX. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo e ao iluminismo e buscou um nacionalismo que viria a consolidar os estados nacionais na Europa. 10 Escrita magra.

484

tempo, etc. Para o músico daquele período, essas informações estavam inseridas dentro do contexto da obra. (Haynes, 2006, p. 108) Desta maneira, deduz-se que o músico, ou o estudante de música, necessariamente deveria, antes de tudo, estar familiarizado com o que deveria tocar. Certamente as informações que não estavam escritas na partitura deveriam ser absorvidas através da vivência musical e de preferência com a supervisão de um bom professor. (Haynes, 2006, p. 4) Pode-se fazer um paralelo do músico do Período Barroco com um músico contemporâneo de jazz, por exemplo. Profissionais de leitura impecável e profundos conhecedores da arte musical, com habilidade ímpar para a composição, o músico barroco desenvolvia alto domínio sobre a improvisação e, certamente, não necessitavam de muitas informação escritas na partitura. Estes não deveriam tocar somente o que estava escrito, correndo o risco de cair no desagrado do público. (Haynes, 2006, p. 108) O mestre de música formava aprendizes de acordo com a sua especialidade. Havia uma relação entre aprendiz e mestre na música, similar àquela que, durante séculos, houve entre os artesãos. Ía-se a um determinado mestre para aprender com ele o “ofício”, sua maneira de fazer música. Tratava-se, antes de tudo, da técnica musical: composição e instrumento.(Harnoncourt, 1990, p. 29) O mestre ensinava ao aprendiz a sua arte, todos os aspectos desta arte. Ele não ensinava somente a tocar um instrumento, ou cantar, mas também a interpretar a música. A evolução dos estilos se processava gradativamente, de geração à geração. Qualquer mudança nos conceitos, nas idéias, não era uma mudança propriamente dita, mas sim um crescimento e uma transformação orgânicos. (Harnoncourt, 1990, p. 29) Na Europa do século XII, havia o que se chamavam associações de artesãos e mercadores: organizações de cunho sócio-pedagógico, onde se recebiam jovens aprendizes para preparar os futuros mestres nos seus respectivos ofícios. A tal associação era outorgada o monopólio do exercício e do ensino de seu respectivo ofício, dentro de um determinado limite territorial. (Rugiu, 1998, p. 24) Essas associações, de acordo com lugar e a região onde se estabeleciam, recebiam denominações diferentes: Arte na Toscana, Colégio em Roma, Consulados em parte da Lombardia, Universidade no Piemonte e outros, Companhia na Emília, Grêmio na Sardenha, Confrarias ou Irmandades no Vêneto, Mestranças na Sicília, Ministérios em alguns centros norte-ocidentais, Paratici em zona exlongobarda, etc. Na Grã-Bretanha e nos países alemães, prevaleceram em geral, respectivamente, guilds e Gilden; na península Ibérica, Grêmios; na França, métiers ou devoirs. (Rugiu, A.S., Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 23)

O sistema de associação foi difundido por toda a Europa e teve seu auge no século XIV, vindo, a partir daí, a entrar em constante queda. Sua supressão se dá

485

no início do século XIX, quando a Revolução Industrial11 transforma o mecanismo de funcionamento da sociedade. Embora encontram-se diversos sinônimos para o termo associação, como as citadas acima, o termo que nos faz aproximar àquela realidade é corporação. Nós, para entendermos aquela realidade, usamos em geral o termo Corporações, termo esse, porém, relativamente recente, difundido na Itália somente na segunda metade do século passado e depois propagado pelo fascismo por ocasião do seu projeto de neocorporativização da Itália “disciplinada, laboriosa e produtiva”. Antes do final do século XIX, o termo Corporações era raramente usado para entender aquilo a que aqui chamamos Artes. (Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 23)

Ainda sobre as associações, a estas era atribuído o poder discricionário, ou seja, tinham liberdade para atuar no ensino sem restrições, cabendo a elas a formação de um currículo que mais convinha, de acordo com o contexto cultural e social de cada região. Esse é um dos exemplos mais típicos dos privilégios dos quais gozavam as associações. (Rugiu, 1998, p. 24) As associações não se limitavam a simples produtores de bens, existentes desde os tempos antigos [...], mas sim em verdadeiras ligas profissionais caracterizadas por direitos e deveres particulares, por privilégios e por vínculos reconhecidos e garantidos pelo poder público, ele mesmo, em medida mais ou menos sensível, condicionado pelas organizações das Artes presentes no território. (Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 24)

Com o aumento das cidades e da burguesia, as associações precisavam se organizar, como uma espécie de órgão regulador, no sentido de garantir a cada associação a boa relação entre seus membros. Era necessária também a providência de segurança contra as possíveis concorrências que vinham das cidades vizinhas. Com a crise do feudalismo12 e o consequente aumento da urbanização em torno dos muros ao redor dos feudos expande-se as relações comerciais entre a população. Há um aumento significativo na produção em termos de quantidade e também de qualidade dos produtos, o que também proporcionou um salto no desenvolvimento da tecnologia (Rugiu, 1998, p. 29) Foi necessário um salto tecnológico e de organização do trabalho e preliminarmente uma maior flexibilidade e eficácia dos produtores, ou seja, novas modalidades produtivas e reprodutivas, implicando, por sua

A revolução industrial consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social. Iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII expandiu-se pelo mundo a partir do século XIX. 12O feudalismo foi um modo de organização social e político baseado nas relações servocontratuais (servis). Tem suas origens na decadência do Império Romano. Predominou na Europa durante a Idade Média. 11

486

vez um aumento na taxa de instrução básica e especializada. (Rugiu; A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 29)

A ideologia do mundo feudal soa bastante estranha, em muitos aspectos, para a mentalidade de nossa época. Antes do surgimento das corporações, o conceito de trabalho tinha um sentido muito diferente do que temos hoje. O homem trabalhava para pagar seus pecados, como uma forma de penitência de seu próprio pecado original. A ideia de lucratividade só virá mais tarde, com a ascensão da burguesia13 e a consequente mudança do sistema de mundo e de pensamento. (Rugiu, 1998, p. 29) Os sistemas de trocas foram, gradativamente, sendo substituídos pelos de compra e venda, não sendo assim mais encaradas como ato pecaminoso14. O homem passou a contabilizar e apropriar-se do tempo, elemento esse antes de propriedade Divina. A burguesia, no intuito de obter lucratividade passa a emprestar seus bens a juros, estabelecendo assim os alicerces para o nosso sistema bancário, vigente no mundo inteiro até os dias de hoje. (Rugiu, 1998, p. 30) Assim como o tempo, a palavra também era considerada de propriedade divina. O manuseio da palavra, seja mentalmente ou materialmente,podia representar ofensas sérias a Deus.É somente a partir do Humanismo15 que o homem passou a se apoderar da palavra como instrumento fundamental de comunicação e conhecimento. (Rugiu, 1998, p. 30) É interessante notar como a própria Igreja acabou por fornecer as bases para o modelo que, mais tarde, viriam a suceder as corporações, pois dentro do mosteiro funcionava um rígido e organizado sistema de distribuição do trabalho e do ensino. Antes ainda do século XI, as formas de produção material e cultural sobreviviam fechadas em lugares isolados e fortificados, artesãos de vários gêneros [...] formavam-se nas oficinas dos mosteiros. (Rugiu, 1998, p. 27) Segundo A. Ponce (apud Rugiu, 1998, p. 27), a economia monástica apoiava-se sobre uma organização do trabalho com regras precisas de disciplina. O castelo feudal era quase exclusivamente o acampamento de 13A

Burguesia é uma palavra originaria da língua francesa ("Bourgeoisie"), usada nas áreas de economia política, filosofia política, sociologia e história, e que originalmente era uma classe social que surgiu na Europa na Idade Média (séculos XI e XII) com o renascimento comercial e urbano. No mundo ocidental, desde o final do século XVIII, a burguesia descreve uma classe social, caracterizado por sua propriedade de capitais, sua relacionada "cultura", e sua visão materialista do mundo 14 Na Idade Média, Deus é o centro do universo e a Igreja é a principal referencia na terra. Qualquer tipo de lucratividade era tida como pecado. Até mesmo o trabalho tinha uma concepção diferente da que temos hoje, ou seja, o homem trabalhava não para lucrar, mas para pagar seus pecados. (Rugiu, 1998, p. 30) 15 O Humanismo é um termo relativo ao Renascimento, movimento surgido na Europa, mais precisamente na Itália, que colocava o homem como o centro de todas as coisas existentes no universo. Nesse período, compreendido entre a transitoriedade da Baixa Idade Média e início da Moderna (séc. XIV a XVI), os avanços científicos começavam a tomar espaço no meio cultural.

487

guerra no qual o senhor repousava depois do saque e se preparava para o próximo. O mosteiro, ao contrário, constituía uma lição viva do trabalho organizado e racionalizado, a tal ponto que acabou por influenciar, e não pouco, as sucessivas burguesias. (A. Ponce apud Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 27)

Todas as atividades produzidas nas corporações, sejam elas a manufatura de algum produto ou até mesmo as intelectuais, eram traduzidas como arte. Porém, as atividades intelectuais estavam geralmente ao encargo dos clérigos ou de pessoas com uma melhor influencia dentro da burguesia. Esse fato faz com que a atividade intelectual receba um status maior em relação às atividades manuais. (Rugiu, 1998, p. 31) Esse distanciamento entre a atividade manual e intelectual levou Giovanni da Dinamarca, no século XIII, a propor a distinção de ambas como sendo Artes mecânicas e Artes liberais: As primeiras compreendendo todas as atividades artesanais, inclusive aquela dos médicos, desvalorizados pelo próprio nome de “mecânicas”, que, segundo o frade dinamarquês, seria derivado de mecor, aris (moechor, aris, no latim clássico = rebaixar, adulterar, depreciar); as segundas, ao contrário, correspondiam a todas as atividades implicadas no Trívio (gramática, retórica e lógica) e no Quadrívio (matemática, geometria, astronomia, música). (Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 30)

Sobre o termo arte, é interessante constatar que: O que é uma arte? Não é uma ciência, mas uma técnica. Arte é técnica, é a especialidade do professor, como aquela do marceneiro, do ferreiro... uma arte é qualquer atividade racional e justa do espírito aplicado à fabricação de instrumentos, sejam materiais, sejam intelectuais. É uma técnica inteligente do fazer. (Le Goff; J. apud Rugiu; A.S., Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p.31)

Voltemos à questão do ensino-aprendizagem dessa realidade. Como aprendia o aprendiz? Preservava-se muito a cultura do segredo, ou seja, jamais um mestre revelaria tudo o que soubesse ao aprendiz. Este, por sua vez, dependeria do seu grau de interesse e percepção16 para que, ouvindo e observando o que seu mestre fazia, pudesse, assim, desvendar os mistérios de sua arte: A relação mestre-aluno era principalmente denotada por essa dialética entre o esforço de esconder e esforço de entender os segredos. Ensinar era principalmente saber dosar atentamente aquilo que se podia ou não As excitações que impressionam os nossos sentidos podem provocar em nós fenômenos diversos: (...) A percepção implica a “crença” na realidade exterior e um sentimento de “objetividade”. Acompanha-se ainda de um verdadeiro “juízo de exterioridade”. Essas reações mentais não resultam, somente, da visão do objeto. Nelas toma parte o cabedal de nossas experiências passadas. A percepção é um fenômeno complexo em que ser reúnem, numa síntese, várias operações psicológicas; sensações, memória, associação, comparação, juízo, etc. 16

488

mostrar aos futuros concorrentes na arte, assim como aprender significava assimilar os dados visíveis e intuir certas maneiras de projetar e de realizar, suscetíveis de imitação e, se possível, de superação. (Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão,1998, p. 135)

Não havia uma organização entre faixas etárias como existe hoje. Sendo assim, podia-se encontrar em um mesmo banco escolar, crianças, adolescentes e adultos. Essa ideia de se organizar os alunos por idade só virá mais tarde com o desenvolvimento do sistema de ensino e o advento dos colégios, a partir do século XVI. O cenário que talvez mais se assemelhe a uma aula dentro dessas associações são os nossos teatros, onde há o personagem principal em destaque e uma plateia heterogênea a ouvi-lo. (Rugiu, 1998, p. 40) Segundo Hauser (apud Rugiu 1998, p. 39), as corporações, no seu período de ouro, ou seja, até o século XIV, concederam ampla liberdade aos mestres ao determinarem a duração e as formas do tirocínio dos aprendizes e daqueles dos auxiliares. O mestre era assim um verdadeiro patriarca na comunidade formativa que, às vezes, se estendia da oficina à própria casa, aonde vinham “colegiados” aprendizes e auxiliares. (Hauser apud Rugiu, A.S. Nostalgia do Mestre Artesão, 1998, p. 39)

A duração do curso, os conteúdos e metodologias de ensino, ou a composição das classes dos alunos diferiam muito de situação para situação, enquanto não se tinham ainda afirmados critérios pedagógicos universais. De fato, quando algum aprendiz hospedava-se junto à casa de seu mestre, em uma espécie de regime de internato, os critérios da aprendizagem ultrapassavam o nível técnico, promovendo assim ao aprendiz, uma oportunidade de socialização com os próprios membros da família e demais pessoas daquele ambiente. (Ariès apud Rugiu, 1998, p. 40-41) A partir de termos como observar, ouvir, apreender, entre outros, uma forte presença da oralidade nas relações de ensino-aprendizagem. Esta, sem dúvida, foi o meio pelo qual os mestres e aprendizes se apropriaram a fim de transmitir o conhecimento. O papel era um recurso restrito para uma minoria. Aliás, saber ler e escrever eram uma qualidade reservada apenas para os doutos. A tradição oral, que esteve sempre paralela com o ensino do sistema de notação, é com certeza necessária no intuito de decifrar os variados símbolos musicais e, todo aquele que lê música deve ou deveria ter isso em mente. Ler a música do período barroco, por exemplo, significa compreender o que os sinais significam no sentido de que tipos de elementos podem ser adicionados ou substituídos e, ainda, o que se fazer com aqueles elementos que não aparecem escritos na partitura. (Haynes, 2006, p. 105) “A notaçãobarrocaimplica em muitas coisasque não estão explícitasna pauta.Além das convençõesestilísticas, este tipo de notação implica em ummaior conhecimento musical por parte do músico executante.” (Haynes, B., The End of Earley Music, 2006, p. 108)

489

A concepção de ensino das corporações, diferente daquela do ensino institucionalizado, prevê para o aprendiz uma espécie de formação contínua ao longo de toda sua carreira. De certa forma, todo aluno aprendiz, mesmo que já acabado o seu ciclo dentro da corporação, ficava, de alguma maneira, amparado por seus mestres no sentido de acompanhá-lo no bom andamento de seu ofício. (Rugiu, 1998, p. 138) As corporações, ao contrário, eram um sistema formativo integral no sentido sincrônico e diacrônico: ensinavam ao aprendiz a fazer e comportar-se como um “artísta matriculado”; depois, o acompanhavam, empregavam-no, sustentavam-no e controlavam-no nas suas atividades sucessivas, induziam-no a atualizar-se ou a deixar a atividade. (Rugiu, A.S., Nostalgia do Mestre Aprendiz, 1998, p. 138)

A relação mestre-aprendiz sofrerá, no decorrer da história, algumas rupturas que passarão a questioná-la e a modificá-la. De todas as transformações que a Revolução Francesa promoveu, distingue-se a função fundamentalmente nova que passaram a ter a formação e a vida musical de modo geral. É aí que entra a maneira institucionalizada de se ensinar música,traduzido pelo conservatório musical. (Harnoncourt, 1990, p. 29) Genericamente, o conservatório, tal como o entendemos hoje, está consagrado ao ensino superior da música. A origem desse termo provém da Itália e, no entanto, suas primeiras funções não foram exclusivamente musicais. Os primeiros conservatórios funcionavam em uma espécie de orfanato e as crianças ali hospedadas recebiam conhecimentos do que fosse indispensável à vida e também à prática musical. (Borba/Garça, 1962, p. 348) O primeiro conservatório voltado exclusivamente para a música surgiu em Milão em 1808. Aos poucos foram surgindo vários conservatórios por toda a Europa, e sua abrangência pedagógica aumentava a medida que iam sendo introduzidas novas disciplinas em seus currículos. Muitos conservatórios hoje oferecem não só o ensino da música mas também outras formas de expressão cultural como a dança, as artes plásticas, etc. (Borba/Garça, 1962, p. 348) A Revolução Francesa foi certamente um ponto culminante para a história da música ocidental, um divisor de águas, pois mudou para sempre muitos aspectos do pensamento musical de toda uma época, interferindo na maneira de se fazer arte, bem como na forma de se transmitir os conhecimentos. Para muitos, tal intervenção acabou por ser nociva, rebaixando a música apenas ao seu aspecto “belo”, função de ornamento, sem mais precisar compreendê-la. A tentativa mais bem sucedida de simplificar a música a fim de torná-la compreensível a todos se deu em seguida à Revolução Francesa. Tentouse, então, pela primeira vez, num grande Estado, colocar a música a serviço de ideias políticas: o minucioso programa pedagógico do conservatório foi o primeiro exemplo de uniformização na nossa história da música. (Harnoncourt, N., O Discurso dos Sons, p. 15)

490

As transformações pelas quais passou o ensino da música, desde a Idade Média até o século XIX, é tão somente consequência das transformações sofridas nas várias esferas do saber como política, economia, tecnologia, etc. No método francês, a música deveria ser integrada ao processo político geral. Para isso, os estilos musicais deveriam ser padronizados, uniformalizados.(Harnoncourt, 1990, p. 29) A princípio, a ideia central era que a música deveria ser suficientemente simples para poder ser compreendida por todos. O sentido de compreender nesse momento difere daquele abordado no início do capítulo, uma vez que, na época precedente, a música era feita para os cultos, ou seja, era necessário que realmente apessoa tivesse uma educação musical de qualidade para, de fato, compreender o que estava escutando. (Harnoncourt, 1990, p. 29) A partir desse momento, a comunidade elitista de músicos e ouvintes cultos começa a deixar de existir. A música deve cumprir um papel diferente, ou seja, o de agradar o ouvido, sensibilizar o público, que seja o mais fácil e acessível possível e, para isso, seria necessário eliminar qualquer parâmetro que requer compreensão ou entendimento sobre música. (Harnoncourt, 1990, p. 30) Há nesse momento, portanto, uma mudança na concepção de música por parte dos músicos e da sociedade como um todo. Mudanças em suas ideias e mentalidade, a partir de novos paradigmas, simbolizados inclusive pela Revolução Industrial, além da já comentada Revolução Francesa, irão desencadear novas maneiras de se fazer e se ensinar música. Essa mudança de pensamento e mentalidade é, sobretudo, consequência de profundas transformações na vida da sociedade. Se, no intuito de aprender um ofício, o aprendiz ia no passado até seu mestre e com este ficava subordinado por toda uma vida, agora, com o sistema de ensino institucionalizado e subordinado ao estado, interessa à sociedade que tal instituição entregue um produto pronto em um espaço de tempo limitado. A nova ideologia de que time is money (tempo é dinheiro), não suporta mais que se gaste tanto tempo em instruir e adestrar um aprendiz. O título de mestre, obtido após longa e pesada aprendizagem, já não tem valor legal. Para o novo sistema, o que importa é o produto final e a sua aceitação (venda) por parte da sociedade. Em resumo o que irá ser valorizado é a própria vontade do indivíduo e não tão valorizado o sistema de aprendizagem. (Rugiu, 1998, p. 129130) Não é que a instrução escolar seja desprezada; ao contrário, é agora instrumento indispensável para dar a devida eficácia aos dons naturais a quem queira se destacar da massa de operários e camponeses. Para quem, porém, se satisfaz em ficar ali no anonimato da massa,dado o parcelamento e a simplificação das funções de que se falou, a instrução escolar é tão supérflua quanto aquela profissional aprendida nas oficinas. (Rugiu, A.S., Nostalgia do Mestre Aprendiz, 1998, p. 130)

491

É nesse contexto que surge o profissional autodidata. Como a instrução é necessária mas não prioritária, o sujeito podia instruir-se por si só, desde que alcançasse os conhecimentos necessários para se distinguir da massa. Grandes tecnólogos do século XVIII se destacaram desta forma, sem nunca terem frequentado um banco escolar elementar ou profissional. (Rugiu, 1998, p. 130) Para consignar as novas ideias de égalité (igualdade), que estavam emergindo por toda a Europa, os músicos e professores de música precisavam realizar algo que viesse de acordo com esse ideal. Nesse contexto surgem novos métodos bem como novas terminologias para identificar os elementos da música. Expressões como o sostenuto17 e o legato18 surgem nessa época, embora tais elementos já fossem usados havia longa data, porém, de uma forma convencionada e não notada. (Harnoncourt, 1990, p. 30) A articulação musical (na música dos séculos XVII e XVIII) era, por um lado, algo óbvio para o músico que deveria orientar-se apenas pelas regras gerais de acentuação e de ligação, quer dizer, pela “pronúncia” musical; por outro lado, existiam – e existem – para determinadas passagens que o compositor desejaria que fossem articuladas de maneira particular, alguns signos (pontos, traços verticais e horizontais, linhas onduladas, ligaduras) e palavras (spiccato, staccato, legato, tenuto, etc) que mostram a execução desejada. (Harnoncourt, N., O Discurso dos Sons, 1990, p. 49)

Importantes professores de música da França precisavam se adequar aos novos ideais da Revolução Francesa e, nestas condições, Cherubini19 encomendou às grandes autoridades da época obras didáticas que deveriam cumprir na música tal função. Assim, Baillot20 escreveu sua Arte do Violino e Kreutzer21 os seus Estudos. Pedagogicamente houve uma grande mudança, pois, se antes a retórica era o principal meio para a transmissão do conhecimento, agora as informações deveriam ser assimiladas pelo papel. (Harnoncourt, 1990, p. 30) As transformações que vem junto com o século XIX, intervêm, dentre outras coisas, na escrita musical. A partir de agora temos uma escrita mais precisa, com as indicações do que exatamente o músico deve executar. É uma maneira mais rígida de se interpretar a música, uma vez que torna o músico mais dependente da partitura e acaba por subtraindo deste, a arte do improviso, muito presente na música dos períodos precedentes. Sustentado, refreado ou continuado, na expressão do andamento. Que é executado de um fôlego, sem interrupções. O estilo ligado é uma das principais características da música de órgão. O ligado, ou legato, que é o antônimo de destacado, ou stacatto, tem na prática várias formas de realização, inerentes, naturalmente, à técnica especial de cada instrumento. 19Luigi Cherubini (1760-1842):compositor italiano que viveu e trabalhou na França. 20 Pierre Marie François de Sales Baillot (1771-1842): violinista e compositor françês. O método de Baillot tinha muita influencia na técnica e desenvolvimento musical. 21RodolpheKreutzer (1766-1831): violinista, professor, regente e compositor de opera francês. 17 18

492

O lado positivo é que, com a escrita, ganha-se um verdadeiro registro, mais completo e autêntico, a respeito de uma determinada obra. Graças as indicações feitas por J. S. Bach22em muitas de suas obras, para os seus alunos iniciantes que não haviam ainda dominado a arte da articulação23, é que hoje podemos ter um melhor entendimento de como realmente eram executadas as obras daquele período. (Harnoncourt, 1990, p. 52) As transformações que ocorrem no ensino da música se da em fins do século XVIII e início do século XIX, e é, de fato, uma ruptura com a história. As principais mudanças nos formatos e técnicas de cada tipo de instrumento no início do período romântico, por exemplo, não acontece de forma lenta: menos de duas gerações, o que para a história é um período bastante curto. (Haynes, 2006, p. 5) O abandono do antigo sistema de corporações reflete as transformações ocorridas na sociedade em seus vários níveis de organização tais como político, econômico, tecnológico, científico, etc. Passa-se de uma visão global de ensino para uma visão fragmentada, decompõe-se o ensino, dividindo de forma a tentar organizá-lo dentro de um espaço de tempo. Se antes o que existia era aquele ensino doméstico, familiar (de pai para filho na maioria dos casos), o novo paradigma da aprendizagem que se estabelece é o ensino institucionalizado e organizado por níveis de instrução. Se nas corporações havia pouca ou nenhuma organização no que diz respeito à separação dos aprendizes, seja por idade ou nível de conhecimento, agora, o novo modelo exigirá o cumprimento de uma série de regulamentos, transformando essas primeiras instituições de ensino em verdadeiras escolasda arte da organização e disciplina. Uma “anatomia política”, que é igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. (Foucault; M. “Vigiar e Punir”, 2007, p. 119)

Essa nova anatomia política vai ao encontro dos respectivos objetivos que fazem parte da nova ideologia implementada. A música ou o ensino desta deve estar em consonância com a mecânica do poder e, assim, extrair um produto com Johann Sebastian Bach nasceu em 1685 em Eisenach, na região da Turíngia, no coração da Alemanha. Foi o genial ápice de uma dinastia familiar que havia dado à região, durante mais de duzentos anos, músicos muito talentosos. A linhagem musical de Bach remonta ao seu tataravô, Veit Bach, um moleiro que tocava alaúde. 23 Na linguagem é a pronúncia exata e distinta de cada sílaba e na música é a emissão clara e nítida de cada nota, usando-se dos meios próprios de cada instrumento. (...) articulações de braço, pulso, e dedos, nos instrumentos de tecla e arco; articulações de lábios, língua e dentes, nos de sopro. 22

493

a máxima rapidez e eficácia que o sistema determina. A maneira institucionalizada de se ensinar a música tem como característica a fragmentação do processo, a máxima atenção aos detalhes é exigida, o menor movimento é cuidadosamente estudado com o objetivo de obter a máxima economia do tempo e o menor desperdício de energia possível. O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado ao seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. (Foucault; M. “Vigiar e Punir”, 2007, p. 129)

Conforme já mencionado em texto anterior, o tempo, antes de propriedade Divina e agora controlado pelo homem, é um elemento fundamental para toda e qualquer atividade humana. O corpo deve estar submisso na aplicação do seu trabalho e, por isso, o mesmo deve aproveitá-lo de forma pura e racional, de maneira a não desperdiçá-lo. Desde a época clássica, o homem se interessa pelo uso do corpo como forma de objeto e alvo de poder. No século XVIII, com base em regulamentos militares, escolares, hospitalares, bem como os de ordem empírica para controlar as operações do corpo, começou-se a observar mais a fundo a questão do corpo e trabalhar-se no sentido de desenvolver ações que entrassem em concordância com os ideais da época. (Foucault, 2007, p. 117) O ensino institucionalizado trouxe mudanças na forma de se fazer e de se ensinar música. A atenção dada ao corpo, mesmo no menor de seus movimentos, contribuiram, entre outras coisas, para o fortalecimento e aprimoramento da técnica24. Por sua vez, o desenvolvimento da técnica trouxe a exigência de um aprimoramento da escrita musical, como visto anteriormente, uma escrita igualmente mais atenta aos detalhes. Forma-se toda uma pedagogia analítica, muito minuciosa (decompõe-se até aos mais simples elementos a matéria do ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso) e também muito precoce em sua história (antecipa largamente as análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico). (Foucault, M.,”Vigiar e Punir”, 2007, p. 118)

A organização de forma ordenada possibilita todo um investimento da duração pelo poder: a possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual durante o transcursso do tempo; classificação e a consequente utilização dos indivíduos de acordo com seus respectivos níveis; o Termo que se refere à parte mecânica da execução de um instrumento, a qual se adquire mediante exercícios especiais: escalas, arpejos, etc. Diz também das maiores ou menores capacidades de realização de um compositor, as quais se adquirem pela prática escolar da harmonia, do contraponto, das formas, etc. 24

494

controle do tempo de das atividades que convergem o indivíduo para o seu resultado final. O poder se articula diretamente sobre o tempo. Trabalha-se no sentido de evitar o seu desperdício visando a lucratividade. (Foucault, 2007, p. 135) O ensino institucionalizado incorpora justamente essa ideologia. Em geral, os conservatórios estão organizados através de um programa, com relativo grau de rigidez, o qual o aluno deverá cumprir. Ali está traçado previamente o caminho que o indivíduo deverá percorrer para atingir o seu objetivo. Esse caminho não é feito de forma aleatória, ele é cuidadosamente formatado e orienta o aluno sobre a maneira do como fazer. Esse caminho, como será visto no próximo capítulo, é materializado através do que chamamos de método. O método é justamente um produto dessa nova ideologia, dessa nova anatomia do poder. Hoje as instituições de música adotam os mais diversos métodos em seus currículos para o cumprimento de sua função: decompor de forma detalhada cada passo do estudo gerando uma forma progressiva de ensino. Os conservatórios substituiram o velho sistema mestre-aprendiz com um sistema de pedagogia que enfatiza a técnica, ignorando de certa forma a musicalidade. A partir de então, métodos sistemáticos para desenvolver a técnica foram, gradualmente, sendo utilizados pela maioria dos mestres musicais. Os conservatórios tiveram muita influência por toda a Europa, e muitas de suas inovações estão ainda hoje em uso. (Haynes, 2006, p. 75) Dessa forma, o ensino da música chega ao século XX trazendo consigo uma visão romântica, onde a “fidelidade à partitura” impera mesmo sobre a musicalidade, onde muitos elementos da tradição da música antiga foram esquecidos, sendo a interpretação desta música forjada no legado romântico.

REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. São Paulo. 1998. BORBA, Tomás, GRAÇA, Fernando Lopes. Dicionário de Música. Lisboa, Edições Cosmos. 1962. BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peitrópolis, 2001. BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. Editora Herder, São Paulo: 1969 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro. Vozes, 2007. GOBBI, Valéria – Org. Questões de Música. Passo Fundo: UPF, 2004 GROVE, Dicionário de Música Edição Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons. Rio de Janeiro. Jorge Zahar 2ª Ed., 1990. HAYNES, Bruce. The end of early music. Oxford Un. Press. 2006.

495

RUGIU, Antonio Santoni. Nostalgia do mestre artesão. Campinas, SP. Autores Associados Ed. 1998.

496

INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DE UMA ESTÉTICA MUSICAL KANTIANA Victor Di Francia Alves de Melo [email protected] Aluno de mestrado do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Resumo: O presente trabalho pretende abordar o problema do belo musical em Kant a partir dos conceitos de forma e reflexão. A música é a arte abstrata que acontece no decorrer do tempo e que não possui materialidade visível, tais afirmações lhe concedem um estatuto particular dentre todas as artes. Portanto, a discussão de um belo musical não poderá se limitar somente à terceira crítica kantiana já que as noções de espaço e tempo são amplamente debatidas na Estética Transcendental. O trabalho ainda traz considerações sobre o conceito de gênio na música e a possível aproximação de uma estética erudita a uma estética popular musical. Palavras-chave: Filosofia- Estética- Música

Será possível encontrar na leitura da terceira crítica kantiana possibilidades de formular uma estética musical? Essa questão já há muito tempo é discutida por diversos trabalhos entre eles livros, artigos e teses de doutorado. Não há dúvida que a Crítica da Faculdade de Juízo foi um marco em termos de possibilidades de repensar o que é a arte e, mais ainda, o que é a arte bela. Contudo, a insistência na música como arte agradável não lhe permite o estatuto de bela arte. Este trabalho objetiva revisar o estatuto musical na crítica da faculdade do juízo a partir dos próprios conceitos de reflexão e forma em Kant. Tal revisão poderá nos conceder subsídios que nos permitam finalmente encontrar a bela música segundo a estética kantiana. O belo kantiano presente no final do §5 da CFJ, objeto de uma complacência independente de todo o interesse, é representado como objeto de uma complacência universal. Seria ridículo se alguém que se gabasse de seu gosto pensasse justificar-se com isto: este objeto (o edifício que vemos, o traje que aquele veste, o concerto que ouvimos, o poema que é apresentado ao ajuizamento( é para mim belo. Pois ele não tem que denominálo belo se apraz meramente a ele. Muita coisa pode ter atrativo e agrado a ele, com isso ninguém se preocupa; se ele, porém, toma algo por belo, então atribuía outros precisamente a mesma complacência: ele não julga por si, mas por qualquer um e neste caso fala da beleza como se ela fosse uma propriedade das coisas.1

1

KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 57

497

O gosto, faculdade de ajuizamento de um objeto, é subjetivo, estético, não se baseia em nenhum conceito, portanto não tem validade universal lógica pois, na verdade, esse juízo não remete absolutamente ao objeto mas a uma forma de sentimento. A última afirmação evoca as considerações posteriores que serão feitas em §9 sobre uma comunicabilidade universal subjetiva: Ora, a uma representação pela qual um objeto é dado, para que disso resulte conhecimento, pertencem a faculdade da imaginação, para a composição do múltiplo da intuição, e o entendimento para a unidade do conceito, que unifica as representações2 A comunicabilidade universal subjetiva do modo de representação em um juízo de gosto, visto que ela deva ocorrer sem pressupor um conceito determinado, não pode ser outra coisa senão o estado de ânimo no jogo livre da faculdade da imaginação e do entendimento. 3

Sobre os parágrafos citados acima é possível expor diversas considerações sobre o que seria então a bela música já que ao escutar uma bela sinfonia, por exemplo, queremos que nossos interlocutores compartilhem de nosso ajuizamento. Conceber uma bela música como uma unificação entre o entendimento e a imaginação não resulta nenhum problema pois, enquanto interessa ao entendimento todo o caráter técnico que a música possui tanto em sua composição como em sua execução, a faculdade da imaginação toma para si a responsabilidade de atribuir à música um infinito número de representações que estariam condizentes com a estética kantiana. As afirmações do §46 sobre a arte bela que se passa por natureza mesmo sendo intencional também contribuem para a possibilidade da música como arte bela. Um produto da arte, porém, aparece como natureza pelo fato que de que na verdade foi encontrada toda exatidão no acordo com regras segundo as quais, unicamente, o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser, mas sem esforço, sem que transpareça a forma acadêmica.4

Ou seja, para que a música seja bela é necessária uma medida certa e precisa para que ela não seja mero exibicionismo técnico e ainda um todo pertinente para que ela pareça natureza. Kant chama de gênio aquele que é responsável por compor tal obra de arte, porém sempre mediado (influenciado) pela natureza. Consequentemente, as considerações sobre o gênio kantiano também são aplicáveis no domínio da música.

KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 62 KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 62 4 KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 162 2 3

498

Gênio é o talento (dom natural) que dá regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo pela qual a natureza dá regra à arte. 5

A figura do gênio kantiano está totalmente subordinada à inata disposição de ânimo pelo qual a natureza dá regras à arte. Ele mesmo, o gênio, é incapaz de justificar como a natureza lhe fornece as regras para a composição de seu trabalho. Tais formulações do gênio foram amplamente discutidas pelo préromantismo alemão, ora discordando ora concordando. De qualquer modo, a natureza como fornecedora de regras ao gênio influenciou e ainda influencia, por exemplo, tratados sobre a compreensão do processo criativo e também biografias de grandes nomes das artes, inclusive da música. Tal influência é facilmente detectada na biografia que Stendhal escreve sobre Mozart; Ali a arte é como natureza (impulso) sem ser fruto do domínio intencional do artista desde sua infância. Sobre Mozart, Stendhal nos diz: Mozart pai um dia voltava da igreja com um de seus amigos; encontrou o filho pequeno ocupado a escrever. -Que fazes aí meu amigo? – perguntou-lhe. -Estou compondo um concerto para cravo. Estou quase no fim da primeira parte. - Vamos ver então essas belas garatujas. - Não, por favor, ainda não acabei. - Apesar disso o pai pegou o papel e mostrou ao amigo um amontoado de notas que mal se podiam distinguir, devido aos borrões de tinta. A princípio, os dois amigos riram a valer daquela bagunça; mas logo, depois de olhar com atenção, os olhos de Mozart pai quedaram-se muito tempo parados sobre o papel, e terminaram-se por encher de lágrimas de admiração e alegria.6 A música foi o trabalho de sua vida, e ao mesmo tempo sua mais doce recreação. Jamais, mesmo na mais tenra infância alguém jamais precisou mandá-lo sentar-se ao piano. Ao contrário, era preciso vigiá-lo para que ele não se esquecesse ali e prejudicasse sua saúde. 7

Ao final do relato, cheio de adjetivos positivos sobre a infância e juventude de Mozart, o próprio Stendhal nos alerta que esta foi a fase mais prodigiosa do artista. Sobre sua vida adulta, Stendhal faz declarações não muito solenes. Mozart não atingiu com a idade o crescimento comum: durante toda a vida teve saúde frágil; era magro, pálido e embora a forma de seu rosto fosse extraordinária, a fisionomia não tinha nada de KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 153 STENDHAL, Henri Beyle “A Vida de Mozart.” L&PM Editores, 1999. p 9 7 Ibid p 41 5 6

499

impressionante, além da extrema mobilidade. O aspecto do rosto mudava a cada instante, mas indicava apenas a dor ou o prazer que ele sentia no momento. Observava-se nele uma mania que em geral é um sinal de estupidez: mexia sem parar com as mãos, ou batia no chão com os pés. De resto, nada de extraordinário nos hábitos (...) As mãos de Mozart tinham um domínio tão decidido no cravo que ele era desajeitado para tudo mais. À mesa, não cortava jamais os alimentos, ou , se tentava fazer essa operação, só conseguia com muito esforço e embaraço. Em geral, pedia à sua mulher que lhe prestasse esse serviço.8

Assim, Stendhal em seu livro trata da figura de Mozart desajeitada para todas as coisas que não fossem a música. A vida desregrada e boêmia do artista não impediu que ele desenvolvesse o seu talento como se fosse um escolhido pela natureza. Por fim, o compositor tem uma morte trágica enquanto compõe exaustivamente um réquiem para ele próprio. A escolha do enfoque biográfico objetiva a apreensão para além de um público consumidor da estética kantiana. Trata-se também da apreensão de uma estética popular que atinge um maior número de pessoas: As classes populares, entre os pequenos burgueses. A cultura popular, “opositora” à cultura erudita, consome mais frequentemente biografias enquanto que os tratados são destinados, nas palavras de Pierre Bourdieu, ao público dessa outra estética que se diz legítima. Além disso, voltar-se para biografias, particularmente no caso da arte musical, é discorrer sobre a história da música. Ainda segundo Bourdieu, a estética popular se distancia da estética kantiana na medida em que subordina a forma à função, na recusa da recusa que a estética erudita realiza ao cortar radicalmente as disposições comuns e a disposição propriamente estética. Seja no teatro ou no cinema, o público popular diverte-se com as intrigas orientadas, do ponto de vista lógico e cronológico, para um happy end e “sente-se” melhor nas situações e nos personagens simplesmente desenhados que nas figuras e ações ambíguas e simbólicas ou nos problemas enigmáticos do teatro, segundo o livro O teatro e seu duplo, sem mesmo falar da existência inexistente dos miseráveis “heróis” à maneira de Beckett ou das conversações bizarramente banais ou imperturbavelmente absurdas à maneira de Pinter. 9

Bourdieu diz que a estética popular é uma estética antikantiana já que os membros das classes populares possuem uma expectativa em relação a uma função, traduzida por interesse no vocabulário kantiano, na obra de arte que

8 9

STENDHAL, Henri Beyle “A Vida de Mozart.” L&PM Editores, 1999. p 38 BOURDIEU, Pierre – “A Distinção: Crítica Social do Julgamento.” Edusp, 2008 . p 35

500

conduza às normas da moral ou do decoro. Podem-se encontrar exemplos nas artes visuais: O naturalismo popular reconhece a beleza na imagem da coisa bela ou, apesar de mais raro, na bela imagem da coisa bela: “Isso é lindo, é quase simétrico. E, além disso, trata-se de uma mulher linda. E uma mulher linda fica sempre bem na fotografia.”10

Portanto, esta última estética subordinaria a forma e a existência da imagem à função distinguindo, no caso da fotografia, usos e públicos possíveis. Há a recusa à idéia de uma fotografia que possa agradar universalmente. Contudo, no que diz respeito à música, pensar o belo musical de acordo com o §46 e todos os outros anteriores pode aproximar a estética erudita com a estética popular. A música é arte abstrata por natureza, sua forma e função são amplamente discutíveis, tal estatuto concede a arte musical tanto a possibilidade de uma possível reflexão segundo uma estética erudita quanto à reflexão segundo uma estética popular. Tal convergência é facilmente exemplificada ao se tratar do repertório em que Kant se insere: A música instrumental de concerto européia. O §46 da CFJ discorre a respeito da importância em se preservar a arte em seu estatuto puro, no caso da música, mantê-la apenas instrumental. O parágrafo nos diz, que dentro de um espetáculo, a música pode se ligar a dança, a poesia e outras combinações. Todavia, essas unificações em nada contribuiriam para deixar aquela arte mais bela. E nessas ligações a arte bela é ainda mais artística: se, porém, também mais bela (já que se entrecruzam: espécies diversas tão variadas de complacência), pode em alguns casos ser posto em dúvida. Pois em toda arte bela o essencial consiste na forma, que convém à observação e ao ajuizamento e cujo prazer é ao mesmo tempo cultura e dispõe o espírito, para idéias, por conseguinte o torna receptivo a prazeres e entretenimentos diversos; não consiste na matéria da sensação disposta apenas para o gozo, o qual não deixa nada à idéia, torna o espírito embotado, o objeto pouco a pouco repugnante e o ânimo insatisfeito consigo e instável pela consciência de sua disposição adversa a fins no juízo da razão.

A combinação das belas artes em um mesmo produto não permitiria o ajuizamento da forma de cada delas. Consequentemente, não passaria um espetáculo que combinasse as belas artes nada além de sensações agradáveis que dispersariam o ajuizamento do belo. Assim também com a música que mesmo como arte do belo jogo das sensações, seria supostamente apreendida como bela em alguns casos a partir de um ajuizamento da forma no jogo de muitas sensações. Essa apreensão só poderá ocorrer se de fato as faculdades da 10

Ibid

501

imaginação e do entendimento não estiverem dispersas no declamar de uma poesia ou nos versos de algum cantor de ópera. Portanto, se considerarmos a música instrumental como foco kantiano na CFJ, então a cultura popular não poderá subordinar forma a função já que não há a forma como imagem pictórica sendo formada, nem roteiro destinado a um happy end. A música instrumental é também um belo jogo de sensações assumido pela cultura popular, não exige de cada um ajuizamento do belo, apenas um movimento de ânimo subjetivo. À música são atribuídas sensações particulares que podem estimular danças e emoções que a cultura popular não se preocupa em tentar universalizar. Ao contrário, ela parece estar contida dentro de classes e divisões sociais. A exceção dessas músicas são as trilhas sonoras e as canções pois, em todas elas, a cultura popular demanda um fim universal. Todavia esse fim é requisitado a partir de recursos extramusicais: Imagem, poesia, e não propriamente nos elementos constitutivos da música. Há também a apropriação da cultura popular dos termos utilizados pela estética kantiana. Em particular o termo “gênio” é frequentemente atribuído aos artistas tanto pelas camadas populares como também pela cultura erudita. Ou seja, a inata disposição de ânimo pela qual a natureza dá regra à arte é o gênio. Assim como Kant nos diz, o gênio é aquele que nasce com um espírito que lhe orienta, guia, na concepção da arte. A beleza na arte é uma representação bela de uma coisa. Arte está que possuí várias características. A originalidade, por exemplo, é fundamental pois no que concerne ao gênio alemão, o métier do gênio não pode ser ensinado, ele deve apenas servir como inspiração para outros gênios se desprenderem das regras e criarem novas concepções. Portanto, tanto a estética “popular” quanto à estética “erudita” caminham juntas no que diz respeito à arte musical até o §50 pois não se encontram empecilhos e exemplos artísticos que neguem à música o estatuto de bela arte. As divergências começam nos parágrafos posteriores. Ressalto primeiramente o §51 onde Kant discorre sobre a divisão das belas artes. Há, pois, somente três espécies de belas artes: As elocutivas, as figurativas e a arte do jogo das sensações (enquanto impressões externas dos sentidos). Poder-se-ia ordenar esta divisão também dicotomicamente, de modo que a arte bela seria dividida na da expressão dos pensamentos ou das intuições, e esta, por sua vez, simplesmente segundo a sua forma ou sua matéria (da sensação). Todavia, ela se pareceria então demasiado abstrata e não tão adequada aos conceitos comuns.11

A arte do belo jogo das sensações diz respeito a disposições e sensações agradáveis através dos sons, por exemplo, onde não é possível decidir se há um 11

KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 166

502

fundamento reflexivo. Comporta então no ajuizamento estético, nas palavras de Kant, uma complacência na forma. Tentemos então nos apoiar ainda no §51 naquilo que Kant afirma como possibilidade de encontrar o belo musical, ou seja, a famosa passagem abaixo: Mas se contrariamente se considera primeiro aquilo que de matemático se deixa expressar sobre a proporção dessas vibrações na música e no seu ajuizamento(...) somente desse primeiro modo de explicação a música será representada inteiramente como arte bela.12

Ainda assim é necessária prudência para a afirmação de um belo musical já que no mesmo parágrafo o próprio Kant afirma que a rapidez das vibrações do ar, como numa musica, não possibilitaria à nossa faculdade ajuizar o que ali haveria de entendimento dentro do material composto. Conseqüentemente, não há como perceber em uma música a proporção da divisão dos tempos, ela sequer é notada ou trazida a julgamento. Ou seja, o som está relacionado a amenidades (sensações) e não ao belo. Mas no atrativo e no movimento de ânimo, que a música produz, matemática não tem a mínima participação; ela é somente a condição indispensável daquela proporção de impressões, tanto em sua ligação como em sua mudança, pela qual se torna possível compreendê-las e impedir que elas se destruam mutuamente, mas concordem com um movimento contínuo e uma vivificação do ânimo através de afetos consonantes com eles e assim concordem com uma agradável autofruição13

Em §53 quando Kant faz a comparação do valor estético das belas artes, a música ocupa a posição de arte movimentadora do ânimo, aos sentidos ou ainda aquela que menos proporciona o alargamento das faculdades que na faculdade de juízo tem que concorrer para o conhecimento. A música não incitaria a faculdade da imaginação nem a um livre jogo entre o entendimento e a sensibilidade. Pois embora ela, a música, fale por meras sensações sem conceitos, por conseguinte não deixa como a poesia sobrar algo para a reflexão, ela contudo move o ânimo de modo mais variado e, embora só passageiro, no entanto mais íntimo; mas ela é certamente mais gozo que cultura (o jogo de pensamento, que incidentemente é com isso suscitado, é simplesmente o efeito de uma associação por assim dizer mecânica); e, ajuizada pela razão, possui valor menor que qualquer outra das belas artes.14

KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 170 Ibid. p174 14 Ibid. p173 12 13

503

Ou seja, é possível encontrar até o §46 subsídios que justifiquem a música como sendo arte do belo. Contudo, a partir das divisões das belas artes, a música parece estar subordinada ao agradável e suas sensações o que restringiria enormemente as considerações dentro da filosofia kantiana sobre o belo musical. O cerne da questão parece estar na consideração kantiana já mencionada acima de que a música não deixa espaço para a reflexão. Depois da poesia, se o que importa é o movimento do ânimo, eu poria aquela que entre as artes elocutivas mais se lhe aproximam e assim também permite unificar-se muito naturalmente com ela, a saber, a arte do som. Pois embora ela fale por meras sensações sem conceitos, por conseguinte não deixa como a poesia sobrar algo para a reflexão(...) 15

Se a arte musical é apenas agradável, a complacência da música está ligada ao interesse que não forma nenhum juízo sobre a natureza do objeto, apenas tem-se em vista o deleite, uma inclinação através do objeto que apraz na sensação, que tem em vista o gozo. Ou seja, não há experiência do belo musical já que a reflexão não é solicitada. Se for desse modo, não há como pensar, na música, do particular para o universal. Não há também a apreensão de forma através da faculdade da imaginação onde a reflexão tenta associar intuições a conceitos. Todavia, tais considerações não condizem com o que de fato trabalha a análise musical. Por exemplo, a forma ternária de uma sonata é amplamente conhecida. Formas binárias, ternárias são amplamente discutidas e redefinidas ao longo da história musical e utilizadas até pelos atonalistas. Na verdade, a discussão possui caráter amplo: Não é por causa do movimento de ânimo que a música não deixe espaço para uma possível reflexão. Não há por que associar uma coisa a outra. Pelo contrário, parece que a música é uma bela arte já que exige um enorme esforço da reflexão em ter de apreender uma forma numa arte que é abstrata por natureza. Mais problemático ainda é constatar que a música tocada em um recital nem ao menos está presente fisicamente, formalmente, está apenas demarcada por músicos tirando sons de seus instrumentos e fornecendo matéria prima para algo além, um conjunto sonoro composto a que chamamos de música. Não há trabalho maior para a faculdade do sensível e do entendimento procurar tal síntese do sensível e do inteligível. É o que se pode dizer, por exemplo, de uma obra musical, de um coro de Bach ou de uma sonata de Mozart: como uma história que contaríamos a uma criança, eles possuem um começo, um desenvolvimento e um fim, podem ser tristes ou serenos, 15

KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. p 173

504

tumultuosos ou calmos etc., em todo caso, podem exprimir inúmeros estados de alma. Mas todas essas significações que às vezes chegamos a conceitualizar são criadas por fenômenos sensíveis: na música não há nenhuma palavra, nenhum conceito, nenhuma imagem, nenhuma representação intelectual de qualquer natureza. Nela, tudo é “material”, e, no entanto, esse material faz sentido, torna-se por si só, inteligível. 16

Como afirmar que a arte musical reside fora do indivíduo se somos invadidos pelos sons numa rapidez incessante e sem controle que continua a acontecer até finalmente cessar sem sobreaviso? Talvez seja essa a falta de urbanidade que Kant afirma sobe a música. As discussões sobre o belo musical em Kant remontam a uma discussão anterior no âmago da própria filosofia kantiana. A questão da forma. Em seu texto intitulado: “A Música Agradável, Bela e Sublime na Terceira Crítica de Kant,” Vicente de Paulo Justi aponta para o problema tentando resolvê-lo nas considerações kantianas sobre a forma tanto na CFJ quanto na Crítica da Razão Prática quando Kant afirma que a forma é o que possibilita que o diverso do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações. Forma esta que precede a matéria no conceito do entendimento puro. Justi faz então uma associação entre forma e a composição do material sonoro numa perfeita integração de elementos. O autor utiliza também citações do Manual dos Cursos de Lógica Geral, supondo em Kant que se um objeto, incluindo a música, possui a forma ideal, podemos considerá-lo belo. Também no manual dos Cursos de Lógica Geral uma obra apenas aparentemente tardia de 1800, Kant afirma: o propriamente belo, independente, cuja essência consiste na mera forma (...), parece aqui se o objeto apresenta a forma adequada, nós devemos considerá-lo belo.17

Mesmo Vicente de Paulo Justi afirma sobre a fragilidade de pensar na forma como justificativa para o belo musical: Isso, a forma, resolve em parte um grande problema da classificação da música enquanto agradável, pois não se pode falar em música sem forma, mas com Kant podemos falar em forma que é meramente apreendida, sem a necessária reflexão que fundamenta a beleza. 18

FERRY, Luc – “Kant: Uma leitura das três críticas.” Difel, 2009. p 141 MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo(org) – “Kant e a Música.”Barcarolla. 2010. p 104 18 MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo(org) – “Kant e a Música.”Barcarolla. 2010. p 104 16 17

505

No final de suas considerações sobre o belo kantiano, o autor antes de citar uma passagem de §51 sobre o comprazimento da forma no julgamento estético, escreve: Se a pequena experiência musical de Kant, parece apresentar com freqüência, na Terceira Crítica, a música como agradável, sua profundidade filosófica sobrepujou esta sua pequena experiência.19

Todavia, a questão da forma remete não apenas a segunda ou terceira crítica kantiana. O prefácio da primeira edição da crítica da razão pura já aborda o problema da forma quando discorre sobre a necessidade de se escrever uma crítica da razão: Há ainda a ter em conta a certeza e a clareza, dois requisitos que reportam à forma e se devem considerar qualidades essenciais de um autor que se lança em empresa tão delicada20

Na forma reside à obra de arte sempre carregada de sentido. A bela arte é aquela que transgride os parâmetros formais vigentes, inaugurando uma nova forma e fundamentando um novo pensar sobre a forma. Contudo, segundo Kant, à forma é atribuído certeza e clareza. Tais variáveis só podem ser atingidas ao pensar forma artística quando a forma é reconhecida a partir de intuições e conceitos ao se depararem com um objeto dado e que nos afeta. Dou o nome de matéria ao que o fenômeno corresponde à sensação; ao que, porém, possibilita que o diverso do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações, dou o nome de forma do fenômeno. 21

A capacidade de receber representações denomina-se sensibilidade e essa sensibilidade nos fornece intuições que o entendimento se utiliza para pensar conceitos. A constatação de um quadro como bela arte só pode ser verificada se o sujeito possuir a visão de todos os contornos daquele quadro em um momento determinado, será a plenitude da obra à sua frente através do livre jogo do entendimento e da imaginação em tentar encontrar uma forma a priori, que possibilitará o ajuizamento estético do belo. Mas, no caso da música, o objeto não possui materialidade. A forma encontrada a priori no espírito é independente de qualquer sensação, mas é intuída. Se há a possibilidade de intuir uma forma independente de qualquer sensação, a estética transcendental se ocupará em alcançar duas Ibid. p 105 KANT, Imannuel – “Crítica da Razão Pura.” Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p 7 20 Ibid. p 62 19 20

506

formas de intuição pura possíveis: Tempo e espaço. O espaço como intuição pura é sempre intuído exteriormente enquanto que o tempo interiormente. Assim também a música que é impossível de ser detectada em um espaço delimitado. Dizer que a música acontece diante de nós é algo incoerente já que não há delimitações possíveis para algo que afeta nossos ouvidos e que não possui materialidade. É a partir do conceito de espaço que podemos pensar a música como externa a nós, e assim ajuíza-la devidamente. O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições internas. 22 O tempo também é fator determinante para a representação do fenômeno musical já que é no decorrer do tempo que a arte musical acontece. A forma musical só é possível de ser detectada quando se leva em consideração o tempo decorrido que determine as partes internas da música através da sucessão. Tempo este que, segundo Kant, não deriva de uma experiência qualquer e que constitui o fundamento de todas as intuições. À música também cabem conceitos como movimento e mudança que só podem ser alcançados segundo a noção de tempo. O tempo não é mais do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e de nosso estado interior. Realmente o tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos; não pertence a uma figura ou uma posição, antes determina a relação das representações no nosso sentido interno.23 O tempo é, sem dúvida, algo real, a saber, a forma real da intuição interna.24

Se espaço e tempo existem a partir de intuições e a forma musical é só possível de ser detectada através dessas intuições, não há por que rejeitar um belo musical negligenciando a faculdade da imaginação necessariamente atuante no ouvinte. Somente a partir de um livre jogo entre a faculdade da imaginação (intuição) e a faculdade do entendimento (conceito) que conseguimos apreender o fenômeno musical de maneira apropriada. Todavia, cabe lembrar que, segundo Kant, essa verificação da forma, no que diz respeito à música, é improvável ao ouvinte pois ele é apenas movimentado pelo ânimo, atravessado por sensações, afetos, que não deixariam espaço e nem dariam tempo para um ajuizamento do belo. A objeção dessas afirmações não é necessária, Kant nos dá subsídios que de fato estão de acordo com fenômeno musical. Entretanto, pensar a música como arte do belo jogo das sensações agradáveis é apenas uma dentre as diversas possibilidades que se apresentam. KANT, Imannuel – “Crítica da Razão Pura.” Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p 64 Ibid p 74 24 Ibid p 75 22 23

507

BIBLIOGRAFIA: BOURDIEU, Pierre – “A Distinção: Crítica Social do Julgamento.” Edusp, 2008. FERRY, Luc – “Kant: Uma leitura das três críticas.” Difel, 2009. KANT, Imannuel – “Crítica da Razão Pura.” Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. KANT, Imannuel – “Crítica da Faculdade do Juízo.” Forense Universitária, 2010. MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo(org)–“Kant e a Música.”Barcarolla, 2010. STENDHAL, Henri Beyle “A Vida de Mozart.” L&PM Editores, 1999.

508

A NOVA ESCRITA PARA CRAVO OBBLIGATO NA FRANÇA NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII COM BASE NAS PIÈCES DE CLAVECIN EN CONCERT DE JEAN-PHILIPPE RAMEAU María Eugenia Linardi [email protected] Mestre em Música – UDESC Resumo: Os clavecinistes franceses dos séculos XVII e XVIII emprestaram do repertório do alaúde as características estilísticas e composicionais com as quais criaram uma linguagem própria para o seu instrumento. A produção de pièces de clavecin foi muito rica já no final do século XVII e continuou a crescer no novo século que se iniciava. Compositores como Jean-Joseph Cassanéa de Mondonville (1711-1772) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764) estabeleceram um novo tipo de escrita para cravo obbligato outorgando-lhe destaque maior não só como instrumento solista, mas também, em combinação com outros instrumentos melódicos em um ensemble. Este artigo é baseado na minha pesquisa desenvolvida no meu mestrado que abrange a música francesa para cravo dos séculos XVII e XVIII e que culmina em uma análise das Pièces de Clavecin en Concert de Rameau. O principal objetivo é entender e refletir sobre a mudança da escrita desse instrumento no decorrer desses séculos e, principalmente, compreender como essa mudança se refletiu nessa coleção de Rameau. Palavras chave: Música francesa para cravo obbligato. Jean-Philippe Rameau. Pièces de Clavecin en Concert.

O CRAVO NOS SÉCULOS XVII E XVIII NA FRANÇA A música francesa para cravo dos séculos XVII e XVIII está constituída por uma vasta produção de composições, muitas das quais refletem o estilo composicional do repertório para alaúde. No decorrer desses séculos os compositores tentaram descobrir por meio das suas obras uma linguagem própria para o seu instrumento, gerando inúmeras composições e contribuindo, desta forma, para a mudança da escrita do cravo. Explica Baumont (2008) que os cravistas franceses emprestaram do repertório do alaúde principalmente as suítes de danças (muito utilizada pelos alaudistas com a variedade rítmica entre cada uma delas), os títulos sugestivos nas peças (provenientes dos virginalistas ingleses) e as ornamentações variadas que enriqueciam as melodias, procurando também, imitar as nuances e possibilidades de expressão do alaúde no seu próprio instrumento. Outra característica adotada pelos cravistas desses séculos foi a utilização do denominado style brisé ou style-luthée, que envolve o ritmo livre e o arpejado complexo das vozes em uma textura polifônica e que caracteriza-se pela alternância rápida de notas em diferentes registros para enriquecer tanto a melodia como a harmonia (BUKOFZER, 1947, p. 165). No século XVII o alaúde era considerado o mais nobre de todos os instrumentos e, de acordo com Ledbetter (1987), o ofuscamento deste pelo cravo

509

em finais desse século deveu-se ao declínio do status do primeiro na sua prática como instrumento acompanhante, sendo que o principal repertório do alaúde nesta função (acompanhante nas airs de cour1) havia declinado aproximadamente em 1650, e foi substituído por outro repertório de coleções posteriores de airs que consistiam em um baixo cifrado para cravo ou para teorba. Em cerca de 1630 Marin Mersenne (1588-1648), padre, matemático, teórico musical, teólogo e filósofo francês, já manifestava sua preferência pela teorba como instrumento para o acompanhamento da voz, e, posteriormente, nas últimas décadas desse século, a sua preferência por esse instrumento, assim como pelo cravo, se tornou do gosto geral. Assim, aproximadamente a partir de 1650, este último instrumento tornou-se o predileto da aristocracia e da alta burguesia, aparecendo com maior frequência e obtendo maior prestígio que o alaúde em finais do século XVII, estabelecendo-se como o instrumento da moda “par excellence” (LEDBETTER, 1987, p. 14). A produção de pièces de clavecin foi muito abundante já na segunda metade do século XVII e compositores como Jacques Champion de Chambonnières2 (1602-1672), Jean-Henri D’Anglebert (ca. 1628-1691), Louis Couperin (1626-1661), Nicolas-Antoine Lebègue (1631-1702), Elisabeth Jacquet de La Guerre (1665-1729) e posteriormente François (Charles) Dieupart (166?1740), Louis-Nicolas Clérambault (1676-1749), Jean-François Dandrieu (ca.16821738), Jean-Philippe Rameau e François Couperin (1668-1733), para mencionar alguns, descobriram uma linguagem própria para o cravo, que tinha como umas das contribuições mais representativas o repertório alaudístico. Como exemplo de algumas composições podem ser citadas as Pièces de Clavecin de Chambonnières (compostas em ca. 1640 e impressas em 1670), que seguem fielmente o modelo das suítes do renomeado alaudista Denis Gaultier (ca. 1603-1672), e que contêm peças ou danças estilísticas com títulos sugestivos (BUKOFZER, 1947, p. 170). D’Anglebert publicou em 1689 um livro de Pièces de Clavecin, Dieupart em 1701 um livro que contém as Six Suittes de Clavessin e, posteriormente, F. Couperin publicou seus quatro livros de Pièces de Clavecin (em 1713, 1716-7, 1722 e 1730 respectivamente) e Rameau seus três livros de Pièces de Clavecin (em 1706, 1725 e ca. 1728 respectivamente). Segundo Marshall (2003) as Six Suittes de Dieupart foram as primeiras a terem sido publicadas em versões alternativas de ensemble, ou seja, a parte superior da escrita do cravo estava designada a um violino ou uma flauta e, uma Termo utilizado pelos compositores e editores franceses de 1571 até 1650 para denominar às canções seculares cantadas no corte, tendo sido o tipo de composição mais importante entre 1608 até 1632 aproximadamente (BARON). 2 Foi o primeiro representante e fundador da escola francesa para cravo, assim como também, cravista da corte francesa. Teve como alunos Louis Couperin, Jacques Hardel (1643-1678), Lebègue e D’Anglebert, havendo exercido, também, muita influência sobre seu aluno alemão Johann Jakob Froberger (1616-1667) (BUKOFZER, 1947, p. 170). . 1

510

versão simplificada da linha do baixo, a uma basse de violon ou um arquialaúde. A partir desta publicação surgem mais obras com indicações ou sugestões por parte dos autores que se referiam às possibilidades de escolha dos instrumentos, como por exemplo, os Concerts Royaux (1722) de F. Couperin, os quais contêm sugestões próprias do autor que especifica que são apropriadas tanto para cravo solo como para violino, flauta, oboé e fagote. A maioria da música deste período estava constituída por um ou mais instrumentos melódicos acompanhados por um baixo contínuo, sendo a função principal do cravista em um ensemble a de acompanhar realizando o baixo cifrado. Durante a primeira metade do século XVIII os clavecinistes franceses continuaram a experimentar as possibilidades do instrumento para encontrar um gênero novo, não só em combinação com outro cravo, mais também com outro instrumento com o qual pudessem compartilhar o papel protagonista na peça (LINARDI, p. 46, 2013). Desta forma é que em 17343 o violinista e compositor francês Jean-Joseph Cassanéa de Mondonville (1711-1772) publicou as Pièces de clavecin en sonates avec accompagnement de violon op. 3, nas quais cada um dos instrumentos possuía a parte escrita na sua íntegra do começo até o final da obra (GIRDLESTONE, 1969, p. 39). A nova escrita para cravo obbligato impediu que a função deste instrumento se restringisse exclusivamente à realização do contínuo no ensemble; por outro lado, a criação de composições nas quais todos os instrumentos possuíam a parte escrita permitiu que o cravo ganhasse independência e, em alguns casos, cumprisse a função de solista enquanto era acompanhado por outros instrumentos melódicos. O primeiro compositor na França a seguir o modelo estabelecido por Mondonville foi Jean-Philippe Rameau com as Pièces de Clavecin en Concert (1741), reflexo disso é a especificação deste último compositor no prefácio da sua obra que diz que o recente sucesso das Sonates op. 3 de Mondonville o encorajou a compor esta coleção (GIRDLESTONE, 1969, p. 41). AS PIÈCES DE CLAVECIN EN CONCERT DE JEAN-PHILIPPE RAMEAU Publicadas em 1741, as Pièces de Clavecin en Concert de Jean-Philippe Rameau são um conjunto de peças para cravo obbligato com acompanhamento de violino e viola da gamba, sendo que os dois últimos instrumentos podiam ser substituídos por um segundo violino e uma flauta respectivamente, portanto possuem a característica de terem sido pensadas para uma formação de trio (GIRDLESTONE, 1969, p. 41). As partes que compõem as Pièces de Clavecin en Concert são as seguintes: 3

Segundo David Fuller (apud ONG, 2009, p. 5) foram publicadas entre 1737-1738.

511

1) Premier Concert (Dó menor): La Coulicam - La Livri - Le Vézinet 2) Deuxième Concert (Sol maior): La Laborde - La Boucon - L’Agaçante -

Premier menuet en rondeau - Deuxième menuet en rondeau 3) Troisième Concert (Lá maior): La Lapopliniere - La Timide - Premier rondeau gracieux - Deuxième rondeau gracieux - Premier Tambourin en rondeau - Deuxième Tambourin en rondeau 4) Quatrième Concert (Si bemol maior): - La Pantomime - L’Indiscrètte - La Rameau 5) Cinquième Concert (Ré menor): Fugue La Forqueray - La Cupis - La Marais O termo concert no título (em vez de sonates como é o caso da mencionada coleção de Mondonville) é provavelmente por causa de se tratar de peças com instrumentos concertantes e, apesar de o instrumento de teclado ser o principal protagonista, os três membros do ensemble deveriam interagir entre si. A exceção de alguns menuets, rondeaux, tambourins e uma loure, os títulos das peças são descritivos, sugestivos ou dedicados a determinadas pessoas (herança dos alaudistas e dos virginalistas ingleses). Nas suas Pièces de Clavecin en Concert Rameau (que já tinha inovado e explorado a técnica e o virtuosismo do cravo com os seus três livros anteriores de pièces de clavecin) continuou com a utilização de diversas relações entre os três instrumentos; adotou e imitou as texturas utilizadas por Mondonville e, adaptando-as para formação de trio, manteve-se fiel à tradição das suítes francesas para cravo (LINARDI, p. 59, 2013). Na minha pesquisa de mestrado foi realizado um estudo com divisões aproximadas de cada uma das danças que formam esta coleção de Rameau, levando em consideração principalmente a função do cravo no ensemble e o tipo de textura que prevalece em cada uma das peças; devido ao fato de que a maioria delas possui vários tipos de textura é que foram divididas segundo a que mais prevalecia. Para um melhor entendimento, será apresentado a seguir um exemplo de cada uma das divisões. As danças das Pièces en Clavecin en Concert foram divididas da seguinte forma:

PIÈCES NAS QUAIS O CRAVO TEM A FUNÇÃO DE SOLISTA PRINCIPAL Estão incluídas nesta divisão as peças nas quais o cravo possui o material melódico tendo a função de solista, ao menos, em grande parte da peça. São elas: La Coulicam (Premier Concert), Le Vézinet (Premier Concert), La Laborde (Deuxième Concert) e La Lapopliniere (Troixième Concert). O exemplo a seguir é o trecho inicial de La Coulicam, peça com a qual Rameau inicia sua coleção. O título se deve a uma publicação de A. de Claustre,

512

em 1728, intitulada Histoire de la dernière révolution de Perse que foi reeditada em 1742 com o título Histoire de Thamas Kouli-Kan ou Histoire des dernièrs Révolutions de Perse arrivée en 1732 (SAINT-ARROMAN; LESCAT, 2011). Nesta peça o cravo domina o material melódico com arpejos e passagens virtuosísticas do começo até o final, enquanto as cordas imitam o tema do cravo em algumas partes ou, como no compasso 12, o acompanham com notas longas:

Exemplo 1: La Coulicam, compassos 1 a 154

No decorrer desta peça percebe-se o motivo principal e inicial dos arpejos descendentes da harmonia de Dó menor no cravo, que é imitado por ambos os instrumentos de cordas. Talvez o compositor tenha escolhido adrede para iniciar sua coleção uma peça na qual prevalece o virtuosismo do instrumento de teclado do começo até o final, condizendo com sua intenção de destacar este instrumento e de que as cordas deveriam se adaptar a ele e não ao contrário.

PIÈCES NAS QUAIS O CRAVO APRESENTA A MELODIA, QUE É REFORÇADA HARMONICAMENTE PELAS CORDAS As pièces nas quais o cravo é o solista enquanto as cordas dobram algumas partes da melodia e o acompanham reforçando harmonicamente são La Boucon, Todos os exemplos musicais foram extraídos do fac-símile das Pièces de Clavecin en Concert editado por Anne Fuzeau, com inserções gráficas da autora de presente artigo. 4

513

Premier Menuet en Rondeau e Deuxième Menuet en Rondeau (todas pertencentes ao Deuxième Concert). O exemplo 2 mostra o início de La Boucon que foi dedicada a Anne-Jeanne Boucon (1708-1780), sobrinha de Jean-Baptiste Forqueray por parte da primeira esposa. Anne-Jeanne era uma cravista virtuosa que se casou com Mondonville em 1747 (SAINT-ARROMAN; LESCAT, 2011). Nesta peça tanto o violino como a viola da gamba dobram a linha do cravo, criando um tipo de “fundo orquestral” que sustenta a melodia que se encontra a cargo do instrumento de teclado.

Exemplo 2: La Boucon, compassos 1 a 8

Inicialmente o violino dobra a voz do meio do cravo por alguns compassos e logo, no compasso 4, a voz aguda, o que resulta em uníssono com o parte do cravo; a viola da gamba dobra, a maioria das vezes, a voz grave do cravo preenchendo, ademais, com notas das harmonias que enriquecem a sonoridade da peça. Em La Boucon pode se apreciar o estilo composicional orquestral de Rameau, neste caso as cordas constituem o suporte harmônico ou “fundo orquestral” e o cravo possui o material melódico.

PIÈCES NAS QUAIS OS TRÊS INSTRUMENTOS TÊM A FUNÇÃO DE SOLISTA COMPARTILHANDO DE FORMA EQUITATIVA E IMITATIVA O MATERIAL MELÓDICO Presente em L’Agaçante (Deuxième Concert), La Timide II -Deuxième rondeau gracieux, Premier Tambourin en rondeau, Deuxième Tambourin en rondeau (todas elas pertencentes ao Troxième Concert), La Pantomime, La Rameau (ambas do Quatrième Concert) e Fugue La Forqueray (Cinquième Concert). O exemplo 3 mostra o inicio do Premier Tambourin en rondeau com o tema principal que se reveza entre os três instrumentos, começando pelo violino,

514

seguindo pela viola da gamba e por último o cravo, possuindo este último, um acompanhamento marcante e e rítmico característico dos tambourins.

Exemplo 3: Premier Tambourin, início

Observa-se uma textura imitativa entre os três instrumentos; às vezes o violino e o cravo possuem o tema em intervalos de terças maiores e menores enquanto a viola da gamba apresenta o tema uma oitava abaixo do violino dobrando, desta forma, a voz principal. Por momentos tem-se a impressão de se ouvir um cânon nas entradas dos três instrumentos.

PIÈCES NAS QUAIS EXISTE UMA TEXTURA CONCERTANTE ENTRE OS INSTRUMENTOS A pièce na qual prevalece uma textura concertante, ou seja, na qual a maior parte do tempo ao menos dois dos três instrumentos que integram o trio intercalam solos unindo-se em pontos em comum, é La Marais (Cinquième Concert). O exemplo 4 é o trecho inicial de La Marais, peça com a qual Rameau finaliza sua coleção. Acredita-se que o título possa ser uma homenagem ao gambista virtuose Marin Marais (1656-1728) ou, mais provavelmente, a um dos seus vários filhos, Roland Marais, autor de Méthode de Musique (do qual nenhum exemplar foi preservado) e de dois livros para a viola da gamba que surgiram em 1735 e 1738 (SAINT-ARROMAN; LESCAT, 2011). A diferença da divisão anterior, aqui prevalece uma textura concertante principalmente entre o cravo (na voz da mão direita) e o violino, possuindo um

515

motivo diferente cada um dos dois instrumentos e interagindo praticamente na peça inteira.

Exemplo 4: La Marais, início

Como se observa no ex. 4, o violino inicia com um motivo do arpejo ascendente de Ré maior e o cravo realiza progressões descendentes das harmonias em intervalos de terceiras. Ambos os motivos são recorrentes do começo até o final da peça, onde serão invertidos, ou seja, o violino realiza a parte do cravo que inicia a peça, e vice versa, o cravo toca a melodia ascendente em arpejos que era apresentada pelo violino no início. Após essa inversão dos motivos iniciais, ambos os instrumentos repetem o tema de abertura sem modificações. No que diz respeito à viola da gamba, a exceção de alguns compassos nos quais acompanha reforçando com a harmonia, tem uma participação pronunciada praticamente do começo até o final acompanhando os demais instrumentos, às vezes reforçando a linha do violino e outras dobrando a melodia do cravo.

PIÈCES NAS QUAIS O CRAVO ACOMPANHA AS CORDAS As pièces nas quais o cravo tem a função de acompanhar a melodia que se encontra a cargo das cordas (a maioria das vezes do violino) são La Livri (Premier Concert), Premier rondeau gracieux de La Timide (Troixième Concert), L’Indiscrètte (Quatrième Concert) e La Cupis (Cinquième Concert).

516

La Livri é provavelmente uma homenagem ao Conde de Livri, falecido em julho de 1741, ano em que foram compostas as Pièces de Clavecin en Concert (SAINT-ARROMAN; LESCAT, 2011). Nesta peça observa-se a melodia a cargo do violino enquanto a viola da gamba e o cravo acompanham com arpejos. Esta parte inicial contém duas frases praticamente iguais, sendo que a primeira termina na dominante e a segunda, mais conclusiva, na tônica. Apesar de a participação dos três instrumentos ser continua no decorrer da peça, o papel principal do cravo (e da viola da gamba) é o de acompanhante, seja com arpejos ou reforçando algumas partes da melodia, que se encontra a cargo do violino.

Exemplo 5: La Lirvi, início

O objetivo das divisões visa entender e analisar principalmente a função que o cravo tem em cada uma das pièces, por outro lado, e como explica Mangsen (1983-84), em várias das pièces o violino possui o seu material, independente dos demais instrumentos por, ao menos, um terço do movimento. Assim, fica evidenciada a participação dos outros dois membros do ensemble, os quais em muitas das peças dobram e reforçam a linha do cravo, ou simplesmente o acompanham; em outras partes, sobretudo o violino, possuem uma melodia independente. Ademais, no que diz respeito à viola da gamba, esta ganha cada vez mais independência a partir do primeiro concerto até o quinto, no qual a sua participação é muito mais presente, independente e indispensável. Não é de se estranhar que justamente por esse motivo o primeiro movimento do quinto e último concerto da coleção seja dedicado a um gambista, Marin Marais (LINARDI, p. 59-60, 2013). Assim, a participação e função das cordas nesta coleção contradiz a especificação que Rameau escreveu no prefácio das Pièces de Clavecin en Concert, na qual diz que as mesmas não perderiam absolutamente nada se

517

tocadas somente no cravo5, de fato o compositor realizou a transcrição de cinco das pièces para cravo solo: L’Agaçante, L’Indiscrètte, La Livri e La Timide I e II (MANGSEN, 1983-84, p. 25, vol. II). Esta afirmação não resulta inteiramente satisfatória em todas as Pièces de Clavecin en Concert devido ao fato de que em várias delas a ausência das cordas deixaria a peça incompleta por causa da independência entre os três instrumentos e, como foi explicado, em várias das peças a melodia se encontra a cargo de um dos instrumentos melódicos. Uma característica a se salientar desta coleção é que os cinco concertos estão escritos em tonalidades maiores e menores com suas respectivas relativas como acontecia com as suítes para alaúde estando, portanto, unificados pela tonalidade que cada um possui. Outro traço importante é que no último concerto se pode perceber uma coerência rítmica, visto que o segundo movimento denominado La Cupis é lento contrastando, desta forma, com o primeiro, Fugue La Forqueray, e o terceiro, La Marais, que possuim andamento rápido. No primeiro concerto, apesar que de forma menos notória, percebe-se também um contraste rítmico entre os três movimentos que o conformam, ou seja, rápido lento - rápido, respectivamente. Isto resulta uma exceção a praticamente o resto dos concertos desta coleção, já que as danças que os integram não possuem um contraste rítmico definido entre cada uma delas, portanto, a não ser pela tonalidade que as unifica, como já foi dito, não existe outro motivo pelo qual uma dança possa pertencer a um ou a outro concerto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da mesma forma que os seus antecesores, Rameau adotou os recursos estilísticos e composicionais do alaúde para compor seus livros de peças para cravo solo, os quais comtêm coleções com grande variedade de recursos técnicos e harmônicos; innovou a técnica do instrumento na utilização de uma maior parte do registro do teclado, na combinação de padrões rítmicos e no uso de dissonâncias que enriqueceram o repertório do cravo. Na sua coleção de Pièces de Clavecin en Concert plasmou todos esses recursos técnicos, harmônicos e melódicos, combinando três instrumentos que interagem entre si e realçando o virtuosismo do cravo, o que marcou um precedente de uma composição para trio que se perpetuou nas gerações seguintes. Por meio do sucesso das Sonates op. 3 de Mondonville e posteriorimente as Pieces de Clavecin en Concert de Rameau, ficou estabelecido na França um novo tipo de escrita obbligato para o cravo, que já não se limitava à realização do baixo contínuo em um ensemble, mas sim, possuia um papel de destaque ou compartilhava o protagonismo com outros instrumentos melódicos, realçando assim, todas as suas possibilidades. 5

Ces Pièces éxécutées sur le Clavecin seul ne laissent rien à défirer (RAMEAU, 2011, [i]).

518

Por tanto, assim como as Sonates op. 3 de Mondonville encorajarom Rameau a compor sua coleção de Pièces de Clavecin en Concert, estas últimas influenciaram os compositores da época que começaram a investir neste tipo de escrita para cravo obbligato em combinação com outros instrumentos melódicos, encontrando-se as mais variadas combinações e tendo sempre ao instrumento de teclado como solista ou protagonista do grupo. Podem ser mencionados a modo de exemplo aso seguintes comositores: Joseph Bodin de Boismortier (1689-1755) com as Sonates pour un clavecin et une flûte traversière (ca. 1742), Jean-Baptiste Dupuits (ca. 1700-1757?) que publicou as Sonates pour um clavecin et um viéle (1743) e Luc Marchand (1709-1799) que publicou as Pièces de clavecin avec accompagnement de violon, hautbois, violoncelle ou viole (1747), nas quais varia a instrumentação em cada umas das suítes, para mencionar alguns exemplos. O próprio Mondonville compôs mais uma coleção em 1748 denominada Pièces de clavecin avec voix ou violon op. 5, que estão baseadas em textos dos salmos e destinadas a serem cantadas por uma voz soprano ou tocadas por um violino, sendo a parte do cravo obbligato (ONG, 2009, p. 310-312). Estes são alguns dos tantos exemplos de composições para cravo obbligato acompanhado de outros instrumentos melódicos que contribuiram para que a música francesa de meados do século XVIII tivesse grande repercussão fora da França influenciando aos compositores de outros países, que adotaram características composicionais e o gosto francês nas suas obras.

REFERÊNCIAS BARON, John H. Air de cour. In: Sadie, Stanley (Org). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Washington: Macmillan. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2013. BAUMONT, Olivier. Quelques réflexions sur la naissance du style français de clavecin. In : DURON, Jean. Regards sur la musique. La naissance du style français 1650-1673. Belgique: Éditions Mardaga, 2008, p. 53-68. BUKOFZER, Manfred F. Music in the Baroque Era. From Monteverdi to Bach. New York: W. W. Norton Company, Inc., 1947. FULLER, David. Accompanied Keyboard Music. The Musical Quarterly, vol. LX, n. 2, p. 222. New-York: G. Schirmer Inc., 1974, p. 222-245. GIRDLESTONE, Cuthbert. Jean-Philippe Rameau: His life and work. New York: Dover Publications, Inc.,1969. LEDBETTER, David. Harpsichord and lute music in 17th-century France. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

519

LINARDI, Maria E. As Pièces de Clavecin en Concert de Jean-Philippe Rameau e a escrita para cravo obbligato na França no início do século XVIII. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. MANGSEN, Sandra. Rameau’s Pièces en Concerts. Early Keyboard Journal. University of Georgia: Editorial Board, vol. II, 1983-1984, p. 21-31. MARSHALL, Robert L. Eighteenth-Century Keyboard Music. New York: Routledge, 2003. ONG, Nga-Hean. French Accompanied Keyboard Music (1738-1760): A Study of Texture and Style Mixture. Tese de Doutorado. Washington University, Saint Louis, Missouri, 2009. RAMEAU, Jean-Philippe. Pièces de Clavecin en Concerts, avec un violon ou une flute, et une viole ou un deuxième violon. [1741]. Fac-símile. Ed.: Anne Fuzeau. France: Imprimerie Jadault, 2011. SAINT-ARROMAN, Jean; LESCAT, Philippe. La Musique Française Classique de 1650 à 1800. In: RAMEAU, Jean-Philippe. Pièces de Clavecin en Concert, avec un violon ou une flute, et une viole ou un deuxième violon. Fac-símile da publicação de 1741. Ed.: Anne Fuzeau. França: Imprimerie Jadault, 2011.

520

POÉTICAS E ESTÉTICAS MUSICAIS: DE PITÁGORAS PARA ALÉM DE JOHN CAGE Dilmar Miranda [email protected] Professor de Filosofia do Instituto de Cultura Arte da UFC Resumo: pode parecer temerário analisar poéticas e estéticas musicais elaboradas numa extensa linha do tempo (do VI século a.C. a um momento bem recente) em poucas páginas. Na verdade, trata-se de um juízo aparente, visto que a doutrina musical pitagórica alicerça diferentes poéticas e estéticas da música euro-ocidental chegando, no limite, às portas de nossa contemporaneidade, quando o tonalismo fincado na poética pitagórica enfrenta rupturas de seu código, após diversos ensaios de dissolução no século XIX. Tal ruptura será efetivada nos inicios do século XX com o vanguardismo da nova música, conceito que irá abrigar várias práticas do modernismo musical da primeira metade desse século. Posteriormente, a geração do compositor John Cage irá ingressar numa multiplicidade de experimentalismos sonoros, ampliando o conceito de música, processo que será enriquecido com os mais recentes experimentos composicionais propiciados pelas novas mídias digitais, levendo-nos talvez a repensar os conceitos de estética e poética, agora deslocados para o domínio comum da recepção da obra de arte. Palavras-chave: Poética, estética, tonalismo e experimentalismo musical.

REVENDO CONCEITOS Aristóteles opera o conceito de poética direcionando-o ao estudo normativo (sem obrigatoriedade canônica) do fazer artístico: no caso do Livro I, à Tragédia, e no anunciado Livro II, à Comédia. O termo poíesis origina-se do verbo poíein: fabricar, confeccionar obras manuais. Trata-se da ação de fabricar um artefato. Aplica-se tanto a uma obra intelectual como um poema, quanto à produção agrícola. “Aristóteles explicita o sentido principal da poíesis como uma prática na qual o agente e o resultado da ação estão separadas ou são de natureza diferente. A poíesis liga-se à ideia de trabalho como fabricação, construção, composição [...]” (Chauí, 2002: 509). Aristóteles opõe a poíesis à práxis, termo que se origina do verbo práttein: caminhar até alcançar sua meta, fazer acontecer algo. A práxis implica uma ação moral. O sentido da práxis afirma se tratar “daquela prática na qual o agente, o ato ou ação e o resultado são inseparáveis.” (Chauí , op.cit:510). Vejamos como ocorre a distinção aristotélica entre poíesis e práxis, a partir do exemplo do verbo moldar: ao afirmamos que o oleiro molda o barro para fabricar o pote estamos no domínio da poíesis. Quando dizemos que o cidadão ateniense molda seu caráter, estamos no terreno da práxis. O Livro I é considerado como uma teoria da tragédia, um modus operandi que procede às composições e performances das tragédias áticas, estudo que passou a ser aplicado para outros domínios artísticos, como na concepção de Igor Stravinsky exposta no livro Poética Musical em 6 lições.

521

“Não é segredo para nenhum [...] que o significado exato de poética é o estudo de uma obra a ser feita. O verbo poiein, do qual a palavra deriva, significa exatamente fazer ou fabricar. A poética dos filósofos clássicos não consiste de dissertações líricas sobre o talento natural e sobre a essência da beleza [...]. Eis por que a Poética de Aristóteles muitas vezes sugere ideias referentes ao trabalho pessoal, à organização do material e à estrutura. A poética da música - é justamente sobre isso que vou falar [...]; isto é, falarei sobre o fazer no campo da música” (1996:15s).

O conceito de estética é recente o que não significa que não exista uma reflexão estética subjacente às doutrinas filosóficas da tradição, a exemplo do belo ideal socrático-platônico. O termo estética vem de aísthesis: sensação, percepção sensitiva, estudo do que nos é agradável de imediato, fruição auditiva, visual ou imaginativa. A Estética filosófica passou a incluir o estudo da natureza do belo, do sentimento, do gosto e da crítica. O termo foi criado por Alexander Baumgarten em Aesthetica (1750). “A Estética (como a teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte do análogon da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo” (1993:95), tendo como fim “a perfeição do conhecimento sensitivo como tal. Esta perfeição, todavia, é a beleza” (op. cit. p. 99). O termo passou também a ser assimilado pela noção de estilo, isto é, o modo de identificar as obras de arte de uma determinada época ou de um artista, como a estética do Renascimento ou do Romantismo, estética do cinema noir ou a estética escultórica de Rodin ou de Camile Claudel. Poética e estética são construtos que se entretecem na reflexão do fazer artístico. No domínio musical, a poética, enquanto constituição dos cânones da composição (normas técnicas, material sonoro, instrumentação, timbres, organização melódico-harmônica), acaba por consubstanciar, consequentemente, uma estética capaz de avaliar formas e teores da materialidade sensível construída pela obra musical. A MATRIZ POÉTICA PITAGÓRICA E SEUS DESDOBRAMENTOS NA ESTÉTICA MUSICAL O pitagorismo expressa o primeiro empenho de teorização musical para operar racionalmente o material sonoro, ao descobrir no som, proporções matemáticas e propriedades físico-acústicas nas séries harmônicas1. Estabeleceu-

1A

série harmônica manifesta-se por uma progressão frequencial: uma corda esticada, vibrando em certa frequência fundamental provoca ressonâncias internas múltiplas, guardando relações numéricas constantes entre si. Tomando o dó como 1º harmônico (nota fundamental), o 2 o harmônico é o mesmo dó, uma oitava acima; o 3o é o sol, que compõe um intervalo de 5ª justa com o 2º harmônico. O 4o é o dó, estabelecendo com o sol (3o harmônico) um intervalo de 4ª justa; o 5º harmônico é o mi, estabelecendo um intervalo de 3ª justa com o dó, e assim por diante, conforme

522

se, assim, uma poética básica para a criação musical: a ordenação do som, pelo uso das relações intervalares dos primeiros harmônicos constituidores do “acorde perfeito”, de crucial importância para a construção da tonalidade. Com isso elabora-se uma cosmologia: o mesmo princípio ordenador dos sons musicais com suas relações intervalares, de ordem físico-matemática, é expandido a todo o cosmos, visto como a “boa ordem” harmônica, inclusive o mundo dos humanos. As relações intervalares da “boa” música, por expressarem uma racionalidade arquetípica, expressam igualmente relações numéricas subjacentes às belas e desejáveis ressonâncias, formulando uma doutrina dos modos, ritmos e instrumentos musicais, articulada aos efeitos provocados nas pessoas. Por outro lado, os gregos foram também responsáveis por outra importante descoberta, ao se dar conta que a música portava em si uma grande ambivalência, nomeada pelo pensamento posterior por forças diametralmente opostas: o apolíneo e o dionisíaco. A partir daí, a demarcação dos campos tenderá a favor do primeiro, criando uma poética e uma hierarquia básicas: a música submissa à palavra, o ritmo submisso à harmonia, não devendo este jamais comprometer as proporções harmônicas. Qualquer excesso dionisíaco da música pulsante era condenado. O empenho da cultura ocidental buscou a racionalização e o domínio da natureza musical e de seu material sonoro, pelo total expurgo das pulsões dionisíacas. Vão empenho, pois a música sempre manteve resíduos de irracionalidade. Essa irracionalidade acha-se no próprio modelo pitagórico das séries harmônicas, em cujo final do ciclo, ocorre uma sobra de frequência de um som (uma coma fatal), cuja resolução só se daria pelo arbítrio do temperamento igual, empreendido por Bach. Eis o grande desafio enfrentado pelas culturas musicais, fazendo-as configurar suas respectivas poéticas e estéticas: que som interditar ou escolher. Nas culturas “apolíneas” como a Grécia socrática, e durante séculos de cultura musical cristã, os sons harmônicos foram valorizados, em oposição aos ritmos pulsantes e ruídos, certos modos e relações intervalares como o trítono. Os gregos viam em certos intervalos e arranjos harmônicos, possibilidades demiúrgicas de organização do caos, isto é, de disciplinarização de um mundo desordenado, prenhe de ruídos. Elegendo o som harmônico, expurgando o ruído desestabilizador, investindo na música cativa da ordem, havia uma preocupação

se

pode

ver

no

exemplo

que

se

segue:

523

perene de disciplinarizá-la, para que fosse controladora dos excedentes da paixão e da violência do povo. Pela sua cosmologia musical pitagórica, processam-se elementos fundamentais para a constituição de uma poética musical, estabelecendo normas de sequências e relações intervalares justas, bem como de uma estética, ao estabelecer princípios de apreciação dos sons consonantes e rejeição das dissonâncias, poética e estética que irão perpassar, durante séculos, a arte musical ocidental. Comecemos por Platão, conforme lemos n’A República. Ao identificar nos modos musicais propriedades “cívicas” vinculadas aos diferentes ethos dos povos constituidores da população grega, Platão opta pelo dórico, o mais elevado, capaz de levar à temperança e à aceitação da adversidade, contrapondo aos modos mixolídio, lídio, jônico e frígio, modos propiciadores da indolência (Livro III). Platão pensa o ethos musical, junto com a ginástica e a aritmética, como importante elemento moldador do caráter. Expurgando os modos moles, a música é aceita na polis, por ser capaz de proporcionar a vivência de ritmo. Este, junto à harmonia, ao penetrar na mente do jovem, cria condições para gesta o ideal grego “do belo, bom e verdadeiro”. Os mesmos critérios para eleger o rejeitar certos sons para fins éticos deslocam-se para a apreciação dos instrumentos. Platão defendia a superioridade dos instrumentos mono-harmônicos como a lira e a cítara (instrumentos de Apolo), e condenava a flauta, os instrumentos de muitas harmonias e cordas como a harpa e o arrebatamento dionisíaco do aulos. A preferência da cítara e a condenação da flauta, respectivos instrumentos de Apolo e Dioniso, podem ser examinadas pelas possibilidades que cada um oferece às duas ordens éticas das respectivas estéticas musicais: a lira permite o verso cantado, a palavra, a poesia e o conceito, postulados estéticos da arte apolínea, superior à música pura e instrumental e ao ritmo. A flauta prescinde do canto, portanto do conceito, ao executar a música rítmica pura, postulados estéticos dionisíacos. A noção da melodia subsumida ao reino da palavra será mantida pela poética e estética cristãs e pelo racionalismo ocidental. Inaugurando no ocidente uma disputa que percorrerá séculos, a música se põe subordinada ao sentido da palavra: a força latente na forma musical pura deve estar sempre subordinada ao significado apolíneo dos conceitos, cujos sentidos serão resignificados pela espiritualidade medieval do canto gregoriano. Este é fruto dos múltiplos influxos do protocristianismo da Igreja de Bizâncio, Síria e Palestina, sistematizados nos séculos IV e V, pela tradição patrística e consolidados por Gregório Magno, expressando uma via sublime de pura espiritualidade. Assim a música cristã ganha uma transcendência desconhecida até então. Da ética cívica pagã pitagórica, ela investe-se de uma ética transcendente cristã. No momento de cristianização das teorias musicais antigas, Agostinho, mediante os ritmos e acentos da linguagem musical, erige uma poética musical

524

sacra da liturgia cristã. Além dele, Atanásio, de quem ouvira dizer “que fazia ler os salmos com modulação de voz tão discreta, que mais parecia uma recitação do que um canto” (Agostinho,1984:286) e Ambrósio, que assistira rezar silenciosamente, causam-lhe grande admiração. Daí surge a prática de cantar em silêncio, da melodia sem palavras, o jubilus, de origem judaica e oriental. O gregoriano ergue a grande ponte entre a música antiga e a Europa cristã. O sentido do texto sagrado encontra sua plena integração numa melodia de pura religiosidade. Ele despoja a música a capella do pulso rítmico, colocandoa a serviço da palavra cantada para o louvor sereno de Deus, cujo canto flui suavemente sobre seu arco frásico.2 As contribuições da patrística ditam uma rígida poética que constrói um fervor místico, atribuindo à monodia apenas a função de acompanhar salmos e hinos, definindo-se claramente pelo papel de subalternidade da música ao texto, na melhor tradição pitagórica, ao sentido da palavra em louvor a Deus. O texto dita o ritmo e o sentido da melodia; sua sintaxe e sua intenção linguística determinam os incisos e o movimento de alturas do tom (cf. Michels, 1985). “Deve-se [...] procurar a base do ritmo gregoriano na estreita ligação que une as melodias ao texto latino. O canto gregoriano é, [...] música essencialmente vocal, ou, melhor dizendo, palavra cantada” (Cardine, 1989:57). Em estado de pura elevação ascética, o gregoriano procura negar “os prazeres da escuta” que Agostinho tanto temia. Sua vontade era preservar a finalidade da palavra sagrada, o que nem sempre ocorria. O próprio santo fala dos “prazeres do ouvidos” dos cânticos “quando entoados com suavidades e arte” (Agostinho, op.cit.286), nos dando uma ideia exata de sua hesitação entre afetos contraditórios: entre a ascese sublime das palavras e o deleite sensual da melodia. No início, a monodia era extremamente despojada, sem pulsação, entoado em recto tono (cantilação), sem grandes saltos intervalares. Com o gregoriano, a Igreja sustenta, em todo o medievo, a primazia da musica mundana sobre a humana e a instrumentalis.3

Uma das regras de ouro do gregoriano é o fluir da melodia com as notas tendo valores temporais praticamente iguais, rallentando o andamento rítmico de forma uniforme, no final. Evita-se o pulso. Os interditos musicais partilham da doutrina de negação de tudo que é corporal: a proibição do nu frontal na estatuária e pintura, buscava evitar os desejos da carne; o constrangimento do pulso buscava impedir o movimento dançante “lascivo”, sentido, por exemplo, na síncope de origem afro-negra.. 3 O filósofo Boécio (480-524), em De institutione musica, diz que a razão divina, a partir de certo pitagorismo-platônico cristão, criou a harmonia universal, mediante a ordem dos números, responsável por três grandes instâncias de música: a mundana, música cosmológica e suprassensível, detentora de uma harmonia fundamental que preside o movimento e o equilíbrio do cosmos, articulando o humano com a verdade superior; a humana, música prática, sensível que estabelece a harmonia entre corpo e alma, entre sensibilidade e razão, enfim, a música pela qual o ser humano toma consciência de sua harmonia com o mundo; a instrumentalis, música que busca imitar a natureza (v. Ferrand, 1997:127). 2

525

Assim como a paideia buscava iniciar os jovens na poética pitagórica enquanto excelência estético-musical, assim também a educação musical empreendida pelas Scolae contorum da alta Idade Média exercia o papel de difundir a monodia gregoriana junto ao público infanto-juvenil, e no final do medievo, o contraponto e a polifonia horizontalizada gótica, que, por sua vez, iria preparar a polifonia verticalizada renascentista, instituições educacionais que, cada um a seu modo e tempo, foram responsáveis para estabelecer cânones poéticos e estéticos das músicas de sua época. Em meados do século X, surge o Musica Enchiriadis (obra atribuída ao Abade Otger), constituindo uma poética para uma nova forma do fazer musical, pois, além de descrever o método de canto em uníssono e oitavas, expõe os princípios do organum ou diaphonia, cuja base essencial é a duplicação do canto em intervalos paralelos.4 Dobra-se a melodia num duplo movimento: através das quintas (superiores) e das quartas (inferiores), como duas pálidas sombras acompanhando o corpo sonoro da vox principalis gregoriana, além da duplicação da oitava. Esse primeiros encontros, a partir da leitura vertical de melodias desenvolvidas horizontalmente, eram aceitas pela “harmonia” oficial eclesiástica. Esses acordes representaram o acerto oficial de sons justos que ressoavam recorrentemente no espaço sagrado dos templos. Isso não impedia que fora daí se fizesse uso de outras arrumações harmônicas, como os intervalos de terças e sextas sucessivas. Esboça-se o contraponto. Para cada nota (punctum) correspondia outra que lhe contra-acompanhava (contrapunctum), colada ao seu momento de emissão, constituindo a vox organalis. Depois, as vozes secundárias começam a fazer um desenho autônomo, não mais em notas paralelas, mas pela justaposição de linhas melódicas mais livres. Através do discantus, ousou-se acompanhar em movimento contrário à vox principalis. Aos poucos, novas vozes são agregadas cada vez mais independentes. O repertório gregoriano podia fornecer a vox principalis de um moteto, construindo-se daí outras vozes. Já não se trata mais de uma única melodia ou de um leito melódico principal, definido por vozes acompanhantes em intervalos constantes. Muitas delas entram livremente, inovando sonoridades “consonantes”. Surgem as primeiras figurações da polifonia gótica, pela justaposição das diferentes linhas melódicas, tendo como parâmetro o monódico cantochão. Gesta-se uma trama cada vez mais complexa de vozes cantadas simultaneamente, postulando novas formas de organização da música, preparando o tonalismo, após longa etapa polifônica. Sobrepostas ao gregoriano, as vozes entreteciam a simultaneidade de textos portando línguas distintas. O Esse organum já era usual em alguns países europeus. Ele “parece ter surgido em dado momento do século IX, de modo que Otger, tal como Guido d’Arezzo em seus escritos posteriores sobre notação, simplesmente explicou uma prática que já estava em uso comum” (Cf. Lovelock, 1987: 29). 4

526

que mais contava era a textura dessa massa sonora entretecida por várias vozes, ensejando novas experiências de simultaneidade musical, e não a inteligibilidade do texto. Os motetos trazem um problema à medida temporal. A prosódia musical, resolvida no gregoriano pelo ritmo frásico, torna-se problemática quando aparece a necessidade de sincronizar canto e acompanhamento. Entre fins do século XII e início do XIV (Ars antiqua), surge o cantus mensurabilis, noção ainda tosca de medida temporal contrária à tradição do cantochão, recebendo forte reação da Igreja, que depois acata e elege o ternário como tempus perfectum, por expressar o mistério da Santíssima Trindade. O “pecaminoso” quaternário é adotado pela Ars nova, de acordo com o novo espírito de um mundo que se desprende da tutela do sagrado. O cantus mensurabilis ganha grande impulso com a difusão da notação escrita. A poética da Ars nova foge do controle da Igreja e, por via obliqua, a dissolução dos modos eclesiásticos pavimenta o caminho do sistema tonal. Ademais, gêneros profanos como baladas, rondós, canções trovadorescas, sofrem tratamento polifônico, mantendo viva a tradição secular da canção popular, invadindo cada vez mais os espaços até então exclusivos da Igreja, transformando-os em lugares de expressão musical de um povo que, aos poucos, também se afasta da tutela clerical.

As tensões de uma sociedade feudal agônica buscam na polifonia seu ajuste ideal. Os temas cada vez mais afastados das motivações religiosas se profanizam. A Ars nova acirra os ânimos da igreja que, enfrentando a polifonia, trava uma guerra contra os riscos da “concupiscência da escuta”, provocada por uma arte que se afasta mais e mais, do fim da música a serviço da palavra sagrada. O papa João XXII percebe os alcances das novidades dessas novas poéticas: a mistura de textos sacros e profanos, a fragmentação do canto, a dispersão das melodias em células rítmicas breves, e, sobretudo, as alterações dos modos gregorianos, levando-o a condenar a polifonia sacra. Em 1324, o Papa promulga um decreto, Docta Santorum Patrum, síntese do pensamento de uma Igreja ainda apegada à tradição, atônita face aos novos rumos da cultura. Queixa o papa que os adeptos da Ars nova, ao se dedicarem à medição do tempo “preferem compor seus próprios cantos [em lugar dos antigos], dividem as peças eclesiásticas em semibreves e mínimas; estraçalham o canto com notas de curta duração, despedaçam as melodias com soluços, poluem-nas com discantes e chegam ao ponto de entulhálas com vozes superiores em língua vulgar” (apud Ferrand, 1997:197). Trata-se de um manifesto de extraordinária compreensão da consciência papal dos fenômenos que estavam por vir. O documento destaca um ponto fundamental da nova poética laicizada, estranho ao cantochão: a Ars nova medida e rítmica, agenciando uma estética corporal laicizada, como antítese da monodia de pura espiritualidade. O binarismo laico, ao dividir o tempo em dois

527

momentos fortes, recusando aquela temporalidade contida na unidimensionalidade da monodia atemporal gregoriana, expressão de um mundo imerso na onidimensionalidade do eterno, demarca um outro mundo cindido entre o sagrado e o profano, entre corpo e espírito. O renascimento do século XV assiste à irrupção da polifonia flamenga. Os motetos abandonam os excessos da “bricolagem” gótica, baseando-se agora num único texto. As melodias das várias vozes se entretecem e engendram seu movimento, a partir do livre diálogo. As vozes fluem em campos distintos de tessituras, fixando, depois da Reforma luterana, o padrão do coral a quatro vozes (soprano, contralto, tenor e baixo), com uma harmonização baseada na tríade justa, modelo que ditará um padrão que chega ao barroco tardio de Bach e ao classicismo de Mozart, conforme ilustram suas respectivas peças: a Paixão segundo S. Mateus e o Ave Verum. O Concílio de Trento (1545-63) condena a algaravia polifônica, coibindo as ameaças mundanas à espiritualidade, reafirmando o gregoriano como música oficial da liturgia. Desautoriza a polifonia gótica, pura “concupiscência da escuta”. O italiano Palestrina é responsável por um compromisso que evita seu banimento, pois, graças à sua música, salva a polifonia religiosa (v. Herzfeld, s/d: 54). Palestrina é a grande referência da polifonia vocal. Seu tempo pode ser considerado como a era de ouro do canto coral a capella. Compõe missas bem como peças profanas como motetos e madrigais, utilizando-se muitas vezes de paráfrases gregorianas. Na paz claustral, os monges extraem dos antigos modos, agora modos eclesiásticos, o sistema musical da cristandade, alterando os tons iniciais e invertendo seus pontos de partida. Os modos gregos, iniciando na região aguda da escala, realizavam um movimento descendente. Os monges invertem essa dinâmica. Suas trajetórias passam a ter como ponto de partida uma nota grave, desenvolvendo percursos ascendentes. Não teria a ascese cristã medieval intervertido o mundo mítico grego? Não eram os deuses gregos antropomorfizados, com desejos, paixões, ciúmes e prazeres, que desciam do Olimpo para se regozijarem nas festas dos humanos, ao contrário da concepção religiosa judaico-cristã que vê o homem como criatura feita à imagem e semelhança de seu criador e que perde a inocência e, daí sua expulsão do paraíso? Portanto um ser em constante luta para superar sua condição terrena, que busca sempre ascender à perfeição celestial? Por volta do século XVII consuma-se a dissolução dos modos eclesiásticos, restando apenas dois: o jônico (modo maior, com o início em dó) e o eólio (modo menor, em lá), formados com os graus da escala diatônica. A polifonia contrapontista enseja um permanente encontro das diferentes notas ressoadas em cada frase melódica, gerando novas sonoridades. Assim, caminha-se para a verticalização da harmonia nem sempre consonante para a

528

escuta da época, postulando novos acordos. A trama de consonâncias e dissonâncias vai, aos poucos, indicando um acerto “vertical” intervalar das notas simultâneas, com vistas às resoluções de tensões e repousos. Tal simultaneidade chega à harmonia moderna do sistema tonal, culminando em Jean-Philippe Rameau e Johan Sebastian Bach. Com a horizontalidade do canto permitindo uma leitura vertical, o trabalho composicional passa a ser feito “compasso por compasso, abrangendo ao mesmo tempo todas as vozes. A concepção linear, embora persista, entra num equilíbrio com a concepção vertical”.5 Um moteto podia ser feito de um simples fragmento melódico. A autonomização do discurso musical, investido dessa nova poética composicional, torna-se uma tendência explícita da música moderna. Nesse intrincado percurso de acordos ficou pendente uma questão milenar: a resolução do trítono que sempre desafiou a tradição. Para ela, o estatuto ontológico da música representa, pelas suas relações matemáticas, a própria ordem do cosmos, ideia mantida na noção da música mundana. Daí a proibição do trítono (diabulus in musica). A música harmônica, fruto da razão divina instauradora da harmonia cósmica e humana, segundo a ordem dos números, era dotada de grande estabilidade. O trítono (o diabo que cinde), expressão de pura instabilidade por não resolver a desordem instalada no decurso musical, expressa explicitamente sua oposição direta ao símbolo (aquilo que une) da oitava. Confrontado o trítono com a oitava, temos uma ideia perfeita do que ele representava, enquanto expressão suprema de instabilidade. A oitava é uma relação sem tensão, uma vez que a nota emitida oito graus acima é o espelho da mesma nota num registro mais alto (1/2). Em termos físico-acústicos, é o duplo da frequência do mesmo. A oitava é um outro que se identifica plenamente com o mesmo. Já o trítono é um intervalo de três tons inteiros (quarta aumentada), entre o dó e o fá# enarmonizado para solb, e entre este e o dó. A relação intervalar do trítono é idêntica à sua própria inversão. No piano, ele divide o teclado exatamente no meio. O trítono é um mesmo representando um estranho outro. Ele é a antítese da oitava, expressa na relação 1/2 enquanto no trítono é 32/45, projetando dessa forma, uma forte instabilidade e uma extrema tensão. Da mesma forma como se incentivam práticas espiritualizadas evitam-se igualmente certos intervalos portadores da desarmonia diabólica. A arquitetura tonal, construindo procedimentos melódico-harmônicos bem precisos, irá buscar o compromisso com o trítono. Estamos num mundo com uma agenda de novas e grandes tensões. Agenciador de mudanças radicais, plasmando um mundo “à sua imagem e semelhança”, o homem moderno concorrerá também na resolução tonal das tensões inerentes ao trítono. Será precisamente esse novo mundo que fará com que o trítono, sistematicamente denegado, aflore no portal

5

Fubini, apud Wisnik,1989:116.

529

do novo “sistema baseado na regulagem harmônica das trocas entre tensão e repouso. Pois o balanceamento cadencial entre a dissonância tritônica e sua resolução desenhará a própria abobada da música tonal” (Wisnik, op. cit. 101). Para Wisnik, a resolução do trítono equivale ao estabelecimento das normas da perspectiva. Esta projeta o olhar moderno nas dimensões da profundidade. Onde só havia a estabilidade da superfície, constrói-se um espaço em evolução. A escolha do trítono, já aceito enquanto nota de passagem no século XVI, como a grande representação da ruptura com a estética do medievo, tornouse um corolário natural de sua reflexão. As modulações enarmônicas na arte da fuga de Bach, só foram possíveis graças ao temperamento igual: afinação uniforme equalizando todos os semitons, acusticamente desiguais.6 Procedimento adotado no início do século XVIII, tratava-se de um problema há tempos enfrentado.7 A plasticidade da escala tonal, graças às suas possibilidades de modulação, permite uma verdadeira cascata de quintas, fazendo de cada tônica uma candidata a dominante, e vice-versa. A difusão da escala temperada provoca um grande deslumbramento dos compositores com a harmonia. A progressão harmônica que compõe a célula identitária do campo tonal (o movimento triádico tônica, subdominante, dominante, cuja intensidade de tensão é resolvida pelo retorno à tônica, enquanto centro de todo o sistema), é o grande ponto de fuga do campo musical. O tonalismo e as progressões harmônicas são expressão do fastígio da mentalidade moderna. Duas obras publicadas em 1722 jogam papel crucial para a edificação definitiva da tonalidade: a ilustração feita por Bach, no Cravo bem temperado as 24 possibilidades modulatórias nos seus 24 prelúdios e fugas, da escala cromática, nos dois modos, maior e menor. A teorização feita por Rameau no seu

A rigor, o dó# e o réb, vistos como sons idênticos em instrumentos temperados, possuem pequenas diferenças acústicas chamadas “comas sintônicos” (um coma representa um intervalo mínimo de 1/9 de tom inteiro). Percebemos este fenômeno quando as notas soadas por um sistema de emissão eletrônica de frequências, detectam vibrações diferenciadas, ora próximas ora sutilmente afastadas. O temperamento igual de sons acusticamente diferenciados é obtido pela anulação arbitrária dessas pequenas diferenças, estabelecendo, p. ex., a igualdade entre o dó# e o réb, obtendo a enarmonia, dividindo a escala cromática em 12 semitons exatamente iguais. No sistema temperado, a enarmonia significa nomes diferentes para a mesma altura; no não temperado, notas diferentes que se distinguem apenas por um coma. 7 O temperamento pôs ordem em certo caos da música barroca: a complexidade crescente dos conjuntos harmônicos colidia mais e mais com a falta de um critério geral de afinação, produzindo distorções como o choque das cordas e vozes com os teclados, impedindo o desenvolvimento da linguagem tonal, sobretudo, da modulação. Antes, cada vez que se queria modular ou interrompia-se a música para afinar novamente instrumentos como o cravo, ou então cada modulação fazia com que a progressão melódico-harmônica soasse estranho ao centro tônico visado. Bach equalizou vários temperamentos da época. Até o V grau (superior) ou IV grau (inferior) da escala, não havia praticamente diferenças entre os vários temperamentos. O problema crescia com o progressivo afastamento dos graus subsequentes com relação ao tom fundamental, pois os processos enarmônicos tendiam a aumentar as diferenças entre si. 6

530

Tratado da harmonia explicita a ideia de um centro tonal harmônico feito por um acorde perfeito, mediante o qual os sons se organizam hierarquicamente. Para Charles Rosen, que nega o sistema que esteja organizado em torno de uma nota central, a tonalidade é “um sistema organizado em torno de um acorde perfeito central; todos os outros acordes perfeitos – maiores e menores – distribuem-se hierarquicamente à sua volta; chamado tônica, ele determina o tom de cada trecho” (Rosen, apud Nattiez,1984:335). Lembremos que o acorde perfeito central é montado sobre os primeiros harmônicos, expressando um influxo da poética pitagórica. No tonalismo estamos diante de um novo paradigma de relações e progressão intervalares, a partir de um centro hierarquizador. Tal centro é reforçado pela sua repetição constante, criando campos sonoros de consonância e dissonância. Quanto mais “próxima” a harmonia do centro tonal, dada, por exemplo, pela proximidade da dominante (V grau), maior será a consonância; quanto mais “distante” maior a dissonância.8 É por meio desses novos acordos gerados no interior das escalas diatônicas que o trítono encontrará um ambiente favorável à sua resolução. Expressão maior de todas as tensões, minimizada agora por uma estética laicizada, o trítono é incorporado como instante fugidio de tensão para ser absorvido por uma cadência repousante. Quanto mais tensão, mais se sente a resolução final. No tonalismo, seja ele manifestado por um salto intervalar ou como encontro acórdico, já traz no seu interior a possibilidade de resolução, pois a escuta tonal postula o repouso relaxador provocado por suas tensões. O ponto tensionador da dominante constitui-se como passagem do trajeto repousante para a tônica. O ponto crucial para o entendimento do pacto fundante do sistema tonal, resolvendo o desafio do trítono, encontra-se pela posição estratégica do dó como o modo por excelência do sistema, por possibilitar a estabilização do acorde da sétima de dominante, constituído pelas notas sol-si-ré, mais sua terça menor, a nota fá, resultado no acorde sol-si-ré-fá, contendo em seu interior o trítono (si-fá), sendo por isso o grande responsável pela tensão tonal a ser resolvida sobre a tônica que permite um duplo deslizamento ascendente e descendente - do si para o dó e do fá para o mi. O tonalismo é uma complexa arquitetura da linguagem musical, cujas funções e racionalidades permitiram a constituição de uma poética para desenvolver os procedimentos composicionais como os planos modulatórios que, por seu turno, possibilitaram a criação das grandes formas e gêneros musicais, tais como a arte da fuga, a grande forma-rondó, o quarteto de cordas, a sinfonia, a A distância não se define espacialmente, mas pelo maior número de notas comuns nas duas escalas (no caso de dó e sol, suas escalas só diferem numa nota, resultando em reduzidíssima tensão entre si). Um ex. oposto pode estar na escala de dó maior e fá# maior: apenas duas notas comuns com acordes bem dissonantes, para os padrões do tonalismo (Cf. Jourdain, 1998: 47) 8

531

sonata, cujo fastígio perdurou no período do classicismo vienense, com Haydn, Mozart e Beethoven. O temperamento deslumbrou compositores da época. “Toda a moderna música acórdico-harmônica não é concebível sem o temperamento e suas consequências. Só o temperamento proporcionou-lhe a liberdade plena” (Weber, 1995:133) As melodias e harmonias da poética tonal se utilizam de uma linguagem musical carregada de sentidos que apontam para uma narrativa evolutiva, onde o enunciado da crise já conota sua superação, o que se presta para anunciar tanto o discurso musical com tensões e repousos, quanto a própria consciência do homem burguês moderno que busca um sentido histórico materializado na ideia de progresso. A poética ocidental, mediante a tonalidade, caracteriza-se por uma concepção de tempo direcional, isto é, a sucessividade dos sons é vivida de forma projetiva. A escuta tonal moldou-se para ouvir algo em progresso com um “antes”, “durante” e “depois”, estabelecendo uma audição linear. Situar-se nesse decurso foi uma preocupação do moderno homem euro-ocidental. Daí o fato de uma série de obras musicais constituírem, em suas partes, de Prelúdio, Interlúdio e Poslúdio, ou Gran Finale. São designações para se referir à função temporal desempenhada por essas peças numa determinada sequência, sinalizando posições de precedência, intermédio, e finalização de um todo, como a formasonata com seu movimento triádico de exposição, desenvolvimento e reexposição (v. Chasin, 1999). PRENÚNCIOS DA DISSOLUÇÃO TONAL O século XIX sinaliza a dissolução tonal. Compositores começam a usar novas poéticas. O caso modelar é o cromatismo de Tristão e Isolda (1854), de Richard Wagner. Mesmo que o cromatismo já fosse usado antes – Schumann em Carnaval (1834), Chopin na Balada n° 4 (1843) ou Liszt em Die Lorelein (1853) –, nenhum fora feito com a vigorosa intenção de Wagner, atingindo o limiar da dissolução tonal, num clara intenção dramático-expressiva. Em andamento lento e langoroso, segundo indicação do autor, o acorde começa em lá, salta para fá, recua para mi, e depois salta para sol# seguido de um lá natural, lá# e si. São pequenos cromatismos ascendentes repetidos cerca de dois minutos, entremeados de intensos silêncios, com acréscimos de instrumentos de diferentes naipes e timbres à base de cordas com os de sopro e madeira (oboé, clarinete, fagote e flauta). Ademais, a passagem dos mesmos trechos para registros mais agudos intensificam a tensão do acorde, em níveis de maior intensidade, constituindo seu clímax, até o encontro de sua resolução tonal. “O cromatismo de Tristão [...] representa, técnica e espiritualmente, o apogeu da tensão” (J. Chailley apud Nattiez, 1984:247).

532

Tal crispação melódico-harmônica é exacerbada pela exasperação da tensão tritônica cuja resolução é adiada por cerca de dois minutos, coabitando dissonâncias e consonâncias, em aparente indiferença, sem aquelas soarem impuras. Eis o epicentro da grande mudança da poética musical euro-ocidental, causando grande distúrbio. Se Nietzsche louva Wagner - “a partir do momento em que houve uma edição de Tristão para piano [...], tornei-me um wagneriano. [...].Todas as estranhas criações de Leonardo de Vinci perdem o encanto mal se ouvem os primeiros compassos de Tristão” (Nietzsche, 2004:52s) - sua música é rejeitada de forma incisiva por muitos de seus contemporâneos, conforme descreve a irmã no livro Correspondência com Wagner (Nietzche, 1990). A ópera gera muitas controvérsias. “Músicos e teóricos não estavam seguros de como classificar o acorde em um sistema tonal” (Rosen, 2000: 633). Wagner instala a crise do tonalismo, pelo anúncio de sua dissolução, mas quem efetivamente irá fazê-lo será o dodecafonismo de Schoenberg, o qual vê Wagner como precursor do atonalismo. Schoenberg não foi o primeiro a usar a atonalidade. Certas obras de Liszt dos anos 1880/90, como a Bagatelle sans tonalité, cuja harmonia se mostra livre das convenções tonais, em que tríades justas, cânone pétreo da tradição euro-ocidental, dão lugar a acordes aumentados, a sétimas não resolvidas e o diabólico trítono se faz presente. AS NOVAS POÉTICAS MUSICAIS DA CONTEMPORANEIDADE A crise da hegemonia absoluta da tonalidade abrirá possibilidades de instituição de várias poéticas que rompem com a estética do passado, característica das práticas artísticas do movimento modernista das primeiras décadas do século XX, radicalizada com o experimentalismo de diversas linguagens das artes contemporâneas que se instituem a partir dos anos 1960, onde encontramos as revolucionárias contribuições de toda uma geração de compositores como John Cage, responsável por introduzir o silêncio como componente musical essencial, no mesmo status das notas musicais, visto pela tradição como “não-som”, bem como de educadores musicais, compositores que vão às salas de aula, na feliz formulação de Murray Schafer. Para se chegar à total dissolução tonal, ocorreram vários eventos favorecidos pelo fin-de-siècle europeu, quando o sentimento de experienciar rupturas com a tradição rondava a cena vanguardista, a exemplo de Debussy, um ex-wagneriano, que inclusive frequentara os festivais de Bayreuth. Na Exposição Universal de Paris de 1889, conhece as sonoridades “exóticas” dos modos ciganos, moçárabes, russos, e outros modos da Europa oriental. Debussy fica maravilhado com os efeitos de um conjunto de gamelão javanês, com sua escala minimalista pentatônica, provocando delicados timbres que deixavam uma animação suspensa no ar, onde “tônica e dominante não passam de fantasmas vazios para uso de crianças espertas” (apud Ross, 2009:55).

533

Outro importante evento do vanguardismo é A sagração da primavera de Igor Stravinsky encenada em Paris (1913). Pela sua orquestração e rítmica, pela estrutura harmônica dissonante com rangidos desarmônicos, pelos seus aspectos timbrísticos, mas, sobretudo, pela flagrante primazia da percussão pulsional em relação ao parâmetro da “música das alturas”, a peça apresenta uma inédita forma composicional: acordes movidos por uma pulsação constante, onde, não apenas os instrumentos de percussão, mas todos tipos de naipes e timbres exercem, solidariamente, função percussiva. Outro evento importante é a ópera Salome, de Richard Strauss, que provoca uma cadeia de protestos, pelo erotismo que permeava o espetáculo. A cena onde Salomé, após receber a cabeça de João Batista, beija os lábios inertes ainda em sangue, faz Herodes bradar: “Matem esta mulher!” Segue uma profusão caótica de sons, na verdade, oito compassos de puro ruído: trompas insinuam figuras ligeiras de uivos indistintos, tímpanos percutem golpes secos, madeiras emitem guinchos agudos. “Nunca se ouviu nada mais satânico e artístico no palco operístico alemão”, escreveu na época o crítico Ernst Decsey (cf. Ross,op.cit.59). Certamente o evento musical mais importante para decretar o ocaso do tonalismo, ainda na primeira metade do século XX, foi o dodecafonismo da Segunda Escola de Viena liderada por Arnold Schoenberg. O dodecafonismo é uma “rigorosa organização” dos 12 semitons da escala diatônica, conforme a personagem Adrian Leverkühn do Doutor Fausto, o compositor que faz um pacto com o diabo, inspirado na criação de Schoenberg (cf. Mann, 1984). Criado nos anos 1920, ele estabelecia a obrigatoriedade do uso dos 12 semitons cromáticos da escala temperada, organizadas numa ordem particular, formando uma série estruturante de toda composição, cujas notas só poderiam ser repetidas depois do uso de todas as demais. Tal técnica desfaz por completo a poética do tonalismo, fazendo com que a escuta diatônica, educada pelo habitus secular das sequências melódicas dos modos maior e menor, amparadas por relações intervalares da harmonia geradora de acordes consonantes (“acordes perfeitos”), se sentisse sem chão, ao lhe faltar as referências lógicas tonais. O uso dos 12 tons sem qualquer primazia, evitando o que poderia lembrar o sistema anterior, desorienta o ouvinte acostumado a organizar os conjuntos sonoros conforme as hierarquias da progressão tonal. As inovações tecnológicas do desenvolvimento urbano-industrial contribuem para revolucionar as poéticas composicionais do novo século, como o manifesto “Esboço de uma Nova Estética da Música” (1907), de Ferrucio Busoni, onde ele, mesmo sem romper com as formas da tradição, discute domínios pouco explorados como a música eletrônica e microtonal. Uma vertente a jogar importante papel na época foi o ruidismo (bruitisme), que irrompe no quadro do movimento futurista italiano, em 1913, quando o pintor/compositor Luigi Russolo lança o manifesto L’arte dei rumori, fincando as

534

bases conceituais do movimento, sendo visto como o primeiro teórico da música eletrônica. Para ele, os ruídos advindos da Revolução industrial aumentara significativamente nossa capacidade para perceber e apreciar sons complexos (para além dos tradicionais sons musicais tonais), aportando importante revolução conceitual para uma vertente da música contemporânea. Para Russolo, o objetivo essencial daquilo que define como musical reside menos no que é percebido (fruição estética tradicional), do que do que é feito do percebido (experiência estética contemporânea), isto é, a partir daí, a música procura integrar no seu material os dados brutos do mundo sonoro, a construir funções perceptivas mais substanciais (a nova forma musical resulta de sua relação com aquele material bruto). Superando o quadro das tonalidades anteriores, os futuristas procuraram fundar uma nova formalização estético-musical com elementos que, até então, não eram vistos como objetos musicais, mas que exerciam, por sua natureza, , como ruídos de nossa vida prosaica, uma função dedicada ao entorno de nossa existência, algo que guarda afinidades conceituais com a “paisagem sonora” do canadense Murray Schafer . Russolo concebeu instrumentos, dentre eles o intonarumori (ruído de máquinas), que geravam rugidos, assovios, pancadas, gemidos e outros sonoridades, destinados a performances musicais orquestrais como o Gran Concerto Futuristico (1917). O ruidismo se inseria na concepção estética do movimento futurista, corrente modernista italiana (1909), como o Manifesto Futurista de Filippo Marinetti. Rejeitando o que considerava moralismo do passado, as obras futuristas baseavam-se na velocidade e no desenvolvimento tecnológico da época. A defesa exacerbada do maquinismo, da arte da velocidade, da guerra, da violência e da destruição, é condenada por vários pensadores, vendo nela uma justificativa estética do facismo que logo instalar-se-ia. Os instrumentos criadores de novas fontes sonoras incorporadas ao processo composicional do século XX, começam a gerar um tipo de “música eletroacústica”, designação de um conjunto bastante amplo de manifestações que, geralmente, procuravam explora a interação de sons naturais, efeitos eletrônicos e sons eletronicamente gerados. A música eletroacústica passou a compreender trabalhos muito diversificados Ela advém de construções sonoras que não podem ser obtidas por meio de instrumentos tradicionais. São sons gravados diretamente da natureza ou em estúdio, sons processados e modificados, sons sintetizados, etc. As idéias da estética ruidista foram apropriadas por músicos como Edgard Varèse e John Cage. Varese, nos anos 1920, incorpora elementos ruidistas em sua música, mediante instrumentos mecânicos e Cage compõe em 1939, sua série Imaginary Landscapes (“Paisagens imaginárias”) articulando um conjunto de sonoridades advindas de ruidos gravados, sons de percussão, ruídos de rádios, etc.

535

A incorporação do ruído como importante componente do material sonoro das poéticas musicais contemporâneas representa uma radical inflexão na poética e estética do passado. Na tradição euro-ocidental o ruído era visto como algo violento e parasitário, um poluidor agressivo do código estruturador do sentido da mensagem. Tal situação interverteu-se à medida que o ruído passou a apresentar expressividade estética. “A partir do pensamento conceitual do ruidismo, no início do século XX, um número considerável de compositores pensou e incorporou o objeto ruído, para além de sua forma parasitária […] abrindo a inventiva composicional e a música a novas possibilidades, a territórios sonoros até então inexplorados…” (Biset, 2010:5). Na contemporaneidade. uma das fontes da produção ruidista é realizada pela tecnologia. Fernando Iazzetta, em Música e mediação tecnológica, relata várias produções contemporâneas que fazem intenso uso da mediação das tecnologias digitais, cujos princípios e abordagens abrem um rico espectro reflexivo. Com tais tecnologias, de modo análogo ao ocorrido com a tonalidade nos século XVIII, ao liberar os compositores para a criação das grandes formas do classicismo vienense, na atualidade, as sonoridades fora do eixo das sensações da “música das alturas”, irrompem no interior dos procedimentos composicionais, criando um infindável número de experiências, algo visto desde os feitos pulsionais das massas orquestrais de Stravinski, nos sons distorcidos de Varèse ou no “piano preparado” de Cage, agora exacerbados com os experimentos eletroacústicos, mediados pela tecnologia digital. Várias dessas experiências têm em comum o uso intenso de ruídos, explorando suas potencialidades, porém com conceitos e performances distintas quanto a suas intenções. Pontuemos alguns exemplos: para alguns contemporâneos “o ruído infiltra-se na composição mas ... sempre sujeito a um princípio de controle” (Iazzetta. 2009:183). Dá-se aqui uma consequência antes impensável: o ruído ganha expressividade de som musical, após se tornar um som “limpo”, mediante uma grande assepsia. “Boa parte do trabalho do compositor eletroacústico está em modelar os sons ruidosos [...], eliminando arestas e atenuando atritos. O trabalho, quase artesanal de manipulação sonora dentro do estúdio permite que se usem filtros, efeitos e processamentos que eliminam qualquer elemento que possa perturbar a escuta. Cliques, rangidos e estouros adquirem uma clareza, brilho e homogeneidade inexistente no mundo real, criando uma categoria supernatural de sons” (Op.cit.:184).

No contrafluxo das experiências assepticizantes, perfilam práticas sonoras afastadas da poética eletroacústica, instituindo o ruído sem nenhum polimento, como as improvisações eletrônicas da chamada laptop music, construções sonoras conceituais, uma ampla produção sob a rubrica de arte sonora. Alguns compositores, negando a pureza do som digital, adotam uma poética pós-digital,

536

onde o que antes era distúrbio, falha ou qualquer tipo de ruído saturado ou distorcido dos próprios aparelhos, integra organicamente à obra, provocando uma liberação generalizada de materiais sonoros. Uma recente vertente denominada arte de paramídia envereda-se pela contestação radical ao próprio funcionamento das tecnologias digitais. Com a laptop music, novos músicos passaram a explorar o aparelho digital, criando nova poética. Trata-se de uma geração que usa a arte de forma crítica, muitas vezes, em altos níveis de experimentalismo, onde predomina atitudes políticas mais do que estéticas, pela contestação de valores vinculados ao uso das novas tecnologias como poder, progresso e conhecimento, usando em suas contestações a própria tecnologia que contestam. Paramídia, laptop music, arte pós-digital, constituem um conjunto de conceitos e propostas, cujas formulações atingem, em certos momentos, o patamar de uma intensa e aguda crítica: o uso máximo da racionalidade tecnológica digital para denunciar a racionalidade instrumental denunciada, por exemplo, por Adorno (cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1991). Na contemporaneidade, tanto o nível do material sonoro como os procedimentos composicionais se exacerbaram, graças ao intenso uso de sons mediados por novas tecnologias. Nesses termos, o atual uso do material em práticas ruidistas, sobretudo, do que se convencionou chamar de música contemporânea, mergulhou a arte musical em torno de si mesma, cujo resultado caracteriza-se por uma espécie de hiper-racionalização, em que a consistência da obra aumenta, em grau e qualidade, por se tornar cada vez mais racional, pois cada vez tudo nela é mais preciso e determinado, mesmo que certas performances aparentam ser aleatórias. CODA As experiências composicionais das práticas musicais contemporâneas nos conduzem à seguinte reflexão: se a obra-de-arte se efetiva na fruição do outro, princípio reinserido pela estética da contemporaneidade, ao estabelecer como princípio constituidor da noção de arte, a experiência estética do fruidor, em outros termos, a primazia da sensibilidade contemplante com relação à ação ou à obra-de-arte em si, resta-nos redefinir as poéticas subjacentes às práticas artísticas atuais, inclusive a musical. Se na contemplação da obra de arte, enquanto subjetividades receptoras, nos é conferido um poder efetivador da mesma, ou, em outros termos, se somos partícipes efetivos da sua criação, participamos igualmente de sua poética, nos termos propostos por Aristóteles, enquanto instância constitutiva do modus operandi do processo de criação, o que, portanto, demandaria, a título de hipótese a ser investigada, uma poética da recepção, o que faria com que poética e estética, instâncias distintas na tradição, por estarem vinculadas de modo separado, respectivamente à criação da obra de arte e à fruição contemplante,

537

consubstanciariam uma só instância, instituindo um só processo do fazer artístico na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. 1991. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus. 1984. BAUMGARTEN, Alexander. Aesthetica, Petrópolis: Editora Vozes, 1993. BEAUSSANT, Philippe. “Johann Sebastian Bach” In História da Música Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997. BISET, Sébastien. Le performantiel noise. Des fondamentaux à l’air du temps. Bruxelles: Centre de Recherce en Théorie des Arts. 2010. CHASIN, Ibaney. “A Forma sonata beethoveniana: o drama musical iluminista”. In Ensaios Ad Hominem I, tomo II. São Paulo. Ed. Ad Hominem. 1999. CHAUÍ, Marilena, Introdução à história da filosofia, São Paulo: Companhia Das Letras, 2002. CARDINI, D. Eugène. Primeiro Ano de Canto Gregoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo. Attar Editorial/Palas Athena. 1989. FERRAND, Françoise. “A Ars Nova e Guillaume de Machaut” In História da Música Ocidental. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira. 1997. HERZFELD, Friedrich. Nós e a Música. Lisboa: Edição Livros do Brasil. S/d. IAZZETTA, Fernando. Música e mediação tecnológica. São Paulo: Perspectiva. 2009. JOURDAIN, Robert. Música, Cérebro e Êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva. 1998. LOVELOCK, William. História concisa da música. São Paulo: Martins Fontes. l987. MANN, Thomas 1984. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1984. MICHELS, Ulrich. Atlas de música, I. Madrid: Alianza Editorial. l985. MIRANDA, Dilmar. “Razão, sentidos e estética musical”, In Revista Virtual do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Música, USP. São Paulo, 2005. ___________. Tristão e Isolda: o anúncio dionisíaco da dissolução do pacto tonal, In Nietzsche Deleuze jogo e música (org. José Gil e Daniel Lins) Forense Universitária. R.J: 2008. NATTIEZ, J. Jacques. “Tonal/atonal” in Enciclopédia Einaudi. Lisboa. Imprensa Nacional. Casa da Moeda. 1984. NIETZSCHE, Frederico. Correspondência com Wagner. Lisboa: Guimarães Editores. 1990. ___________________. Ecce homo. Lisboa: Guimarães Editores. 2004. PLATÃO, A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1996.

538

ROSEN, Charles. A Geração Romântica. S. Paulo. Edusp, 2000. ROSS, Alex. O resto é ruído: escutando o século XX. São Paulo: Cia Das Letras, 2009. STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 lições. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1996. WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: EDUSP. 1995. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras. l989.

539

A ESCRITA PARA PERCUSSÃO DOS COMPOSITORES DO GRUPO MÚSICA NOVA1 Ricardo de Alcantara Stuani [email protected] UNESP/Instituto de Artes Resumo: Procuramos neste trabalho investigar a notação musical dos compositores do Grupo Música Nova, tendo como referência a escrita para percussão. O Manifesto Música Nova foi um documento redigido no Brasil em 1963 pelo compositor e arranjador Rogério Duprat (1932-2006) e assinado por Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, Damiano Cozzella, Julio Medaglia, Régis Duprat, Sandino Hohagen e Alexandre Pascoal. Inspirado pelos poetas concretos paulistas e pelos eventos da vanguarda musical européia, este manifesto propunha uma renovação da linguagem musical através de princípios de experimentação, incorporando elementos das linguagens poéticas, teatrais, visuais e “utilizando novos grafismos, abolindo a notação musical tradicional” (MENDES, 2007). O foco central da pesquisa será a obra para percussão dos compositores Gilberto Mendes, Rogério Duprat e Willy Correa de Oliveira. Palavras-chave: notação musical, percussão, vanguardas, grupo música nova.

INTRODUÇÃO O Grupo Música Nova retomou algumas propostas anteriormente abordadas pelo Grupo Música Viva2, nos anos quarenta, encabeçado por HansJoachim Koellreutter (1915 – 2005). Koellreutter, nascido na Alemanha, chega ao Brasil em 1937. Em sua produtiva atividade pedagógica deixava claro os seus compromissos com as conquistas técnicas da então música contemporânea. Teve forte influência na nova geração de compositores da década de sessenta: “[...] os núcleos paulistas de renovação que vieram a desempenhar relevante papel nos desdobramentos ocorridos desde os inícios da década Projeto de Mestrado em música. Orientador: Dr. Carlos Stasi. Linha de Pesquisa: Abordagens históricas, estéticas e educacionais do processo de criação, transmissão e recepção da linguagem musical. 1

Trecho do manifesto Música Viva, de 1946: "MÚSICA VIVA" acredita no poder da música como linguagem substancial, como estágio na evolução artística de um povo, combate, por outro lado, o falso nacionalismo em música, isto é: aquele que exalta sentimentos de superioridade nacionalista na sua essência e estimula as tendências egocêntricas e individualistas que separam os homens, originando forças disruptivas” ( Ibidem, p. 65). 2

540

de sessenta, permitem observar na base de suas iniciativas, sejam músicos ativos saídos diretamente do movimento ou das salas de aula de Koellreuter (aulas particulares de composição e estética, Escola Livre de Música de São Paulo e Cursos de Férias de Teresópolis) seja um terreno já devidamente arado e fertilizado pelas realizações do Música Viva.” (KATER, 2001, p. 75)

Já na época da polêmica das “cartas abertas”3, que nos anos cinquenta dividiu o meio musical brasileiro em duas facções opostas (os nacionalistas, cujo principal mentor ideológico foi Mário de Andrade, representados principalmente por Camargo Guarnieri e Francisco Mignone e os defensores do dodecafonismo) alguns importantes membros do grupo Música Viva já haviam se afastado das propostas de vanguarda do professor Koerllreutter, entre eles Guerra Peixe e Claudio Santoro4. Segundo Squeff e Wisnik (1983), isto se deu porque o nacionalismo aparecia para os jovens compositores como uma “proposta política que defendia os valores nacionais na medida em que a América do Norte iniciava sua longa, mas sistemática invasão por toda a América Latina. O nacionalismo teria de ser a única resposta aos intentos imperialistas.” Esta estética tinha “o seu olhar voltado para o folclore e para a música comunicativa ao senso comum da tradição ocidental pós-romântica, utilizando temas de caráter nacional, brasileiros, com a preocupação de funcionalidade, tentando aproximar-se da coletividade”, como explicam Edelton Gloeden e Luciano Morais (2008). É neste cenário que se encontram as origens do Grupo Música Nova, de São Paulo: “Colocaram em dúvida o ato do compositor de fazer música igual a que o teria antecedido e apontaram para a premência de rever, até então, sessenta anos de música ocorridos no Brasil” (GAÚNA, 2002, p. 87). Rogério Duprat explica da seguinte maneira: A música estava nas mãos dos nacionalistas. Isto aqui [o manifesto], não foi a derrubada de velhos batalhadores, não foi. Simplesmente criou-se uma torrezinha lá, num canto qualquer, também porque os outros manipulavam os elementos da música, as orquestras sinfônicas, as escolas de música, eram muito antiquadas no Brasil no período.5

O Manifesto foi publicado em 1963 pela revista Invenção, porta voz da poesia concreta paulista: “superação definitiva da freqüência (altura das notas) como único elemento importante do som. som: fenômeno auditivo complexo em que estão comprometidos a natureza e o homem. música nova: procura de uma linguagem direta, utilizando os vários aspectos da realidade (física, fisiológica, psicológica, social, política, cultural) em que a máquina está “Durante muitos anos, os jornais de todo o país publicaram centenas de declarações, entrevistas, cartas, fazendo com que, pela primeira vez um problema musical fosse levado à apreciação e ao julgamento do grande público.” (NEVES, 1981, p. 121) 4 KATER, 2001, p. 126 5 Em depoimento no documentário A Odisséia Musical de Gilberto Mendes (2006). 3

541

incluída, extensão ao mundo objetivo do processo criativo (indeterminação, inclusão de elementos "alea", acaso controlado). reformulação da questão estrutural: ao edifício lógico-dedutivo da organização tradicional (micro-estrutura: célula, motivos, frase, semiperíodo, período, tema; macro-estrutura: danças diversas, rondó, variações, invenção, suite, sonata, sinfonia, divertimento etc. ... os chamados "estilos" fugado, contrapontístico, harmônico, assim com os conceitos e as regras que envolvem: cadência, modulação, encadeamento, elipses, acentuação, rima, métricas, simetrias diversas, fraseio, desenvolvimento, dinâmicas, durações, timbre, etc.) [...] 6

Podemos perceber neste trecho do manifesto que uma das rupturas se dá no âmbito dos parâmetros artísticos musicais acadêmicos (formas musicais, harmonia, contraponto) com o objetivo de ampliar a linguagem estrutural, se aproximando de outro grupo de vanguarda: o dos poetas concretos de São Paulo: De fato, é flagrante a analogia entre o Manifesto Música Nova e o Plano Piloto para a Poesia Concreta (publicado em 1958), de Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, a começar pela estrutura do texto: Sem maiúsculas, em itens citados por um título curto seguido por dois pontos. Quanto ao conteúdo, temos, por exemplo, no manifesto dos poetas concretos: “poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso” [...] e no Manifesto Música Nova: “desenvolvimento interno da linguagem musical, exata colocação do realismo: real=homem global” (BONIS, 2006, p. 27).

Dentre os signatários do Manifesto Música Nova se destacaram quatro compositores: Damiano Cozzela, Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat e Gilberto Mendes, que já tinham participado juntos do curso de férias da escola de Darmstadt em 1962, na Alemanha, ministrado neste ano pelos compositores Henry Pousseur, Pierre Boulez e Karlheins Stockhausen (GAÚNA, 2002, p. 51). Nestas aulas aprofundavam as reflexões sobre a escrita e linguagem musical, aspectos que são discutidos por Edson Zampronha no seu livro Notação,

Representação e Composição: Na década de 1960 a preocupação estava no estudo dos signos gráficos usados pelo compositor para registro e comunicação das suas idéias musicais e sua correspondente compreensão por parte do intérprete. Forma de grafia, alterações e/ou adaptações de signos gráficos convencionais, introdução de novos signos, alterações da planificação gráfica para leitura baseada nos eixos de altura versus tempo, todos estes esforços procuravam resolver o problema da distância que havia entre concepção musical, notação e performance. (2000: p. 130).

Esta viagem para a Alemanha consolidou nestes compositores um “direcionamento a partir do contato direto com as fontes do pensamento e da

6

Trecho do Manifesto Música Nova (KATER, 2001, p. 351).

542

criação musical de vanguarda da época”7. O que não significa cópia: “Não se deve pensar que, ligando-se às correntes experimentais da música universal, os compositores brasileiros tenham abdicado definitivamente de suas características nacionais” (Neves, 1981, p. 147). PERCUSSÃO E VANGUARDA Neste quadro de inovação pela experimentação houve um processo de busca, de renovação, e acreditamos que a escrita para percussão revela esta procura: “Para os movimentos vanguardistas, a inovação desempenha um papel importante na evolução da linguagem artística” (NASCIMENTO, 2009, p. 52). A experimentação incluía, entre outras coisas, pesquisas “a partir do uso extensivo de sons sem altura definida (especialmente dos instrumentos de percussão) e exploração de tensões acústicas criadas por jogos intervalares fortemente dissonantes” (SILVA, 2012, p. 107). Willy Corrêa de Oliveira faz o seguinte comentário, ao analisar a obra Circles, de Berio, de 1960: “Berio teve a idéia de relacionar os fonemas com timbres da orquestra de percussão que ele estava usando. Ele ter tido a idéia de usar um conjunto de percussão para acompanhar o canto, já é novo. E ele usou dessa forma, relacionando os timbres com os fonemas”8 (ULBANERE, 2005, p. 39). A escrita para percussão era, ainda nos anos sessenta, algo muito recente e experimental: Considerada uma das últimas configurações para conjunto de câmara a se consolidar, ela surge somente no século vinte, entre o final da década de vinte, começo da década de trinta. No Brasil, a primeira peça escrita para grupo de percussão data de 1953, escrita por M. Camargo Guarnieri, quase trinta anos depois das primeiras obras internacionais. (HASHIMOTO, 2003, p. 8)

Como também explicam Morais e Stasi: O século XX foi caracterizado por uma grande expansão na quantidade de composições musicais escritas com especial atenção para os instrumentos de percussão (solo, música de câmara, concertos, repertório orquestral, dentre outros). Diferentes compositores e escolas composicionais contribuíram para o desenvolvimento da literatura percussiva, gerando novas possibilidades interpretativas e novos desafios aos intérpretes. (2010: p. 1)

Fez parte deste pensamento de vanguarda a superação da tonalidade, propiciar um enriquecimento tímbrico a partir de sons-ruído transformando-os

BONIS, 2006, p. 21. Esta estratégia composicional vai ser usada pelo próprio Willy Corrêa em suas peças para canto e percussão como, por exemplo, Memos e Exit. 7 8

543

em tons (Varése), compreender os ruídos em conjunção com a idéia de timbre (Shaeffer).9 Grande parte dos instrumentos de percussão é de altura indeterminada, portanto inexprimíveis pelas notas da gama temperada. Uma grande variedade timbrística é o principal recurso estratégico do uso da percussão no discurso música contemporânea (BARRETO, 2009, p. 7). As peças a serem estudadas neste trabalho, como veremos adiante, utilizam a percussão em formação de música de câmara ou orquestra com diferentes aspectos, concepções rítmicas e timbrísticas, muitas vezes utilizando o que chamamos de notação indeterminada utilizando grafismos e textos: Ruídos, movimentos rítmicos melódicos imprecisos ou sem direção previamente definida, ações sonoras nos quais o que importa é a ação e não o som, procedimentos aleatórios, evoluções temporais não previsíveis, entre outros são alguns dos aspectos que podem ser encontrados nestas novas partituras. (CAZNOK, 2000, p. 62)

A relação entre notação e produção musical é complexa, pois o “desenvolvimento do sistema de notação foi abrindo novas possibilidades para a criação sonora ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da estruturação musical implicava novos desafios para a escrita”, fato indissociável da produção das vanguardas do século vinte que criaram “novas formas de notação musical” (BAIA, 2011, p. 174). Entendemos, portanto, que a escrita utilizada nas partituras dos compositores do Grupo Música Nova, devido ao caráter experimental, de vanguarda, é de grande importância para compreender a evolução da percussão na música contemporânea brasileira e sua utilização na música de orquestra e outras formações camerísticas no Brasil. Das peças dos compositores do Grupo Música Nova que utilizam percussão podemos citar de Rogério Duprat: Organismo (cinco vozes solistas e instrumentos, 1961), MBaepu (xilofone, bandolin, violino, trombone e fagote, 1961) e Projeto Unbica (piano e percussão, 1964). De Willy Corrêa de Oliveira: Música para Marta (orquestra, 1961), Cinco Kitschs (piano e percussão, 1968), Memos (soprano e percussão, 1978), Materiales (soprano e percussão, 1980) e Exit (soprano e percussão, 1979). De Gilberto Mendes: Música para Doze Instrumentos (formação de câmara, 1961), Blirium C9 (diversos grupos instrumentais, 1965), Vai e Vem (diversos grupos instrumentais e voz, 1969), Santos Football Music (1969, orquestra), Concerto para Tímpanos, Caixa e Percussão (1991, Grupo de Percussão), O Pente de Istambul (1990, duo de percussão)10 e Quasi um Rondó (vibrafone solo, 1995). NOTAÇÃO SILVA, 2012, p. 99. Esta peça foi analisada por Carlos Tarcha em Revista Música, São Paulo, v. 3, n. 1:82-102 maio 1992 9

10

544

No processo de grafia dos parâmetros sonoros para a partitura temos a “notação codificada de procedimentos musicais, freqüências sonoras, tratamento rítmico e indicações de instrumentação e performance, que podem ser decodificados e reproduzidos por aqueles que dominam o código” (BAIA, 2011, p. 174). Segundo Zampronha, a “notação ideal seria aquela capaz de registrar e comunicar a informação o mais exatamente possível” (2000: p. 21). Entretanto, o percussionista encontra vários problemas no que se refere à escrita pra seus instrumentos: “A percussão foi paulatinamente inserida nos manuais de orquestração que surgiram no decorrer do século XIX e XX. No entanto, esta inserção foi bastante lenta e as informações contidas sobre este instrumental eram bastante escassas” (BARROS, 2008, p. 2). As variantes podem ser grandes de acordo com cada peça a ser analisada: As dificuldades que se encontram na preparação e execução de obras para percussão se dão em duas áreas: configuração instrumental e notação. O performer precisa se adaptar a cada novo trabalho [...] e se ajustar a um sistema de notação que é exclusivo para a instrumentação exigida na peça. Não só a designação para um instrumento específico pode variar de peça para outra, um sistema completamente diferente pode ser criado. 11 (SMITH, 2005, p. 16)

Devido a estas variantes, discutiremos os procedimentos composicionais de cada peça em separado, a partir da notação, examinando a escolha dos grafismos e comparando os princípios estruturais da escrita de outras peças do mesmo e de outros compositores. Segundo Jorge Antunes, a notação musical contemporânea é uma questão pessoal para cada compositor: “[...] muito embora existam muitos símbolos novos, difundidos e unanimemente utilizados, cada compositor tem sua própria notação. [...] os parâmetros altura, intensidade, duração e forma dinâmica podem através de notações simbólicas ou analógicas, dar conta de esclarecer o intérprete com relação ao fenômeno sonoro desejado pelo compositor, e não com relação, unicamente, ao modo e à técnica de execução que poderiam dar lugar ao evento sonoro desejado. (1988, p. 16-17)

Para Zampronha (2000), uma das classificações possíveis de uma notação musical pode ser feita considerando as discriminações de altura (contínua, discreta e indeterminada) e duração (métrica, não métrica e amétrica: esta última um recurso sincronizador de eventos). Outra classificação pode ser Tradução livre de: The difficulties that lie in the preparation and performance of works written for multiple percussion stem from two areas: instrument configuration and notation. The performer must adapt to each new work [...] adjust to a new system of notation that is unique to the instrumentation required by the piece. Not only does the designation for a specific instrument vary from one piece to the next, a completely different staff system may be created. 11

545

baseada nos critérios de: representação gráfica (visual) ou escrita (textual), se possui indicação precisa ou indicação aproximada ou não determinada, se envolve improvisação ou não envolve improvisação. Como explica também Stone: Os quatro aspectos da composição musical que devem ser expressos (por meio dos sinais direcionais de notação) com explicidade suficiente para permitir que o performer interprete corretamente as intenções do compositor são altura, tempo, ritmo (e metrica), e articulação. [...] Notação é um sistema de sinais direcionais que costumavam permitir que um performer, familiarizado com estes e com as convenções musicais de determinada época durante a qual estavam em uso, recrie a visão artística de um compositor com base no que as direções mecânicas implícitam. Um ouvinte, portanto, ganha novos insights sobre um trabalho cada vez que vem à vida em diferentes performances, coloridas pelas diferentes personalidades dos artistas. (1963, p. 9, 30)12

Evarts comenta em seu artigo que as questões da notação musical interessam vitalmente aos compositores e performers, uma vez que ainda é o principal veículo de comunicação entre eles: Por exemplo, o compositor pode querer usar sons eletrônicos em fita magnética, combinadas com sons ao vivo ou, seguindo as sintaxes recémdesenvolvidas e as estruturas da música, ele pode dar um importante lugar para o aleatório (acaso) e os elementos de improvisação. Estes e outros novos elementos exigem um novo tipo de notação. (1968, p. 407)13

Alguns compositores muitas vezes também davam liberdade aos intérpretes de realizar improvisações e variedades de fragmentação e montagem, conforme os princípios de aleatoriedade, características observadas principalmente na obra de John Cage: “[...] ainda maior liberdade é oferecida ao intérprete nessas peças que surgiram a partir do desejo de eliminar as fronteiras da arte e não-arte e entre sons musicais e sons que são o nosso ambiente de todos

Tradução livre de: Four aspects of musical composition which must be expressed (by means of the directional signs of notation) with sufficient explicitness to enable the performer properly to interpret the composer’s intentions are pitch, tempo, rhythm (and meter), and articulation [...] Notation is a system of directional signs which used to enable a performer conversant with then and with the musical conventions of the era during which they were in use, to recreate a composer’s artistic vision on the basis of what the mechanical directions implied. A listener thus gained ever new insights into a work as it came to life in different performances, colored by the different personalities of the performers. 12

Tradução livre de: For example, the composer may wish to use magnetic-tape electronic sounds combined with ‘live’ sounds or, following the newly-developed syntax and structures of music, He may give an important place to aleatory (chance) and improvisational elements. These and other new elements require a new kind of notation. 13

546

os dias. O reconhecido pai deste movimento é John Cage [...]”14 (LESTER, 1989, p. 296). Gilberto Mendes utilizou estes recursos composicionais em algumas peças, como por exemplo, Blirium C9 (1965) e Concerto para Tímpanos, Caixa e Percussão (1991). [...] quanto mais imprecisa for a notação, maior é o trabalho e a responsabilidade do intérprete na criação tanto dos eventos sonoros individualizados quanto dos seus encadeamentos e resultantes formais. O compositor, ao optar por uma confecção de uma partitura gráfica, conta com o fato de que o intérprete será, obrigatoriamente, um co-autor de sua obra e ela renascerá sempre de uma forma diferente, a menos que o intérprete prefira preparar e apresentar apenas uma entre as possíveis realizações. (CAZNOK, 2003, p. 62)

Iazzetta explica estes processos da seguinte maneira: Na música experimental transparece o sentido de transgressão ou de subversão das noções tradicionais de instrumento musical pela exploração de estruturas indeterminadas e roteiros imprecisos. A atenção da obra e da técnica é deslocada para o processo, passando do objeto para o contexto e do artesanal para o representacional. (2012: p. 229)

Como estas obras variam sua forma de acordo com a interpretação, uma análise possível seria a “crítica genética”: Os esboços e manuscritos dos compositores, ou seja, os suportes textuais de suas obras são os elementos materiais suficientes para a área que se tem convencionado chamar de crítica genética. [...] o que idealmente viria a ser o estudo do pensamento criador, a possibilidade de se conhecer o antes, bem como a sua transformação na edificação de um caminho que conduzisse ao perfeito entendimento da obra e de seu autor. A questão apresenta aspectos de interesse não apenas teóricos abrangendo, inclusive, o preparo dos intérpretes. (TONI, 2005)

Podem-se buscar estes aspectos do processo de criação “por intermédio da documentação das obras e de entrevistas com o compositor” (GAÚNA, 2001, p. 110). Também devem ser aqui propostos para um estudo analítico destas peças a análise de parâmetros como estrutura e timbre: “Estrutura: relação direta e inequívoca dos elementos componentes de um todo, um intercâmbio de informações. Direcionalidades.” (CORREA, 1979). Sobre o timbre, Paulo Zuben afirma que:

Tradução livre de: [...] even greater latitude is afforded the performer in those pieces that arose from the desire to eliminate the boundaries between art and non-art and between musical sounds and the sounds that are our everyday environment. The acknowledged father of this movement is Jonh Cage [...] 14

547

O timbre torna-se uma dimensão produtiva no processo composicional da música do século vinte [...] a qualidade do som é realçada como principal elemento funcional de estruturação discursiva. A nova hierarquia alcançada pelo timbre na primeira metade do século vinte, principalmente após Varése, com suas massas sonoras e seus aglomerados e compostos tímbricos, sedimenta a idéia de uma composição construída diretamente sobre a transformação do objeto sonoro. (2005, p. 164)

EXEMPLOS A figura 1 (p 11) é a partitura da experiência em música aleatória Brilium C9, de Gilberto Mendes. Esta partitura contém sete páginas, sendo que cinco delas são instruções para sua execução. De acordo com Caznok, esta seria um exemplo de notação roteiro: Pode ou não utilizar a grafia tradicional, incluindo sinais não convencionais. Normalmente, antecede à partitura um roteiro se instruções (chamado “bula”) que detalha cada um dos sinais utilizados pelo compositor. Depois de uma fase de intensa experimentação, o tamanho das bulas era tão longo que desestimulava os intérpretes. (2003, p. 63)

Figura 1: exemplo de notação para grupo instrumental variado. Brilium C9 (1965), Gilberto Mendes, peça de estrutura aleatória

Brilium C9 foi estreada em 1965 por Ernesto de Lucca, Paulo Herculano e Pedrinho Mattar na VII Bienal de arte Moderna em são Paulo. Pode ser executada em até 12 instrumentos de timbres diferentes, com uma observação de que “instrumentos de percussão de sons indeterminados podem ser acrescentados a qualquer das versões”. Cada grupo de notas deve ser acrescido de acordo com um quadro de um relógio (Figura 1), e a execução seguindo um cronômetro a ser olhado. Quando todas as notas forem acrescidas formam-se glissandos e clusters.

548

A seguir o instrumentista deve, depois de um período de silêncio, tocar uma citação de um tema popular conhecido, mas não necessariamente o tema completo, apenas fragmentos. O compositor também dá liberdade aos intérpretes de realizar a qualquer momento um improviso “total ou unicamente rítmico” e fazer variações de fragmentação e montagem. Apenas deve “ouvir o que os outros instrumentistas realizam”. Outra referência à percussão nas instruções: “O percussionista seleciona 12 sons diferentes para substituir as 12 notas do quadro”. Também: “o mesmo executante pode gravar em fita magnética uma ou duas outras execuções e utilizá-las como acompanhamento para a execução ao vivo” Este tipo de composição valorizando a aleatoriedade e a improvisação é definida por Edson Zampronha: Na verdade, a eliminação da mediação é a ambição máxima do pensamento modernista: a anulação do hiato entre o conceber e o fazer a obra de arte, o transcender a intermediação da representação, o querer ser a própria coisa diretamente. O querer ser uma obra que é, ela mesmo, irrepetível, única, um presente absoluto. (2000: p. 117)

Figura 2: trecho da peça Memos (1978), de Willy Corrêa de Oliveira, para soprano e percussão: blocos estruturais da percussão

Figura 3: notação para berimbau utilizada por Gilberto Mendes na peça Música para Doze Instrumentos (1961)

549

Figura 4: últimos compassos de Kitsch nº 4 (1969) de Willy Correa de Oliveira

A figura 4 é um trecho da quarta das cinco peças Kitschs de Willy Correa de Oliveira. Destas peças, escritas para piano, somente a quarta utiliza percussão. É uma notação para bateria em escrita tradicional, com trechos de improviso e a seguinte instrumentação: triângulo, prato, tom-tom (agudo), caixa com cordas, tom-tom (grave), bumbo, prato do hi-hat, caixa cilíndrica do bumbo. Faz citação explícita ao Jazz: o título é Kitsch 4, jazz time. Além das citações e dos improvisos, outro aspecto em comum entre esta obra e Brilium C9, de Gilberto Mendes, (escrita quatro anos antes) é a existência de uma bula explicativa e da utilização de gravações em fita magnética. Nas instruções da partitura escrita por Oliveira “o baterista deve gravar em fita magnética sua parte, para ser usada em concerto.” O quinto Kitsch é justamente o “resultado da combinação de fragmentos dos Kitschs anteriores gravados em fita magnética” para ser montado também seguindo as instruções da bula explicativa da partitura. No final do concerto, a fita é executada depois das outras todas terem sido tocadas. O pianista então “deve se juntar à platéia e deve se aplaudir, frenéticamente, e incentivar o público a juntar-se a ele.”

BIBLIOGRAFIA ALVES, A. S. Marlos Nobre: Variações Rítmicas opus 15 para piano e percussão, uma abordagem analítica visando à interpretação. 229 f. Dissertação (Mestrado em Música)-Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. ANTUNES, Jorge. Notação na música contemporânea. Brasília: Ed. Sistrum, 1988. BAIA, S. A historiografia da música popular no Brasil. 278 f. Tese (Doutorado)Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

550

BARRETO, J. L. Percursos da percussão. In ARTIGOS MELOTECA, 2009, Lisboa. Disponível em: BARROS, A. L. F. Os manuais de orquestração do século XIX até a década de 50 do século XX e o naipe de percussão. In: CADERNOS DE COLÓQUIO, 8, nº1, 2006, Rio de Janeiro. Disponível em: BISPO, A. A. Brasil / Europa e musicologia. HULSKATH, H. (Coord.). São Paulo: Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos, 1999. BONIS, M, F. O miserere de Willy Correa de Oliveira, Aporia e Apodíctia. 163 f. Dissertação (Mestrado em Música)- Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2006. CAZNOK, Yara Borges. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Editora Unesp, 2003. CORREA, A, F. Música eletroacústica no Brasil e o pioneirismo de Gilberto Mendes. In: ENCONTRO DE MÚSICA E MÍDIA, 4, 2008, São Paulo. Anais eletrônicos...Disponível em:. Acesso em: 19 set. 2012. EVARTS, J. The new musical notation: a graphic art? In: LEONARDO Vol. 1, No. 4 (Oct., 1968), pp. 405-412 Published by: The MIT Press. Disponível em: FERRAZ, Silvio. Música e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC Fapesp, 1998. GAÚNA, Regiane. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: Editora Unesp, 2002. GIANESELLA, E, F. Percussão orquestral brasileira. problemas editoriais e interpretativos. 237 f. Tese (Doutorado em Música)- Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2009. GLOEDEN, E; MORAIS, L. Possibilidades de leituras da obra de Gilberto Mendes: A versão para 2 violões da Peça nº. 4 para piano. In: ENCONTRO DE MÚSICA E MÍDIA, 4, 2008, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: Acesso em: 19 set. 2012. HASHIMOTO, F, A. Analise musical de "Estudo para instrumentos de percussão", 1953, M. Camargo Guarnieri; primeira peça escrita somente para instrumentos de percussão no Brasil. 143 f. Dissertação (Mestrado em Música)Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Disponível em: Acesso em: 22 set. 2012.

551

IAZZETTA, F. Técnica como meio, processo como fim. In SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ, 2012, Rio de Janeiro. Disponível em: Acesso em 08 jul. 2013. KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter. Movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Música - Atravez, , 2001. LABORDA, Jose Garcia M. Forma y estrutura en La música Del siglo XX. Madrid: Gráficas Arabí S.A. 1996. LESTER, Joel. Analitic Approaches to Twentieth-Century Music. New York: W.W Norton & company, inc. 1989. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2000. MEDAGLIA, Julio. Música Maestro. São Paulo: Globo Editora, 2008. MENDES, Gilberto. Com Stravinsky em meus ouvidos rumo à avenida Nevsky. São Paulo: Edusp, 2007. ______. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/art decó. São Paulo: Edusp, 1994. MENEZES, Flo (org.). Música Eletroacústica História e Estéticas. São Paulo: Edusp, 1996.

______. A acústica musical em palavras e sons. São Paulo: Ateliê, 2004. ______. A apoteose de Schoenberg. São Paulo: Ateliê, 2002. MORAIS, R; STASI, C. Múltiplas faces: surgimento, contextualização histórica e características da percussão múltipla. In: ANNPON 2010, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: < http://www.anppom.com.br/opus/en-us/issues/16.2> Acesso em: 13 abr. 2013. NATTIEZ, Jean Jaques. The Boulez-Cage correspondence. Tradução para o inglês de Robert Samuels. New York: Cambridge University Press, 1993. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981. OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Beethoven proprietário de um cérebro. São Paulo: Perspectiva, 1979. SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Edition de Seuil, 1966. Tradução para português de Antonio de Souza Dias, Lisboa, 1996. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 1991. SILVA, L. C. Vidro e martelo. 159 f. Tese (Doutorado)- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. SMITH, A. An examination of notation in selected repertoire for multiple percussion. 122f. Tese (Presented in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree Doctor of Musical Arts) Ohio State University, Ohio, 2005. Disponível em:

552

< http://rave.ohiolink.edu/etdc/view?acc_num=osu1118639448> Acesso em: 08 jun 2013. SQUEFF Enio; WISNIK Jose Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. STONE, K. Problems and methods of notation In: PERSPECTIVES OF NEW MUSIC. Vol. 1, No. 2 (Spring, 1963), pp. 9-31 Published by: Perspectives of New Music. Disponível em: TONI, F. C. Edição crítica e genética em música. In: ANNPON 2005, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: Acesso em: 18 mai. 2013. ULBANERE, A. Willy Corrêa de Oliveira: por um ouvir materialista histórico. 142 f. Dissertação (Mestrado em Música) Universidade Estadual Paulista – UNESP, São Paulo, 2005. ZAMPRONHA, Edson, S. Notação, representação e composição. São Paulo: Anablume Fapesp, 2000. ZUBEN, Paulo. Ouvir o Som. São Paulo: Ateliê, 2005. PARTITURAS: MENDES, Gilberto. Brilium C9: formação indeterminada. São Paulo: Ricordi, 1965. 1 partitura. [7 p.]. ______. Concerto para tímpanos caixa militar e percussões: grupo de percussão. Santos [s.n.], 1991. 1 partitura [10 p.]. ______. Música para 12 instrumentos: flauta, clarineta baixo, trombone, trompete, bandolim, piano, vibrafone, bongos, berimbau, viola, contrabaixo. 1961. Santos [s.n.], 1961. 1 partitura [24 p.]. OLIVEIRA, Willy Corrêa. Memos: soprano e percussão. São Paulo: Novas Metas, 1978. 1 partitura. [18 p.]. ______. 5 Kitschs: piano e percussão.São Paulo, Ricordi: 1969. 1 partitura [15 p.]. DOCUMENTÁRIO: A ODISSÉIA musical de Gilberto Mendes. Direção e Produção: Carlos de Moura Ribeiro Mendes. Berço Esplêndido Produções: Brasil, 2005. 1 DVD, cor, 117 min.

553

ANÁLISE SHENKERIANA DO SEGUNDO MOVIMENTO DA SÉTIMA SINFONIA DE BEETHOVEN (TEMA A) Ricardo De Alcantara Stuani [email protected] UNESP/Instituto de Artes Resumo: Este trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise do Tema A do Segundo Movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Esta análise terá como método as idéias do teórico Heinrich Shenker, que acreditava que os movimentos de uma obra tonal podem ser compreendidos partindo da composição à redução de sua estrutura fundamental, utilizando gráficos que representam os planos frontais, intermediários e o plano fundamental da partitura (Bortz, 2013). Palavras-chave: análise musical, análise shenkeriana, Beethoven, Sétima sinfonia.

INTRODUÇÃO A Sétima sinfonia de Beethoven foi escrita entre 1811 e 1812 e teve a sua estréia em um concerto de caridade aos soldados feridos na batalha de Hanau, Viena, durante as guerras Napoleônicas, sob a regência do próprio compositor. Escrita para orquestra clássica, o segundo dos quatro movimentos é o mais conhecido, na tonalidade de lá menor. Embora seja o movimento lento da sinfonia, Beethoven marca o andamento como allegretto, caracterizado por um ostinato rítmico quase de uma marcha (Trigg, 2009). Para esta análise utilizaremos a redução para piano de Lizt, do conjunto total das reduções das nove sinfonias de Beethoven:

554

Figura1: Compassos 1 a 50 da redução para piano de Lizt, 1838.

O trecho a ser analisado será, portanto, do início da partitura até o compasso número cinqüenta, primeiro e segundo tema do que entendemos como parte A da composição. Esta parte A pode ser classificada como um tema com variações.1 Depois de uma acorde de La menor na primeira inversão que abre este movimento, o tema de dezesseis compassos (com repetição dos últimos oito) é Técnica de composição que consiste em alterar o mesmo material a cada repetição. É uma forma musical na qual a idéia musical fundamental ou tema é repetida de forma alterada ou acompanhada de maneira diferente. (CUETO, 2011) 1

555

apresentado. Este material é em seguida re-exposto quatro vezes com a mesma estrutura harmônica e algumas variantes: timbrísticas e texturais (começando em pianíssimo pelos violoncelos e contrabaixos, aumentando o volume e a densidade orquestral a cada exposição ao acrescentar os naipes de viola e violino, madeiras e por fim metais e tímpanos em diferentes registros). Depois do clímax (página 3 da grade orquestral) temos a parte B, em La maior contrastante, outras variações subseqüentes, a coda e a conclusão, que não serão os objetos deste presente trabalho. Este processo de construção econtrado nas obras de Beethoven é comentado por Menezes: “[...] no legado beethoveniano podem ser ouvidos processos eminentemente direcionais envolvendo ouros parâmetros de composição, como o registro das alturas – um pensamento que antecipa em mais de um século o serialismo integral.” (2013, p. 75) Observando a estrutura harmônica aparentemente simples desta parte A, lembramos do que sugere Adorno sobre as sinfonias de Beethoven: [...]são mais simples que a música de câmara e justamente isso permitiu aos numerosos ouvintes se encontrarem no interior de seu edifício formal. [...] objetivamente, as sinfonias de Beethoven constituíam discursos populares proferidos à humanidade, sendo que, ao exibir a esta última a lei da sua vida, tencionavam conduzi-la à consciência inconsciente daquela unidade que, de outro modo, continua velada a aos indivíduos em sua existência difusa. (2009, p.201)

Willy Corrêa de Oliveira em seu livro Beethoven Proprietário de um Cérebro comenta algumas regras da sintaxe do discurso beethoveniano como sendo “inter relações das essências da linguagem, combinatórias dos parâmetros do som: a intensidade e o timbre, ambos com força a movimentar o discurso tonal, a instaurar uma nova realidade musical” (1979, p.143). O que lhe importava era sintagmatizar o sistema tonal veiculando – conjuntamente – outras classes de parâmetros acústicos: combinatórias dos parâmetros de som; inter-relações (orgânicas) de estruturas motívicas, gradações a níveis diversos de densidades, variações sobre o vetor tonal. (ibidem, p.15)

ANÁLISE HARMÔNICA E TEMÁTICA Uma primeira redução da partitura a uma redução em acordes2 nos permite fazer uma análise dos caminhos harmônicos (Figura 2, p.5). O primeiro tema apresentado a partir do terceiro compasso pode ser visto na Figura 3 (p. 6).

Tradução livre de chordal reduction: essencialmente a partitura com as notas fora da harmonia fundamental retiradas. (NEUMEYER,1992, p.3) 2

556

O segundo tema pode ser interpretado como sendo uma variação do primeiro, construído a partir de contrapontos e caminhos cromáticos:

Figura 2: redução em acordes dos compassos 27 a 42 da partitura.

Esta construção harmônica é a base estrutural desta parte A, a partir do compasso 27. A relativa maior (C) é alcançada no compasso 34 a partir de um acorde de G7, como observado na figura 2. Na região da dominante, compasso 36, B dominante de E (dominante da dominante), descendo a voz do contralto cromaticamente para a terça menor de Bm e realizar a cadência II- V- i, que é

557

então reiterada na repetição i- V- i. A simetria dos pequenos motivos melódicos3 se faz de quatro em quatro compassos.

Figura 3: primeiro tema apresentado no início da peça (exposição). Notar a simetria dos 24 compassos em pequenas frases de 4.

O que entendemos como segundo tema será o material de construção das outras variações (sendo ele próprio uma variação do primeiro tema), um contraponto ornamentado por caminhos cromáticos formando uma estrutura motívica que será reinvocada em diferentes contextos no decorrer desta parte A.

3

De acordo com a terminologia de Shoenberg (2008).

558

Figura 4: segundo tema.

GRÁFICOS SHENKERIANOS O primeiro gráfico a ser analisado será o da linha do baixo4, sendo que é o primeiro passo para que as funções harmônicas sejam interpretadas e a base para os outros gráficos aqui apresentados:

Figura 4: redução da linha do baixo.

As notas brancas são estruturais, as pretas são de menor importância e as sem haste são subordinadas. O segundo grau aqui é representado como subordinado ao primeiro grau, como sendo um caminho para a cadência final V7 i. Como Shenker se ocupou apenas da análise da música tonal, é importante deixar os gráficos visualmente claros de modo que “a dependência da fundamental (a tônica) possa ser percebida sem dificuldades.” (SCHOENBERG, 1999, p.69). As repetições dos últimos 8 compassos são omitidas. O segundo gráfico seria o plano frontal, o foreground. O primeiro plano frontal aqui exemplificado será o da exposição do tema, na redução para piano em clave de fá, no gráfico com a melodia e o contralto transpostos para clave de sol.

4

Tradução livre de bass line sketches (NEUMEYER, 1992, p.6)

559

Figura 5: plano frontal, ou foreground, da exposição do tema, compassos 3 a 24 da partitura.

O terceiro gráfico será o plano frontal do segundo tema, já mais ornamentado:

Figura 6: plano frontal ou foreground do segundo tema.

Aqui vemos as notas estruturais da melodia, os graus descendentes 5-4-32-1, assim como a sensível do acorde de dominante para a tônica. Também o movimento cromático de ré# a dó natural a partir do acorde de dominante da dominante (B), no compasso 36. É possível visualmente perceber a direcionalidade melódica ascendente e descendente. O terceiro gráfico é o plano intermediário, ou middleground:

560

Figura 6: plano intermediário ou middleground.

Neste gráfico já existem menos notas estruturais no baixo e menos densidade melódica, o que nos leva finalmente ao terceiro gráfico, o plano estrutural, ou background da partitura:

Figura 7: plano estrutural, ou background.

CONCLUSÕES Notamos que o tema na sua primeira exposição e sua primeira variação aqui analisada contém pequenas diferenças harmônicas que merecem ser discutidas. Na apresentação inicial do tema, Beethoven evita sistematicamente o fá natural, entidade básica da afirmação do lá menor (II meio diminuto). Usando o fa# como subida melódica e usando o si sempre com a quinta justa ele reforça o

561

caráter marcial da peça, flertando com o lá maior (ré maior e si menor com quinta justa) ao evitar o cromatismo da descida da menor harmônica (fá natural - mi), que soaria pouco viril ou pouco marcial. O baixo do compasso 7 é um lá quinta do acorde de ré. O fa é Sustenido. Um IV- III se pensarmos em lá menor e um arquetípico II- I 6/4 se pensarmos em dó, para onde ele quer ir. Por isso o dó soa repouso mesmo sem o sol com sétima (V de dó). Já na primeira variação ele usa o sol com sétima porque a sétima seria o fa natural que aqui ele já não evita neste caminho ao dó maior. Como em Beethoven tudo tem uma origem e um fim, o I 6/4, acorde de início do movimento (lá com quinta no baixo) tem embutido um movimento I 6/4 - V - I, sua simples menção praticamente já soa uma cadência perfeita e por isso ela não precisa estar explícita. Para Shenker provavelmente este acorde seria apenas prolongamento do La menor inicial e por isso não entra nos gráficos.

BIBLIOGRAFIA ADORNO, W. T. Introdução à sociologia da música. São Paulo, Editora Unesp, 2009. Bortz. G. Decodificando níveis estruturaisno solfejo melódico tonal. Anais do VI Simpósio de Cognição e Artes Musicais – Simcam 9, 2013. CUETO, Amancio Jr. Tema com variações. Disponível em: acesso em: 12 jul. 2013. FORTE, A. & Gilbert, S.E. Introduction to schenkerian analysis. New York: Norton, 1982. MENEZES, F. Matemática dos Afetos. São Paulo, Edusp, 2013. NEUMEYER, D. & Tepping, S. A guide to schenkerian anaylisis. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1992. OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Beethoven proprietário de um cérebro. São Paulo: Perspectiva, 1979. SALZER, F. Structural hearing: Tonal coherence in music. New York:Dover, 1952. SCHOENBERG, A. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 1991. ______. Harmonia. São Paulo: Editora Unesp, 1999. TRIGG, R. Set Works Analyses. GCSE Music specification, 2009, disponível em: < www.scribd.com/…/140422312/Gcse-Mus-Revised-Support> acesso em: 24 jun. 2013. VIDAL, I. Os sons visitantes. Revista ArteUnesp, v. 15, 2002. Partituras

562

BEETHOVEN, L.V. Symphony Nº7, Op. 92, Orquestra. Viena, 1812, domínio público, disponível em: < http://imslp.org/wiki/Symphony_No.7,_Op.92_(Beethoven,_Ludwig_van)> ______. Sinfonia Nº7, Op. 92, Arranjo para piano de Franz Lizt, 1838, domínio público, disponível em: < http://pt.cantorion.org/music/591/Sinfonia-n.%C2%BA-7(Symphony-No.-7)-Piano-reduction>

563

SOBRE TRAGÉDIA, MÍMESIS, DEVIR-ANIMAL E XAMANISMO. REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS MUSICAIS E MITOS A PARTIR DE O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA. Marcelo Villena [email protected] UFMG Resumo: Este texto forma parte de pesquisas pessoais no âmbito da composição musical, dentro de um contexto de captura de sons do meio ambiente. Reflete preocupações estéticas em relação ao uso destes sons para se fazer música. A partir da leitura de Nietzsche e Deleuze-Guattari, procuram-se formas de aproximação entre o pensamento e as práticas musicais ocidentais com o pensamento e as práticas musicais xamânicas ameríndias, uma aproximação possível pelo afastamento do racionalismo nestes autores. Desta maneira, intuo finalmente para meu trabalho de compositor um caminho alternativo à mímesis tradicional europeia, em que o foco está na representação de eventos do mundo real por meios artísticos, um caminho que aponta à procura pelo exercício artístico de se autotransformar pela observação e assimilação do outro. Palavras-chave: Tragédia. Mimesis. Nietzsche.

1870. Guerra Franco-Prussiana. “Em meio aos estrondos da batalha de Wörth” Nietzsche medita sobre um problema específico da história da arte, uma questão que lhe parece mal explicada pela historiografia da época. Empregando procedimentos de investigação que devem muito à filologia,1 presente também em outras obras suas como a Genealogia da Moral, indaga-se sobre a origem da tragédia ática e sobre a função do coro na mesma, tecendo conjecturas. A investigação de um tema aparentemente distante não deixa de atender à necessidade de encontrar soluções a problemáticas artísticas do seu tempo. O modelo grego é compreendido por Nietzsche como um ponto de referência na procura de uma profundidade metafísica na arte, vista por sua vez como espaço privilegiado para desenvolver potencialidades humanas. Em sua opinião, a cultura clássica grega foi fruto de um povo que tinha uma compressão profunda desses problemas metafísicos e usava a experiência estética como forma de ir além, desenvolvendo uma atitude psicológica corajosa em relação à vida. Podemos ver em diversos escritos do autor seu elogio à atitude dos helenos perante a vida,

Filologia. s.f. Estudo de uma língua através de seus documentos escritos, que visa não só à restauração, fixação e crítica dos textos para o conhecimento do uso linguístico e sua história, mas também à compreensão de globalidade dos fenômenos culturais, especialmente os de ordem literária, a que ela serve de veículo. Dicionário on line de português. Disponível em: . Deduzo que Nietzche emprega um método derivado dessa atividade porque era a cátedra que exercia na Universidade de Bassiléia. 1

564

cara a concretização dos desejos e avessa a qualquer tipo de solução ascética. 2 Os gregos são para Nietzsche o povo que viveu a vida mais plenamente, assumindo os riscos derivados das suas paixões. Partindo deste princípio, a investigação sobre a tragédia é motivada pela necessidade de compreender a preferência estética helênica, aparentemente contraditória, pela “fatalidade”. Qual a origem (o motivo) desse “gosto” num povo que enfrentava e gozava a vida com plenitude? Haveria um pessimismo oculto no pensamento dos gregos? Este interesse em descobrir o “fundo psicológico” da preferência estética grega pela tragédia deixa transparecer um ponto em comum entre Nietzsche e Platão. Ambos compreendem a arte (e particularmente a música) como um mecanismo de transformação social. Na Republica, Platão apresenta a ideia de que para termos uma sociedade “justa” é necessário um trabalho de criteriosa “seleção” dos mitos que devem ser contados às crianças e do tipo de música que deve ser ensinado aos jovens, banindo da hipotética República a ser instituída a partir do saber filosófico todo tipo de influência moralmente perniciosa. Os mitos devem destacar a “elevação” moral de deuses e heróis, a música deve estimular um ethos (caráter) sóbrio3 e heroico. Discute-se, desta maneira, a necessidade de evitar certos procedimentos técnico-musicais: uso de escalas, instrumentos etc. Apesar de concordar com Platão na influência da música e dos mitos na formação do caráter de um povo, Nietzsche aponta para o contrário: a música deve trazer a tona o espírito dionisíaco, a música e a tragédia devem combater o poder “decadente” que a moral e a racionalidade inserem numa cultura. É neste sentido, de apreciação de aspectos musicais e na dimensão trágica, que a figura de Wagner é vista como uma porta entreaberta para o ingresso de Dionísio em cena. Nietzsche deposita (projeta) todas suas esperanças em relação ao gênero dramático no compositor alemão, vislumbra a oportunidade latente de resgatar o drama antigo, por considerar que a música de Wagner apontava em tal sentido. Além das temáticas mitológicas empregadas, os recursos técnicos eram condizentes: harmonia cromática4 e organização formal orgânica, fluída, sem cortes seccionais claramente definidos.5 Nietzsche critica permanentemente em sua obra o controle do desejo como solução, pano de fundo do pensamento hinduísta, budista e principalmente o cristão. A vida deve ser vivida em plenitude. Nega a possibilidade de esperar por uma recompensa futura num mundo imaginário (cristianismo), assim como atingir a felicidade pelo controle (e supressão) dos desejos e o ego (budismo). 3 Lembremos que Dionísio é o deus do vinho. 4 Escritos gregos do período clássico (Platão, por exemplo) nos informam do uso extensivo do gênero cromático nos ditirambos dionisíacos e a tragédia. A música grega era dividida em três gêneros (três formas diferentes de tocar): diatônico, cromático e enarmônico. Cada um desses estilos fazia uso de uma escala musical diferente. O gênero diatônico apresentava uma escala semelhante à nossa escala diatônica, já o gênero cromático e enarmônico, intervalos de menor tamanho no início de cada tetracorde, incluindo microtons. (Ver a História da Música de Roland de Candé). Por esse motivo, a música do ditirambo incluía a flauta em detrimento da lira (própria da epopeia), já que só com a flauta era possível executar essa microtonalidade. Atualmente, 2

565

Essa forma de composição se opunha à hegemonia da ópera italiana “por números”, em que o público aguardava confortavelmente a aparição de situações pré-determinadas: coro inicial, cavatina, cavaleta, cena da loucura etc. Wagner confrontava a previsibilidade do espetáculo, levava o ouvinte a uma expectação constante mais de acordo com a dinâmica de um ritual.6 A escolha de Wagner por Nietzsche, como uma sorte de “arauto” de novos tempos áureos, é uma forma de mostrar sua oposição aos procedimentos da tradição italiana da ópera. Nascida como forma de “resgate” da tragédia ática, a ópera italiana com sua base no stilo rappresentativo, acabou (na visão de Nietzsche) reforçando o aspecto racional na arte, alienando-a do mito. Por este motivo, radicalmente oposto ao de Platão, Nietzsche opõe-se à mímesis. A música não deve servir para fins representacionais. A música não deve “ilustrar” nada. A música deve estar a serviço de “embriagar” os fieis dionisíacos. Deve produzir o efeito psicológico de diluir as formas (as aparências) e manifestar de alguma maneira o inexplicável. Em que aspectos a música de Wagner “anunciava” o renascimento da tragédia na visão de Nietzsche? Há o foco no aspecto psicológico. O caráter psicológico da obra grega pode ser vislumbrado pelo uso que a psicoanálise faz dos seus personagens (e da mitologia em que foi embasada) para definir comportamentos patológicos. O ritmo teatral wagneriano é carente de ação, se comparado com a ópera italiana, um estudante de cinema poderia defini-lo como “minimalista”: a ação não é externa, acontece na “alma” do personagem.7 Nietzsche aponta essa característica na tragédia ática, com seus longos monólogos que expõem as transformações psicológicas das personagens. Mas o que entendia Nietzsche que estava em jogo na personagem do Teatro Grego, principalmente se considerarmos os pesquisadores mexicanos (Gonzalo Camacho, por exemplo) observam o uso de microtonalidade em rituais astecas, associado-a à procura de estados alterados de consciência que permitiriam à “visão” das entidades míticas. 5 O tratamento da forma por Wagner é objeto de crítica de Stravinsky na sua Poética Musical, justamente pela falta de seccionamento de partes, pela sua forma fluída. Empregando a terminologia de Deleuze e Guattari poderíamos falar de uma vontade de territorialização em Stravinsky e de desterritorialização em Wagner. Porém, embora haja uma tendência geral ao corte definido na estruturação musical stravinskiana e uma exploração das possibilidades das “bordas” (e a dinâmica da transformação contínua) em Wagner, devemos salientar que os problemas musicais são mais complexos. É possível apontar em Stravinsky uma ordem externa apolínea que contém por vezes uma expressão dionisíaca (na Sagração, por exemplo) e no caso de Wagner o poder simbólico dos leitmotiv podem ter uma função de ritornello territorializante, embora sempre apresentando uma nova configuração desse território. 6 É rara a constatação de rituais com forma pré-definida, sobretudo quando o ritual acontece a partir da presença de entidades. A sequência de eventos no rito dependerá das ações executadas pelas próprias entidades. 7 É evidente que a ópera italiana apresenta momentos pouco dinâmicos, mas é possível detectar uma trama mais “externa” que na ópera wagneriana. Um exemplo disso é a cena de La Traviata que mostra o primeiro encontro entre Germont (pai) e Violeta. Germont passa em questão de minutos da rudeza inicial às “lagrimas de crocodilo” com que tenta persuadir Violenta a abandonar o filho (ária Pura siccome um angelo).

566

protagonistas? Neste ponto devemos observar a genealogia que o filósofo deduz, em que o papel do coro estava longe de ser irrelevante. O destaque nietzscheano ao avaliar da tragédia, repetimos, recai no poder da música como forma de “trazer” ao espectador a visão do mito, da entidade, a música como poder catalisador de emoções coletivas. Não é estranha a nós a experiência coletiva produzida pela música: raves, concertos de rock, carnaval. As pessoas são tomadas de um sentimento coletivo comum, tem-se a sensação de uma liberação das barreiras corpóreas, de se “fundir” com o outro. Essa percepção por Nietzsche, da música como “linguagem universal”, a faz associar, no contexto grego, a Dionísio, enquanto que o deus solar, Apolo, é relacionado às artes visuais. O apolíneo é a ordem, a forma, a visão estática do sonho, a contemplação, as artes plásticas, o Principium Individuationis. O dionisíaco é o caos primordial, a expressão, a visão alucinatória, a dança, a música, o Uno Primordial. 8 Essa divisão surge do material construtivo próprio de cada arte. A pintura e a escultura estimulam uma sensação de quietude, ordem. São contidas dentro de um objeto palpável. Já a música é incorpórea. É uma onda transmitida no ar, que transpassa a matéria. É algo que está em processo, em transformação, em devir. Por esse motivo talvez a música seja o veículo primordial dos ritos. Ela é a que invoca as entidades. Ela catalisa o transe. Este caráter da música é o que Nietzsche identifica na tragédia e pelo qual toma partido. O coro de sátiros é compreendido como um conjunto de pessoas em transe místico, em devoção ao deus, participando de uma emoção única, integrado metafisicamente a uma força essencial, unificadora, da natureza. Diante desse Uno Primordial o fato de sermos divididos, seres individuais, é visto como uma limitação. No ditirambo, a experiência coletiva ativada pela música possibilitaria restituir momentaneamente essa unidade entre individuo e natureza. Devemos ter em mente essa ideia dos limites, simbolizada por Apolo, enquanto que Dionísio (e o poder da música) simboliza o excesso, o transbordar. Poderíamos acrescentar: toda sociedade tem leis, que limitam as ações humanas. O ser dionisíaco, então, pode ser definido como um transgressor. E é nesse sentido que Nietzsche compreende os protagonistas das tragédias. Ao ser acrescentados papéis ao coro báquico (único elemento do rito original) o personagem deveria ser necessariamente um transgressor, uma pessoa que ia além dos limites. Ora, toda transgressão cria uma ruptura no equilíbrio da vida civilizada (humana). Nietzsche reforça o caráter “bárbaro” de Dionísio: ele é estrangeiro, 9 “selvagem”, ele é louvado por seres com características animais. O Uno Primordial é o tema central do livro A experiência interior de Georges Bataille, quem confessa que ficou tentado de intitulá-lo A experiência mística. A decisão final apontou a não desestimular sua leitura por pessoas avessas a dogmas religiosos. 9 Os gregos consideravam os estrangeiros bárbaros, não civilizados. 8

567

Ainda hoje associamos o animal com atos incomuns tanto positivos como negativos. Essa força animal, no seio da sociedade “civilizada” e “racional” cria conflitos. Por isso a personagem a se “manifestar”, como entidade divina no rito dionisíaco deveria ser trágica, criadora de conflitos. Nietzsche entende que o personagem foi criado como “uma máscara do próprio deus Dionísio”, que é invocado pelo coro. Ainda: é uma visão alucinatória do próprio coro, que transmite suas emoções à plateia. Mas onde estaria o coro de sátiros no drama wagneriano? Na orquestra.10 A intuição nietzscheana em relação à tragédia leva a refletir sobre relações possíveis com outras práticas míticas e musicais. Seria o ditirambo dionisíaco uma prática xamânica? Para começar, vamos deter nossa atenção numa forma de xamanismo mexicano, o nagualismo, avaliando duas visões diferentes sobre esta prática: Carlos Castaneda e Armando Carranza. Um primeiro olhar nos faz intuir duas “escolas” diferentes nos supostos processos de aprendizado dos autores.11 A “escola” de Castaneda parece conduzir ao dualismo metafísico da relação apolíneo-dionisíaco. A “escola” de Carranza aponta para as ligações do mito dionisíaco com o devir-animal. Castaneda refere-se ao seu aprendizado sobre os conceitos12 de tonal e nagual no livro Tales of Power.13 O seu “benfeitor”, o nagual (líder de grupo de feiticeiros) Don Juan Matus, apresenta intelectualmente os conceitos pacientemente, por primeira vez após anos de educação sistemática para desenvolver o cuidado do primeiro (o tonal) e a aproximação gradual ao segundo (o nagual). O tonal é definido como a “descrição do mundo”, uma força integradora do ser que age por meio da linguagem, do aprendizado sociocultural. O tonal define tudo aquilo que pode ser posto em palavras. O nagual, em contraposição, é tudo aquilo que não pode ser explicado. Só pode ser sentido. É uma força que “age”, que o feiticeiro aprende a usar em seu proveito mas, se mal acessada, pode gerar a morte do praticante. O tonal, tal qual Apolo, é o que nos faz “sólidos”, o que confere “sentido” ao mundo. É a descrição “organizadora” do caos. É o que possibilita a vida em sociedade. Sintomaticamente, é relacionado com a “razão”. O nagual é a “porta para o infinito”, a força cósmica, inexplicável, que nos conduz a inconsciência da individualidade, nos leva a unidade do Cosmo

Incorporo essa ideia proposta pela professora Rosângela de Tugny em aula na disciplina Estudos sobre músicas e sociedades (UFMG). 11 Não interessa particularmente conferir a veracidade dos relatos dos autores, que podem ser objeto de suspeita, mas a possibilidade de suas discussões fazerem eco a práticas xamânicas mexicanas reais. 12 Ou seriam “agenciamentos”, no sentido conferido por Deleuze/Guattari? 13 A tradução literal seria “Contos de poder”. Foi traduzido para o português como Porta para o 10

infinito.

568

e nos torna consciente da fragmentação do Ser.14 O nagual não pode ser “acessado” pela razão. Se Castaneda apresenta o dualismo tonal-nagual de uma forma que poderia ser vinculada aos conceitos de apolíneo e dionisíaco, Carranza, em Nagual, tu animal interior, apresenta a ideia de que ambos os termos se referem a entidades animais, destacando uma hierarquia em que o nagual seria o espírito-animal principal e o tonal, o secundário. O nagual é depositário da força vital do homem durante sua existência. É o ímpeto que faz o homem agir no mundo. Se o homem tiver um animal fraco suas ações serão fracas, se o animal for forte suas ações terão potência. Porém, não deve se permitir que o nagual “transborde”. Se o nagual “tomar o comando”, a pessoa desintegra-se, é consumida pelo fogo interior, desaparecendo fisicamente da face da terra: um destino trágico dionisíaco. Pode-se vislumbrar no rito dionisíaco original, composto somente pelo coro, um rito xamânico? Mesmo que respondêssemos afirmativamente,15 o processo histórico da tragédia ática, como apresentado por Nietzsche, nos mostra um afastamento gradual desse rito original representado por três estágios vinculado a três autores emblemáticos de cada período. O primeiro período é vinculado a Ésquilo (525/524 a.C. – 456/455 a.C), autor que desenvolve seus personagens dentro do modelo que Nietzsche considera a “máscara dionisíaca”, isto é, menos refinados na definição dos caracteres psicológicos, menos detalhados nas motivações de suas ações, menos racionais. O segundo período é associado a Sófocles (497/496 a.C. – 406/405 a.C.), que desenvolve personagens mais definidos psicologicamente, mais “humanos” e menos míticos. Finalmente Eurípides (480 a.C. – 406) é compreendido por Nietzsche como o artífice da decadência da tragédia ática, que passa a ter um predomínio de recursos dramatúrgicos racionais (o uso de um narrador que relata os acontecimentos prévios à história, para ajudar na compreensão) e efeitos cênicos que auxiliam a trama (o Deus ex máquina retomado na ópera francesa do século XVII).16 Surpreende, de qualquer forma, o vínculo pessoal entre Eurípides e Sócrates referido por Nietzsche. Eurípides é descrito no Nascimento da Tragédia como um artista vinculado à prática da mímesis, sendo que nos textos de Platão, nos diálogos, Sócrates expõe a inconveniência desse procedimento. Podemos suspeitar que Nietzsche passa por

A experiência final do livro, o salto ao abismo é relatado como uma desintegração da matéria corporal de Castaneda, que enxerga seus diversos “eus” como micropartículas suspensas no ar. Deleuze e Guattari apontam o vínculo em experiências semelhantes de outros livros de Castaneda com o conceito de devir-molécula. 15 Vale a pena conferir a cena de sacrifício do início do filme Medeia do diretor italiano Pier Paolo Pasolini, que não deixa de ser uma hipótese do que poderia ser um ritual grego pré-clássico. 16 O Deus ex máquina é um dispositivo técnico-cênico que faz descer com maquinário um deus do Olimpo no palco para resolver a trama da peça. 14

569

alto esse dado para centrar a discussão na hipótese de um apoio socrático ao artista “racional” que Eurípides encarnava. Esse afastamento gradual do mito original dionisíaco em direção a uma arte racional marcou, segundo Nietzsche, os rumos da arte ocidental. A força dionisíaca da música, aliada a um mito para ativar a consciência no Uno primordial, fica restrita a espaços, situações e momentos específicos da história da arte: as festas de santos no meio rural (que perpetuam antigos ritos pagãos), o coral Luterano e a arte vocal sacra de Palestrina.17 Só devemos lamentar a falta de atenção dada pelo autor a diversos ritos em países não europeus que poderiam servir de exemplo de arte dionisíaca ou poderiam tornar-se modelos-base para tal. Devemos esperar Debussy para encontrar um olhar europeu livre de preconceitos estéticos em relação às músicas do Terceiro Mundo. Uma boa disposição para olhar as minorias, isto é, o outro, o diferente em relação ao padrão hegemônico na ordem mundial, pode ser percebida na leitura de Gilles Deleuze e Felix Guattari.18 Em Devir animal, devir intenso, devir imperceptível... é construído um corpo conceitual caro ao dionisíaco nietzscheano,19 porém, preocupado pelo que este tem a nos dizer em relação às minorias. Quer dizer, entende que a força dionisíaca na nossa sociedade reside exatamente nas minorias, talvez pela possibilidade que estas têm de agenciar a dissolução de uma ordem política de caráter apolíneo. Desta maneira descrevem os devires: devir-mulher, devir-animal, devir-criança. Assim como Nietzsche em relação à força dionisíaca, Deleuze e Guattari consideram a musica a arte privilegiada para possibilitar esses agenciamentos. 20 O repertório musical é cheio de devires-mulher, devires-criança, devires-pássaro.21

A música de Palestrina tem características que a tornam semelhante à música de Wagner na audição. O seccionamento de partes é feito de maneira tão delicada que cria a sensação de um fluir contínuo, deixa suspenso no ambiente da igreja, de ressonância lenta, o entrelaçamento de vozes da textura contrapontística. 18 Para os autores, minoria é todo aquele agente que está em relação hierárquica inferior no jogo de poder mundial, pelo menos até a escrita de seu livro: mulher, qualquer etnia/cultura que não a branca/europeia, criança, animal etc. 19 A procura de uma forma de conhecimento além do racionalismo surgido da dialética platônica, o hibridismo, a percepção de qualquer fenômeno como objeto de mutação contínua, a crítica do conceito de subjetividade etc. 20 Deleuze e Guattari observam que o poder persuasivo da música sobre as pessoas é tal que corre sérios riscos de tornar-se a “arte fascista” por excelência. Esta observação em relação ao poder do som condiz com as opiniões de Murray Schafer sobre seu uso como ferramenta totalitária em Voices of Tyranny: Temples of silence, apesar do engajamento “a favor de Apolo” que este autor explicita em The tunning of the World e seu projeto platônico em relação às paisagens sonoras. Pode se objetar que Schafer (como feito pelo antropólogo espanhol Miguel Alonso) quer decidir por sua própria conta (e da sua equipe de pesquisadores) o tipo de relacionamento que os cidadãos devem ter com o som ambiental. 21 Dois exemplos ilustrativos: o uso de canto de pássaros na obra de Messiaen e os típicos travestimenti nas óperas. Em La Calisto (Francesco Cavalli), Júpiter (baixo) se disfarça de mulher para conquistar a ninfa, cantando em falsete. Vídeo disponível em: 17

570

Mas se na música europeia esses devires não parecem ter um papel central no sistema (não são assunto de discussão teórica corrente), na música indígena brasileira podemos ver repertórios inteiros baseados na procura de se tornar o outro. Quando perguntados sobre a autoria dos cantos os índios sempre mencionam os espíritos animais como aqueles que ensinaram as canções: cantos do povo-espírito-gavião, do povo-espírito morcego22 etc. As canções são “recebidas” pelos pajés (xamãs) que tem a capacidade de “ouvir” esses espíritos, já que desenvolvem a capacidade de viver nos dois mundos. Em vez do conceito de autoria comum na cultura europeia, a ideia é de que a canção é sempre “recebida” de outro povo, seja uma tribo vizinha, seja um povo-espírito. Anthony Seeger (2004) menciona três tipos de repertório nos Suyá (Mato Grosso): um repertório antigo de origem desconhecida, o repertório aprendido com outras tribos e o repertório aprendido dos espíritos dos animais. Aparecida Vilaça (2000) reforça a ideia de que esse procedimento faz parte da concepção do mundo xamânica, em que há uma constante procura por se transformar no outro, uma procura, talvez, por outros modos de percepção, outros modos de conhecimento do mundo. Dessa maneira, segundo a autora, não haveria conflito entre a vida social tradicional na tribo e a incorporação de modos de vida dos brancos. Se for possível ser homem e bicho ao mesmo tempo, por que não seria possível ser índio e branco ao mesmo tempo? Outro aspecto na música indígena brasileira é a associação entre música e imagem que pode ser vinculado a hipótese de Nietzsche de que a música, no ditirambo dionisíaco permitiria que os devotos tivessem a “visão” do deus. Rosângela de Tugny refere a associação direta que os maxacali fazem entre as canções e imagens. Desde o primeiro canto transcrito, foram produzidos desenhos que entendo como cantos-imagens. Sempre que os reproduzia e levava às aldeias, percebia as mulheres e outros homens cantando apontando detalhes das imagens, e não as palavras. (TUGNY, 2009).

Isto é, mesmo tendo recebido alfabetização (sabendo o que significavam as palavras no papel) a tendência era sempre apontar a imagem. Podemos imaginar que nos códices astecas, feitos de imagens, não de palavras, os desenhos estivessem talvez associadas a cantos? Uma hipótese audaciosa demais? Quiçá. Mas se observarmos as referências constantes que os cronistas espanhóis do século XVI23 fazem à assombrosa memória dos nobres mexicas e tlaxcaltecas durante o processo de evangelização e a capacidade que tinham de “declamar” Além dessas atitudes explícitas há inúmeros casos mais sutis, onde pode se perceber devires de forma mais velada. 22 Repertórios maxacali. (Tugny, 2009 e 2011). 23 Todorov (1982).

571

trechos inteiros da sua história é difícil não relacionar essa memória com a música, já que estudos na área da cognição mostram seu uso como forma de reter um texto. 24 Voltemos ao ritornelo: seria o ditirambo uma forma derivada de um rito xamânico? Alguns elementos, pelo menos, parecem semelhantes: música como forma de ativar a imagem da entidade, dissolução das formas, estado de “embriaguez” a partir do estímulo sonoro, devir-animal. Esse devir-animal, que a meu ver estava em jogo em uma experiência pessoal de composição, na criação e montagem de uma performance sonora, feita sem o conhecimento desse conceito, mas que neste momento me parece relacionada por sua intenção. Durante meu trabalho de mestrado compus uma proposta para performance que continha a meu ver essa ideia implícita. A espera silente foi concebida para um conjunto heterogêneo (violino, violoncelo, flauta transversal, violões e vozes) combinando aspectos determinados e indeterminados. Isto é, formalmente foi organizada através de uma sequência pré-determinada de momentos musicais de caráter diverso. Internamente, estas partes apresentam um catálogo de ações musicais que os intérpretes executam em total liberdade. Os intérpretes, no momento da performance, decidem a ordem em que executam as ações e o que é ainda mais importante: o silêncio entre as ações.25 A modo de sugestão, durante o processo de montagem para a estreia, enviei um e-mail para os intérpretes. Recorto a passagem que aqui interessa: Tirem qualquer tipo de vibrato no violino e no cello. A expressão dos bichos que estamos "representando" não tem nada a ver com o lirismo implícito no vibrato. A expressão dos bichos é crua e tem relação com funções biológicas. Eles procuram beleza, também... sem dúvida... Imaginem... cada gesto pode ser um chamado, uma marca de território, um canto de acasalamento, uma ameaça a um inimigo... ou simplesmente o prazer da "permanência", algo que os bichos fruem muito mais do que nós... já viram um gato "curtindo" o pôr-do-sol?? Uma imobilidade de transe...

Só “desafina” no texto a inclusão da palavra “representando” (o trabalho geral de pesquisa estava imbuído do conceito de mímesis), mas cabe destacar seu uso entre aspas, indeciso sobre sua validade. Considero todas as outras sugestões direcionadas a trabalhar o devir-animal. Minha ideia era que os intérpretes refletissem sobre a sensibilidade auditiva própria de um animal na mata. Que O neurocientista Oliver Sacks, em Alucinações musicais (2007) traz inúmeros exemplos disso. Num deles, relata que um professor ficou surpreso ao conferir uma prova e ver que uma aluna (na qual ele tinha extrema confiança) parecia ter “colado”, já que reproduzia trechos integrais das suas próprias falas. Consultando a aluna, ela explicou que decorou os trechos colocando melodias. O professor relata que a aluna cantou as melodias: “tinha uma bela voz e cantava afinado”. 25 Destaco a palavra “entre” pela sua relação com a ideia de devir como “borda” como algo que está “entre” partes heterogêneas. A performance destaca esse silêncio “entre” as ações no título: a intenção final é que os intérpretes e o público percebam o “silêncio”, isto é, a paisagem sonora da sala de concertos. 24

572

aproveitassem a oportunidade para desenvolver outro procedimento de interpretação derivado da observação da natureza. Não “imitação”, mas a observação e incorporação de uma atitude calma e atenta em relação ao entorno, que a meu ver demonstra um aspecto de superioridade dos bichos sobre os homens, um exercício de se transformar no outro, para ampliar os parâmetros de percepção e entendimento do mundo.

REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. La experiência interior. Madrid: Taurus ediciones, 1973. CANDÉ, Roland de. História universal da música. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CARRANZA, Armando. Nagual, tu animal interior. México D.F.: Oceano editora, 2000. CASTANEDA, Carlos. Porta para o infinito. São Paulo: Nova Era, 2006. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997. MURRAY SCHAFER, Ralf. Voices of Tyranny: Temples of silence. Ontario: Arcana Editions, 1993. ____________________/ A afinação do mundo. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 1996. PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia A. A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SACKS, Oliver. Alucinações musicais. Companhia das letras. São Paulo, 2007. STRAVINSKY, Igor. Poética musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, I996. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. Martins Fontes. São Paulo, 1982. TUGNY, Rosângela (Organizadora). Mõgmõka yõg kutex xi ãgtux. Cantos e histórias do gavião-espírito. Narradores, escritores e ilustradores tikmũ'ũn da Terra Indígena de Água Boa. Beco do Azougue Editora. Rio de Janeiro, 2009. __________________/ Escuta e poder na estética Tikmũ'ũn_Maxacali. Série Monografias. Museu do Índio – FUNAI. Rio de Janeiro, 2011. VILAÇA, Aparecida. O que significa tornar-se o outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia. Publicado originalmente como: “Devenir autre: chamanisme et contact interethnique en Amazonie Brésilienne”,no Journal de la Société des Américanistes, nº 85, 1999, pp. 239-260.

573

A FORMAÇÃO MUSICAL NA PAIDÉIA PLATÔNICA Maria Teresa De Souza Neves [email protected] Universidade Estadual de Montes Claros Resumo: Esse trabalho versa sobre a formação musical na Paidéia platônica, objetivando fazer uma breve reflexão acerca do valor que a música assume nos pensamentos filosóficos de Platão, através de uma revisão de literatura, tendo como referência principal a obra “República”. Desta forma, realizou-se uma análise sobre o tipo de educação musical que este propôs para o cidadão da Pólis, uma vez que Platão elaborou conceitos contextualizados, diria até idiomático de sua era, desenvolvendo uma linha de raciocínio vital para a sustentação da música como parte essencial da educação humana. Palavras-Chave: Platão, Filosofia, Música, Educação

INTRODUÇÃO Sendo a música um fenômeno universal, ela está presente de alguma forma em todos os tempos e em todos os grupos sociais. Contudo, a música realiza-se de modos diferentes, concretiza-se diferentemente, conforme o momento da história de cada povo. O fazer musical humano varia, diferencia-se conforme o momento histórico e o espaço social. Isso quer dizer que o fazer musical não é o mesmo nos diversos momentos da história da humanidade ou nos diferentes povos, pois são diferenciados os princípios de organização dos sons. E esse aspecto dinâmico da música é essencial para que possamos compreendê-la em toda a riqueza e complexidade (PENNA, 2010, p.22).

Como diversos historiadores apontam, em seus primórdios a música era parte de rituais comunitários e integrava diversos elementos presentes na vida grupal. A busca do valor da música e da educação musical inicia-se na Grécia. Aos gregos é atribuída excepcional importância à musica. Segundo Serrallach (s.d, p.12), para Sócrates, a filosofia não era mais que o ponto culminante da música; Platão chamava música, todas as artes do ritmo declarando ser a “música parte principal da educação porque o número e a harmonia introduzem-se de bom grado na alma do jovem; com eles, entram a graça e a virtude desde a mais tenra idade”. Platão queria que a educação musical fosse iniciada desde cedo. A música desempenhava papel preponderante na vida dos gregos sendo a formação musical um requisito básico na educação do indivíduo. Não saber cantar ou tocar um instrumento era tão deprimente como, em nossos dias, não saber ler e escrever. Cantando se promulgavam as leis, cumpriam-se os deveres religiosos, e havia música em quase todas as reuniões sociais. Rocha Júnior (2007, p.31)

574

citando a obra de Aristides Quintiliano “De Música” relata que todas as atividades do cotidiano eram executadas com acompanhamento musical: os hinos sagrados e as oferendas eram adornadas com música; os banquetes particulares e as assembléias festivas da cidade se alegravam com ela, guerras e marchas eram levadas a cabo e ordenadas através dela; até mesmo a navegação e outros trabalhos manuais tornavam-se menos penosos ao som da música (ROCHA JÚNIOR, 2007, p.31).

Os antigos gregos eram um povo eminentemente musical. A música tinha presença marcante na cultura grega sendo capaz de expressar todo tipo de pensamento e sentimentos. Desde o início da organização social e política grega acreditava-se que a música influía no humor e no espírito dos cidadãos e, por isso, não podia ser deixada exclusivamente por conta dos artistas executantes (FONTERRADA, 2008, p.26). Platão afirmava que “Um estado bem governado por boas leis não deixa jamais ao capricho dos músicos aquilo que concerne à educação musical; regula-a como fizeram no Egito, onde a juventude estava acostumada a seguir o mais perfeito, tanto na melodia quanto nos modos” (SERRALLACH, s.d., p.12). Platão desenvolve uma ampla discussão estética e ética a respeito da música, em muitos de seus textos. Na verdade, sua preocupação central era formar o homem para uma sociedade ideal, a Pólis. Nesse Estado Ideal, o mais perfeito possível, os cidadãos seriam educados desde a infância a buscar a verdade, praticar o bem e contemplar a beleza, como discutido na obra “República”. Dessa forma a música constitui um dos principais interesses na organização política do estado. Como em outras instâncias, suas regras deveriam ser observadas pelo estado e por essa razão não caberia deixá-la a critério dos artistas. Esse trabalho versa sobre a formação musical na Paidéia platônica, objetivando fazer uma breve reflexão acerca do valor que a música assume nos pensamentos filosóficos de Platão, através de uma revisão de literatura, tendo como referência principal a obra “República”. Desta forma, realizou-se uma análise sobre o tipo de educação musical que este propôs para o cidadão da Pólis, uma vez que Platão elaborou conceitos contextualizados, diria até idiomático de sua era, desenvolvendo uma linha de raciocínio vital para a sustentação da música como parte essencial da educação humana. EDUCAÇÃO MUSICAL SEGUNDO PLATÃO Encontramos na obra República do filósofo Platão, várias passagens em que, de algum modo, ele trata a música. Contudo, não se aspira comentar aqui todas as passagens. Serão tratados a seguir trechos que parecem mais

575

significativos para a reflexão que se pretende desenvolver a respeito da relação entre educação musical e filosofia no pensamento platônico. “- Então que educação há de ser? Será difícil achar uma que seja melhor do que a encontrada ao longo dos anos, a ginástica para o corpo e a música para a alma? -Será, efetivamente. -Ora, começaremos por ensinar primeiro a música do que a ginástica? -Pois, não? - Incluís na música a literatura, ou não? -Decerto.” ( PLATÃO, 2006, 376)

Tendo como referência a passagem extraída do livro República, Jaeger (2001, p.768) confirma que Platão estabelecia que a formação da alma fosse iniciada através da música. No sentido lato da palavra grega esta não envolveria somente o que se refere ao tom e ao ritmo, mas também – e até em primeiro lugar, segundo acento platônico – a palavra falada, o logos. “Para a cultura grega, a poesia e a música são irmãs inseparáveis, a ponto de uma única palavra grega abranger os dois conceitos” (JAEGER, 2001, p. 786). Em Platão, como na filosofia grega de modo geral, a música ocupa uma posição de liderança em relação às outras artes. Fonterrada (2008, p.27) acredita “que seja possível estabelecer estreitas analogias entre os movimentos da alma e progressões musicais”. Assim, ainda segundo a mesma autora, o propósito da música não poderia ser apenas a diversão, mas “a educação harmoniosa, a perfeição da alma e o aquietamento das paixões” (FONTERRADA, 2008, p.27). Segundo Baccou1 (1973, p.22), A música compreende o conjunto das artes que as Musas presidem. Enfeixa, portanto, tudo o que se faz necessário à primeira educação do espírito. Por seu intermédio é que se modelam, para a vida, as almas ainda tenras por isso importa que seja isenta de todo elemento duvidoso (BACCOU, 1973, p.22).

Apesar da íntima relação entre a poesia e a música, seria proibido aos poetas escolher ritmos e melodias sem nenhum critério e também não poderiam utilizar de maneira indiscriminada qualquer harmonia ou escala. Segundo Platão, os jovens deveriam ser educados com uma poesia e uma música cuidadosamente escolhidas para torná-los corajosos, virtuosos e racionais. Dessa forma, o filósofo prescreve no livro “República” as harmonias, ritmos e instrumentos que deveriam ser utilizados na educação dos guardiões do estado ideal. “No que se refere a música serão eliminadas as harmonias langorosas que tornam a alma efeminada, e serão conservadas BACCOU, Robert in PLATÃO – A República. Introdução e notas de Robert Baccou. Tradução de J. Huinsburg. 1º vol. 2ª edição. Difusão Européia do Livro. SP, 1973. 1

576

somente aquelas capazes de infudir coragem na guerra e espontaneidade nas obras de paz; assim se escolherão somente os ritmos apropriados e simples” (REALE,1994, p.246).

Nessas condições Jaeger (2001, p. 788) destaca que as melodias lânguidas, quer jônias quer lídias, boas para as orgias, eram inaceitáveis, porque nem a embriaguez nem a languidez ficavam bem para os guardiões, dessa forma prevaleceriam somente as melodias dórica e frigia. Baccou (1973, p. 24) esclarece que a melodia dórica estaria apta a exprimir a virilidade e a justa violência de ações guerreira, enquanto a melodia frigia demonstraria a calma nobreza dos trabalhos de paz. Uma vez que os modos cantados seriam poucos, dórico e frígio, logo não seriam necessários instrumentos que reproduzissem ‘várias harmonias’, dessa forma, foram conservados somente a lira e a cítara (JAEGER, 2001, p. 788). “Não precisaremos para os nossos cantos e melodias de instrumentos com muitas cordas e com muitas harmonias” (...) “resta-te a lira e a cítara para se utilizarem na cidade” (PLATÃO, 2006, p. 398). Inseparável da harmonia é o ritmo, quer dizer a ordem no movimento. Quanto aos ritmos foram rejeitados os variados e que formam cadências de toda a espécie, sendo procurados aqueles que exprimiam uma “vida regulada e corajosa”, afirmando que são as cadências que devem se moldar às palavras, e não as palavras às cadências e melodias. a seguir às harmonias deveremos tratar dos ritmos, não os procurar variados, nem pés de todas as espécies, mas observar quais são os correspondentes a uma vida ordenada e corajosa. Depois de os distinguir, devem forçar-se os pés e a melodia seguirem as palavras, e não estas aqueles (PLATÃO, 2006, p.399).

Platão não demora em questões técnicas quanto ao ritmo, mas a partir da teoria do ethos na harmonia e no ritmo, extraída de Dámon, célebre mestre da música ateniense do século V a.C., ensina que apenas seriam aceitáveis as harmonias que exprimissem o ethos do homem valente ou do homem sereno, igualmente na riqueza das classes de ritmos apenas escolheriam aqueles que imitassem a essência destas duas atitudes morais da vontade (JAEGER, 2001, p. 789-790). A tradição da Paidéia grega reconhece à musica sobre as outras artes, e chega à conclusão de que está perfeitamente justificada uma vez que são o ritmo e a harmonia “os que mais fundo penetram no íntimo da alma e os que dela se apoderam com mais força, infundindo-lhe e comunicando-lhe uma atitude nobre” (PLATÃO, 2006, p. 401). Mas não é só pelo seu dinamismo anímico que Platão julga a música superior as outras artes; é também porque “educa o Homem a captar com precisão incomparável o que há de exato ou de defeituoso numa obra bela e na sua execução” (JAEGER, 2001, p.793).

577

Fonterrada (2008, p.27) destaca que “a música é a mais imediata expressão de Eros, uma ponte entre idéia e fenômeno. (...) Cada melodia, cada ritmo e cada instrumento têm um efeito peculiar na natureza moral da res publica”. Conforme a concepção grega, a boa música promove o bem-estar e determina as normas de conduta, enquanto a música de baixa qualidade a destrói. Desse modo, na Grécia, a música de qualidade “é estreitamente relacionada e determinada pelas normas da conduta moral, o que se mostra no uso da mesma palavra – nomos - para designar a correta harmonia e lógica musicais e as leis morais, sociais e políticas do Estado” (FONTERRADA, 2008,p.27). CONSIDERAÇÕES FINAIS “República” de Platão, ao contrário do que alguns leitores imaginam ao julgar o título do livro, não se trata de uma leitura sobre leis Estado, mas pode ser considerada uma formosa obra pedagógica. Platão demonstra preocupação com a educação como condição e possibilidade privilegiada de formação do homem integral. Nesse contexto, ele possibilita um domínio filosófico do saber musical. Platão apesar de elaborar e apresentar conceitos contextualizados, diria até idiomático de sua era, desenvolveu uma linha de raciocínio vital para a sustentação da musica como parte essencial da educação humana. Não nos compete aqui questionar ou reafirmar a importância que Platão teve na sociedade ocidental, através de seus pensamentos filosóficos; mas cabe a nós deixar registrado sua influência na atitude musical ocidental, que apesar de por um lado reconhecer a força da música na sociedade, sendo utilizada das mais diversas formas, ela continua sendo desprezada no sistema educacional brasileiro, e negligenciada. Necessário se faz revisitar a história, para refletirmos sobre o que já foi pensado e realizado em relação à música, para definirmos nossas metas e objetivos, afim de que possamos nos harmonizar com os ideais platônicos de buscar a verdade e a justiça, tornando-nos melhores cidadãos, conseqüentemente mais felizes.

REFERÊNCIAS FONTERRADA, Marisa Trench de O. De Tramas e Fios: um ensaio sobre música e educação. 2ª Ed. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a Formação do Homem Grego. Tradução Artur M. Parreira. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PLATÃO. A República. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2006. PENNA, Maura. Música (s) e seu Ensino. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2010.

578

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, Volume 2. ROCHA JÚNIOR, Roosevelt Araújo. Música e Filosofia em Platão e Aristóteles. Discurso. Revista do Departamento de Filosofia da USP, n.37, 2007. Disponível em: http://filosofia.fflch.usp.br/publicacoes/discurso/D37. Acesso: 26-05-20013 SERRALLACH, Lorenzo. História da Pedagogia Musical. Tradução do espanhol de João C Caldeira Filho. Ricordi Brasileira – Sociedade Anônima Editorial e Comercial. São Paulo

579

ASPECTOS ESTÉTICOS DA MÚSICA SEGUNDO AS LEITURAS DOS LIVROS “ESTÉTICA MUSICAL” DE CARL DAHLHAUS, “ESTÉTICA MUSICAL” DE ENRICO FUBINI E “BELO MUSICAL” DE EDUARD HANSLICK. Mayki Fabiani Olmedo1 [email protected] UNESP-SP Resumo: A análise do objeto musical tem criado diversas divergências de ordem filosófica, analítica e interpretativa, principalmente quando a música escrita, concreta em seus alicerces, se transforma em abstrata ao ser executada. O sentido da música ao ser escrita e ao ser interpretada, sua intemporalidade, sua impressão subjetiva, seus conceitos transformados e re-transformados, são elementos conflitantes abordado por Dahlhaus, Fubini e Hanslick. Esse trabalho analisará como cada autor expressa a questão da estética musical, os pontos convergentes e divergentes de cada um deles e as problemáticas levantadas por cada um. Palavra-chave: Estética, Daulhaus, Hanslick, Fubini

INTRODUÇÃO A estética foi fundada e nomeada em 1750, pelo filósofo alemão Alexander Baumgarten (1714-1762). Primeiramente concebida como “teoria da percepção, da faculdade inferior do conhecimento e como complemento da lógica”.2 A palavra estética vem do grego aísthesis e significa sensação, sentimento. Segundo Rosenfield (2009), a estética “analisa o complexo das sensações e dos sentimentos, investiga sua integração nas atividades físicas e mentais do homem, debruçando-se sobre as produções (artísticas ou não) da sensibilidade, com o fim de determinar suas relações com o conhecimento, a razão e a ética.” 3 A estética estava, antes de Baumgarten, ligada a reflexões auxiliares da filosofia, porém os conceitos que a faz se tornar autônoma (enquanto reflexão), já eram discutidos há tempos. Rosenfield (2009) aponta Sócrates e Platão como iniciadores de algumas problemáticas da estética que caminha posteriormente pelo neoplatonismo Mayki Fabiani Olmedo é técnico em Violão Popular Pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul (FASCS), Bacharel em Composição pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FIAMFAAM) e mestrando em Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestrando em Música na UNESP - SP. Atualmente é Orientador de Artes da prefeitura de Ribeirão Pires (SP), onde leciona violão, rege a banda e o coro infantil é também professor do Guri Santa Marcelina onde leciona teoria musical. 2 DAHLHAUS, 2003, pg. 16. 3 ROSENFIELD, 2009, pg. 7. 1

580

cristão, e que por ventura estão presentes até hoje, a problemática grega associava o belo com o bem, o valor moral do indivíduo: “o indivíduo que tem valor moral é suscetível belo e tem a possibilidade de atos moralmente bons”; “Platão parte desses costumes, que são ao mesmo tempo religiosos, políticos e linguísticos e sintetizam as diversas facetas semânticas do termo “belo”. 4 O belo não se trata apenas do sentindo de beleza de algo, mas sim todo o conteúdo de uma obra, as sensações por ela causada, “por conseguinte, o belo não constitui o ponto de partida da nova disciplina da estética, mas um elemento de prova numa argumentação, cujo objectivo era a justificação de uma emancipação da percepção sensível.” 5 A música oferece um vasto material para a análise estética, e “mesmo numa análise superficial, surge por mais de um motivo como uma arte com problemas absolutamente específicos, não comparáveis aos de nenhuma arte”.6 Através das leituras dos textos citados vamos traçar os pontos em comum de cada texto, as problemáticas, e a perspectiva estética da música. ÍNDICE Entre os títulos mencionados o mais antigo é Do Belo Musical, um contributo para a Revisão da Estética da arte dos Sons escrito por Eduard Hanslick em 1854. O livro está dividido em sete capítulos sendo: Capítulo I, a)

Ponto de vista não científico da Estética musical anterior; b) Os sentimentos não são o fim da música. Capítulo II, os sentimentos não são o conteúdo da música. Capítulo III, o Belo musical. Capítulo IV, análise da impressão subjectiva da música. Capítulo V, a percepção estética da música em comparação com a patológica. Capítulo VI, as relações entre a música e a natureza. Capítulo VII, os conceitos de “conteúdos” e “forma” na música. A Estética Musical de Carl Dahlhaus escrito em 1967 é dividida da seguinte maneira, Texto Inicial de Advertência; Pressuposto Histórico; Música como Texto e Obra; Transformações da Estética do Sentimento; Emancipação da Música Instrumental; Juízo Artístico e Juízo de Gosto; Génio, Entusiasmo, Técnica; Afecto e Ideia; Dialética da “Interioridade Ressoante”; A Polémica em torno do Formalismo; Música Programática; Tradição e Reforma na Ópera; Estética e História; Para a Fenomenologia da Música; Critérios.7 O terceiro texto analisado é de Enrico Fubini publicado em 1995 está dividido em dez capítulos e em duas grandes partes: Primeira parte, Os problemas estéticos e históricos da música, Segunda Parte Breve histórico do ROSENFIELD, 2009, pg. 11. DAHLHAUS, 2003, pg. 16. 6 FUBINI, 2008, pg 14. 7 As palavras de grafia diferenciada são extraídas do português de Portugal. 4 5

581

pensamento musical. Os capítulos são: As características da disciplina; Ocidente cristão e a ideia de música; A música e o sentido da sua historicidade; Marginalidade social do músico; Música e percepção; O mundo antigo; Entre o mundo antigo e o medieval; A nova racionalidade; O Iluminismo e a música; Do idealismo romântico ao formalismo de Hanslick; A crise da linguagem musical e a estética do século XX. A julgar pelas diferentes datas de publicação e pelos títulos de cada capítulo vemos as preocupações focadas em diferentes pontos, em algum momento os pontos de vistas se convergem e os assuntos tornam-se os mesmos. Tanto Dahlhaus como Fubini tiveram contato com a literatura de Hanslick, é possível também que Fubini tenha tido contato com a literatura de Dahlhaus. A PROBLEMÁTICA MUSICAL Eduard Hanslick em seu esforço em direção a revisão da estética da arte do som parte do pré-suposto que a música está para traz das outras artes no que se diz respeito ao estudo da estética, a música é uma arte, mas “é necessário reconhecer como instância estética sua fantasia e não o sentimento”. 8 Nessa mesma circunstância da arte dos sons está desfavorecida, Fubini (2008) complementa: “Os limites da reflexão sobre a música talvez não sejam tão embatidos quanto amplos, bastante mais amplos do que as reflexões paralelas sobre as outras artes”.9 Os limites da observação da problemática musical são amplos, a própria história da música “até o século XIX foi, de facto e de direito, uma história independente da das outras artes”,10 e isso colaborou para que a música tivesse análises mais tardias comparadas as outras artes. A música como pontua Dahlhaus (2003) “é transitória; passa, em vez de resistir à reflexão”,11 ou seja, não tem a mesma existência como um quadro ou uma escultura, “na estética de Hegel, reaparece ainda a mesma ideia, a concepção de que a estrutura temporal da música é uma deficiência”.12 Segundo Fubini (2008), “a história nasce precisamente da recordação e da reflexão sobre o passado e da consciência de que o presente, de certa forma, se associa a um interior em que se reconhece e em que radica”, e complementa dizendo, “nada disso ocorreu com a música, que cresceu segundo modalidades diferentes das outras artes, sem elaborar uma história a que pudesse remeter ao longo do seu trajecto”. 13 HANSLICK, pg. 16. Ibidem, pg.. 12. 10 FUBINI, 2008, pg. 13. 11 Ibidem, pg. 23. 12 Ibidem, pg. 23. 13 Ibidem, pg. 35. 8 9

582

A própria estrutura da música a coloca em posição diferenciada das outras artes, com problemas específicos, porém, “a música, de modo análogo a uma obra de arte plástica, é também objecto estético, objecto de contemplação estética”, 14 Além do problema da historicidade, a música apresenta problemas em sua concepção artística, em sua escrita, em sua execução e em seu reconhecimento como obra de arte. COMPLEXIDADE MUSICAL. O conteúdo da música não é o sentimento, sobre essa temática está o capítulo II de Hanslick, se, “o conteúdo de uma obra de arte poética ou plástica pode expressar-se com palavras e reduzir-se a conceitos”, na música, “os sons e a sua combinação artística seriam, pois, unicamente o material, o meio de expressão, com que o compositor representa o amor, a coragem, a devoção, o arrebatamento”,15 “o único e exclusivo conteúdo e objecto da música são formas sonoras em movimento”,16 a matéria prima da música é o som, todas as artes são capazes de representarem sentimentos através da matéria prima de cada uma. De modo análogo, os materiais elementares da música – tonalidades, acordes e timbres – são já em sim caracteres. Temos também uma arte de interpretação demasiado diligente para o significado dos elementos musicais; à sua maneira, a simbólica das tonalidades de Schubert proporciona o equivalente da interpretação das cores levadas a cabo por Goethe. 17

Representativamente a música teve a máxima de suscitar sentimentos mais do que a ideia de ser associada à matemática, “a doutrina dos afectos, por muito que salientasse o efeito da música, o movimento do ânimo, pressupunha implicitamente uma concepção, antes de mais, objectivadora das características sentimentais musicais”, “a concepção de que o objectivo da música é representar e suscitar afectos constitui um topos, que penetrou tão profundamente na história como a tese oposta de que a música é matemática ressoante”.18 A música é uma arte temporal, “extingue-se, apaga-se sem deixar rasto com o acto da sua execução”,19 “na medida em que ela é forma, alcança, falando em termos paradoxais, a sua existência verdadeira justamente no momento em que se esvai”.20

14

Ibidem, pg. Pg. 23.

HANSLICK, 2002, Pg. 23. Ibidem, 2002, Pg. 42. 17 Ibidem, 2002, Pg. 27. 18 DAHLHAUS, 2003, Pg. 30. 19 FUBINI, 2008, Pg. 36. 20 Ibidem, 2003, Pg. 24. 15 16

583

A questão da música como texto e obra, é o capítulo três de Dahlhaus, a citação 18 foi extraída desse capítulo e apresenta toda a discussão da temporalidade da música, e sua ação enquanto poiesis e praxis: O chantre Nicolaus Listenius, que estudara em Wittenberg e sofrera influência de Melanchthon, atribuíra em 1537, na sua Música, a composição à poiesis. Separou da musica practica, da actividade musical, uma musica poetica, que é fazer e produzir: um trabalho, por meio do qual é produzido, que mesmo depois da morte do autor representa ainda uma obra completa e por si subsistente. 21

A música é obra plástica na medida em que o documento musical é preservado, contudo, por vezes, o que representou em seu tempo de criação é um valor diferente do que representa em tempos posteriores, a Paixão segundo São Mateus de Johann Sebastian Bach, escrita para o ofício da igreja, representa hoje obra prima máxima, “a actividade do compositor é plástica à sua maneira e comparável à do artista plástico”.22 A música é a atividade máxima do compositor e o material sentimental usado pelo compositor para a construção da composição é indiferente do ponto de vista da estética: Do ponto de vista estético é indiferente se Beethoven, em todas suas composições escolheu determinados assuntos; não os conhecemos, por isso, não existem na obra. O que existe é a própria obra, sem comentário algum, e assim o jurista elucubra a partir do mundo o que não está registrado nas actas, assim para o juízo estético não existe o que vive fora da obra de arte.23

Através do documento musical a música atinge o status de obra plástica, mas só a partir de quando se iniciou a preocupação com a escrita musical é que se pode analisar o conteúdo musical, tendo assim, pouco restante do pensamento musical de sociedades antigas Podemos ter uma prova desta ausência de consciência da sua dimensão histórica ao verificar que as primeiras e parciais experimentações de histórias da música aparecem apenas em finais do século XVIII, ao passo que nas outras artes se escreveu a história, embora de forma diversa da dos nossos critérios históricos, em tempos bem mais remotos.24

A tradição musical em determinado momento se dividiu entre uma tradição culta, chamada de erudita e sua correspondente do “povo”, popular, a música popular pouco se preocupou com a tradição escrita, tornando assim de difícil análise a tempos posteriores, fazendo uso da tradição oral, quando possível, portanto a música tem um modelo de historicidade diferenciado das outras artes, 21

Ibidem, 2003, Pg. 22.

HANSLICK, 2002, Pg. 60. Ibidem, 2003, pg. 51. 24 Ibidem, 2008, Pg. 37. 22 23

584

“a música é precisamente feita de sons e não de palavras, de pedras ou de cores sobre ela”.25 A análise da natureza musical torna-se ainda mais complexa ao destacarmos sua ação em duas partes a escrita e a executada: O compositor eficiente tem o conhecimento práctico do caractér de cada elemento musical, quer seja de um modo mais instintivo quer mais consciente. Mas a explicação científica dos diversos efeitos e impressões musicais exige um conhecimento teórico dos mencionados caracteres e da sua riquíssima combinação até ao último elemento discriminável.26

A composição não é em si a música ainda, porém já tem contido o elemento da natureza musical: “enquanto composição, como escrita, a arte expressiva musical enreda-se num paradoxo que, no entanto, não se pode abolir como contradição morta, mas se deve conceber antes como contradição viva, que impele e evolução histórica”.27 LINGUAGEM MUSICAL Como escreveu Adorno, “a música tende para uma linguagem sem intenções. (FUBINI, 2008, Pg. 25). A música ganha aos poucos status de linguagem, uma linguagem que suscita sentimentos, como já abordado: Uma espécie de linguagem que vem antes da linguagem, linguagem que vem antes do poder denotativo da palavra mas que mesmo assim é rica em evocações e ressonâncias, talvez devido – como dissemos – a um certo isomorfismo da linguagem dos sons com a dos sentimentos e dos afectos.28

A arte sonora que até certo ponto estava à sombra da palavra (oratório, madrigal, ópera), se liberta e se torna autônoma, a música passa a ser instrumental, “a ausência das palavras carecia de justificação, embora a emancipação da música instrumental, relativamente ao protótipo da vocal contasse já século e meio e fosse reconhecida...”.29 A música ao se desvincular da palavra ganha o título de absoluta apesar de opiniões contrárias: “Se a opinião de que a música instrumental é incompleta e exige um complemento mediante as palavras constituía, no sistema de Hegel, um momento parcial de uma dialéctica

FUBINI, 2008, Pg. 45. HANSLICK, 2002, Pg. 47. 27 DAHLHAUS, 2003, Pg. 37 28 FUBINI, 2008, Pg. 33. 29 DAHLHAUS, 2003, Pg. 40. 25 26

585

segundo a qual a música, enquanto arte perde o que ela, como música, ganha, e perde enquanto música o que, como arte, ganha...”.30 Quanto ao surgimento da música instrumental, surge também a “reflexão sobre o próprio significado da música”: Evidentemente, o problema do significado da música assumiu as mais díspares formas ao longo dos séculos, e ainda que na substância se reduza sempre ao mesmo âmago, tenta-se reconhecê-lo frequentemente por detrás das máscaras usadas consoante o contexto histórico, ideológico e filosófico em que se insere. 31

A música torna-se singular do ponto de vista da análise do significado, “com efeito, todo o discurso sobre música é uma interpretação da própria música, uma tentativa de revelar o seu significado e as interpretações são infinitas, no sentido de nunca esgotarem o que a música nos pode sugerir”.32 O capítulo IV de Hanslick tem por título análise da impressão subjectiva da música, trata de expor o caráter da fantasia que se utiliza a obra musical, sendo esse um dos pontos do belo musical. Porque a fantasia, enquanto actividade por intuir, e não o sentimento, é o órgão a partir do qual e para o qual nasce todo o belo artístico, a obra de arte musical surge também como uma criação não condicionada pelo nosso sentir, especialmente estética, que a consideração científica, separando-a dos acessórios psicológicos da sua origem e efeito, deve apreender na sua constituição intrínseca.33

De fato o substrato da música é de caráter subjetivo, suas impressões passam possivelmente diferenciadas pelo juízo do compositor, do interprete e do ouvinte, “ainda que tenhamos de reconhecer a todas as artes, sem exceção, o poder de influir sobre os sentimentos, não se pode negar-se que o modo como a música o exercita é algo específico, somente a ela peculiar”.34 Hanslick faz uma crítica em relação ao desenvolvimento da estética: “Nada impediu tanto o desenvolvimento científico da estética musical como o valor excessivo que se atribuiu aos efeitos da música sobre os sentimentos”.35 Fubini aponta um suposto parentesco da música com a linguagem verbal por utilizarem, tanto a linguagem verbal quanto a música, o som: “Assim como a linguagem verbal normalmente tende a prescindir do elemento musical a ponto

Ibidem, 2003, Pg. 45. Ibidem, 2008, Pg. 28. 32 Ibidem, 2008, Pg. 32. 30 31

HANSLICK, 2002, Pg. 59. Ibidem, 2002, Pg. 64. 35 Ibidem, 2002, pg. 75. 33 34

586

de abdicar completamente dele, também a música pode chegar a tornar-se uma linguagem autônoma, prescindindo do elemento discursivo”. 36 A NATUREZA MUSICAL O homem tentou fazer da música um elemento de transferência da essência da natureza, porém ao tentar fazer com que os sons combinados gerem imagens, a música, se distancia da natureza e já não pode atingir essa essência. A natureza musical tem particularidades que a distancia da natureza: Ela percorre as partes singulares, reflecte sobre elas, mantém-nas todas juntas para restaurar a impressão precedente, compara. Quanto mais exactamente reflecte, quanto mais intesamente compara, tanto mais evidente se torna o conceito de beleza e, por isso, um conceito claro de beleza já não é uma contradição em si; nada mais é do que uma perfeita distinção da sua sensação confusa. (HERDER apud DAHLHAUS, 2003, pg. 121).

Hanslick expõe que “as relações naturais da música costumavam sobretudo considerar-se apenas do ponto de vista físico, e pouco se foi além das ondas e figuras sonoras, do monocórdio, etc. E, no entanto, a relação da música com a natureza desfralda as mais importantes consequências para a estética musical”. Para Hanslick a música sugere duas matérias, uma matéria bruta que é trabalhada e em seguida se torna a música, essa resultante é a segunda matéria. Em ambos os pontos, a natureza comporta-se perante as artes como a dispensadora maternal do primeiro e mais importante dote. Vale a pena tentar rever de passagem este equipamento no interesse da estética musical e examinar o que a natureza, cujos dons são razoáveis e, por isso, desiguais, fez em prol da arte sonora.37

A reflexão que Hanslick faz sobre natureza e música é profunda, a natureza gera os materiais primários para música: “se se indagar até que ponto a natureza proporciona matéria para a música, depreende-se que ela o fez apenas no ínfimo sentido do material bruto, que o homem força a emitir som”. 38 A principal finalidade dessa matéria extraída da natureza é produzir som, se por um lado não encontramos na natureza uma organização sonora (melodia e harmonia), parecida com que criou o homem, foi com o trabalho do material vindo da natureza que se fez a natureza musical. A natureza musical abrange todo o universo dos sons, melodia, harmonia, ritmo, e suas desdobras, como as características sonoras: timbre, altura e FUBINI, 2008, pg. 33. Ibidem, 2002, pg. 88. 38 HANSLICK, 2002, pg. 88 36 37

587

duração. A linguagem musical que foi altamente desenvolvida durante os diferentes períodos tem em si, em cada período, uma qualidade diferenciada das linguagens que se sucederam. Fubini (2008) apresenta a percepção musical ligada à natureza do homem: A ideia de que a percepção da música tem seu fundamento na natureza do homem e de que as regras que presidem à composição musical são, ao invés, em boa parte fruto da cultura e, portanto, da história, apresentouse mais do que uma vez ao pensamento ocidental, se bem que não de modo unívoco.

A natureza da música vai ser transmitida pelo campo da história e da análise formal de maneira não apropriada muitas vezes, uma maneira que não demonstra a impressão do desenvolvimento da arte sonora, mas como se a música tivesse se fundamentado em blocos, o que de fato não aconteceu. CONCLUSÃO O todo de uma obra musical, pré-apreendido, suposto, em expectação vazia ou fracamente determinada, tem alguma semelhança com o todo de um objecto visível que, a princípio, é dado numa vaga impressão de conjunto para, em seguida, através de momentos individuais que o observador apreende uns após outros, ser pouco a pouco determinado com mais pormenor. DALHAUS, 2003, pg. 113).

A estética da música vai trazer à luz do conhecimento, elementos próprios, que a história e a análise não se comprometem em esclarecer. De fato a estética de uma arte é a mesma das outras, porém a estética musical se desdobra de maneira singular em relação às outras artes, mostrando a problemática do campo da temporalidade musical – ou atemporalidade – da matéria musical e suas formas abstratas que afetam de maneira direta o homem, denominados fantasias, tratados como o belo. O que foi chamado de sentimento ocasionado pela música é a substância estética agindo na esfera humana. A música e todas as qualidades estéticas intrínsecas são relatadas por Hanslick, Dahlhaus e Fubini de maneira complementar, mas de pontos de vista diferenciadas. Hanslick trata das questões do belo musical e essas questões são utilizadas por Dahlhaus e Fubini. A estética musical de Dahlhaus e estética da música de Fubini são esclarecedores do ponto de vista da abordagem estética e do aprofundamento reflexivo. Buscando a essência que nutre a música, as três obras citadas de maneira, vão além do objeto histórico ou meramente analítico ou filosófico, e tratam da estética e de seus fundamentos. Ao perguntarmos, qual o conteúdo da música? É possível que a resposta surja de maneira simples e objetiva sem que quem a responde sublime o conjunto sonoro e sua grandeza não palpável não limitável e imprevisível; Contudo a

588

ciência musical por assim dizer é emblemática em sua concepção, podendo significar em sua totalidade muito mais do que as somas das partes.

BIBLIOGRAFIA DALHAUS, Carl. Estética musical. Lisboa: Edições 70, 2003. FUBINI, Enrico. Estética da musica. Lisboa: Edições 70, 2008. HANSLICK, Eduard. Do belo musical: um contributo para a revisão da Estética da Arte dos Sons. Lisboa: Edições 70, 2002. ROSENFIELD, Kathrin H. Estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

589

EMOÇÃO E SOM – AS OBSERVAÇÕES ESTÉTICAS DE RUDOLF HERMANN LOTZE SOBRE A MÚSICA. Thomas Kupsch [email protected] UEMA

Abstract: In the history of philosophy in german speaking countries Rudolf Hermann Lotze has an important place. The extensively list of Rudolf Hermann Lotzes publications shows that he deals with big range of topics in wich has the aesthetics an important place. Very much known is his interpretations of the history of aesthetic in Germany. In all his publication on aesthetics the music has an important place. His observations on music could be, until today, an interesting source for psycology of music. Keywords: Aesthetics, History of Philosophy, Music Psycology

Antes de iniciarmos essa discussão sobre as obras de Rudolf Hermann Lotze sobre estética, é importante darmos algumas informações tanto sobre sua biografia quanto sobre uma classificação na História da Filosofia alemã. Entre 1834 e 1838, Lotz estudou Filosofia e Medicina na Universidade da cidade de Leipzig. Ao final dos estudos, ele fez, em 1840, uma “Habilitation” – na Alemanha um grau superior ao doutorado – em Filosofia. Até 1844, ele ensinou na Universidade de Leipzig como “Privatdozent”, palestrante livre, nos Departamentos de Filosofia e Medicina. Em 1844, Lotze assumiu uma vaga do professor efetivo na Universidade de Göttingen. Em 1881, um pouco antes de sua morte, Lotze foi chamado para a Kaiser Wilhelms Universität em Berlin. As publicações de Rudolf Hermann Lotze, 1817 – 1881, exerceram grande influência na Filosofia Alemã nos séculos 19 e 20. Também porque Lotze foi um precursor da Psicologia Cientifica na Alemanha. Lotze percebeu o desenvolvimento da Ciência Natural no backround da Filosofia. Um aspeto importante era a História. Muito conhecida e de também de grande influência foi sua publicação “Mikrokosmos, Ideen zur Naturgeschichte und Geschichte der Menschheit”( Microcosmos, Ideas sobre história natural e história humana) . Eessa publicação, que tem três volumes, pode ser vista como uma Antropologia no backround da Filosofia da História de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Em 1852, Lotze publicou a “Medizinische Psychologie” (Psicologia médica). Embora Lotze tivesse uma formação médica, essa Psicologia é, em grande parte, uma Epistomologia Filosófica, influenciada por Immanuel Kant e pelo Idealismo alemão. O mesmo se aplica aos livros de Lotze sobre Estética. Por três vezes, a Estética foi objeto da pesquisa de Lotze: em 1845, “Über den Begriff der

590

Schönheit”( A terminologia da beleza) ; em 1847, „Über die Bedingungen der Kunstschönheit“ (Sobre as condições da beleza na arte) e finalmente, em 1868, „Die Geschichte der Ästhetik in Deutschland“,(A história da Estética na Alemanha). Nessas publicações, a músca tem grande destaque. Muito importante é a opinão dele contra algums argumentos de Eduard Hanslick. Nessa palestra, pretendo mostrar que os argumentos da “Gehaltästhetik”, Estética do Conteúdo, de Lotze – que foi combatida pela Musicologia influenciada pelo positivismo – tem verdade até hoje, não tendo sido, até agora , contestada pela Psicologia Musical moderna. Em várias publicações sobre a História da Filosofia na Alemanha, há concordância de que Lotze relacionou os princípios científicos com observações metafisicas. 1 Não é uma contradição, se nós olharmos a História da Filosofia não apenas sob a ótica positivismo. A influência de Christian Hermann Weisse, 1801-1866, que ensinou nos tempos dos estudos de Lotze em Leipzig, é aqui apresentada. Em 1835, Weisse publicou os "Fundamentos da Metafísica"; nas obras dele observa-se uma mudança na direção do idealismo especulativo. 2 Também Weisse escreveu sobre tópicos estéticos.3 Além disso, é necessario se destacar que o Idealismo influencia, até hoje, a Filosofia Alemã. As ideias de Martin Heidegger, Karl Jaspers e Hans Georg Gadamer só são imagináveis na base dos sistemas idealísticos. Sem dúvida, as influências do Idealismo eram importantes para Lotze. Também Kant se orientou pelos métodos científicos; no final da “Critica da razão puro”, depois que ele criou sua Estética Trancendental e as categorias do conhecimento, ele afirmou : “sobre mim o céu com estrelas dentro de mim a lei da moralidade” 4 Com Johann Friedrich Herbart, teve início uma polarização dentro da Filosofia Alemã. Herbart – que foi muito influenciado por Kant e por seu seguidor, na Universidade de Königsberg – era um oponente do idealismo. Nominalmente, Herbart atacou Johann Gottlieb Fichte.5 Lotze percebeu que a opinão de Herbart continha erros históricos, o que mostra que Lotze tinha uma posição crítica contra o positivismo. Se nós queremos falar sobre Lotze, é necessario mostrar, mais profundamente, as diferenças dentro da Filosofia Alemã naquela época. Friedrich Albert Lange quis acabar com o domínio do Idealismo. Lange deduziu a futura supremacia do Materialismo através da História da Filosofia. Foi um desenvolvimento significativo no século Rudolf Eisler, Philosophenlexikon, Leipzig 1912, p. 425. Christian Hermann Weisse, Grundlagen der Metaphysik, Hamburg 1835, p. 65. 3 Publicou 1867 pelo Rudolf Seydel, um aluno de Weisse. 4 Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, Obras completas, Vol. 7, Frankfurt/M. 1977, p.300. 5 Johann Friedrich Herbart, Psychologie als Wissenschaft, neu gegründet auf Erfahrung, Metaphysik und Mathematik, Königsberg 1824, p.III. 1 2

591

XIX, um desenvolvimento, enfim, que levou a uma separação da Psicologia da Filosofia. Lange acreditava que a alma era um objeto material. Lotze, no entanto, aborda o assunto de maneira especulativa. Por esse motivo, Lange em sua História do Materialosmo, publicado pela primeira vez em 1866, criticou que a Psicologia Medicinal de Lotze contém 170 páginas de Metafisica. Entretanto, Lange observou, também, que a publicação de Lotze conduziu a uma nova discussão científica com a Psicologia. 6 William Windelband percebeu que a Psicologia de Lotze é uma unidade bem sucedida entre "Idealismo Teleológico" e consideração científica. 7 De maneira similar, Karl Vorländer observou o mesmo aspecto. Ele descreveu as obras de Lotze como um "sistema idealista baseado na ciência”. 8 Não é nenhuma surpresa que Lotze falou sobre os efeitos da múscia não só nos escritos sobre Estética, mas também na Psicologia. Antes de nós falarmos sobre as ideias de Lotze sobre a música, precisamos mostrar como Lotze constituiu o conceito de beleza, que ele apresentou na sua primeira publicação sobre a Estética. Também para ele, a origem da beleza reside na natureza. Percepções, sons ou cores são fenômenos. Bonito ou feio pode ser incluído nessas percepções. Além disso, essas percepções podem ser acompanhadas com vontade ou não- vontade. Para Lotze, existe uma conexão axiológica entre valores estéticos e éticos. Arte inclui mensagens que devem se basear nos valores éticos que têm uma validade atemporal. 9 Como para Hegel, as emoções que surgem pela arte são uma forma de conhecimento. 10 Arte representa uma verdade. Mas essa verdade não é uma lógica estrita. Lotze vê que uma verdade na base da lógica estrita pode ser eticamente sem valor. Para Lotze, a feiúra na arte é moralmente condenável. Ao contrário do bonito – que é baseado nas proporções e regras – o feio é caracterizado pela ausência de regras. Isso mostra que a opinão de Lotze sobre a beleza, em princípio, não está muito longe de seus antecessores, passando por Aristóteles e Baumgarten até Kant. Lotze se aproxima mais da música em sua próxima publicação “Über die Bedingungen der Schönheit” (Sobre as condições da beleza), publicado no ano 1847. Nessa obra, Lotze verificou que a percepção auditiva tem uma função muito importante. O som, a voz, por exemplo, que mostra uma situação emocional, revela o homem. Lotze escreveu que a mente do oponente é revelada pelos sons, „sondern das Wesen jeglichen Dinges spricht aus dem Klange, den wir ihm Friedrich Albert Lange, Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, Frankfurt/M. 1974, p.536, primeira publicação Leipzig 1866, 7 Wilhelm Windelband, Lehrbuch der Geschichte der Philosophie, Tübingen 1912, p.540. 8 Karl Vorländer, Geschichte der Philosophie, Leipzig 1919, Vol.2 p.403. 9 Rudolf Hermann Lotze, Über den Begriff der Schönheit, Göttingen 1845, Lotze escreveu, „das sinnliche Wahrnehmbare ist „redend“, na tradução a percepção sonsorial está „falando“ p. 13. 10 Ele falou de “Eigenschaften und Verhältnisse von Eigenschaften, em português qualidades e relações das qualidades“ Lotze, Schönheit, p. 19. 6

592

entlocken“, o que significa “a essência de todos os objetos é revelada pelos sons”. 11 Ou em outras palavras, a substância dos sons fala pelos sons, que ela – a substância – tem. Podem ser instrumentos musicais, podem ser sons da natureza, podem ser todos os aparelhos. Esse mundo dos sons é uma revelação do qualquer sentido. Lotze a considerou a música a arte mais livre. Essa arte é livre porque muitas associações são possíveis. Para Lotze, a música é uma metafísica sonora. Por consequinte, Lotze selecionou também explicações metafísicas. Então, a música, por exemplo, nos leva a uma "realidade estranha e misteriosa". 12 Esses argumentos foram retomados por diversos filósofos, por exemplo, Karl Köstlin.13··. No backround da expansão do positivismo ' não é surpreendente que essas considerações foram inconsistentes. Em 1854, Eduard Hanslick publicou “Vom Musikalisch Schönen“, em português “Sobre a beleza musical". Hanslick considerou a música só uma "forma sonora com movimento”. Ele se distanciou de uma "estética das emoções ". Hanslick estava convencido de que a música não pode expressar sentimentos. 14 Mas o que é uma emoção? Lotze costuma fazer essa pergunta na “Medicinischen Psychologie”. Diferentemente de Hanslick, para Lotze existe inicialmente uma sensação e depois surgem sentimentos. A sensação é uma percepção sensorial, apenas sem avaliação. A primeira forma de avaliação é a vondade e não-vondade e o próximo resultado é uma “bewusste Wahrnehmung” percepção consciente, que é, como para Kant, uma experiência. Essa experiência mostra vantagens e desvantagens; e faz parte da Ética que devam ser pesados os prós e contras dessas vantagens e desvantagens. Os padrões morais são também uma experiência ou um conhecimento. Lotze não explicou, entretanto, como esses valores morais surgem. Mas Lotze mostra claramente que a "conveniência" não pode ser nenhuma medida de valor. Lotze afirmou que: “das Gift tötet nicht durch seine Süßigkeit, sondern trotz derselben”, "o veneno não mata por sua doçura, mas por si mesmo" e, ao contrário, o efeito de uma droga não é baseado em "amargura nojenta".15 É a razão que nos impede de ingerir veneno só porque ele é doce. Para experiências, as percepções têm um significado diferente. É interessante que Lotze também aqui, mais uma vez, falou sobre percepções auditivas: nenhuma outra percepção sensorial lança respostas físicas tão rápididamente tais como a percepção da dissonância. Hermann von Helmholtz mostra por que isso é assim. Lotze, Über die Bedingungen der Schönheit, Göttingen 1847, p. 10. Lotze, Schönheit, p. 11 13 Karl Köstlin, Ästhetik, Tübingen 1869. 14 Eduard Hanslick, Vom Musikalisch Schönen – ein Beitrag zur Revision in der Ästhetik der Tonkunst, Leipzig 1858, p. 15, segunda edição. 15 Lotze, Medicinische Psychologie oder Physiologie der Seele, Leipzig 1852, p. 237. 11 12

593

Precisamos perguntar quais influências foram importantes para Lotze. Nós podemos dizer que Lotze foi influenciado por John Locke e Kant. Locke foi o primeiro a chamar percepções “sensations”, essas percepções têm “primary qualities” e “secundary qualities”. Esses “primary qualities” podemos comparar com as categorias de Aristóteles: são as propriedades do objeto; os “secundary qualities” são as impressões subjetivas. Pelo “reflections” surgem experiências objetivas. Essa idéia é continuada em “Critica da Razão Pura” de Kant. Particularmente, é interessante o capitulo sobre Estética Transcendental. Para Kant, há uma seqüência: a percepção torna-se uma sensação, essa sensação é a base para o surgimento de termos e conclusões. Quando Lotze diz que os sentimentos já são “zusammengesetzte Ereignisse” "eventos compostos", porque essas percepções são comparadas com experiências, vemos aqui a influência de Locke e Kant. Locke, Kant e Lotze criaram, assim, uma base para a teoria da apercepção, conhecida em Psicologia, como nós podemos ver mais tarde nas publicações de Wilhelm Wundt e Theodor Lipps. Para Lotze, há uma hierarquia inteira das emoções: no nível mais baixo, estão as sensações; seguem os afetos e nível superior representa os "sentimentos intelectuais". Há uma "riqueza das conexões”. 16 Sensação, percepção e as emoções são uma combinação de percepção e experiência. Emoções intelectuais representam a consciência, baseada nos valores morais. Nesse momento, Lotze conduz para a música. Ele pergunta: existem leis psicológicas da harmonia? Primeiro: estímulos auditivos são uma sensação. Únicas sequências horizontais, como é o caso da melodia, são já uma forma próxima da percepção. Aqui se trata de ligações de notas consecutivas. Lotze estava convencido de que nós percebemos diferenças das sequências horizontais mais fortemente do que nas sequências verticais, em outras palavras os acordes. Quando ouvimos as sequências dos acordes, não podemos perceber muito claramente os movimentos melódicos. Para Lotze, vários problemas surgiram. Uma questão importante é: sua origem consiste nas emoções pelos acordes? Por que nós percebemos o mesmo som se esse som soa com cores de som diferente. Por exemplo, dó central tocado uma vez com flauta , outra vez com clarinete. Alguns anos mais tarde, cientistas como Helmholtz e Carl Stumpf procuraram respostas para essas perguntas. Mas a Psicologia de Música de hoje mostra que essas questões não foram resolvidas até agora. Como já mencionado, as observações de Lotze não eram livres de especulação. Tanto quanto pode ser visto, Lotze também foi o primeiro que falou sobre percepção sinestésica. Os sons

16

Lotze, Psychologie, p. 260.

594

– ele escreve em 1847 – “nós confrontamos com luzes coloridas ", que nos levam a uma "realidade estranha e misteriosa". Ao lado de uma percepção de cor existem também sensações de temperatura. Lotze menciona, por exemplo, "tons quentes". A partir dessas representações, Lotze também conclui que "deve haver leis psicológicas da arte beleza sem dúvida".17 Entretanto, Lotze não explicou quais leis seriam. Em vez disso, encontramos uma afirmação metafísica. Ele disse: "Lá podem ser obras de arte, uma revelação imediata do mesmo e recolher todos os raios da verdade para uma visão completa do mundo em um pequeno ponto focal". 18 Essa forma de divulgação deve se basear em um senso comum. Embora existam opiniões que "diferem no plano do mundo", a beleza "encontra todas as mentes, a beleza "não pergunta no conteúdo da fé"." Isto se aplica à beleza na arte. O que Lotze diz sobre a música? A nota fundamental de uma escala representa um espaço porque ela retorna novamente, uma confirmação do espaço. Na lingua alemã, uma escala é chamada “Tonleiter”, que significa “escada dos tons”. Nessas escadas “os anjos sobem e descem”. 19 Se há um senso comum, Lotze desafiou em outro lugar. Na “Geschichte der Ästhetik in Deutschland“ ( História da estética na Alemanha), ele escreve que a música é sujeita a um processo de mudança histórica. Por esta razão, não deve haver nenhum ideal de beleza fixo. Em 1868, quando Lotze publicou sua História da Estética, o livro de Eduard Hanslicks sobre o “Musikalisch Schöne” ( A beleza musical) já era bem conhecido e influente. Hanslick acreditou que a música não

tem emoções; a música representa só uma forma musical. Musik ist tönend bewegte Zeit, ele falou, música é apenas uma forma do movimento dos tons no tempo. Lotze concordou que a música não tem emocões. No entanto, Lotze também tinha contraargumentos. Já em sua “Psicologia Medicinal”, Lotze determinou que as emoções são conectados com idéias e juízos. Por exemplo, a saudade é “uma ligação entre o passado e o futuro”. Lotze escreveu que sem essa ligação dos tempos passado e futuro, não poderíamos chamar uma coisa de melancolia e outra de esperança. Música pode ser o meio para despertar esses sentimentos. Para Lotze, uma tarefa central da música. Sem dúvida, Lotze foi uma pessoa muito importante para a História da Psicologia. O mesmo podemos dizer para a História da Música. Em Hugo Riemann e Carl Stumpf, ele teve dois alunos que eram muito influentes para a Musicologia na Alemanha. Franz Brentano aconslhou Stumpf a completar os estudos em Göttingen com Lotze. Em sua autobiografia, Stumpf relatou que Lotze, Schönheit, Teil 2, p. 12. Lotze, Schönheit, Teil 2, p. 16. 19 Lotze, Schönheit, Teil 2, p. 35. 17 18

595

Lotze exerceu uma grande influência sobre ele, mas também, que as discussões às vezes foram controversas.20 Em1883, Stumpf publicou o primeiro volume de “Tonpsychologie” , “psicologia dos tons”; segundo volume em 1890. Ambos livros foram uma base importante para a Psicologia de Música. O segundo aluno importante de Lotze foi Riemann. Hoje nós ligamos o nome de Riemann com o “Funktionstheorie”, sua teoria funcional e com seu léxico de música. Não deve ser esquecido que Riemann publicou também uma Estética da Música. 21 Além disso, a palavra de Riemann também na Psicologia da Música teve um peso considerável. Seria um tópico interessante para explorar a influência que a Estética de Lotze teve para Riemann. No Brasil, Lotze não é nehum desconhecido, embora eu não tenha encontrado nenhum livro em língua portuguesa, apenas em lingua inglesa. Uma pesquisa sobre ele seria certamente interessante, e não só para a Musicologia.

BIBLIOGRAFIA LIVROS BLUME, Friedrich., Ed. Musik in Geschichte und Gegenwart, Kassel 1949f. EISLER, Rudolf Philosophenlexikon, Berlin 1912 HANSLICK, Eduard Über das Musikalisch Schöne, ein Beitrag zur Revision der Tonkunst, Leipzig 1854 HERBART, Johann Friedrich Psychologie als Wissenschaft, neugegründet auf Erfahrung, Metaphysik und Mathematik, Königsberg 1824 KANT, Immanuel Kritik der reinen Vernunft, Frankfurt/M. 1977 KÖSTLIN, Karl Ästhetik, Tübingen 1869 LANGE, Friedrich Albert Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, Frankfurt/M 1974. LOTZE, Rudolf Hermann, Über den Begriff der Schönheit, Göttingen 1845 -------. Über die Bedingungen der Schönheit, Göttingen 1847 ------- Medicinische Psychologie oder Physiologie der Seele, Leipzig 1852 -------. Geschichte der Ästhetik in Deutschland, München 1868 RIEMANN, Hugo Elemente der Musikalischen Ästhetik, Berlin 1900 VORLÄNDER, Karl Geschichte der Philosophie, Leipzig 1919 WEISSE, Christian Hermann Grundlagen der Metaphysik, Hamburg 1835

20History

of Psycology in Autobiography Ed. Carl Murchison, Clark University Press Worchester MA 1930, Vol 1, pp 389 – 441, developed by Christopher D. Green, York University Toronto, http://psychclassics.yorku.ca/Stumpf/murchison.htm, 31.8.2013. 21 Hugo Riemann, Elemente der Musikalischen Ästhetik, Berlin 1900.

596

WINDELBAND, Wilhelm Tübingen 1912.

Lehrbuch

der

Geschichte

der

Philosophie,

INTERNET History of Psycology in Autobiography Ed. Carl Murchison, Clark University Press Worchester MA 1930, Vol 1, pp 389 – 441, developed by Christopher D. Green, York University Toronto, http://psychclassics.yorku.ca/Stumpf/murchison.htm, 31.8.2013

597

I RESUMOS EXPANDIDOS

598

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E O RITMO NO “DE MUSICA” DE SANTO AGOSTINHO Sérgio Ricardo Strefling [email protected] Doutor em Filosofia Professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas Palavras-chave: Santo Agostinho, experiência estética, ritmo, música.

Aurelius Agostinho, mais conhecido como Santo Agostinho, nasceu em Tagaste no norte da África (354) e faleceu em Hipona (430). Antes de tornar-se filósofo e teólogo foi um bem sucedido mestre de retórica em Tagaste, Cartago, Roma e Milão. Sua volumosa bibliografia, que trata dos mais diversos temas, foi conservada e chegou até nós quase que integralmente. Dos escritores antigos é aquele que mais documentários se tem sobre sua vida e obra. Este autor africano vivenciou um momento de profunda mudança na história, a saber, a queda do Império Romano no Ocidente, finalizando o final da antiguidade e o início de um novo período que mais tarde será denominado de medievo. Santo Agostinho assumiu os princípios estéticos dos antigos, os transformou e os transmitiu para a posteridade. Sua obra constitui um ponto crucial na história da estética, no que convergem as correntes antigas e donde derivam as medievais. A experiência estética, compreendida como vivência integral do homem, radicada na consciência do belo, foi na perspectiva dos filósofos antigos, principalmente por Platão e Plotino, considerada como condição indispensável no processo da educação do ser humano, pensado na sua integralidade e máximas possibilidades. Agostinho, seguindo esses pensadores, valorizará as artes nas etapas de realização da pessoa1. Atualmente vivemos numa época de fragmentação da vida humana, desconsiderando a unidade de suas múltiplas dimensões e, sobretudo, diante da fragmentação nos processos do conhecimento. A reflexão sobre o papel das artes na formação do humano, considerando a cultura clássica, do qual Agostinho é herdeiro, pode propiciar um movimento do pensamento na direção da superação dessa fragmentação2. O ritmo foi um dos conceitos fundamentais da estética antiga, que o interpretava matematicamente, os romanos o denominavam justamente com o nome de números. Mas ao mesmo tempo foi um conceito aplicado quase que exclusivamente com relação a música. Porém Agostinho fez do ritmo o conceito fundamental de toda estética e via nele a fonte de toda a beleza. Isto significou Cf. HINRICHSEN, Luís Evandro. A estética de Santo Agostinho – o belo e a formação do humano. Porto Alegre: ESTEF, 2009, p.17. 2 Cf. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.5-7. 1

599

ampliar o conceito, de modo que abarcasse não só o ritmo perceptível pelos ouvidos, mas também pelos olhos, não só o ritmo do corpo, mas também da alma, não só o ritmo do homem, mas também da natureza; e teve que incluir, no entanto, o ritmo das experiências como das atividades, o ritmo das perfeições e o da memória, o ritmo passageiro dos fenômenos e o ritmo eterno do mundo. Ao converter o ritmo no conceito básico de sua estética, o filósofo africano o ampliou de tal maneira que os fatores quantitativos e matemáticos deixaram de ser elementos indispensáveis do ritmo3. Em nosso breve estudo, consideraremos o pensamento estético do filósofo e teólogo africano expresso em sua diversas obras, porém nos concentraremos em alguns capítulos da obra De Musica4. Neste tratado o autor define a música como “ciência da boa modulação”5. Modulação é sinônimo de medida (modus), presente nas artes, na natureza, orientando os movimentos, assegurando proporção entre tempos e intervalos. A medida pode ser caracterizada como boa, quando orienta os movimentos, tornando-os rítmicos. A música também é ciência, porque segue regras propostas pela razão. Existe uma modulação, por exemplo, no canto de um rouxinol6 ou na execução de peça musical por um flautista, mas não ocorre ciência7. O pássaro canta maviosamente dirigido pelas leis dos números inerentes à natureza. Um flautista, pelo hábito, pode executar bela música. Entretanto, a música, enquanto ciência do ritmo, supõe o conhecimento racional. A música é a ciência da boa modulação, e esta causa deleite, agrada, eleva, tem harmonia e seu efeito sonoro gera prazer ao ouvinte. Segundo o Bispo de Hipona, “a música é a arte do movimento ordenado. E se pode dizer que tem movimento ordenado todo aquele que se move harmoniosamente, guardadas as proporções de tempo e intervalos”8. Agostinho distinguiu dois elementos da experiência estética, um que é direto procede dos sentidos, das impressões e percepções, das cores e sons. Mas os sons e as cores expressam e representam algo e é este o segundo elemento da experiência, um elemento indireto e intelectual. Esta dualidade da experiência estética é vista tanto na poesia e na música, como na dança, distinguindo assim fatores sensíveis e intelectuais em qualquer experiência do belo. Nosso filósofo TATARKIEWICS, Wladislaw. Historia de la estética II. La estética medieval. Madrid: Akal, 2002, p. 54. 4 O De Musica é um diálogo que consta de seis livros. O primeiro é uma introdução às questões de métrica e rítmica. Os quatro livros seguintes versam, tecnicamente, sobre a métrica latina. O sexto livro inaugura novos horizontes, trabalhando conceitos relativos à rítmica. Agostinho supera o caráter matematizante da rítmica clássica, analisando os ritmos segundo bases psicológicas. Ainda no sexto livro, encontramos a proposição da unidade como critério fundador da vivência estética, critério não predicável, pois se refere à inefabilidade de Deus, Uno e Trino. 5 “Musica est sciencia bene modulandi” De Musica I, II, 2. 6 De Musica I, IV, 5. 7 De Musica I, IV, 7. 8 “Musica est scientia bene movendi. Sed quia bene moveri iam dici potest, quidquid numerose servatis temporum atque intervallorum dimensionibus movetur” De Musica I, II,4. 3

600

sustentava que aquilo que os espetáculos representam não é menos importante para a experiência estética que as percepções mesmas. A igualdade que decide sobre a beleza é percebida pelo intelecto: “Eu me deleito na igualdade absoluta percebida pelos olhos – não os de meu corpo – mas os de meu espírito. Tenho estima pelos objetos que contemplo com meus olhos. Tanto mais os estimo, quanto mais por sua natureza eles se aproximam do ideal percebido pelo meu espírito. Como é esse ideal, ninguém sabe explicar bem”9. O juiz supremo não parece ser os olhos e os sentidos, mas a razão da alma: “Logo a razão busca também o deleite carnal da alma, que eram atribuídos aos sentidos, portanto, se pergunta: quando a igualdade numérica em uma sequência temporal agrada, será que duas sílabas breves que se ouviu são realmente iguais” 10. A distinção de dois elementos da experiência estética, o direto e o indireto, o sensível e o intelectual, constitui a primeira tese de Santo Agostinho no campo da psicologia do belo. O nosso autor assegura que a experiência do belo possui a mesma qualidade fundamental que a beleza, isto é, o ritmo. Da mesma forma que existe ritmo em uma coisa bonita, também deve haver em experimentá-la, por que sem ele a experiência é impossível. Para o filósofo africano havia cinco tipos de ritmo: o ritmo existente nos sons, o ritmo existente nas percepções, o ritmo na memória, o ritmo existente nas atividades do homem, e, finalmente, o ritmo existente no intelecto, que é inato ao homem. Diz Agostinho: “Existem cinco tipos de ritmos[...] os primeiros se chamam judicativos, os segundos progressores ou ativos, os terceiros os que saem dos ouvidos, os quartos os da memória ou recordáveis e os quintos são os sonoros”11. Enquanto os antigos analisavam e classificavam os ritmos a partir do ponto de vista matemático, como fizeram os pitagóricos, ou a partir de posições pedagógicas e éticas, como fizeram Platão e Aristóteles, Santo Agostinho, ao distinguir o ritmo da percepção, da memória, da atuação e do juízo, introduz o ponto de vista psicológico. O mais interessante na sua teoria psicológica do ritmo foi a afirmação de que o homem dispõe de um ritmo inato que lhe foi dado pela natureza e que é um ritmo inalterável do intelecto. Este é o mais importante dos cinco ritmos, já que sem ele, o homem não seria capaz de perceber os outros ritmos nem tampouco produzi-los. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Aurélio. De Vera Religione. Madrid: Editorial Catolica-BAC, 1956.

De vera religione, XXXI, 57. De Musica VI, 10,28. 11 “Quinque genera numerorum [...] vocentur ergo primi iudiciales, secundi progressores, tertii occursores, quarti recordabiles, quinti sonantes”. De Musica VI, 6, 16. 9

10

601

____________. A Verdadeira Religião. Tradução de Nair Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. ____________. De Musica. Madrid: Editorial Católica-BAC, 1988. ____________. La Musica. Tradução de Maria Bettetini. Milano: Rusconi, 1992. ALTUNA, Luís Rey. San Agustín y la Musica. In: Augustinus. v.5, 1960, p.191206. FITZGERALD, Allan. Augustine through the ages. An Encyclopedia. Cambridge: Publishing Company, 1999. GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Paulus, 2010. HINRICHSEN, Luís Evandro. A Estética de Santo Agostinho – o Belo e a Formação do Humano. Porto Alegre: ESTEF, 2009. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2003. TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la Estética II. La estética medieval. Madrid: Akal, 2002.

602

A REFUTAÇÃO À TEORIA MUSICAL NO CONTRA OS MÚSICOS DE SEXTO EMPÍRICO Sarah Roeder [email protected] Graduada em Filosofia Mestranda em Música pela UFPR. Palavras-chave: Música grega antiga. Ceticismo. Ethos. Harmonike.

No Contra os Músicos, Sexto Empírico refuta a teoria musical da antiguidade tanto sob sua perspectiva ética – questionando sua utilidade – quanto sob a perspectiva técnica da ciência da música – apresentando argumentos contra os conceitos de melodia e de ritmo. Além de ser importante fonte sobre o papel da música na antiguidade, a refutação da música compartilha de um objetivo mais amplo da filosofia cética, a saber, o combate ao dogmatismo na filosofia e nos Estudos Cíclicos1. Este trabalho tem como objetivo apresentar o escopo do conceito de música refutado por Sexto Empírico e sua relação com a finalidade do ceticismo pirrônico. Os tratados sobre a música grega que chegaram até nós indicam que havia uma divisão fundamental entre teoria e prática musical. A prática restringia-se à execução do instrumento e era considerada desprovida de reflexão. Já a teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmológico da ciência musical quanto seu sentido técnico relacionado ao estudo da harmonike, da rítmica e da métrica. Além disso, os estudiosos da ciência musical estavam preocupados com o papel ético da música no que diz respeito às suas características terapêuticas e ao seu poder de formar e determinar o caráter e o comportamento do indivíduo. Esse papel ético da música está estritamente ligado à paideia2 grega. Tais ideias permaneceram amplamente aceitas ao longo da Antiguidade, tendo reflexos importantes no pensamento musical ocidental até o século XVII3. Todavia, já na Antiguidade, houve quem questionasse seu status. O primeiro registro que questiona a teoria musical a que temos acesso é o Papiro de Hibeh, possivelmente contra as ideias de Platão e de Aristóteles, rejeitando a associação de um ethos4 à música. No período greco-romano, deparamo-nos com as obras do cético Sexto Empírico e do epicurista Filodemo de 1Estudos Cíclicos ou Artes Liberais é como era chamado o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educação na Antiguidade. 2O termo paideia “designa a experiência cultural e ética grega; ele não é de nenhum modo limitado à educação em seu sentido formal.” (Anderson, 1966, p. 2). 3Ver Tomás (2002, p. 13-26). 4A palavra grega ἦθος é traduzida por “caráter” ou “disposição”. Não deve ser confundida com ἔθος que significa “hábito” ou “costume”.

603

Gádara. Ambos, sob perspectivas diferentes, refutam a música enquanto uma das artes que integravam os Estudos Cíclicos que constituíam o curriculum básico da paideia grega. No Contra os Músicos, Sexto Empírico5, filósofo cético do século II d.C., dirige sua crítica à teoria musical que era considerada por muitos mais completa que a prática musical. O autor parte de diversas fontes6 para refutar a teoria musical grega sob duas perspectivas: questiona a utilidade da música no que diz respeito à teoria do ethos na paideia grega e argumenta contra os princípios técnicos da ciência musical. De acordo com Sexto Empírico, o ceticismo pirrônico tem por objetivo o combate à precipitação dogmática de se sustentar firmemente crenças a respeito daquilo que existe na realidade, externamente às nossas representações. O cético observa que as várias teorias desenvolvidas pelos filósofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que não há um critério que nos permita distinguir qual delas é verdadeira. Em função disso, para cada afirmação dogmática ele apresenta uma afirmação oposta e o igual peso das teorias colocadas em oposição leva-o a um estado de suspensão do juízo. A obra de Sexto Empírico foi dedicada ao combate ao dogmatismo em cada uma das partes da filosofia. Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Cíclicos os céticos também se depararam com uma postura dogmática, Sexto Empírico propõe um ataque às bases de cada uma das disciplinas ensinadas pelos especialistas. 7 Entre essas se encontra a música. O texto de Sexto Empírico apresenta as definições difundidas sobre a música e, em seguida, argumenta que elas não são necessariamente válidas. Na primeira parte ele ataca o valor da música argumentando que, se a música é compreendida em termos de sua utilidade no que concerne à sua capacidade de mover a alma alterando o caráter do ouvinte, essa capacidade não pode ser provada. Com isso, a música mostra-se muitas vezes inútil para aquilo que propõe. Na segunda parte do texto ele promove uma discussão acerca de questões técnicas da ciência musical. Sexto Empírico foca-se nos conceitos básicos da ciência harmônica e mostra como estes dependem dos conceitos de som e de ritmo. Em função disso, ele busca mostrar a inexistência destes conceitos, 5A obra de Sexto Empírico é ainda pouco estudada em relação às suas contribuições ao pensamento filosófico - sobretudo sua influência na filosofia moderna. Dentre os textos que chegaram até nós estão as Hipotiposes Pirronianas, o Contra os Dogmáticos e o Contra os Professores. Nos dois primeiros, o autor apresenta o método cético e ataca cada uma das partes da filosofia mostrando o conflito de opiniões dos filósofos. 6 Segundo os comentadores, os argumentos acerca do valor da música refutados por Sexto são parecidos com os de Quintiliano e de Plutarco. A refutação contra o valor ético e filosófico da música, por sua vez, está muito próxima da que é encontrada na obra de Filodemo de Gadara (século I a.C.). A principal fonte da teoria musical apresentada por Sexto é a obra de Aristóxeno, havendo também paralelos com a obra de Aristóteles. Cf. Greaves (1986, p. 24-36). 7O Contra os Professores divide-se em seis livros: Contra os Gramáticos, Contra os Retores, Contra os Geômetras, Contra os Aritméticos, Contra os Astrólogos e Contra os Músicos.

604

destruindo os conceitos básicos da ciência musical, toda a sua estrutura fica comprometida. O Contra os Músicos inicia com a distinção dos sentidos em que o termo “música” é utilizado: teórico - enquanto “uma ciência (episteme) que lida com melodias notas e composição rítmica e coisas semelhantes” (M 6.1)8 9; prático - em relação à habilidade na execução de instrumentos (organiken empeiria) tal como quando chamamos instrumentistas de “músicos”; e, por fim, o sentido metafórico quando algo é considerado “musical”. Esse último é derivado de um sentido amplo de “mousike” que inclui todas as artes e ciências presididas pelas Musas (GREAVES, 1986, p. 125, n. 8). Por isso, “musical” (mousikos) pode ser atribuído àquele que é “dotado pelas Musas, culto, refinado, elegante” (TOMÁS. 2002, p. 40-1). Na primeira definição Sexto Empírico toma Aristóxeno10 como exemplo de músico e é apenas nesse sentido que ele pretende refutar a música “por ter sido estabelecido como o mais completo” (M 6.3). Objetiva-se mostrar que tal recorte está de acordo com a cisão entre teoria e prática musical na Antiguidade e esclarecer que Sexto está preocupado em refutar a música enquanto ciência especializada e não como uma arte prática. REYES (2004, p. 100) aponta que “na época de Sexto, o oposto à harmonike é já claramente a organike (…). Os organikoi, isto é, a organike de Sexto, nem sequer participa da discussão dos kriteria em música, tão relevante nessa época”. Em relação aos objetivos da filosofia cética, Sexto Empírico parte de uma oposição entre teoria e prática musical com a finalidade de refutar as teorias a respeito das artes, isso acontece não só porque elas partem de premissas nãoevidentes, mas também porque a determinação da natureza de certos aspectos de uma arte é algo completamente inútil para a sua execução. No caso da música, quando o cético distingue os sentidos de “música” ele não ataca aqueles que executam peças musicais, mas apenas os que teorizam acerca dela. Se consideramos que a suspensão de juízo se dá em função da 8M 6 refere-se ao Contra os Músicos. 9Esta definição privilegia o aspecto técnico da teoria musical. Segundo REYES (2004, p. 99), o conteúdo apresentado na definição da música teórica se confunde com a definição de uma das partes da ciência musical, a harmonike. Todavia, o ponto principal a ser observado é a oposição entre ciência e experiência. 10Aristóxeno foi um filósofo e músico no séc. IV a.C., discípulo de Aristóteles. No Contra os Músicos ele é tomado como exemplo de músico na medida em que trata da música sob uma perspectiva teórica, mas não como único paradigma do que seja música, pois, como veremos, na primeira parte da obra de Sexto são abordadas algumas definições de música associadas aos pitagóricos. Na parte que trata de refutar a música em seus aspectos técnicos, em contrapartida, notamos que algumas definições são tomadas diretamente da obra de Aristóxeno. Diferentemente da corrente pitagórica onde a teoria musical dependia de razões matemáticas, para ele a música adquire um caráter empírico e os conceitos são estabelecidos a partir da percepção sonora. Tal perspectiva, todavia, não altera a relevância da doutrina do ethos musical no período. Cf. BARKER (1989, p. 119-125).

605

pretensão de verdade do discurso dogmático, é a teoria musical, sob seus aspectos técnicos e éticos que será questionada, visto que ela afirma algo a respeito da natureza da música, a “experiência em instrumentos”, por sua vez, não será refutada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ANDERSON, W. D. Ethos and Education in Greek Music. Harvard, 1966. EMPIRICUS, Sextus. Against the Professors: Prous Mathematikous. Ed. e trad. Bury, R.G. Reimpr.1993. Harvard: Loeb Classical Edition, 1933 . _________________. Contra los Profesores. Ed. e trad. Jorge Bergua Cavero. Biblioteca Clásica Madrid: Gredos Editorial Gredos, 1997. _________________. Against the Logicians. Ed. e trad. Richard Bett. New York: Cambridge University Press, 2005. GREAVES, D. D. Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ: Against the musicians. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1986. HADOT, Pierre. O que é filosofia Antiga?. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. LIPPMAN, E. Musical thought in Ancient Greece. New York: Da Capo Press, 1975. MATES, Benson. The Skeptic Way: Sextus Empiricus’s Outlines of Pyrrhonism. New York: Oxford University Press, 1996. REYES, Pedro Redondo. Sexto Empírico y la mousiké. EMERITA - Revista de Linguística y Filología Clásica (EM) – LXXII, 1, p. 95-119, 2004. SPINELLI, Emidio. “Pyrrhonism and the specialized sciences” in The Cambridge companion to ancient scepticism. Edited by Richard Bett. Cambridge University Press: Cambridge, 2010. TOMÁS, Lia. Ouvir o lógos: música e filosofia. São Paulo: Editora UNESP, 2002. WEST, Miles L. Ancient Greek Music. New York: Oxford University Press, 1992.

606

A PARTICULAR DIREÇÃO DE TEMPO E A COMPREENSÃO DO ESPAÇO E DO TEMPO EM CONSTRUÇÕES ESPELHADAS Prof. Dra, Silvia Maria Pires Cabrera Berg [email protected] Departamento de Música da FFCLRP – USP Sara Lima da Silveira Costa Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Palavras chave: Tempo, grundgestalt, compreensão espacial, compreensão temporal, particular direção de tempo.

O espelhamento é um dos mais antigos e fundamentais processos composicionais e um dos principais processos utilizados na música moderna e contemporânea em seus diálogos composicionais com a música do passado, quer na construção de sistemas, quer na construção estrutural de obras. Adorno ao afirmar que “quanto maior for o grau de integração da conexão serial, maior a entropia das estruturas resultantes” (Adorno 2008, p. 208, and Ligeti 1965, p. 10) nos remete em primeira instância à questão da unidade e consistência do material pré-composicional e das possibilidades de seus desdobramentos. Uma das obras mais significativas do século XX, o Concerto para Nove Instrumentos op. 24 de Anton Webern (1883 – 1945), cuja série espelhada é construída pelas notas (O) Si, Sib, Ré, com inversão das mesmas (I) Do Do#, La, pelo retrógrado (R) Sol #, Mi, Fá, e pela Inversão do retrógrado (IR) Mib, Sol Fá#, é uma obra que integra o conceito de Grundgestatl1 e o desenvolvimento da variação possibilitada pelo sistema dodecafônico com ênfase na simetria derivada das três notas (O) Si, Sib, Ré com ampla utilização de texturas pontilistas e melodia de timbres (Klangfarbenmelodie), um desdobramento da melodia como derivação tímbrica.

Webern: Concerto para Nove Instrumentos op. 24.

Termo usado por A. Schoenberg (1874 - 1951) para designar as relações de unidade e coerência na composição musical: ‘Whatever happens in a piece of music is the endless reshaping of the basic shape … There is nothing in a piece of music but what comes from the theme,springs from it and can be traced back to it; to put it still more severely, nothing but the theme itself’ (‘Linear Counterpoint’, 1950). Shoenberg nunca definiu o termo Grundgestalt musicalmente ou o exemplificou com excertos da literatura musical, portanto estas inferências são fundamentadas em suas próprias análises musicais e dos escritos deixados por ele. (Grove 2004) 1

607

Os processos contrapontísticos de transposição, inversão, retrógrados, aumentação e diminuição utilizados por Webern centrados na simetria e texturas pontilistas, convergem para o conceito de Invariance, termo emprestado da matemática e física teórica para designar a propriedade do sistema de permanecer inalterado mesmo sob transformações por variáveis internas, que neste caso específico, é possibilitado pela convertibilidade das séries construídas por Webern como material pré-composicional gerador das estruturas conversíveis de suas obras. Webern utiliza também esses processos com maior ou menor rigidez no desenvolvimento rítmico, da articulação e dinâmicas e não menos, no desenvolvimento tímbrico (Klangfarbenmelodie) onde os agrupamentos de três notas perpassam pela instrumentação do Concerto. Ao retornamos à afirmação acima citada, agora desdobrada em relação ao tempo de execução, nos depararemos com a questão da redução da complexidade que se dá no momento da execução e da audição da mesma, uma vez que estas estão condicionadas a um particular direção de tempo, pois a entropia é um conceito abstrato, que requer uma particular direção de tempo, também chamado de arrow of time2. Na medida em que prosseguimos em "frente" na linha tempo (outra abstração), a entropia de um sistema isolado aumenta, segundo a segunda lei da termodinâmica; a medição (quantitativa) da entropia é uma maneira de distinguir o passado do futuro, muito embora em sistemas termodinâmicos que não estão fechados, a entropia possa diminuir com o tempo. Dado ao senso intuitivo dos efeitos da entropia, é relativamente fácil de sabermos, ao vermos um filme, se este está sendo mostrado na “direção certa” ou contrária. O mesmo não se dá, no entanto, com a mesma facilidade quando trabalhamos com sistemas e estruturas musicais. Johann Sebastian Bach (1685-1750) na Oferenda Musical (1747) em sua inigualável maestria, compõe vários cânones, dentre estes, o cânone retrógrado (Crab Canon), onde o sujeito e contra sujeito são invertidos como em um palíndromo.

2 The arrow of time is easy to perceive, much harder to understand. Physicists appeal to the idea of entropy, the disorderliness of a system, which tends to increase according to the celebrated Second Law of Thermodynamics. But why was entropy ever small in the first place? That's a question that has been tackled by thinkers such as Ludwig Boltzmann, Stephen Hawking, Richard Feynman, Roger Penrose, and Alan Guth, all the way back to Lucretius in ancient Rome. (Sean Carroll, From Eternity to Here:The Quest for the Ultimate Theory of Time )

608

A percepção visual, dada a possibilidade de visualizarmos o espaço gráfico da partitura em sua totalidade, abrange a percepção do todo em ambas as direções do tempo, onde tanto “passado” e “futuro” convergem na execução do “tempo presente”. O mesmo não se dá, no entanto durante a execução da mesma, que está condicionada a uma particular direção do tempo. A questão da linearidade como fator redutivo da percepção de estruturas espelhadas complexas não é um fenômeno contemporâneo. A composição de estruturas espelhadas pressupõe a não linearidade, e aqui, o contraponto principalmente com a utilização de todos os recursos de retrógrados, inversão, aumentação e diminuição, converte-se em dínamo, em potencial de deslocamentos de tempo, dada a não convergência temporal intrínseca de suas estruturas. A compreensão de estruturas espelhadas complexas requer portanto a não linearidade espacial compreendida tanto nos processos de composição, quanto nos processos de construção da performance - que desconstrói a linearidade ao sistematizar o estudo e a interpretação - ou seja, requer uma compreensão espacial dessas estruturas, enquanto que, no processo de compreensão auditiva esta reduzida pela limitação condicionada a uma particular direção de tempo requer a repetição para ser ampliada, ou seja, requer uma ampliação do tempo de

REFERÊNCIAS

609

ALASTAIR, Willians. New Music, Late Style: Adorno's 'Form in the New Music'. Music Analysis, Vol. 27, No. 2/3 (July-October 2008), pp. 193-199;

MICHAEL, J. Schiano. Groove, Grundgestalt © Oxford University Press 2004; CARROLL, Sean. From Eternity to Here: The Quest for the Ultimate Theory of Time. Penguin Group US, 2010;

610

CHORO E MODERNISMO: QUESTÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DA MÚSICA POPULAR URBANA. Renan Moretti Bertho [email protected] Mestrando em música pela Universidade Estadual de Campinas, Unicamp Palavras-chave: choro; modernismo; abordagem histórica.

O presente resumo discute a relação entre o modernismo brasileiro e o choro. Trata-se de contextualizar a utilização desse gênero musical pelo movimento modernista nacionalista, mais especificamente nos anos 20 e 30. A questão inicial parte da contradição existente na apropriação de um gênero da música popular urbana por artistas de um movimento que tinha como premissa identificar na música popular rural elementos tradicionais brasileiros. Essa busca pelo tradicional fica explícita no “Ensaio sobre Música Brasileira”, onde Mário de Andrade se mostra preocupado com a construção da identidade nacional e para tal sugere a exaltação das manifestações desenvolvidas no meio rural: “Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já esta feita na inconsciência do povo.” (ANDRADE, 1972, p. 3). Tal inconsciência estaria presente em elementos folclóricos, característicos do homem do campo, que teriam como finalidade servir de matéria prima aos compositores da música de concerto, contribuindo assim com a construção autentica identidade nacional. Há de se destacar a importância do Ensaio, que data de 1928 e introduz no Brasil questões de cunho estético com a finalidade de nortear a produção musical, segundo Samuel Araújo: Na obra musicológica de Mário de Andrade, principalmente a partir da publicação do Ensaio sobre a música brasileira, é retomada toda uma tradição de discussões travadas no continente europeu desde o século XVIII em torno do revigoramento da arte a partir de modelos populares. (ARAÚJO, 2008, p. 158)

Ao exaltar os valores de uma cultura tradicional, Mário de Andrade não apenas propunha questões estéticas sobre a produção da música de concerto, mas também se opunha aos costumes da crescente elite burguesa, que tinha como referência musical o repertório da música de concerto européia, mais precisamente dos períodos clássico e romântico. A influência do pensamento europeu não se deu apenas na arte. Eram modelos tão marcantes que chegaram inclusive a contextualizar reformas urbanas:

611

As elites burguesas e intelectuais das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a partir dos fins do século XIX e, em especial, nas duas primeiras décadas do XX, imbuídos dos ideais de “civilização” e de “progresso” visavam eliminar os vestígios do “atraso” brasileiro simbolizado pela escravidão (...) e pela economia marcadamente rural da Colônia e do Império. (CONTIER, 2004, p. 5)

Entretanto, enquanto Mário sugere a valorização do popular rural, o popular urbano se organiza como massa, pouco desejada aos olhos dos progressistas e civilizadores. Esses agrupamentos representaram uma nova organização social que contribuiu com o divertimento das elites: Os excluídos sociais foram expulsos para os subúrbios ou para os morros (favelas). As perseguições de policiais tornaram-se freqüentes em face da presença de homens pobres, descalços ou maltrapilhos que perambulavam pela Avenida Central ou pela Rua do Ouvidor. Esses novos espaços urbanísticos tornaram-se pólos de entretenimento das elites brancas e burguesas. Paulatinamente, durante os anos 1910 e 1920, com o surgimento dos cinemas, dos dancings, cafés, cabarés, os chorões (em geral, negros e despossuídos sociais) passaram a se exibir em conjuntos musicais nesses novos “espaços” considerados “civilizados” pelas elites dominantes. (CONTIER, 2004, p. 7)

Compreender as mudanças urbanas e sócio-culturais do início do século XX, bem como entender os motivos pelos quais os princípios estéticos eram traçados por Mário de Andrade revela a condição ambígua do choro, que por um lado foi beneficiado com a urbanização e por outro servia de matéria prima aos compositores modernos, mesmo sem preencher os requisitos “musicológicos” presentes no Ensaio. Nesse ponto concordo com a afirmação de José Miguel Wisnik, ao sugerir que o choro ocupa um lugar paralelo e elástico, se posicionando entre o samba, o salão e o sarau “tangenciando a batucada e aspirando status erudito” (WISNIK, 1983, p. 161). O autor justifica essa afirmação contrapondo as falas de Donga e Pixinguinha. Ao passo que o primeiro descreve a perseguição que os chorões sofriam da polícia, o segundo enaltece o gênero utilizando um discurso praticamente oposto, inclusive localizando o choro em um patamar mais elevado que o samba. Tanto Donga quanto Pixinguinha eram integrantes dos 8 batutas, grupo formado em 1919, e pioneiro no processo de formalização e profissionalização da música popular. Para Naves (1998, p. 144) o grupo promoveu a urbanização do ritmo e do figurino. A profissionalização dos grupos é um forte indício de como os artistas se organizaram para participar do mercado de entretenimento.

612

Pixinguinha e Bonfiglio de Oliveira, por exemplo, tiveram inserção no teatro de revista ao participarem da Companhia Negra de Revista, em 1926, como relata Tiago Melo Gomes (2004, p. 288). A proliferação do rádio também contribuiu de forma essencial para profissionalização dos músicos: “na passagem da década de 1920/30, as emissoras de maneira geral foram perdendo seu caráter elitista e amadorístico, profissionalizando, ainda que amadoramente, seus artistas e técnicos.” (MORAES, 2000, p. 56) Há de se mencionar ainda o cinema (que oferecia a oportunidade de atuação dos músicos tanto em filmes mudos, quanto nas salas de espera) e o comércio de discos (que evidentemente incluía sessões de gravações e confecção de arranjos). Os músicos que transitavam nesses meios possuíam conhecimento musical, técnica instrumental apurada e experiência para tocar em grupo. Tais habilidades não passaram despercebidas aos olhos e ouvidos de compositores como Villa Lobos, Guerra Peixe, Camargo Guarnieri entre outros modernos ...o músico de choro devia ter necessariamente um profundo conhecimento das sonoridades, capacidade e técnica de seu respectivo instrumento, fosse adquirido como autodidata, fosse pela prática diária ou pelo estudo formal e sistemático. (...)Talvez por isso ele tenha atraído inúmeros músicos de formação erudita que conviveram e trocaram, em profusão, informações com os chorões. (MORAES, 2000, p. 249-250)

O fato é que mesmo servindo aos interesses da música de concerto e se profissionalizando para ocupar espaços comerciais, o choro continuou sendo praticado nas rodas1, que possuíam perspectivas e significados distintos:  Para os chorões a roda era (e atualmente continua sendo) um espaço musical, social e educacional;  Para os modernistas tratava-se de uma manifestação sensível com conteúdos que serviriam de inspiração para composição da música sinfônica. Apesar dessas diferentes posições, temos a roda como um ponto de encontro entre o fazer musical urbano – informal e local – e características expressivas da estética modernista – formal e universal. Outros espaços culturais existentes nos anos 20 e 30, também interagiam. É o caso, por exemplo, do quintal-de-samba e do terriro-de-candonblé, que de

Como demonstram De Moraes 2000 (p.250), Cazes 2010 (p.113), Livingston e Garcia 2005 (p.39), entre outros. 1

613

acordo com Wisnik (1983, p. 159-160), possuíam uma relação mediada por biombos culturais que sutilmente contribuía para interpenetração das culturas. Esses biombos culturais permeavam uma linha que atravessava as manifestações daquela época, ligando o terreiro de candomblé à sala de concerto e vice versa. Sendo assim temos “de um lado o ritual religioso popular, de outro, o ritual estético burguês (e essa oposição é mais política do que se possa imaginar)” (WISNIK, 1983, p.160). Baseado nessa discussão, concluo que outros espaços culturais se relacionavam com as rodas de choro assim como as rodas se relacionavam com outras manifestações. Todavia, a posição central das rodas de choro permite localizá-las como rito estético popular, alternando elasticamente entre o formal e o informal; o local e o universal; o urbano e o moderno. Seja na informalidade das rodas, seja na influência que exerceu sobre os compositores da música de concerto, existiram alguns elementos que foram fundamentais para legitimar o choro em patamares distintos, como apresentado anteriormente. Portanto, quando olhamos para o uso que os compositores modernos fizeram do choro, utilizando a sonoridade urbana na música sinfônica, concluímos que se trata de uma apropriação estética carregada de significados sócio-culturais que garantem a participação no rito estético popular em detrimento da identificação e investigação do meio rural.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972. ARAÚJO Samuel, PAZ Gaspar, CAMBRAIA Vicenzo. Música em debate: perspectivas interdisciplinares / organizadores. Rio de Janeiro, RJ: FAPERJ: Mauad X, 2008. CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. 4. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2010. CONTIER, A. D. . O nacional na música erudita brasileira: Mário de Andrade a questão da identidade cultural. Fênix (Uberlândia), v. I, p. 1-22, 2004. GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. ___________________________ Metrópole em sinfonia: historia, cultura e musica popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo, SP: Estação Liberdade: FAPESP, 2000. NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul : modernismo e musica popular. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998.

614

SQUEFF, Enio; WISNIK, Jose Miguel. Musica. 2. ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1983.

615

ENSAIO SOBRE MÚSICA, TEMPO E RELATIVIDADE Lucas Eduardo da Silva Galon [email protected] Graduado em Música (USP) Mestre em Musicologia (USP) Doutorando em Musicologia pela ECA - USP

Palavras-chave: Tempo; Música; Relatividade; Obra de Arte;

A re-significação das coisas que circundam o homem, sujeito e agente das múltiplas interpretações dadas a estas coisas ao longo da história, parece ser uma espécie de válvula motora que impulsiona a compreensão humana sempre em alguma direção. Muitos creram, e ainda crêem, que se trata sempre de um ir avante. Mas mesmo uma leitura mais descuidada da história pode indicar que este “ir-sempre-adiante” muitas vezes é ilusório. Muitas vezes caminhar para frente pode ser sinônimo de um retorno ao passado. Assim sendo, inexoravelmente, o olhar histórico-filosófico para as coisas será relativo e revelativo. O óbvio desta relatividade se desdobra numa reflexão menos óbvia, quando o filósofo Pareyson postula a possibilidade de termos filosofias expressivas e revelativas. Olhar para as coisas e pensar sobre elas, admitirá sempre esta dualidade (autonomia/pregnância ideológica). No entanto, talvez a essência das coisas ainda não resida nas possibilidades de suas re-significações. Talvez, pensando com Fernando Pessoa, "as coisas não têm significação: têm existência". Em Heidegger, o problema resiste de forma mais aguda quando pensamos justamente nestas coisas que nos são tão familiares, mas cuja coisidade, residente em seu puro-estar-em-si-mesma, nos foge completamente, o que ocorre também no caso da arte, uma destas coisas. Afinal, se as coisas se consubstaciam no olhar que a elas se dá, quantas complicações surgem quando pensamos na obra de arte, algo que intuitivamente nos aparece como algo mais do que uma mera coisa?. Dentro desta concepção filosófica ocidental a Arte é ἀλήθεια, um desocultar da verdade, uma verdade que nega o “esquecimento”, que postula a obra enquanto singularidade. no ocidente, qualquer que seja o estilo ou o período histórico, paga-se tributo ao pensamento grego. Ou à cosmologia grega, Ambos consideram a obra de arte como algo separado das “meras” coisas. Sejam visíveis ou não. Sejam audíveis ou não. Em tempos onde é comum o anúncio da insignificância ou morte da arte; onde se discute, após os extremos que anunciam uma volonté d’anéantissement, o que é ético e o que é estético na obra; onde a fragmentação do homem enquanto ser histórico e nacional parece evidente e tomadas de posição são cada vez mais

616

difíceis. Ainda há a manutenção de dois pilares no centro das discussões: a religião e a ciência. De fato as inúmeras religiões, em um ponto ou noutro, tiveram que se re-significar inúmeras vezes para continuar, enquanto advento cultural, se correspondendo com o espírito das pessoas. A ciência, de igual modo, teve no postulado do genial físico Albert Einstein e suas teorias da relatividade um novo modo de encarar o próprio progresso, limitando o modo de ver as coisas a partir de suas múltiplas possibilidades, re-significando o modo de sentir o mundo, abalando a nossa compreensão de algo tão evidente, linear e inexorável quanto o tempo. .............................

*Quid est ergo tempus? Si Nemo ex me quaerat, scio, si quarenti explicare velim nescio. O tempo é o problema central da ciência contemporânea, pelo menos no que atina ao aspecto ontológico do homem hodierno. Mesmo no aspecto biológico, toda a luta da comunidade científica se concentra no problema do prolongamento do tempo de vida do homem. A religião, por sua vez, se concentra na expectativa de um tempo futuro, para além da finitude biológica do homem, e de um tempo passado, de eternidade retrógrada. Para ciência e religião, o tempo permanece como a grande armadilha do pensamento, e nunca é demais lembrar a célebre aporia de Santo Agostinho, colocada desta maneira, no século IV d.c.: *Que é,

pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me pergunta, não sei. Se o tempo é a armadilha do pensamento, pois parece ser algo em si mesmo, aspirante a um significado que nunca se revela - seja no âmbito cientifico ou religioso - a é a armadilha do pensamento sobre a obra de arte. Como Borges pôde pensar, o hecho estetico parece morar nessa iminência de uma revelação que

não se produz. .............................. “Perdia-me, às vezes, no antes e depois do trem do futuro” ... (excerto de Cruzamento, de Luiz Frazon)

Se “ir adiante” pode se ocultar num olhar para o passado, a aporia de Agostinho ganha substância, assim como o pensamento grego sobre a arte, especialmente sobre a música. Aqui, ciência e religião podem concordar. A música é a culminância do problema da temporalidade encontrada na possibilidade do desvelar na obra. Na célebre colocação da musicóloga Gisèle Brelet, a música é l’art du temps par excéllance. Em nenhuma arte o problema do tempo é tão patente quanto na música, que, consubstanciada em suas obras, encarna o tempo relativo muito antes da hipótese de Einstein.

617

Se o físico contemporâneo Stephen Hawking atribui a Einstein o ato de dar uma “forma para o tempo”, podemos dizer que a música sempre foi a substanciação do tempo em forma. Se, das modernas teorias do tempo (transformado numa dimensão espacial) deduz-se que podemos ir e voltar no tempo - Segundo Hawking o tempo pode assemelhar-se aos trilhos de um trem, que embora nos possibilite apenas seguir em frente talvez possua “curvas e desvios” (deformações no espaço-tempo) de modo que possamos “retornar a uma estação anterior da linha” - pode-se dizer que o tempo em forma na música, sempre permitiu aos compositores voltarem várias vezes à mesma estação, mesmo seguindo sempre em frente; A forma-sonata, utilizada pelos compositores clássico-românticos é um exemplo claro: uma “fórmula” composicional onde um tema musical é exposto, desenvolvido (vai adiante, numa travessia), re-exposto (a tal da volta “a uma estação anterior”) e finalizado. Mas a repetição nas obras musicais, se não é um retorno literal no tempo durado, o é no “tempo imaginário” do ouvinte, materializando esta volta no tempo relativo. São muitos os exemplos. A própria filosofia do tempo de Agostinho já impregna uma percepção do cantochão, cuja ritmicidade e melodia são expressões da manipulação da percepção temporal, deixando seu indelével legado para o pensamento ocidental sobre a música. .............................. A peculiaridade da arte musical, pensada na concepção grega – a obra é singularidade, e não mera coisa – deve muito a essa excelência de arte do tempo. Esta transcendência da obra em relação ao mundo da cultura, da norma, completa seu destino no desocultar da beleza do material que a compõe, da verdade extraída dos mundo das coisas. E se o mármore será percebido em sua beleza nas esculturas, ou o cobre se traduzirá a partir de seu verdadeiro brilho nas mãos do artista, é na música o lugar onde o tempo, tanto quanto o som e o ruído, se re-significará, e poderá ser sentido materialmente no espaço. Partindo deste modo de pensar, podemos novamente recuperar esta noção grega de arte como ἀλήθεια, e ainda com Heidegger pensarmos que, para compreensão da abertura do mundo que desvela a verdade da obra, é preciso ser “todo ouvidos” (ecos de Heráclito). Assim, a obra poderá retirar o receptor do mundo do tempo durado, para lançá-lo no seu universo poliédrico, onde cada interpretação individual é co-partícipe do logos da obra. Cada ouvir poderá nos carregar aos tempos e aos lugares mais longínquos, no passado, ou no futuro. .............................. Iniciamos este ensaio especulando sobre a re-significação das coisas no mundo, e do tempo. A essência da arte musical, embora não possamos encontrá-la (se existe), não residiria num desvelar da verdade através das múltiplas possibilidades de re-significação e inter-relação com tempo e do que ele contém? Não seria uma condição de existência da arte essa capacidade radical de re-

618

significação –para além das meras coisas – que garantiria a manutenção da obra como uma verdade em qualquer tempo? Daquela concepção cosmológica grega da música referida inicialmente originou-se um pensamento onde a música é um todo indissociável, que incluiria numerosos fenômenos - ciência, poesia, matemática, dança, e além. Nesta concepção, inicialmente pitagorica, talvez resida a chave para sermos “todo ouvidos”, e participarmos do ato de “tirar o véu” proposto pela obra de arte musical. A partir daí, não haverá mais fronteiras, e poderemos nos mover no tempo (conseqüentemente no espaço), e o inaudível talvez se faça audível. Quem tem ouvidos ouça; e se a obra desvela uma verdade, em Grande sertão: veredas é Riobaldo quem diz: “é preciso abrir a cabeça para o total”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. FRAZON, Luiz. Roçando Água. Ribeirão Preto: Ribeirão Gráfica e Editora, 2008. HAWKING, Stephen. MLODINOW, Leonard. O Grande Projeto. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010. HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Maria Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 2005. ____________. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forence, 2006. PAREYSON, Luigi. Verdade e Interpretação. Traduções de Maria Helena Nery Garcez e Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. TOMÁS, Lia. Ouvir o Lógos: Música e Filosofia. São Paulo: Unesp, 2002.

619

NIETZSCHE, DELEUZE E A REVOLUÇÃO DAS IMAGENS VISUAIS E SONORAS Luame Cerqueira [email protected] Professor Substituto de Filosofia da UERJ Doutorando em Filosofia pela Université de Toulouse II e pela UERJ Mestre em Filosofia pela UERJ Graduado em Filosofia pela UERJ Palavras-Chave: Afecto, Percepto, Sensação, Potência do falso.

A arte nunca abre mão do infinito, ela o restitui no finito, seja num quadro, seja numa escultura, seja numa música. O artista não se contenta com as cores que uma máquina fotográfica capturaria: o que ele faz é de outra natureza, não há nada a retratar, mas é necessário criar uma cor que exceda todas as cores. “(...) Em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento, eu pinto o infinito: faço um fundo simples do azul mais rico, mais intenso (...)” 1 Diante de todos os horizontes possíveis do pensamento, risível fica a pretensão de reduzir o infinito ao qual uma pintura nos remete a uma simples representação de um fato histórico, ou de um fato vivido. A arte não precisa de uma explicação. Nietzsche sustenta que quando isso ocorre é sinal de doença e decadência, assim, aponta Eurípedes como inimigo da tragédia no momento em que este introduz o prólogo. A tragédia em seu momento glorioso, por outro lado, não estabelece nenhuma conversa com a razão. Por mais que os gregos já soubessem previamente o destino da Medéia de Ésquilo, o que importava era, sim, o sentido estético e, simultaneamente, as intensidades que atravessavam os corpos. Ignoravam-se pretensões de comunicação. A arte é bloco de sensações, ou seja, um composto de perceptos e afectos. Não há semelhança alguma com coisas do mundo atual, a não ser as que podem ser impostas secundariamente. É precisamente por isso que a arte nada tem a ver com o regozijo do reconhecimento. Provoca experimentações imprevisíveis que, de tão novas, são incomunicáveis. Por outro lado, tampouco refere-se ao campo emotivo do espírito, que dá voz ao “coração”.

Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força transbordam a força 1

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.p.233.

620

daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido2.

A potência criadora expressa na arte eleva o falso à sua enésima potência. Isso explicita tanto a essência da arte como um processo diferenciante, quanto a própria natureza do tempo, a diferença em si, pela qual o mundo se faz sempre novo por meio de involuções, qualificações diversas que distribuem novos sentidos progressivamente, corpos-sem-órgãos, territorializações que excedem as delimitações espaciais e as justificativas funcionais. Se não há verdade no funcionamento da natureza, se o falso condiz com sua força criadora, é porque a própria natureza em seu seio revela-se artística. Ora, não é raro a vida apresentar-se por tal aspecto expressivo. São as nossas percepções demasiado interessadas na perpetuação das condições atuais que nos cegam para a riqueza e exuberância que lhe é própria. Na Grécia, pelo menos uma vez a música de Orfeu se faz impessoal e provoca nos homens uma superação de sua condição orgânica. Lançados em alto mar, ao som dos ventos furiosos, os argonautas reservaram espaço para um único artista: Orfeu. Sua lira não era para entreter os fadigados remadores e isso fica explícito quando a tripulação é seduzida pelos cantos e encantos das sereias. Contra o chamado orgânico, Orfeu, aquele que desafiou até mesmo as regras dos deuses, empunha sua lira e dela cria um som inaudito... Trava-se uma guerra: os tripulantes são tomados por esse novo mundo que se apresenta, essa música que não lembra nada, que a nada remete, mas que cria novas possibilidades de vida. É preciso voltar a remar, diante da grandiosidade dos possíveis revela-se a pobreza do estabelecido, o aprisionamento do orgânico. Voltar a remar não por uma moral, mas por uma ética, uma estética. Voltar a remar ao som da lira de Orfeu desbravando o caótico oceano para traçar uma consistência a caminho de novos mundos. Vamos, enfim, em busca dessa consistência, desse território expressivo que não tem o homem como ponto de partida; partiremos, sim, dos cantos do scenopoietes, enfrentaremos o caos e vislumbraremos a potência do falso. Navegaremos ao som da música de Orfeu: ela não é a trilha sonora que nos acalmará quando encontrarmos as tempestades, enfrentarmos monstros marinhos e a ira dos deuses, pois a arte é protagonista e nada pode nos desfigurar mais do que sua expressividade. O artista, na medida em que não participa dos hábitos instituídos, é visto frequentemente com desconfiança. Devido à sua estranheza para com o conjunto de semelhanças previstas, poderíamos até imaginá-lo sendo preso por um homem da lei, com o olhar carregado de valores estabelecidos. Impregnando o mundo por 2

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.p.213.

621

expectativas criadas por sua percepção, o guarda justificaria a prisão do artista da seguinte maneira: “Encontrei-o caminhando sem rumo. O lugar que ele descreve morar é impossível, assombroso. Verifiquei seus documentos e, na verdade, mora num lugar absolutamente diverso do descrito. Ao mencionar os vizinhos, parece descrever seres irreais, com características fantasiosas. Da mesma forma, após verificações, nada do que foi dito bate com a realidade. Sua memória é fraca e pouco se lembra dos fatos, mas inventa histórias extraordinárias, sem pé nem cabeça. Todos os fatos nos levam a crer de que ou seja um criminoso ou, no máximo, um louco”. O homem que quer a verdade sempre verá o artista com desprezo ou pavor. Não há comunicação possível entre o homem e o artista. Quando Sileno, com seu conhecimento dionisíaco, é capturado pelo rei Midas, é obrigado a revelar seus ensinamentos. Com o olhar carregado de desprezo, Sileno mostra que não há acordo possível e o melhor para o homem é não ter nascido; já que nasceu, o melhor a fazer é querer morrer o mais brevemente. Da mesma forma, os blocos de sensações se portam diante do homem como um monumento que nunca celebra um passado, não querem seu bem-estar, sua estabilidade ou seu prazer, mas antes querem que estes pereçam, olhando para o inatualizável dos acontecimentos. Os artistas produzem em vista de um novo homem, de um novo povo, sempre em devir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATAILLE, Georges. Sur Nietzsche. Paris, Gallimard, 1967. ______. Cinéma 1 :L'image-mouvement, Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. DELEUZE, Gilles. Cinéma 2 :L'image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985. ______. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. ______. Empirisme et subjectivité. Paris: PUF, 1953. ______. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. ______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. NIETZSCHE, Friedrich. OEuvres philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1967-1992.

622

SOBRE SILÊNCIO (MUSICAL): JOHN CAGE E A PROPOSTA DE UMA NOVA MÚSICA PARA NOVOS OUVIDOS Larissa Couto Rogoski [email protected] Mestranda PPG Filosofia PUCRS Gledinélio Silva Santos [email protected] Graduando em filosofia pela UESB Palavras-chave: Silêncio; Desconstrução; Música; John Cage.

A música, segundo Platão, era um instrumento moderador da alma. Argumento este, evidente na orbis de sua República. Nessa estruturação da Paidéia helênica, a música não se restringe a uma expressão artística; ela está ligada diretamente a um conjunto de elementos voltados para a formação do homem grego. Entender a música como instrumento didascálico e moderador da alma, não nos é estranho, ou, passível de contestação na atualidade, nem tão pouco noutros períodos históricos. De fato, inúmeras são as discussões entorno da música como expressão artística e sua relação com o homem (em atividades pedagógicas, terapêuticas, espirituais e etc.). Em todo caso, esses argumentos são carregados de conceitos teórico-musicais e psico-filosóficos. Em sua grande maioria, não há, como problema específico, uma investigação a cerca do que pode, e do que não pode ser classificado como música. Silêncio, ruídos e sons são elementos fundamentais e inter-relacionados em toda essa temática. De modo geral, o silêncio, caracterizado como a ausência de som, contrasta com a ideia de que música é uma propagação sonora de elementos melódicos, dentro de um encadeamento harmônico de notas musicais; o ruído é toda propagação sonora desarmônica, repudiado musicalmente e em outros contextos. Nessa perspectiva, a ausência de som (o silêncio) figura em muitos casos um estado primário ou secundário, tanto no próprio processo da criação musical quanto na fundamentação teórica do seu conceito. Segundo John Cage, na relação entre o silêncio e o som: “Nenhum som

teme o silêncio que o extingue. E não existe silêncio que não seja prenhe de som” 1. Portanto, existe aí uma relação intrínseca, na medida em que, numa composição harmônica, o silêncio se apresenta intermitentemente, estabelecendo as nuances intervalares de cada som - indispensáveis na construção melódica. Destarte, o

1

CAGE: Lecture on something (1959). In Silence, p.135.

623

problema é perceber no silêncio a possibilidade de uma execução musical, ou, dizer categoricamente que o silêncio é música. Notoriamente esta é uma questão cujo problema se encontra acentuado entre os ocidentais e, de modo geral, entre todos aqueles que herdaram do velho continente a concepção de tudo o que pode ser considerado música. Consequentemente, parte do estranhamento provocado pelo silêncio advém dessa formação. Contudo, talvez se explique o porquê de tal relação não ser conflituosa no elo estabelecido entre a obra de Cage e o silêncio, pois nela há uma ligação profunda entre seu processo criativo, sua obra e a cultura oriental - mais precisamente com a filosofia Zen Budista e o I Ching. Há uma multicidade de sons constante no íntimo de cada ser – algo entendido como “inquietações da alma” – que só é perceptível quando silenciado toda produção sonora externa. Em 4’33” é possível observar o desconforto inicial gerado em sua execução - pois se trata da falta daquilo que habitualmente é entendido por música, em troca do aparente “silêncio absoluto”. “Aparente” porque na proposta de Cage é possível percebermos, justo aí, a melodia composta pelo espectador no momento de uma apresentação musical. Ou, ainda que o som em uma música não permaneça em suspenso como na referida obra de Cage, percebe-se que os intervalos longos criam uma atmosfera melódica que nenhum outro som é capaz de produzir. Como o som pode ser desinstitucionalizado? Esta é a questão proposta por Cage. Ser somente som, “ele mesmo” é o que Cage deseja proporcionar ao seu ouvinte, para tanto, ele encontra na indeterminação e no fluir natural seu domínio musical. Uma música em fuga de teorias ou fórmulas pré-fabricadas pelo gosto e o ouvido “educado” é o objetivo da composição de Cage. Para ele, a palavra “música” deveria ser modificada, pós-século dezenove, pela expressão “organização do som”, mais repleta de sentido neste entendimento de música como uma porta aberta a todas as formas de som. A arte de Cage não se distancia da produção dos anos sessenta, quando no grupo Fluxus de música experimental, onde havia um interesse em ocupar o abismo entre a vida e a arte, para tanto, a distinção entre objetos, gestos, ruídos, etc e obras de arte possuíam uma aproximação tal que seria impossível, somente pela percepção, realizar a distinção. Neste panorama, a busca de uma nãointencionalidade representacional levou os artistas a recusarem as teorias, aproximando-se da experiência, por um lado, mas fez emergir teorias, críticos e filosofias sobre suas artes por tamanha vontade de entendimento sobre esta questão explícita e inegável sobre a distinção entre arte e vida. Em posição oposta à ideia de música sustentada por Cage nota-se Edward Hanslick e sua tese de que a música tem sua origem na busca pelo som agradável, em essência, o ritmo. Os sons que possibilitam a melodia, harmonia e ritmo, tendo a melodia como figura fundamental da beleza musical, a harmonia como possibilidade de transformação do ritmo e este sendo a artéria vital da

624

música, servindo de caminho para os timbres. Hanslick2 afirma, ainda, que da natureza não se pode aprender a fazer música, dela somente se retira o material bruto de onde a humanidade cria música. No oposto do diálogo sobre a música, Cage diz que, Musical habits include scales, modes, theories of counterpoint and harmony, and the study of the timbres, singly and in combination of a limited number of sound-producing mechanisms. In mathematical terms these all concern discrete steps. They resemble walking— in the case of pitches, on steppingstones twelve in number. This cautious stepping is not characteristic of the possibilities of magnetic tape, which is revealing to us that musical action or existence can occur at any point or along any line or curve or what have you in total sound-space; that we are, in fact, technically equipped to transform our contemporary awareness of nature's manner of operation into art3.

A peça 4’33” (1952) de Cage possui a força máxima de seu artista, pois carrega toda a ideia de uma explosão de criatividade que somente o silêncio poderia dar à música. A música vêm do silêncio, de acordo com Cage, por tal razão, somente ao permanecer no silêncio poderá se estar próximo de toda a força que a música pode ter, pois somente através do silêncio se conseguiria entender a origem da música e de sua composição. É possível aludir à proposta musical de Cage ao conceito de Desconstrução em Jacques Derrida, na medida em que sua obra possibilita um processo de depuração interna no indivíduo que a contempla; como numa ação inquisitória sobre o que é arte, desconstruindo as ideias convencionais que dela se tem. Processo que se instaura no instante em que ocorre a pergunta, onde, a partir de então, a música ganha novo significado. Ou, como no conceito de “Destruição” em Heidegger, que não implica, necessariamente, na destruição propriamente dita, mas sim, buscar: “libertar os conceitos que, ao longo da tradição, haviam enrijecido, pelo hábito de sua transmissão”4. Uma busca por um novo sentido da música, longe de todo formalismo. Uma desconstrução do som (música) até o silêncio que não visa sua destruição, mas sim seu ressurgimento. Como Danto, filósofo da arte americano, expõe, a apreciação da arte deve ir além das fronteiras das sensações, é preciso observar o conteúdo semântico que toda obra de arte possui. Danto afirma que a classificação de algo em obra de arte depende da interpretação, não há obra de arte sem interpretação. É preciso aprender a ver as coisas como obra de arte, não somente ser afetado pelo que se diz ser obra de arte, ou seja, é preciso compreender o conteúdo semântico da obra. Para tanto, afirmar que o silêncio de Cage “é obra de arte” implica em HANSLICK: Do belo musica, p. 41. CAGE: Silence, p. 9. 4 DUQUE-ESTRADA: Revista Cult, p. 53. 2 3

625

pressupostos que devem ser compreendidos para que se predique adequadamente enquanto arte, pois, sem os pressupostos expostos corre-se o riso de não “ouvir” o silêncio de Cage como música, ou, melhor, arte. Afinal, somente o silêncio do artista é arte, e não qualquer silêncio, já que é necessária a transfiguração da coisa banal em arte, atribuindo uma identidade artística que lhe permita participar do mundo da arte – algo que a diferencie de suas contrapartes indiscerníveis. Talvez o silêncio de Cage propicie sua tentativa de “limpar” os ouvidos das propostas musicais realizadas no ocidente até o século XX para novas músicas. Contudo, a força do silêncio e a busca por este é um empreendimento pessoal, mais que artístico, se há como realizar tal dicotomia. Como a dança de Pina Bausch, com seus gestos viscerais, o que interessa na arte contemporânea á mais que agradar, proporcionar o belo à percepção, mas ser um gatilho de experiências que necessitam, também, passar pelo entendimento e suas teorias para levar a uma vivência mais completa da obra – a obra de arte é um gatilho de experiências, e não a experiência findada na sensação.

REFERÊNCIAS CAGE, J. Silenc. Middletown: Wesleyan University Press, 1961. DANTO, A. C. A Transfiguração do Lugar-Comum. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 312p. ________ El Abuso de la Belleza. Buenos Aires: Paidós, 2008. DUQUE-ESTRADA, P.C. Desconstrução e incondicional responsabilidade. Revista CULT, São Paulo, p. 53 - 55, 01 set. 2007. HANSLICK, E. Do belo musical. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994.

626

A MISSA EM SI MENOR DE JOHANN SEBASTIAN BACH: A POÉTICA E O TRÁGICO Katia Regina Kato Justi [email protected] Doutora em Música pela Universidade Estadual de Campinas

Palavras-chave: J.S. Bach; Poética; Missa em Si menor (BWV 232); tragédia.

A Missa em Si menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach, é uma obra gigantesca e emblemática, que pode ser entendida como um compêndio da obra do compositor. Um fato relevante sobre a Missa, é a de ter a maioria de seus movimentos originados a partir de material parodiado pelo compositor. Assim, muitos estudos envolvendo a dificuldade de readaptação de um antigo material em uma obra nova, incluindo aqui a dificuldade extra causada pela readaptação de um texto em alemão para latino, foram realizados. Porém, na bibliografia existente sobre a Grande Missa, o enfoque dado pelos autores sobre as questões das readaptações permanece apenas no nível de comparação musical entre o material original e sua paródia. Autores como Philipp Spitta (1951), Cristoph Wolff (2009) , John Butt (1991) e George Staufer (2003), apenas para citar alguns, em seus estudos sobre as paródias na Missa, enfatizam apenas a composição musical em si, não dando ênfase aos demais processos envolvidos na sua elaboração. Partindo deste problema, busquei fazer uma investigação da Missa em Si menor, seguindo novos parâmetros, enfocando assim os procedimentos poéticos e retóricos utilizados. Investigando à luz das poéticas clássicas, sobretudo da Poética de Aristóteles, e apoiando-se nas teorias musicais alemãs propostas pelos autores da Musica Poetica, verificou-se a presença de alguns aspectos do pensamento aristotélico na criação artística de Bach. Através dos estudos que envolvem a visão filosófica, retórica e musical no processo de criação musical alemã do séc. XVIII, este trabalho examina uma possível aproximação entre a tragédia grega, principal gênero poético, e a missa católica, cujo grande exemplo trágico-religiosomusical pode ser encontrado na Missa em Si menor. O trabalho se inicia tratando dos princípios da produção segundo a concepção aristotélica, abordando a poética e suas formas imitativas. Seguindo a orientação aristotélica da poética, ou produção artística, temos a imitação como base do processo. Este processo imitativo, que encontra na tragédia sua principal forma, é dotado de elementos possíveis de serem também observados, no que poderíamos chamar, de princípios "poéticos religiosos", cujo melhor exemplo de aplicação se encontra na missa católica. Assim, baseando-nos nos preceitos aristotélicos de imitação (mímesis), contidos em sua Poética, pudemos concluir

627

que ambas, missa e tragédia, são imitações de ação de caráter elevado, completa e

de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], (Poet. 1449b 24). Pudemos concluir que a missa, como a poesia, imita o sacrifício, ação trágica na qual estão presentes os binômios do castigo-consolação e morte-ressurreição, base das teologias cristãs, que analogamente aos afetos do terror e piedade contidos na tragédia, assumem também uma função catártica. Além disso, na missa, assim como na tragédia, também se encontra um processo pedagógico previsto no procedimento imitativo, que se dá através da observação e vivenciamento da ação trágica. No processo imitativo trágico, a música é parte constituinte e assume um papel primordial, pois, como afirma Aristóteles na Política (V/V §§4-10, 1966), ela é a representação direta das emoções da alma, é a imitação dos sentimentos morais. Ao considerarmos a música também como parte constituinte da estrutura litúrgica da missa, cuja função é, através dos textos dos cânticos e hinos, suscitar afetos nos fiéis, foi possível constatar mais uma analogia com a forma trágica. Assim, tomando a música como um dos elementos da imitação trágica e com base nas categorias de imitação musical propostas por Johann Mattheson, um dos principais teóricos alemães do século XVIII, foi possível uma classificação das formas musicais em que se utiliza a imitação, identificando nelas, possíveis analogias com a forma trágica. De acordo com as três categorias de imitação musical propostas por Johann Mattheson, em seu tratado de 1739 Der vollkommene Capellmeister, imitação de coisas naturais e afecções de ânimo - imitação de mestre e/ou modelo - imitação de vozes, pudemos constatar que a Missa em Si menor se enquadra nas três categorias imitativas, uma vez que: adotando os princípios poéticos da tragédia, imita afecções de ânimo; através dos movimentos parodiados e das diversas formas de tropo, imita obra de outro mestre ou compositor e finalmente, através do processo de composição musical, imita vozes. Ademais, pudemos também observar que uma ferramenta retórica, o tropo, associado à música, foi um importante elemento que possibilitou uma aproximação entre a tragédia e a missa, sendo ele o responsável pelo desenvolvimento do Drama Sacro, forma teatral sacra inicialmente realizada dentro do rito litúrgico católico, cuja finalidade e funções são análogas às da tragédia grega. Constatamos que, através do desenvolvimento do Drama Sacro, surgiram outras formas trágicas derivadas católicas, como por exemplo as Paixões, além de formas trágicas luteranas, como a Historia e o Actus Musicus. Pudemos ainda observar que a ferramenta do tropo musical, bem como suas variantes, como a metáfora e a alegoria, foi amplamente utilizada por Bach em sua Missa em Si menor. Constatou-se que as teorias Poéticas, mesmo antes do período de Bach, já circulavam através do território alemão tendo como veículos a literatura e o teatro. Uma das formas das Poéticas chegarem até Bach foi através da

628

aproximação com seu contemporâneo, Johann Christoph Gottsched, teórico, dramaturgo e literato, defensor dos ideais poéticos clássicos, que lhe fornece o libreto para três cantatas, sendo que a música parodiada de um destes textos foi reaproveitada no Agnus Dei da Missa. Outra forma de aproximação entre tragédia e missa se dá através da investigação da origem da tragédia grega, das formas litúrgicas que a precederam, os cultos onde eram realizadas, seus participantes, seu formato, sua utilização. Nela foi possível constatar que existe uma analogia entre os ritos pagãos e os sacros no que diz respeito à origem, funções místicas, mistagógicas, teológicas e pedagógicas, podendo-se considerar a missa cantada uma forma trágica, derivada dos mistérios helênicos. Pela definição da tragédia e de sua utilização no mundo grego, pudemos observar a existência de alguns pontos importantes que se assemelhariam ao rito religioso católico, tais como: o sacrifício, o banquete, o fato de ser uma cerimônia religiosa realizada em honra a deus e com a presença de toda a comunidade, além da própria história do deus Dionísio que, em vários aspectos, muito se assemelha com a história de Cristo. Tais pontos nos levou a supor na existência de indícios muito fortes de uma conexão entre a tragédia grega e o rito religioso católico. No que concerne à composição de sua Grande Missa Católica, assim denominada por C.P.E. Bach, concluiu-se que nela Bach segue à risca os preceitos composicionais da Musica Poetica, que prevê a representação musical dos afetos contidos no texto, uma prática corrente do século XVIII. Na Missa em Si menor essa representação será feita com base nos afetos contidos no sacrifício, ela será, portanto, a representação musical do sacrifício. Assim, ela apresenta então uma dupla forma de imitação trágica: uma proveniente da poética, através da imitação da ação do sacrifício e a outra proveniente da retórica, através das representações dos afetos contidos nos textos luteranos que seriam parodiados. Finalizando o trabalho, embasado nas partes da tragédia, como descrito na Poética, foi possível uma comparação caso a caso entre tais partes e os movimentos da Missa em Si menor, demonstrando a utilização dos diversos artifícios poéticos e retóricos utilizados por Bach em sua composição e como, através deles, foi possível suscitar no fiel o temor e a piedade, cumprindo, assim como na tragédia, a finalidade de proporcionar a purgação de seus sentimentos, impelindo-os em direção à virtude.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2003. _____________. Política. Trad. Torrieri Guimarães. Hemus Livraria Editora Ltda. São Paulo, 1966.

629

_____________. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1998. BARTEL, Dietrich. Musica Poetica. University of Nebraska Press, Nebraska, USA, 1997. BUTT, John.; RUSHTON, Julian. (Editors). Bach: Mass in B minor. Cambridge University Press, 1991. GOTTSCHED, Johann Christoph. Versuch einer Critischen Dichtkunst. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1962. HÄFNER, Klaus. Aspekte des Parodieverfahrens bei Johann Sebastian Bach. Laaber-Verlag, Laaber, 1987. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1987. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Retórica Literária. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004. LEAVER, Robin.A. Luther's Liturgical Music. William B. Eerdmans Publishing Co., Cambridge, UK, 2007. LESKY, Albin. A Tragédia Grega. Editora Perspectiva, São Paulo, 1971. MATTHESON, Johann. Der vollkommene Capellmeister. Bärenreiter, Kassel, 1999. MITCHELL, Phillip Marshall. Johann Christoph Gottsched – Harbinger of German Classicism. Camden House, Columbia, USA, 1995. SCHWEITZER, Albert. J.S. Bach Vol. I-II. Dover Publications, New York, 1966. SLOANE, Thomas.O. Encyclopedia of Rhetoric. Oxford University Press, New York, 2001. SPITTA, Philipp. Johann Sebastian Bach, Vol I-II. Dover Publication, New York, 1951. STAUFFER, George. Bach – The Mass in B Minor – The Great Catholic Mass. Yale University Press, USA, 2003. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Jorge Zahar Editor

630

A DIMENSÃO METAFÍSICA DA MÚSICA João Augusto R. Mendes [email protected] Mestre em Direito pela UFSC Especialista em Filosofia Contemporânea, Professor de Filosofia da Música na PUC/RJ Jorge Augusto de Serpa Mendes Graduando em Música pela Unirio Palavras-chave: Metafísica e Teoria musical

Musica est exertitium metaphysices occultum, nescientis se philosophari animi1 Arthur Schopenhauer

A epígrafe acima é emblemática para o presente trabalho, pois trata-se de uma reformulação de uma frase de Leibniz, na qual este se refere à música como o “exercitium arithmeticae ocultum nescientis se numerae animi” (exercício oculto de aritmética, sem que o espírito saiba que está lidando com números) 2. A reformulação levada a efeito por Schopenhauer sinaliza um momento forte do reencontro entre o que denominamos dimensão metafísica da música e Teoria (termos que serão explicitados adiante), as quais possuem uma origem comum em Pitágoras. O texto ora apresentado tem como objetivo trazer à luz, sob dois imbricados vieses, a “matéria esquecida” que permeia tanto a origem quanto toda a trajetória da música ocidental. Trata-se da dimensão metafísica e da dimensão teórica que lhe é subjacente, a qual se apresenta sob duas configurações necessária e absolutamente inconfundíveis: a) Teoria (com T maiúsculo), que diz respeito ao desvelamento da relação entre música e número a partir da descoberta pitagórica da série harmônica, do que decorreu a matematização da música no ocidente e a sua singular racionalidade em face de todas as outras manifestações musicais do planeta; b) teoria (com t minúsculo), que se refere às teorias musicais, notadamente à teoria musical que está intrinsecamente vinculada à criação, fundamentação e desenvolvimento do sistema tonal. Dada a recíproca dependência entre essa teoria (ou a “grande teoria musical”) e o tonalismo, o esgotamento deste traduziu também o esvaziamento daquela. “A música é um exercício oculto de metafísica, sem que o espírito saiba que está filosofando” (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. Tradução Wolfgang Leo Maar, São Paulo, Abril Cultural, 1997, p. 103).. 2 Idem, p. 112. 1

631

Teoria e teoria são dinâmicas, porém são os novos modos de desvelamento da Teoria que propiciam a criação, transformação e até mesmo a possível superação de teorias. Com efeito, o que se denomina “fim do sistema tonal” é exatamente o esgotamento da teoria que lhe dava sustentação, propiciada por uma reconfiguração da Teoria. A equivalência hierárquica dos harmônicos resultou no fim da dicotomia consonância/dissonância e possibilitou a emergência do dodecafonismo como teoria autônoma. Todavia, a pretensão “fáustica” de Schoenberg, a saber, a substituição do sistema tonal pelo sistema dodecafônico, não chegou a vingar, embora não se possa desconsiderar a enorme repercussão que obteve no âmbito da produção musical das décadas vindouras. A partir de então (início do século XX), ao que parece, vivemos sob a égide da Teoria sem uma teoria sólida (de cunho universal) que a corresponda e isso traz enormes repercussões para as quais o presente trabalho deseja chamar a atenção. Quando falamos em Teoria, inevitavelmente ingressamos no campo da “dimensão metafísica da música”.3 Como se sabe, a relação que se estabeleceu entre a música e os números, a partir de Pitágoras, trouxe à luz a possibilidade de uma cosmologia que veio a se desenvolver posteriormente na filosofia platônica através da “harmonia das esferas”. José Miguel Wisnik traduz essa genealogia num parágrafo: Se os chineses tinham uma cosmologia musical baseada na escala pentatônica, os gregos tiveram a sua, em alguns aspectos similar, mas baseada na escada de sete tons. Essa cosmologia remonta ao pitagorismo: a descoberta de uma ordem numérica inerente ao som faz da analogia entre as duas séries, do som e do número, um princípio universal extensivo a outras ordens, como as dos astros celestes. A pesquisa das proporções intervalares provoca e alimenta o demônio das correspondências e a suposição do caráter intrinsecamente analógico do mundo, pensado através da convergência de considerações aritméticas, geométricas, musicais e astronômicas. A ordenação progressiva que se percebe na seriação interna ao som, onde certas qualidades melódicas se revelam regidas por quantidades numéricas, integra uma cadeia maior de similitudes que liga a terra e o céu onde, num eco micro e macrocósmico, os astros tocam música.4

Essa citação é muito rica para o que aqui nos propomos. De um lado, situa as cosmologias chinesa e grega no mesmo âmbito musical e, de outro, enfatiza a Pelo controvertido termo “metafísica” queremos designar uma dimensão “invisível” que estaria, portanto, para além das aparências e revelaria “a Verdade”. Neste sentido, para os fins que nos propomos, há um alargamento da concepção filosófica de metafísica, estritamente ocidental, para abarcar tanto esta concepção, quanto a que se apresenta a nós de forma incipiente como “pensamento oriental” e, incluir também, o pensamento do “senso comum científico”, erigido a partir de pré-compreensões instauradas no senso comum e legitimadas pela ciência contemporânea. 4 WISNIK, José Miguel, O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 91. 3

632

singularidade do pensamento musical grego na sua gênese, qual seja, a imbricação entre música e matemática. Essa “cosmologia musical chinesa” simboliza, de certa forma, a influência do pensamento oriental na infância do ocidente, influência esta, ressalte-se, de difícil delimitação. Desde a origem grega calcada na harmonia das esferas, a dimensão metafísica acompanhou a música ocidental como parte indissolúvel de sua história e a sua vigência se impôs através de reorientações e transmutações. Se na Idade Média, por exemplo, a metafísica da música se orientava sob a perspectiva teológica, no período romântico ela se vincula de forma expressiva ao pensamento de Schopenhauer (e sua particular concepção de ser como vontade). Em A Vida como Vontade e Representação, há diversas passagens que expressam a relação, por vezes a própria identificação, entre música e Ser5. Eis uma passagem ilustrativa: Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a vontade, como a constitui o próprio mundo, como o são as idéias, cujo fenômeno multiplicado forma o mundo das coisas individuais. Portanto, de modo algum a música é, como as outras artes, reprodução das idéias, mas reprodução da própria vontade, cuja objetividade também são as idéias; por isto o efeito da música é tão mais poderoso e incisivo do que o das outras artes; pois essas somente se referem à sombra, aquela porém à essência.6

Contemporaneamente, em vista da emergência de um modo de aparição do mundo inteiramente novo, sem as luzes da tradição e indissoluvelmente vinculada à tecnologia, cabe a indagação acerca da possibilidade da afirmação da dimensão metafísica da música em mais uma nova conformação. Pode a metafísica, mãe das teorias e dos saberes, permanecer viva diante da decretação pós-moderna do seu fim? Ou ela permanece “viva” como a luz das estrelas mortas? Enfim, a descoberta pitagórica que redundou na explicação racional (matematizada) do cosmos através da harmonia das esferas por Platão e engendrou a Teoria, ainda hoje impulsiona tanto as descobertas científicas em torno do som e de um suposto poder da música, quanto as descobertas artísticomusicais no âmbito da produção contemporânea. A dimensão metafísica da música ocidental, provinda de uma suposta influência do pensamento oriental sobre o grego, mesmo após o redimensionamento originário havido em razão da emergência da Teoria, manteve a sua vigência ao longo da história da música, ainda que sob distintas formas de aparição e, mais contemporaneamente, na pós-modernidade, ressurge Aqui, a palavra “Ser” é filosoficamente adequada, já que, para Schopenhauer, o “Ser” significa “vontade” e a música, para ele, seria a própria encarnação da vontade. 6 SCHOPENHAUER, Arthur, op. cit, p. 104-105. 5

633

sob o beneplácito da ciência e na forma de um paradoxo. Com efeito, após a decretação da morte de Deus, portanto, num sentido alargado, dos valores da tradição e da filosofia como metafísica, como sustentar a dimensão metafísica da música? De outro lado, no âmbito da produção musical, o re-encontro com a Teoria, agora despida da teoria e aliada à tecnologia, desfaz todos os limites de contenção. Não nos esqueçamos: a série harmônica tende para o infinito e onde se pode o tudo se instaura o nada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Santo. Confissões. Livro XI, cap. 14. Trad. J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. Nova Cultural, Saõ Paulo, 1999. BOULEZ, Pierre. A Música Hoje, 3ª Ed, São Paulo, Perspectiva, 2002. DAHLHAUS, Carl e EGGEBRECHT, Hans. O que é a Música? Tradução Artur Morão, Portugal, Texto & Grafia, 2009. FUBINI, Enrico, Estética da Música, Tradução Sandra Escobar, Lisboa, Edições 70, 1993. PLATÃO. A República, trad. Enrico Corvisieri, Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1997. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio Sobre a Origem das Línguas, tradução Lourdes Santos Machado, São Pauo, Nova Cultural, 1991. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. Tradução Wolfgang Leo Maar, São Paulo, Abril Cultural, 1997. WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, Trad. Leopoldo Waizbort, São Paulo, Edusp, 1995. WELLESZ, Egon (organizador). Ancient and Oriental Music, vol 1, in The New Oxford History of Music, Oxford University Press, 1957. WISNIK, José Miguel, O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

634

ARTE COMBINATÓRIA E MÚSICA EM LEIBNIZ Fabrício Pires Fortes [email protected] Graduado em Filosofia Mestre em Filosofia Doutorando em Filosofia pela UFBA Palavras-Chave: Arte Combinatória; Combinatória Musical; Leibniz.

Leibniz não escreveu mais que umas poucas páginas acerca de questões especificamente musicais. De modo geral, suas reflexões acerca do tema da música assumem, em seus escritos, o caráter de exemplificação, e servem para explicar teses de ordem matemática, epistemológica e metafísica. Isso não quer dizer, entretanto, que tais reflexões tenham sido supérfluas ou triviais, nem tampouco que a elas o autor tenha dedicado pouca atenção. Seja no que diz respeito à aplicação de procedimentos matemáticos a questões musicais, seja no tocante à investigação sobre a percepção da música, seu pensamento tem alcance profundo na discussão teórico-musical de sua época, e parece, inclusive, se aproximar de concepções ligadas à música contemporânea. Neste trabalho, busca-se apresentar, de maneira tão clara quanto possível, uma análise da aplicação, feita por Leibniz, de métodos de sua arte combinatória a certos problemas vinculados à música. Em sua Dissertatio de Ars Combinatoria (1666), obra publicada ainda em sua juventude, o filósofo e matemático de Leipzig propõe uma série de procedimentos formais, tratados sob a denominação geral de Doutrina das Variações, a fim de estabelecer diferentes tipos de combinações entre os elementos de qualquer conjunto do qual se possa distinguir as partes do todo. O autor distingue ainda as chamadas variações de complexão das variações de ordem. As primeiras, que podem ser identificadas com o que na matemática moderna se chamam Combinações, referem-se às possibilidades de formação de um determinado conjunto de elementos, não importando a ordem em que esses elementos estão dispostos no conjunto. Já no caso das variações de ordem, equivalentes ao que contemporaneamente se chamam permutações, está em questão não apenas quais elementos entram em cada conjunto, mas também o lugar que cada elemento ocupa em cada conjunto. Isso, certamente, torna o método apropriado a diversas atividades e áreas do conhecimento. Para citar alguns exemplos, encontram-se na obra usos da combinatória em jurisprudência, farmacologia, silogística, teologia, política, poesia e música. No que diz respeito ao caso da música, encontram-se aplicações tanto de problemas combinatórios referentes a variações de complexão quanto daqueles que envolvem variações de ordem. No caso das primeiras, o autor propõe o cálculo das possibilidades de timbragem do órgão a partir do acionamento de diferentes

635

pares de registros. Para a regulagem do timbre em tal instrumento, são acionados diferentes registros, que consistem em gamas de tubos, de determinados diâmetros, através dos quais é bombeado o ar que produz o som. Quanto maior o diâmetro dos tubos de um registro, mais grave o som produzido, e quanto menor o diâmetro dos tubos, mais agudo o som. Uma vez acionadas diferentes combinações de registros, um timbre diferente é ouvido quando se faz soar o instrumento. Embora na Dissertatio esses exemplos de cálculo de complexões restrinjam-se à esfera do timbre, poder-se-iam pensar também aplicações do mesmo procedimento a outras esferas da atividade musical, como por exemplo à formação de acordes. Já no caso das variações de ordem, os exemplos de Leibniz contemplam o cálculo de melodias possíveis para um dado trecho musical hexassilábico em escala hexatônica. Esse cálculo, por sua vez, é pensado de duas maneiras distintas. Num primeiro momento, as combinações estabelecidas não envolvem repetições de elementos, de modo que, em todas as combinações possíveis, cada nota da escala utilizada encontra seu lugar na sequência resultante. Num segundo momento, o que está em questão é o cálculo de combinações as quais podem envolver repetições de elementos. Portanto, o número de combinações possíveis é ainda maior do que no caso anterior, o que faz com que o cálculo sofra também um aumento em seu grau de complexidade. Além disso, poder-se-iam, por um lado, acrescentar outros elementos ao problema, como outras notas musicais, pausas, diferentes durações temporais, etc., os quais certamente aumentariam o total de possibilidades combinatórias. Por outro lado, o acréscimo de restrições, como regras de contraponto, que podem determinar combinações proibidas, poderia servir para eliminar resultados inúteis. Leibniz chegou a levantar possibilidades de acréscimo de tais elementos na Dissertatio sem, contudo, levar a cabo a ideia. Com efeito, o autor considerava como a grande virtude da aplicação do método combinatório à música essa capacidade de cobrir todas as possibilidades de combinação dos elementos envolvidos. No entanto, não parece que o filósofo tenha considerado tal abordagem, por si só, como suficiente para uma tarefa de caráter artístico, como é o caso da composição musical. Há de se levar em conta, outrossim, que a ideia geral de se abordar a música segundo um ponto de vista lógico-combinatório não chegou a ser uma contribuição original de Leibniz para a teoria musical de sua época. Tratamentos semelhantes de questões dessa natureza já haviam sido realizados anteriormente por teóricos como Guido d’Arezzo, Athanasius Kircher e Marin Mersenne. Não obstante, esses mesmos procedimentos aproximam Leibniz também de autores do século XX, ligados, por exemplo, ao dodecafonismo serial, cuja criação é atribuída a Arnold Schoenberg e Anton Webern, e à música computacional que teve vazão com os avanços na área da informática, sobretudo após 1970. Além disso, mais que denunciar a mera repetição de procedimentos, a Dissertatio mostra uma

636

grande coerência com o todo de sua obra, de maneira que mesmo em seus escritos maduros, produzidos já nas primeiras décadas do século XVIII, a ideia de um cálculo subjacente ao fenômeno musical (e, por conseguinte, de uma matematização da música) se fazem fortemente presentes, mesmo que em discussões sobre temas não especificamente musicais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAILHACHE, P. Leibniz et la Théorie de la Musique. Paris: Klincksieck, 1992. __________. “La Musique, Une Pratique Cacheé de L’Aritmetique”. Studia Leibniztiana. Cerisy, 1995, pp. 15-22. FORTES, F. P. “Combinatória e Pensamento Simbólico Musical em Leibniz”. In: O Que nos Faz Pensar, 25, 2009, pp. 125-140. LEIBNIZ, G. W. Dissertacción Acerca del Arte Combinatorio. Santiago: Universidad Catolica de Chile, 1992. LUPPI, A. Lo Specchio dell’Armonia Universalle: estética e musica in Leibniz. Milão: Franco Angeli, 1989. ZAMPRONHA, E. S. Representação, Notação e Composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: Annablume, 2000.

637

POSMODERNIDAD MUSICAL EN EL 3ER. MOVIMIENTO DE LA SINFONIA (1968) DE L. BERIO Edgardo J. Rodríguez [email protected] Fac. Filosofía y Letras (UBA); Fac. Bellas Artes (UNLP) Palabras clave: L. Berio; Sinfonia (1968); posmodernidad musical.

El 3er. movimiento de la Sinfonia (1968) de L. Berio (1925-2003) ha sido tradicionalmente señalado como uno de los ejemplos tempranos y más intensos del impacto de la concepción posmoderna en la música académica del s.XX. En este trabajo1 (que constituye una primera aproximación al problema), por el contrario, intentaremos reconsiderar a la obra según las ideas de la modernidad tradicional para reubicarla en la tradición vanguardística originada en el atonalismo libre de comienzos del s.XX. Para ello comentaremos dos definiciones en torno del concepto de posmodernidad y posmodernidad musical a partir de las cuales revisaremos la condición posmoderna de la obra.2 El primer problema a resolver consiste en determinar cuál de las múltiples ideas asociadas con posmodernidad y posmodernidad musical adoptaremos. En ese sentido, decidimos rastrear la idea de posmodernidad en el clásico libro de F. Jameson ‘The cultural turn’3 y más tarde hicimos lo propio con el concepto de posmodernidad musical en la entrada del New Grove Dictionary escrita por Jann Pasler4. Suponemos que estas dos definiciones, si bien no agotan la discusión general sobre los temas, reflejan una tendencia con, al menos, un cierto consenso en las disciplinas vinculadas. Dice Jameson en el inicio de su obra: ‘The concept of postmodernism is not widely accepted or even understood today’5, lo que nos alerta sobre la difícil tarea que hemos emprendido. Como ejemplos de música académica posmoderna señala a John Cage, Philip Glass y los minimalistas de los años sesenta. Estos posmodernistas se caracterizarían por, en primer lugar, reaccionar Que forma parte de uno mayor que estudia las configuraciones de la modernidad musical argentina durante el s. XX. 2 Por cuestiones de espacio en esta primera aproximación al problema no nos detendremos en la descripción de la obra; suponemos que es ampliamente conocida. Sólo diremos que está basada en el 3er. movimiento de la de ‘Segunda Sinfonía’ de Mahler. Éste es filtrado (se mantienen sucesivamente ciertos sectores básicos) y yuxtapuesto con: numerosos fragmentos de múltiples obras y compositores; textos de varios autores cantados y recitados; y fragmentos conectivos compuestos por el propio Berio. 3 Jameson, 1998 4 Pasler, 2001. 5 Jameson, 1998: 1. 1

638

específicamente contra las formas estabilizadas del modernismo (en el caso de los compositores citados, en contra del serialismo integral) y sus pretensiones universalistas; en segundo lugar, por la erosión de algunas distinciones cruciales, entre ellas la distinción entre cultura alta y popular o de masas. Por otro lado, el autor sostiene que una de las características de las prácticas posmodernas es el pastiche definido como ‘...like parody, the imitation of a peculiar or unique style, (...) without parody's ulterior motive, without the satirical impulse, without laughter, without that still latent feeling that there exists something normal compared with which what is being imitated is rather comic. Pastiche is (...) parody that has lost its sense of humour...’6. El pastiche aflora cuando ‘... the stylistic innovation is no longer possible, all that is left is to imitate dead styles...’7. Todo lo antes dicho, prefigura la hipótesis de la muerte del sujeto o dicho más convencionalmente: el final del individualismo, del estilo personal inconfundible; que significa en última instancia ‘... the necessary failure of art and the aesthetic, the failure of the new, the imprisonment in the past.’8 Con respecto al primer aserto de Jameson podríamos argumentar que el desarrollo de la música académica contemporánea se puede explicar como una sucesión de modernismos críticos unos de otros: el serialismo integral fue crítico del dodecafonismo (ejemplo de modernismo estabilizado), a su vez la música de masas de G. Ligeti criticó al serialismo integral, etc.. Es decir, el posmodernismo musical no ha sido la única ni la más importante tendencia crítica en la escena contemporánea.

Por otro lado, la obra nunca ha sido denominada ni concebida como un pastiche sino más bien como un collage9 (punto que ampliaremos debajo); tampoco se la consideró nunca por fuera de la tradición académica (por tanto no implica ningún deslizamiento entre las categorías académico y popular). El pastiche y el ensalsamiento de la no particularidad están en las antípodas del planteo y de la recepción problemática de la música de Berio; con lo cual la idea de muerte del sujeto también se torna inaplicable en este caso. Pasler, a su vez, plantea tres tipos de posmodernidad musical. El primero, consistiría en un revival del sistema armónico tonal y las formas asociadas de los s. XVIII y XIX (sin contacto con nuestro objeto de estudio). La segunda posición o ‘posmodernismo radical’ (como lo denomina la autora) cuestiona los códigos históricos tensando la relación historia y texto, política y estética, etc. (este tipo de posmodernismo podría caberle al ejemplo de Berio, pero la autora no lo Ibíd.: 5. Ibíd.: 7. 8 Ibíd.: 7. 9 Para la discusión sobre las relaciones entre pastiche y collage, véase Kjellman-Chapin (2006). 6 7

639

incluye). El tercer tipo resulta cuando: ‘... a work's juxtapositions involve an eclectic inclusion of material from disparate discourses (...) Works such as Luciano Berio's Sinfonia (1968) and Alfred Schnittke's Third String Quartet (1983) quote predecessors' and contemporaries' music to comment on the history of musical traditions. They construct a sense of time as embodying many times, a self made of many memories. Stylistically what is important, from a postmodernist perspective, is not what is preserved from the past but the radical nature of what is included.’ El primer comentario es obligado: resulta sumamente difícil ubicar a estas dos obras en una misma categoría: ¿cómo vincular la de Schnittke construida a partir del parentesco temático de motivos (pertenecientes a O. de Lassus, L. V. Beethoven y D. Shostakovich) hilados a la manera de una variación desarrollante, de un organicismo neoclásico texturalmente homogéneo, con la obra radical de Berio? Lo único que las emparenta es el uso de la cita, el resultado musical es absolutamente diferente, lo cual evidentemente, relativiza el parentesco. Por lo demás, la inteligibilidad del 3er. movimiento de la Sinfonia no depende de la erudición musical de los oyentes, nuestra hipótesis es que la pieza se estructura independientemente de las citas (de los comentarios en torno ‘de la historia de las tradiciones musicales’), que la comprensión no depende de su identificación (tampoco en el caso de la sinfonía de Mahler, que tiene varios niveles intertextuales10). La obra no es el resultado aditivo de la suma de sus partes, el todo resultante es un todo orgánico novedoso que las resignifica. Volviendo a la definición de Jameson, la obra de Berio no es un pastiche porque entre los estratos texturales que la componen existe una gran tensión dialéctica entre, por un lado, la historia y estética disímiles (que no depende, como ya dijimos, de la identificación de la cita como tal) y, por el otro, la integración sistemática de orden técnica: la superposición de los fragmentos está altamente reglada por el principio de saturación cromática como fuera analiticamente comprobado por C. Losada.11 De este modo, la obra se constituye en la tradición más puramente moderna vanguardista: con su estructura interpela las condiciones tradicionales de la recepción. Por otro lado, ya desde el mismo momento de su estreno ha sido descripta como un collage (la quintaesencia de lo moderno, según Jameson), idea con la que el autor no estuvo de acuerdo por juzgarlo un mero ejercicio elemental 12. Por el contrario, Berio la consideraba su trabajo más experimental hasta ese momento: ‘The Mahler movement is treated like a container within whose Osmond-Smith, 1985. Losada, 2009: 61. 12 Dice Berio (1969): ‘I’m not interested in collages, and they amuse me only when I’m doing them with my children: then they become an exercise in relativizing and ‘decontextualizing’ images, an elementary exercise whose healthy cynicism won’t do anyone any harm’. 10 11

640

framework a large number of references is proliferated, interrelated and integrated into the flowing structure of the original work itself.(...) I would almost say that this section of Sinfonia is not so much composed as it is assembled to make possible the mutual transformation of the component parts (...) Quotations and references were chosen not only for their real but also for their potential relation to Mahler. The juxtaposition of contrasting elements, in fact, is part of the whole point of this section of Sinfonia...’ Paradójicamente, lo que Berio describe, en nuestra opinión, es un collage sobre el filtrado de la obra de Mahler.13 Un collage particular (quizás por eso le disgustaba la categoría): está hecho de fragmentos de música es decir, de fragmentos de la misma sustancia (a diferencia del collage pictórico que hace arte de fragmentos de no-arte obtenidos de la realidad), yuxtapuestos (sucesiva y simultaneamente) de acuerdo con el criterio de la saturación cromática. Este collage puede ser considerado como parte de un desarrollo estéticotécnico rastreable históricamente en la crítica de P. Boulez a la retórica romántica de Schoenberg potenciada por el neoclasicismo dodecafonismo. En Estructuras 1A, de los años cincuenta, el sujeto romántico aparece anulado por los mecanismos del serialismo integral (sobre todo por la articulación de las series de alturas con las series rítmicas), la fragmentación registral y el puntillismo textural. Unos años después las masas de G. Ligeti anulan el ritmo y la altura puntual con resultados análogos a los de Boulez. Es en esa línea de desarrollo que la obra de Berio debería insertarse; no son ni el procedimiento serial, ni la fragmentación registral, ni la masa de sonido los que niegan el tematismo decimonónico sino el politematismo o el múltiple origen temático de las citas. En el 3er. movimiento de la Sinfonia la composición se traslada de la fragmentación y del timbre a la sintaxis; el compositor compone la sintaxis en los dos sentidos: determina, por un lado, la superposicion de los materiales con el filtrado del movimiento de Mahler y, por el otro, la sucesión de los fragmentos citados. La cita es una estrategia más para correr al sujeto de las retóricas del pasado. Es análoga a los diseños precomposicionales del serialismo integral y de J. Cage (ya sean sus estructuras duracionales puras o los mecanismos del azar) y a la anulación de la altura y el ritmo de Ligeti. Complementariamente, la obra de Berio se vincula también con la tradición formal aditiva, heterofónica y modernista de la poética de Ch. Ives, de algunas obras de I. Stravinsky y O. Messiaen, de la música concreta, etc..

Como parece sugerir él mismo (op. cit.): ‘... this section of Sinfonia [el 3er. Movimiento] is not so much composed as it is assembled to make possible the mutual transformation of the component parts.’ 13

641

REFERENCIAS Berio, L. (1969) Notas del compositor en la edición de su obra [Grabada por The Swingle Singers, the New York Philharmonic]. En: Berio: Sinfonia. [CD]. New York: Columbia. (Grabado en 1968) (1985) Two Interviews. With Rossana Dalmonte and Bálint András Varga. New York: Marion Boyars. Flinn, J. (2011) Reconstructive Postmodernism, Quotation, and Musical Analysis:

A Methodology with Reference to the Third Movement of Luciano Berio’s Sinfonia. Tesis doctoral, Graduate School of the University of Cincinnati. Recuperado de: https://etd.ohiolink.edu/ap:10:0::NO:10:P10_ACCESSION_NUM:ucin1307322489 el 10/2/2013. Jameson, F. (1998) The Cultural Turn. Selected Writings on the Postmodern 1983-1998. London, Verso. Kjellman-Chapin, M. (2006) Traces, Layers and Palimpsests: The Dialogics of Collage and Pastiche. Konsthistorisk tidskrift, Volume 75, Issue 2, 86-99. Losada, C. (2009) Between Modernism and Postmodernism: Strands of Continuity in Collage Compositions by Rochberg, Berio, and Zimmermann. Music Theory Spectrum, Vol. 31, No. 1: 57-100 Osmond-Smith, D. (1985) Playing on words: a guide to L. Berio's Sinfonia. London: Royal Musical Association. Pasler, J. (2001) The New Grove Dictionary of Music Online. ed. L. Macy (Acceso el 1/13/06), (http://www.grovemusic.com).

642

REFLEXÕES ACERCA DE ARTHUR SHOPENHAUER E A VISÃO PLATÔNICA DA ARTE Caio Miguel Viante [email protected] Graduando em Filosofia Graduado em Historia Universidade Estadual do Centro-Oeste Palavras-chave: Vontade, Arte e Beleza.

Arthur Shopenhauer, filósofo alemão do século XIX, escreve em sua obra O mundo como vontade e representação um capítulo destinado a arte e seu papel em relação a sua filosofia. Suas ideias consistem em uma visão metafísica das belas artes, além de um destaque à imagem do artista como produtor desta forma de conhecimento. Para legitimar sua filosofia, Shopenhauer busca fundamentarse a partir da filosofia platônica e utiliza de conceitos kantianos como nôumeno ou coisa-em-si e fenômeno(o empírico, a aparência). Porém os conceitos kantianos ganham outros significados em sua filosofia. Para o filósofo a coisa-em-si é identificada como vontade. A vontade antevém aos fenômenos e pode ser atingida por meio da contemplação estética. Para Schopenhauer, o mesmo ocorre em relação a Platão onde a vontade consiste na ideia que existe em si mesmo antecipando as percepções sensíveis. Mas ao contrario de Platão, Schopenhauer nos revela que arte serve de meio para contemplação das ideias. A ideia e a coisaem-si não são, contudo, idênticas, porém Schopenhauer usa o exemplo de ambas para revelar que a vontade é o conhecimento a priori do mundo fenomenal. Para o filósofo, a passagem do conhecimento das coisas particulares ao conhecimento liberto da vontade é possível, porém, deve ser visto como algo excepcional. Esta passagem age por meio da contemplação estética, é um exercício que eleva a inteligência a desconsiderar as coisas do mundo vulgar e renunciar os juízos do principio da razão onde todos os pensamentos são deixados à margem, onde não se considera mais o tempo nem o espaço nem o pensamento abstrato. É neste momento em que a consciência se preenche da mais perfeita contemplação, onde não há mais a relação sujeito e objeto, e o ser se confunde em único ser, onde, por fim, o indivíduos se torna puro sujeito que conhece. Este sujeito que conhece é correlato a ideia e aparece puro como a objetivação da vontade. Para Schopenhauer, a arte é capaz de reproduzir as ideias eternas, a sua origem consiste no conhecimento das ideias e seu fim é a comunicação desse conhecimento por meio da contemplação. A arte como contemplação age independente do principio da razão. A razão busca seu valor nas coisas úteis e práticas da vida, ao contrario a arte possui seu significado puro e contemplativo,

643

ela só tem valor e utilidade para ela mesma, abstraindo-se da razão ela concebe a ideia. Por este motivo, Schopenhauer considera a ação do artista algo sobre humano que difere de qualquer outra forma de conhecimento, ela está intimamente ligada à inspiração e é considerada pelo autor como ação genial. Para o filósofo, a genialidade e a loucura estão muito próximas uma da outra, notou-se muitas vezes que artistas foram considerados loucos pela sociedade, por isso, para Schopenhauer, quando um artista produz uma obra, ele confirma que a loucura e a genialidade estão separadas por apenas um fio. Em uma contemplação estética, o artista nos mostra como ele percebe o mundo. Contudo, para Schopenhauer, as belas artes possuem uma hierarquia, e cada uma possui uma particularidade, que define sua ordem dentro desta escala. A arquitetura consiste em uma delas. Ela quando não é vista do ponto utilitário, possui a missão de revelar traços intuitivos. Estes traços pertencem a escala inferior da objetivação da vontade que consistem na: gravidade, coesão, resistência, dureza e nas propriedades gerais e mais rudimentares da natureza. Ela se encontra em uma baixo nível de objetivação da vontade, porém, pode revelar outros significados em contato com a luz, o céu e o luar. Para o autor, esta arte raramente tem destino estético contemplativo, ela, em sua maioria das vezes, encontra-se em condições utilitárias e práticas não revelando condições artísticas contemplativas. Em conjunto a arquitetura se encontra a arte hidráulica e arte dos jardins que também revelam baixo nível de objetivação da vontade. A primeira nos representa a ideia de gravidade associada a ideia de fluidez revelando sua beleza na ausência de forma e na transparência. A segunda nos apresenta as paisagens naturais e a beleza em que a natureza nos revela. Porém, a participação do artista age de maneira mais comedida nesta forma de arte,deixando a cargo da natureza a beleza estética. Em um segundo nível da hierarquia das artes se encontra a pintura e a escultura. As duas se encontram em um grau mais elevado da objetivação da vontade. Ambas representam de maneira imediata e intuitiva as ideias de vontade. Na pintura aparecem dois níveis. O nível inferior consiste na pintura de animais. Neste nível a objetivação da vontade age de maneira fraca. Em um nível mais elevado, aparece a pintura que representa o homem. Schopenhauer vê o ápice da pintura e da escultura na expressão objetiva de representar a beleza humana. A ideia da beleza humana aparece de forma puramente intuitiva e reflete em uma relação de perfeita concomitância, onde contemplação estética ocorre por meio do reflexo humano na obra de arte. Entretanto, estas duas formas de arte representam um ideal de plenitude ainda de forma incompleta, ambas buscam relacionar a graça e beleza encontradas na natureza e transferi-la ao sujeito que a contempla. Em um nível mais elevado se encontra poesia ela e dotada de intenção de revelar as ideias ao sujeito que a contempla. A sensibilidade transmitida pela

644

poesia atinge um grau mais elevado da objetivação da vontade, comunica aos ouvintes vivacidade e clareza. O poeta transmite por meio das palavras as ideias da vida, da fantasia do universo. Para o filósofo o poeta é capaz de representa intuitivamente a ideia. Este processo ocorre por meio da abstração dos conceitos, tirando-os da universalidade levando ate as suas particularidades. O poeta tem como objeto a humanidade, coloca-se a frente da mesma buscando refleti-la, é o espelho da humanidade. A poesia entre as belas artes tem grade capacidade de representar o mundo. Ela é capaz de mostrar o caminho e a aproximar o sujeito da vontade em si. Por fim a musica é ultima das belas artes estudadas por Schopenhauer. Para o filósofo a música difere das outras artes, possuindo particularidades que vão alem das outras artes. Ela não reproduz os fenômenos da vontade, ela é considerada uma cópia da vontade (coisa-em-si). Ao contrário de outras artes não representa a vontade, ela é correlata a vontade. A música corporificada como a vontade corporificada denominam o mundo. Ela não age como copiadora ou reprodução das ideias da natureza, ela possui tanta intensidade que revela a interioridade do ser humano. Compreende-se como uma linguagem comum que perpassa o campo da intuição e ganha significado na essência íntima do mundo. A música é capaz de permitir o conhecimento além do mundo fenomênico, ela constitui o mundo assim como a mais perfeita objetivação da vontade. Portanto, após este caminho percorrido, compreendemos que a arte possui um papel significativo na filosofia de Schopenhauer. Em uma associação à teoria platônica, o filósofo nos revela uma metafísica artística que busca na contemplação das belas artes algo singular à filosofia da época. Pode-se compreender a metafísica da arte como um parênteses na obra de Schopenhuauer, um exercício sobre estética filosófica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SCHOPENHAUER, A. O Mundo como vontade e representação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção: Os Pensadores). SCHOPENHAUER, A. O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto,2001. BARBOZA, J. A metafísica do belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Humanitas, 2001. CRUZ, Raimundo J.B. Arthur Schopenhauer e Ludwig Van Beethoven: do potencial expressivo-descritivo da linguagem musical. Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, v.5, n.2, p.126-143, maio/ago. 2011.

645

ONTOLOGIA DA MÚSICA João Fernando de Araujo [email protected] Graduado em Filosofia, Especialização em Filosofia Clínica, Mestre em Musicologia pelo Conservatório Brasileiro de Música CBM–RJ Palavras-Chave: Ser-em-si, Ser-para-si, Cogito, Música-metáfora .

É possível uma abordagem filosófica da música? Por serem muitos os objetos que o pensar filosófico se depara, a resposta a essa pergunta não poderia ser outra: sim! Dessa forma, diante do caráter afirmativo da resposta, outras questões se nos apresentam essenciais diante da árdua tarefa de filosofar partindo do fenômeno sonoro-musical. Questões que emergem e nos causam certa hesitação na resposta que demos acima, a saber: qual a natureza do conhecimento que a reflexão filosófica proporciona através da música? Qual a validade desse conhecimento, haja vista as múltiplas funções da música bem legitimadas nas sociedades contemporâneas, por exemplo: como promotora de prazer estético, como função terapêutica, integração social, relações econômicas, políticas e religiosas, bem como suporte para outras formas de artes como a dança, o cinema etc.? Sendo assim, a filosofia contribui para o conhecimento do fenômeno musical, ou tal tarefa está fadada ao fracasso e à música nos compete apenas um conhecimento equívoco sobre as peculiaridades e as dimensões das várias sociedades que a utilizam como linguagem? Como manter a universalidade e a racionalidade — características da filosofia ocidental — diante desse fazer humano particular e singular propenso aos mais divergentes juízos de valor? Indo mais além, o que é música? Cônscios que estamos sobre as diversas definições histórico-culturais, como podemos transformar a música em um objeto de investigação sabendo da dificuldade em conceituá-la? É possível uma epistemologia da música? A filosofia da música, para ser filosofia, deve abordar as questões sobre o tempo, espaço, matéria e símbolo, conforme Giovanni Piana aponta em seu livro “A filosofia da Música”? A esta lista de questões poderíamos somar tantas outras, mas, por ora, contentamo-nos com estas. É claro que não temos a pretensão de respondê-las nesse trabalho, buscamos apenas caminhos para pensar a relação, muitas vezes conflituosa, entre filosofia e música. Todavia, alguém poderá argumentar que ao formular tais questões já estaríamos no universo filosófico. Para sairmos dessa circularidade, deixemos, momentaneamente, estas dificuldades iniciais em compreender o que é fazer uma filosofia da música para adentrarmos no “pensar música” por alguma abertura que consideramos um filosofar.

646

Alguns filósofos se depararam com o fenômeno musical em suas reflexões e especulações, tais como Pitágoras, Arquitas de Tarento, Platão, Aristóteles, Aristóxeno, Santo Agostinho, Descartes, Rousseau e Nietzsche. Mas o que propriamente eles pensaram sobre música? Citando Platão, a música era parte da sua paideía, como encontramos na obra A República. Como censor da poesia e das formas de artes que poderiam dificultar a formação de uma cidade justa conduzida por homens virtuosos, também as harmoníai (em uma concepção atual compreendemos este termo como “escala” musical, pois não havia na Grécia antiga a ideia de “superposição de terças” ) estariam sob o jugo do filósofo, por exemplo, os modos dóricos e frígios seriam os recomendados, pois formariam os guerreiros viris. Os modos lídios e jônicos seriam banidos da cidade, pois tornariam os homens efeminados e lânguidos. Como Platão chegou a essa tipologia musical? É bem provável que pela observação do comportamento, do modo de ser de pessoas que faziam uso destas escalas musicais. Seria assim um preconceito do filósofo em relação aos hábitos e aos costumes de outras culturas? De fato, as especulações platônicas sobre a música tinham propostas éticoeducativas rígidas. Uma porta de entrada para os que se aventuram na investigação da música por uma perspectiva filosófica, se dá pela concepção de música na Antiguidade grega. Música era Mousike: um complexo de atividades envolvendo a dança, a ginástica, o teatro, a poesia e o canto acompanhado de aulos e cítaras, portanto, não era uma “arte” autônoma. Mas saindo de uma perspectiva historicista para adentrarmos em uma abordagem mais filosófica, direcionaremos este ensaio para uma questão mais específica do pensar música, caminhando por um viés ontológico e fenomenológico, na qual vimos refletindo há algum tempo. Isso não significa que as especulações em torno da música realizadas por Platão e por outros filósofos não nos estimulem a outros pensamentos profícuos sobre o fenômeno musical. Ao depararmos com uma forma musical qualquer, vários fenômenos estão ocorrendo no momento da audição. Fenômenos internos (como pensamentos) e externos (outros sons percebidos, mas que não participam do fenômeno sonoromusical ao qual direcionamos a atenção). A música, para muitos, é um fenômeno específico do mundo sensível, todavia, nada impede que ela seja somente um fenômeno interno, do pensamento, principalmente em sujeitos onde predomina a abstração. Esta música abstrata para alguns é o suficiente para dar-lhes o prazer que, grosso modo, todos buscam em uma audição musical. O fato é que estamos, enquanto existentes, diante de sons que são transformados em “música-metáfora” ou em sons sem significados. Questões: o que percebemos em uma audição e de que maneira construímos essa “música-metáfora”? Será que ouvimos sempre a mesma música em uma contemplação sonora? Ora, é obvio que em relação a uma música que tenha sido previamente gravada, enquanto objeto (produto-mercadoria) continuará a

647

mesma, mas, a sua representação, não. Mesmo que não tenhamos muita clareza deste devir da representação musical, ela se faz vigente entre a relação do ser que a percebe e do ser do fenômeno. Nesta perspectiva o fenômeno musical é um serem-si, pleno e sem abertura. Considerando o caráter intencional da consciência, esta se nadifica diante dos fenômenos do mundo e, igualmente, diante dos fenômenos musicais que, como vimos, é um em-si. Portanto, a consciência, como tem em sua estrutura o nada como fundamento (remetendo-nos aqui a Jean-Paul Sartre), não se relaciona propriamente com a música enquanto um em-si, mas com a representação dela. A percepção do fenômeno musical, embora tenha a aparência de ser a mesma, absoluta, difere do conhecimento que dela fazemos, pois o que dela apreendemos é o devir das suas representações que ocorrem não no cogito pré-reflexivo, mas, em outra dimensão, no ser-para-si. A universalidade do juízo musical é assim uma impossibilidade. Parafraseando Sartre em sua definição do ser-para-si: “ela [a música]1 é o que não é e não é o que é”. A música é assim um eterno fluir, um vir-a-ser de representações que obtemos em determinados momentos de contemplação sonora. O ser da música sempre nos escapa, devido a sua constante nadificação dada pelo cogito reflexivo, pela consciência. A nossa audição, o nosso juízo nunca será o mesmo e, sobretudo, o conhecimento que supostamente acreditamos ter de uma determinada música. Prosseguindo nesta abordagem filosófico-cognitiva do fenômeno sonoromusical, façamos uma analogia com outras formas artísticas, como por exemplo, a pintura impressionista. As artes que usam a visão no processo de contemplação estética podem nos auxiliar no sentido de percebermos a mutabilidade e a dificuldade da cognição musical, pois na cultura ocidental há um predomínio na educação do olhar em detrimento do ouvir. E é dessa forma que a música, como a pintura, também é objeto de contemplação e a sua representação é a maneira que dispomos para conhecê-la. Muitos conhecem algumas obras impressionistas, por exemplo, a série “The Rouen Cathedral” de Monet. O que o artista buscava nestas várias pinturas? O que nos escapa a cada percepção dessas imagens? Será o seu ser? Nas sucessivas observações apreendemos sempre a mesma catedral? Sendo a luminosidade o motivo que interfere na representação que fazemos do objeto, qual será o equivalente da luz para a música que a cada audição se transforma? O ser da música nos escapa como ocorre com a pintura impressionista. Podemos concluir até momento da nossa perquirição sobre a ontologia da música que a equivocidade da música se dá pela intermitente nadificação do para-si, caracterizando a inefabilidade do fenômeno sonoro-musical, indiciando,

1

O grifo é nosso.

648

igualmente, a impossibilidade de uma abordagem cientifico positivista para o fenômeno sonoro-musical. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FUBINI, Enrico. Estética Della Musica. Bologna, Il Mulino, 1995. HANSLICK, Eduard. Do Belo Musical. 2º ed. Campinas: Unicamp, 1992. PIANA, Giovanni. A Filosofia da Música. Bauru, SP: EDUSC, 2001. PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouse Gulbenkian, s/d. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Porto Alegre: Vozes, 1997. BORNHEIM, Gerd. Sartre: metafísica e existencialismo. 3ºed. São Paulo: Perspectiva, 2003. TOMÁS, Lia. Ouvir o Lógos: música e filosofia. São Paulo: UNESP, 2002. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DUARTE, Rodrigo. SAFATLE, Vladimir (org.). Ensaios sobre Música e Filosofia. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2007.

649

“A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO” DE EDGAR ALLAN POE: APLICAÇÃO DA METODOLIGIA EM UMA CANÇÃO POPULAR DO SÉCULO XXI Raquel de Moraes Pianta [email protected] Bacharelando em Música Popular pela UFRGS Palavras-chave: Estética, Canção popular, Música, Método de criação

O ensaio de Edgar Allan Poe, publicado em 1999, mostra a metodologia por ele utilizada na criação de seu poema O Corvo, do ano de 1845. Para fazer a aplicação da mesma, escolhi uma canção norte-americana intitulada My Stupid Mouth, composta e interpretada por John Mayer, lançada em 2001, integrando o CD Room For Squares. Cada etapa descrita por Poe será aplicada e comparada à canção do músico norte-americano. O texto de Poe é uma declaração inaugural entre os artistas de que a arte não é concebida por uma luz divina. O resultado da obra é uma consequência da racionalidade exigida do artista a cada processo da criação de seu trabalho. O autor coloca em questão a vaidade e a dificuldade advinda da mesma para os artistas mostrarem ao público as etapas da criação de suas obras. Deve-se a isso a fragilidade exposta nesse processo, o contato do público com as dificuldades da gênese da obra, os cuidados e a racionalidade exigidos do provedor da arte. Não obstante, Poe coloca que a maioria dos artistas também poderia deixar de expor suas etapas criadoras por simplesmente não se recordarem dos passos pelos quais tiveram que passar até chegar ao resultado final de suas composições. Dificuldades essas que Edgar Allan Poe afirma não possuir. O autor então nos apresenta a sua intenção de mostrar, analisar e reconstruir a sua obra que julga ser a mais conhecida entre o público em geral: O Corvo. Compara a criação da mesma com um problema matemático, de precisão, já afirmando que o acaso e a simples intuição não fizeram parte do processo criativo. Para analisarmos a canção de John Mayer seguiremos a ordem das etapas expostas por Poe em A Filosofia da Composição. A primeira consideração feita é a da extensão da obra. Criando-se uma unidade de impressão, que consiste em requisitar do leitor ou, no caso, ouvinte, uma atenção que não deve ser prejudicada por necessitar de um tempo muito extenso para apreciar a obra, conseguimos a apreciação na totalidade. Poe diz: “[...] e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves”(POE, 1999, p.2), assim conclui que para alcançar o efeito pretendido sobre seu público alvo, a duração de sua obra deve “[...] estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido”(POE, 1999, p.2). Tendo uma composição longa, muitas vezes o

650

público é obrigado a contemplá-la em mais de um momento, e essa sensação de totalidade pode ser destruída pelas interrupções causadas pelas inúmeras ocorrências do cotidiano. My Stupid Mouth tem a duração de exatos 3 minutos e 45 segundos, um tempo médio entre as canções populares, cujos veículos de comunicação exigem concisão. Essa exigência se deve, entre outros fatores, ao acima descrito por Poe. Seguimos as considerações do autor com a escolha de uma impressão ou efeito que visamos obter em uma obra. Poe logo deixa claro que seu objetivo é tornar sua obra apreciável por todos e, para isso, busca para seu poema o que ele diz ser “[...]o mais elevado tom da Beleza”(POE, 1999, p.4). Segundo Poe (1999), a Beleza é um efeito causado nos homens e não uma qualidade da obra. Tal tom por ele procurado encontra-se na melancolia, sendo ela o mais legítimo de todos os tons poéticos. Empregando essa ideia na canção de Mayer, encontramos a melancolia no medo da perda da mulher amada por um erro cometido por ele. A letra do compositor descreve sua falta de controle com o que costuma dizer, lamentando não ter escutado o que sua mãe dizia sobre pensar antes de falar. Mostra sua auto-crítica dizendo-se incapaz de controlar o que diz e avisa que jamais voltará a falar novamente, nos apresentando uma visão bastante melancólica sobre si. Encontramos sua tristeza e lamento, também, na melodia de sua voz. Em sua maior parte a linha melódica do cantor sobe e desce por graus conjuntos, ocorrendo, no máximo, momentos em que temos um salto de uma oitava ascendente, não durando mais que um compasso, descendendo por grau conjunto e nos dando uma sensação de melancolia (imagem 1).

Tendo a busca do tom ideal finalizada, o autor agora procura “obter o efeito artístico agudo, algum eixo sobre qual toda a estrutura deveria girar”(POE, 1999, p.3). O refrão, por ser universalmente empregado e com boa repercussão do seu resultado de efeito, é o que Poe encontra para sua problemática. Porém, não conforma-se com seu simples uso, procura ampliar seu efeito tentando empregá-lo de alguma forma mais eficaz: Como é comumente usado, o refrão poético, ou estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som, como na ideia: isto é, decidi produzir continuamente novos efeitos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior parte das vezes, invariável. (POE, 1999, p.3)

651

Primeiramente, observemos (imagem 2) a harmonia executada pelo violão.

Em canções, costumamos chamar de refrão a melodia vocal acompanhada de uma letra fixa que se repete mais vezes que as outras no decorrer da obra. Porém, empregando a ideia de refrão de Poe, que procura um eixo em que tudo gire ao seu redor e que se permaneça invariável, vejo que é inevitável destacar a função do violão como um exemplo de refrão, se colocado nesses critérios. A imagem mostra o começo da música, no qual o violão entra desacompanhado. No decorrer da canção, essa harmonia se apresenta como um eixo de que em torno giram a melodia da voz e da guitarra, além das linhas do contrabaixo e da bateria. Outra observação feita por Poe pode facilmente ser aplicada nesse refrão que acabo de analisar: “[...] era claro que esse refrão deveria ser breve, pois haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevidade da sentença, estaria, naturalmente, a facilidade da variação” (POE, 1999, p.3). Chegamos ao clímax, onde, segundo Poe, deveria concentrar-se o máximo de tristeza e desespero possível.

A imagem 3 ilustra o momento em que John canta: “I'm never speaking up again / It´s only hurts me / I'd rather be a mystery than she desert me”1(MAYER, 2001, faixa3). Toda a inflexão da voz para a região aguda, acrescida de um prolongamento das durações, desperta tensão pelo próprio esforço fisiológico da emissão. Esta tensão fica, quase sempre, correspondente a uma tensão emotiva e o ouvinte já está habituado ouvir a voz do cantor em alta frequência relatando casos amorosos, onde há alguma perda ou separação que gera um grau de tensão compatível. 1Tradução: eu nunca vou falar novamente/ isso só me machuca/ eu prefiro ser um mistério a ela

me abandonar.

652

(TATIT, 2003, p.7)

Tomando o que Poe diz e a breve observação feita por Tatit, concluímos que o clímax é encontrado com êxito pelo músico John Mayer, afinal nos deparamos com a afirmação desesperada do compositor ao concluir que jamais voltará a falar novamente, pois isso apenas o machuca. Justamente temos essa letra empregada no momento em que a voz atinge seu ponto mais agudo e de grande prolongamento, nos dando a sensação de tristeza e frustração máximas apresentadas no decorrer da canção. Após a listagem de suas noções estéticas e seu método de criação, Poe afirma: “Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar todas as obras de arte”(POE, 1999, p.5).

REFERÊNCIAS POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado). São Paulo: Globo, 1999, 3ª ed. revista. POE, Edgar Allan. The Raven. http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/theraven.php. Página visitada em 15 de junho de 2013. MAYER, John. My Stupid Mouth. In: MAYER. Room For Squares. Sony Music Entertainment Inc, 2001. Faixa 3. MAYER, John. My Stupid Mouth. http://songmeanings.com/songs/view/43212/. Página visitada em 1 de junho de 2013. TATIT, Luiz. Elementos para Análise da Música Popular vol. 1, número 2. Dezembro de 2003.

653

MÚSICA E ESPIRITUALIDADE: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DO CAMPO DA EDUCAÇÃO CASALETTI, Bárbara Burgardt [email protected] Licenciada em Matemática pela UFRGS Especialista em Educação a Distância pelo SENACRS Mestre em Educação pela PUCRS Doutoranda em Educação pela PUCRS

Palavras-chave: Música; espiritualidade; inteligência musical; inteligência espiritual.

Assim como Solomon (2003) nunca prestei muita atenção à espiritualidade e durante a minha vida sempre misturei espiritualidade com religião. Porém, a partir da leitura de sua obra Espiritualidade para Céticos compreendi que a crença em Deus não constitui espiritualidade e que não é necessário ser religioso para ser espiritual. Aprendi, ainda, que “o lugar para procurar a espiritualidade [...] é aqui mesmo, em nossas vidas e em nossos mundos” (SOLOMON, 2003, p. 25). Ferreira (2012) confirma o entendimento de Solomon (2003) de que não se deve confundir espiritualidade com religião. O autor insere esse debate no campo da educação esclarecendo que, ao contrário das concepções que entendem que a tarefa prática da educação é preparar os indivíduos para a vida social, a visão da educação dentro de uma perspectiva integral “busca ampliar e resgatar os fundamentos da razão educativa, a saber: a humanização” (FERREIRA, 2012, p. 156) Esses meus estudos iniciais sobre espiritualidade se deram em função de eu ter cursado uma Prática de Pesquisa intitulada “Inteligência Espiritual e Prática Docente: uma contribuição singular ao conceito de si”1. Nessa disciplina tive a oportunidade de responder as questões do inventário espiritual denominado PsychoMatrix Spirituality Inventory (PSI) e descobrir o meu perfil individual de espiritualidade em relação a cada um dos sete fatores apresentados por Wolman (2001): divindade, diligência, percepção extrassensorial, comunidade, intelectualidade, trauma e espiritualidade na infância. O autor explica que o inventário se destina a fornecer um retrato espiritual de você mesmo. Enfatiza, ainda, que “todas as respostas são normais”, bem como

1Disciplina integrante do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, ministrada pela Profª. Dr. Leda Lísia F. Portal.

654

que “resultados altos não são necessariamente bons” e “resultados baixos não são necessariamente ruins” (WOLMAN, 2001, p. 180). Dos sete itens do inventário, obtive, no atual momento de minha vida, um resultado baixo em quatro fatores (divindade, diligência, percepção extrassensorial e intelectualidade), um resultado moderado em dois fatores (comunidade e trauma) e um resultado alto em apenas um fator (espiritualidade na infância). Wolman (2001) considera que, em função de todos os resultados serem normais, não há uma aprovação ou uma reprovação. Além disso, esclarece que os resultados localizam o perfil de cada um em relação a outras pessoas que também responderam o inventário. A partir desse resultado e das primeiras discussões trazidas até aqui, descubro em Solomon (2003) a maneira com a qual eu encontrei a espiritualidade: por meio da música. O autor que, como já mencionei anteriormente, sustenta que a espiritualidade não está restrita à religião, explica a temática a partir de uma experiência que a maioria de nós já vivenciou, talvez mais de uma vez, que é a espiritualidade por meio da música. Isso diz respeito “à música que dizemos que nos arrebata” e que “nos tira de nós mesmos” (SOLOMON, 2003, p. 24). Música essa que nos transporta para um universo maior e nos coloca em comunhão com os demais ouvintes. Quando descobri esse meu encontro com a espiritualidade por meio da música, resolvi resgatar as duas temáticas (música e espiritualidade) a partir da teoria das inteligências múltiplas que aparecem nos estudos de Gardner. Qualquer discussão sobre espírito, de acordo com ele, “é controvertida dentro das ciências, se não em todo meio acadêmico” (GARDNER, 2000, p. 70). O autor, em um primeiro estudo, identifica sete inteligências: lógico-matemática, linguística, espacial, corporal-cinestésica, interpessoal, intrapessoal e musical. Posteriormente apresenta três novas possíveis inteligências: naturalista, espiritual e existencial. A concepção de inteligência difundida por Gardner aponta para questões que envolvem entendimento, compreensão, conhecimento e discernimento. Também revela uma capacidade de adaptação, de convivência e de resolução de problemas. Ao receber uma informação, os seres humanos são capazes de atribuir-lhe um significado e produzir respostas apropriadas. Então, a inteligência é a capacidade de resolver problemas ou elaborar soluções que são importantes em um determinado contexto. O autor explica, ainda, que nem todos os indivíduos têm os mesmos interesses e habilidades, tampouco aprendem da mesma maneira. De acordo com Gardner (1995), a inteligência musical compreende tocar um instrumento, compor ou apreciar uma música. Trata do reconhecimento dos sons e dos tons musicais, bem como da reprodução de uma peça musical, da

655

produção criativa da música e da percepção de ritmos, timbres e temas musicais. Essa inteligência está voltada para o pensamento em termos musicais. Desde o início da sua vida a criança percebe diferentes sons em seu ambiente e, muitas vezes, canta para si mesma e para quem está à sua volta. A inteligência musical do violinista Yehudi Menuhin manifestou-se antes dele ter recebido qualquer treinamento musical ou ter tocado um violino. Aos três anos de idade o violinista ficou fascinado com o som do violino de Louis Persinger e quis ganhar um violino em seu aniversário. Ganhou o instrumento musical e teve Persinger como seu professor. Aos dez anos de idade, Menuhin já era um músico internacional. O rápido progresso de Menuhin para tocar violino sugere que ele estava biologicamente preparado para essa tarefa. Para Solomon (2003) espiritualidade requer não só sentimentos como também pensamento, e pensamento requer conceitos. Diante disso, Portal (2004) entende espiritualidade e inteligência “caminhando de mãos dadas o que não significa dizer que pessoas inteligentes sejam mais espiritualizadas” (p. 70). Além disso, a autora ensina que “o significado da Vida não deve ser avaliado por algo externo a ela, mas pelo modo como vivemos e apreciamos nossas vidas em seus próprios termos o que incluí nosso lugar no mundo e nossa identidade com ele” (PORTAL, 2004, p. 70). Gardner (2000) apresenta a inteligência espiritual a partir de três abordagens: o espiritual enquanto preocupação com questões cósmicas ou existenciais, o espiritual como a conquista de um estado e o espiritual enquanto efeito nos outros. Nesse contexto, esclarece que “pessoas influenciadas por um indivíduo espiritual refletem espiritualidade para os outros” (GARDNER, 2000, p. 75). Tendo em vista a recorrente confusão entre os termos espiritualidade e religião, Gardner entende que é “melhor deixar de lado o termo espiritual [...] e falar de uma inteligência que explora a natureza da existência em suas múltiplas formas” (GARDNER, 2000, P. 78). Finalizando este estudo, mas sem esgotar os questionamentos sobre o tema proposto, e diante das ideias trazidas pelos autores, percebo que discorrer sobre espiritualidade não significa falar sobre religião, em que pese, como ensina Röhr (2012), haver alguns pontos de conexão entre ambos os conceitos. Percebo, ainda, que a essência da espiritualidade é a atividade sincera cheia de sentimento inteligente, de ação, de razão e de paixão. A espiritualidade é uma maneira de experimentar o mundo, de viver e de interagir com outras pessoas. Ela é, também, social e é viver além de si. A partir desse entendimento de espiritualidade, fica visível a aproximação dela com a música, pois a música “permite-nos escapar de nossos temores e desejos” (SOLOMON, 2003, p. 24). Assim, com base nos ensinamentos dos autores que deram sustentação a este texto, no caso Ferreira (2012), Gardner (1995 e 2000), Portal (2004), Röhr

656

(2012), Solomon (2003) e Wolman (2001), espero que possamos encontrar em nossas vidas essa aproximação entre inteligência, música e espiritualidade, para que, enquanto professores e alunos, tenhamos um maior senso de humanidade e camaradagem para que os processos de ensino e de aprendizagem se concretizem de uma maneira mais comprometida com o descobrimento de cada um como ser humano responsável por si mesmo e pelo mundo que nos cerca.

REFERÊNCIAS FERREIRA, Aurino Lima. Espiritualidade e Educação: um diálogo sobre quão reto é o caminho da formação humana. In: Diálogos em Educação e Espiritualidade. RÖHR, Ferdinand (org.). 2ª edição revisada Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 109- 159. GARDNER, Howard. Existem inteligências adicionais? Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. PORTAL, Leda Lísia F. Espiritualidade: uma dimensão essencial na experiência significativa da vida. In: Espiritualidade e qualidade de vida. TEIXEIRA, Evilázio Francisco Borges; MÜLLER, Marisa Campio; SILVA, Juliana Dors Tigre da. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004, p. 68-78. RÖHR, Ferdinand (org.). Diálogos em Educação e Espiritualidade. 2ª edição revisada. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para céticos: paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. WOLMAN, Richard N. Inteligência espiritual: um método revolucionário para você avaliar e expandir seu nível de consciência e energia espiritual. São Paulo: Ediouro, 2001.

657

A MUSICALIDADE NO PENSAMENTO DE HEIDEGGER Wagner Bitencourt [email protected] Graduado em filosofia pela UFPR Palavras-chaves: música, disposição, extramundano

Esta pesquisa pretende examinar o elemento musical no pensamento de Heidegger. Porém, não se trata de investigar a música como um elemento profundamente tematizado por ele em sua filosofia, sobre o qual ele tenha feito uma análise exaustiva. Mas sim, entender que papel esse elemento desempenha em seu pensamento, principalmente no que diz respeito á linguagem e desenvolver uma análise do fenômeno de música a partir de sua filosofia. Podemos observar um momento em que a musicalidade surge no pensamento de Heidegger no trecho que segue: ''o índice linguístico próprio da fala em que se anuncia o ser-em da disposição está no tom, na modulação, no ritmo da fala, 'no modo de dizer''' (HEIDEGGER, 2008, p.225).

Tonalidade, modulação e ritmo são elementos notadamente musicais. Qual seu papel no pensamento de Heidegger? O centro da questão da musicalidade está no fenômeno da disposição, pois é a ele que se refere a música. Como no trecho supracitado, em que Heidegger afirma que a disposição1 se expressa em termos musicais. A disposição e, portanto a música, podem ser polarizada em sua análise a partir de dois pontos, natureza e homem. Pretendo aqui apresentar uma proposta de pesquisa que tem como meta buscar as possibilidades de relação entre esses fenômenos. Penso ser possível chegar à compreensão de que no pensamento de Heidegger se abre, ainda que de forma insipiente, a possibilidade de pensar a música, ou o elemento musical, como uma forma de fala singular, não lógica e desprovida do que comumente entendemos por “sentido” nas interpretações desse filósofo, isto é, necessariamente atrelado ao humano. No pensamento de Heidegger existe um embate entre a possibilidade de a fala ser tomada como um elemento exclusivamente humano ou a possibilidade de ela ser a pura expressão de ser da natureza. Penso que a tentativa de muitas leituras que pretendem apresentar a fala como uma característica exclusivamente humana são um recorte antropocêntrico da ciência e da filosofia, que tem por objetivo colocar o homem em posição privilegiada em relação ao resto da Disposição: “O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor o estar afinado num humor”. (HEIDEGGER,2008, p.193). 1

658

natureza. Quanto à fala como uma pura expressão, o que quero dizer é que ela pode ser um elemento natural e ao mesmo tempo inseparado de cultura. O que devo investigar primeiramente é a relação entre homem e natureza no que diz respeito a dois elementos que os distinguem no pensamento de Heidegger: fala e disposição. Em seguida, apresentar a música como aquilo que acredito ser uma das possibilidades da compreensão do que seja a fala extra mundana 2. No primeiro passo – que concerne à natureza, fala, homem e disposição – entendo que a interpretação do termo dasein3 (ser que nós mesmos somos, aqui chamado de homem) não pode ser totalmente dissociada de um conceito extramundano de natureza, sendo entendida apenas como um tipo de determinação existencial ou categorial. Isso implica em um elemento comum entre Dasein e natureza, num sentido não explorado no pensamento de Heidegger de existência extramundana. Penso que nesse elemento pode ser encontrada a fala em seu aspecto musical. Em seguida, pretendo demonstrar que o limite entre a compreensão existencial da fala e a extramundana, se encontra no existencial da disposição. Na segunda parte vou encaminhar a investigação à música. Tentarei mostrar que aquilo que é chamado de articulação da compreensibilidade, que constitui o fenômeno do mundo por meio da compreensão, é insuficiente para definir fala, e que existe outro fenômeno cuja articulação é possível e que participa do lançamento do dasein e traz consigo a natureza para a constituição do dasein. Esse fenômeno é a disposição. Como exemplo disso, usarei a música, pretendendo estabelecer uma concepção de sentido extramundano. Caberá mostrar nesta parte da pesquisa como essa forma de linguagem difere da compreensão tradicional de “sentido”, em que a interpretação de sua origem contém uma raiz exclusivamente na mundanidade. Como pensar a música como uma linguagem? É um fenômeno que claramente nos conduz a uma afinação de humor e de alguma forma nos fala. Talvez a grande dificuldade de pensar a música como uma linguagem encontre-se expressa nesse trecho: “Assim como a língua compõe suas muitas palavras e infinitas frases com alguns poucos fonemas, a música também constrói sua grande e interminável frase com um repertório limitado de sons melódicos (com a diferença de que a música passa diretamente da ordem dos sons para a das frases, sem constituir, como a língua, uma ordem de palavras). (“WISNIC’’, 1999 p.44)

O termo extramundano, cunhado por Michel Haar, se opõe simetricamente ao de mundo. Mundo, por sua vez, é o contexto e o conjunto de significâncias onde aparecem os entes da manualidade, instrumentos, sempre em vista de uma possibilidade do Dasein. 3 Dasein- Possíveis traduções para Dasein são presença e ser-aí. Opto por manter o termo alemão, pois essas traduções não enfatizam o aspecto do termo que pretendo ressaltar, que é o caráter humano do dasein, como Heidegger o chama “o ser que nós mesmos somos”; e que possui a peculiaridade entre os outros entes de reconhecer e responder por sua própria existência. 2

659

Esse fenômeno que é a música, possui outros elementos que dizem algo diferentemente de uma língua constituída por palavras por isso mesmo pode falar outras coisas que não são ditas além da linguagem escrita. Basicamente, as disposições em seu intrincado movimento. Esses elementos também podem se manifestar na língua falada como afirma Heidegger. Exemplo desse fenômeno é o sânscrito e a poesia. Tonalidade, modulação ritmo dentre vários outros modos de expressão musical são exemplos desses elementos, eles podem ser aprofundados numa análise musical. Essa pesquisa ainda se encontra em desenvolvimento. As questões aqui levantadas só podem ser respondidas num trabalho mais longo. As respostas a estas perguntas dependem de uma investigação a respeito de conceitos da ontologia de Heidegger, e do surgimento na segunda fase de seu pensamento do conceito de Terra, que se opõe simetricamente ao Mundo. As questões que são desenvolvidas neste trabalho ressaltam o elemento extramundano que só surge declaradamente no pensamento de Heidegger quando ele cunha o conceito de Terra. Acredito que a musica seja uma forma de arte privilegiada para pensar entre esses conceitos pois ela não traz consigo tanta carga conceitual como a literatura por exemplo. Além do mais Heidegger eminentemente dá um privilégio á escuta em relação á visão.

REFERÊNCIAS HAAR, Michel Heidegger e a essência do homem. Tradução: Ana Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. HEIDEGGER Ser e Tempo ed. Vozes, 2008. ____________ A Proveniência da Arte e a Determinação do Pensar ___________A Origem da obra de arte in “A origem da obra de arte de Martin Heidegger” (Trabalho de dissertação; tradução, comentário e notas do texto de Heidegger por Laura de Borba Moosburger, UFPR, Curitiba, 2007) WISNICK, José Miguel O Som e o Sentido, São Paulo SP Companhia das Letras 2011.

660

EXISTE “AURA” MUSICAL NUMA ERA DE REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA DA ARTE? Cintya Fernanda Morato Soares [email protected] Pianista Graduada em Fonoaudiologia Pós-Graduada em Música Brasileira Mestranda em Educação pela UNIMEP-SP Rafael Trentin Scremin [email protected] Graduado em Educação Física Pós-Graduado em Educação Física Escolar Mestrando em Educação pela UNIMEP-SP

Palavras – Chave: música, arte, reprodutibilidade técnica, estética.

Este trabalho objetiva apontar as implicações da reprodutibilidade técnica da arte e a possibilidade de existência da “aura” na música (BENJAMIN, 1994). Com a utilização da reprodutibilidade técnica cada vez mais recorrente na sociedade atual, compreende-se que também a “aura musical” não está desvinculada daquilo que se produz na sociedade, atualmente, alcunhada de sociedade líquida ou sociedade moderna, no sentido de Bauman, como sendo a sociedade dos consumidores, na qual se pode discutir até mesmo a função estética da obra de arte, nesse contexto, da música como obra de arte. A música tem história, faz história e participa da história contínua do homem, e não são poucos os registros documentados (registros em papel, gravações em vídeo ou áudio) sons, melodias, letras “registrados” magistralmente na memória das pessoas, momentos da vida que foram marcados por uma música, um som, uma entonação diferente, um ritmo, os quais remetem para sentimentos, ações ou intenções. Para cada povo, com sua cultura peculiar, a música pode ter sentidos distintos. Isso está diretamente ligado aos seus costumes e tradições e as suas influências sonoras e musicais. Através de um determinado tipo de música, é possível caracterizar um povo ou uma região. No entanto, é fundamental lembrar que o rádio quebrou fronteiras, no Brasil, especialmente nos anos 60 e 70, levando a música brasileira e as estrangeiras a lugares nunca antes pensado ou imaginado, “padronizou” por assim dizer, o gosto popular, os ídolos das canções e aproximou gerações.

661

Atualmente, a música tem maior espaço para divulgação do que no passado, pois os meios tecnológicos evoluíram e, por meio destes, a mídia (rádio, televisão, internet, etc.) colocou todo tipo de música para todos os gostos. O século XXI está sendo marcado por uma nova era nos meios de comunicação e de relação interpessoal. É o século em que a globalização é fomentada em sua maioria pelo processo de integração econômica e pela necessidade do capitalismo atingir novos mercados, e que vem ascendendo pelas várias esferas da atividade humana. Na mesma conjuntura, possuímos novas tecnologias cada vez mais sofisticadas e interativas, fazendo com que não existam barreiras para a comunicação globalizada e consequentemente para a aquisição de qualquer produto. O indivíduo pode estar hoje em sua casa e consegue adquirir qualquer tipo de produto, seja de sua cidade ou de outro continente. Todo esse contexto faz com que nos tornemos uma sociedade com algumas características que nos diferem das sociedades passadas, que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman classifica como ‘’Sociedade de Consumidores’’. Bauman (2008) define esta sociedade da seguinte maneira, A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumista, e rejeita todas as opções culturais alternativas (…). Numa sociedade de consumidores, todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação). Nessa sociedade, o consumo visto e tratado como vocação é ao mesmo tempo um direito e um dever humano universal que não conhece exceção (p. 71-73).

Tudo o que é excessivamente divulgado, acaba por enfatizar em demasia determinada música ou estilo musical, “impondo” por isso aos ouvintes uma seleção musical ou estilo musical que nem sempre tem a ver com a sua escolha pessoal, porém, muitos acreditam ser essa a “boa música”, não tendo oportunidade ou iniciativa de ampliar seu repertório, de ouvir e apreciar uma outra música. Portanto, os ouvintes desatentos às manipulações midiáticas não criam parâmetros de comparação. Neste sentido, ‘’consumir’’ revela ou simplesmente induz para a conotação de uma autovalorização social. Mas essa autovalorização plasmada na sociedade atual pode também se caracterizar, com sentido de ‘’vendabilidade’’ de alguma coisa ou produto (BAUMAN, 2008). Partindo destas premissas, discutiremos a existência de uma ‘’aura’’ musical em uma sociedade de consumidores onde a reprodutibilidade técnica é dominante. O que Benjamin chama em seu texto de “reprodutibilidade técnica” é, na verdade, a entrada do processo industrial na produção artística. Walter Benjamim (1992) em ‘’A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica’’ aprofunda a discussão de como a produção virou reprodução, e que a criatividade está ligada ao capital, tendo a razão e a

662

sensibilidade como as únicas formas de vermos o mundo de maneira não manipulada. A arte deve ser usada como um instrumento de combate contra a alienação no mundo já alienado. Mas para que isto aconteça, a arte deve ter uma ‘’aura’’, algo que ateste sua singularidade, que de acordo com Benjamin (1992), A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Essa tradição, ela é própria, é algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vênus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os Gregos que a consideravam um objeto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma, era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura. (BENJAMIN, 1992, p. 82)

A singularidade (aura) é o ponto central desta discussão, pois com a reprodutibilidade, a ‘’aura’’ corre o risco de perder seu caráter único e, com isso, perder seu caráter crítico. Entretanto nem tudo parece negativo para Benjamin, por isso, o autor tenta enxergar ainda que apenas um traço positivo na reprodução, evidentemente, um traço emancipatório para a obra de arte, a qual “poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que liberta o objeto reproduzido do domínio na tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa” (BENJAMIN, 1992, p. 79). Entretanto, a questão não está diretamente ligada à reprodução, mas sim, ao que está sendo reproduzido. Nesse contexto, pode-se indagar se a massa pode ser induzida a permanecer no estado de alienação em que se encontra, ou se é capaz de emancipar-se desse subjugo da reprodutibilidade? Certamente, ver ou ouvir constituem o mesmo padrão de análise. O que os diferenciam não são suas qualidades específicas, mas sim, o conteúdo que será apresentado através deles. É preciso destacar que o autor/compositor/artista também faz parte da sociedade de consumidores, na qual nos encontramos, e sua dificuldade é ainda maior, pois para o verdadeiro artista, sua identidade não pode ser corrompida, A cultura consumista é marcada por uma pressão constante para que sejamos alguém mais. Os mercados de consumo se concentram na desvalorização imediata de suas antigas ofertas, a fim de limpar a área da demanda pública para que novas ofertas a preencham. Engendram a insatisfação com a identidade adquirida e o conjunto de necessidades pelo qual se define essa identidade. Mudar de identidade, descartar o passado e procurar novos começos, lutando para renascer – tudo isso é estimulado por essa cultura como um dever disfarçado de privilégio. (BAUMAN, 2008, p. 128)

Entrar neste sistema pode caracterizar para o artista, simultaneamente, a vulgarização de sua arte e o reconhecimento desejado. Eis, então, o grande desafio musical e artístico do século XXI, o ‘’paradoxo aurático’’ da dicotomia

663

estética atual, ou seja, a estética benjaminiana com elementos da ‘’aura’’ artística e a estética mercadológica exigida pela sociedade de consumo. A primeira é duradoura e efêmera ao mesmo tempo, é única. Ela é o que já passou, o presente e o que está por vir. Ela é esteticamente crítica em sua essência, é o abstrato que se torna concreto e vice versa. Portanto, ao que parece, quem vai decidir qual tipo de sucesso deve construir para si próprio ainda é o artista, dependendo especialmente do sentido empregado e como compreende aquele tão almejado e desejado sucesso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. _______________. A Ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na arte de sua reprodutibilidade técnica. IN: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Amélia Cruz et al. Lisboa: Relógio D´Água, 1992. CHION, Michel. Músicas, media e tecnologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. GONÇALVES, Maria Inês Diniz. A virtude da força nas práticas interdisciplinares. Campinas, Papirus, 1999. PALUDO, Ticiano Ricardo. Walter Benjamin remixado: a aura musical na era da cibercultura e da arte atual. Disponível em http://www.sonora.iar.unicamp.br/index.php/sonora1/article/viewFile/31/30. Acesso em 09/07/2013. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. Tradução: Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. São Paulo: Editora Unesp, 2001. SCOUTEN, André-Kees de Moraes; CIRINO, Giovanni. Relendo Walter Benjamin: etnografia da música, disco e inconsciente auditivo. CADERNOS DE CAMPO, N. 13. 2005. VALENTE, Heloísa Duarte de Araújo. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo, Annablume, 1999.

664

SOBRE A EPISTEMOLOGIA DA MÚSICA DE HELMHOLTZ: IDEAÇÃO ATIVA E INFERÊNCIAS INCONSCIENTES NA PERCEPÇÃO TONAL Lucas Carpinelli [email protected] Bacharel em Filosofia Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo Palavras-chave: Helmholtz, música, epistemologia.

Entre 1855 e 1863, o físico e fisiologista alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894) devotou-se intensamente à investigação de questões relativas à natureza dos fenômenos acústicos e à fisiologia da audição, bem como ao fenômeno da fruição musical e aos conceitos que lhe servem de alicerce na tradição musical européia pré-moderna – a bem dizer, consonância e dissonância –, investigação essa cujos resultados tiveram impacto imediato (e, em termos históricos, duradouro) sobre a musicologia ocidental. Tais resultados foram inicialmente comunicados na palestra “Sobre as Causas Fisiológicas da Harmonia Musical”, apresentada em Bonn durante o inverno de 1857, e, posteriormente, reelaborados de forma minuciosa e enciclopédica na monumental obra Das Sensações do Tom como uma Base Fisiológica para a Teoria da Música, de 1862 – publicação cujo teor o comentador Michel Meulders sintetizaria de forma particularmente apta, dizendo tratar-se de “uma das jóias da literatura científica do século dezenove pela riqueza e imaginação dos experimentos que descrevia, mas também pela paixão que inspirava o autor em seu desejo utópico de explicar o belo na música” (2010, p. xvii). Os critérios por meio dos quais explicava a natureza última da fruição musical tinham por base os mais recentes – à época – desenvolvimentos matemáticos e técnicos no interior das ciências exatas, constatação que pouco surpreende ao lembrarmos que a formação de Helmholtz se dera sob a tutela do rigorosíssimo fisiologista Johannes Müller (1801-1858). Dentre a grande quantidade de avanços anatômicos permitidos pelo uso do microscópio composto, pelos quais nutria agudo interesse, Helmholtz viu-se particularmente fascinado pelas estruturas auditivas desveladas pelo Marquês Alfonso Corti (1822-1876): de forma simplificada, o chamado órgão de Corti consiste em grande número de fibras receptoras dispostas sobre a membrana basilar da cóclea, no ouvido interno; capazes de ressonância simpática na presença de determinadas freqüências vibratórias às quais são constitutivamente sensíveis, a vibração de tais fibras faz com que as células ciliares a que estão ligadas também se movam, enviando impulsos elétricos ao cérebro através do nervo coclear. Excepcional sintetizador de conceitos cuja relação talvez parecesse pouco óbvia para um

665

observador menos arguto, Helmholtz juntou tais constatações a outras inovações do período: em 1822, o matemático Jean Baptiste Fourier (1768-1830) demonstrara que qualquer vibração periódica complexa podia ser reduzida a certo número de vibrações harmônicas simples; já o físico Georg Ohm (1787-1854) formulara, em 1843, a hipótese de que o ouvido seria sensível às amplitudes, mas não às fases, dos sobretons harmônicos de um tom complexo, de que a distribuição de energia entre os sobretons harmônicos que caracterizam os sons musicais apresentaria, portanto, concordância com a análise de Fourier, e de que o padrão de tal distribuição orientaria a percepção timbral – hipótese a que a posteridade viu por bem dar o nome de “lei acústica de Ohm”. Entrevendo confluência óbvia entre tais desenvolvimentos, Helmholtz empenhou-se por demonstrar experimentalmente que o próprio ouvido executa, por meio do órgão de Corti, uma análise de Fourier sobre ondas sonoras complexas; em outras palavras, discernimos cada um dos sinais sinusoidais simples de que um som musical aparentemente homogêneo é composto por meio de características intrínsecas à nossa fisiologia auditiva. Como uma extensão dessa teoria auditiva, Helmholtz pôde conceber a consonância como uma resposta sensorial intrínseca ao aparato auditivo, mas ocasionada por dois fatores extrínsecos ao mesmo: (a) a afinidade entre os sobretons de dois ou mais tons fundamentais, e (b) a subsequente ausência (ou presença pouco intensa) de pulsos tonais, ou batimentos, entre estes mesmos tons parciais adjacentes. Seu oposto cacofônico, a dissonância de um agregado tonal simultâneo, seria, então, uma apreensão auditiva significativa de tais batimentos, percebidos como destoantes e abrasivos precisamente por seu caráter intermitente: do mesmo modo como uma luz faiscante agride nosso aparato visual, o excitamento dos órgãos da audição produzido por pulsos tonais é muito mais intenso e desagradável do que aquele que seria ocasionado por um tom contínuo e uniforme. “Tons consonantes seguem tranquilamente lado a lado, em um fluxo sem perturbações,” conclui Helmholtz, “[enquanto] tons dissonantes cortam um ao outro em pulsos tonais distintos” (1954, p. 226). O trabalho de pesquisa que atualmente desenvolvemos tem por objetivo confrontar decorrência problemática de tais resultados: em linhas gerais, argumentamos que, ao fixarmos causas puramente acústico-fisiológicas para noções eurocêntricas de musicalidade, operamos algo como uma naturalização de nossos sistemas de organização tonal – isto é, de escolhas estéticas que temos como, ao menos em parte, histórica e culturalmente determinadas e, portanto, contingentes – em detrimento de sistemas musicais oriundos de outras culturas, frequentemente dotados de critérios distintos de ordenação sonora. Nossa dificuldade, portanto, encontra-se em conciliar a rigorosa obra científica de Helmholtz com a existência de sistemas musicais válidos que escapam às diretrizes estéticas estabelecidas pela mesma, sem que para tanto sejamos constrangidos a adotar o argumento de que espécie de hierarquia valorativo-

666

cultural estaria em jogo, uma em que determinados sistemas teriam maior aptidão do que outros para plasmar uma musicalidade humana dita “universal”. Acreditamos que, por meio de investigação renovada do nó epistêmico presente na percepção musical – resultante do entrelaçamento, na mesma, de aspectos acústicos, fisiológicos, psicológicos e estético-culturais – possamos esboçar distinções entre fatores determinantes necessários (acústico-fisiológicos) e contingentes (biográfico-culturais) para tal percepção, e assim atacar adequadamente o problema. Acreditamos, ademais, que tal empreitada possa, surpreendentemente, contar com o auxílio da obra textual do próprio Helmholtz. Na publicação que inaugura a popularização de seus estudos acerca da percepção musical, o já mencionado ensaio “Sobre as Causas Fisiológicas da Harmonia Musical”, o autor apresenta interessante distinção entre Tonempfindungen, ou sensações tonais, de causa patentemente acústico-fisiológica, e Vorstellung – a posterior concepção que fazemos de tais sensações. Nas palavras do autor (nossa a ênfase): É necessário que distingamos entre duas coisas. Primeiramente, a sensação [Empfindung] no nervo auditivo, que se dá sem interferência intelectual de qualquer espécie e, em segundo lugar, a concepção [ou ideia, Vorstellung] que formamos como consequência de tal sensação. Assim, temos que distinguir o ouvido físico do corpo do ouvido espiritual da imaginação. (1865, §72)

Mais à frente, são discutidos os aspectos conscientes e ativos da concepção tonal: Nenhuma de nossas percepções sensoriais são meramente sensações [Empfindungen] de nosso aparato nervoso, mas requerem uma peculiar atividade da alma para passar de sensação dos nervos [Empfindung des Nerven] à concepção [Vorstellung] de um objeto externo, ocasionada pela sensação. As sensações de nossos nervos dos sentidos são meros signos de determinados objetos externos e, no mais das vezes, é somente por meio da

prática que aprendemos a chegar, a partir de nossas sensações, a conclusões corretas acerca dos objetos que lhes correspondem. (1865, §83)

Finalmente, a contraparte inconsciente da concepção tonal é esboçada: A Estética examina a natureza do belo artístico em sua racionalidade inconsciente [unbewussten Vernunftmässigkeit]. (...) Esta é verdadeiramente inconsciente, na medida em que se baseia em sobretons que são percebidos pelos nervos, mas que usualmente não adentram o campo da ideação consciente [bewussten Vorstellens]; sua compatibilidade ou incompatibilidade, no entanto, é sentida, sem que o ouvinte saiba onde encontrar a causa de seu sentimento. (1865, §110)

667

O conceito de algo como uma estrutura perceptiva capaz de determinar nossas percepções sensoriais ressurge no terceiro volume de sua clássica obra Tratado da Fisiologia Ótica (1867), já trajado de terminologia definitiva: “unbewusste Schlüsse” – “conclusões (ou inferências) inconscientes” (1925, §26). Temos, portanto, no que compete à epistemologia da música de Helmholtz, clara distinção, no fenômeno geral da percepção tonal, entre os processos acústicofisiológicos da sensação e os processos (parcialmente, ao menos) intelectuais da concepção tonal. Sobre os últimos opera-se distinção adicional entre processos intelectuais conscientes (ideação ativa, gradualmente aperfeiçoada pela experiência) e processos estruturais inconscientes que escapam à ideação deliberada. Munidos de tais distinções, de natureza essencialmente propedêutica, resta-nos prosseguir em direção a investigações mais aprofundadas, e agradecer pela atenção e generosidade dos presentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: HELMHOLTZ, H. L. F. Ueber die physiologischen Ursachen der musikalischen Harmonie (1857). Populäre wissenschaftliche Vorträge, v. 1. Branschweig: Friedrich Vieweg und Sohn, 1865, pp. 56-91. ______. On the Physiological Causes of Harmony in Music (1857). Popular Lectures on Scientific Subjects. Tradução de E. Atkinson. Nova Iorque: Appleton, 1885, pp. 61-106. ______. Die Lehre von den Tonempfindungen als physiologischer Grundlage fur die Theorie der Musik (1862), quarta edição, Braunschweig, F. Vieweg, 1877. ______. On the Sensations of Tone as a Physiological Basis for the Theory of Music (1862-1877). Tradução de Alexander Ellis. Nova Iorque: Dover Publications, Inc., 1954. ______. Treatise on Physiological Optics, vol. III: The Perceptions of vision (1867). Nova Iorque: The Optical Society of America, 1925. ______. Os Fatos na Percepção (1878). Tradução de J. C. P. Oliveira e F. P. A. Fleck. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 2. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, jul.-dez. 1989, pp. 229-74. MEULDERS, M. Helmholtz: From Enlightenment to Neuroscience. Tradução de Laurence Garey. Cambridge: The MIT Press, 2010. TENNEY, J. A History of ‘Consonance’ and ‘Dissonance’. Nova Iorque: Excelsior Music Publishing Company, 1988.

668

I RESUMOS

669

INTERPRETAÇÃO E PERFORMANCE MUSICAL PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS-GEORG GADAMER Danton Oestreich [email protected] Graduado, UFRGS Palavras-chave.: Hermenêutica; Interpretação; Música; Performance.

Em Verdade e Método, de 1960, Hans-Georg Gadamer buscou a legitimação da independência epistemológica das ciências do espírito, na medida em que a experiência da verdade nestas, não se limitaria ao domínio metodológico das ciências naturais. A hermenêutica, como ciência da compreensão e interpretação correta de textos, sempre entendeu este processo como pertencente ao todo da experiência do homem no mundo, não restrito simplesmente à legitimação metodológica. Fundamentando sua tese a partir da experiência da arte, da história, e da linguagem; Gadamer propõe uma hermenêutica filosófica que busca revelar a estrutura prévia que opera em toda compreensão e interpretação, elevando-a assim, à universalidade. A interpretação do texto musical está entre estes casos que não se limitam ao domínio do método, entretanto, isto não reduz a necessidade da aplicação de um senso rigoroso na reflexão das suas possibilidades. Conceitos gadamerianos como história efeitual e fusão de horizontes, quando confrontados com as duas principais perspectivas com as quais o músico constrói a sua performance (a tradição de intérprete e a análise musical), colaboram no esclarecimento destas possibilidades. E o conceito de jogo, ao revelar uma experiência de pensamento que é sempre real, torna-se importante na discussão de uma análise e descrição fenomenológica da performance. Demais conceitos de natureza mais específica também são discutidos. Em suma, a racionalidade hermenêutica é aqui apresentada como um aspecto crítico e útil ao entendimento da interpretação e performance da música referente a um texto musical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COOK, Nicholas (1987). A guide to musical analysis. Norton & Company, 1992 GADAMER, Hans-Georg (1960). Verdade e Método I. Petrópolis: Editora Vozes, 2012



Trabalho vinculado às investigações do Grupo de Pesquisa MUSEF – Música, Educação e Filosofia da UFRGS coordenado pelo Prof. Dr. Raimundo Rajobac

670

––––––––––– (1964). Estética e hermenêutica. In: Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2010 ––––––––––– (1967). Arte e imitação. In: Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2010 ––––––––––– (1974). A atualidade do belo. In: Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2010 ––––––––––– (1988). La música y el tiempo. Barcelona: Paidós, 1998 GOEHR, Lydia (1992). The Imaginary Museum of Musical Works. New York & London: Oxford University Press, 2007

671

“PARCIAL, APAIXONADA, POLÍTICA”: CHARLES BAUDELAIRE E SUA CRÍTICA MUSICAL Danilo Pinheiro de Ávila [email protected] Prof. Dr. José Adriano Fenerick Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Palavras Chave: Crítica Musical, Charles Baudelaire, Autonomia, Richard Wagner

Esse projeto de pesquisa visa estudar a crítica musical de Charles Baudelaire (Richard Wagner e a Tannhauser em Paris, 1861), com o objetivo de projeta-la nos debates musicais historicamente constituídos que determinaram a vida musical na Paris da metade do século XIX. Procuraremos dialogar a crítica baudelairiana com outras críticas (ou teorias) musicais de seus contemporâneos, como a do musicólogo Eduard Hanslick, com o intuito de inseri-la no debate sobre a autonomia da música que se cristaliza nesse período, assim como coloca-la no contexto das instituições operísticas que regulavam a vida musical parisiense (Opéra Comique, Théâtre Lyrique, e, principalmente, o Opéra de Paris). Tentaremos não engessar o conceito de autonomia, entendendo-o como uma categoria única, procurando explorar tanto sua faceta social¸ quanto a referente a linguagem musical Para tanto, faz-se necessário um estudo no qual a crítica musical ocupe posição determinante, pois esta se configura enquanto um objeto privilegiado para se aferir a organização da cena operirstica de um dado momento histórico. Da mesma forma, tanto crítica quanto obra musical demandam uma análise individual, com o intento de compreender a historicidade sedimentada em ambas. Além disso, é perceptível a tendência dos estudos históricos em centrar-se apenas no Baudelaire crítico literário e artístico, não levando em conta sua crítica musical a Richard Wagner, sendo assim, através dessa percepção, essa pesquisa procurará contribuir para amenizar esta lacuna existente nos estudos históricos acerca de sua crítica musical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. . In Search of Wagner. Trans. Rodney Livingstone. London: Verso, 2005. __________________. Escritos Musicales I-III. Obra Completa, 16. Trad. Muñoz, A. B. & Schneekloth, A. G.; Madrid: AKAL Ediciones, 2006 FAUSER, Annegret. “Cette musique sans tradition: Wagner’s Tannhäuser and its French Critics”. IN: (org.) EVERIST, Mark. Music Theater and Cultural Transfer: Paris 1830-1914. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

672

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa: volume único. In: BARROSO, Ivo (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda São Paulo: Cosac Naify, 2008. HANSLICK, Eduard. Do Belo Musical: um contributo para a revisão da estética da arte dos sons. Trad. Artur Mourão. Covilhã: Lusosofia Press, 2011. WAGNER, Richard. Opera and Drama. Translated by Edwin Evans. London: WM. Reeves, 1983.

673

MPB, INDÚSTRIA CULTURAL E CULTURA POPULAR: ADORNO CONTRA ADORNO Luciana Molina Queiroz [email protected] Mestranda, UFMG Palavras-chave: autonomia, cultura popular, indústria cultural, padronização.

Esta apresentação toma como ponto de partida o livro de Henry Burnett Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: Ensaios de Filosofia e Música com vistas a problematizar a interpretação de Burnett de algumas teses de Adorno sobre indústria cultural e cultura popular. Adicionalmente, pretendemos, mediante as reflexões de Burnett, utilizar a filosofia da arte de Adorno contra ele próprio. Dessa forma, defenderemos a MPB a partir de um filósofo conhecido por sua intransigente predileção pela música clássica e por suas polêmicas contra outro gênero dito popular, o jazz. Por um lado, é possível concordar com Burnett que a MPB apresenta uma elaboração formal notável, não sendo, portanto, ponto pacífico afirmar que a mesma é “indústria cultural”. Por outro lado, contrariamente ao que parece conceber Burnett, não acreditamos ser possível afirmar que a MPB é cultura popular na acepção que lhe dá Adorno, pois, embora o conceito apareça poucas vezes em sua obra, o filósofo deixa claro que a cultura popular não só compartilha da simplificação formal da indústria cultural como também que é caracterizada pela espontaneidade pela qual surge das massas. Essa descrição nos parece incompatível com grande parte da música realizada pelos compositores e letristas da MPB citados por Burnett. Assim, buscaremos explicitar que não basta para a caracterização da indústria cultural destacar sua padronização formal. Os produtos da indústria cultural são assim concebidos por Adorno porque são “mercadorias de cima abaixo”, e é justamente por não possuírem autonomia formal que apresentam formas artísticas simplificadas. É possível constatar nas canções da MPB enorme elaboração formal justamente porque não se enquadram nem na descrição da indústria cultural (como mercadorias plenas) nem na descrição de cultura popular (de canções espontaneamente derivadas das massas e passadas adiante de maneira consuetudinária). Concluímos com isso que a MPB é caracterizada pela autonomia formal que Adorno considera ser a diferença fundamental entre arte e indústria cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

674

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, Lda, 2008. BURNETT, Henry. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: Ensaios de Filosofia e Música. São Paulo: Unifesp, 2011.

675

A MÚSICA COMO TRADUÇÃO E REVELAÇÃO FILOSÓFICA NA OBRA DE ADORNO Lucyane De Moraes [email protected] Mestre em Filosofia - UGF

Palavras-chave: Música, Estética, Filosofia, Teoria Social.

A urgência do surgimento de uma nova música nos anos vinte diz respeito à relação ao perfil conservador do público europeu da época. Não por outra, foi baseado em normas que Schoenberg elabora sua nova técnica compositiva, ainda que sem perder de vista todo o legado histórico da música ocidental desenvolvida ao longo dos tempos. A relação crítica de Adorno com a música vai muito além da perspectiva única de sua audição e do ouvinte, abarcando a totalidade dos processos que antecedem mesmo a criação da própria obra em si, analisando com profundidade o conjunto das relações implícitas em tal processo, sejam de natureza histórica, social e cultural, dimensionando-a enquanto elemento basilar para o desenvolvimento de suas reflexões estéticas. Um dos grandes marcos de sua contribuição ao pensamento estético da modernidade refere-se justamente ao conceito de Nova Música, objetivando estabelecer as bases estruturais para se pensar uma música de sentido novo, tendo como referência principal a idéia de material artístico que Adorno apreende de Schoenberg. É nesse sentido que ao referir-se ao termo Nova Música, Adorno o faz levando em conta todo o contexto musical do pós-guerra e o trabalho de reflexão sobre as possibilidades de reestruturação das formas geradas por uma música nova que se configura como resultado histórico, baseado em uma concepção materialista que postula a criação de uma nova sociedade e de um novo homem ouvinte de uma nova música. É nesse contexto que a idéia potencial de a arte poder reconfigurar novas formas de relações sociais significa para Adorno uma possibilidade não somente estética, mas, sobretudo política, uma vez que o processo histórico, em continuo movimento, se desenvolve no âmbito das relações sociais e que tudo o mais, por mais natural que pareça, é passível de mudanças como decorrência da ação humana.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADORNO, T. W. Berg: o mestre da transição mínima. São Paulo: UNESP, 2009. __________. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

676

__________. Escritos musicales I-III: Figuras sonoras, Quasi una fantasia, Escritos Musicales III. Madrid: AKAL, 2006. __________. Escritos musicales IV: moments musicaux impromptus. Madrid, AKAL: 2008. __________. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 1974. __________. Introducción a la sociologia de la música; Disonanacias. Madrid: AKAL, 2009. __________. Kierkegaard: construcción de lo estético. Madrid: AKAL, 2006. __________. Monografías musicales. Madrid: AKAL, 2008. __________. Notas sobre literatura. Madrid: AKAL, 2003. __________. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008.

677

A TRANSMISSÃO DE VALORES MORAIS PELO MEIO MUSICAL Halley Chaves da Silva [email protected] Especialista em História e Ensino de Filosofia e Graduando em Música, UFCG Augusto Matheus Vasconcellos de Araújo [email protected] Graduando em Música, UFCG Palavras-chave: Música, Moral, Adorno, Sociedade Contemporânea.

A regressão da audição da sociedade contemporânea é segundo Theodor Adorno, um dos maiores problemas enfrentado pelo desafio da formação intelectual contemporânea. Em virtude disso, é importante atentar para o poder que a música pode exercer na sociedade de um modo negativo e também positivo. O maior exemplo da influência da música na ideologia de uma sociedade se dá no Racismo nas Óperas de Richard Wagner, que influenciou o Nazismo na Alemanha, além dos arquétipos pós-modernos de música, ligado às drogas e a pornografia que implicam na violência e na libertinagem de nossa cultura contemporânea. A escola de Frankfurt e os pensadores antigos revelam o quão é importante atentar para as questões que envolvem a exploração da música como mercadoria ou como elemento de formação ideológica, de maneira a atentar o seu papel como elemento educacional, evidenciado por vários pensadores durante toda a história da humanidade. Os filósofos fitam para a importância da música na educação de um indivíduo, como elemento presente – tanto na sua formação intelectual, quanto na sua formação moral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Introdução à Sociologia da Música: doze preleções teóricas/ Theodor W. Adorno; Tradução Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Editora Unesp, 2011. ADORNO, Theodor. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. HEGEL, Georg Wilhelm Fridrich, 1770-1831. Curso de Estética: O Belo na Arte/G.W.F.Hegel. Tradução Orlanda Vitorina e Álvaro ribeiro-2ªed. São Paulo: Editora WMF martins fontes, 2009. (clónicas WMF). ILARI, Beatriz Senoi (org.). Em Busca da Mente Musical – Ensaios sobre os processos cognitivos em musica, da percepção à produção. Curitiba: Ed. da UFPR, 2006.

678

MERTENS, Win. American Minimal Music. New York: Alexandre Broude Inc., 1983. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Wagner em Bayreuth. Tradução de Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo, SP: Editora Escala: 2007. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução de J. Guinsgurg. São Paulo, SP: Companhia das Letras: 1992. PLATÃO. A República. Coleção Os Pensadores. Tradução de Enrico Corviseri. São Paulo, SP: Nova Cultural: 2000. TOMAS, Lia. Música e Filosofia: Estética Musical. São Paulo, SP: Irmão Vitae, 2005.

679

NOTAS SOBRE A MÚSICA FOLCLÓRICA RIO-GRANDENSE Gabriela Nascimento Souza [email protected], Manoela Nascimento Souza, Pós-graduanda em Estética e Filosofia da arte e graduanda em Museologia UFF – RJ, UFSC – SC. Palavras-chave: música, folclore, filosofia, antropologia

Propomos uma abordagem antropológica/filosófica que tem como assunto principal a música folclórica rio-grandense. Entende-se por música uma reciprocidade entre som e silêncio (definição filosófica que ficará para o último capítulo), primeiramente teremos de defini-la e mostrar que a espécie de música a ser discutida aqui é a verdadeira música popoluar, ou seja, nosso materaial é a música que é “aceita espontaneamente pelo povo, preserva-se e se transmite com naturalidade, de pessoa a pessoa, de geração a geração, não necessitando dos meios de comunicação e de massa, como radio e televisão.” (CADERNOS GAÚCHOS, p.35, 1983) A fim de desenvolver um trabalho inspirado justamente no Primeiro simpósio de Estética e Filosofia da música que irá acontecer na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pretendemos desenvolver notas filosóficas e antropológicas a respeito da música folclórica rio grandense. Este breve texto se dividirá entre 1. Da música folclórica: primeiro capítulo responsável pela definição da música folclórica, usando principalmente do livro – Folk Festo e tradições gaúchas e Querência: cultura regional como mediação simbólica – um estudo de recepção. Abriremos as portas para o próximo capítulo, o qual terá como objetivo uma discussão antropológica sobre a música folclórica riograndense. 2. Notas antropológicas e por fim, passaremos para a discussão filosófica que tem como principal fonte de estudo o livro O som e o sentido de Miguel Wisnik. Como plano de fundo exemplificativo, ou seja, para usar uma música que exemplifique as hipóteses tanto antropológicas como filosóficas do presente texto, usaremos do autor e compositor Jayme Caetano Brown.

REFERÊNCIAS: JACKS, Nilda. Querência Cultural Regional como Mediação Simbólica – um estudo de recepção. – Porto Algre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.

680

MARCON, Fernanda. O primeiro lugar vai para...: por uma abordagem antropológica sobre festivais de música e gêneros musicais. Antropologia em primeira mão, 2011. CADERNOS GAÚCHOS. Folk festo e tradições gaúchas, Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Caderno 8, 1983.

681

FILOSOFIA DA MÚSICA COMO VERDADEIRA FILOSOFIA: A METAFÍSICA DA MÚSICA DE ARTHUR SCHOPENHAUER Luan Corrêa da Silva [email protected] Doutorando da UFSC Palavras-chave: música; metafísica; Schopenhauer; verdadeira filosofia.

A proposta desta comunicação é a de abordar, brevemente, uma posição filosófica radical em filosofia da música de Arthur Schopenhauer. Em O mundo como vontade e como representação, de 1818, o filósofo de Dantzig propõe uma consideração metafísica da música, em oposição à sua consideração física; ou seja, opõe o discurso sobre a casca exterior, do discurso sobre o conteúdo interior, sobre o sentido, da música. Mostra-nos, a partir daí, como a música é expressão da própria essência do mundo e, assim, em que termos é lícita a sua proposta de analogia, ou paralelismo, entre música e mundo. Essa tese, que influenciou de imediato pensadores e compositores, como Friedrich Nietzsche e Richard Wagner – representando um salto importante para a compreensão sobre a expressão filosófico-musical –, permite-nos pensar como a música não é apenas uma expressão do humano, mas é propriamente constitutiva dele. Para essa filosofia, a música é radicalmente distinta das demais artes, pois nela não predominam as formas e nem as figuras, mas o próprio fundamento, que é sem fundamento, do mundo: a vontade. Desse modo, podemos mostrar como a metafísica da música, pensada enquanto a reflexão em termos conceituais sobre música, poderia ser pensada como a verdadeira filosofia, configurando um paradoxo insolúvel, já que justamente o mais essencial nunca pode ser exprimido em conceitos e palavras, sempre secundários à vontade; daí que este paradoxo essencial, antes de ser uma desvantagem filosófica, deve ser compreendido como etapa necessária da tarefa filosófica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOZA, J. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. NIETZSCHE, F.W. A visão dionisíaca do mundo: e outros textos da juventude. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________________. O nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ________________. Música e palavra. Trad. Oswaldo Giacóia Júnior. Discurso 37, São Paulo, p. 167-181, 2007.

682

________________. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari em 15 volumes. Berlin/München: de Gruyter/dtv, 1967-1978. SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke; hrsg. Von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1942. ___________________. Metafísica do Belo. Tradução, apresentação e notas de Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. ___________________. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo; Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005. WAGNER, R. Beethoven. Trad. Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. ___________. Opera und Drama. In: Dichtungen und Schriften, vol. III-IV. Ed. de

Dieter Borchmeyer. Frankfurt am Main: Insel, 1983. ZÖLLER, G. A música como vontade e representação. Trad. Mário Videira. In: Cadernos de Filosofia Alemã 16, p. 55-80. São Paulo: FFLCH USP, 2010.

683

O LÓGOS DA MÚSICA NO FILEBO DE PLATÃO Leonardo Marques Kussler [email protected], mestrando em Filosofia pela UNISINOS (Prosup/Capes) Palavras-chave: Filebo de Platão. Dialética. Música. Gadamer.

A música está presente, desde o início, na formação e nas discussões de cunho filosófico. Um dos entusiastas filosóficos da arte musical é Platão, que conhecemos amplamente pelas referências da música como fator determinante na formação do filósofo. Contudo, no presente trabalho, propomo-nos a elucidar a música no Filebo de Platão, diálogo que apresenta uma interpretação heterodoxa da música, explicitando-a como lógos de desvelamento da verdade, através da dialética de tons musicais e de sua própria harmonia, simetria, proporção, determinação numérica — conceitos caros na condução da argumentação desse diálogo. Para tanto, interpretamos o diálogo platônico, contrastando-o ao exercício hermenêutico de Hans-Georg Gadamer. Dessa forma, este estudo exploratório mostra a música não como parte da nova paideia platônica, mas como modo de expressão da verdade e do bem.

REFERÊNCIAS GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke. Mohr: Tübingen, 1985. (Band 5 – Griechische Philosophie I). ______. Studici Platonici – v. 1. Edizione italiana a cura di Giovanni Moretto. Genova: Marietti 1983. (2 v.). ______. The Idea of the Good in Platonic-Aristotelic Philosophy. Translated and with an introduction and annotation by P. Christopher Smith. New Haven; London: Yale University Press, 1986. PLATÃO. Diálogos – vol. VIII – Parmênides – Filebo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1974. (Coleção Amazônica; Série Farias Brito). ______. Plato in Twelve Volumes, Vol. 9. Translated by Harold N. Fowler. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd., 1925. ______. Platonis Opera, Vol. II. – Parmenides, Philebus, Symposium, Phaedrus, Alcibiades I, Alcibiades II, Hipparchus, Amatores. Greek texts ed. John Burnet. Oxford: Oxford University Press., 1901. (In 5 volumes). REALE, Giovanni. Platone: tutti gli scritti a cura di Giovanni Reale. 5. ed. Milano: Rusconi, 1996.

684

CONSTRUINDO A TRADIÇÃO: MÚSICA E RECEPÇÃO NO PÓSGUERRA João Gabriel Rizek [email protected] Mestrando, UNESP Palavras-chave: Teoria da Recepção, Tradição, Pierre Boulez, Musicologia

Dentro do âmbito da estética musical, as pesquisas relativas à recepção das obras vem ganhando cada vez mais espaço no panorama mundial. O acento neste tipo de estudo recai sobre as questões da resposta, da audiência e do que Dalhaus, seguindo Walter Benjamin, chamou de “pós vida” das obras musicais. Trata-se portanto de uma investigação que busca os motivos responsáveis pela inscrição ou obliteração de uma determinada obra no repertório. Este trabalho investiga, pois, as razões que levaram o serialismo integral a estabelecer-se como espécie de linguagem oficial nos anos seguintes à Segunda Guerra. Logo após o término da guerra, iniciou-se a reconstrução da Europa, movimento amplo, circunscrito não só às suas cidades em ruínas, mas também a todo um conjunto de atividades que outrora designou o sentido maior do que se entendia por “velho continente”. É nesse contexto que o serialismo ganha nova vida. Raros os compositores que não trabalharam com o método no pós-guerra, indicando uma tendência que extrapolou o continente europeu e os anos em questão. O painel chama ainda mais atenção se não perdermos de vista o fato de que a concorrência de linguagens naqueles anos era expressiva. Para buscar as razões que levaram os compositores a enveredar por esta alternativa, dentre tantas outras, seguimos os passos do então jovem compositor Pierre Boulez. Logo cedo fez-se arauto do movimento, chamando para si a responsabilidade de estabelecer os critérios de sobrevivência de seus pares e antepassados. Para tanto, Boulez tentou criar uma novo cânone. Figurariam nele seus pares mais austeros e aqueles compositores cuja linhagem a ele estava diretamente ligada. Esta operação, nada arbitrária, tinha como objetivo legitimar sua prática e expandir sua área de atuação. Seguir estes debates a procura das razões que ajudaram a legitimar o serialismo é um dos métodos deste trabalho, para que assim possamos entender melhor como nossas tradições se formam e como se dá sua recepção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. Trad. Stella Moutinho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995. BRINDLE, Reginald S. The New Music. Oxford University Press, 1987.

685

DALHAUS, Carl. Fundamentos de la historia de la música. Barcelona: Gedisa editorial. 1997. EVERIST, Mark. Nova York: Oxford University Press, 2001. GRIFFITHS, Paul. Modern Music and After. Nova York: Orford University Press, 2010. TARUSKIN, Richard. Music in the Late Twentieth Century. Nova York: Oxford University Press. 2010.

686

DA MÚSICA, DE MIL PLATÔS: A INTERCESSÃO ENTRE FILOSOFIA E MÚSICA EM DELEUZE E GUATTARI Henrique Rocha de Souza Lima [email protected] Mestre em Estética e Filosofia da Arte Universidade Federal de Ouro Preto Palavras-chave: Deleuze, Música, Ritornelo, Escuta.

Tendo como pano de fundo uma elaboração conceitual peculiar a respeito das noções de tempo e obra de arte, a produção filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolve uma relação muito específica entre filosofia e música. É notável o modo segundo o qual estes autores se apropriam do pensamento expresso nos escritos de compositores como Edgard Varèse, Pierre Boulez, Olivier Messiaen e John Cage, bem como do pensamento expresso nas próprias obras musicais destes compositores e nas de tantos outros. Livros como Mil Platôs e O que é a Filosofia? apresentam seus conceitos filosóficos por meio de uma simbiose com o pensamento e com acontecimento musical, abrangendo uma gama de referências que envolve desde a música ocidental desenvolvida entre os séculos XVI a XIX e a música de massa do século XX até tradições musicais nãoocidentais, incluindo os contextos da improvisação e da música em situações ritualísticas. Levando em consideração os múltiplos pontos de contato entre esta produção filosófica e a música, pode-se perceber uma relação consideravelmente diversa das que foram produzidas por outros autores da tradição do pensamento ocidental, de Platão a Lévi-Strauss. Um dos traços distintivos desta produção reside na elaboração de dois conceitos em especial: o de individuação e o de ritornelo. Como síntese de meu trabalho de dissertação de mestrado, intitulado Da música, de Mil Platôs: a intercessão entre filosofia e música em Deleuze e Guattari, esta comunicação se propõe a expor os traços distintivos que fazem com que esta produção filosófica coloque em ato um modo singular de relação entre filosofia e arte. Sendo ao mesmo tempo nutrida de pensamento produzido em música e produzindo conceitos para se pensar o acontecimento musical em sua complexidade, a filosofia de Deleuze e Guattari nos leva a pensar nos modos pelos quais uma filosofia produz seus próprios conceitos, seu próprio conteúdo e sua própria expressão, por meio de interfaces que ela estabelece com a estética e com o pensamento em arte, ao mesmo tempo em que ela projeta no horizonte do pensamento novas imagens de Pensamento, Tempo, Obra de arte, Silêncio e Escuta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

687

BOULEZ, P. A Música Hoje, São Paulo, Perspectiva: 1981. Trad. Reginaldo de Carvalho e Mary Amazonas Leite de Barros. BOULEZ, P. & CAGE, J. Correspondance. Paris, Christian Bourgois Éditeur, 1991. CAGE, J. Silence: Lectures and Writings. University Press, 1961, Middletown, USA. DELEUZE, G. Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993. _______. Différence et répétition, Paris, PUF, 1968. _______. La philosophie critique de Kant, Paris, PUF, 1963. DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980. ______.Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991. VARÈSE, E. Novos instrumentos e nova música, in: MENEZES, F. Música eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: Edusp, 1996.

688

A AUTONOMIA ESTÉTICA COMO BASE DA FORMAÇÃO SUPERIOR EM MÚSICA: UM MODELO EM CRISE? Flavio Barbeitas [email protected] / [email protected] UFMG Palavras-chave: formação musical superior, Música e Ciências Humanas, estruturas curriculares, estética e saber musical contemporâneo.

Pretende-se comunicar o resultado parcial de uma investigação de pósdoutorado realizada entre janeiro e junho de 2013 e sediada na Universidade Nova de Lisboa, em colaboração com o prof. Mario Vieira de Carvalho. A pesquisa visou colher dados e elementos variados sobre a permeabilidade dos cursos superiores de Música às diferentes perspectivas teóricas contemporâneas (desconstrucionistas, pós-coloniais) que questionam muitos dos paradigmas que, em termos de conhecimento e de valores, historicamente fundamentaram e estruturaram o ensino e os cursos superiores de música, a saber: a noção de obra, o repertório canônico, a autonomia estética, a clássica divisão do trabalho no mercado musical. Durante a estadia em Portugal, coordenadores ou professores eminentes de alguns dos mais representativos cursos superiores de música portugueses foram entrevistados. Nessas conversas, procurou-se examinar as propostas pedagógicas dos cursos à luz do debate contemporâneo, bem como identificar incômodos e um possível posicionamento crítico a respeito desses temas. Como exemplo das questões tratadas, vale citar: o papel da interdisciplinaridade; a presença curricular das interfaces da música com outras manifestações artísticas e da reflexão teórica pertinente; as possíveis repercussões dos estudos sociológicos e antropológicos sobre o saber musical e o modo como essas perspectivas se inserem no currículo; a resposta da formação superior em música a desafios típicos do mundo contemporâneo, tais como "democracia cultural", fim das hegemonias, entre outros. Além de tentar traçar os novos possíveis contornos do "saber musical", a meta da pesquisa é, através de pontos de contraste e semelhança entre as experiências brasileira e portuguesa, contribuir para a eventual rediscussão do modelo curricular predominante na graduação em Música, registrando experiências inovadoras e apontando formas de atualização frente aos desafiadores cenários socioculturais e às novas demandas do conhecimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANCLINI, Nestor García. A sociedade sem relato; Antropologia e Estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012.

689

COOK, Nicholas & EVERIST, Mark (org.). Rethinking Music. Oxford: Oxford University Press, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006 VIEIRA DE CARVALHO, Mário. "As ciências musicais na transição de paradigma, in: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas n. 14, Lisboa, 2001, p. 211-233. _________. "As ciências musicais e o espaço lusófono: para uma investigação em rede via internet", in: Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras (ed. José Machado Pais, Joaquim Pais de Brito, Mário Vieira de Carvalho), Lisboa: ICS, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade. Porto: Afrontamento, 1994. _________. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência . Porto: Edições Afrontamento, 2000. VARGAS, António Pinho. Música e poder; para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu. Lisboa: Almedina, 2011. VASCONCELOS, António Ângelo. O conservatório de música; professores, organização e políticas. Lisboa: Instituo de Inovação Educacional, 2002.

690

O ENIGMA DE WITTGENSTEIN: ESTÉTICA E ESTATÍSTICA Christian Benvenuti [email protected] Palavras-chave: expectativa, teoria da informação, estética, cognição musical

A teoria da informação trata da previsibilidade de uma mensagem constituída por símbolos sucessivos. Com base principalmente no conceito de entropia (ou a quantidade de desordem), a teoria da informação busca medir a informação de uma mensagem. A teoria da informação, partindo da premissa básica de que a informação transmitida por uma mensagem é maior ou menor dependendo do potencial de surpresa que ela contém, encontra no fenômeno da expectativa um elemento essencial do binômio música e emoção. Como apontado por diversos autores, a capacidade humana de se formar expectativas é largamente considerada uma vantagem evolucionária. Isso se daria pela capacidade de utilizar a memória de forma prospectiva, e não apenas retrospectiva. Em outras palavras, mecanismos de predição só seriam possíveis graças à propriedade da memória em proporcionar a simulação de cenários futuros. Esta noção sugere que as várias formas de memória são melhor entendidas como diferentes formas de expectativa. A expectativa também atua no mecanismo fisiológico de recompensa e parece disparar a produção de dopamina (hormônio e neurotransmissor). A dopamina estaria presente na recompensa a desejos ou expectativas, mas não à saciedade. Estudos em musicologia cognitiva estabelecem uma diferença entre expectativa esquemática, associada à memória de longo prazo, e expectativa verídica, associada à memória episódica. O autor apresenta razões para se considerar a expectativa esquemática como tendo natureza estatística e a expectativa verídica como tendo natureza estética, sugerindo uma discrepância entre o conhecimento de uma determinada peça musical e o conhecimento de música em geral (repertório). Esta discrepância remete ao famoso “enigma de Wittgenstein”: como pode uma cadência deceptiva continuar soando deceptiva quando a familiaridade com a peça torna a progressão completamente esperada? A fim de se estabelecer modelos para a expectativa esquemática (a que espera que a dominante seja seguida pela tônica) e a expectativa verídica (a que prevê uma cadência deceptiva), este artigo trata do “enigma” sob o ponto de vista da teoria da informação e aponta para a natureza estatística da estética. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNHEIM, Rudolf. Entropy and Art: An Essay on Disorder and Order. Berkeley: University of California Press, 1974.

691

BENVENUTI, Christian. A Entropia da Música: Teoria da Informação, Composição Musical e Complexidade. In: XXI Congresso da ANPPOM, 2011, Uberlândia. Anais do XXI Congresso da ANPPOM, 2011. —. Sound, Noise, and Entropy: An essay on information theory and music creation. University of Surrey, 2010, PhD thesis. —. “The Certainty, the Impossible and what Lies Between: Information Theory as a Tool for Shaping Expectancy.” 2nd International Conference for PhD Music Students. Thessaloniki: Department of Music Studies, Aristotle University, 2009. 243-251. BHARUCHA, J. “Tonality and expectation.” In: R. Aiello (ed.), Musical Perceptions (pp. 213-239). Oxford: Oxford University Press, 1994. COHEN, Joel E. “Information Theory and Music.” Behavioral Science 7, no. 2 (April 1962): 137-163. DOWLING, W. J. e D. L. Harwood. Music Cognition. San Diego: Academic Press, 1986. GRANT, M. J. Serial Music, Serial Aesthetics: Compositional Theory in Post-War Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. HAWKINS, J. e S. Blakeslee. On Intelligence. New York: Times Books, 2004. HURON, David. Sweet Anticipation: Music and the psychology of expectation. Cambridge, MA: MIT Press, 2006. HURON, David e Margulis, Elizabeth H. “Musical Expectancy and Thrills.” In: Juslin, P. N. e Sloboda, J. A. (org.) Handbook of Music and Emotion: Theory, research, applications. Oxford: Oxford (2010): 575-604. JOHNSON, A. e A. D. Redish. “Neural ensembles in CA3 transiently encode paths forward of the animal at a decision point.” Journal of Neuroscience, 27 (2007): 12176-89. JONES, M. R. “Time, our lost dimension: Toward a new theory of perception, attention, and memory.” Psychological Review, 83 (1976): 323-55. MEYER, Leonard B. Emotion and Meaning in Music. Chicago: The University of Chicago Press, 1961. —. “Meaning in Music and Information Theory.” The Journal of Aesthetics and Art Criticism (Blackwell Publishing) 15, no. 4 (June 1957): 412-424. —. Music, the Arts, and Ideas: Patterns and Predictions in Twentieth-Century Culture. 2nd Edition. London: The University of Chicago, 1994. MEYER-EPPLER, Werner. “Musical Communication as a Problem of Information Theory.” die Reihe (Theodore Presser) 8 (1968): 7-10. MOLES, Abraham. Information Theory and Esthetic Perception. Translated by Joel E. Cohen. Urbana and London: University of Illinois Press, 1966. NORRIS, Geoffrey. “'Minimalism is Death'.” Telegraph. 26 July 2003. http://www.telegraph.co.uk/culture/music/classicalmusic/3599302/Minimalism-isdeath.html (accessed 3 July 2010).

692

PIERCE, John R. Symbols, Signals and Noise. 2nd Edition. New York: Dover Publications, 1980. PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. 2nd Edition. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. REICH, Steve. Writings About Music, 1965-2000. Oxford: Oxford University Press, 2002. SHANNON, Claude E. “A Mathematical Theory of Communication.” The Bell System Technical Journal 27 (July, October 1948): 379-423, 623-656. —. “A Mathematical Theory of Communication,” Bell Laboratories, 1998, http://cm.bell-labs.com/cm/ms/what/shannonday/paper.html (accessed 2 October 2010) SHANNON, Claude E., and Warren Weaver. The Mathematical Theory of Communication. Urbana: University of Illinois Press, 1949. WILSON, T. D. e D. T. Gilbert. “Affective Forecasting: Knowing what to want.” Current Directions in Psychologycal Science, 14 (2005): 131-4. YOUNGBLOOD, Joseph E. “Style as Information.” Journal of Music Theory (Duke University Press) 2, no. 1 (April 1958): 24-35.

693

ROUSSEAU E A QUERELA DOS BUFÕES Angélica Romeros de Almeida [email protected] Graduanda, UFPR Palavras-chave: Rousseau, século XVIII, ópera, moral.

A querela dos bufões foi uma disputa teórica que ocorrera no século XVIII devido a críticas ao estilo operístico francês, que era composto naquele período. Um dos motivos que fez com que eclodisse a insatisfação deste gênero foi à apresentação de uma ópera-bufa italiana, A serva Padrona. Cujo estilo embate-se com a já estabelecida opéra lyrique francesa suscitando panfletos contra a supremacia deste gênero. Como figuras centrais, temos o filósofo Rousseau, a favor do estilo italiano. E o compositor Rameau no partido então oposto. O seguinte trabalho visa, após situar historicamente o processo em que culmina nesta querela, compreender o envolvimento de Rousseau em tal disputa. Rousseau vê neste embate não apenas questões estilísticas, mas epistemológicas e morais. Uma vez que a composição de Rameau é a representação do esprit de système cartesiano, sua condição não satisfaz o entendimento devido à natureza, e ao incluir uma composição musical conforme esta percepção equívoca de natureza, não será possível, aos parâmetros de Rousseau, conciliar obra e ouvinte. A questão do ouvinte será essencial neste ponto, pois embora se perceba que há um intenso conflito epistemológico, a principal preocupação do autor, será as consequências morais resultantes da concepção de natureza e sua representação na obra de arte, mais precisamente na música. Como um representante da sprit systematique, Rousseau não questiona apenas o valor metafisico das coisas, mas tenta compreender a aplicação destas num mundo empírico e moral. Por fim, ao compreender as distinções e consequências nestes dois estilos, por seus principais representantes, este trabalho tenta viabilizar esta discussão em suas consequências históricas, através de apreciação musical pontual em cada estilo, através das composições de Rameau e Glück. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDÉ, R. História universal da música vol. I. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CASSIRER, E. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral, Campinas: Editora da Unicamp, 1994. COELHO, L. M. A Ópera na França. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999. GROUT. D. J. PALISCA, C. V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007.

694

KOBBE, G. Kobbe: O livro completo da ópera. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. ROUSSEAU, J-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. Lourdes Machado. São Paulo: Nova cultural, 1987. ________. Discurso sobre a desigualdade dos homens e sobre os fundamentos da moral. Trad. Lourdes Machado. São Paulo: Nova cultural, 1987. _________. Carta sobre a música francesa. Trad. José Oscar Marques e Daniela Garcia. Campinas, IFCH-Unicamp, 2005. _________. Júlia ou a nova Heloísa. Trad. Fulvia Moretto. Campinas: Unicamp, 1994. STAROBINSKI, J. Jean-Jacques Rousseau: A transparência e o obstáculo. Trad. Maria Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _________. As Encantatrizes: sedutoras na ópera. Trad. Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.

695

O CONCEITO DO BELO EM MIKEL DUFRENNE Adrio Schwingel [email protected] Mestrando, UNISC Palavras-chave: Belo. Estética. Filosofia. Mikel Dufrenne

Mikel Dufrenne, no seu livro Estética e Filosofia (1998), tem como ponto de partida a tarefa de deslindar o conceito do Belo e do valor da beleza no estudo da estética. Vai contra o conceito de que beleza é um valor puramente subjetivo. Para o filósofo, isso é apenas uma tentativa de oposição a certos cânones cometidos pelo racionalismo clássico (como o número áureo, a tríade, o circulo, entre outros modelos de perfeição estética), ancorados em Platão, que “pode ser primeiramente uma santa reação contra o excesso de dogmatismo que prevaleceu por muito tempo... (DUFRENNE, 1998, p. 36)”. Para tentar, então resolver a questão do belo de se vale de Kant, em que o prazer é “aquilo que me agrada (DUFRENNE, 1998, p. 40)”. Ou seja, em que não há um modelo preestabelecido da idéia da beleza, em que o prazer do sujeito é que determina o que seja ou não, o Belo. Nessa perspectiva, a de Kant, o sujeito é que detém a decisão da escolha estética. Por outro lado, em Hegel, investiga a idéias da verdade absoluta e da perspectiva histórica do devir. Primeiramente, para Hegel, não havia símbolo da verdade ou da beleza. O Belo é o ideal “presente e transparente no objeto idealizado (DUFRENNE, 1998, p. 44)”. Na perspectiva histórica do devir é que “ficamos sabendo que os semblantes do belo são múltiplos e sua diversidade não é redutível ao tempo (DUFRENNE, 1998, p. 43)”. A partir então, dessas considerações, pergunta o filósofo: “Mas o que é o belo, então? (DUFRENNE, 1998, p. 45)”. E ele mesmo responde: “É uma idéia ou qualidade presente em certos objetos – sempre singulares – que nos são dados à experiência (DUFRENNE, 1998, p. 45)”. Sem subjetivismos e sem dogmatismos, sem se prender no objeto ou sujeito, sem parecer determinado pela cultura ou história, e contra aqueles que simplesmente riscaram a palavra “belo” do seu vocabulário, Dufrenne define o Belo como o objeto experienciado pelo sujeito. REFERÊNCIAS DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

696

TEORIA MUSICAL VERSUS PRÁTICA INTERPRETATIVA? CORRELAÇÃO ENTRE VARIAÇÃO DA DIVISÃO RÍTMICA E TEMPO METRONÔMICO SUGERE QUE A TEORIA E A PRÁTICA NÃO SÃO SUFICIENTES PARA JUSTIFICAR ESCOLHAS INTERPRETATIVAS Leandro Serafim [email protected] UFBA Fernando Gualda [email protected] UFRGS Palavras-chave: Práticas Interpretativas, Mahler, Trompete, Modelos de Performance

É possível que a notação musical da divisão rítmica tenha adquido influência normativa na interpretação de repertório sinfônico, pois considera-se errônea a execução musical que divirja de padrões rítmicos definidos pela teoria musical, uma vez que colcheias, tercinas, e semi-colcheias são considerados elementos de notação rítmica claramente distintos. Entretentanto, esta pesquisa apresenta correlação entre a variação da divisão rítmica e a do tempo metronômico em cinco gravaçõs do solo inicial da 5ª Sinfonia de Gustav Mahler, analisadas através do software SonicVisualiser. Esta pesquisa partiu de três hipóteses interpretativas de ordem teórica, prática e estética, repretentadas por três modelos. A primeira hipótese (modelo teórico) propõe que a média das execuções dos músicos se assemelharia à divisão rítmica sugerida pela notação musical. Portanto a teoria musical seria o fator predominante. A segunda hipótese (modelo prático) testa a influência normativa da própria prática interpretativa. Um intérprete renomado afirma que a divisão rítmica não segue aquela proposta pelo compositor na forma de notação musical, mas outra, proposta por ele, baseada em sua experiência como primeiro trompetista de uma das mais importantes orquestras dos EUA (Schlueter, 2009). A terceira hipótese (modelo estético) assume que a expressão do caráter musical seria o fator mais relevante para o intérprete quando da execução do solo inicial da sinfonia o que tornaria a constância da dicisão rítmica irrelevante. A correlação entre variação da divisão rítmica e do tempo musical refuta as duas hipóteses que defendem a divisão rítmica constante. Portanto, esse resultado sugere não apenas que a expressão foi o fator predominante na escolha dos trompetistas em suas performances, como também que a notação musical pode ser relativizada mesmo no repertório sinfônico. No entanto, mais pesquisas devem ser conduzidas para testar estas hipóteses em outros exemplos musicais.

697

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROSSIER, P. Aubio: a library for audio labeling. [Computer program] http://aubio.org CANNAM, C. Sonic Visualiser. [Computer program] http://www.sonicvisualiser.org GUALDA, F. Subtleties of Inflection and Musical Noesis - computational and cognitive approaches to aural assessment of music performance. (PhD diss.) Queen's University Belfast, 2011. NATTIEZ, J.-J. (1990). Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. (C. Abbate, Trans.) Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990. SCHLUETER, C. Masterclass. FEMUSC, 2009. SERAFIM, L. Análise de Variações Rítmicas em Interpretações do Solo de Trompete da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler. XXIII Salão de Iniciação Científica, UFRGS, 2011. WINOLD, A. Music Analysis: Purposes, Paradigms, and Problems. (T. A. Smith, Ed.) Journal of Music Theory Padagogy, 7, 29-40, 1993.

698

A MAGIA MUSICAL NO SILÊNCIO DAS SEREIAS Gabriela Nascimento Souza, [email protected] Pós-graduanda, UFF – RJ Palavras-chave: som, silêncio, magia, sereias.

Usando principalmente do canto XII da Odisseia, onde Odisseu conta como ele e seus homens escaparam do canto das Sereias, propomos aqui uma reflexão a cerca do encanto mágico do suposto canto. Para isto, percorreremos primeiramente um estudo a respeito de conceitos da filosofia da música de Wisnik, Mario de Andrade e John Cage no que se refere aos conceitos de som, silêncio e sentido. O sentido da música das Sereias desafiadas e vencidas pela “astúcia do herói Odisseu” estaria justamente na capacidade que este canto teria de levar qualquer homem a uma espécie de delírio mortal. Se há sentido para o canto das sereias, este poderia ser precariamente resumido como aquela magia musical referida no título do texto. No que consiste esta magia musical? Se, música é não só som, mas também e, primeiramente, silêncio, poderíamos dizer que tal magia é advinda do próprio silêncio destes seres? Com a ajuda de comentários feitos por homeristas e até mesmo simples pesquisadores que, assim como eu, foram atingidos pelo mistério das Sereias, vamos percorrer o que é retratado sobre elas na Odisseia e chegaremos a um conto feito por Franz Kafka, onde, segundo ele, o que aconteceu não foi nada além de uma performance e o que Odisseu ouviu não passou de um delirante silêncio. A apropriação do canto das Sereias feito por Kafka não parece nos fazer pensar apenas em uma outra versão do que aconteceu com Odisseu e seus navegantes, mas sim nos parece fornecer um material precioso para pensarmos em uma suposta magia musical que estaria presente não só no canto, mas também no silêncio das Sereias. Assim, temos como hipótese a ser defendida a ideia de que a magia musical das sereias reside não só no seu suposto canto, mas também no seu silêncio. Contando com as necessidades de sustentação da referida hipótese dividiremos o texto em quatro breves capítulos: 1. Som, silencio e magia; 2. O Mito e a narrativa épica; 3. O canto das sereias: de Homero à Kafka REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BLANCHOT, Maurice. O livro do por vir. Tradução Leyla Perrane Moisés. Martins Fontes, São Paulo, 2005. BRANDÃO, Jacynto Lins. Antiga Musa: arqueologia da ficção. Faculdade de Letras. UFMG, 2005.

699

CASTRO, Manuel Antônio. O canto das sereias: da escuta à travessia poética. Revista Faced – Universidade Federal da Bahia, nº7, 2003. GAGNEBIN. Jeanne Marie. Resistir às Sereias. Revista Cult, 2006. OLIVEIRA, Luís Inácio. Do canto e do silêncio das sereias. Editora PUC – SP, São Paulo, 2008. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma história das músicas. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.

700

ONTOLOGIA E LINGUAGEM DA MÚSICA: REFLEXÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS CONCEITUAIS DA LINGUAGEM MUSICAL Adriano Bueno Kurle [email protected] Doutorando em Filosofia pela PUCRS Palavras chave: Música, Ontologia, Linguagem.

Esta comunicação visa apresentar a ideia inicial de um projeto de pesquisa interdisciplinar entre Música e Filosofia. Meu objetivo é compreender quais são os elementos ontológicos da música e como a música pode ser compreendida como uma forma de linguagem. Para uma abordagem inicial, penso os objetos centrais da música, a saber: tempo e som. O tempo é um objeto fundamental que não é específico da música, mas mais universal. Já certa determinação do som em notas é compreendida por mim como uma instância ontológica própria da música, e esta determinação do som em notas como a construção de ferramentas centrais para a construção dos discursos musicais. Visto que a música se constitui historicamente através da determinação de um sistema central de organização do som, que serve como referência para a construção e compreensão do discurso musical, busco compreender como esta construção é feita e por que ela é importante para a formação de uma cultura musical. Penso que a música é organizada e executada de acordo com regras que servem como diretrizes básicas e servem como elementos da construção de uma linguagem, considerando que a música é também (mas talvez não apenas) uma forma de expressão linguística. A música serve, portanto, como paradigma para a compreensão da linguagem, sendo que devo assim justificar (1) Por que a música deve ser compreendida como linguagem; (2) Por que a construção de um sistema básico de referências, enquanto determinação de conceitos estruturadores, faz parte da possibilidade de construção de discursos; (3) Que este sistema seja uma construção matemática e também perceptual sobre um objeto indeterminado (neste caso, o som puro). Meu objetivo não é responder estas questões, mas somente apontar algumas ideias que nortearão a pesquisa futura, apresentando as questões principais que devem ser respondidas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOWARD, David M; ANGUS, James. Acoustics and Psychoacoustics. Segunda edição. OXFORD: Focal Press, 2001 CANDÉ, Roland de. História Universal da Música. SÃO PAULO: Martins Fontes, 2001

701

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 2 volumes. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. In: Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1991. KANT, Immanuel. Kant‟s Werke. Preußichen Akademie der Wissenschaft. (org.). Berlin: Walter de Gruyter, 1902.

702

O ELEMENTO DRAMÁTICO NO “ELEVAZIONE” DE DOMENICO ZIPOLI: UMA PROPAGANDA EM DEFESA DO CATOLICISMO Adilson Felicio Feiler [email protected] Doutorando em Filosofia, PUCRS Palavras-chave: drama, Cristianismo, Catolicismo, polifonia

O estilo polifônico da música de Zipoli marca a própria missão da Companhia de Jesus que, para conquistar seus objetivos teve que se adaptar ao mundo moderno, como recorda o filósofo e jornalista Heinrich Heine. Diz Heine que dentre todas as tentativas dos jesuítas em preservar o antigo catolicismo em meio a modernidade, sucumbiram pela preservação de uma forma de catolicismo distante de sua matriz cristã. Mas o que isso quer dizer? Que o jesuitismo defendeu uma outra forma de catolicismo? E que catolicismo é esse? Diz Heine que o verdadeiro catolicismo foi profanado, pois: “(...) profanavam o próprio princípio católico vez por outra a fim de alçá-lo ao poder; eles fizeram acordos com o paganismo, com os poderosos da terra, auxiliaram-nos em seus desejos, tornaram-se assassinos e mercadores” (HEINE, 2010, p. 252). Esse mesmo acordo com o mundo moderno os jesuítas estabeleceram na expressão musical do culto. Pois a música exerceu na missão jesuíta um efeito catequético importante, o mesmo papel que exerceu na Reforma de Lutero. Os textos religiosos foram sendo adaptados às canções seculares: se alterava integral ou parcialmente o conteúdo poético original de modo que o sentido literário se metamorfoseava para o religioso. A liturgia religiosa era encorajada pela utilização da tática católica tradicional que reforça o caráter místico unindo à estratégia protestante de recorrer à polifonia que dá um caráter dramático à música. A monofonia gregoriana que outrora assegurava a pureza à música é substituída pela polifonia barroca com realce no caráter híbrido e dramático. No Elevazione, composto por Zipoli em 1716 temos bem identificados os elementos da divinização que se busca pelo elemento da ortodoxia católica que eleva o fiel até Deus, e ao, mesmo tempo, o elemento polifônico que aproxima o divino do humano, ou seja, o Divino desce ao humano, pois fala em sua língua. Pelo drama que se depreende do Elevazione se assegura a aristocracia católica? Em que medida essa caráter dramático assegura um catolicismo verdadeiramente cristão? Será que nas críticas de Heine à Companhia de Jesus não houve uma confusão entre dominação e enculturação exercendo, por isso, a música um papel importante?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

703

AYESTARÁN, Lauro. Domenico Zipoli, Vida y obra, Montevideo, 1962. ECHANIZ, Ignácio. Paixão e glória – História da Companhia de Jesus em corpo alma. vol. III. Edições Loyola: São Paulo, 2007. FRANZE, Juan Pedro, La obra completa para órgano de Domenico Zipoli , Buenos Aires, 1974. HEINE. Heinrich. História da religião e da filosofia na Alemanha e outros escritos. Editado por Terry Pinkard. Madras: São Paulo, 2010.

704

DA GENIALIDADE À DECADÊNCIA: NIETZSCHIANAS ACERCA DO ARTISTA RICHARD WAGNER João Eduardo Navachi da Silveira [email protected] Doutorando, (PPGF-UFRJ) Palavras-chave: Nietzsche, Wagner, aproximação, rompimento.

Se no período de juventude, Nietzsche tece diversos elogios ao gênio artístico wagneriano e, ao aproximar Wagner do tragediógrafo grego Ésquilo enxerga na obra de arte total wagneriana o renascimento da tragédia grega, a ponto de dedicar sua obra de estreia “O nascimento da tragédia” (1872) ao amigo compositor, esta perspectiva tende a se dissolver e desaparecer na medida em que o filósofo da suspeita amadurece. Ao revisitar esta mesma obra de juventude e acrescentar a ela um novo prefácio intitulado “Tentativa de Autocrítica” (1886), Nietzsche afirma que ao propor o renascimento da tragédia grega através do drama musical wagneriano, a menos grega de todas as artes, acabou estragando o seu livro de estreia. Se no período em que exercera o cargo de professor de filologia clássica na Universalidade da Basileia, o jovem filólogo-filósofo escreve a “quarta consideração extemporânea: Wagner em Bayreuth” (1876) na qual não poupa elogios ao compositor e deposita suas esperanças no acontecimento de Bayreuth, a partir da publicação de Humano Demasiado Humano (1878), apesar do silêncio de Nietzsche em relação a Wagner neste livro, a nova perspectiva filosófica nietzscheana aí presente já sinaliza para aquilo que em obras futuras como “A Gaia Ciência” (1882) e “O caso Wagner” (1888) será evidenciado e visto como sinônimo de fraqueza, declínio e doença. Se nos escritos de juventude de Nietzsche, Wagner aparece como o artista afirmativo por excelência, que concentra em si toda vitalidade necessária para promover a renovação cultural da Alemanha do século XIX, na maturidade nietzscheana, passado o deslumbramento juvenil, Wagner será visto como típico decadente, como sintoma de declínio e, portanto, como o antípoda por excelência de Nietzsche. Dito isso, e compreendendo a relação que Nietzsche estabelece com Wagner através de um caloroso “Sim” inicial e um enfático “Não”, o objetivo deste trabalho é apresentar, através de uma análise dos escritos nietzscheanos, os motivos filosóficos que teriam permitido a inicial afirmação e a posterior negação de Nietzsche em relação a Wagner. Nesta perspectiva, o itinerário (metafísica da arte, ciência da arte e fisiologia da arte) aparece como Leitmotiv filosófico a ser analisado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

705

NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Edição crítica organizada por Colli e Montinari, 30 volumes. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1972. ________________. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ________________. O caso Wagner. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ________________. Ecce Homo. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ________________. Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

706

MÚSICA: HOBBY, PROFISSÃO OU NEGÓCIO? A MÚSICA NO MUNDO REAL E IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE Bruna Repetto [email protected] Especialização , PUC-RS Palavras-chave: música, cultura, comunicação, sociedade

Abre-se um espaço acadêmico em que historiadores, sociólogos, antropólogos e musicólogos devem se unir afim de relacionar o discurso das práticas musicais junto aos estudos culturais, sociais e econômicos. É impossível continuar a fazer ou falar de música sem rever suas práticas dentro da sociedade e sua forte ligação com a comunicação, seja como hobby, profissão ou negócio. De modo que a pesquisa pretende investigar e elucidar os equívocos existentes e assim contribuir para uma maior valorização e inclusão musical junto à sociedade brasileira. A tendência importante da crítica cultural questiona o estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais estabelecidas a partir de oposições. Nos Estudos Culturais identifica-se uma forte inclinação em refletir sobre o papel dos meios de comunicação na constituição de identidades, sendo esta última a principal questão desse campo de estudos na atualidade. Para os “pais” dos Estudos Culturais, Williams e Thompson, a cultura era uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana, dentro da qual o papel do indivíduo estava em primeiro plano. A música, enquanto modo de comunicação, exerceu ao longo da história da humanidade o papel de construtora das relações interpessoais e de mobilizadora cultural de cada novo período histórico que surgia. No entanto, a função social da música vai além da construção interpessoal e da mobilização cultural, pois ela detém o poder de influenciar a moral de um povo. Com isso, o fazer musical é entendido aqui como um comportamento aprendido através do qual sons são organizados possibilitando uma forma simbólica de comunicação na inter-relação entre indivíduo e grupo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SALLES, Paulo de Tarso. Aberturas e impasses: o pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil, 1970-1980. São Paulo, Editora UNESP, 2005. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social, Brasília, UNB, 2001. FINNEGAN, Ruth. Por qué estudiar la música? Reflexiones de uma antropóloga desde El campo. Revista Transcultural de Música, n. 6, 2002. KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo, Martins Fontes, 1987.

707

ESTÉTICA MUSICAL NA MPB Fernando Henrique Machado Ávila [email protected] Graduando,UFRGS Palavras-chave: música popular brasileira, estética musical.

Este trabalho baseia-se em uma publicação de Martha Tupinambá de Ulhôa intitulada Estilo e Emoção na Canção – Notas para uma estética da música brasileira popular que traz para os leitores abordagens sobre alguns elementos que diferenciam a estética da música brasileira popular, em especial na categoria emoção e estilo prosódico. O texto contém 12 páginas onde a autora descreve opiniões através de uma interpretação etnomusicológica, centrada na música como um produto humano. Martha discorre sobre a relação entre música e ouvinte e os efeitos que certa obra musical pode causar ao público. Questões que envolvam o que é considerado belo musical também estão inseridas neste contexto. Segundo a autora, um dos aspectos mais enfatizados pelo público constituinte dos vários gêneros de música brasileira popular é a categoria “emoção”, usada como um parâmetro de avaliação estética. A compreensão que ela atribui à estética se refere ao que as pessoas consideram ser “belo”, e geralmente a noção de beleza incorpora os conceitos e atitudes relacionados com aquilo que é valorizado como “bom” (os padrões de comportamento social e cultural apropriado). Em questões deste gênero, algo ser considerado “bom” e “belo”, está muito relacionado com os valores atribuídos aos meios de comunicação, por isso, em alguns casos, a música que está na mídia acaba despertando o interesse dos indivíduos. Também se podem considerar outros aspectos para esta análise, que talvez sejam mais válidos para algumas pessoas. Sendo assim, atribuir qualificações para uma performance musical depende muito da subjetividade de cada ser e da maneira como ele interpreta e recebe determinada música, além do contexto histórico e cultural que está inserido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ULHÔA, Martha Tupinambá. Estilo e Emoção na Canção – Notas para uma estética da música brasileira popular. Publicado em Cadernos de Estudo – Análise Musical. São Paulo; Belo Horizonte: Atravez, v.8/9, p.30-41, 1995. Disponível em < http://www.atravez.org.br/ceam_8_9/estilo_emocao.htm> Acesso em 19/06/2013.

708

A MAVIOSIDADE DA MÚSICA DO UNIVERSO: A COSMOVISÃO PITAGÓRICO-PLATÔNICA DO COMENTÁRIO AO SONHO DE CIPIÃO, DE MACRÓBIO (SÉC. V) Ricardo da Costa [email protected] Professor Doutor (Associado III) Depto. de Teoria da Arte e Música da UFES Palavras-chave: cosmovisão, música, universo, Macróbio.

A musicalidade do Universo é tema muitíssimo recorrente na tradição filosófica clássica e medieval. Desde Platão (427-347 a. C.) até Honório de Autun (1080-1154), mas também de Marsílio Ficino (1433-1499) a Johannes Kepler (1571-1630), muitos foram os pensadores, filósofos e astrônomos que se debruçaram sobre a maviosidade da harmonia das esferas celestes. A proposta deste trabalho é apresentar e analisar as passagens de uma das mais influentes obras dessa tradição cosmológica-musical e que transmitiu à Idade Média uma exposição sintetizada do pensamento do mundo clássico sobre o tema: o Comentário ao Sonho de Cipião de Macróbio (séc. V). Nele, o pensador (provavelmente africano), além de esmiuçar o último capítulo da República de Cícero (106-43 a. C.), proposta nuclear de sua obra, ao tratar da criação da Alma do Mundo (tema platônico exposto no Timeu) descreve o que já foi chamado de Doutrina da música das esferas: o movimento giratório dos planetas e a participação das Musas nas emissão das notas emitidas por cada um deles − as Musas eram filhas de Júpiter e Mnemósine (filha do Céu e da Terra, Mnemósine era a personificação da Memória), ninfas que entretinham os deuses no Olimpo com seus coros e danças, além de presidirem a todas as formas de pensamento (Eloquência, Persuasão, Sabedoria, História, Matemática e Astronomia). Além disso, Macróbio discorre sobre a atração que a Música exerce em todas as almas neste mundo (inclusive nos povos “bárbaros”), aborda as distâncias dos planetas e sua relação com os intervalos musicais, a diferença entre as notas agudas e graves, e os três tipos de harmonia musical (a enarmônica, a diatônica e a cromática), temas que serão expostos em nosso trabalho. BIBLIOGRAFIA Armonía de las Esferas. Un libro de consulta sobre la tradición pitagórica en la Música (introd. y ed. Joscelyn Godwin). Girona: Atalanta, 2009. BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 2000.

709

CARDIGNI, Julieta. “La función de la intertextualidad en la construcción del comentario: la música de las esferas en Macrobio, Commentarii in Somnium Scipionis 2.3”. In: Faventia 29/2, 2007, 61-70. COSTA, Ricardo da. “O Sonho de Cipião de Marco Túlio Cícero” (Prólogo de Carlos Nougué / Apresentação, tradução e notas de Ricardo da Costa). In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 22, Ano XIII, janabr 2010, p. 37-50. DE CANDÉ, Roland. História Universal da Música. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MACROBIO. Comentarios al Sueño de Escipión (ed. de Jordi Raventós). Madrid: Ediciones Siruela, 2005. PRING-MILL, Robert D. F. “La visió medieval”. In: Estudis sobre Ramon Llull. Montserrat: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1991.

710

II EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS E EDUCAÇÃO MUSICAL

711

II TRABALHOS COMPLETOS

712

O ENSINO DA MÚSICA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA A PARTIR DO CHORO E SUA INSTRUMENTAÇÃO Mateus Pasquali1 [email protected] UPF Resumo: Este trabalho é parte constitutiva do projeto de estágio obrigatório no Curso de licenciatura em Música, que visa apresentar perspectivas parao ensino da música na educação básica, tendo como base o perfil dos estudantes e as concepções da área de educação musical na atualidade. A partir de uma reflexão crítica do universo escolar e dos caminhos possíveis para a presença da música nesse contexto, é apresentada uma proposta de intervenção que tem como ponto de partida a pesquisa de realidade, que consiste em conhecer concepções e estilos musicais predominantes dentre as preferências dos estudantes. Tal conhecimento dará sustentação as discussões e práticas pedagógicas que busca entrelaçar a música ao processo de formação sociocultural brasileira, tendo como estilo musical articulador o choro. Considerando as reflexões realizadas e as atividades propostas, são levantados caminhos e possibilidades para a atuação do professor em sala de aula, abrangendo práticas de educação musical que, com base na vivência, percepção, criação e interpretação, integrem e desenvolvam aspectos diversos da música como fenômeno artístico e cultural. Palavras-chave: atuação docente. ensino de música. pesquisa de realidade.

INTRODUÇÃO O estágio de docência no Curso de Licenciatura em Música é uma exigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sendo ele necessário para a formação profissional a fim de adequar às expectativas do mundo do trabalho onde o licenciado irá atuar – a Educação Básica. A presença da música nos currículos da Educação Básica é fruto da ampla discussão nacional nas últimas décadas, pautadas nasquestões relacionadas à importância da música nas escolas de educação básica, aos desafios que marcam a trajetória e a prática docente nesse contexto, bem como aos conteúdos e metodologias que devem alicerçar a atuação do educador musical nessa realidade. Tal fato se deve, sobretudo, ao reconhecimento da necessidade e da importância de propostas consistentes de educação musical nas escolas. Propostas que, definidas de acordo com as diferentes realidades educacionais do Brasil, permitam estabelecer, de maneira abrangente, um cenário musical educativo 1

Acadêmico do Curso de Licenciatura em Música – UPF

713

coerente, consistente e contextualizado com o que se almeja para a formação plena do indivíduo. Durante o percurso do Curso de Licenciatura em Música foi possível perceber o quanto a música é parte constitutiva da identidade histórica e cultural do povo brasileiro, porém, distancia-se dos processos educativos em especial na educação básica. Dessa forma, busca-se no presente projeto de estágio desenvolver um trabalho que resgate a música no seu aspecto formativo cultural através do choro. E assim, resgatar através do choro, parte da música brasileira de raiz, um mundo que valoriza os temas de origem nacional e onde se analisem as ideias de dentro para fora e não de fora para dentro. Portanto, o referido estágio tem como finalidade levar para sala de aula o processo reflexivo sobre o papel constitutivo que a música exerce na vida das pessoas, no que se refere à afirmação cultural. Assim, busca estabelecer um processo que (re)signifiqueconcepções musicais através da compreensão teórica sobre a cultura nacional em seus primórdios, usando como veículo articulador o estilo do Choro, também conhecido como Chorinho. Busca também desenvolver processos cognitivos, sociais e afetivos, inerentes à aprendizagem escolar na faixa etária entre 13 e 15 anos, estimulando o desenvolvimento de padrões rítmicos específicos que são encontrados no estilo, bem como reconhecer seus principais instrumentos. Acredita-se que esse processo de intervenção pedagógica irá proporcionar não só o aumento do interesse pelas obras nacionais, mas também um maior conhecimento da música em seus vários aspectos. O conteúdo musicalreferido apresenta-se com certo grau de complexidade, pois apesar de ser um estilo de música que em sua maioria é instrumental, as melodias são fáceis e bem conhecidas, fator esse que se torna importante pela a faixa etária que será trabalhada. Dessa forma, entende-se o professor como um mediador de processos de construção de conhecimentos e ao mesmo tempo construtor de saberes que se dão nas interações que estabelece com seus alunos. Quando o professore se coloca como mediador e aprendiz ao mesmo tempo é capaz de fazê-lo de forma a gerar cidadãos críticos e que questionem o que lhes é trazido como verdade, principalmente quanto ao quesito cultural que é tão distorcido pelas grandes mídias de hoje e que tão facilmente submete os seus ouvintes a apreciar obras de baixo conteúdo. O professor deve ser o incentivador da produção e da busca pelo verdadeiro conhecimento que é cheio de essência e também o fator que estimula o estudante em sua busca. O ENSINO DA MÚSICA E O CONTEXTO HISTÓRICO A educação musical tem sido colocada como algo facultativo na escola. Há uma total desconsideração com o poder que a música exerce sobre as pessoas bem

714

como a influência que exerce sobre o desenvolvimento cultural e cognitivo das crianças e das pessoas em geral. A inexistência de estudos que vinculem a situação de subdesenvolvimento de algumas áreas do país à baixa valoração dada à música brasileira, apontando como um dos fatores que mais contribui para a baixa estima que o Brasil possui em relação a si mesmo. Somos um país com inúmeros recursos e ainda nos colocamos num patamar abaixo de países menores em área e também em recursos (naturais, culturais etc...) pois ainda não conseguimos nos ver como “potência”. Todavia, por mais que esse debate venha sendo ampliado na atualidade, ações e perspectivas para o ensino de música no contexto escolar já têm uma representativa trajetória no país. Desde o Império foram encadeadas uma série de ações e propostas que, inter-relacionadas às dimensões políticas, buscaram pensar, estruturar e aplicar preceitos e práticas de educação musical no contexto escolar. Tal historicidade é apresentada por Queiroz e Martinho(2009): Entre as mais marcantes ações políticas relacionadas a propostas de implementação do ensino de música nas escolas podemos destacar: 1) a aprovação do Decreto n. 1.331 A, de 17 de fevereiro de 1854, primeiro documento que faz menção ao ensino de música na “instrucção publica secundaria” do “Município da Corte” – cidade do Rio de Janeiro (Brasil, 1854, p. 61); 2) a nova configuração política estabelecida para a música na “Instrucção Primaria e Secundaria do Districto Federal”, a partir do Decreto n. 991, já no Brasil republicano (Brasil, 1890); 3) a inserção e a prática do canto orfeônico como base para as aulas de música no ensino secundário, a partir de 1931 para o Distrito Federal – definido pelo Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931 (Brasil, 1931) – e a sua expansão para outras partes do país, a partir de 1942 com a criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico – Decreto n. 4.993, de 26 de novembro de 1942 (Brasil, 1942); 4) a definição de “atividades complementares de iniciação artística” como “norma” para a escola de educação básica, instituída pela LDB 4.024/1961, que não faz mais qualquer menção à presença do canto orfeônico na escola regular (Brasil, 1961);15) o estabelecimento da Educação Artística como campo de formação nas diferentes linguagens das artes na escola, a partir da LDB 5.692/71(Brasil, 1971); 6) a definição do “ensino da arte” como componente curricular obrigatório, estabelecido pela LDB 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996); 7) e, finalmente, a aprovação da Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008, que altera a LDB vigente, determinando o ensino de música como “componente curricular obrigatório” do ensino de arte (Brasil, 2008).Dessa maneira, é possível afirmar que no Brasil já temos uma trajetória histórica, educativa e cultural que nos permite uma reflexão crítica acerca de perspectivas e caminhos concretos que possam subsidiar a inserção da educação musical nas escolas. Mas, mesmo considerando a trajetória de mais de um século, é evidente que as questões relacionadas à presença da música na escola e o debate em torno da sua inserção real na estrutura curricular da educação básica ganharam maior visibilidade a partir da Lei 11.769.Se por um lado é preciso reconhecer que temos um cenário representativo de conquistas, debates e reflexões no âmbito das práticas de educação musical na escola, por outro é preciso evidenciar, também, que ainda precisamos de ações que possam alicerçar a atuação do professor de música nessa realidade.Por conseguinte, com o intuito de contribuir para a definição de

715

caminhos que favoreçam o ensino da música na educação básica, estruturamos este trabalho visando propiciar aos professores da área conhecimentos e práticas direcionadas para a sua atuação no contexto escolar(p. 61-62).

Mesmo diante ao exposto, percebe-se que a música enquanto instrumento de formação cultural encontra-se em desvantagem, se considerarmos o foco mercadológico que os currículos escolares vêm assumindo. Tal afirmação é reforçada quando percebemos a desvalorização da cultura nacional.Esse fato é evidenciado na pesquisa de realidade desenvolvida na escola onde a presente intervenção pedagógica será realizada. Quando foram questionados sobre o estilo de música tem preferência, a maioria opta por escutar estilos estrangeiros e os que escutam música nacional, escutam em sua grande maioria “produtos” de uma indústria cultural, que tem fins mercadológicos, obras de baixa qualidade sem nenhum conteúdo intelectual ou lírico. Segue aqui o gráfico que ilustra as preferênciasde estilo musical dos vinte e sete estudantes do 8º ano do ensino fundamental, entrevistados:

Observa-se que a grande maioria do que escutam são produtos da indústria mercadológica, enquanto a música de raiz, dotada de essência, reflexo de algum movimento sociocultural fica evidentemente em segundo plano e por vezes nem é lembrada. O choro, por exemplo, não foi citado por nenhum aluno e provavelmente não deva ser nem reconhecido pela totalidade deles. Observa-se também, que a menção feita em relação à música nacional, é completamente vinculada ao momento, ao que está “na moda”, por assim dizer, não refletindo o gosto pessoal ligado a alguma experiência, mas sim ao gosto da massa. Refletindo, portanto, uma opinião generalizada imposta por alguma indústria visando obter lucro, vendendo seu produto de baixa qualidade dentro de uma

716

ideia de que isso é o de mais novo a ser produzido e quem estiver por fora disso não estará conectado com a atualidade nem de acordo com as novas tendências. A proposta apresentada neste projeto busca resgatar o valor dado à educação musical bem como aos estilos de música brasileira de raiz em especial o choro, agregando uma valoração antes esquecida ao patrimônio e à cultura nacional, entendendo também como foi construído o choro e a sociedade brasileirae seus entrelaçamentos com a sua constituição ética-racial, ideias e valores. Considerando a intençãode refletir sobre esses aspectos busca-se suporte teórico em Diniz (2003) que traça um panorama histórico do estilo do choro bem como dos seus principais compositores, entre eles considera: [...] o pai dos chorões por ter levado a sua flauta de ébano ao encontro dos violões e cavaquinhos, além de ter organizado o grupo de músicos populares mais famosos da época – O Choro carioca, ou Choro do Callado – o compositor Joaquim Antônio da Silva Callado é autor de quase 70 melodias destacando-se as polcas “A Flor Amorosa” seu amior sucesso, “Cruzes Minha Prima” e “Queria por Todos” esta última feita em homenagem à maestrina Chiquinha Gonzaga (DINIZ, 2003, p15).

Além disso, cabe salientar que o choro vem sendo um dos estilos musicais que busca resgatar aspectos históricos constitutivos da música brasileira. Segundo Carrilho (2001): Em seus quase 150 anos de história, poucas vezes o choro esteve tão prestigiado quanto em nossos dias. Séries de concertos são organizadas em vários pontos do país, programas de rádio com repertório de choro vão ao ar com maior frequência, cursos e escolas de choro são organizados em várias cidades, álbuns de partituras e métodos são lançados, pesquisas são realizadas, uma gravadora especializada é criada, uma grande quantidade de CD’sde ótima qualidade é lançada no mercado, fato impossível de se imaginar há bem pouco tempo atrás. (p.09).

Também como suporte teórico e ampliando a reflexão acima, encontram-se em Tinhorão (1999) aspectos apontando que a grande dificuldade a se enfrentar é: [...] as possibilidades de representação da cultura brasileira dentro do próprio país,se ligam diretamente à realidade de um estado de dominação que resulta até por uma herança colonial do atrelamento do Brasil a um tipo de proposta de desenvolvimento que o torna dependente de decisões que escapam de seus dirigentes. Tal fato é claramente comprovado[...] quando se demonstra que o colonialismo cultural, no campo das várias músicas brasileiras, se revela sob a forma de dominação econômica nos meios de comunicação e da indústria do lazer, com o objetivo capitalista estrito de obtenção de lucro (p. 11).

O aspecto apontado pelo autor se confirma no estudo de realidade acima demonstrado na justificativa do presente trabalho, onde reafirma também a

717

influência da globalização na totalidade da vida das pessoas, como afirma Giddens (2003): É errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a orem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas. (p. 22).

Desta forma, nossa indústria do lazer está vinculadaà dominação reveladaatravés dos modismos fabricados por grupos industriais que projetam nosconsumidoresuma ideia de integração mundial, porém ao mesmo tempo afasta-os da cultura local que historicamente oconstitui. No caso do Brasil, o tornaum país fraco e suscetível à dominação das ideias estrangeiras em mais de uma área. A partir do estudo mencionado na justificativa o que espanta é a ausência da música brasileira de raiz nos estilos mais escutados pelos jovens. Percebe-se uma superioridade gritante de estilos internacionais e em sua maioria vindos dos EUA que é de onde copiamos todos os modelos que consideramos de “desenvolvimento”e música nacional produzida pela indústria onde o conteúdo musical é muito baixo. Diante disso, passo a crer que a cultura escolar não valoriza nem estimula porque não conhece a vinculação da música com a formação cultural brasileira. Portanto, o presente trabalho visa através do choro construir uma nova cultura musical no contexto formativo da escolarização básica da escola onde o projeto será desenvolvido. A SALA DE AULA E O DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO Um princípio bastante enfatizado no cenário da educação atual e, consequentemente, no campo da educação musical contemporânea é a ideia devalorizar o contexto cultural do estudante, compreendendo, reconhecendo e utilizando o seu discurso musical como base para o processo de ensino e aprendizagem da música (Arroyo, 2000; 2002; Oliveira, 2000; Swanwick, 2003; Travassos, 2001) Portanto, num primeiro momento,deverá ser trabalhada a parte introdutória à teoria musical entrelaçando com os estilos apontados como preferenciais pelos estudantes. Posteriormente, será trabalhado os três itens que compõe a música. Diferenciar-se-á melodia, harmonia e ritmo, para que se separem os elementos que fazem o choro acontecer. A noção de timbre e também de intensidade e duração será abordada principalmente para que tracemos um diferencial dos instrumentos que compõe uma roda. Nesse sentido, as aulas serão expositivas com o auxílio de imagens e vídeos. Será necessário o uso de um projetor e do Power Point.

718

Pretende-se também desenvolver uma análise histórica feita a partir do séc. XVI onde se encontrava os dois estilos com influências africanas e européias que serviram de alicerce para o que mais tarde viria a se chamar choro: a modinha e o lundu, vindo posteriormente para o séc. XIX quando Joaquim Callado publica o que viria a ser o primeiro choro a “Flor Amorosa”. Será traçado uma linha do tempo com os principais compositores e também as principais obras a partir daí, com fotos textos, ilustrações e principalmente o instrumento que cada um desses compositores/intérpretes tocava, fazendo assim a diferenciação dos timbres e peculiaridades de cada um. No que diz respeito à prática, será estimulado o trabalho e o desempenho em grupo. Partindo do princípio de que o choro é tocado na grande maioria das vezes em grupos e rodas, será estimulada a cooperação e a harmonia entre os alunos na hora de tocar. Serão na sua maioria instrumentos de percussão e aqueles que já tiverem alguma prática com o violão, por exemplo, poderão experimentar a sensação de tocar um gênero instrumental além de tocarem instrumentos rítmicos que têm um papel fundamental na formação e no equilíbrio do sistema nervoso. A música feita no grupo, demanda de que cada um escute e entenda a sua parte, mas que também escute o que o seu colega está tocando para que o resultado sonoro seja harmônico. Respeitar o espaço do colega no todo é imprescindível para que o resultado sonoro seja agradável. Dessa forma, pretende-se que essas lições de respeito e de cada um ter o seu espaço visualizadas no trabalho do grupo musical, sejam levadas para a vida dos jovens que poderão desenvolver à partir daí ideias de cooperatividade e harmonia de uns para com os outros, suprimindo a individualidade e o egoísmo. Pretende-se também trazer noções de estrutura musical, ao dividirem-se as partes em A B e C, por exemplo. Por ser um estilo tonal com melodias de fácil absorção esse trabalho é perfeitamente possível de ser realizado com alunos dessa faixa etária. Serão trabalhadas audições de obras de Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Jacob do Bandolin entre vários outros gerando uma espécie de exercício prático de audição. 4 Considerações Finais Para finalizar esse momento reflexivo e propositivo, coloca-se a visão que evidenciamos daescola, um espaçocomplexo e altamente diversificado que dado a sua abrangência, congrega diferentes sujeitos e universos culturais. Com efeito, atuar na educação básica é um desafio para os profissionais da educação, pois a conjuntura político-social-cultural que caracteriza esse universo educativo estabelece, em seu contexto, inúmeras barreiras e limites. No entanto, é preciso superar os obstáculos existentes, possibilitando que as escolas cumpram, de fato, o seu compromisso e a sua função social, qual seja: propiciar ao indivíduo uma formação ampla e plena para que possa viver e atuar em sintonia com as necessidades, características e valores do mundo que o rodeia.

719

Nesse sentido, entende-se que a partir de práticas de criação, interpretação, descoberta e vivência musical, bem como de propostas lúdicas, diversificadas e eficazes de ensino, o educador musical concretizará caminhos relevantes para a sua atuação docente, podendo, dessa forma, propiciar uma formação ampla e plena do indivíduo. Formação essa que ofereça as condições necessárias para que os diferentes sujeitos presentes no processo educativo possam lidar com códigos, valores e significados intrínsecos da linguagem musical. Certamente é papel do professor de música na educação básica ministrar aulas e desenvolver conteúdos fundamentais para a formação musical no universo escolar. Entretanto, é tarefa de todos nós, educadores musicais e membros da sociedade em geral, pensar, refletir e contribuir efetivamente para que a música, enquanto fenômeno artístico e cultural faça parte do rico, potencial e democrático universo formativo da educação básica,contemplando os diferentes sujeitos que caracterizam nosso universo cultural e a diversidade de expressões musicais que circundam a nossa vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, M. Um olhar antropológico sobre práticas de ensino e aprendizagem musical. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 5, p.13-20, 2000. ______. Mundos musicais locais e educação musical. Em pauta: Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 13, n. 20, p. 95-121, 2002. CARRILHO, Maurício, Prefácio. DINIZ, André. Almanaque do Choro: A História do Chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 3.ed. Ed Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2008. DINIZ, André. Almanaque do Choro: A História do Chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 3.ed. Ed Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2008. GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo em nós. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 3ª ed. Record Rio de Janeiro 2003. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva; MARINHO, Vanildo Mousinho. Práticas para o ensino da música nas escolas de educação básica. In.:Música na educação básica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. OLIVEIRA, A. Educação musical em transição: jeito brasileiro de musicalizar. In:SIMPÓSIO PARANAENSE DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 7., 2000, Curitiba. Anais... Curitiba, 2000. p. 15-32. SWANWICK, K. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. Ed. 34 São Paulo 1998.

720

TRAVASSOS, E. Etnomusicologia, educação musical e o desafi o do relativismo estético. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 10., 2001, Uberlândia. Anais...Uberlândia: Abem, 2001. p. 75-84.

721

COMPOSIÇÃO MUSICAL COMO ATIVIDADE DIDÁTICA: ESCUTA ALTERITÁRIA BAKHTINIANA COMO ATO COGNITIVOESTÉTICO-ÉTICO - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS EM EDUCAÇÃO MUSICAL Liana Arrais Serodio [email protected] Colégio de Aplicação PIO XII – PUC CAMPINAS Faculdade de Educação – UNICAMP Resumo: Numa prática de ensino de música no EF I e II, a atividade didática de composição musical, proporciona acontecimentos intrigantes, dos quais nasce um projeto de doutorado em Educação, com foco na linguagem musical e verbal. Este artigo é uma narrativa (BENJAMIN) docente (PRADO) do percurso pedagógico até a produção das composições. A partir daí, na relação entre alunos/as, com a professora, com o conteúdo das aulas e dela com cada um/a deles/as há uma notável alter-ação emotiva-volitiva reconhecida no vivenciamento da “escuta alteritária” (BAKHTIN) como “ato responsável” (BAKHTIN) do sujeito “cognitivo-estético-ético”. O acontecimento da aula (GERALDI) favoresce a produção cultural, cognitiva (conhecimento) que gera o ato ético dos próprios alunos por meio do vivenciamento estético estendido a si mesmos como “autores”, entre si, dentro da responsabilidade semiótica ou Semioètica (PONZIO; PETRILLI). Palavras-chave: Composição musical como atividade didática escolar. Capacidade espécie específica humana de modelação. Escuta alteritária. Semiótica da escuta.

INTRODUÇÃO Numa determinada prática de ensino de música no EF I de uma escola confessional em Campinas no EF II de uma organização não governamental em Jundiaí, a atividade didática de composição musical, proporciona situações intrigantes das quais nasce um projeto de pesquisa de doutorado em educação, com foco na linguagem: musical e verbal. Este artigo conta o percurso trilhado, desde provisórios “achados” até os “dados”. Meu histórico de formação é, primeiro, o ensino tradicional de instrumento (aulas particulares de piano, leitura de partitura), no nível superior, o bacharelado em música e minha formação docente pode-se dizer que se deu na escola. Os Métodos Ativos foram minhas, por assim dizer, “cartilhas”, num sentido amplo. A criatividade pedagógica tinha que acompanhar o conhecimento de música. Estes métodos foram uma “fórmula” usada, a partir da experiência inicial em escolas especializadas, pequenas turmas (6 crianças, em média) com Musicalização Infantil. O objetivo destas aulas era iniciar as crianças no aprendizado especializado de música – que se daria depois, se elas quisessem.

722

Levá-las a ter as primeiras noções e a construir os primeiros conceitos musicais, era o objetivo em termos gerais. Pensando no tripé: interpretação, improvisação e composição (BRASIL, 1998, p. 82), eu podia garantir o primeiro e o último. Aí estava marcado o “meu” modelo de ensino: primeiro ensinar música para depois ensinar composição. Quanto à improvisação, havia um complicador: minha formação tradicional voltada para a interpretação de partituras combinada à personalidade dócil, cordata, ávida por aprender, da aluna de piano na década de setenta no interior de São Paulo. Por mais que desenvolvesse atividades e encontrasse caminhos para desenvolver percepção, conhecimento da linguagem musical, ficava faltando algo, um dos “pés”. Observando as colegas professoras – pensando em um lado da formação docente na escola –, não parecia ser somente conhecimentos pedagógicos. E uma certa insatisfação com o resultado das aulas dentro das minhas expectativas foi provocando alteração de rotas, com insistentes iniciativas. Para além do ponto inicial do ensino estabelecido no conhecimento prévio do aluno. Ou na(s) cultura(s) à(s) qual(is) ele pertence, sem desconsiderá-la(s). Entre alguns bons sucessos, outros nem tanto, fui conquistando o respeito dos alunos, colegas, da direção, até que um dia as crianças, cada uma, se tornasse mais relevante do que a matéria a ensinar: o que estava sempre faltando, era tão evidente que não se materializava, era justamente retirar o objetivo-no-conteúdo e colocar o objetivo-nos-sujeitos! Ou personificar o objetivo! Singularizar (ou ver as singularidades de) a relação intersubjetiva! Três tipos de relações: 1) Relações entre objetos (...) 2) Relações entre sujeito e o objeto. 3) Relações entre sujeitos – relações pessoais, relações personalistas: relações dialógicas entre enunciados, relações éticas, etc. Aí se situam quaisquer vínculos semânticos personificados. As relações entre consciências, verdades, influências mútuas, a sabedoria, o amor, o ódio, a mentira, a amizade, o respeito, a reverência, a confiança, a desconfiança, etc. (BAKHTIN, 2003, p.374)

Um dilema que era comum às demais colegas, era a (in)disciplina, que, no caso das aulas de música, pareciam, para mim, ter um grau superlativo, pela natureza da música: ouvir para aprender. Eu conseguia o silêncio com muito esforço e limitando muito as crianças. Até que elas se envolvessem com a atividade. A solução pareceu-me por muito tempo ser limitá-las mesmo, até pelo que observava minhas colegas professoras. Seria preciso deixar bem claros os limites! Não que os limites não tenham que ser ensinados, mas cada vez mais fui vendo que não seria “a” solução “para sempre”. Objetivar o silêncio é limitar a responsividade da escuta, pela qual se cala pelo próprio interesse; objetivar a escuta das crianças é também escutá-las e responder às demandas.

723

O quê, o que é que é importante para uma escola? As crianças! Os alunos e as alunas! E como, como é que podemos mudar nossas ações? “A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p.373)”. Antes dessa tomada de consciência, as crianças, as famílias, a escola atravessavam minhas pretensões de ensinar música! Olhando agora, à distância, foi justamente não desistir, ficar lá, no atrito com cada pergunta procurando respostas, com a busca de sentidos para os resultados acertados de caminhos equivocados, ou o inverso, que a consciência de haver uma relação única, não indiferente com elas pode então nascer. A relação única já existia, quando não me submetia totalmente, nem submetia as crianças, às teorias. Mas eu não sabia. Na busca de formação, no estudo, no registro, na partilha, na reflexão e, sempre, sem deixar a sala de aula para fazer pesquisa, achava que era justamente não levar a ferro e fogo as determinações teóricas, os métodos ou os planos, que estava o erro. Mas... e o acerto? Porque tinha, também!? Estava imersa num mundo (que eu precisava descobrir o que exatamente queria dizer com) objetivo, cientificista-objetivista. Minha solução foi uma pretensão, mistificada pelo conhecimento de música, ou de música como conhecimento: achava que por conhecer música, de alguma forma percebia coisas que os não músicos não podiam perceber e que faziam diferença (na escola) e me arroguei uma responsabilidade romântica de salvação da pátria... Desculpem-me a ironia. Achei que tinha que saber mais de pedagogia, para falar em pedagogês, o meu musiquês! Melhor rir, não acham? Mas é sério. Foi uma fase dessa busca de conhecimento. Foi nessa fase que entrou na minha vida escolar uma coordenadora pedagógica que fez toda a diferença, porque pela primeira vez quando eu comentava algo sobre um aluno nas Reuniões Pedagógicas, algo era feito no sentido de procurarmos juntas, soluções. Pela primeira vez o que eu pensava não caía no vazio. E se nos formamos com os outros.... QUAL O CAMINHO PARA EXPERIMENTAR ESSA PROPOSTA? UMA INVESTIGAÇÃO NARRATIVA Foi quando comecei a registrar minhas aulas com mais assiduidade e compartilhar o que escrevia/sentia no Gepec (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada) Faculdade de Educação, Unicamp, foi nessa época que a filosofia de Bakhtin entrou na minha vida, foi nessa época que descobri que a suspeita que eu tinha, de que as crianças fazem tudo muito melhor do que se costuma supor que elas sejam capazes, mesmo quando tudo indica que não, tinha fundamento. Que eu não estava sozinha nessa, passando a ser uma premissa para outras perspectivas de vida e de ensino. E que se alguns aprendem de um

724

jeito, outros aprendem de outro. Se alguns aprendem umas coisas, outros outras a partir do mesmo “objetivo”. Não há combinação igual, cada uma é singular em cada pessoa, em cada criança e jovem e colega... Foi nessa época que comecei a confiar que se eu não sabia (de acordo com meus próprios critérios) improvisar, por isso mesmo, até, elas não poderiam deixar de experimentar. Seria mantê-las sob o meu controle, dentro de meus instrumentos de medida! Seria manter tudo como já era, até os meus incômodos. E comecei a desenvolver esquemas, propostas, estímulos, inspirações, provocações, jeitos de falar e dar estrutura para que elas fossem se descobrindo e eu também, a elas e a mim mesma. Agora, havia um diálogo consciente com a pedagogia musical eu assumia não estar errando quando modificava, transformava, adaptava suas lições. Quando vi, estávamos improvisando! Fomos experimentando a partir de propostas diversificadas, muito na esteira de Orff e suas pentatônicas, mas não só, a partir de materiais/instrumentos vários, juntando as partes que cada um/a fazia e que pareciam – pela expressão das crianças – “conversar”. Ou que rompiam o discurso, afirmavam ou negavam, como na fala, surpreendiam. Depois íamos fazendo arranjos com essas partes. Eu sugeria algo e observava. Uma alteração da proposta que poderia ser colocada no lugar da minha, ficava sendo ela que valia. Ou escolhíamos juntos. Construiamos músicas coletivas, juntos. Não estava ainda tudo resolvido, eu ainda não dava o devido valor a essas atividades, ficando como cumprimento de parte do currículo. Mas uma semente ficou e acabou por germinar. Caiu na corrente verbal (BAKHTIN, 2003), na corrente de signos, na semiose infinita (PONZIO, 2007). Outra característica da dócil e cordata adolescente que fui, é a avidez por aprender – alguém poderia dizer ansiedade – e o ímpeto de alterar rumos. E olhem que digo isso e sinto realmente assim, mas quando me coloco a ler os registros (das aulas) nos cadernos, noto que são anos até que algo se modifique, de fato se transforme numa ação pedagógica consciente, num ato pedagógico responsável, embora tenha sido, encontrei essa característica, “responsivo” (BAKHTIN, 2010). Mais ou menos de oito em oito anos, segundo meus registros, meu inventário de dados (PRADO; MORAIS, 2011). A entrada da coordenadora que modificou a minha visão do ensino, saindo do conteúdo, com convicção, para considerar a criança em primeiro lugar, foi em 2003. Tem muito mais para contar, mas o espaço-tempo do artigo não é para tanto. O testemunho narrativo de uma experiência pode fornecer os conselhos, como queria Benjamin e até alguma confiança num modelo de ação. Segundo Benjamin (p.200),

725

o narrador é um homem que sabe dar conselhos, [o que pode parecer] antiquado, porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.

Observar minhas colegas professoras com seus/nossos alunos contribuiu na minha formação docente, narrar este fato pode servir de conselho de formação, assim como narrar as atividades de aula. E ao escrever, rever o fato e ler o registro, posso refletir sobre os acontecimentos, afastada deles, o que permite uma interpretação outra dos fatos. Não sou “uma narradora nata” (idem, ibidem) muito menos me arrogo a qualidade da sabedoria, mas pratico a narrativa como um “conselho tecido na substância viva da existência”. Continuo narrando mesmo que tenha definhado culturalmente (ideologica e cientificamente) a confiança na narrativa. Retorno ao ponto de vista narrativo deste artigo, como atividade formativa docente (PRADO; CUNHA, 2007). E esse mesmo modo narrativo de registrar os acontecidos, repeti na gravação das composições das crianças e jovens. COM A FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTINIANA Por ocasião do aprofundamento dos estudos de Semiótica Global e Filosofia da Linguagem, com especial ênfase em Mikhail Bakhtin, orientada por Augusto Ponzio (2011-2012, Bari, Itália – PDEE-CAPES), a linguagem musical que surge nas atividades de composição, encontra perguntas novas para a pesquisa, principalmente por apontar os procedimentos de modelização primário, secundário e terciário, desenvolvidos na pesquisa de Thomas Sebeok (PETRILLI; PONZIO, 2001, p.46-47) e por reafirmar a arquitetônica bakhtiniana. Por conseguinte, me parece que amplia o horizonte de possibilidades, inaugura um mundo outro, para as aulas, que podem ser planejadas com confiança no/a aluno/a e suas relações entre si, consigo e com a música devido à específica capacidade humana de modelação e que, com a troca dialógica (musical, mas não só) para realizar-se, torna cada um/a não indiferente ao/a outro/a. Parece que assim nos tornamos únicos, singulares na nossa relação não indiferente com os outros e suas músicas. Linguagem é entendida aqui como uma capacidade de comunicação não necessariamente verbal, iniciada no homo sapiens, último estágio de evolução

726

humano (PONZIO, 2007), e se apresenta como o sistema de modelização1 2

específico da espécie humana, ou sintaxe . Tal sistema de modelização, dividido em três estratos (primário, secundário e terciário) é identificado por Sebeok e Danesi (in PONZIO, 2007, p.12) como fundamentalmente cognitivo. Questi tre sistemi contribuiscono in maniera interconnessa e complementare alla creazione e alla comprensione segnica umana. Essi devono essere tenuti ben presenti nelle metodologie e nei programmi dell1insegnamento e della formazione. L’intera letteratura sullo sviluppo del bambino e anche quella concernente l’educazione degli adulti vanno riesaminate in termini di sistemi di modellazione: ciò, dice Danesi (1998, p.62), è il principale obiettivo della semiotica di Sebeok (PONZIO, 2007, p.12) [“Estes três sistemas contribuem de maneira interconectada e complementar à criação e compreensão dos signos humanos. Ambos devem ser mantidos bem presentes nas metodologias e nos programas de ensino e formação. Toda a literatura sobre o desenvolvimento da criança e da educação de adultos são reexaminadas em termos dos sistemas de modelação: isto, diz Danesi, é o principal objetivo de Sebeok”].

A origem da capacidade de linguagem humana está no sistema primário ou fundamental de modelação; as línguas ou idiomas estão no sistema secundário; e os processos fortemente abstratos, simbolicamente organizados como o mundo da cultura, no terciário. A capacidade de modelização específica da espécie humana garante uma modelização do material que se tem nas mãos, seja ele formado por sonsgestuais, coresformais, aromastexturais, atospensamentos, imaginaçõesmusicais, gestossonoros, formascoloridas, texturasaromáticas, imagensatualizadas, o que seja, para se relacionar com o mundo em torno, bastando que se lhes ofereça um espaço, um tempo, que se lhes dê ideias ou o material a trabalhar, expondo-se conjuntamente, sabendo que podem(os) acabar trabalhando com outras ideias e outros materiais, alguém com quem “jogar” ou para quem mostrar uma coisa (uma composição, que é do que falamos) que foi se formando “como se” fosse outra, a cada vez. Favor não pensar em modelização ou modelação ou modelagem como cópia ou imitação, devo enfatizar. É mais correto pensar em escultura do que xerox. Mesmo assim, sempre considerando que nada se cria do nada, tudo se (trans-re-con)forma. Analisar as composições das crianças, então, passa a ser uma incógnita, mas uma incógnita dentro de um momento vivido prenhe de intenções, 1

Traduzo como modelização a palavra italiana modelazione. Ou seja, la capacità di modelazione, (capacidade de modelização) para mim è assumida como capacidade de modelar, mas numa tentativa de retirar a noção de cópia que tem na palavra modelo e de ampliar nesse e em outros fóruns de debate o sentido pretendido. Modelizar, então, como capacidade criativa de pegar um material, no caso o som, e dar-lhe conteúdo-forma. 2 Não confundir com a sintática, que, junto da semântica e da pragmática (MORRIS, 2009, 92-93) compõem as três dimensões de relação entre os signos ou semiose, estudada na semiótica.

727

predisponibilizadas pela formação/história, por hábitos/convenções sociais e pela realidade situacional/pelos acontecimentos dentro da semiose específica da biologia humana. Quanto seriam úteis as teorias que sustentam as análises musicais, em geral? Penso mais numa análise de blocos de sons, que parecem ter sentido para elas. Parecem ter um sentido estético, pelas reações de não indiferença, de satisfação, de surpresa e um desejo de continuidade da experiência, seja fazendo ou assistindo. Por continuar a “escutar o gesto” que se transforma em som, para alguns, ou acompanhar o som que se transforma em gesto, em performance e técnica, para outros... Tantas são as combinações! Tantos os mundos possíveis quantas as crianças compositoras. Seja como for, sempre respondendo ao que cada uma delas viu, ouviu, sentiu, na medida da minha humana capacidade de escuta responsiva, com Bakhtin – ou “demasiado humana”, com Nietzsche. Com elas, aprendi a escutar para responder, para planejar o próximo momento da aula. Claro, sempre com algumas cartas na manga, um plano B, para uma eventual falta de ideias: olhando assim o tempo curto das aulas podem até ser um corte importante para nossa vida de professor/a de música: a próxima semana nos aguarda e não seremos os mesmos... nem as crianças. Outros mundos serão acrescentados àqueles da semana anterior. Se nos apresentamos na realidade do mundo social que nos constitui, tendo o outro como sujeito único, imprescindível a esse mundo; se não somos indiferentes a cada um deles na atualidade de sua existência conosco em realidade concreta; se consideramos que é no diálogo com cada um deles que nos formamos; se nos constituímos com as linguagens e os signos que as formam, então, o outro também me forma. Na escuta responsiva, de maneira dialógica. Enquanto eu ao outro me refiro, ele é “outro para mim”. Quando volto a mim não sou mais o mesmo eu, mas “eu para o outro”, assim como o outro deixa de ser um outro qualquer, mas “outro para mim”, alguém que não me é indiferente. Até porque me constitui, faz parte de mim. Não retórica, mas dialogicamente: “na retórica [jornalista], há os indiscutivelmente inocentes e os culpados, há a plena vitória e a humilhação dos adversário. No diálogo, a destruição do adversário destrói a própria esfera dialógica da vida da palavra” (BAKHTIN, 2003, p.386). Não com intenção de atingir um objetivo pedagogicamente mapeado, delimitado, deste modo destruindo um “adversário” real, ao menos em potência: a própria esfera dialógica de outro mundo possível que as crianças nos trazem em sua inauguração das coisas do mundo, por serem “cronologicamente menos canonizadas pela hegemonia cultural”, como diz Boaventura de Sousa Santos (1998). Fecharmo-nos a estes mundos que brotam nos atos responsáveis, sem álibi, das crianças e jovens provando fazer música, é destruir o nascedouro de corrente

728

de signos ideológicos, todo um diálogo com a música passando a ser outro para a música que escuta/faz, sendo então outro para si deste momento em diante. Os valores culturais são valores em si mesmos, e uma consciência viva precisa adaptar-se a eles, afirmá-los para si mesma, porque, em última instância, a criação (...) é conhecimento. Enquanto eu crio esteticamente, reconheço responsavelmente com isso o valor do que é estético, e a única coisa que preciso fazer é reconhecê-lo explicitamente, realmente; com isso se reconstitui a unidade do motivo e sua finalidade, da realização verdadeira e do sentido do seu conteúdo. Este é o caminho pelo qual uma consciência viva torna-se consciência cultural, e uma consciência cultural se encarna em uma consciência viva. (...) a consciência real, para ser unitária precisa refletir em si a unidade sistemática da cultura com o respectivo coeficiente emotivo-volitivo, que em relação a cada domínio dado não pode mais que ser colocado entre parênteses (BAKHTIN, 2010, p.89-90)

Assim, o controle epistemológico das teorias, do real no cultural, do singular no geral: O controle epistemológico das teorias pode ser considerado a garantia de que o objeto corresponde a um fenômeno concreto, em vez de ser arbitrariamente postulado. Esse controle fica a cargo da coerência entre meios e fins: o exame econômico possível do objeto, ou seja, aquele que explica o máximo do objeto com o mínimo de conceitos; o exame do máximo possível de aspectos do objeto (à exaustividade, claro, sempre relativa); e principalmente o respeito à especificidade do objeto, sem a renúncia ao que ele tem em comum com outros objetos, que é afinal a base da tão necessária generalização (SOBRAL, 2008, p.132).

Onde O sujeito é individual, mas não subjetivo, e o mundo é objetivo, mas sempre construído social e historicamente pelas ações da coletividade humana. O filósofo e a filosofia bakhtiniana estão “na cidade”, no centro dos acontecimentos, e seu imperativo é a responsabilidade, no plano concreto, a ética cotidiana, não proposições transcendentes e inacessíveis (Ibidem, p.148)

O que me leva a pensar com a filosofia da linguagem, na escuta alteritária como ato responsável e na arte: nas aulas, entre alunos/as, deles/as com a professora e dela com cada um/a deles/as e com o conhecimento musical, a relação com a arte passa a ser uma relação cujo percurso me liberta – me libertou – de um dos problemas que me incomodava ao tratar de estética e de arte, nas aulas de música: que a arte a tornava superior e que só uns poucos iniciados teriam acesso. “Tão necessariamente quanto o artista é a origem da obra de arte, de uma outra maneira que aquela em que a obra é a origem do artista, assim tão certo é que a arte é, ainda que de um outro modo, a origem ao mesmo tempo do artista e da obra (HEIDEGGER, 2005, p.11)”. Arte passou a ter importância como a

729

relação igualmente única e irrepetível entre indivíduos não indiferentes, assim como com a obra que é de arte devido ao artista, como o artista o é devido à obra. Tentando dizer de outro jeito: tanto há “um” conhecimento sobre música quanto “uma” experiência estética que acontecem nas interações intersubjetivas, com o “objeto concreto” [composições] e sua “teoria” [atividades didáticas], donde me dei conta de emergir o ato ético da escuta alteritária. Um conhecimento a ser ensinado de modo “narrativo” a alguém menos canonizado pela cultura hegemônica, permite que tenhamos, enquanto pesquisadores, acesso ao “caminho pelo qual uma consciência viva torna-se consciência cultural, e uma consciência cultural se encarna em uma consciência viva” à ponto de me responsabilizar a contar a boa nova, para que, caída na corrente verbal se faça de conselho a quem quiser contar a sua narrativa... EXERCÍCIO DE ANÁLISE MUSICAL PEDAGÓGICA: NARRATIVA O que intriga é: o que possibilita a criação dessas composições sem estudos intensos de teoria musical, pressupostos em minha própria formação? Foram oferecidos os instrumentos musicais pedagógicos de teclas, tipo “Orff” (Carl Orff, músico-pedagogo alemão do início do século XX), com os quais as crianças já tinham se adaptado em sessões de improvisação e interpretação. Essas experiências anteriores (sem desconsiderar a enculturação3) ditaram o material sonoro a ser utilizado, como subentendido. Quero dizer, deixei à mão todo o instrumento para o uso, limitado, ou em dependência, apenas pela ideia que tinham dos personagens que representavam – a composição que aqui trago foi criada na esteira de uma projeto da professora polivalente, como explicito a seguir. Mas, o que possibilita a criação de composições que contém valores estéticos, tema, desenvolvimento, tensão/relaxamento com uma unidade perceptível e que, sem fazerem essa análise dá aos colegas e a si mesmos uma noção de fazer música e música “bonita”? Como já disse, para além da justificativa da enculturação, pois não se trata mais de um aprendizado sem 3

Os principais elementos da enculturação(...): em primeiro lugar, encontramos um conjunto compartilhado de capacidades primitivas, que estão presentes no nascimento ou logo após. Em segundo lugar, há um conjunto compartilhado de experiências que a cultura proporciona às crianças, à medida que crescem, Em terceiro lugar, há o impacto de um sistema cognitivo geral que muda rapidamente, á medida que são aprendidas muitas outras habilidades que têm por base na cultura. Esses elementos combinam-se entre-si para resultar em uma sequência de realizações que é aproximadamente a mesma para a maioria das crianças de uma cultura, e em um conjunto de idades mais ou menos semelhantes em que se dão os diversos rendimentos. A enculturação também é caracterizada por uma ausência de esforço autoconsciente, bem como pela ausência de instrução explícita. As crianças pequenas não aspiram progredir em sua capacidade de aprender canções, mas progridem. Os adultos não ensinam às crianças a arte de memorizar canções, mas as crianças aprendem a memorizá-las. (SLOBODA, 2008).

730

professor, mas sim de um trabalho consciente do esforço necessário para que a exploração sonora tome forma e que a técnica sirva à interpretação. O PROJETO: Esta foi a proposta da professora da classe (professora polivalente, 4ºano), que durante a leitura cada criança escolhesse um personagem para “cuidar”, nas atividades que seriam propostas a elas. Eu fiz o mesmo, com a música. A partitura que apresento é resultado da terceira aula desta proposta, na qual, em duplas, os personagens se encontrariam e conversariam, musicalmente. Essa proposta didática me apoia para pensar em análises cognitivas (do conhecimento) das composições, fundamentadas na escola, com intenção de ensinar e de que os alunos aprendam, música como uma produção cultural, realizada socialmente, na vida social da escola. E me mostram sua força estética e os procedimentos éticos decorrentes da vivência. As crianças tinham os instrumentos da sala de música à disposição, para escolher aqueles que quisessem e que achassem que combinavam mais com os personagens que eles cuidavam. A COMPOSIÇÃO: A composição apresentada a seguir foi transcrita do gravador digital Zoom H2, gravadas numa aula em 2011 e é a terceira etapa de um processo de composição musical para os personagens d’O pequeno príncipe de Saint Exupery, escolhido pela professora polivalente (4º ano) como literatura de apoio para trabalhar conteúdos atitudinais (ZABALA, 1998) com as crianças. Foram todas digitalizadas a partir da gravação feita em sala de aula, com os ruídos do ambiente. Na pauta superior, Mc, num metalofone soprano (Profissional-JOG) fala pelo “Carneiro” e na inferior, GB, num xilofone contralto (diatônico-JOG) representa a “Jibóia”.

731

Diria como professora que escuta a música composta naquele momento, tendo participado das aulas anteriores, como as crianças disseram: “Parece mesmo que estão tendo um diálogo, o Carneiro e a Jibóia”; que é uma música bastante complexa, relativamente longa, com desenvolvimento, ponto culminante, tensão e relaxamento tipo dominante/tônica, tipo pergunta/resposta. Porém, parece que um dos meninos não se lembra ou decide não cumprir todos os combinados e resolve improvisar à ponto de parecer, tanto pelo que escuto quanto pela ansiedade de seu companheiro, que presencio, que não irá dar certo: a “Jibóia” começa a ficar impaciente com a empolgação do “Carneiro” e a forçar para que ele chegue ao final combinado. E... chegam juntos no fim! Foi surpreendente, para mim, naquele momento. Algumas dessas informações privilegiadas de professora não é possível escutar na gravação, como o histórico dos dois alunos, a vivência das aulas anteriores, em que cada um teria que inventar a sua música sozinho, a capacidade e o envolvimento singular de cada um com o que fazem, como conhecimento anterior da professora decorrente da sua interação com eles e que conta, vale, no acontecimento da aula. Por outro lado, rever as aulas trazem informações que o momento não permite colher. Estamos falando de experiências escolares, em contexto escolar. Os subentendidos, as informações privilegiadas e a reação momentânea fazem parte. Posteriormente, agora, analisando o material gravado para a pesquisa, quanto ao ritmo, é formada por compassos compostos, com alternância dos

732

compassos até o compasso 17. Daí até o fim, todos os compassos são binários. O registro foi escrito com a subdivisão em colcheia, ou seja, compassos 6/8, 9/8 e 12/8. O ritmo da frase inicial (colcheia-semínima-colcheia-mínima) que se mantém, dando unidade à peça, é seguido por uma nota longa, com alteração nas notas, com exceção, no compasso 11 e 21, que aparece um grupo de três colcheias seguidas por uma semínima. Mas as três colcheias não mudam a intenção do balanço do compasso composto. Entendo que tenham combinado o fim no compasso 16 e que apartir daí um dos alunos (M) ‘decide’ desenvolver. Daí para a frente, o outro aluno (GB) insiste em que ele volte, repetindo a sua frase até que prepara a tensão e o M, sensivelmente, “resolve” numa tônica. Nenhum deles tem estes conceitos formalizados, o que lhes dirige a escolha é a percepção musical decorrente da vivência cultural de tensão/resolução sugerida pela conversa entre os dois personagens. E também pelas atividades musicais, igualmente didáticas, anteriores. Sem se esquecer, mais uma vez, do papel da cultura. A primeira frase, a do “Carneiro”, é precedida pela nota (dó), como anacrusi, uma nota que conduz à próxima (mi). Nota-se que ele está mais livre para transitar melodicamente do que a “Jibóia”, se arrastando com seu ritmo constante, a não ser nos compassos 8 e 10. Quanto à transcrição, foi feita da forma tradicional, em compassos, mas penso que dificilmente eles escreveriam tantas mudanças se soubessem o que são compassos, se tivessem se habituado às fórmulas de compasso ou mesmo se tivessem pretendido fazer uma música em determinado estilo ou gênero. Na realidade já havíamos falado de compasso, pulsação, figuras, inclusive com exercícios, jogos, arranjos durante os anos que precederam esta aula, para introduzir esses conceitos, para nos localizarmos numa partitura, para ampliação do repertório cultural. Sem a pretenção de que estariam aprendendo ler partitura musical tradicional, mas que pudessem ter uma noção de como se registram as composições para alguém ler, por exemplo. Ou para registrar de algum modo suas próprias composições ou suas próprias análises de audição, etc. As alterações de compasso se deram mais pela noção do ritmo da frase de um dos personagens formado pelo conjunto colcheia (anacrusi) semínima colcheia mínima, à espera do tempo apropriado para reentrada, esperando a próxima pulsação, esquecida. Ou seja, tem uma parte que é improvisação melódica com ritmo ‘fixo’. Analisando a partir da capacidade de modelização, cada nota (neste caso, instrumentos melódicos) é uma peça. Quando sua duração muda, a mesma nota é outra peça, outro bloco nesse jogo de montar que é de outra concretude, em relação a um jogo de montar mesmo, que atrai crianças e adultos no decorrer dos tempos.

733

Este é o cenário onde uma capacidade específica da espécie humana, portanto de todo e cada um de nós, de lidar com um número reduzido de elementos e fazer deles sistemas complexos, como as palavras em frases, enunciados, poemas, romances; como o sistema harmônico musical, resultado da combinação de somente sete notas da escala diatônica. E para que essa capacidade se desenvolva só é preciso deixar fazer e fazer também cada um de sua experiência e conhecimento. Confiar. Fiar junto. Nesta peça, temos um número relativamente grande de variações em duração dos tempos das notas, quando cada nota soa e muda de uma para outra, dando num resultado satisfatório para o aluno, que vai prosseguir até que uma combinação de notas e um percurso se faça significativo, se memorize, para ir incrementando outros sons até formar um tema para seu personagem que, ao entrar no diálogo com o outro aluno, cuidador de outro personagem/composição que passou pelo mesmo processo, tenha que fazer concessões, alterações a partir de uma escuta genuinamente alteritária. PARA NÃO ACABAR Portanto as aulas dão o contexto, a razão, a estrutura e o propósito das composições das crianças e as análises são, em primeira instância, o equivalente às avaliações pedagógicas fundamentadas nos conteúdos essenciais, como parte do Plano de Ensino da escola de Campinas. Sem deixar de considerar o papel da análise musical como uma das disciplinas na formação musical (AGAWU, 1996) historicamente constituída no sistema pedagógico musical formal, que fez parte de minha formação, introduzindo conceitos da estética filosófica (BRANDÃO, 1968), da semiótica da música (LOMUTO; PONZIO, 1995) e me dirigindo para uma análise “primária”, do sistema de modelização humano. Esta é a proposta provisória a que me disponho para a discussão nesse Simpósio de Estética Musical, nessa etapa final do desenvolvimento da pesquisa de doutorado na Faculdade de Educação, UNICAMP, orientada por Guilherme do Val Toledo Prado.

REFERÊNCIAS: AGAWU, Kofi. Analyzing music under the new musicological regime. MTO-Music Theory Online. Journal of the Society for Music, vol. 2.4, 1996. Acesso em 12-052013. Disponível em: http://www.mtosmt.org/issues/mto.96.2.4/mto.96.2.4.agawu.html#FN20REF. ARONOFF, Frances Webber. La musica y el niño pequeño. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1976.

734

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ________; Por um filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João, 2010. ________; DUVAKIN, Viktor. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Tradução do russo para o italiano de Rosa Stella Cassotti e do italiano para português de Daniella Montardo Miotello. São Carlos: Pedro&João Editores, 2008. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1996. Vol.1. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC /SEF, 1998. BRANDÃO, Iulo. Estética: breves estudos. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,1968. GERALDI, Wanderley. A aula como acontecimento. Aveiro (Portugal): Universidade de Aveiro, 2004 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da Conceição Costa.. Revisão de Artur Morão. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2005 FERRERO, Maria Inês; FURNÓ, Silvia Cristina; LANFRANCHI, Ana Del Valle Llabra de; QUADRANTI, Rosa Alicia. Planeamiento de la enseñanza musical. Buenos Aires: Ricordi Americana. 1979. MATEU, Maria Cateura. Musica para toda la enseñanza: musica en preescolar. Volumes I, II, III e Libro del professor. Barcelona: Daimon,1984. __________ Musica para los ciclos basico. Ciclo inicial, ciclo médio, ciclo superior e Libro del professor. Barcelona: Daimon,1984. MORRIS, Charles. Lineamenti di una teoria dei segni. Tradução: Ferruccio RossiLandi. A cura de Susan Petrilli. Lecce, Itália: Pensa Multimida,1938/2009 ________. Fundamentos da teoria dos signos. Tradução de António Fidalgo. Universidade da Beira Interior, Portugal. Disponível em Acessado em 03-01-2013. PEIRCE, Charles Sanders (1839-1914). Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. Coletânea do título original: The colected papers of Charles Sanders Peirce. São Paulo: Perspectiva, 2010. PETRILLI, Susan. Percursi di semiotica. Bari: Edizioni B.A. Graphis, 2007 PONZIO, Augusto. A mente. Processi cognitivi e formazione linguistica. Peruggia (Itália): Ed. Guerra, 2007 __________; LOMUTO, Michele. Semiotica della mùsica. Perugia: Meltermi, 1995 __________; PETRILLI, Susan. Thomas Sebeok and the Signs of Life. United Kingdom: Icon Books, 2001. PRADO, G.V.T e CUNHA, R. B (orgs). Percursos de Autoria – exercícios de pesquisa. Campinas, SP: Editora Alínea, 2007.

735

PRADO, G.V.T. e MORAIS, J.F.S. Inventário – organizando os achados de uma pesquisa. EntreVer, Florianópolis, v. 01, n.01, p. 137-154, 2011. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, v.9, p.63-64, 1998. Disponível em: . Acessado em: 12 nov. 2007. SEBEOK, Thomas. Play of musement. Bloomington-EUA: Indiana University Press, 1981. ________. Signs of life. SLOBODA, John A. A mente musical. Tradução Beatriz Ilari e Rodolfo Ilari. Londrina: EDUEL, 2008. TAGG, Philip. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular como base para a compreensão de estruturas e significados musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, p.7-18, 2011. ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Tradução de Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: ArtMed, 1998/2007

736

EXPERIÊNCIAS SONORAS: A MUSICALIDADE MARCADA PELA PERCEPÇÃO E DESCOBERTA Édina Regina Baumer [email protected] Professora. Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC Halbertina Roecker Wiggers [email protected] Graduanda. Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC Resumo: A partir da Lei 11.769/2008 – lei da obrigatoriedade da música na escola – podemos perceber certa polêmica quanto ao trabalho com o conteúdo de música nas escolas. Muitos são os professores que acreditam ser necessário se tornar um músico para serem capazes de ministrar esses conteúdos na Educação básica, mas isso não é necessário. A LDB N. 9.394/96 esclarece esse ponto quando determina que a música deverá ser conteúdo obrigatório mas não exclusivo do ensino da arte o que indica que os professores de arte é que devem levar a linguagem musical para a escola. Essa determinação faz surgir muitas duvidas quanto aos conteúdos que devem ser trabalhos e como tais aulas devem prosseguir. A seguir, relataremos sobre algumas possibilidades encontradas dentro desse campo especialmente a partir de uma experiência de aula vivenciada por acadêmicos da disciplina de Linguagem Musical e Educação, da 5ª fase do curso de Artes Visuais Licenciatura, da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Palavras-chave: Música. Educação. Experiência.

Em todas as culturas, em todo lugar do mundo, a arte está presente e vemos que cada sujeito e cada sociedade são os responsáveis diretos pela sua produção. Possuímos a necessidade de expressão e a arte é uma das várias maneiras pela qual o ser humano se manifesta e se expressa, constituindo assim sua visão de mundo e se tornando capaz de alterá-la. Perissé (2009, p. 28) nos diz que Muito mais do que uma diversão, um passatempo, a arte é função essencial do indivíduo humano e da sociedade, bem como sinal dos nossos inconformismos mais profundos. [...] Na arte, queremos nos compreender e nos perpetuar de algum modo. Queremos compreender um pouco melhor o que nos rodeia, captar a respiração da realidade para não morrermos de asfixia espiritual.

Explicar o conceito de arte ou construí-lo não se torna fácil, primeiramente pelas idéias que temos sedimentadas em nossa memória – advindas da educação não-formal que recebemos em nosso dia a dia e em segundo lugar, pelo modo como tem se dado a inserção do ensino da arte na educação básica, durante anos. Isso porque “no entendimento comum, a criação é destino de alguns eleitos,

737

gênios, talentos que criaram grandes obras artísticas, fizeram notáveis descobertas científicas ou inventaram alguns aperfeiçoamentos na área técnica” (VIGOTSKI, 2009, p. 15). Mas mesmo sabendo da importância da arte ainda existem pessoas que não acreditam em sua necessidade para o meio escolar e para a formação do sujeito e nem mesmo que arte seja conhecimento. Freud vem nos dizer que arte é conhecimento, justificando sua afirmação pelo fato de que “[...] a ciência jamais chegaria a atingir, por seus próprios meios, um conhecimento do inconsciente como a arte é capaz” (apud GARCIA, 2000, p. 9-10). Logo, a valorização do conhecimento intuitivo é necessária para a compreensão de diversas manifestações artísticas e culturais das sociedades e esse é um dos motivos para que a arte esteja presente nas salas de aula da educação básica, pois é ela que nos proporciona essa valorização. Para Cauquelin (2005, p. 50) “na arte, qualquer coisa é próxima, contanto que se desvie das generalidades redundantes, que renuncie às razões e que confie na linguagem da poesia – que fala não por conceito, mas por metáforas”. A arte quebra com barreiras impostas pela sociedade e pela própria ciência, onde tudo precisa ser explicado. Ela quebra com paradigmas, nos apresentando novos modos de observar e interpretar o que nos cerca, sendo que para ser compreendida apenas precisa ser sentida, percebida e apreciada, de forma a valorizar as experiências através dos sentidos. Mas para que a arte nos agregue valor é necessário compreender que as experiências que temos são distintas e afetam de modo diferenciado cada pessoa. Cada um possui perspectivas diferentes sobre o mesmo assunto, que se formam a partir de suas vivências e experiências com o meio (WIGGERS, 2012). Assim como não existe uma única forma de se perceber a arte também não existe uma única forma de se ouvir e perceber a música. Segundo Mendes e Cunha (2001, p. 82) “[...] não existe o certo e o errado; a fruição se dá na relação de cada indivíduo com cada música. O que podemos apreender pelos nossos sentidos tem relação com o nosso “repertório” de experiências sonoras, com a cultura em que vivemos”. Se não formos incentivados a ter contato com algumas características de culturas diversas, permaneceremos sempre com as mesmas opiniões, gostos e com os mesmos preconceitos. Devido a esses e outros motivos podemos perceber a importância da ampliação de repertório para nossas percepções e esse é um processo que deve ter início dentro da própria escola, já que muitos só têm acesso à arte dentro do ambiente escolar, onde o professor precisa “[...] ao pretender educar, educar (o que não significa domesticar) o olho, o ouvido, o tato, o olfato e a gustação, formas de conhecimento do mundo e de si mesmo, pois só assim lhes será oferecida a possibilidade de diversidade de pensamento [...]” (GARCIA, 2000, p. 12). O professor de arte é um mediador que deve propor situações diversas entre a arte, o público – que nesse caso são os alunos – e a realidade à nossa

738

volta, pois em uma obra de arte, segundo Canton (2009), os sentidos não estão prontos, mas configuram-se a partir do momento em que se estabelecem relações. Como se a obra somente se tornasse completa a partir do momento em que entrasse em contato com seu público, a partir do momento que este estabelecesse relações entre ela e seu mundo. Provocar a imaginação, a criação e as possibilidades de novas experiências, inclusive com novos materiais, é o que se torna importante para o ensino da arte. Como já dissemos anteriormente, difundir a diversidade é também um objetivo importante nas aulas de arte, para que os alunos possam experimentar diversas maneiras de fazer arte, de conhecer a arte de demais culturas, não ficando somente na pintura ou no desenho e passando por experimentações com o teatro, a performance, a escultura e também a música que, na contemporaneidade, inclui todo e qualquer tipo de som. Nessa direção, Oliveira (2008) propõe alguns termos como intertextualidade, transdisciplinaridade, transversalidade, interterritorialidade, rizoma para compreendermos ou explicarmos a relação entre saberes, especialmente, entre saberes sobre as linguagens da arte. E afirma: Ao se limitar o ensino da Arte a apenas uma ‘linguagem’ nas escolas ou, na melhor das hipóteses, pelo ensino de cada ‘linguagem’ em momentos distintos no processo de aprendizagem [...] verifica-se a existência de dois problemas, o primeiro mais forte que o segundo: ou o aluno conhece apenas uma ‘linguagem’ artística, geralmente a visual; ou conhece distintas ‘linguagens’, sem estabelecer relações entre elas, de modo que o conhecimento de uma área não contribui para o aprendizado das demais. (OLIVEIRA, 2008, p. 80) (grifos da autora).

A importância das diversas linguagens da arte na escola se dá a partir do momento em que compreendemos que elas podem promover “o cruzamento cultural das fronteiras entre grupos culturais” (RICHTER, 2008, p. 106). Segundo Richter (2008), a arte – e o sentimento estético que proporciona – pode contribuir na luta contra toda a discriminação existente na (s) sociedade (s). A educação intercultural em arte busca a preservação da cultura e da harmonia através do desenvolvimento de competências em muitos sistemas culturais. Essas competências envolvem o conhecimento e a capacidade de lidar com os códigos culturais de outras culturas, bem como a “compreensão de contextos macroculturais em que as culturas se inserem, como é o caso da arte” (RICHTER, 2008, p. 106). Talvez por essas motivações a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – lei n. 9.394, aprovada em 1996 – tenha determinado em seu artigo 26, que o objetivo do ensino da arte é “promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (LDB N. 9.394/96, art. 26, § 2) e acrescentou por meio da Lei n. 11.645/2008, que a cultura afrobrasileira e indígena devem, da mesma forma que a arte “especialmente em suas expressões regionais” (LDB N. 9.394/96, art. 26 § 2), compor o currículo do ensino da arte na educação básica. Torna-se nítida, pela leitura do texto legal, a

739

importância de conhecer outras culturas de várias partes do mundo, assim como a existente em nosso país. Somos um país rico culturalmente, com valor imensurável e nossa diversidade pode ser notada em cada canto do Brasil. Por isto a ênfase à necessidade de se tratar de temas específicos de cada região. Com relação à música, a LDB N. 9.394/96 informa que esta deve ser componente obrigatório, mas não exclusivo da disciplina de artes. Em seu artigo 26, parágrafo sexto, determina, desde 2008, que o ensino da arte deve contemplar a música e seus conteúdos. Por esse motivo não necessitamos, nas escolas, de uma disciplina única que trate da música, sendo que ela pode sim, e deve ser explorada de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. Assim o professor a lecionar o conteúdo de música não precisa ser alguém graduado em música, podendo ser um licenciado em arte, que tenha cursado licenciatura plena ou que tenha cursado o magistério, para a educação infantil. Numa rápida leitura sobre o ensino de música na escola vemos que muitas mudanças ocorreram desde o pensamento predominante do Canto orfeônico – que primava pelo nacionalismo ao buscar as canções folclóricas e os hinos cívicos –, passando pelo incentivo à criação espontânea do escolanovismo e esbarrando na polivalência da formação de professores de arte da década de 1970 (SANTOS, 2011). Com relação à polivalência, período que é mais próxima da contemporaneidade, Oliveira (2008) afirma que: [...] nos primórdios da formação de professor, os documentos oficiais propunham um currículo polivalente, ou seja composto por conteúdos pertinentes às distintas ‘linguagens’ artísticas sem, no entanto, prever métodos que possibilitassem a interrelação entre tais conteúdos”. Posteriormente, esta proposição curricular revelou-se ineficaz, e houve e, ainda há, a reação de toda a comunidade ligada ao ensino da Arte contra a fragmentação inerente à polivalência. (OLIVEIRA, 2008, p. 80).

No período histórico entre a polivalência e a lei da obrigatoriedade da música o que se sabe é de uma ausência dessa linguagem artística na educação básica, pelo menos nas redes públicas. Segundo Pillotto e Mognol (2005, p. 37), “é possível encontrarmos o docente em Artes, mas não encontramos o docente em Artes Visuais, em Música, em Teatro e em Dança [...] desenvolvendo práxis com ênfase na integração de linguagens”. Na década de 1990 foram criados diversos documentos norteadores da educação brasileira entre eles os Parâmetros Curriculares Nacionais com seus volumes direcionados especificamente para as disciplinas da educação básica. Ao tratar do ensino da arte, esse documento prevê a interseção entre as linguagens – artes visuais, música e artes cênicas – (BRASIL, 1998), ficando na contramão das Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de graduação, criadas na década seguinte onde “[...] os cursos de graduação para licenciatura em Artes se dividem em Artes Visuais, Música e Artes Cênicas parecendo objetivar a formação dos professores de Arte para

740

trabalhar, na educação básica, especificamente cada uma dessas linguagens da arte” (BAUMER, 2012, p. 5). Sabemos, ainda, que existem no Brasil muitos profissionais atuantes nessa área sem formação acadêmica, mas estes estariam impossibilitados de ministrar as aulas que são propostas pela lei. Dessa forma, músicos ou cantores que atuam pelo Brasil, sem ter formação acadêmica, não podem dar aulas de música em escolas. O ensino de música, então, faz parte do ensino de arte, não se caracterizando como disciplina específica e nem necessitando de professor específico, com licenciatura em música1. Ele deve ser ministrado por professores de arte, tendo estes o dever de incluir a música em seu planejamento visto que, segundo alguns estudos afirmam, referindo-se à interdisciplinaridade, que “a própria natureza diversificada da Arte requisita a presença deste conceito e desta prática educacional no âmbito da disciplina” (OLIVEIRA, 2008, p. 81). Assim, é importante que as experiências com relação à música sejam amplas e enriquecedoras, pois a maioria dos alunos terá contato com ela, igualmente com as artes, apenas na escola. Nem todos têm condições de procurar por aulas particulares de música fora dela, o que já limita o acesso a essa experiência. Mas é preciso ressaltar: “[...] para que haja a interdisciplinaridade são necessários vários requisitos, sendo o principal deles a atribuição de horas de trabalho para se planejar e avaliar conjuntamente o percurso do processo educacional” (OLIVEIRA, 2008, p. 81). De qualquer forma, seja pela relação entre saberes, interseção entre as linguagens da arte ou por meio da interdisciplinaridade o que se pode concluir é que A inserção da música na disciplina de Arte pode contribuir, não só para a formação cultural das crianças e adolescentes, na medida em que irão ampliar seus repertórios acerca da diversidade musical de seus cotidianos, como também para a melhoria na qualidade do ensino da arte. (BAUMER, 2012, p. 9)

Certamente o som é uma das coisas que mais nos rodeia em nosso dia-adia. Os sons estão por todas as partes e nos acompanham até mesmo antes de nascer, mas a questão é que escutamos muito pouco do que ouvimos. Segundo Queiroz (2000, p. 29) “escutar é estabelecer relação com o som ou a música, o que é muito diferente de apenas captar a vibração sonora, isto é, ouvir”. Para ele, escutar vai além de simplesmente ouvir. Ouvimos tudo e a todo o momento, mas raramente paramos para escutar realmente. Talvez esse seja um dos principais motivos para muitos terem receio de trabalhar com o conteúdo de música na escola ou até para se acreditar que é preciso ser um conhecedor de música, saber QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Música na escola: dimensões políticas, teóricas e práticas a partir da Lei 11.769/08. Disponível em http://xa.yimg.com/kq/groups/17830357/315713760/name/M%C3%BAsica+na+escola.pdf 1

741

tocar instrumentos musicais, para se ensinar música. Se o professor souber tocar algum instrumento musical ou cantar poderá contribuir de outras formas, mas se não souber não existe motivo algum para se temer e não incluir a música em seu plano de ensino. Muito se engana quem pensa que música só pode ser trabalhada e produzida a partir de instrumentos musicais e conteúdos teóricos que a tragam de forma quase que mecanizada, ela pode surgir das formas mais inesperadas possíveis. Segundo Mendes e Cunha (2001, p. 81), “todos os sons são possuidores de um potencial criador que se transforma em música de formatos diversos com base em formas distintas de organização”. Não existe uma receita para se criar música e nem mesmo para apreciá-la, prova disso foi uma experiência que nós, acadêmicos, juntamente com a professora da 5ª fase de licenciatura em Artes Visuais, da Universidade do Extremo Sul Catarinense, tivemos em uma de nossas aulas de Linguagem Musical e Educação, onde nos foi proposta a produção de uma sequencia sonora, em grupo, utilizando objetos diversos, objetos capazes de produzir sons, objetos sonoros. Essa disciplina nos fez compreender que não é necessário que nós, professores de arte, sejamos especialistas no assunto música, nem tão pouco tocar instrumentos musicais ou saber cantar para ministrar essas aulas com competência. Precisamos mesmo é entender as múltiplas possibilidades de trabalho que a música nos oferece para desenvolvermos atividades com criatividade, conteúdo e responsabilidade, cientes do que estamos praticando. A música existe em todos os lugares e pode ser produzida com os mais inusitados objetos, não se prendendo somente em instrumentos musicais para sua produção, já que a grande maioria dos objetos comuns também produz sons. Para Garcia (2000) tudo se transforma em música, desde os vidros a objetos que jamais se pensaria em utilizar para ministrar aulas de música ou para compor uma música. Sons podem ser criados, harmonizados e organizados com diversas possibilidades. Voltando à experiência na referida disciplina, dada a proposta estava lançado o desafio: criar uma música a partir de objetos sonoros de nosso cotidiano e assim foi feito. Diversas foram as dificuldades encontradas pelos grupos. A procura por um ritmo que se tornasse válido e pela harmonia dos instrumentos foi cansativa, aborrecendo muita gente que se encontrava a nosso redor, mas, apesar disso, a persistência foi grande, até que fosse possível encontrar uma solução para a proposta que tomava corpo perante as dificuldades encontradas no caminho. Como se tratava do desenvolvimento de uma tarefa voltada a uma disciplina específica, toda a turma desempenhou a tarefa formando grupos. Os grupos criaram sua composição em conjunto e apresentaram ao grande grupo, nos contemplando com apreciações sonoras inusitadas, discussões sobre o processo até chegarem aos resultados, bem como as apresentações de todos os

742

instrumentos, confeccionados ou não pelo grupo. Uma noite de verdadeira contemplação e enriquecimento sonoro. Iniciamos o relato dessa experiência falando sobre a produção sonora da qual a graduanda, autora deste texto, fez parte: se chamou Inquietação e partiu do ponto de vista sobre o incomodo que causou nas demais pessoas que a ouviam enquanto se procurava criar. Todos os momentos em que o grupo havia se tornado motivo de aborrecimento para as outras pessoas foram os fortalecendo e dando corpo ao trabalho. Inquietação foi criada com a intenção de incomodar os ouvintes, de afetar sua escuta e seu ponto de vista sobre os sons produzidos, ou o que se esperava deles, possuindo ritmos e repetições quase que mecanizadas. Essa intenção foi percebida e fomentada no diálogo com a turma, quando a professora da disciplina tocou no ponto chave da produção: as repetições, a mecanização que lembravam os gestos de Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos. Sons que se repetiam, parecendo que iriam mudar, mas não apresentavam avanços e nem retrocessos. Eram sons de copos, com tamanhos diversos, sendo tocados por uma colher de chá que, em velocidades diferentes, proporcionavam sons agudos e alguns graves. Várias pulseiras de metal, em formado de arco, produziam tilintares com batidas a um sifão, além de um chocalho produzido com bolinhas, que ao serem agitadas dentro de um pequeno pote plástico, criavam um som mais suave em meio às tantas batidas que ecoavam pela sala. A experiência de apresentação de Inquietação foi realizadora, pois além de apresentarmos algo que foi pensado, discutido e dificultoso para se realizar, também tivemos a oportunidade de compartilhar das criações de nossos colegas. Ouvindo e apreciando as suas produções percebemos o quanto os sons podem nos proporcionar e nos convidar a imaginar, provocando as mais inusitadas sensações e sentimentos. Situações de nosso cotidiano, que não paramos para perceber, foram nos apresentadas naquele momento e trouxeram grandes revelações, como a produção intitulada A construção, inspirada nos sons produzidos em construções existentes por toda a parte. Dentro de nossa casa, no vizinho, no caminho para o trabalho, quem nunca ouviu sons frenéticos e quase ritmados de martelos, madeiras e furadeiras? Uma mistura de sons de ferramentas invadiu a sala, eram lixas, martelos, serrote, trena e tábuas foram dando forma à produção do grupo e era como se estivéssemos em meio a uma construção que avançava a todo o vapor. Uma verdadeira loucura de sons que nem o próprio grupo encontrava uma ordem para sua segunda apresentação, percebendo apenas que cada instrumento precisava entrar com um ritmo diferente dos demais para que pudesse ser ouvido em sua individualidade. Tudo misturado e ao mesmo tempo, assim foram surgindo novos sons, novos instrumentos, novos ritmos e harmonias. Vivemos num século em que o progresso da ciência transformou as formas de percepção de tempo e espaço, e isso se traduz em arte, e isso se traduz em música. Novas percepções geram a necessidade de novos

743

meios, novos instrumentos, novas ferramentas para gerar novas músicas. (MENDES; CUNHA, 2001, p. 92).

O novo, o inusitado apareceu em algo que nos parecia tão fora do que pudesse ser realmente considerado música, sendo que isso nada mais é do que o reflexo da contemporaneidade. Tudo ao mesmo tempo, se atropelando e se organizando onde até o som do silêncio se tornou estranho para nós. Quando acreditávamos ter se encerrado a apresentação, com uma pausa dentre tantos batuques, logo veio, o que no conceito do grupo era apenas a hora do almoço. Pela primeira vez pudemos perceber “[...] os sons do silêncio. O ritmo. A harmonia. Os sons dissonantes. Sons agudos e sons graves. Sons que se prolongam e sons curtos. Sons fortes e sons quase imperceptíveis. As melodias que cada grupo criava. A alegria de se sentir criando. Os diálogos musicais” (GARCIA, 2000, p.14). A construção rompeu com a formalidade dos instrumentos existentes, que são conhecidos e aproveitados de um mesmo modo obedecendo a verdades definitivas, não explorando as mais variadas possibilidades de se experimentar. Esses colegas buscaram originalidade e novidade no campo da linguagem musical, surpreendendo a turma e disponibilizando espaço para instrumentos informais. Poetas, artistas, cientistas vão se aproximando quando ousam romper com verdades definitivas e aprisionantes e entram no mundo das dúvidas e incertezas, onde se há norma é a diferença, e assim abrindo-se para o novo, seja nas ciências seja nas artes... seja na educação, que é disto que falamos todo o tempo. (GARCIA, 2000, p.16).

E é disso que trata a música contemporânea que aparece causando vários tipos de interpretações, desde o estranhamento até o encantamento. A arte da contemporaneidade não busca agradar e sim despertar, provocar, fazer sentir, onde a mesma produção gera diferentes sensações que devem estar sim presentes na educação, pois [...] cada um de nós forma um arquivo ímpar de estímulos e experiências sonoras. Desde os primeiros momentos de vida, estamos recebendo esses estímulos, experimentando sensações, classificando-as, definindo do que gostamos e do que não gostamos, o que nos fere e o que nos dá prazer. (MENDES; CUNHA, 2001, p. 81).

Essas individualidades é que devemos trabalhar na escola, para que se possam romper confrontos internos e conceitos rígidos que não permitem a flexibilidade nas relações com outros repertórios, outras culturas ou outras pessoas. Devemos tratar sim do que agrada nossos ouvidos, nossos olhos e do que estamos acostumados a encontrar, mas tratar também, e talvez muito mais, daquilo que não agrada, daquilo que consideramos não ser arte ou não ser música.

744

A manifestação dos sons a partir de cada objeto é impressionante e nos revela um universo que estamos envoltos, mas que raramente paramos para escutar. Experimentar e ir construindo aos poucos se tornou algo mágico onde um simples pegador de macarrão, unido a caixas de ovos, sopros, sons produzidos pelo corpo e garrafas se tornaram uma sinfonia incrível e possível de inúmeras interpretações. Os grupos provaram que com cumplicidade, integração e confiança mútua é plausível o desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade para com os tilintares, assovios, batidas e batidinhas das construções sonoras. Nesse contexto, verificamos a complexidade de se criar uma música, a necessidade de tempo e conhecimento sobre as possibilidades que ela nos apresenta para tal produção. Toda a experiência nos surpreendeu muito devido à diversidade de materiais e experimentações com o próprio espaço que estava à disposição. Um dos grupos, por exemplo, explorou o espaço disponível para as apresentações como elemento sonoro fundamental para sua composição. As apresentações aconteceram na sala destinada à disciplina de Linguagem Teatral e Educação, onde o tablado de madeira se tornou peça chave para a produção. Uma verdadeira performance sonora tomou corpo em nossa frente, quando nos foi permitido a visão. O envolvimento do corpo, de um compasso a ser seguido, tornou o grupo mais confiante e a composição linda de se observar, além de se escutar. Foi perceptível o uso de “[...] movimentos corporais para demonstração da percepção e compreensão do ritmo. Apesar da forte ênfase rítmica, os aspectos melódico, harmônico e formal da música também são objeto de representação mediante movimentos corporais” (MENDES; CUNHA, 2001, p. 88-89). A produção causou a sensação, tanto visual como sonora, de algo que se volta para as rodas de capoeira, para o período feudal com escravos cantando e dançando ao som de suas composições. A experiência na disciplina possibilitou ainda uma ênfase ao visual e ao sonoro já que as apresentações tiveram dois grandes momentos. Como elas ocorreram em uma sala destinada a atividades com o teatro, encontrava-se nela um palco e nele a existência de cortinas. As apresentações dos grupos foram realizadas no palco e a presença de cortinas nos oportunizou dois tipos de apreciações: a primeira ouvindo somente os sons das composições, com as cortinas completamente fechadas e as luzes apagadas. Já na segunda as cortinas se encontravam abertas, para que visualizássemos todo o processo de execução das produções. Essa criação imaginária, este fruir à música somente se tornou completo, pois foram apresentadas as produções dessas duas formas. Os dois momentos se tornaram completamente diferentes quanto às percepções, sendo que toda a turma preferiu ter apreciado, sonoramente, as produções sem poder visualizar seu desenrolar. Argumentaram que, sem visualizar a execução das produções, puderam caminhar com maior liberdade por um mundo que não fosse o que se apresentava, a imaginar – para além dos sons – uma situação, um fato,

745

algo que ocorria no exato momento em que a música tomava corpo. Planos de fundos foram criados na imaginação de todos e foi um momento incrível de apreciação. Nessa direção, retomamos o fato já relatado anteriormente sobre como escutamos muito pouco do que ouvimos. Colocando-nos à disposição total da escuta, com as cortinas fechadas pudemos entrar em um mundo só nosso e ir para além do que o olhar possa nos mostrar. É a partir daí que nos tornamos capazes de perceber a sutil diferença entre ouvir e escutar. Ouvindo mostramos que somos capazes de captar a presença de determinado som, mas escutando depositamos toda a nossa atenção sobre o que ouvimos (QUEIROZ, 2000). Quando escutamos nossa atenção volta-se ao fato de ouvirmos, por esse motivo podemos dizer que, durante as cortinas fechadas, realmente fomos capazes de escutar o que se passava. O que não aconteceu quando as cortinas voltaram a se abrir, pois nossa atenção não estava mais somente nos sons e sim em tudo que estava acontecendo ali, em quais os objetos utilizados e no modo como eram utilizados. Era como se toda aquela magia da composição tivesse perdido o sentido e se tornado apenas uma mera tarefa sendo executada. A atenção que depositamos naquela experiência com os sons foi o que mudou todo o contexto do que acontecia, a “[...] atenção, que pode ser de muitos tipos [...] tem o sentido básico de registrar o impacto sonoro que chega aos nossos órgãos sensoriais, seja ele voz, ruído ou som.” (QUEIROZ, 2000, p. 31). Pela atenção depositada registramos os sons e interpretamos situações que se diferenciaram devido às vivências e o repertório de cada um. Quanto aos materiais utilizados, a diversidade prevaleceu e tudo nos surpreendeu. Garrafas, sopros, tábuas, furadeiras, martelos, pulseiras, latas, moedas, copos, enfim, as possibilidades foram muitas e se mostraram viáveis com esta experiência, onde foi perceptível que não existe uma restrição para se criar música, tudo pode se transformar nela, desde os sons dos vidros, até os sons da natureza, dos animais, da fala, do silêncio... Todos os sons, organizados ou não, se tornam possibilidades que podem nos emocionar, fazer com que viajamos a lugares que surgem em nossa mente no exato momento que ouvimos. Nesse encontro, foi o que aconteceu, deixando clara a percepção de que não é preciso ser um músico para fazer música, comprovando que “[...] “o talento musical” não é exclusivamente de uns poucos felizardos, ele pode ser provocado, desenvolvido e educado” (MENDES; CUNHA, 2001, p. 82). Basta que o professor saiba instigar seus alunos para que esses compreendam a dimensão de possibilidades que existem para criar também com os sons. Cabe aos professores ainda, oferecer a oportunidade de conhecer e compartilhar de outras culturas, diferentes repertórios e instrumentos, afinal é preciso que exista a apreciação estética daquilo que também não é comum em nosso meio e deixar os alunos somente com as possibilidades musicais do momento – principalmente as veiculadas pelas mídias – é o mesmo que

746

abandoná-los (MENDES; CUNHA, 2001). Não vamos buscar em sala de aula a formação de músicos e sim criar alternativas para que a musicalidade se desenvolva em cada um, explorando as diversas possibilidades que essa nos oferece, como o fazer, o criar, a escuta, a percepção. Nós, professores de arte, somos capazes de oportunizar essas atividades, pois, já trabalhamos com a percepção humana dentro das artes plásticas e visuais e podemos sim trabalhar também esses aspectos dentro da música, visto que ela nada mais é do que um dos vários meios de expressão do ser humano, assim como muitas outras linguagens artísticas. No entanto, segundo Mendes e Cunha (2001, p. 97), “apenas uma formação contínua, tanto tecnológica quanto musical, fará com que caminhemos rumo a uma educação musical coerente com a criação contemporânea”. É preciso a atualização do professor, a busca por compreensão da realidade do momento, para que o ensino da música possa ser algo atual e realmente colaborador para a formação do sujeito que se apresenta hoje na sociedade e dentro das salas de aula. Apresentar a teoria musical não fará com que estes alunos compreendam a realidade que se impõe a sua volta, “[...] a teoria, diga o que disser da realidade, ‘não é a realidade’, pois toda teoria é uma abstração a partir do todo, o que a faz, em certo sentido, uma ilusão” (GARCIA, 2000, p. 15). É preciso existir uma ligação entre teoria musical, conteúdo de música, possibilidades, experimentação, criação e realidade; somente quando esses e outros mais aspectos estiverem bem delimitados para o professor de Artes, será possível ensinar e aprender música na escola. Como professores de arte, devemos estar capacitados para desenvolver essa linguagem artística com êxito junto a nossos alunos, pois temos todo um preparo para isso e trabalhamos com o conhecimento do sensível a todo o momento. A música não foge desse sensível, ela desperta e expressa sentimentos e emoções, assim como a arte também o faz, mesmo que esses sentimentos e emoções não sejam necessariamente considerados prazerosos ou agradáveis. “Trata-se da experiência do prazer ou mesmo do desprazer, das percepções dos sentidos, da sensualidade e da sensibilidade” (OLIVEIRA, 2006 apud WIGGERS, 2012, p. 22). Nem tudo que escutamos em música nos agrada, assim como nem tudo que observamos nas artes visuais também. Mas é preciso aprender a lidar com isso, precisamos deixar que a música e as outras linguagens da arte nos levem a algum lugar, situação ou meio para que possamos as compreender. Tornaremosnos capazes de compreender a arte no momento em que ela nos fizer sentir, sentindo é que compartilhamos e aprofundamos o conhecimento do sensível. Segundo Garcia (2000, p. 10), “[...] não se trata de analisar a obra, de interpretála ou de estudá-la, mas, ao contrário, de se ‘deixar analisar por ela’. E só assim se atingirá a esta forma de conhecimento que só a arte pode produzir – ‘um conhecimento do inconsciente e não sobre o inconsciente’.”

747

É preciso permitir que nossas percepções nos guiem no campo da arte, percepções que virão a se relacionar com tudo a nossa volta, com lembranças, situações cotidianas e sentimentos. Para Wiggers (2012, p. 23), “a experiência através dos sentidos, talvez seja o modo mais viável para tratar de apreciar obras de arte no mundo contemporâneo”. E é isso que devemos procurar levar para dentro da sala de aula, o conhecimento sobre as percepções de nossos alunos, fazendo-os compreender que não existe o certo e o errado na arte, mas que tudo se transforma em meio a trocas, experiências e percepções. Além disso, ao trabalharmos com crianças, adolescentes e jovens, devemos pensar não em formar músicos ou cantores e sim possibilitar-lhes uma formação musical para o exercício da cidadania, fornecendo-lhes ainda, meios para que possam progredir seus estudos posteriormente no âmbito da música, se assim decidirem.2 Torna-se essencial promover conhecimentos e habilidades da linguagem musical para que possamos abranger a música enquanto expressão humana e para que tenhamos a oportunidade de nos expressar musicalmente, compreendendo os códigos específicos dessa linguagem. Também é importante que favoreçamos o acesso e a vivência da música como expressão cultural e artística de outras sociedades e culturas, com outros significados, outras características e valores de mundo. Na educação básica, por meio do ensino da arte, é possível compreender e lidar com o universo sonoro, participando criticamente da seleção, prática e valoração das músicas de nosso entorno, proporcionando ainda o desenvolvimento corporal e a percepção de elementos fundamentais que caracterizam a música de diversas maneiras. Assim as práticas serão sempre alimentadas com dinamismo e exploração, pois “muito se tem a ganhar com o desenvolvimento da capacidade musical de cada um. E esse ganho é algo constante para professores e alunos, pois sempre há uma nova forma de ver algo já conhecido e de penetrar em algum território ainda desconhecido” (MENDES; CUNHA, 2001, p. 84). Existirá sempre algo a mais para se conhecer, compartilhar e descobrir, ninguém conhece tudo e nem levará a mesma opinião para o resto de sua vida, pois toda e qualquer interpretação é passível de aprofundamento (WIGGERS, 2012). Ideias, opiniões e percepções mudam a todo o momento, basta ampliarmos nossa percepção para além do que nos marca e do que se torna cômodo para nós. Dentro disso, uma coisa é certa, aos poucos nos tornamos capazes de desenvolver formas próprias de fruição, de apreciação e até de seleção dos objetos de fruição que nos rodeiam.

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Música na escola: dimensões políticas, teóricas e práticas a partir da Lei 11.769/08. Disponível em http://xa.yimg.com/kq/groups/17830357/315713760/name/M%C3%BAsica+na+escola.pdf 2

748

REFERÊNCIAS BAUMER, Édina Regina. A música no ensino da arte: relações entre linguagens ou interdisciplinaridade? In: IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP. Tubarão – SC, 2012. Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão. Anais... Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012. p. 1 – 10. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. _______. Parâmetros curriculares nacionais : arte /Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC /SEF, 1998. Disponível em: www.fefisa.com.br/pdf/pcn/5a8_vol07_artes.pdf . Acessado em 7/6/2009. CANTON, Katia. Narrativas enviesadas. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 57 p. CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. Trad. Rejane Janowitzer – São Paulo:Martins, 2005.177p. GARCIA, Regina Leite (org.). Múltiplas linguagens na escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. 107 p. PILLOTTO, Sílvia Sell Duarte. MOGNOL, Leticia T. Coneglian. Currículo em Artes Visuais: Proposições Teórico-metodológicas para os cursos de Formação. In: PILLOTTO, Sílvia Sell Duarte (org.). Processos curriculares em arte: da universidade ao ensino básico. Joinville: Univille, 2005. RICHTER, Ivone Mendes. Arte e interculturalidade: possibilidades na educação contemporânea. In: BARBOSA, Ana Mae; AMARAL, Lilian (orgs). Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições SESC SP, 2008. 235 p. SANTOS, Regina Marcia Simão. Educação musical, educação artística, arteeducação e música na escola básica no Brasil: trajetórias de pensamento e prática. In: SANTOS, Regina Marcia Simão (org.). Música, cultura e educação: os múltiplos espaços de educação musical. Porto Alegre, Sulina, 2011. 278 p. MENDES, Adriana; CUNHA, Glória. Um universo sonoro nos envolve. In: FERREIRA, Sueli. O ensino das artes: construindo caminhos. 3. ed Campinas, SP: Papirus, 2001. p. 79 -114. OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho e. Relações entre “linguagens”. In: MAKOWIECKY, Sandra; OLIVEIRA, Sandra R. e. Ensaios em torno da arte. Chapecó, Argos, 2008. p. 75 – 97. PERISSÉ, Gabriel. Estética & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. 98 p.

749

QUEIROZ, Gregório J. Pereira de. A música compõe o Homem, o Homem compõe a música. São Paulo: Cultrix, 2000. 183 p. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Música na escola: dimensões políticas, teóricas e práticas a partir da Lei 11.769/08. Disponível em http://xa.yimg.com/kq/groups/17830357/315713760/name/M%C3%BAsica+na+esc ola.pdf VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores; apresentação e comentários Ana Luiza Smolka: tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. 135 p. WIGGERS, Halbertina Roecker. Conceitos e preconceitos na perspectiva da arte contemporânea. 2012. 70f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Artes Visuais – Bacharelado) – Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma.

750

A TEORIA DA FORMATIVIDADE VOLTADA PARA O PROCESSO INVENTIVO EM SALA DE AULA POR UMA ESTÉTICA DO FAZER Sara Cecília Cesca [email protected] Universidade Estadual de Campinas Jorge Luiz Schroeder [email protected] Universidade Estadual de Campinas Resumo: Fundamentado a partir da teoria estética do filósofo Luigi Pareyson, este trabalho se apropriará de sua proposta para refletir sobre o processo formativo da arte no contexto escolar. De maneira concisa, lançaremos um olhar para a obra de arte em seu estágio inventivo com o intuito de investigarmos os problemas de ordem filosóficos presentes na produção escolar. Uma vez desvelados os aspectos constitutivos desta estética formativa, a luz do pensamento pareysoniano discorreremos sobre a importância de conscientizar nossos alunos tanto para os problemas da arte - enquanto estágio formante -, como também para o campo mais amplo da educação (vida) como um todo. Palavras-chave: Estética. Teoria da formatividade. Educação Musical.

ESTÉTICA E FORMATIVIDADE: UMA BREVE APRESENTAÇÃO DOS CONCEITOS. Elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, a teoria da formatividade resulta de uma pesquisa ampla e profunda voltada para o processo inventivo da obra arte. Com ênfase na contemplação de todos os problemas filosóficos que permeiam a obra em seu estado formativo, o autor Pareyson desloca o conceito de estética, até então responsável por estudar os fenômenos do belo1 na arte, para desvelar a beleza da obra de arte enquanto matéria formante. Nas palavras do próprio autor, “era mais que tempo, na arte, de pôr ênfase no fazer mais que simplesmente contemplar”. (PAREYSON, 1993, p. 9)

No período clássico a disciplina estética designou entre vários autores uma reflexão analítica da experiência sensível e revelativa do gosto; neste mesmo contexto histórico, houve entre os alemães uma tendência a compreender a estética não só como teoria da belo, mas também difundir uma teoria geral da arte. Ao expandir o termo ampliando suas atribuições, no final do século XVIII a estética passou a ser compreendida como filosofia da arte, e o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi o principal responsável por aprofundar esta abordagem. Assim sendo, é no romantismo alemão que a estética enquanto disciplina filosófica ganhará forças para analisar a arte (e a música em suas especificidades) como um objeto de reflexão cujo aprofundamento pudesse levantar problemas filosóficos de primeira ordem. 1

751

A partir desta abordagem estética, apresentaremos como educadores em música uma proposta atenta e consciente destinada à produção artística em sala de aula, isto é, a produção dos nossos próprios alunos. A experiência estética vivenciada por Luigi Pareyson juntamente com artistas em pleno ato criativo, foi decisiva para o autor refletir sobre o itinerário deste fazer inventivo que se reinventa enquanto faz. Para o filósofo a estética pressupõe, a priori, uma experiência com a arte. Com base na experiência que funda e verifica a prática do pensamento dos filósofos acerca de diversos assuntos, o conceito de estética será compreendido por Pareyson como um instrumento investigativo e especulativo da obra de arte. Segundo o autor, tanto a experiência filosófica como a experiência estética pressupõe como condição o ato experiencial. Em suas palavras, A filosofia como tal tem um caráter ao mesmo tempo concreto e especulativo: suas afirmações só têm valor quando são o resultado de uma reflexão sobre a experiência e somente se, quando nascidas precisamente no contato com a experiência, conseguem fornecer esquemas para interpretá-la e critérios para avaliá-la. Filosofia e experiência estão inseparavelmente ligadas, e o círculo que entre ambas se estabelece não é vicioso, mas extremamente fecundo, e condição essencial para a validade do pensamento filosófico. (PAREYSON, 1993, p.10)

Essa abordagem de Pareyson pode ser ainda associada ao exame filosófico que Martin Heidegger propõe, especialmente em A Origem da Obra de Arte (2005). Neste exame, Heidegger propõe uma filosofia onde o pensamento sobre a arte e suas obras, independentemente da possibilidade de encontrarmos nelas uma essência, deve ter como pressuposto fundamental a experiência de deixar a obra em seu "puro-estar-em-si-mesma". A partir desta concepção o autor dedicou seu pensamento à obra enquanto processo inventivo, caracterizando-a em sua completude formante e formada. Pareyson soube colher e perscrutar o espírito aventureiro do fazer inventivo e realizativo presente no trabalho dos artistas. Em seu tratado a Teoria della formatività, o autor distingue a obra de arte em duas categorias: a obra de arte enquanto matéria formada (quando acabada) e matéria formante (enquanto processo formativo). Podemos compreender estes dois estágios da obra de arte como campo da criação e da recepção, e ao destacar as nuances e problemas do aventureiro itinerário da produção artística, o autor ressalta que em ambos os estágios a obra se constituirá em permanente “formação”, ora entre o diálogo autor e obra, ora entre o diálogo obra e receptor. A obra de arte em seu estágio formante pressupõe todo o processo de realização e invenção pelo qual vive a obra; o mundo do autor se desvela na obra que constrói, porém a própria matéria (escolhida pelo autor) possui leis que a regem internamente proporcionando caminhos diferentes que fogem ao controle

752

do autor, assim sendo, para compreender a obra de arte em sua totalidade formante é fundamental que tenhamos ciência do aspecto inventivo, ou seja, “ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”. (PAREYSON, 2001, p. 25) A obra de arte em seu estágio enquanto matéria formada, diz respeito à obra em sua completude acabada. A partir deste estágio a obra pertencerá ao campo das interpretações, suscetível às mais variadas leituras. O campo da relação entre obra e receptor. Ao compreendermos a estética enquanto fruto de uma experiência artística, poderemos então afirmar, como educadores, que nossas aulas de música são verdadeiros laboratórios geradores de estética, tanto da obra em seu estágio formante como formada. Na maioria das vezes, as obras que compõem o cenário das salas de aula, são criações dos próprios alunos. Levando em consideração as práticas de ensino que valorizam as atividades de composição, interpretação, apreciação, entre outras, poderíamos então concebê-los (alunos) como verdadeiros compositores, intérpretes, estetas ou críticos? Se a estética é filosofia da arte, será que nós a exercitamos em sala de aula? No próximo sub-capítulo deste artigo Por uma estética na educação musical retomaremos estas questões. Baseado nos estudos pareysonianos que elegemos como guia para a nossa reflexão acerca do ensino musical, o caráter filosófico que sustenta o conceito é uma espécie de último desdobramento das tendências surgidas na primeira metade do século XX2. Oriundo de concepções que compreendem a estética enquanto investigação dos problemas filosóficos da arte, Luigi Pareyson buscará delimitações para o termo, afirmando que, A estética é e não pode deixar de ser filosofia; melhor, só pode salvar-se na sua autonomia – sem reduzir-se a crítica, ou a poética, ou a técnica – sob condição de apresentar-se como indagação puramente filosófica, isto é, como reflexão que se constrói sobre a experiência estética e, por isso, não se confunde com ela. (PAREYSON, 2001, p. 4)

Em suma, segundo o referido autor, a estética é compreendida como uma teoria especulativa designada para desvelar as singularidades da obra de arte e sua teoria da formatividade uma estética voltada para o fazer. Podemos deduzir de seu pensamento, que o caráter não normativo da abordagem estética possibilita um encontro sem barreiras entre obra e apreciador, como também entre autor e obra. Nestes encontros a estética "tem a incumbência de dar conta do significado, da estrutura, da possibilidade e do alcance metafísico dos fenômenos que se apresentam na experiência estética". (PAREYSON, 2001, p.4) Uma hermenêutica dos problemas mais gerais da Arte e das obras de Arte, que enredam numa ontologia cujas especificidades são delimitadas pela busca da origem e da essência na Arte. Tais aspectos foram desdobrados principalmente a partir do pensamento de Heidegger e Gadamer, culminando com as distinções conceituas mais específicas de Pareyson. 2

753

Podemos compreendê-la como um ramo da filosofia, ou mesmo a própria filosofia. Quando nos dispomos, por exemplo, a reconhecer numa produção artística aspectos técnicos, históricos ou estruturais, segundo Pareyson, adentramos no campo da poética, ou seja, delimitamos nossa experiência no que diz respeito às ferramentas do autor, da crítica ou do historiador3. Assim sendo, a estética e a poética diferenciam-se na abordagem pareysoniana, sendo a estética caracterizada por sua essência reflexiva, experimental e contemplativa da obra, contrária à poética, que legisla preceptiva e sistematicamente em relação à mesma. Após esta breve explicação que remonta à origem teórica da nossa abordagem, seguiremos expondo nossas reflexões, direcionando-as para a educação musical. POR UMA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO MUSICAL. A educação estética pressupõe uma experiência artística pautada num diálogo especulativo com a arte de maneira geral. Antes de adentrarmos os aspectos constitutivos da obra enquanto processo inventivo no contexto escolar conforme discorremos nos parágrafos anteriores, apresentaremos de maneira geral, o modo como compreendemos uma educação musical estética. Contemplar o belo em arte proporciona admiração e atrai olhares, porém a atitude filosófica transcende o mundo das meras coisas (cf. A origem da obra de arte do filósofo Martin Heiddeger) de maneira que o diálogo, a observação e a reflexão em torno da obra de arte aprimoram e elevam as indagações do ser humano para além da arte, isto é, para a o desconhecido da vida como um todo. De acordo com o pesquisador Gabriel Perissé, “a postura filosófica nos incita a perguntar de novo e sempre, quantas vezes for preciso, em que, afinal, consiste a beleza. Atitude que nos ajuda a descobrir novas belezas, a desenvolver, ampliar e aperfeiçoar nossa visão estética”. (PERISSÉ, 2009, p.26) Numa aula de apreciação musical, por exemplo, poderíamos selecionar algumas obras musicais do gênero canção e convidar nossos alunos para refletir sobre a beleza de algumas canções interpretadas, como por exemplo, por João Gilberto, Cego Oliveira, Take 6, Canções sinfônicas de Mahler, Milton Nascimento, Dorival Caimmi ou Elomar; para tanto, a experiência estética na qual reside a nossa abordagem, consiste num ensino que possa saber questionar a obra, saber perscrutá-la, saber ouvi-la; sua aplicabilidade pressupõe em alfabetizar aquele que aprecia tanto para a sonoridade rústica da rabeca do intérprete Cego Oliveira, como para o violão orquestral do intérprete e compositor Elomar Figueira de Mello, “fazendo-nos O pensamento filosófico de Pareyson é especialmente fecundo no que diz respeito à possibilidade e utilidade de distinções conceituais mais profundas. É o caso de sua abordagem sobre a arte, onde poética (que pode ser compreendida dentro da concepção aristotélica da poiésis/ποιεσισ) se distingue de estética. 3

754

pensar o quanto de contemporâneo há no que é clássico, e de clássico no que é contemporâneo”. (PERISSÉ, 2009, p.29) Um ensino musical conduzido pela estética no sentido filosófico é aquele que, primeiramente, tem à frente um professor consciente dos problemas da arte, reflexivo e atento à construção do processo artístico dos seus alunos. Poderíamos ser interpelados no seguinte sentido: Quais são os problemas que envolvem a obra de arte e quais seriam as contribuições do conhecimento destes problemas para vida do aluno? Pois bem, em primeiro lugar, as dificuldades pelo qual passa o autor tentando, corrigindo e refazendo a obra é uma experiência presente em qualquer atividade humana; o diálogo com a matéria (neste caso o material musical) no sentido de respeitar seus limites; a perseverança no longo processo que consiste a criação do insight até a obra terminada; a obra acabada e os problemas que envolvem a fidelidade ou liberdade da execução são alguns problemas levantados pela estética pareysoninana e que podem ser trabalhados de maneira reflexiva entre os alunos. Assim sendo, cientes destes desdobramentos que perpassam o fazer artístico, consideramos nossos alunos como legítimos compositores, intérpretes, estetas e apreciadores, pois verificamos que embora suas invenções, interpretações ou apreciações muitas vezes pareçam ingênuas ou sem valor artístico, baseados na teoria da formatividade constatamos que no fazer ou no pensar ainda incipiente dos nossos alunos, o processo inventivo que orienta um adulto é o mesmo que as orientam. De acordo com Pareyson, a formatividade está presente em toda operosidade humana, e para afirmar este pensamento destacaremos um trecho da obra Imaginação e criação na infância do autor Vigotski: Da mesma forma, a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação musical, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo e inventores desconhecidos. (VIGOTSKI, 2009, p.15)

A relação que permite o diálogo e a reflexão entre aluno, processo criativo e obra “formada” (seja ela de outro autor ou sua própria criação), estimula não só a criação do ser humano, mas sua conduta e aprimoramento para a o desconhecido da vida como um todo. Nas palavras do pesquisador Gabriel Perissé sobre estética e educação, a atitude filosófica (...) reflete sobre a beleza, faz nos pensar detidamente sobre ela, (descobrindo novas nuances de beleza, descobrindo que há beleza até mesmo em realidades não tão belas...) faz-nos distinguir suas qualidades, problematizá-la, levantar hipóteses a respeito de sua

755

apreensão, faz-nos desejar produzir outras belas em resposta àquele estímulo. (PERISSÉ, 2009, p. 25)

O fazer musical pressupõe o pensar sobre a obra, assim sendo, pensamos que o pensar também consiste no fazer da obra. O primeiro passo nesta caminhada reside na conscientização de que a imposição das nossas "respostas corretas" e a concepção informativa de ensino impede que nossos alunos pensem e descubram por meio de seus próprios caminhos. A experiência estética "se devidamente questionada, há de mostrar, ela mesma, e destacar no seu imenso âmbito os aspectos ou as regiões que têm um caráter estético ou artístico" (PAREYSON, 2001, p. 20). Alcançaremos alunos reflexivos, criativos e criticamente autônomos tanto para a arte como para a vida através de perguntas e não de respostas prontas e para que isto aconteça, é preciso que professores e alunos tenham coragem de saírem de suas “zonas de conforto” mergulhando na experiência sem medo do diferente4. Qualquer atividade musical pode ser passível de uma abordagem estética. Uma aula de instrumento, que requer instruções técnico-operacionais para o manuseio do mesmo, pode ser também guiada por um pensamento filosófico5. De acordo com Pareyson, "seja qual for a atividade que se pense em exercer, sempre se trata de colocar problemas, constituindo-os originalmente dos dados informes da experiência, e de encontrar, descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas". (PAREYSON, 1993, p. 21) A ESTÉTICA ENQUANTO FERRAMENTA PARA UM ENSINO DO FUTURO. (...) o ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas. Aprender a formulá-las é essencial. Na lição de Saramago, 'tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas'. (GERALDI, 2010, p. 95)

A partir da afirmação do autor acima citado, pensamos que um ensino pautado em perguntas possa contribuir para o futuro dos nossos alunos em várias categorias do conhecimento, não esperamos resultados que os qualifiquem como excelentes músico ou críticos de arte, mas como humanos criativos para a vida; na citação abaixo podemos confirmar através das palavras do cientista e pesquisador Marcelo Gleiser, as contribuições de um pensamento especulativo: Isso pressupõe a possibilidade da inserção das manifestações musicais de qualquer cultura sem levar em consideração os preconceitos em relação as identidades nacionais. Abre a possibilidade das abordagens sobre a música contemporânea erudita ocidental, freqüentemente despreza pelos educadores. 5 Sobre exemplos de construção e formatação de aulas (de instrumento, apreciação musical, história da música) pautadas pela proposta de uso da estética, dentro da concepção que aqui estamos propondo, conferir um outro artigo de nossa autoria, chamado Era um rabisco e pulsava (publicado nos anais de 2011 da ABEM ) 4

756

A ciência vai muito além da sua mera prática. Por trás das fórmulas complicadas, das tabelas de dados experimentais e da linguagem técnica, encontra-se uma pessoa tentando transcender as barreiras imediatas da vida diária, guiada por um insaciável desejo de adquirir um nível mais profundo de conhecimento e de realização própria. Sob esse prisma, o processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo nas artes, isto é, um veículo de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no Universo. (GLEISER, 1997, p. 17)

As propostas educativas que prezam por uma aprendizagem humana e criativa, que valorizam e respeitam o processo construtivo dos alunos, são concepções de ensino que favorecem o diálogo e a aceitação. Nestes ambientes escolares em que a prática reflexiva tem valor podemos afirmar que são espaços em que há lugar para uma educação estética. Diariamente, nós professores de música, lidamos com a arte e seus desdobramentos em sala de aula. Autores de diferentes estilos e épocas e autores como nossos próprios alunos, compõem o conteúdo geral do trabalho; é por esta razão que apropriamo-nos da estética pareysoniana para que pudéssemos capacitar nossos alunos a pensar sobre arte, e também sobre suas próprias produções artísticas. Nossa preocupação é a de instrumentalizar nossos alunos para o saber musical através dos problemas da estética e da arte. De acordo com Pareyson, A estética é constituída deste dúplice recâmbio ao caráter especulativo da reflexão filosófica e ao seu vital e vivificante contato com a experiência: não é estética aquela reflexão que, não alimentada pela experiência de arte e do belo, cai na abstração estéril, nem aquela experiência de arte ou beleza que, não elaborada sobre um plano decididamente especulativo, permanece simples descrição. (PAREYSON, 2001, p. 8)

É importante que o professor atento aos problemas da arte atue como um mediador propositalmente especulativo, isto é, levantando questões que possam aguçar e direcionar o aprendizado de maneira filosófica, porém sem "conceitualizar" ou induzir o aluno com questões históricas ou sociais dadas a priori. Acreditamos na capacidade de imaginação e fruição do aluno, no entanto, devemos ter consideração e respeito ao seu pouco tempo de experiência vivida, o que resulta numa habilidade filosófica em estágio embrionário. Assim sendo, quando é apresentado ao aluno um determinado repertório para ser apreciado ou executado durante a aula, acreditamos que neste primeiro contato com o novo, é preciso que o professor tenha cuidado para que suas reflexões pré-concebidas não vençam como regras absolutas que possam contaminar o momento contemplativo do aluno. Acreditamos na constituição do desenvolvimento humano mediado pelas relações sociais e experiências coletivas

757

e, para tanto, defendemos que o professor reflexivo, ou seja, o professor que conduz seu trabalho pelo viés da estética deve conduzir seu trabalho com bases especulativas, isto é, com indagações, dúvidas e perguntas, pois “a arte educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa audição, agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência”. (PERISSÉ, 2009: 36) Por meio do questionamento o professor é capaz de gerar entre o aluno e o objeto de estudo (a obra de arte) experiências substanciais e fecundas, suscitando um espírito crítico, especulativo e criativo, de modo que possa transcender conhecimentos cultuados pelo senso comum. Em se tratando de educação musical, compreendemos que a estética é uma das chaves da qual precisamos para adentrar nos problemas da arte e transcender seus limites. Nas palavras de Vigotski, "quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material está disponível para a imaginação dela". (VIGOTSKI, 2009, p. 22). Assim sendo, podemos conduzir nossos alunos através de vivências filosóficas, desenvolvendo um espírito especulativo e imaginativo para a vida. Segundo Perissé, A experiência estética (todo o estudo pode converter-se em experiência de beleza) torna-nos mais confiantes no poder criativo do ser humano, em nossa capacidade para admirar belezas, ansiar verdades, realizar coisas boas. E, pensando bem, até mesmo reconhecer o que há de perverso na vida humana (perversão é a pior versão) desperta nosso desejo de perfeição, outro “impossível necessário”. (PERISSÉ, 2009, p. 94)

CONCLUSÃO Assim sendo, podemos pensar uma possibilidade de educar mais abrangente quando usamos a estética e a formatividade para acompanhar o trabalho artístico em sala de aula. Pensadas dentro da concepção que buscamos lançar mão neste artigo - a filosofia pareysoniana - que tão profundamente relaciona a arte entre as mais eminentes propriedades da produção humana, vemos que o que seria aparentemente um mero exercício de abstração pode se tornar num verdadeiro modus operandi, que busca, a partir de qualquer conteúdo, a qualidade e a fecundidade no processo educacional. Se a obra de arte é fundamental para exercício dos filósofos, então poderíamos dizer que ela também se presta ao serviço especulativo dos alunos e de todos nós professores de arte.

REFERÊNCIAS: GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João Editores 2010.

758

GLEISER, Marcelo. A dança do universo. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 2007. HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 2005 (Biblioteca de filosofia contemporânea). PAREYSON, Luigi. Estética Teoria da formatividade. Petrópoles, RJ: Vozes, 1993 [1954]. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1966]. PERISSÉ, Gabriel. Estética e Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. VIGOTSKI, Lev. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Tradução Zola Prestes. São Paulo: Ática, 2009.

759

CAPOEIRA ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA Fernando Campiol Placedino [email protected] Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS Para o meu Corpo bailarino que sempre faz bailar os mais recônditos rincões do meu ser. (Mwewa, Muleka)

Resumo: O trabalho discute, numa abordagem pedagógico-filosófica, a Capoeira Escolar como possibilidade de contribuir para uma educação ético-estética. Nessa perspectiva, a Capoeira sendo compreendida como arte popular que possui a sua historicidade e culturalidade, bem como sua potencialidade como experiência estética, constituída de múltiplas estratégias, encontra no corpo perceptivo, aquele que religa em complementaridade não apenas singularidades de “natureza capoeirística”. Mas sensações que podem provocar a compreensão e a manifestação no que diz respeito a concepções e posturas pertinentes à efetivação de princípios éticos, como o respeito à pluralidade e a alteridade. Tais entrelaçamentos entre saberes, percepções e aspectos da moralidade acabam contribuindo para acentuar a importante relação entre educação, estética e ética, que ainda permanece bastante deslocada das discussões pedagógicas na escola. Palavras-chave: Capoeira Escolar. Experiência estética. Educação ético-estética.

O momento que se encontra a educação escolar no Brasil revela-se em um estado alarmante. Após concepções de ensino mecânico, autoritário e de meras reproduções de informações em fragmentos desconexos se abriu às ideias de liberalização exacerbada, acríticas e a desorientação tornou-se uma constante, abdicando-se até mesmo das mínimas referências que existiam, assim como os conhecimentos passaram a ser instantaneamente descartáveis devido suas superficialidades. Além disso, professores e alunos que antes se estabeleciam submissos a um contexto rígido e individualista, agora se desenvolvem em fugacidade e indiferentes tanto com os outros quanto consigo mesmos. Afinal, também são membros de uma sociedade que vem tendo o “nexo dinheiro” (BAUMAN, 2001) como o principal motivador (e muitas vezes o único) para uma vida consumista, fazendo com que a preocupação não esteja na arte de viver 1, O entendimento a respeito da arte de viver embasa-se nos estudos de Hermann (2008, p. 19), afirmando “que a arte de viver tem uma dimensão estética em que a própria obra da vida deve ter a arte como modelo, por meio da criação de diferentes estratégias (desde as interativas até as literárias), articuladas com princípios universais, que refletem nossas lealdades irrenunciáveis com o mundo. [...] Portanto, que a arte de viver, com seu apelo às condições concretas da vida e aos sentimentos, não exclui o reconhecimento de uma normatividade que ultrapassa as regras criadas pelo próprio sujeito, ou seja, universalidade e particularidade não se excluem”. 1

760

mas meramente em sobreviver. Ainda que se saiba da finitude da vida humana é extremamente reducionista conceber ao homem a limitada ideia de um “ser-paraa-morte”, conforme mencionado por Sartre (apud CANTO-SPERBER, 2005, p. 205). Mediante isso é pertinente ampliar o horizonte, fazendo com que se compreenda como um ser de escolhas e responsável pelas suas decisões, buscando tecer sentidos de maneira coerente para construir sua trajetória de vida com significância. Sendo assim, nesse cenário de mudanças distorcidas que Bauman (2001) vem auxiliando a desvelar em seus estudos sobre “sociedade líquida” verifica-se que o “derretimento” de conceitos e concepções é o panorama vigente. Logo, torna-se importante atentar-se para a análise crítica desse tempo e espaço, compreender o movimento volátil que vem ocorrendo e propor alternativas ressignificantes no âmbito aqui em discussão, as escolas brasileiras. Afinal, como afirmou Sócrates (apud CANTO-SPERBER, 2005, p. 220), “uma vida sem exame não é uma vida realmente vivida”. Simplesmente permanecer com a “cultura do queixume”, apontando as deficiências, dificuldades e desperdícios que acontecem na educação, situada numa postura de plateia apática frente a um espetáculo caótico, em nada contribui para transformações das estruturas paradigmáticas nas escolas. Além disso, adotar uma atitude descompromissada de terceirizar ou generalizar a responsabilidade pelos problemas existentes, colocando-os em impessoalidades, apenas reforça a postura enquanto conformista do status quo. Com isso, observase que essas reflexões não são convidativas para outros horizontes possíveis, mas acabam ancorando as possibilidades em imutabilidades. Não se trata nessa discussão de apresentar “fórmulas mágicas” para o pleno sucesso educacional ou querer atingir a sua perfeição, até porque se compreende que os próprios agentes articuladores das escolas, os seres humanos, revelam-se como inacabados, aprendentes e em constante processo de desenvolvimento. O convite está em reconhecer as suas fragilidades e buscar parcerias, qualificações e propostas alternativas, assumindo comprometimentos perante os desafios do desenvolvimento de uma educação harmoniosa, cujos discursos sejam coerentes com os manifestos e vice-versa. Destaca-se que para isso também não é necessário criar projetos escolares mirabolantes, promover aulas exclusivamente performáticas, com diversos recursos tecnológicos, abandonando muitas vezes o ensino consistente dos conteúdos. Porém, que a comunidade escolar em cada pequena ação diária caminhe ao encontro de contextualizações, religações entre os conhecimentos de modo sensível, provocando os educandos à autocriação e ao convívio na pluralidade sem deixar de articular com eles princípios éticos universais.

761

Sendo assim, observa-se que para a concretização dessa trajetória se faz pertinente desvelar possibilidades de experiências estéticas que contribuam para a formação de sujeitos éticos, seres humanos capazes de construírem saberes transformadores em mundo vivido, considerando tanto suas individualidades quanto a coletividade. Não adiantam altos investimentos e recursos de ponta se o “brilho no olhar” estiver ofuscado, tanto do educando quanto do educador. O “espanto” pelo saber, referido por Aristóteles é importante ser resgatado, caso contrário permanecerá sendo cultivada a condição cujos professores simulam que ensinam, os alunos fingem que aprendem, as escolas se mantém alheias a situações problemáticas, proferindo discursos não condizentes com as práticas e, por fim, os conflitos em âmbito escolar para imposição de regras autoritárias estará cada vez mais se intensificando. Cabe destacar que ao referir-se a respeito do termo “estético” neste estudo segue-se o sentido oriundo do grego aisthesis, reportando o seu significado à sensibilidade. Com isso, não se pretende trazer a restrita definição voltada para uma concepção de beleza cujo rigoroso racionalismo acaba por ditar uma relação limitada de vida com o mundo. Todavia, segundo Hermann (2010, p. 31), “a estética se relaciona com nossa capacidade de apreender a realidade pelos canais da sensibilidade e põe em movimento uma disposição lúdica para a atividade criadora”. Desse modo, apresenta-se ao ser humano a possibilidade de perceber e expressar de maneira mais ampla em mundo vivido, fazendo com que as vivências enquanto experiências estéticas não se esgotem num intelectualismo, mas seja superada essa restrição e caminhe-se ao encontro da transformação de “postulados morais em ‘praxis’ cotidiana” (SCHILLER, 1963, p. 21). Também é importante registrar que ao ser mencionado “ética” ao longo do texto vai-se ao encontro do termo grego ethos, vinculado a costumes, ideias que se reportam à discussão do bem e do mal, relacionando-se com aspectos de princípios morais. Com isso, compartilho do esclarecimento conceitual registrado por Hermann (2005, p. 11), ao afirmar que “De modo amplo, na tradição filosófica ocidental, a ética é a busca de uma compreensão racional dos princípios que orientam o agir humano”. Assim, verifica-se que a ética vai além de um conjunto de regras, mas é um convite para o autoconhecimento sem perder o olhar do/no outro. Frente ao esclarecimento da intencionalidade que será destinada aos dois conceitos a pouco referidos, observa-se que propostas educativas podem colaborar para o ressurgimento da religação entre ética e estética, sensibilizando os educandos a perceber, apropriar e efetivar princípios universais. Os conceitos abstratos passam a ser compreendidos e aplicados no cotidiano não como atos mecânicos, mas enquanto entendimentos para a convivência respeitosa entre as diferenças existentes. A importância da provocação desse reencontro relacional na educação, a fim de manter em evidência fins éticos mediante experiências estéticas, também é reforçada pelos pensares de Hermann (2005, p. 101-102):

762

[...] mostrar que a relação entre ética e estética não é de oposição, tampouco a estética levaria a uma deposição de princípios éticos que constituem a herança do pensamento educativo, mas evidenciar uma relação em que os elementos estéticos são decisivos para o julgamento moral. Em outras palavras, [...] a pluralidade radicalizada decorrente dos processos de estetização do mundo da vida não deve significar o abandono das reivindicações éticas na educação, mas expor a força do estético para determinação de uma vida moral.

Com isso, observa-se que a estética coloca-se em complementaridade com a ética e o contrário se faz o mesmo. Tanto é importante na educação a percepção da pluralidade de versões quanto à procura por um consenso de princípios universais, buscando religar em harmonia essas diferenças. Afinal, como afirma Habermas (2002, p. 153), a “unidade não pode ser percebida a não ser na multiplicidade das vozes”. Mediante essa realidade, verifica-se que vivências relacionadas a artes nas escolas podem estabelecer reaproximações com os canais da sensibilidade, construindo e movimentando-se por teias de significados através de múltiplas estratégias, posteriormente, provocando possibilidades de concretizar posturas éticas. Essa força transformadora da arte também é ecoada na afirmação de Mwewa (2009, p. 31): “Pensar com arte não significa sujeitar-se ou estar sempre apto a apaziguar os conflitos, quando não evitá-los. Não. A arte nos ensina a buscar por dentro dos labirintos do conflito, ou dos limites colocados pelas dificuldades de sair deste, os elementos que podem nos auxiliar no entendimento do seu por quê e a nos organizarmos de forma a superá-lo. Para então, vislumbrarmos uma produção do conhecimento gerado pelo conflito. Enfim, conviver nos interstícios do conflito demanda sapiência e perspicácia que possam fazer valer a crença no avanço do pensamento humano. E a arte, sem dúvida, nos oferece válidas alternativas para tanto”.

Entretanto, enfatiza-se que as propostas envolvendo artes inseridas em um cenário escolar, geralmente apresentam-se autoritárias e/ou confusas no que se referem aos seus sentidos, realizando nas instituições meros momentos contemplativos e de preenchimento de horários escolares ou, simplesmente, atendendo exigências burocráticas das diretrizes educacionais. Com isso, observase que essas posturas revelam-se enquanto atividades para distração em uma ideia de “fazer por fazer” ou afazeres tarefeiros dentro de uma ideia de “fazer porque deve ser feito”. Tal situação agonizante da arte é destacada por Shusterman (1998, p. 34), que sinaliza para uma definição ressignificante: Na crise pós-moderna de hoje, em que a arte parece ter se perdido de tal ponto que não apenas seu fim, mas sua morte é visada, uma necessidade (ou uma oportunidade) se apresenta para a intervenção teórica: reorientá-la, revê-la, reconsiderá-la, ao invés de refletir passivamente a sua imagem. [...] definindo a arte como experiência.

763

Frente a esta colocação, observa-se que ao repensar a arte como experiência não se estará restringindo a ver exposições de artes visuais, ouvir música, assistir um espetáculo de teatro ou dança. As propostas passam a colocar os educandos densamente como protagonistas das ações, sujeitos que vivenciam, percebem, problematizam, refletem, relacionam as experiências estéticas e acabam manifestando em mundo vivido atitudes transformadoras. Conforme Marin (2009, p. 49), a compreensão da percepção estética “supera o juízo do belo e avança para uma imersão no mundo vivido”. Mais do que ato descompromissado ou obrigatório, a arte é um convite à práxis. Ela pode, segundo afirma Shusterman (1998, p. 88), “[...] ajudar-nos a criticar os males da vida e da sociedade simplesmente representando-as, e tal crítica é um passo necessário à melhoria ética e social. A educação estética só é possível se envolve uma crítica”. Assim, não se trata de apenas produzir, ditar e consumir a arte, mas de percebê-la, compreendê-la e fazê-la revelar-se em atitudes transformadoras nas ações diárias. Nessa perspectiva, a Capoeira Escolar2 reafirma seu espaço como proposta pertinente na formação dos educandos. A Luta-arte3 brasileira vai justamente de encontro com o refletir passivo e despersonalizado que vem sendo cultivado em âmbito escolar e acaba colocando em distanciamento os sujeitos e o mundo. Pelo contrário, a Capoeira pode apresentar-se como experiência estética que faz do ser humano o próprio autor das suas histórias e transformador da sua existência, pois ninguém pode perceber o mundo vivido por ele. Assim, o educando é provocado a relacionar-se profundamente com o mundo, a fim de perceber o seu caminhar e compreender-se não como fragmento isolado, mas como parte integrante e indispensável do todo. Na Capoeira Escolar, o educando constrói a sua própria caminhada, assim como contribui na concretização da alteridade. E, esses movimentos que relacionam o “eu”, o “outro” e o “mundo” transcorrem entrelaçados em concomitância. Seja tocando berimbau, pandeiro, atabaque, agogô, batendo palmas, cantando lamentos ou exaltações reportando os acontecimentos e personagens históricos da negritude, seja no gingado e demais Segundo os estudos de Gladson Silva (2008, p. 41): “Desde 1960, a capoeira tem adentrado as portas das escolas, fazendo parte de uma instituição que, juntamente com a família, tem papel central no processo educativo de crianças e jovens. Nos últimos anos, a inscrição da capoeira nas escolas tem sido um processo bastante significativo nas principais regiões do Brasil. Da mesma forma, nos diversos países em que a capoeira se faz presente, observa-se processo semelhante. Frente a esse fenômeno, ao qual chamamos de capoeira escolar, pesquisadores têm defendido dissertações e teses que abordam diferentes aspectos da relação entre capoeira e escola”. 3 Será utilizado como sinônimo de Capoeira o termo “Luta-arte”, visto que se vincula coerentemente com o seu significado originário de forma de defesa, bem como não deixa de considerar os seus demais elementos artísticos que o constituem e foram sendo desenvolvidos com mais ênfase ao longo dos tempos, como jogo, dança, música, esporte. Essa ideia de conceber a Capoeira inicialmente como luta e, posteriormente, desencadear-se em outras possibilidades de experiências vai ao encontro da interpretação de SILVA (2008). 2

764

movimentações sensíveis expressados no diálogo de corpos entre os jogadores na Roda de Capoeira, os sujeitos estão constantemente experimentando e compartilhando estéticas que vão provocando mudanças no ser. É nesse ritual circular musicado que vai se percebendo e manifestando condutas de convívio harmonioso, as quais não se limitam ao momento da Roda de Capoeira, mas acabam dando continuidade no exercício de pequenas ações no cotidiano. A experiência estética na Luta-arte coloca os seres humanos e o mundo em exercício compreensível de interdependência enquanto complementaridade, ressaltando a capacidade que essa arte popular possui de ressignificar concepções extremas de racionalização, assim como destacou Merleau-Ponty (2004, p. 2), ao afirmar que “[...] um dos méritos da arte e do pensamento moderno [...] é o de fazer-nos redescobrir esse mundo em que vivemos, mas que somos sempre tentados a esquecer”. Seguindo nesse aspecto, a Capoeira Escolar apresenta-se como possibilidade de linguagem alternativa no processo de ensino e aprendizagem das escolas, capaz de contribuir para uma educação ético-estética. A Luta-arte mediante suas vivências com gingado convida o educando à experiência estética de múltiplas estratégias para ter a percepção de si, do outro e do mundo. Aliado a isso, o faz compreender-se como possuidor de significativas individualidades, porém, consciente que é no desenvolvimento da relação respeitosa com o outro que ele se complementa, bem como também preenche os demais sujeitos. O educando, aos poucos, rompe com a atitude rígida da racionalidade, assim como vai de encontro à volatibilidade da vida, aprendendo a se apropriar de uma postura flexível na qual o faz perceber e religar a polissemia da/na existência. Durante vivências na Capoeira, desenvolve-se essa maleabilidade, por exemplo, ao defender-se dos diferentes golpes realizados e, posteriormente, adaptando-se para contrapor ofensivamente aos movimentos do outro, construindo uma dialética com o corpo. Contudo, tal morada que percebe o mundo vivido e nele manifesta-se, dialoga com o outro e vai tecendo teias de significados deve receber o cuidado para que vivencie a experiência estética da melhor maneira possível, cuidando para que não se torne um sensor estético superficial, incapaz de dialogar com os outros respeitosamente e apenas discursar de modo autoritário, seja na vivência dessa arte popular seja na postura assumida no dia a dia. Isto é, constituindo-se intolerante às diferenças e apático a princípios éticos considerados relevantes para o convívio entre os seres humanos. Como pode se perceber, dentro dessa ressignificação de pensamentos e posturas, a Capoeira Escolar acaba produzindo destacáveis redescrições nas relações com o outro. No momento em que os educandos-capoeiristas jogam entre si, vinculados ao ritmo da bateria (berimbaus, pandeiros, atabaque, agogô, recoreco), ao canto, às palmas e à energia emanada dos seres humanos que constituem a Roda de Capoeira, isto é, o diálogo dos corpos religados a um cerimonial musicado, eles configuram-se como seres sociais à comunicabilidade,

765

preenchendo vazios de solidão e rompendo com o individualismo. Conforme Dias (2012, p. 33), “Nas rodas de capoeira o encontro acontece entre camaradas e não entre adversários”. E essa relação não é limitada àqueles que estão somente jogando dentro da Roda, mas a todos que a compõem, sejam capoeiristas tocando instrumentos musicais, cantando, batendo palmas ou colaborando para delimitar a formação circular dessa cerimônia. O outro não é apenas uma soma de pessoas, a fim de preencher espaços quaisquer (DIAS, 2012), mas ser humano indispensável na integração harmoniosa dessa experiência estética. Por isso, amparado em Dias (2012, p. 34-35), “Sem o outro não seriam estabelecidas relações intersubjetivas, não seriam reconhecidos sentidos e significados atribuídos, não seria confirmada a cultura, não haveria jogo de capoeira”. A afinidade dos indivíduos desenvolvida nessa estética supera a concepção de que a relação com o outro seria apenas de apropriação, trazendo à consciência a profunda relação de comunhão entre os sujeitos. A noção de reciprocidade como elemento fundamental na formação dos seres humanos é desvelada, ampliando a percepção referente ao “Outro” como constituinte do “Eu”, conforme Silva (2012, p. 33) coloca que “compreender que o outro é referência da vida moral e princípio orientador da existência incide profundamente sobre o entendimento da condição humana”. Sendo assim, cada ser humano torna-se responsável e constrói uma capacidade intensa de zelo pelo próximo. Todo sujeito carrega consigo o rosto do “Outro”, assim como afirma Merleau-Ponty (2002, p. 168-169): Eu e o outro somos como dois círculos concêntricos, e que se distinguem apenas por uma leve e misteriosa diferença [...]. É no mais íntimo de mim que se produz a estranha articulação com o outro; o mistério de um outro não é senão o mistério de mim mesmo.

Mediante essa apropriação de concepção, o ato de conviver passa a ser compreendido como indispensável e postado dentro de uma relação de alteridade. O cuidado com o “Eu” também reverbera a demonstração de respeito para com os demais seres humanos, assim como a preocupação com o “Outro” significa absoluta atenção e cuidado que possuo tanto com o outro quanto comigo mesmo. Com isso, o ser humano vai ao encontro da complementação do seu sentido de vida e colabora para preencher o mundo vivido dos demais sujeitos. A alteridade se vincula a Capoeira Escolar, como exemplificações, no cuidado com a integridade do companheiro de jogo, nas ações solidárias frente às situações-problema dos movimentos corporais desenvolvidos, no convívio respeitoso entre os educandos, compreendendo que os desafios são melhores vencidos quando a relação com o outro se encontra em cooperação. O desenrolar harmonioso da Luta-arte brasileira acontece no momento que se percebe a ideia de “jogar e deixar o outro jogar”, reconhecer e acolher o outro como parte importante e integrante para os meus movimentos, bem como o meu desempenho

766

na Roda de Capoeira também perpassa pelo senso de responsabilidade em propiciar o desenvolvimento do companheiro. Apesar de a Capoeira Escolar ter capacidade de efetivar a alteridade, destaca-se que esse procedimento não é apreendido instantaneamente em breves encontros, mas dentro de um processo complexo. É preciso caminhar por uma trajetória sensível de reconhecimento. A construção da alteridade não significa uma natural familiaridade com o outro, pelo contrário, é o estranho que se busca compreender (SILVA, 2012). Porém, esse ser humano diferente não pode ser considerado um estrangeiro longínquo, visto que se arrisca, segundo Silva (2012, p. 41), de se tornar “a contrapartida de outra possibilidade, a de conhecê-lo e amá-lo, compartilhar efetivamente o mundo em que vivemos”. Ainda, ressalta-se que na Capoeira Escolar as individualidades não são desconsideradas, mas entendidas como singularidades indispensáveis na formação do ser humano. Incentiva-se à autocriação delas como especificidades possíveis de aprofundamentos na vida, entretanto, sem deixá-las isoladas em fragmentação, estabelecendo conexões para que se alcance a consciência de mundo em interdependência enquanto complementaridade. Essa pluralidade mediante a Luta-arte brasileira possibilita à ampliação do horizonte, um caminhar de aprendizagens para buscar consensos universais não apenas num plano abstrato, mas, em apropriações e compreensões de princípios éticos que possam regular harmoniosamente a vida. Portanto, a Capoeira Escolar apresenta-se como uma proposta educacional transformadora, possível de ressignificar aspectos subjetivos e intersubjetivos. A Luta-arte aproxima os educandos dos estudos, vivências, reflexões e entendimentos não exclusivamente da História e Cultura Afro-brasileira, mas contribui em aspectos de uma educação ético-estética, constituindo elementos fundamentais na formação dos seres humanos de maneira religada, a fim de provocá-los a assumir o protagonismo das mudanças, sejam nas relações particulares seja no senso coletivo. A Capoeira Escolar colabora no desenvolvimento cognitivo dos discentes e promove o envolvimento afetivo, o olhar sensível para as diferenças e a conduta respeitosa mediante a diversidade. Sendo assim, a proposta da Luta-arte brasileira coloca-se como experiência estética que informa, forma e transforma o ser humano, efetivando posturas éticas enquanto ser/ter em comunhão, assim como é exemplificada na narrativa abaixo sobre um episódio ocorrido em uma tribo africana, contada em 2006 pela filósofa, Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Florianópolis (Santa Catarina, Brasil): Um antropólogo que estudava os usos e costumes de uma tribo africana propôs uma brincadeira inofensiva às crianças. Ele encheu um pote com doces e guloseimas, colocando-o debaixo de uma árvore. Depois chamou as crianças e combinou que daria o

767

sinal para elas correrem em direção ao pote e aquela que chegasse primeiro ficaria com todos os doces. As crianças posicionaram-se na linha de partida que ele havia desenhado no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando foi dado o sinal, todas as crianças deram as mãos e começaram a correr em direção à árvore onde estava o pote. Ao chegarem, distribuiram os doces entre si e começaram a comê-los. O antropólogo foi até as crianças e perguntou por que tinham ido todos juntos quando o primeiro a chegar ficaria com tudo que havia no pote e, assim, comeria muito mais doces. As crianças responderam: "Ubuntu, tio! Como poderia um de nós ficar feliz se todos os outros estivessem tristes?" Ubuntu significa: "Eu sou quem sou, porque somos todos nós!

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 258 p. CANTO-SPERBER, Monique. A inquietude moral e a vida humana. São Paulo: Loyola, 2005. 288 p. DIAS, João Carlos Neves de Souza e Nunes. Corpo e gestualidade: o jogo da capoeira e os jogos do conhecimento. São Paulo: Annablume, 2012. 106 p. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. 276 p. HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação éticoestética. Ijuí: Unijuí, 2010. 176 p. __________. Ética: a aprendizagem da arte de viver. Educação e Sociedade, Campinas, v. 29, n. 102, p. 15-32, jan./abr. 2008. Disponível em: Acesso em: 01 de jul. 2013. __________. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. 119 p. MARIN, Andreia Aparecida. A percepção no logos do mundo estético: contribuições do pensamento de Merleau-Ponty aos estudos de percepção e educação ambiental. Interações Revista-Journal, Portugal, 2009, Disponível em: Acesso em: 01 jul. 2013. MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 256 p. __________. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 168 p. MWEWA, Muleka. Cenários da indústria cultural: corpo negro, cultura e capoeira. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009. 116 p. SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: Herder, 1963. 134 p. SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Ed. 34, 1998. 272 p. SILVA, Franklin Leopoldo e. O outro. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 62 p. SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira: um instrumento psicomotor para a cidadania. São Paulo: Phorte, 2008. 196 p.

768

II RESUMOS EXPANDIDOS

769

IDENTIDADE E EDUCAÇÃO MUSICAL NAS SÉRIES INICIAIS: CHAMADAS MUSICAIS Artur Costa Lopes [email protected] Professor de música na Rede Municipal do Rio de Janeiro Pós-graduando em História na UCP Claudia Helena Alvarenga [email protected] Professora de Música no Colégio de Aplicação da UFRJ Doutoranda em Educação pela UNESA Palavras-chave: Identidade. Educação Musical.

PRÁTICAS DOCENTES. Este trabalho visa apresentar uma prática docente utilizada por ambos autores em aulas de música de escolas regulares da educação básica, com o intuito de fazer uma reflexão a respeito das constituições identitárias, bem como dos processos cognitivos e afetivos envolvidos em sua realização. Por meio das interações sociais diversas que se estabelecem entre alunos, professores e comunidade escolar, a escola é um ambiente de múltiplas afiliações sociais, que revelam a diversidade de vinculações simbólicas afirmadas por estes atores. A questão da identidade nos coloca diante de ligações variadas: a relação entre espaço coletivo e individual; as circunstâncias de caráter psicológico, social e cultural; o estabelecimento de semelhanças e diferenças de onde se constituem as categorias de identificação, entre tantos outros aspectos que contribuem para que o indivíduo desenvolva uma concepção de si mesmo em integração com os grupos que frequenta, ou seja, o reconhecimento das pertenças sociais em conformidade com as singularidades do indivíduo (DESCHAMPS; MOLINER, 2009). Para tanto, nosso ponto de partida para a atividade musical proposta é o nome do aluno. O nome próprio é um dos primeiros traços de reconhecimento de si mesmo e do outro cujas ligações ultrapassam a simples designação ou nomeação de um indivíduo por meio da linguagem. Para Bosco (2006, p. 105), o nome próprio produz “um significante que cifra a história de um sujeito”. Ainda que haja coincidência de nomes no mesmo grupo, os apelidos ou os segundos nomes acrescentados operam no estabelecimento das diferenciações entre indivíduos e sua integração no espaço coletivo. Nesta perspectiva, o nome próprio se reveste, simultaneamente, de um campo subjetivo, ao constituir o Eu, que torna a pessoa única e singular, e um campo intersubjetivo, pois o reconhecimento e a significação de si mesmo provem da identificação que os outros sinalizam ao indivíduo nas interações sociais, uma ação necessária à

770

constituição identitária. Sendo assim, a identidade, neste caso vinculada ao nome próprio, aciona não apenas o que identifica o sujeito, mas também as identificações que ele sustenta. Com isso, institui um campo simbólico que possibilita o indivíduo, além de descrever-se na comparação com os outros, classificar as informações e conhecimentos do mundo, explicar, e atribuir significados ao entorno pelos julgamentos e inferências que faz (DESCHAMPS; MOLINER, 2009). Nesta mesma direção, as atividades sociais que envolvem o uso da música reforçam os vínculos identitários, pois a música, desde sempre, integra o repertório das tradições culturais dos grupos cuja função é afirmar as pertenças sociais pela comunhão de valores, o que faz parte das práticas comunicativas características do epidítico (KENNEDY, 1998). Sendo assim, as musicalidades são a expressão do ethos do grupo, corroboram os valores compartilhados, as ligações simbólicas estabelecidas e os significados aceitos por seus membros. Os hinos, as canções, os diversos gêneros musicais em torno dos quais os grupos se reúnem revelam afiliações sociais pelas funções sociais que cumprem. A repetição forja as associações entre evento e os significados a estes atribuídos por meio de vínculos simbólicos. Transformados em rotina, ou seja, um ritual frequentemente relembrado, engendra hábitos, costumes, tradições que configuram uma estrutura às nossas atividades. O mesmo ocorre com as atividades educativas que, para Kennedy (1998), configuram atos do epidítico, uma vez que têm por função promover a transmissão e o reforço de valores dos grupos com vistas à coesão social. A atividade proposta por nós parte de uma rotina realizada nas escolas regulares: o registro da presença do aluno pelos professores nos diários de classe, visto que, diariamente, os professores verificam os alunos que comparecem à escola, chamando um a um os nomes dos alunos em suas turmas. Essas atividades foram denominadas “chamadas musicais” e construídas, basicamente, de duas maneiras: (1) por meio do improviso, que surgia de uma melodia inventada com o nome dos alunos da turma ou adaptadas de músicas que já tinham um nome como tema no texto, por exemplo, “Anna Júlia”, autoria de Marcelo Camelo do grupo Los Hermanos ou “Carolina”, de Chico Buarque; (2) com um tema já predefinido, um refrão repetido e cantado, muitas vezes, com modificação de tonalidade para proporcionar variedade e experimentação do canto em várias regiões, conforme o exemplo a seguir de nossa autoria:

Figura 1 - Chamada musical 1 (partitura)

771

Essa chamada é utilizada, normalmente para as primeiras aulas, em que os alunos e o professor de música estão se conhecendo. No caso, João Vitor é o aluno chamado e Claudia, a professora que se apresenta, cantando o trecho musical com acompanhamento em instrumento harmônico (violão, teclado ou acordeão). Os nomes dos alunos são substituídos a cada repetição. Esta atividade funciona muito bem nas turmas de 1° e 2° anos do ensino fundamental (alunos de 7 a 9 anos), pois, ao nomear cada aluno num contexto musical, requisitando a sua apresentação para o grupo, não apenas valoriza a identidade pessoal, como também resulta em uma maior interação entre eles na sala de aula. Além do que, a descoberta do nome com a consequente exposição para a turma proporciona uma sensação de valorização pessoal, de modo que o aluno se sente estimulado a executar da melhor maneira possível o que foi proposto nessa circunstância (BOSCO, 2006). A seguir, outros exemplos: Chamada musical 2: “Quero ver quem vai falar a palavra que começa com “a”…” Chamada musical 3: “Quero ver quem vai dizer a palavra que começa com “b”…” Chamada musical 4: “Me diga com convicção o nome de uma profissão…”

Nos exemplos 2, 3 e 4, propomos um improviso baseado em sambas de roda, em que um refrão é repetido e abre-se espaço para o improviso, no caso, com letras do alfabeto e nomes referentes a profissões. A criação em forma de desafio e de uma rima de simples execução e entendimento foram os fios condutores nessas composições sobre o alfabeto e as profissões, visto que, além de surgirem de improviso, durante a aula, puderam motivar os alunos a mostrar que são capazes de entender e atuar em conformidade com as regras propostas pela brincadeira como pode-se observar em outra “chamada musical” abaixo: Chamada musical 5: “Quero ver quem vai saber o que é o que é que eu vou cantar / Não vai ser em português, inglês, espanhol nem japonês / A chamada que eu vou cantar eu acabei de inventar”

Essa “chamada”, também cantada como um samba, diferencia-se das anteriores no que diz respeito à intervenção do aluno que é mais livre, visto que ele pode inventar qualquer nome. Entretanto, essa liberdade, em alguns casos, pode oprimir, pois o aluno se vê diante de tantas possibilidades que acaba não realizando seu improviso com o nome no tempo da canção. Isto não prejudica a atividade, uma vez que esta é cíclica, sendo repetida até que todos tenham participado de modo satisfatório. Este relato abrange apenas algumas possibilidades musicais criadas a partir do nome dos alunos, adequadas às séries inicias do ensino fundamental. A

772

recepção positiva pelas turmas permitiu explorar muitos temas relativos aos conhecimentos adequados para esta faixa etária, por exemplo: (1) as relações entre letras, palavras, rimas com suas sonoridades; (2) ritmo das palavras e do corpo com relação à métrica e tonicidade no texto e na música; (3) categorias em diversas áreas do conhecimento (profissões, animais, entre outras). O improviso musical é um procedimento que permite a interação com os materiais sonoros produzidos por si mesmo e pelos colegas, e o contato com a variedade de soluções musicais neste contexto. Portanto, possibilita o desenvolvimento cognitivo pela transformação afetiva, capacidade de produzir algo que mobilize os colegas, bem como mobilizar-se pela percepção da produção do outro. Nesta perspectiva, a educação é formativa e cooperativa, sendo a música uma das vias para o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos, conhecimento adquirido pela experiência sensível. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSCO, Zelma Regina. A errância da letra: O nome próprio na escrita da criança. 2005. 282 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de PósGraduação em Linguística, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), SP, 2005. DESCHAMPS, Jean-Claude; MOLINER, Pascal. A identidade em psicologia social: dos processos identitários às representações sociais. Tradução: Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2009. KENNEDY, George A. Comparative Rhetoric: An Historical and Cross-Cultural Introduction. New York: Oxford University Press, 1998.

773

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E APRENDIZAGEM MUSICAL EM MUSICOTERAPIA A PARTIR DO MÉTODO ORFF Melyssa Woituski [email protected] Licencianda em Música - UFRGS

Palavras chaves: Orff. Musicoterapia. Experiência Estética.

O presente trabalho tem como principal objetivo investigar e discutir na perspectiva musicoterápica e estética, a potencialidade e produtividade do Método Orff no processo de aprendizagem musical de crianças portadoras de necessidades especiais. Será posta em destaque a ideia, segundo a qual, os conceitos pré-fixados que superprotegem e acabam por inibir a potencialidade de crianças com necessidades especiais, podem ser superados e questionados, a partir de um processo didático-musical bem direcionado o qual, ao lançar mão da experiência estética-musical e o processo de musicalização na perspectiva da metodologia Orff, contribui de forma significativa com o processo de aprendizagem musical na educação especial, uma vez que, como pretende Orff, mantém interligados música, movimento e linguagem. A musicoterapia para pessoas com deficiência teve início na década de 60 com Paul Nordoff e Clive Robbins. Embora a importância da educação especial tenha ganhado espaço cada vez mais significativo em nossa época, ainda é possível encontrar pessoas que criam conceitos pré-fixados sobre as crianças com necessidades especiais, constroem barreiras e as superprotegem, impedindo que suas limitações sejam superadas. É partindo desse contexto que este trabalho procura discutir o desenvolvimento de crianças com necessidades, recorrendo a Orff. Será levantada como problema central a pergunta a respeito da potencialidade e produtividade do método Orff no contexto da educação especial, levado a frente numa perspectiva estética e musicoterápica. Será destacada, portanto, a ideia de Orff, segundo a qual, é fundamental trabalhar a integração das crianças por meio das práticas musicais, bem como atividades lúdicas, parlendas, composições musicais e jogos de improvisação. Notaremos, pois, que tanto para Orff quanto para as atividades músico terapêuticas: o som, o ritmo, a melodia e harmonia, bem como o trabalho em grupo são cruciais para uma interação mais rápida, favorecendo a tais crianças sua inserção na sociedade. Dessa forma, a metodologia Orff numa perspectiva estética nos ajudará a por em foco que no trabalho com crianças com necessidades especiais o prazer de aprender estimula o aprendizado, a interação, a linguagem e o movimento por meio da música.

774

O trabalho se desenvolverá numa perspectiva analítica, histórica e didático-musical. Serão postas em tensão estética, musicoterapia e método Orff, o que exigirá necessariamente o trato adequado com conceitos e elementos centrais do método Orff, bem como a retomada histórica da musicoterapia no Brasil e só a partir daí, com apoio em bibliografias especializadas na área serão discutidos os desdobramentos didático-musicais num contexto musicoterápico. O trabalho primará por levantar as possibilidades de atividades criadas e executadas pelo método Orff, quais seus benefícios, e o que as mesmas propiciam às crianças especiais. Será discutido ainda como podem ser trabalhados junto à musicoterapia para a inserção dessas crianças em uma sociedade cheia de préconceitos tão estigmatizados. Pretendemos mostrar um significado e melhor entendimento sobre o papel da musicoterapia no Século XXI, e mostrar como a metodologia Orff, traz oportunidade de compreender a música num meio da educação especial, levando assim, diversas possibilidades de reflexões nas áreas da educação especial e musicoterapia. Qual a maneira mais adequada para trabalhar com as crianças especiais? A musicoterapia na educação especial enquanto experiência estética busca o desenvolvimento ou a restauração de funções e potenciais de um indivíduo a partir de um processo onde o aluno se manifesta e interage com o professor através da música, do som, da voz e de instrumentos. Daí a pertinência do método Orff no contexto musicoterápico, uma vez que o mesmo propõe que a música, o movimento e a linguagem estejam interligados. Crianças com problemas de desenvolvimentos da linguagem, limites motores e nas relações grupais encontram no trabalho com a música, o gesto, o movimento e o ritmo na perspectiva Orff o ambiente terapêutico necessário para um processo de superação e interação social. As concepções de Orff são adaptáveis às crianças com dificuldades de linguagem e motora. Diálogos e jogos musicais motivam as crianças no interesse de comunicação. Os instrumentos de Orff são muito bons para crianças com dificuldades motoras, suas cores e temperaturas são diferentes. No Cajon adaptado, é possível colocar o aluno sentado, dando a possibilidade de ele tocar, brincar e desenvolver o tônus musical. As teclas dos xilofones são desmontáveis, ficando apenas as que deverão ser usadas na música. Isso propicia qualquer aluno a fazer parte de um meio musical prazeroso e sem limitações, o que se configura numa experiência estética. Orff também trabalha a rítmica, que faz chamada aos jogos simbólicos, com eles pode-se trabalhar caminhando no ritmo da música, dançando, tocando junto com movimentos corporais. Tendo em vista a importância da linguagem tátil, ela torna a comunicação mais rápida, já que nas crianças com dificuldades intelectuais a linguagem simbólica é muito pequena. Assim, do ponto de vista musicoterapêutico, a metodologia Orff oferece uma motivação para as crianças com necessidades especiais no desenvolvimento do raciocínio, linguagem, funções

775

motoras e relacionais ao explorar atividades pedagógico-musicais, de um ponto de vista epistemológico e estético. Os resultados com este trabalho de pesquisa pode ser visto na importância do método Orff no contexto da prática musicoterápica também entendido em sua dimensão estética. O qual ajuda-nos a perceber e propiciar o desenvolvimento e a inserção das crianças com necessidades na sociedade. Observa-se ainda, que em muitas atividades musicoterápicas são utilizados apenas o som, o ruído ou a vibração no tratamento terapêutico. Assim, este trabalho pretende por em destaque, que ao se lançar mão da metodologia Orff na perspectiva terapêutica, as crianças com necessidades especiais potencializarão mais ainda seu desenvolvimento através da experimentação e construção de objetos sonoros significando um grande salto no processo de reparação interna dos portadores de deficiência. Vale ainda ressaltar, que não esperamos que a criança saiba música ou que adquira excelência musical, mas que a por meio da musicoterapia fundamentada na metodologia Orff, tais crianças potencializem seu desenvolvimento estético-corpóreo-sensitivo e cognoscitivo. Com essa proposta de trabalho espera-se o reconhecimento da musicoterapia como um processo de “tratamento”. Reconhecendo que é uma área nova, a falta doutores para orientarem e darem continuidade na pesquisa torna um caminho difícil de ser percorrido, a começar pela dificuldade de se ter pesquisadores e consequentemente parâmetros oficiais para mapear o processo de desenvolvimento de crianças especiais. Com base nisso utilizamos mecanismos disciplinares para comparar métodos da educação especial e implantar no processo musicoterapêutico tomando como referência o método Orff e seu potencial estético e educativo musical. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENENZON, Rolando O. Manual de musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros. 1985 ______. Teoria da Musicoterapia. Rio de Janeiro: Summus.1988. ADEODATO, Ademir. A Musicoterapia nos Espaços Escolares: Contribuições no Processo de Inclusão Educacional. Anais da Abem, Campo Grande: UFMT, 2007. FRANÇA, Cecília C.; LOUREIRO, Cybelle M. V. Função da musicoterapia na educação musical especial: da inclusão física à integração do portador de atraso do desenvolvimento no ensino regular da música. Anais da Abem, Belo Horizonte: UEMG, 2005. CONCEIÇÃO, Thaynah P.B.; GIRARD, Thaíla C. Música e educação especial: uma contribuição para o desenvolvimento da pessoa com necessidades especiais. Anais da Abem, Belo Horizonte: UEMG, 2005. JEANDOT, Nicole. A musicoterapia e a expressão corporal na educação infantil. Revista Brasileira de musicoterapia, Ano I, nº 2, 1996

776

CHAGAS, M; PEDRO, R. Musicoterapia: Desafios entre a modernidade e a contemporaneidade- Como sofrem os híbridos e como se divertem. Rio de Janeiro: Mauad X: Bapera. 2008. HERMANN, N. Estetização do mundo da vida e sensibilização moral. Educação & Realidade. v. 30, n. 2, 2005.

777

ESTÉTICA DO RAP E EDUCAÇÃO MUSICAL Edson Ribeiro Biondo Júnior [email protected] Graduado em Licenciatura em Música- IPA/RS Graduando em História da Arte - UFRGS Professor da Rede Estadual e Privada do RS

Palavras-chave: Educação Musical; Estética do Rap; Jovens.

Este trabalho busca discutir sobre a possibilidade da utilização do rap como ferramenta didática na aula de música, proporcionando a experiência estética, a reflexão dos alunos sobre suas próprias concepções de liberdade, escolhas e evolução, assim como maneiras de utilizar o rap como prática artística. O rap surgiu na década de 70, junto com outras linguagens artísticas como o grafite, a dança (chamada de break) e a discotecagem - DJ - que formaram os pilares centrais da cultura hip-hop, que fez da rua o local privilegiado da expressão cultural dos jovens pobres (DAYRELL, 2002). O rap “é considerado um dos gêneros musicais mais relevantes da cultura popular contemporânea” (PINTO, 2003, p. 117). Com suas letras denunciando a injustiça e opressão (DAYRELL, 2002), com batidas rítmicas marcantes provocadas pela aparelhagem eletrônica e a capacidade da apropriação musical que o rap conduz seus ouvintes, se tem elementos suficientes para que as músicas produzam sentidos e significados no jovem. Deve-se ter em conta a importância “[...] da escuta analítica de canções como formação, isto é, como forma de sentir, de pensar e realizar uma crítica da cultura contemporânea” (ANDRADE, 2007, p. 27). O professor deve ajudar o aluno para mais do que ouvir (captar fisicamente a presença do som) possa escutar, propiciando a reflexão, sensibilização e comunicação (JUSSAMARA, TORRES, 2009) promovendo uma escuta capaz de perceber, ao mesmo tempo, o significado específico de uma obra no campo cultural no qual é gerada, como também perceber significados inesperados e mais amplos que possa vir adquirir no conjunto da sociedade, para além da própria música (ANDRADE, 2007, p. 59). Para proporcionar a reflexão e o debate na sala de aula com turmas da oitava série da rede pública, foi escolhida a música “Mais Que Pegadas” do compositor e produtor da nova geração do rap brasileiro, Projota (2011a). O artista possui uma capacidade ímpar parra narrar imagens ricas de sentido e beleza do meio em que vive, como na música “A Rezadeira”, na qual Projota canta 

Trabalho vinculado às investigações do Grupo de Pesquisa MUSEF – Música, Educação e Filosofia da UFRGS coordenado pelo Prof. Dr. Raimundo Rajobac.

778

a vida de um jovem que ao tentar roubar um estabelecimento junto com seus amigos é ferido, cai no chão sangrando, seus amigos fogem da cena do crime, o pronto socorro não o socorre e com seus olhos fechando, anjos vêm buscá-lo. Sua mãe ao chegar ao local e vendo o espírito do filho ao lado de seu corpo, entoa um cântico de louvor, trazendo o filho de volta à vida, os anjos voltam novamente para o céu e temos o auge da narrativa quando o rapper canta “eu vi sua mãe ti dando a luz pela segunda vez.” A canção joga ao mesmo tempo com o ethos e pathos. Passagens como essa demonstram a motivação do rapper em levar os sentimentos (pathos) da sua realidade social (ethos) para o ouvinte, essa busca é um dos elementos caracterizadores da nova geração do rap brasileiro, composta por vários nomes que vem conquistando uma visibilidade nacional, como Emicida, Rashid, Flora Matos, Criolo e o próprio Projota. Rappers que não negam a importância da militância e da crítica ao sistema que sempre existiu no Rap, mas também utilizam suas letras para falarem sobre o amor na sua cidade, como em “ Não existe amor em SP” do rapper Criolo ou sobre o relacionamento sensual de um casal em “pretin” da rapper Flora Matos. Após a explicação para os alunos sobre as origens e principais concepções do gênero, foram orientados para escutarem atentamente a música “ mais que pegadas”, do rapper Projota. Após a execução da música, foram realizadas uma série de perguntas: 1- Aonde Projota encontrou o caminho da evolução? 2- No início utilizava o vestuário do rap (corrente, camisetas e calças grandes) pois se sentia mais vivo, mais amadurecido joga tudo isso fora, por quê? 3 -Por que é fácil alegrar o povo? 4 – Projota acredita em sorte? 5 – Utilizamos a liberdade de forma certa? 6 – Temos escolhas? Os alunos, principalmente os que comentaram que nunca haviam escutado a música anteriormente, tiveram dificuldades em responder as perguntas. Para ajudá-los nessa tarefa, as perguntas foram anotadas no quadro e foi explicado que Projota responde as perguntas na música de acordo com a ordem que está escrito no quadro. Assim os alunos escutam novamente a canção, possuindo agora todas as ferramentas para conseguirem compreender sua letra: a fundamentação histórica e estética, uma escuta inicial que perceberam a música de uma forma geral e as perguntas escritas no quadro que fazem o aluno acompanhar atentamente cada frase musical. Depois da segunda audição, dá-se início a uma discussão sobre cada uma das respostas, agora não com a visão do rapper, mas com a opinião da turma sobre os assuntos. Na pergunta dois, Projota diz que abandonou o vestuário rapper porque estava maduro o suficiente para entender que o rap estava dentro dele, com essa resposta se tem uma oportunidade excelente para analisar o

779

quanto a música influencia nossa maneira de vestir e pensar, assim os alunos são incentivados a quebrarem paradigmas e refletirem o quanto as músicas que escutam estão exercendo influência sobre a vida deles, mesmo que de forma inconsciente. Na pergunta cinco também se tem espaço para boas reflexões. Projota cita Tiradentes e Zumbi dos Palmares como ícones que morreram lutando pela nossa liberdade e defende que não a utilizamos de forma certa. Os alunos são questionados se acreditam que a sociedade, de uma forma geral, usa bem ou mal a liberdade, a maioria diz que realmente não utilizamos bem, mas quando são incentivados para darem exemplos de mau uso da liberdade, não conseguem expressar suas opiniões. Então são propostos exemplos da utilização da liberdade nas redes sociais ou na escola, percebe-se que eles refletem o quanto estão utilizando bem ou mal a liberdade que o século XXI nos dá enquanto o professor conduz a reflexão baseado nos acontecimentos atuais. Na última pergunta refletiram sobre as escolhas que podemos fazer, e indo ao encontro da letra da música, o professor incentiva-os a escolherem bem e não desistirem dos seus sonhos. Nota-se um aprofundamento na experiência estética após a segunda execução da música, percebida através das respostas dos alunos. Já detectam e compreendem que o rapper está criticando pontos que não concorda da sociedade, são capazes de fazer ligações das críticas feitas pela música com a sua própria vida, explorando seus possíveis significados. Devido à importância da execução musical na aula de música (FRANÇA; SWANWICK, 2002; SWANWICK, 2003) os alunos são questionados se conseguem fazer o ritmo do rap - o professor já havia explicado sobre os elementos musicais e parâmetros sonoros nas aulas anteriores. Alguns deles conseguem fazer. Nesse caso aumenta-se a dificuldade e pede-se para os alunos separarem os sons graves e agudos da “batida” do rap com o próprio corpo, utilizando o peito para os sons graves e palmas para os agudos, os alunos normalmente tem maior dificuldade, então o professor demonstra como fazer. Em aula posterior foram levados alguns exemplos de versões feitas por jovens baseadas na música “A rezadeira” também do rapper Projota (2011b), servindo de inspiração para que a turma criasse sua própria versão da música, utilizando a possibilidade do rearranjo musical (KEBACH; DUARTE; LEONINI; 2010) buscando executar a obra de maneira criativa, reinventando o material já pronto. Procurando escutar a opinião dos alunos, o professor apresentou possibilidades de execução no violão e a turma escolheu sua predileta, as três estrofes da letra foram dividas e três pares de alunos ficaram responsáveis por elas, o refrão da música seria então cantado por todos. Notou-se uma grande participação e interesse dos alunos pelas aulas, o que possibilitou discussões que exploraram os vários pontos de vista que se pode ter sobre determinado assunto e uma execução musical impregnada de sentido.

780

A formação do educador musical exige uma constante reflexão sobre as bases sociais que se encontra a música e o seu ensino contemporâneo, criando estratégias para ensiná-la para não ser apenas mais um produto de mercado, consumida rápida e passivamente pelos jovens (ESPERIDIÃO; MRECH; 2009). Com as atividades propostas, destaca-se a experiência estética e o rap como um conteúdo de extrema importância para ser trabalhado pelo professor na sala de aula. Criando pontes entre a filosofia do Rap, a escuta e reflexão sobre a música, junto com o seu rearranjo, promove-se um crescimento no aluno que expande sua concepção de realidade e tende a torná-lo um cidadão mais consciente da sua função social, possibilitando que crie mecanismos para superar os desafios diários. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Julia Pinheiro. Cidade cantada: Experiência estética e educação. Dissertação de mestrado, USP. São Paulo, 2007. DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Revista Educação e pesquisa. São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002. ESPERIDIÃO, Neide; MRECH, Leny Magalhães. Educação musical e diversidade cultural: uma incursão pelo viés da psicanálise. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 21, 84-92, mar. 2009. FRANÇA, Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e prática. Em Pauta, v. 13, n. 21, dez. 2002, p. 5-41. KEBACH, patrícia; DUARTE, Rosângela; LEONINI, Márcio. Ampliação das concepções musicais nas recriações em grupo. Revista da ABEM, v. 24, 64-72 set. 2010. PINTO, Mércia. Rap: gênero popular da pós-modernidade. In: Congresso latino americado da associação internacional de estudo da música popular, 5. , 2004, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: IASPM, 2004. p. 1-7. PROJOTA. Não há lugar melhor no mundo que o nosso lugar. São Paulo: 360 graus records, 2011a. CD-ROM. PROJOTA. Projeção pra elas. São Paulo: 360 graus records, 2011b. CD-ROM. SOUZA, Jusamara; TORRES, Maria Cecília de Araújo. Maneiras de ouvir música: uma questão para a educação musical com jovens. Música na educação básica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristiana Tourinho. São Paulo, Moderna, 2003.

781

DO ASCETISMO ENTRE ESTUDANTES DE MÚSICA À INTUIÇÃO EM BERGSON Vânia Beatriz Müller [email protected] Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC Palavras-chave: Intuição e Ascetismo, Individualismo Moderno, Práticas músico pedagógicas.

Este trabalho trata de uma pesquisa em andamento, que pretende conhecer os modos como se apresenta o ascetismo entre estudantes de um Curso de Licenciatura em Música, e os mecanismos que o reificam entre e através de suas práticas sociomusicais. Mais especificamente, busca-se investigar os modos como os valores atribuídos à música constituem, explícita ou implicitamente, suas concepções de Música e de Educação Musical. Observa-se, também, se o ascetismo orienta, em alguma medida, as atuações dos licenciandos em seus estágios curriculares obrigatórios. Um estudo importante entre músicos populares e eruditos no Brasil é o de Trajano (1984), que aponta para o que o autor chama de “princípio ordenador fundante do mundo dos músicos”, pois estes seriam “indivíduos que estão neste mundo com uma orientação muito especial. [...] para eles, não há nada mais vulgar, nada mais terreno do que o dinheiro, o salário; esta coisa que, junto a outras, necessariamente os trazem amarrados de volta à terra” (TRAJANO,1984, p. 12). Este autor se refere ao constrangimento gerado entre músicos de uma orquestra sinfônica do Rio de Janeiro, ao tratarem sobre questões salariais nos seus contratos profissionais com a orquestra em que trabalhavam. Ficou evidenciado que o fator (e o valor do) dinheiro estaria tocando o intocável: o valor da música como inalienável a qualquer coisa deste mundo, por seu poder de transportar os músicos para esse lugar “superior”, ou, “sagrado”. Esta é uma concepção de música muito comum no Ocidente e particularmente na Europa, que remonta o diletantismo do romantismo europeu do início do século 19, quando se afirmava o valor da música em si, da “arte pela arte” 1. O artista era visto como portador de um gênio criador, de imaginação criadora, e a inspiração passa a explicar a atividade artística (CHAUÍ, 2000, p. 412). Esta ideia vejo perpassar as concepções de música entre estudantes do Curso de Licenciatura em Música na universidade onde atuo, e está presente na configuração do ethos de grupos musicais de diversas formações instrumentais, de gêneros musicais também diversos, tanto no âmbito da música popular, como no da música erudita (BEATO, s/d; TRAJANO, 1984; MÜLLER, 2010): a ideia da 1

V. Grout & Palisca (2001); Carpeaux, (s/d.).

782

divinização da música, que comumente pode estar relacionada à intuição; e a intuição pode ser tomada como capacidade especial para o contato com um plano superior, como refere Trajano acima. Plano onde se encontraria como que “uma nascente inesgotável de música”, como acredita, por exemplo, o músico e compositor Hermeto Pascoal2. Essa concepção é contemporânea, na Filosofia, da ideia kantiana de separação entre Homem e Natureza, conforme Chauí (2000). A Arte deixa de imitar a Natureza, concentrando nela “uma realidade puramente humana e espiritual: pela atividade livre do artista, [...] os homens se igualam à ação criadora de Deus.” O ascetismo, entendido aqui como a sacralização, ou, divinização da música e, portanto, a divinização do “músico/gênio excepcional”, ficou evidenciada em estudo recente de Müller (2010), entre determinados músicos jovens, que integravam uma orquestra de música instrumental brasileira, no Rio de Janeiro. O estudo demonstra também, como, na ambiência musical, o ascetismo anda em paralelo com o individualismo moderno; paralelo já apontado em seu caráter paradoxal por Dumont (1997; 2000) e Menezes Bastos (1990; 1993), para citar alguns. Na instauração da Modernidade, o paradoxal seria a coexistência da racionalidade constituindo o indivíduo “de uma intramundanidade ascética”, conseqüência histórica do cristianismo primitivo caracterizado pelo “individualismo-fora-do-mundo”3 (DUMONT, 1997, p. 67). O argumento do autor é que no processo de transição de um individualismo a outro – a constituição do individualismo moderno – através da secularização da Igreja, há a continuidade da modelagem da vida (familiar, institucional, econômica, etc) “pelo Espírito divino e pela Palavra divina” propagada por eleitos, escolhidos para seguir a tarefa de glorificação de Deus.4 Nesta apresentação pretendo refletir sobre os dados já observados junto aos sujeitos da investigação, os quais apontam para o que Menezes Bastos (1995, p. 59-60) chamou de paradoxo musicológico: “a música do concerto das nações põe e tira o homem do mundo”. Por refração, o individualismo moderno se faz hierárquico. Visível especialmente na música ocidental, erudita e popular, como também já apontou o autor;5 na hierarquia que ordena o mundo moderno ocidental, o alto posto onde se encontra a música, em grande medida se deve ao ascetismo subjacente aos preceitos da Modernidade. A importância de trazer aqui o contexto da constituição da ideia de ocidentalidade e da invenção mesma da Música Ocidental é pontual para o presente projeto, enquanto a gênese de valores que transversalizam o mundo musical de jovens, ainda hoje, início da segunda década do século 21; muito Müller, 2010. Id.ib.; p, 66-67. 4 Id.ib.; p. 69. 5 Id.ib. 2 3

783

embora, jovens instrumentistas no espaço urbano transitem por distintos universos simbólicos, paradigmas morais e visões de mundo diferenciadas – características das sociedades complexas modernas (VELHO, 2003). É com grande interesse e premência que pretendo ouvir a comunidade científica que se reunirá no I SEFiM, na UFRGS, pois inexiste produção bibliográfica na área de Educação Musical, que problematize a concepção de música subjacente às práticas músico pedagógicas, tampouco os paradigmas que orientam, no Brasil, as diversas formações universitárias de educadores e educadoras musicais. Acredito ser de grande relevância, também política, esta questão, partindo-se do princípio que toda ação educacional é formativa, ou seja, construtora (e reprodutora) de valores, de princípios e de visões de mundo. Nesta direção, esta apresentação é uma busca de subsídios teóricos e metodológicos da perspectiva filosófica para esta pesquisa, de modo a trazer contribuições, também, para a área de Educação Musical. As reflexões partirão de dados empíricos, observados em etnografia junto a um grupo de choro e outro de música instrumental jazzística, os quais são constituídos por licenciandos em música, observados também em seus estágios curriculares obrigatórios. Parto dos pressupostos de Henri Bergson (1990; 2006; 2009), apontando que, comumente, o que se toma por intuição em música, referese à cognição inventiva – pensamento –, e que uma criação musical exige esforço intelectual (MÜLLER, 2010). Este equívoco comum é o que, num primeiro momento, move a proposta deste projeto. Pretende-se averiguar em que medida ele ocorre entre os sujeitos desta investigação, já que a idéia de intuição é intimamente associada ao ascetismo presente no mundo contemporâneo. Assim, aprofundamos nossa base teórica em autores que tratam o ascetismo filosófica, antropológica e sociologicamente, pontualmente Bergson (1990; 2006; 2009), Dumont (1997; 2000), Menezes Bastos (1990, 1993), Bourdieu (2006; 2009) e Weber (2008). REFERÊNCIAS BEATO, C. C. s/d. Músicos Brasileiros: “eruditos” e “populares”. Tese de Mestrado, IUPERJ. BERGSON, Henri. 1990. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes. _______________. 2006. [1934]. O Pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes. _______________. 2009 [1902]. O esforço intelectual. BOURDIEU, Pierre. 2009 [1989]. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand. ________________. 2006. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: ZOUK; São Paulo: EDUSP. CHAUÍ, Marilena. 2000. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática.

784

DUMONT, Louis. 1997 [1967]. Homo Hierarquicus: o sistema de classes e suas implicações. São Paulo: EDUSP. ______________. 2000 [1983]. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco. MENEZES BASTOS, Rafael José de. 1993. Esboço de uma Teoria da Música:

para além de uma Antropologia Sem Música e de uma Musicologia Sem Homem. in: Anuário Antropológico, pp. 9-73. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. _______________________________. 1990. A Festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa. Dissertação de Doutorado, USP, São Paulo. MÜLLER, Vânia B. 2010. Indivíduo músico, “música universal”: uma etnografia na Itiberê Orquestra Família.Tese de Doutorado, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. UFSC, Florianópolis. TRAJANO FILHO W. 1984. Músicos e música na travessia. Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília. WEBER, M. 2008. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, G. (Org.) e FERNANDES, F. (Coord.) Sociologia. São Paulo: Editora Ática, p. 128141.

785

A METODOLOGIA DE ENSINO DO CLARINETE EM BELÉM DO PARÁ: UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO DE DUAS INSTITUIÇÕES LOCAIS E SUAS CONTRIBUIÇÕES À PROFISSIONALIZAÇÃO Herson Mendes Amorim, [email protected] Universidade Federal do Pará - UFPA Graduado em Música pela UEPA Mestre em Artes pela UFPA Palavras-chave: Clarinete; Música; Metodologia; Profissionalização.

A trajetória do clarinete em Belém do Pará é antiga. Entretanto, isso não impediu que, durante muitos anos, a tradição musical ligada a esse instrumento e a continuidade do trabalho de ensino fossem quebradas no início do século XX, em razão de fatores econômicos e políticos. O instrumento, porém, não foi totalmente esquecido, e após alguns anos de pausa nos cursos de instrumentos de sopro por parte das instituições oficiais de ensino de música no Estado do Pará, a prática ensino do clarinete em Belém retornou com força total e reiniciou um caminho que tem demonstrado ser, agora, contínuo e sem volta. Esse caminho, ao que se pode perceber, dada a realidade nacional, é o mesmo das diversas instituições de ensino de música em todo o país. Grandes mudanças têm ocorrido na forma de se ensinar música. Essas mudanças passam, necessariamente, pelos cursos técnicos profissionalizantes e pelos cursos superiores de instrumento que, por suas características específicas de direcionamento ao mercado de trabalho, em sua maioria, vem se adaptando às novas exigências do mercado e dando novos rumos ao aprendizado repassado aos alunos, adequando-os às realidades locais. As duas principais instituições públicas de ensino musical no Pará, O Instituto Estadual Carlos Gomes e a Escola de Música da Universidade Federal do Pará, tem suas sedes em Belém, e desenvolvem abordagens e características diferenciadas quanto ao ensino do clarinete, pois trata-se de cursos técnicos e bacharelado em instrumento, embora ambos tenham como objetivo formar profissionais aptos ao mercado de trabalho local e nacional. Segundo Garbosa (1999): A formação profissional adequada às exigências do mercado de trabalho é hoje um imperativo e um meio de luta contra o desemprego, a pobreza e a exclusão social que se apresentam mundialmente. Para que a formação tenha sentido, ela deve estar ligada ao processo de trabalho e em consequência, antes de limitar-se a desenvolver habilidades fora do contexto, deve buscar o desenvolvimento de competências ligadas ao próprio mercado de

786

trabalho dentro da qual existem, significando uma maior integração das instituições formadoras com as instituições de nível básico (GARBOSA, 1999. p. 1).

A realidade do ensino de música em Belém, mesmo dentro das escolas oficiais, passa pela transmissão de conhecimentos em espaços não-formais de ensino, e isso afeta diretamente o modo como as instituições formais recebem os alunos oriundos desse tipo de ambiente e, ao mesmo tempo, os resultados obtidos ao final do curso. Essa é uma realidade muitas vezes negligenciada pelas instituições formais de ensino. As bandas de música, por exemplo, exercem um papel fundamental nesse contexto e diversos estudos como os de Granja (1984), Alves (1999), Souza (2002), Binder (2006) e Amorim (2012), apontam para um melhor entendimento da “função exercida por essas instituições na formação e preparação de instrumentistas que são encaminhados para a continuação dos estudos nas escolas de Música e mesmo para a carreira profissional...” (Amorim, 2012. pg. 11). Os estudos sobre o ensino do clarinete no Brasil, bem como sobre aspectos metodológicos são escassos. Em sua “Listagem comentada dos estudos acadêmicos e publicações sobre temas relacionados à clarineta no Brasil”, Silveira (2008) aponta um número ainda pequeno de publicações ligadas a essa temática. Esse número certamente vem crescendo ao longo dos anos, dada a expansão do número de cursos superiores de clarinete no Brasil. Entretanto existem investigações como as conduzidas por Alves (1999), Castro (1995) e Subieta (1998), Garbosa (1999 e 2011), que ajudarão a dar sustentação à realização da presente investigação. Autores que escreveram sobre o ensino de outros instrumentos no contexto de Belém do Pará, como Rocha Neto (2012), também serão utilizados. As questões geradoras desta investigação emergem do problema: Quais as metodologias de ensino do clarinete utilizadas nas duas principais instituições de ensino de música de Belém do Pará e quais as contribuições dessas metodologias na profissionalização dos estudantes? Para investigar o problema acima explicitado envolvi, como população de pesquisa, professores, ex-professores, alunos e ex-alunos de clarinete das duas instituições analisadas: Instituto Estadual Carlos Gomes e Escola de Música da Universidade Federal do Pará. Os procedimentos de pesquisa utilizados serão a coleta de dados e análise, por meio de questionários, entrevistas e de documentação, além da revisão de literatura. Todos os dados referentes a este estudo serão abordados qualitativamente. Segundo Phelps (1993), a pesquisa qualitativa, conhecida também como etnográfica, naturalística, subjetiva e pós-positivista, permite ao pesquisador ter uma percepção ampla do objeto de estudo e, a partir da coleta de dados e sua análise, desenvolver as questões que serão respondidas. (PHELPS, 1993 apud SILVEIRA, 2007). Ainda segundo Phelps (1993), as principais técnicas

787

de registro de dados dessa modalidade de pesquisa são: 1) a observação, 2) a entrevista, 3) o questionário e 4) o formulário, que deverão ser usados individualmente ou combinados, dependendo dos objetivos da pesquisa. Elas englobam a coleta daqueles dados que podem ser capturados no tempo presente, tratando-se, portanto, guardadas as devidas proporções, de um método simples (PHELPS, 1993 apud SILVEIRA, 2007). Será realizado um apanhado histórico do instrumento, desde sua origem, no final século XVII, sua introdução no Brasil e história em Belém, bem como das práticas didáticas no Brasil e em Belém, especialmente dentro das instituições que são alvo da pesquisa, para um melhor entendimento sobre a relação entre a história do instrumento e a metodologia de ensino que é utilizada em determinada época. Para o tratamento das entrevistas, será utilizado o método de história oral, que segundo Lozano (1996): Poderia distinguir-se como um procedimento destinado a constituição de novas fontes para a pesquisa histórica, com base nos depoimentos orais colhidos sistematicamente em pesquisas específicas, sob métodos, problemas e pressupostos teóricos explícitos. Fazer história oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos “outros” (LOZANO, 1996. pg. 17).

Para esta investigação, as entrevistas serão semidirigidas, pois, dentro da metodologia da história oral “A entrevista semidirigida é com frequência, um meio termo entre um monólogo de uma testemunha e um interrogatório direto” (Tourtier-Bonazzi, 1996. pg. 237), e servirão para agregar relatos históricos não registrados na documentação e literatura consultadas, sobre as metodologias de ensino do clarinete em Belém, bem como aspectos sobre a história do instrumento, adequando-se assim à proposta deste trabalho. As entrevistas não seguirão um roteiro fixo, mas serão estabelecidos pontos referentes à história do clarinete em Belém e as metodologias utilizadas pelos professores atuantes na cidade. Por fim, os dados analisados e seus resultados serão comparados com dados de pesquisas similares realizadas, bem como serão analisados a luz de autores da educação musical, como Queiroz (2004 e 2005), Arroyo (2002) e Vieira (2001). As informações são de fontes documentais, revisão de literatura e entrevistas com professores das instituições. Serão também analisados os dados resultantes dos questionários respondidos pelos professores e alunos entrevistados e, por fim, será discutido o resultado das análises dos questionários e suas implicações no contexto do ensino do clarinete em Belém. Será feita uma síntese de todo o trabalho e, assim, espera-se obter resultados que ajudem na compreensão das metodologias de ensino do clarinete utilizadas em Belém do

788

Pará, no que tange a atuação das duas instituições investigadas para a formação profissional dos clarinetistas delas oriundos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Cristiano Siqueira. Uma Proposta de Análise do Papel Formador Expresso em Bandas de Música com Enfoque no Ensino da Clarineta. Dissertação. Mestrado em Música. Rio de Janeiro: Escola de Música da UFRJ, 1999. ALBERTO, Gabriel Gagliano Pinto. Clarinetas em Si Bemol e em Lá: diferenças acústicas e interpretativas. Dissertação de Mestrado em Música. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2004 AMORIM, Herson Mendes. Contribuições das Bandas de Música para a Formação do Instrumentista de Sopro que atua em Belém do Pará. Dissertação de Mestrado em Artes. Universidade Federal do Pará. Belém, 2012. CARMONA, Raquel; RIBAS, Maria Guiomar. Curso Técnico de Música: Que sentido para os estudantes? Que papel formador?. Anais do XXII Congresso da ANPPOM. pg. 829 – 836. João Pessoa – PB. 2012. CASTRO, José Carlos de. Regras Básicas para o Ensino da Embocadura na Clarineta. Rio de Janeiro: Escola de Música da UFRJ. Dissertação de Mestrado em Música. 1995. FREIRE, Ricardo Dourado. A formação da identidade do clarinetista brasileiro. Anais do XII Encontro Nacional da ANPPOM. Belo Horizonte – MG. 2001. GARBOSA, Guilherme Sampaio. Formação do professor de clarineta no contexto brasileiro. XII Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Música. Salvador – BA. 1999. ________. O ensino de clarineta em escolas públicas de Santa Maria. XX Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical. Pg.1648-1654. Vitória – ES. 2011. LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Editora da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1996. PHELPS, Roger; FERRARA, Lawrence; GOOLSBY, Thomas W. A Guide to research in music education. 4ª ed. Inglaterra e Londres: The Scarecrow. 1993 PIRES, Carlos Augusto Vasconcelos. Festival Internacional de Música do Pará. Fundação Carlos Gomes, 2003. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Educação musical e cultura: singularidade e pluralidade cultural no ensino e aprendizagem da música. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 10, p. 99 -107, mar. 2004.

789

________. Pesquisa em etnomusicologia: implicações metodológicas de um trabalho de campo realizado no universo musical dos Ternos de Catopês de Montes Claros. Em Pauta. Revista do Programa de Pós Graduação em Música da universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 16, n. 26, janeiro a junho, 2005. ROCHA NETO, José Medeiros. A metodologia de ensino do oboé no Conservatório Carlos Gomes em Belém do Pará: Construção do conhecimento musical e inclusão social. Monografia de conclusão de Especialização em Educação Profissional. WPós. Brasília. 2012. SILVEIRA, Fernando José. Listagem comentada dos estudos acadêmicos e publicações sobre temas relacionados à clarineta no Brasil . Revista Música Hodie. Vol. 8 – Nº 1 – 2008. pg. 115 – 127. Universidade Federal de Goiás. ________. A história da clarineta no Rio de Janeiro: 1901 a 2000. Anais do XVI Congresso Nacional da ANPPOM. Brasília – DF. Universidade de Brasília. 2006 ________. Antonio Luis de Moura: O primeiro clarinetista virtuoso brasileiro e fundador da cátedra de clarineta no Brasil. Revista Música Hodie. Vol. 9 – Nº1 – 2009. pg. 93 – 111. Universidade Federal de Goiás. ________. Cursos de Bacharelado em Clarineta no Canadá e no Brasil: Um Estudo Comparativo. Anais do XVI Encontro Anual da ABEM e Congresso Regional da ISME na América Latina. Campo Grande – MS. 2007. SUBIETA, Glória Cira Pereira (1998). Abordagem Construtivista ao Ensino Básico da Clarineta. Rio de Janeiro: Escola de Música da UFRJ. Dissertação de Mestrado em Música. TOURTIER-BONAZZI, Chantal de. Arquivos: propostas metodológicas. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Editora da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1996. VIEIRA, Lia Braga. A construção do Professor de Música: o modelo conservatorial na formação e atuação do professor de música em Belém do Pará. Belém. CEJUP, 2001.

790

II RESUMOS

791

AUDIAÇÃO E ESTUDO CONSCIENTE: UMA FERRAMENTA PARA APRIMORAMENTO DA PERFORMANCE MUSICAL DE ESTUDANTES DE FLAUTA TRANSVERSAL Tilsa Isadora Julia Sánchez Hermoza [email protected] Mestranda em Educação Musical pela UNICAMP Palavras chave: Audiação, flauta transversal, performance

Este artigo avalia os procedimentos utilizados por flautistas estudantes de graduação em instituições de formação superior e destaca a importância que representa a utilização de habilidades auditivas como acontece com as representações sonoras mentais, para obter um melhor desempenho, buscando otimizar o estudo diário. Também giram reflexões em torno da relevância dada aos estudos de mecanismo promovidos pelo molde tecnicista, podendo ser isto o que gera a diminuição da prática do estudo consciente. Com o ensino profissionalizante do modelo tecnicista proposto pelos conservatórios, do qual se sucederam transformações profundas no modelo europeu de pedagogia musical, a formação técnica do instrumento entrou em primeiro plano, fazendo com que os aspectos “operacionais” pudessem ser estudados isoladamente com mais profundidade, mas também com certo descompromisso em relação aos seus propósitos artísticos. Por outro lado, Andreas Lehmann (Apud Santiago, 2002) destaca a importância que as representações mentais têm na realização musical de superior qualidade: propõe que essas representações são específicas às necessidades da tarefa com que os músicos se defrontam e afirma que são adquiridas por meio do envolvimento em atividades práticas específicas, como é o caso dos músicos que utilizam a audiação (audiation) como ferramenta de estudo. Sloboda (1982) afirma que quando alguém interpreta uma peça musical está traduzindo uma representação mental ou plano de música em ação. Já Edwin Gordon (1999), destacado investigador no âmbito da psicologia e educação musical, utiliza o termo “audiação” para referir-se à capacidade de imaginar sons em silêncio, o que coloca o pensamento musical em uma relação de equivalência à do pensamento para com a linguagem verbal. Nesse sentido, o uso de habilidades auditivas pode servir como ferramenta em busca da realização de um estudo musical eficaz, através de ações que contribuam para que a performance musical seja realizada com musicalidade desde os momentos iniciais da sua prática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

792

BOREM, F (2001). Metodologia de pesquisa em performance musical no Brasil: Tendências, alternativas e relatos de experiência. Cadernos da Pós-Graduação, v. 5 n. 2, p. 19-33. ______________. Por uma unidade e diversidade da pedagogia da performance. Revista da ABEM v. 14, p. 45-54. COLWELL, Richard, RICHARDSON Carol (editor).The new handbook of research on music teaching and learning: a project of the Music Educators National Conference. Oxford: Oxford University Press, c2002. ERICSSON, Anders K. Deliberate practice and the acquisition of expert performance: An overview. In: Jorgensen, Harald. Does practice make perfect? Current history and research on instrumental music practice. Oslo: GCS, 1997. p. 9-51. GOLDEMBERG, R. Métodos de leitura cantada: dó fixo versus dó móvel. Revista da ABEM, 2000, n. 5, p. 7-12. GOLDEMBERG, Ricardo. Modus Novus e a abordagem intervalar da leitura cantada à primeira vista. Opus, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 107-120, dez. 2011. GORDON, E. Teoria da aprendizagem musical: competências, conteúdos e padrões. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2000. HALLAM, S. Instrumental teaching: a practical guide to better teaching and learning. Oxford: Heincmann, 1998. ______________. Music Psychology in Education. London: Institute of Education, University of London, 2006. HARDER, R. Algumas considerações a respeito do ensino de instrumento: Trajetória e Realidade. Revista Opus, v. 14 n. 1, 2008. HARNONKOURT, N. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. JORGENSEN, H. Strategies for individual practice. In: Williamon, Aaron.

Musical Excellence. Strategies and techniques to enhance performance. Londres: OXFORD University Press, 2004. p. 85-103 JUSTIN, Patrik N; ROLANDO Persson S. Emotional Communication. In: The Science & Psychology of Music Performance: Creative Strategies for Teaching and Learning, Richard MCPHERSON, Parncutt; MCPHERSON Gary E. New York: Oxford University Press, 2002, p. 219- 235. LEHMANN, A. Acquited mental representations in music performance: anecdotal and preliminary empirical evidence. Oslo: Norges musikkhøgskole, 1997. LISBOA, Tânia; WILLIAMON, Aaron; ZICARI, Massimo; EIHOLZER Hubert.

Mastery Through Imitation: a Preliminary Study. Musica & Scientiae: Perspectives on Performance, v. 9, n. 1, Spring 2005, p. 75-110.

793

PARAKILAS, J. Piano Roles: three hundred years of life with the piano. New Haven: Yale University Press, 1999. PARNCUTT, R; McPeherson, G. The science & psychology of music performance: creative strategies for teaching and learning. New York: Oxford University Press, 2002. RÓNAI, L. Em busca de um mundo perdido: Métodos de flauta do barroco ao século XX. Editora Topbooks, 2008. SANTOS, R; HENTSCHKE, L; GERLING, C. A prática de solfejo com base na estrutura pedagógica proposta por Davidson & Scripp. Revista da ABEM, n. 9, p. 29-41, 2003 SLOBODA, J. A mente musical: psicologia cognitiva da música. Londrina: Eduel, 2008. SWANWICK, K. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Cadernos de Estudo: Educação Musical, v. 4/5, p. 7-14, 1994. WILLIAMON, Aaron. Musical Excellence. Strategies and techniques to enhance performance. Londres: OXFORD University Press, 2004.

794

TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: UM INSTRUMENTO FILOSÓFICO DESTINADO À REFLEXÃO DO PROCESSO ARTÍSTICO EM SALA DE AULA Sara Cecília Cesca [email protected] Bacharel em Música (USP) Especialista em Arte-Educação e Tecnologias Contemporâneas (UNB) Mestranda em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Lucas Eduardo da Silva Galon [email protected] Graduado em Música (USP) Doutorando em Música pela Universidade de São Paulo (USP)

Palavras-chave: Estética, Teoria da formatividade, Educação Musical.

A teoria da formatividade elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, se constitui como uma estética do fazer. O termo formatividade pressupõe uma teoria que compreende o processo de investigação da obra de arte enquanto matéria formante. A experiência estética na qual vivenciou o autor ao lado de artistas em pleno ato de criação proporcionou-lhe uma visão ampla e profunda acerca do complexo itinerário formativo da obra de arte. Nestes encontros, autor soube colher e perscrutar o espírito aventureiro do fazer inventivo e realizativo presente no trabalho dos artistas desvelando inúmeros problemas que residem nesta contsrução. Os problemas que Luigi Pareyson discorre em seu tratado de formatividade sobre a obra de arte em sua completude formante, como por exemplo, as dificuldades pelo qual passa o autor tentando, corrigindo e refazendo a obra; o diálogo com a matéria e sua legalidade interna; o longo percurso da criação do insight até a obra terminada; obra acabada e os problemas que envolvem a fidelidade ou liberdade da execução; a relação entre autor, obra e receptor; o mundo do artista tal qual se revela na forma; são problemas filosóficos que podemos observar em toda produção humana. Para tanto, apropriaremo-nos de sua estética da formatividade para refletir sobre a produção artística no contexto escolar. Segundo o autor, transferir esse tipo de legalidade às outras operações é, no fundo, uma nova e refinada forma de estetismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

795

PAREYSON, Luigi. 1993 [1954] Estética Teoria da formatividade. Petrópoles, RJ: Vozes. ________________. 2001 [1966] Os problemas da estética. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes. PERISSÉ, Gabriel. 2009. Estética e Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora. VIGOTSKI, Lev. S. Imaginação e criação na infância. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. 135p.

796

PERFORMANCE EXPERIMENTAL, CONFLUÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS Fernando Maia Assunção [email protected] Mestre, Professor Assistente, UFPE Samuel Cavalcanti Correia [email protected] Mestre, Professor Assistente, UFPE Palavras-chave: filosofia e improvisação, performance, processos criativos

As novas concepções estéticas advindas da música concreta e da música eletrônica até meados do século XX, e que resultaram na música eletroacústica, trazem como um de seus elementos principais a manipulação do som. O conceito de objeto sonoro, e a expansão dos procedimentos computacionais para auxiliar no processo de composição musical levaram não somente a uma quebra, mas a uma ausência mesmo de paradigmas. Tendências estéticas as mais diversas, em que fusões de estilos são uma constante, encorajam situações de convivência. Nesse contexto, a improvisação musical tem um papel importante a desempenhar, até mesmo como um campo fértil de experimentos, em que diversas áreas podem tirar proveito. O projeto – em fase de registro em órgãos de fomento – encabeçado pelos docentes Fernando Assunção e Samuel Correia, do Departamento de Música da UFPE, põe no foco da ação musical a improvisação enquanto prática congregadora, substancialmente tolerante em estilo e âmbito natural da experimentação. A priori o projeto conta com quatro membros-instrumentistas (piano, violão, e guitarras elétricas) que também intervém eletronicamente sempre que cada ideia requeira. A estética é a da fluidez criativa, em cujo bojo não há imposições, mas, diálogo e mutualidade. Sem a predeterminação de regras, aproximamos a prática performática da ação criativa por meio de um pensamento comum em correntes filosóficas centro-europeias do século passado, contudo, é o pensamento de Joseph Jacotot (1770 -1840) que tem impulsionado as ideias aqui resumidas. A improvisação aliada a recursos diversos, e a falta da imposição, seja na relação professor-aluno, seja na relação diretor-dirigido, nos faz pensar que são meios bastante eficazes de emancipação artístico-criativa no processo educativo. Quando adaptamos seu pensamento – “um homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem” – para a realidade improvisada que a música pode proporcionar, acreditamos rumar para a restituição das faculdades criativas emancipadas em cada participante. Neste sentido, a ação proposta coincide com a

797

relação ensino-aprendizagem concomitantemente com o compartilhar de saberes, sem necessariamente, distinguir-se quem é quem na ação: todos são improvisadores e as ideias fluem e refluem de parte a parte num todo de significado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAILEY, Derek. Improvisation Its Nature and Practice in Music, Da Capo Press, 1992. BERKOVITZ,Aaron. The Improvising Mind: Cognition and Creativity in the Musical Moment, Oxford University Press, 2010. COPE, David. Techniques of the Contemporary Composers, Schirmer, 1997. DELIÈGE, Irène; WIGGINS, Geraint. Musical Creativity: Multidisciplinary Research in Theory and Practice, Psichology Press, 2006. MENEZES, Flô. A acústica musical em palavras e sons, Ateliê editorial, São Paulo, 2003. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: 5 lições sobre a emancipação intelectual, Editora Autêntica, 2007. ROADS, Curtis. The Computer Music Tutorial, MIT Press, 1996.

798

INFLUÊNCIA DA PRÉ-DEFINIÇÃO DE CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO NA APRECIAÇÃO DA EXECUÇÃO MUSICAL RESULTA EM NECESSIDADE DE BUSCAR VALIDADE ECOLÓGICA NA CRIAÇÃO DE NOVOS MÉTODOS Estela Kohlrausch [email protected] UFRGS Fernando Gualda [email protected] UFRGS Palavras-chave: Práticas Interpretativas, Béla Bartók, Validade Ecológica, Educação Musical

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa desenvolvida na Iniciação Científica e na disciplina Seminário de Práticas Interpretativas ambos realizados em 2011. Durante a revisão bibliográfica foi constatada a carência de validade ecológica (CLARKE 2004) nas pesquisas sobre desenvolvimento de métodos para avaliação de execução musical. RUSSELL (2010) revisou grande parte dessa literatura; CIORBA e SMITH (2009) obtiveram excelente resultado com o "multidimensional assessment rubric", mas apenas THOMPSON et al. (2007) discutem aspectos de validade ecológica relacionados com o período de tempo utilizado por ouvintes ao definirem suas percepções de qualidade de execução (performance), assim como sua frequência de alteração. No entanto não necessariamente buscam obter validade ecológica em seus estudos. Este estudo buscou verificar se a adição de critérios de avaliação alteram a frequência da utilização de outros critérios que o ouvinte normalmente utilizaria. O objeto de análise deste estudo foram cinco gravações da introdução do Concerto para viola de Béla Bartók (edição Serly), que apresenta grande variedade rítmica. Os participantes foram divididos em dois grupos de acordo com o seu conhecimento da obra. Visando obter validade ecológica, cada participante ouviu uma vez a sequência das cinco gravações para que se familiarizasse com todas as interpretações. Em seguida, os participantes ouviram novamente cada gravação, com o objetivo de considerar quaisquer aspectos de cada interpretação que os chamasse a atenção, transcrevendo-os em comentários. Na terceira audição, os participantes foram instruídos a descrever especialmente aspectos rítmicos de cada interpretação. Esses comentários foram categorizados em critérios cujas frequências foram analisadas. Posteriormente os dados entre os grupos foram comparados. Resultados sugerem que a introdução de um novo critério de avaliação altera desproporcionalmente a frequência de uso dos critérios de

799

avaliação que o ouvinte normalmente utilizaria, sendo reduzida a frequência de critérios de mesmo nível de valor estético, enquanto mantidos aqueles de nível distinto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CIORBA, C. R.; SMITH, N. Y. Measurement of Instrumental and Vocal Undergraduate Performance Juries Using Multidimensional Assessment Rubric. Journal of Research in Music Education, 57 (1), 2009, pp. 5-15. CLARKE, E. Ways of Listening. Oxford: Oxford University Press, 2004. pp. 1724. GUALDA, F. Subtleties of Inflection and Musical Noesis - computational and cognitive approaches to aural assessment of music performance. (PhD diss.) Queen's University Belfast, 2011. KOHLRAUSCH, E. Em busca de validade ecológica nos critérios de apreciação de uma mesma obra musical: Um estudo de caso com múltiplas gravaçnoes da introdução do Concerto para viola, de Béla Bartók. XXIII Salão de Iniciação Científica. UFRGS, 2011. RUSSELL, B. E. The empirical testing of musical performance assessment paradigm. Open Access Dissertation. 2010. http://scholarlyrepository.miami.edu/oa_dissertations/387 THOMPSON, S.; WILLIAMON, A.; VALENTINE, E. Time-Dependency Characteristics of Performance Evaluation. Music Perception, 25 (1), 13-29, 2007.

800

SEMELHANÇAS ENTRE A PROPOSTA EDUCACIONAL DE SCHAFER E KOELLREUTTER André Luiz Greboge [email protected] Graduando, UFPR Palavras-chave: Schafer, Koellreutter, Séc. XX, educação musical

O séc. XX foi uma época de mudança e ruptura em diversos aspectos, na vida social, privada, na economia e na política, por exemplo. Nas artes ocorreu o mesmo, a ascensão definitiva da indústria fonográfica e a ramificação de estilos e técnicas, por exemplo. Uma vez que, a história e as artes caminham de mãos dadas, houve uma série de mudanças de paradigmas e objetivos estéticos, como resposta aos novos tempos. Deste modo, a partir dos novos padrões e ramificações filosóficas e artísticas, a educação musical passou a necessitar de propostas que dessem conta de inserir e educar o indivíduo dentro das novas concepções. Dois autores de novas propostas educacionais são os também compositores, Murray Schafer e Hans Joaquim Koellreutter. Suas propostas, não são métodos, até porque segundo os autores, os métodos não são abrangentes o suficiente e privam o pensamento criativo do professor e do aluno. Apesar da diferença de suas obras composicionais, países de atuação e formação musical, os dois autores criticam os métodos de ensino linear, a figura centralizadora do professor e o repertório erudito tradicional europeu. Como resposta aos métodos, existe a proposição de modos de trabalho que utilizem debates, reflexões e questionamentos em torno do conteúdo, sendo que este não precisa seguir uma ordem pré-estabelecida e sim, a necessidade dos alunos. Em relação ao repertório, as duas propostas sugerem a necessidade de se escutar os sons do mundo, para além da música do rádio e do teatro. Nestas concepções, o professor deve utilizar a maior variação de repertório o possível, e estimular a audição crítica. Deste modo, a partir da audição e da reflexão chega-se ao ponto final do ensino em que os alunos praticam a criação, em composições próprias que podem se abrir para a transdisciplinaridade artística. Portanto, nesses modos de ensino, há o privilégio da construção de conhecimento em conjunto, da criação, da prática da reflexão, da audição de material sonoro variado e do desenvolvimento da autonomia musical do aluno, para que esse se torne um indivíduo com maiores capacidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRITO, T. A. Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peirópolis, 2001.

801

FONTERRADA, M. T. O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. São Paulo: Editora UNESP, 2008. MATEIRO, T.; ILARI, B. (Org.). Pedagogias em educação musical. Curitiba: Ibpex, 2010. SCHAFER, M. O ouvido pensante. 1. Ed. São Paulo: Unesp, 1991 ____________. A afinação do mundo. 1. Ed. São Paulo: Unesp, 2001.

802

EDUCAÇÃO MUSICAL COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: UMA INVESTIGAÇÃO A PARTIR DE ARTHUR SCHOPENHAUER Thaís Nascimento [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Palavras-chave: educação musical; experiência estética; Arthur Schopenhauer; metafísica do belo. A proposta desse trabalho é pensar a educação musical como experiência estética, a partir da estética da música de Arthur Schopenhauer. Nesta investigação, a educação musical será tematizada enquanto educação estética, na perspectiva representacional da estética, que causa a experiência artística da música. Terei como argumento a tese schopenhaueriana da música como a arte de grau estético mais elevado do que as demais artes, uma vez que esta não apenas imita ou reproduz o mundo, mas tem a capacidade de comunicar a ideia de mundo. Segundo Schopenhauer, a contemplação estética de uma obra de arte deve ser livre das vontades individuais para alcançar o conhecimento puro. Aliado a essa ideia, quero propor uma educação musical que começa no conhecimento puro através da contemplação estética schopenhaueriana e que se desenvolve com a construção de ideias sobre o mundo que o educando pode formar a partir das suas experiências com a música. Abordarei como algumas das atividades musicais essenciais para um desenvolvimento musical, como a execução, a composição e a apreciação musical, podem ser pensadas na educação musical como educação estética. REFERÊNCIAS SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. _______. A metafísica do belo. Trad. Jair Barboza. São Paulo. Editora Unesp, 2003. RAJOBAC, R. Arthur Schopenhauer e Ludwig van Beethoven: diálogos possíveis entre música e filosofia. Revista Espaço Acadêmico, v. 10, n. 116, 2011. BARBOSA, J. A metafísica do belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Humanitas, 2001.



Trabalho vinculado às investigações do Grupo de Pesquisa MUSEF – Música, Educação e Filosofia da UFRGS coordenado pelo Prof. Dr. Raimundo Rajobac.

803

MULHERES EM BANDAS DE MÚSICA: FATOS ESTÉTICOS E SOCIAIS NO NORDESTE DO BRASIL E NORTE DE PORTUGAL Marcos dos Santos Moreira E-mail: [email protected] Docente, UFAL Palavras-Chave: Banda de Música, Gênero, Mulheres.

Esta comunicação oral pretende apresentar uma pesquisa qualiquantitativa sobre a participação feminina nas filarmônicas do nordeste brasileiro e do norte de Portugal, resultante da pesquisa de Doutorado a ser defendida neste ano de 2013 na Universidade Federal da Bahia por este autor. Para isto percorremos milhares de quilômetros pelo nordeste brasileiro e por Portugal em buscas de respostas que justificassem a escassez de trabalhos científicos sobre o tema e o hiato temporal da presença feminina nestas agremiações. O método Survey somado as relações humanas encontradas aproxima de um resultado satisfatório apresentado. Além das Bandas escolhidas em numero de seis, sendo três agremiações de cada país, para um foco mais específico, foi acrescentado um censo no recorte de investigação de 112 filarmônicas no total. Portanto o estudo procurou propor uma analise através de conceitos da relação da música com as ciências sociais e como estas relações de poder se perpetuaram por tantas décadas impedindo a entrada das mulheres por muitos anos nos quadros filarmônicos. Analisar as questões musicológicas, estéticas e educacionais e mescla-lo com as ciências sociais no que é concernente a questões como feminismo, a política, patriarcado, econômicas, afetivas, entre outras e conecta-las com números quantitativos desta partipação, fazem a ótica deste trabalho. Não sabemos ao certo as causas que levaram a ciência musical a ainda não ter explorado ou atualizado a observação sobre a temática mulher em filarmônicas com mais ênfase nestes últimos 40 anos pelo menos. Talvez seja porque a pesquisa acadêmica, e remetemos aqui também a programas de pós-graduação (Stricto Sensu) ou projetos universitários de pesquisa governamentais em Música no Brasil, de fato oficialmente seja menos remota, quase contemporânea, do que outras áreas humanas que tem registros acadêmicos mais antigos. A abertura política nos dois países no século XX, o acesso à informação cada vez mais evidente na sociedade, principalmente no início dos anos 90 e uma melhor formação técnica e humana entre as mulheres musicistas nas últimas décadas foram pontos preponderantes para esta possível aproximação qualitativa e quantitativa na correlação da igualdade participativa nas filarmônicas do Brasil e Portugal.

804

REFERÊNCIAS GOULD, Elizabeth S. Nomadic turns: Epistemology, experience, and women university band directors. Philosophy of Music Education Review. Cambridge press, 2005. GREEN, Lucy. Music, Gender and Education. Londres: Cambridge press, 2004. BABBIE, Earl. Métodos de Pesquisas de Survey. Tradução Guilherme Cezarino. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

805

O GESTO NA AUDIÇÃO ATIVA DO MÉTODO ORFF/WUYTACK André Luiz Greboge [email protected] Graduando,UFPR Palavras-chave: Gesto, Orff/Wuytack, Audição ativa, educação musical

Um dos focos principais do trabalho da metodologia Orff/Wuytack é a audição, não de modo passivo e sim, com uma postura ativa por parte do aluno. As atividades de audição musical ativa devem oferecer meios para que os alunos escutem a música de modo atento, visando o desenvolvimento de autonomia crítica e a capacidade de escutar com a possibilidade de transitar entre os vários âmbitos possíveis de organização e estruturação musical. A proposta pedagógica baseia-se no termo grego musikae, que se refere à expressão verbal, corporal e musical, o que justifica o uso do gesto como um dos artifícios para auxiliar nas atividades audição. Na maioria dos casos, o gesto aparece quando movimentos realizados pelo aluno fazem referência a alguma coisa externa de modo figurado, seja o conteúdo da letra de canções ou mesmo o gesto produtor do som, neste caso, gestos similares aos do ataque do instrumento produtor de som. No momento em que, o movimento corporal, ou o acionamento de objetos sonoros passa a se referir a um evento externo, cria-se o gesto propriamente dito, formatado como uma unidade no espaço e no tempo que apresenta relações com outros fenômenos além de si. O gesto vira um signo, porque se refere a algo para além de si. Portanto, o fenômeno do gesto revela-se como um meio, que interliga os eventos sonoros as ações tangíveis realizadas pelo aluno, de modo que, com o controle ativo do aluno seja possível não só a relação o tangível e o não tangível, mas também a sua própria significância. Assim, o gesto realiza-se como fenômeno de relação entre o corpo, som e significância, passando a servir de maneira instrumental para a escuta com um nível elevado de atenção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BACHRATÁ, P. Gesture Interaction in Music for Instruments and Electroacoustic Sounds. Tese de doutorado - Universidade de Aveiro, Lisboa, 2010. BOURSCHEIDT, L. A aprendizagem musical por meio da utilização do conceito de totalidade do sistema ORFF/WUYTACK. Dissertação de mestrado Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

806

III ESTÉTICAS, ARRANJOS E COMPOSIÇÕES

807

DE TODAS AS HARPAS À KORA: MALI E ISLÂNDIA NO

GLASTONBURY FESTIVAL Wellington Marçal de Carvalho [email protected] Doutorando em Letras – Área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Bolsista CAPES/PROSUP-II Palavras-chave: Música eletrônica. Etnomusicologia. Cora. Griôs nyamakola.

Objetiva apresentar o resultado de pesquisa realizada no âmbito das reflexões do Grupo de Estudos em Estéticas Diaspóricas (GEED), do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, cujos trabalhos estão relacionados à Linha 'Identidade e alteridade na literatura', no projeto de pesquisa intitulado 'Migrações e deslocamentos - a constituição de 'estéticas diaspóricas' nas literaturas africanas de língua portuguesa'. Como viés das discussões do GEED, o universo dos griôs de parte do continente africano foi perquirido, notadamente, tendo como ponto de partida um tipo específico de harpa, denominada kora, uma vez que este instrumento musical, presente na tradição de quase 150 povos africanos, é rico em significação simbólica. A partir de exaustivo levantamento bibliográfico em fontes especializadas foram consolidadas informações acerca da harpa em geral, na África, passando pela sua história, organologia e formas de construção. Isso permitiu desaguar em um tipo especial daquela classe instrumentística – a kora, ou korro, ou ainda cora. Tratase de uma harpa-ponte de 21 cordas tocada pelo homem Jali ou Jeli, músico profissional do povo Mande da Gambia, Senegal, Guiné, Guiné-Bissau e Mali. São apresentados os dados morfológicos, históricos, organológicos, as técnicas de tocar e a musicologia da kora. Após essa fundamentação a pesquisa verticaliza seu foco para o Mali, devido à importância exercida na história da música africana. No início dos anos 1970, a música dançante popular em Mali alcançou audiência internacional no oeste da África e, no final dos anos de 1980, destacaram-se alguns artistas musicais de Mali, dentre os quais se ressalta Toumani Diabaté, músico cuja formação própria é oriunda dos griôs nyamakola do tipo genealogistas e narradores orais. Toumani criou um método peculiar de se tocar tambor, solo e ritmo, todos ao mesmo tempo na kora, como se três pessoas estivessem tocando. O seu virtuosismo fez com que a kora alcançasse definitivamente seu lugar na cena musical popular do mundo. Esse fator rendeulhe algumas inusitadas parcerias, tais como a participação em uma faixa do álbum intitulado Volta da excêntrica cantora islandesa Bjork Gudmundsdóttir, inclusive, em apresentações em duetos, ao vivo, como o que se deu no Glastonbury Festival, em Pilton, Inglaterra, em 2007. O trabalho permite concluir, em sintonia com o pensamento de Toumani Diabaté, que ao se manter a

808

tradição da kora, não obstante quão modernizada a execução do instrumento esteja, essa peculiar harpa continua a desempenhar o seu papel de guardiã das tradições orais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HARP [in] AFRICA. SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove dictionary of music and musicians. 2. ed. New York: Grove, 2001. v. 10. p. 881-929. IMPEY, Angela. Popular music in Africa. In: STONE, Ruth M. (Ed.). Africa: the Garland encyclopedia of world music. New York: Garland Publishing, 1998. p. 420-422. KORA. In: SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove dictionary of music and musicians. 2. ed. New York: Grove, 2001. v. 13. p. 796-798. MALI. In: SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove dictionary of music and musicians. 2. ed. New York: Grove, 2001. v. 15. p. 688-696. TOUMANI DIABATÉ. In: SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove dictionary of music and musicians. 2. ed. New York: Grove, 2001. v. 7. p. 279.

809

ELABORAÇÃO DE ARRANJOS PARA CONTRABAIXO ACÚSTICO SOLISTA EM COLABORAÇÃO COM O VIOLÃO NO CONTEXTO ESTÉTICO DE OBRAS BRASILEIRAS Gadiego Carraro [email protected] Graduado em Música LP - UPF Mestrando em Performance Musical - UFG Palavras-chave: repertório brasileiro para contrabaixo, arranjos para contrabaixo acústico e violão, contrabaixo acústico solista;

O estudo relacionado à performance do contrabaixo acústico e sua inserção como instrumento solista em obras brasileiras, tem sido mais discutido atualmente, a exemplo das pesquisas de Sônia Ray (1996, 2006) e Fausto Borém (2002, 2003, 2006). Os autores refletem sobre o tema, através da discussão de práticas de performance, levantamento de repertório e ampliação do mesmo, inclusive pelo viés da elaboração de arranjos na Música Popular Brasileira (BORÉM, RAY, ROSA, 2011). Arranjo para obras brasileiras pode ser entendido pelo contrabaixo inserido na estética da MPB. Com o intuito de colaborar nesta discussão, este trabalho aponta para alguns momentos importantes que se fizeram fundamentais para que o contrabaixo assumisse características de protagonista e, também dos primeiros instrumentistas a deslumbrarem novas possibilidades de performance no âmbito internacional e posteriormente com reflexos no Brasil. Em seguida procura-se refletir sobre alguns aspectos presentes neste contexto, como o contrabaixo solista, a sua exploração na estética da MPB, colaboração e contribuição na performance com outros instrumentos. Também com relação à linguagem específica do instrumento, mesclando práticas musicais utilizadas na interpretação da música popular (MPB, Jazz, Música Latina, entre outras) e da música de concerto. Diante disso é possível observar as novas tendências de performance para o contrabaixo, como do aumento do seu leque expressivo e da linguagem idiomática que possibilitam o avanço no campo de atuação do contrabaixo solista e camerista. Para tanto, discute-se o processo de elaboração de arranjos para o contrabaixo acústico solista com violão, explorando recursos idiomáticos do contrabaixo usados em várias abordagens. Propõe-se o estudo e inserção de técnicas variadas de execução do contrabaixo mescladas em arranjos que valorizem o contrabaixo solista, possibilitando a expansão do repertório para este instrumento no contexto estético da MPB. Por fim sugeremse alguns procedimentos para confecções de arranjos para contrabaixo solista e violão, demonstrando-se algumas possibilidades de atuação do instrumento utilizando diferentes articulações (pizzicato e arco) em situações de acompanhamento e solista em obras brasileiras.

810

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORÉM, Fausto; SANTOS, Rafael dos. Práticas de Performance EruditoPopulares no Contrabaixo: Técnicas e estilos de arco e pizzicato em três obras da MPB. Música Hodie, Goiânia, v.3, n. 1 e 2, 2002, p. 60-75. BORÉM, Fausto; SANTOS, Rafael dos. Práticas de performance "eruditopopulares" no contrabaixo: técnicas e estilos de arco e pizzicato em três obras da MPB. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO EM MÚSICA, 14., Anais… Porto Alegre: ANPPOM, 2003, p. 1-20. BORÉM, Fausto. O repertório orquestral do contrabaixo: questões técnicomusicais na realização de pizzicati, harmônicos, vibrati e referências aos gêneros da música popular. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 16., Anais... Brasília: ANPPOM, 2006, p. 649-657. BORÉM, Fausto; RAY, Sônia; ROSA, Alexandre. Manhã de Carnaval: percepções na elaboração e realização de um arranjo para trio de contrabaixos. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA. 11., Anais... Goiânia, 2011, p. 59-64. RAY, Sônia. Catálogo de Obras Brasileiras Eruditas para Contrabaixo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1996. RAY, Sônia. Música Brasileira para Contrabaixo: coleta e disponibilização do repertório disponível. Per Musi, Belo Horizonte, v. 13, p. 1-9, 2006.

811

UMA ESTÉTICA DO SUBLIME NO PROCESSO COMPOSICIONAL DE SONATINA PARA PIANO E FAGOTE Willian Fernandes de Souza UFRJ

Trata-se de pequeno ensaio que apresenta uma reflexão do processo composicional da obra Sonatina para Piano e Fagote verificando possíveis tramas no ato criativo com a ocorrência da estética do sublime. Retomamos a discussão das especulações em dificuldades no processo composicional, já iniciada em nossa dissertação. (SOUZA, p.52) Na ocasião, verificou- se as soluções encontradas em dificuldades e buscou- se justificar sua ocorrência através da comparação entre o texto musical finalizado e o diário da composição. Agora, partiremos de algumas considerações com relação ao que chamamos de estética do sublime. A tese de Catharina Brillenburg (2002) será utilizada para fazer tal aproximação: apesar de seu trabalho abordar múltiplas facetas do que é sublime no ramo da estética, nos convém recortar aqui o “sentimento do sublime em termos da dor e prazer do processo criativo”. (BRILLENBURG, p.229) A trama construída por Brillenburg se fundamenta num argumento de Van de Vall sobre Lyotard, na qual “a indeterminação e a imprevisibilidade são tão centrais para qualquer ato criativo como eles são para a ocorrência do sublime”. (ibid.) A autora faz a conexão deste argumento com o processo criativo musical através de relatos dos compositores americanos experimentais (Cage, Feldman, e outros) e por Stravinsky. Assim, compararemos o processo composicional de Sonatina com as formas de compor relatadas por esses compositores – planejamentos composicionais – no diz respeito a (este) sublime. Brillenburg cria uma relação dos pintores da escola de New York, discutidos por Van de Vall, com os compositores americanos experimentais comentando que “eles não pintam [ou aqui, compõem] de acordo com um plano preconcebido; eles se estimulam [worked up] pelo momento”. (Van de Vall apud ibid., p.230) Estes vanguardistas acreditavam que, nesta forma de compor, havia a possibilidade de se manifestar algo repentino. Assim, a estética do sublime, da dor e do deleite, fica incorporada no próprio processo: seu descontrole e vigor. Esta forma quase autônoma de criação se opõe à qual Stravinsky se insere, ou seja, o sentimento do sublime no sujeito. Ele próprio descreve uma situação em que essa experiência da “dor” é sentida: Quanto a mim, sinto uma espécie de terror quando, no momento de começar a trabalhar e de encontrar-me ante as possibilidades infinitas que se me apresentam, tenho a sensação de que tudo é possível. (STRAVINSKY, p.63)

812

Brillenburg interpreta o terror descrito por Stravinsky diante da página em branco como uma ansiedade pela incerteza que vem da busca pelo ‘novo’ 1, do algo ainda-não-ouvido [unheard-of]. Lyotard, citado por Brillenburg, comenta uma relativização desse momento em que pode haver uma ruptura do ‘familiar’ para esse ‘novo’: Não somente frente à tela vazia ou página em branco, no ‘começo’ da obra, mas em cada momento que alguma coisa tem sido esperada, e assim molda-se uma questão em cada ponto de interrogação, em cada ‘e o que agora?’. (LYOTARD apud BRILLENBURG, p.230)

Interpretando Lyotard, tal espera pode surgir em um ponto determinado no decorrer do processo composicional. Esta espera denota, segundo Lyotard e Van de Vall, um estágio de suspensão necessária. (BRILLENBURG, p.232) Seria o que Tchaikovsky (apud ibid.) cita como “um estado ‘sonambulístico’: Não nos ouvimos viver. É impossível descrever tais momentos”. Contudo, não é de uma suspensão literal, de uma passividade ao pé da letra, que faz com que “algo aconteça”. Brillenburg comenta de um “estado como uma ativa passividade” e exemplifica com o relato do pianista Claudio Arrau: numa interpretação, estar aberto para o inesperado, no intuito de receber uma coisa admirável, para adquirir o gesto ‘correto’, Arrau se prepara para estar despreparado. Então surgem algumas questões: “Não é, em outras palavras, a ansiedade da espera, do à frente não-conhecido, também um estágio essencial no processo criativo?” Indo mais além, o que seria o prazer característico do sublime no ato criativo? “Lyotard, como Van de Vall, (…) consideram o estágio da suspensão um modo de passagem necessário conduzindo das dores da frustação e da indeterminação para os prazeres da invenção”. (ibid. p.232) Ou ainda segundo Brillenburg, “uma incerteza que tem de ser superada, suprimida, apagada para então se poder prosseguir e criar” (ibid., p.231). Sendo assim, o sentimento da dor e do prazer, acontecem em fases distintas através da materialização dessas vicissitudes – dificuldades, estarrecimento, frustação, ansiedade, e outras citadas ao longo do texto – enfrentadas no ato criativo. Dado alguns pontos de Brillenburg retrabalhando Van de Vall e Lyotard, trataremos do processo composicional de Sonatina e de suas dificuldades. Há aqui, uma questão essencial: seriam, de fato, as dificuldades no processo criativo, experimentações do sentimento do sublime? Onde estariam tais ligações? Se para essa pergunta houver resposta, buscaremos entendê-la a partir das analises e

Cabem aqui considerações do que interpretamos como novo na dissertação de Brillenburg. Nos chama atenção duas acepções: a primeira, onde o novo é a evolução, através da história da música, de formas de linguagens adquiridas. E a segunda, circunscrita ao sujeito, onde a busca da auto expressão do compositor caracteriza tais sentimentos. Evidentemente, estamos nos baseando pela segunda. 1

813

especulações feitas na dissertação, cotejando as dificuldades com o sentimento do sublime. No processo composicional optado em Sonatina, usou- se “o material gerado no seu início como fonte para obra como um todo, deixando mais livremente o processo”, (SOUZA, p. 53) e definindo a forma aos poucos. Com isso, a imprevisibilidade característica da estética do sublime, vista no argumento de Van de Vall, pôde atuar, revelando então, menções a dificuldades, que foram cinco e divididas em intervalos esparsos no processo. Foi verificado que a ideia inicial, o material gerado, não foi visto como uma dificuldade, pois ocorreu um jorro criativo logo no momento de começar a trabalhar. Desse modo, se compararmos com a citação de Stravinsky, descartamos, no processo de Sonatina, a atuação do sentimento do sublime, do estarrecimento frente à folha em branco, no seu início. Ainda assim, este processo se aproxima à forma de compor relatada pelo compositor russo em detrimento da ausência de planos dos compositores americanos experimentais: “Devo, de minha parte, impor minhas próprias regras... Minha liberdade, portanto, consiste em mover-me dentro da estreita moldura que estabeleci para mim mesmo em cada um de meus empreendimentos. (…) Quanto mais restrições nos impusermos, mais libertamos nossa personalidade dos grilhões que aprisionam o espírito”. (STRAVINSKY, p.64)

É evidente que precisaríamos tomar como objeto o processo composicional de Stravinsky a partir de alguma composição sua para melhor compará-la com Sonatina. Porém, esta citação nos mostra que é possível verificar que há semelhança da auto imposição de regras e restrições feitas por Stravinsky e o processo de Sonatina. Destacamos então, que a estética do sublime pode variar de ocorrência pela forma como o processo composicional acontece. Vimos que pelo relato de Stravinsky, numa possível falta de planejamento, faz ele se perder num abismo de liberdade. Em contrapartida, Stravinsky se impõe regras e restrições para poder expressar algo que faça sentido para si. Já o processo de Sonatina, pela forma de feedback do material gerado e as restrições fechando a composição aos poucos, nos mostra que as dificuldades foram aparecendo gradativamente: apareceram nos compassos 53, 105, 112, 146, 164. A primeira dificuldade foi tratada como um travamento, pois persistiu por quinze dias, enquanto todas outras duraram em torno de três dias. Do travamento, analisou- se que foi “uma tomada de decisão importante, pois é ele que define dois pontos culminantes da peça”2 (SOUZA, p.60) e que buscou- se a

Uma discussão a ser feita, que ultrapassa a ideia deste texto, é a possibilidade do sublime na narrativa da peça. Vimos que tal travamento proporcionou a ideia da contração em segundas 2

814

melhor textura para a ideia da contração naquele momento, podendo caracterizar assim uma aquisição de técnica composicional. Outras dificuldades que merecem ser comentadas são a quatro e cinco, pois mostram certa inquietação: na quarta, o esgotamento do material até então utilizado solicitou a procura por novas maneiras de apresentá-lo; e na quinta, o relato revela a busca pelo ‘novo’ no discurso (ritmos sincopados aparecem na obra). Dessa maneira, tentando responder a pergunta que havíamos deixado acima, talvez a estética do sublime, no processo da Sonatina, esteja na vontade de adquirir a técnica composicional adequada, na angústia de decidir a melhor forma de apresentação do material, na ansiedade de descobrir o novo para si. Podemos dizer que as dificuldades retrataram o sentimento de dor e prazer acontecendo ao mesmo tempo, pois além das vicissitudes ditas acima, verificouse o surgimento de um manancial de ideias em cada um desses momentos. As soluções encontradas em cada momento são equivalentes ao gesto ‘correto’ descrito por Arrau. Contudo, o deleite segundo Brillenburg, da materialização na obra de arte, somente aparece ao final da composição. Passando pelas dificuldades, pela resolução de tais problemas, e chegando-se à conclusão da composição, se efetiva o sentimento de prazer da invenção. PARTITURA

menores. Essa contração é uma das características mais importantes na construção da textura e em processos de intensificação e apassivação, discutidas num outro capítulo da dissertação.

815

816

817

818

819

820

821

822

823

824

825

826

827

828

829

830

831

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRILLENBURG Wurth, Catharina. Musically sublime: indeterminacy, infinity, irresolvability. The University of Groningen, 2002 (Tese de Doutorado). Disponível em: http://dissertations.ub.rug.nl/faculties/arts/2002/c.a.w.brillenburg.wurth/. SOUZA, Willian F. A composição musical entre a realização prática e sua narrativa: um estudo de caso. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013 (Dissertação de mestrado). Disponível em: http://www.4shared.com/office/DTu4NouY/Willian_Fernandes_-_Dissertao_.html STRAVINSKY, Igor. Poética Musical: em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

832

SONATAS D´APRÈS SCHUBERT/BRAHMS: UMA LEITURA RIZOMÁTICA DO FLUXO DE CONSCIÊNCIA Yuri Behr Kimizuka [email protected] UDESC - PPGMus

A forma sonata1 é um dos grandes arcabouços dentre as formas musicais herdadas do classicismo, e apresenta inúmeros desafios tanto para aqueles que se dedicam à composição quanto à sua análise. Para Hepokoski (2010) a forma sonata no século XVIII se constituía de uma construção temporal feita através de materiais simples que consistiam no forjar de uma sucessão de unidades musicais conectadas linearmente umas às outras como numa corrente. Mas apesar da complexidade de elaboração que essa forma atingiu, desde então, nunca se libertou dessa linearidade. O conceito filosófico que permeia a composição de Sonatas “d´après Schubert/Brahms” é o rizoma, tal qual foi proposto por Deleuze e Guatari. Aqui a forma é pensada de maneira não linear, na qual os cortes de desterritorialização remetem à multiplicidade, em oposição ao dualismo da estrutura tradicional. “As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras.” (DELEUZE, 1996) A desterritorialização implica também numa contínua transformação, nas muitas possibilidades de se conectar com o outro. O processo de desterritorialização implica em uma nova territorialização, e dessa maneira cria um fluxo contínuo. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras. (DELEUZE, 1996 ) A outra ideia que permeia esta composição é a de “Fluxo de Consciência” , que foi originalmente criada pelo psicólogo William James no final do séulo XIX em sua principal obra Princípios de psicologia (CARVALHO, 1981). William James criou este termo para demonstrar a continuidade dos processos mentais, que não se manifesta fragmentadamente, em pedaços sucessivos, mas num “fluxo” contínuo de pensamentos. A literatura apropriou-se deste termo para denominar as técnicas literárias nas quais há uma tentativa de representação dos

1

A forma sonata no contexto desse artigo, refere-se ao Allegro de Sonata.

833

processos mentais e dos pensamentos das personagens, tais como ocorreriam em suas mentes. No Monólogo Interior Orientado há uma representação do conteúdo psicológico da personagem articulado pelo narrador; o autor serve de mediador entre a psique da personagem e o leitor. (CARVALHO, 1981) A memória, no entanto, não é um fator de reconstrução do passado, de reminiscência, nem estabelece qualquer hierarquia cronológica, ela apenas liga uma ideia a outra. Este mesmo conceito também permeia o rizoma, como descrito por Silvio Ferraz: Não há no rizoma uma unidade pivotante a partir do qual se organiam os estágios sucessivos. O que há é uma experimentação que tem por via de acessoa realização de percursos e saltos (...) Nesse sentido o rizoma é o oposto de uma estrutura. A estrutura se define por um conjunto de pontos e de posições relacionáveis duas a duas: de uma posição a outra por relações hierárquicas ou de um ponto a outro, ligando sempre um grau superior a um inferior. (FERRAZ, 1996, p.110) Ao utilizar o conceito de rizoma, nesta composição a ideia de uma possível forma de sonata é concebida a partir de um processo de articulação à maneira do fluxo de consciência e da memória, que é aqui elaborado a partir de materiais musicais provenientes de duas sonatas emblemáticas do repertório: a Sonata para cello e piano op.38 de Brahms, e a Sonata Arpeggionne de Schubert. São duas obras que funcionam como manancial motívico e para as quais o pensamento articulado pelo narrador, no caso o compositor, se comporta de maneira rizomática. Isso porque há um fluxo contínuo, mas nenhuma hierarquia. Cada ponto, ou motivo temático, está ligado aos outros de maneira independente que se territorializam e desterritorializam ao longo da composição. Existe ainda um conceito de tema, mas não de contraste entre tonalidades. O desenvolvimento deixa de ser a parte central da forma para estar presente na forma como um todo. Nesse sentido Messiaen (1956) já apontava o caminho ao dizer que o mais importante na forma sonata é o desenvolvimento, em detrimento da recapitulação, que segundo ele tornou-se obsoleta. Então, se de fato a recapitulação perdeu o sentido é porque esta já está contida no desenvolvimento no sentido rizomático. De outra maneira haveria uma hierarquia, coisa que esta concepção de forma sonata não pressupõe. Os outros elementos que são inseridos funcionam como linhas de corte em relação às duas obras já mencionadas, mas essas linhas segmentares fazem parte do fluxo de consciência. Elas não são pedaços fragmentados, mas antes cortes do monólogo interior; são comentários do narrador. Os grupos temáticos são dessa maneira formados por motivos provenientes das sonatas de Brahms e de Schubert e entremeados por motivos originais. Apesar de aspecto tonal ter sido preservado não há qualquer predomínio de uma tonalidade sobre a outra, nem uma hierarquia ou contraste tonal como nas

834

sonatas tradicionais. Os temas são conectados e separados apenas pela memória, e a linhas de corte podem tanto unir quanto separar os mesmos. A audição dessa sonata será, evidentemente, para a maior parte das pessoas orientada pelo reconhecimento dos diversos elementos provenientes do romantismo. Quanto maior for a familiaridade com as obras originais de Brahms e Schubert mais o ouvinte irá se conectar com a ideia de uma forma rizomática, uma vez que ele irá perceber clararamente as desterritorializações, linhas de fuga, e como os materiais se entrelaçam. Todavia mesmo aqueles que não conhecem ambas as sonatas, de Brahms e Schubert, irão perceber que a forma musical aqui proposta trabalha todos os elementos motívicos num fluxo contínuo de repetições, à ótica do que Deleuze chama de “sínteses de tempo2”.“O presente, o passado e o futuro se revelam como Repetição através das três sínteses, mas de modos muito diferentes, O presente é o repetidor, o passado é a repetição, mas o futuro é o repetido.” (DELEUZE, 1968, p.91) Nesse sentido a ideia de Messiaen a respeito da obsolecência da recapitulação se explica, uma vez que o futuro é repetido. Na sonata clássica havia uma proposta, ou problema, tonal que precisava ser resolvido, a recapitulação tinha essa função. Mas aqui o fluxo procede continuamente, como no monólogo interior, de modo que não há necessidade de resolver qualquer proposta no futuro. Isso se explica ainda na onisciência do autor que já conhece de ante mão as três instâncias. Por certo este é apenas o início de um pensar a forma sonata para além dos moldes pré-estabelecidos. As análises das sonatas para piano de Beethoven, especialmente a op. 53 nº2 “a tempestade”, tem demonstrado que essas ideia não são exatamente novidade. Aliás, o novo não é o que está em questão, mas sim a composição de uma forma sonata e suas relações com a memória e a repetição. Pensar a forma sonata sob essa ótica, do fluxo de consciência e do rizoma, é também abrir possibilidades para uma estética de multiplos territórios; uma estética na qual os temas não são subordinados a nenhum polo tonal, ou ordem fixa. Todas as possibilidades estão presentes e se movimentam em um fluxo contínuo, um devir, o qual cabe ao ouvinte mapear. PARTITURA

As três sínteses do tempo segundo Deleuze são: o presente vivo, o passado puro e a insuficiência do tempo. 2

835

836

837

838

839

REFERÊNCIAS CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco Narrativo e Fluxo de Consciência: Questões de Teoria Literária. São Paulo: Pioneira, 1981. DELEUZE, Giles e GUATTARI, F. Mil Platôs. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 1996. FERRAZ, Silvio. Música e Repetição: aspectos da diferença na música do séc. XX. S.Paulo: EDUC/Fapesp, 1998. HEPOKOSKI, James, and Warren Darcy. Elements of Sonata Theory: Norms, Types, and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata. New York: Oxford University Press, 2006. MESSIAEN, Olivier. Technique de mon langage musical. Paris: Leduc, 1956.

840

DANÇA COM LOBOS João Francisco de Souza Corrêa [email protected] UFPR

A presente obra intitulada Dança com Lobos – composta entre o período de junho a setembro de 2012 – consiste em uma música eletroacústica mista em que o violão opera como instrumento principal. Este trabalho apresenta uma versão para violão solo da obra, que quando composta, também foi pensada e concebida para ser executada desta maneira. O principal procedimento composicional da obra se baseia na intertextualidade. Tal mecanismo composicional advém da coleta de elementos gestuais da literatura para violão, e a partir deles são engendradas transformações, com o intuito de obter novos materiais sonoros para compor. O critério destas transformações é livre. As transfigurações partem de idéias objetivas que acabam sendo trabalhadas de forma subjetiva. Estas transformações ocorrem em menor ou maior escala, e abrangem questões do âmbito técnico, mecânico e estrutural. As obras da literatura violonística utilizadas como material compositivo em Dança com lobos foram: Estudo n°1 de Villa-Lobos, Del Altiplano e El decamaron negro de Leo Brouwer, Sunburst de Andrew York e Koyunbaba de Carlo Domeniconi. Antes de discorrer sobre os procedimentos composicionais, cabe salientar os elementos mais significativos que constituem as seções da obra, conforme nos mostra a tabela abaixo. Superposição de camadas independentes. Melodia acompanhada. A [1-14] A’

[15-21]

B

[22-29]

C

[30-50]

D

[51-83]

E

[84-86]

A’’

[87-95]

Exposição do tema advindo do Pentacorde (composto pelas notas: Fá#, Sol#, Si, Dó# e Mi). Reiteração idêntica dos primeiros seis compassos do A.

Desenvolvimento da melodia baseada no sistema do Pentacorde. Variações do padrão de condução do discurso: melodia acompanhada, ligados e campanelas. Presença de elementos do A e do C. Mecanismo em campanelas e ligados. Combinação simétrica de digitação. Repetição sistemática do acorde na progressão harmônica. Últimos doze compassos laboram como ponte para o D. Existência de aspectos do B e D. Reiteração em cada acorde da progressão harmônica. Expansão do padrão de ligados. Citação literal e conseqüente fuga da intenção expressiva do texto inicial. Ligação breve entre as seções. Retomada de elementos iniciais. Padrão de ligados e arpejos conduz o discurso. Tema inicial provindo do pentacorde transcorre sob uma variação na planificação harmônica.

841

E’ A

[96-101] Padrão harmônico idêntico a primeira transição. Variações no

[102115] Coda [116121]

discurso, ritmo e digitação. Reiteração idêntica do A.

Exposição final dos elementos compilados do A.

Figura 1 – macroestrutura de Dança com Lobos.

PROCESSOS COMPOSICIONAIS A primeira obra a ser destacada é Koyunbaba de Carlo Domeniconi. O aspecto extraído desta peça foi o uso do mesmo modelo de afinação1 em Dança com lobos. Em Koyunbaba, a maneira como se organiza a afinação das cordas do violão sofre significantes alterações, aumentando a extensão das notas no instrumento com o acréscimo de um tom e meio no registro grave. Esta afinação, que caracteriza o acorde de Dó# menor proporciona uma ampla utilização das cordas soltas2. De acordo com Cumming (2005), ao valer-se desta afinação Domeniconi buscava assemelhar a sonoridade do violão com o baglama, instrumento tradicional da Turquia.

Figura 2 – afinação: Koyunbaba e Dança com lobos.

A figura anterior mostra lado a lado a maneira como se dispõe na partitura a afinação de ambas as obras. A primeira seção da obra é concebida de modo distinto em relação aos demais processos aplicados em Dança com lobos. Distinto, porque o procedimento A afinação tradicional do violão é estabelecida pela configuração Mi, Si, Sol, Ré, Lá e Mi, enquanto em Koyunbaba a afinação consiste em Fá, Ré, Lá, Ré, Lá e Ré. 2 A afinação que consta na partitura se estabelece meio tom acima da indicada no texto, em Ré menor. Entretanto, devido à alta tensão provocada pela afinação mais aguda das cordas primas, a maioria das interpretações de Koyunbaba – inclusive a do próprio Domeniconi – são executadas na afinação de Dó sustenido menor. 1

842

transfigurador ocorre mediante uma experiência de escuta, ao contrário dos outros processos que decorrem de uma concepção mecânica ou estrutural. Esta experiência de escuta ocorreu no recital do violonista Thiago Colombo de Freitas na noite de 04/06/2012 no 4º Festival de Violão da UFRGS em Porto Alegre, que na ocasião executava a obra Danza Del Altiplano, a primeira das três peças Latino Americanas de Leo Brouwer. Nesta ocasião, a sonoridade impactante da execução do início da obra me chamou a atenção e a impressão que tive desta experiência implicou na concepção dos primeiros esboços de Dança com lobos.

Figura 3 – Danza Del Altiplano.

A partir desta experiência de escuta uma ideia sonora erigiu-se como sistema condicionante dos materiais do início de Dança com Lobos. Esta ideia compreendia que a introdução da obra deveria ser constituída de elementos expressivos que informassem ao ouvinte um resultado sonoro impactante. Portanto, os materiais foram trabalhados fazendo uso de alguns elementos, que para mim, poderiam expressar em sons esta ideia. O resultado do processo compositivo deste trecho contempla: acordes suspensos, oriundos da sobreposição das notas do pentacorde dispostos em intervalos de quarta, condicionando a planificação harmônica a um caráter suspensivo; disposição rítmica em duas camadas independentes, em que uma é provida de caráter sincopado e mais acelerado enquanto outra realiza menos eventos, mas com ataques mais contundentes; uso de ataques no registro grave e ações em dinâmica elevada, crescendos e sforzandos; e ainda, a ampla ressonância dos harmônicos e parciais do violão provocada pela utilização concomitante de cordas soltas e notas campaneladas, como nos mostra o exemplo a seguir.

843

Figura 4 – Dança com Lobos [1-4].

A próxima obra a ser destacada é Sunburst de Andrew York. Nesta obra, o mecanismo empregado na criação de novos materiais foi o uso sistemático de campanelas aliada aos ligados articulados com cordas soltas. Este trecho situa-se do [35] ao [42].

Figura 5 – Sunburst [35-42].

Em Dança com lobos a aplicação deste mecanismo – que se sucedeu em grande parte da seção C e em alguns trechos de transição – não consistiu na extração e aplicação direta de um modelo estrutural pré-elaborado, e sim no seu pensamento mecânico integral, que compreende a combinação progressiva de cordas friccionadas e cordas soltas acionadas por ligados.

844

Figura 6 – Dança com lobos [30], [40] e [99].

Os trechos situados no [30] e [40] demonstram maneiras distintas de como se comporta este mecanismo, o trecho situado no [99] revela uma concepção mais distante deste padrão. Na seção D, a transfiguração do material original em material novo alcança sua participação mais extrema no artesanato compositivo de Dança com Lobos. Esta transfiguração explícita fica por conta do Estudo n°1 de Villa-Lobos. O elemento absorvido em sua essência foi a configuração harmônica quase idêntica seguido do sistema de reiteração de acordes, enquanto que as diferenças se situam na troca de mecanismos técnicos envolvendo blocos de acordes por ligados com cordas soltas. A seguir temos a imagem comparativa entre o mecanismo original do Estudo nº 1 de Villa-Lobos com o mecanismo transfigurado presente em Dança com lobos. No Estudo nº 1 o discurso se desenvolve através de um dedilhado repetido da mão direita enquanto as mudanças ficam a cargo da progressão harmônica tonal realizada pela mão esquerda. Ao contrário do Estudo n°1, em Dança com lobos, as mudanças na harmonia não são realizadas em blocos e sim através de uma melodia acompanhada desempenhada por ligados articulados com as cordas soltas.

Figura 7 – Comparação do mecanismo do Estudo n°1 com Dança com Lobos.

Um elemento muito presente na obra é um mecanismo técnico que articula um arpejo ascendente seguido de aplicações melódicas3. O arpejo é realizado nas cordas graves e acompanhado de notas da escala articuladas por ligados em um movimento que se direciona ao registro agudo. O uso desta afinação permite ao interprete realizar com apenas uma pestana o arpejo configurado por Tônica, quinta e oitava. 3

845

Este mecanismo foi extraído de um trecho presente no terceiro movimento – Balada de la doncela enamorada – da obra El Decameron Negro de Leo Brouwer.

Figura 8 – Balada de la donzela enamorada [79] e [98].

O exemplo anterior representa como Brouwer utiliza este mecanismo em trechos distintos de um mesmo movimento. O uso da sexta corda do violão afinada em Ré permite que esta configuração melódica de arpejo seja possível de ser executada apenas com o uso de uma pestana. Após tanger as três primeiras notas, ocorre um ligado na quarta corda, prosseguindo com o arpejo que completa o acorde, soando em legato. Ao longo da obra este mecanismo é abundantemente explorado por Brouwer.

Figura 9 – Dança com lobos [10], [86] e [92].

Em Dança com lobos este mecanismo se assemelha fundamentalmente no seu ímpeto inicial, que consiste em articular um arpejo ascendente com ligados. As diferenças incidem na ampliação do ligado de mão esquerda, que utiliza três ao invés de duas notas, e também, ao acréscimo de cordas soltas ao final das frases com o intuito de prolongar a ressonância do fraseado. PARTITURA

846

847

848

849

850

851

852

853

854

855

856

857

858

859

860

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUMMING, Danielle. Led Zeppelin and Carlo Domeniconi: Truth without authenticity?. Faculty of Music, McGill University, Montreal. 2005.

861

AS SÚPLICAS DO CARGUEIRO NEGRO Arthur Vinícius [email protected] Graduando em Composição - Escola de Música da UFMG

TEXTO DE APRESENTAÇÃO Os mares guardam muitas histórias sonoras. Brados de glória e perdição, suplícios agudos de almas que rodopiam nas ondas. Rangidos de mastros governados por forças não-humanas, que ecoam sons. A proposta aqui é escutar o ressoar de quase-sons que as madeiras – nobres, velhas, produzidas na China ou em Sabará/MG - captam quando estão à deriva no mar. SOBRE O LISO E O ESTRIADO Uma dos interesses que a peça tenta suscitar reside no possível confrontamento – tanto no nível da escuta quanto no nível performático – potencializado pelos contrastes e semelhanças entre espaços musicais lisos e estriados. O mar se assemelha a tal modelo ambíguo: [Ele] é talvez o principal espaço liso, o modelo hidráulico por excelência. Mas o mar é também, de todos os espaços lisos, aquele que mais cedo se tentou estriar, transformar em dependente da terra, com caminhos fixos, direções constantes, movimentos relativos, toda uma contra-hidráulica dos canais ou condutos. Uma das razões da hegemonia do Ocidente foi a capacidade que tiveram seus aparelhos de Estado para estriar o mar, conjugando as técnicas do Norte e as do Mediterrâneo, e anexando o Atlântico. Mas eis que esse empreendimento desemboca no resultado o mais inesperado: a multiplicação dos movimentos relativos, a intensificação das velocidades relativas no espaço estriado, acaba reconstituindo um espaço liso ou um movimento absoluto. (DELEUZE e GUATARRI, 1997, pág. 52)

Do liso ao estriado, do estriado ao liso. Musicalmente, como pensar esses dois modelos de ocupação do espaço sonoro? Pierre Boulez distingue assim dois espaços-tempos da música: no espaço estriado, a medida pode ser irregular tanto quanto regular, ela é sempre determinável, ao passo que, no espaço liso, o corte, ou a separação, "poderá efetuar-se onde se quiser". (DELEUZE e GUATARRI, 1997, pág. 20, nota 15 apud «Penser la musique aujourd'hui», P. Boulez, pp. 95-107).

Blocos internamente lisos, externamente estriados Nas seções A e E, os acontecimentos sonoros se fazem por relações de distância não-mesurada. Ocupa-se o tempo através das relações entre acontecimentos sonoros. Na peça, a operação de ocupação do tempo ocorre pela

862

tradução da linguagem gráfica – qual evento ocorre, graficamente antes, depois, concomitante). A régua para medir o tempo de ataque é de cada intérprete. A estriagem ocorre em um âmbito macrotemporal.

Blocos internamente estriados, externamente lisos Nas seções B, C e D, a estriagem ocorre a partir da unidade de tempo (semínima = 50 bpm). Entretanto, a polimetria cria uma grade temporal com pontos de defasagem e convergência entre macropulsos internos de cada linha métrica. Caso a taxa de defasagem seja superior à de convergência, alcança-se uma ocupação – em termos de macropulsos – de caráter liso. Através do estriado. Contrabaixo Cbx. I Cbx. II Cbx. III Cbx. IV

Macropulso 8 colcheias em tercina 13 semicolcheias em quintinas 11 semicolcheias em quartinas 16 semicolcheias em septinas TABELA 1. Macropulsos de cada linha métrica

Modelos de ocupação temporal distintos, formas de expressão múltiplas Minha intenção não é provocar um valoração de gosto acerca do tempo liso comparado ao tempo estriado. São modelos de ocupação com perdas e ganhos e, veremos, muito facilmente intercambiáveis. A seção B é uma transcrição (ao gosto do compositor) mesurada de um trecho da seção A. Durante o semestre, fui confrontado com a seguinte proposição: se o resultado sonoro é semelhante, então porque estriar o tempo e complicá-lo com divisões rítmicas incomuns, consequentemente, trabalhosas para serem executadas? No tocante à escuta, me interessa a ambiguidade que reside em não saber se é liso ou estriado o que soa. Uma coisa é o mapa-partitura, outra, é o resultado sonoro de sua tradução. Quanto à executabilidade, há perdas e ganhos seja qual for o modelo: enquanto na ocupação lisa, se ganha um tipo de expressividade (a saber, a relativa liberdade de mesuração do tempo), na ocupação estriada, se é possível explodir gestualmente a unidade de tempo.

863

FIGURA 1. Tempo liso e tempo estriado GEMIDOS AMPLIFICADOS – HARMÔNICOS O contrabaixo é um instrumento com qualidades harmônicas muito ricas. Na família das cordas friccionadas, ele possui, senão a maior, uma das maiores potências de amplitude quanto aos harmônicos naturais e artificiais produzidos. Vários são os fatores que determinam tal peculiaridade: comprimento e grossura da corda favoráveis, caixa de ressonância robusta, registro sonoro grave – o que permite classificar seus harmônicos em um registro médio-agudo, clareza do timbre, dentre outros.

Quatro afinações distintas = doze harmônicos naturais distintos A utilização de scodatura permite a utilização de grande gama de possibilidade de harmônicos naturais, que são mais facilmente realizáveis que os harmônicos artificiais de quarta e quinta posição.

FIGURA 2. Scodatura para os quatro contrabaixos

864

CAMINHOS HARMÔNICOS Os acordes utilizados na peça foram essencialmente derivados das possibilidades de conjugar os harmônicos naturais possíveis dos quatro contrabaixos. Tal combinação resultou em cerca de trinta acordes distintos. Para sistematizar as relações entre esses acordes, criei um modelo de fragmentação intervalar e classificação arbitrária dos mesmos. Por exemplo, a partir do acorde de índice 1, é possível visualizar as relações intervalares que o compõe.

FIGURA 3. Exemplo de acorde reduzido a matriz de nove posições

FIGURA 4. Encadeamento harmônico da seção A Descreverei na prática o procedimento harmônico por liame arbitrário. Na seção A, o encadeamento harmônico inicia com o acorde arbitrário lá#-mi-sol#. O acorde 14 possui a mesma nota que o anterior. Em seguida, o acorde 8 possui o mesmo intervalo entre soprano e baixo que o acorde 14 – segunda menor

865

(lá#:si[14] :: fá#:sol[8]). Segue que o acorde 11 possui o mesmo intervalo entre soprano e contralto que o anterior (lá#:sol :: sol:dó#). O critério da mesma nota é novamente utilizado para encadear em seguida o acorde 12, só que para a voz do contralto (sol). O penúltimo acorde é inserido a partir do mesmo intervalo entre soprano e baixo (lá#:lá :: ré#:ré). O último acorde foi escolhido a título de densidade e sonoridade a gosto do compositor. Na seção B, há um desenvolvimento harmônico através da inserção de novos acordes entre os acordes da seção precedente, por um procedimento pseudotonal, quase-dominante/quase-tônica (geralmente, se preserva somente a relação dominante-tônica entre as notas mais graves dos acordes). As seções posteriores são reiteradas harmônicamente em relação às seções A e B, com alterações harmônicas de âmbito melódico – principalmente no trecho D. MICRO-HETEROGENEIDADE TEXTURAL A seção A pode ser interpretada como uma abertura de possibilidades sonoras. Micro-acontecimentos sonoros, ou melhor, microvariações texturais ocorrem através de uma harmonia de caráter estático e quase homofônico. Um mapa de caráter serial foi utilizado para ordenar as microvariações do material sonoro. Seus elementos, distintos quanto à nomenclatura e até mesmo à técnica de produção sonora, foram aproximados e contrastados quando ao resultado sonoro. Semelhantes Transitório Semelhantes Nota presa-harmônica Non vibrato – vibrato

->

Glissando longa Glissando Sul pont – sul tasto duração – curto duração interval intervalo Tabela 2. Técnicas diversas e proximidades sonoras

curta longo

FILTROS RECURSIVOS – DIFERENÇA PELA REPETIÇÃO DE SEÇÕES Muito do trabalho de desenvolvimento formal da peça se encontra na tentativa de capturar forças sonoras não potencializadas em trechos anteriores a partir do trabalho de filtragem direcionada da escuta. Acredito na coerência desse tipo de procedimento pelo fato de que os materiais texturais iniciais possuem alto grau de heterogeneidade. Assim, a escuta reiterada de um determinado trecho pode, a cada vez, traçar mapas de significação distintos – ainda mais com a presença dessas filtragens.

866

Com tal procedimento de empobrecimento textural, elmentos antes escondidas começam a surgir na seção C. Filtra-se vários componentes harmônicos para destacar, pela falta, uma linha melódica cambiante entre instrumentos. Importante notar que a filtragem não é uma mera substituição de harmônicos por ruídos, mas de sons em que a escuta já se acostumou por quasesons – aqui a diferença aqui não é de natureza, e sim, de grau.

FIGURA 5. Seção C – linhas melódicas e fundo quase-sonoro Uma linha melódica se define, além das suas alturas, do seu estriamento temporal. As notas do desenho melódico duram um determinado tempo, minimamente seguro de reconhecimento pela nossa percepção auditiva. O “alisamento” das linhas melódicas se configura pelos glissando, pois, ao invés de perceber elementos definíveis, a audição capta a taxa de variação das alturas, e não propriamente as alturas (a não ser, talvez, o início e o fim do glissando).

FIGURA 6. Glissandos com corda presa na seção C

867

Quando se fala em filtrar, se pensa em retirar. Mas também é possível criar outros caminhos de escuta através da explosão de micro-eventos1, por vezes pouco perceptíveis em um emaranhado de acontecimentos sonoros. Assim, na seção D ocorre a vazão-continuidade desses pequenos eventos, que, moribundos de início, ressoam gradual e obsessivamente, se impregnando de significância. Importante notar que é o trecho mais rico em texturas polifônicas, já que o desenvolvimento dos gestos é relacional e diacrônico. Inicialmente desenvolvidos por procedimentos tradicionais (geralmente o agrupamento adicionado ao gesto corresponde à inversão intervalar não-estrita do mesmo), cada linha encadeia ao fim de seu gesto algum trecho do gesto anterior de outra linha, só que em seus próprios termos, ou seja, em seu próprio pulso.

FIGURA 7. Gestos desenvolvidos – adição de inversões não-estritas dos próprios gestos

FIGURA 8. Gesto “original” e gesto transformado Talvez seja interessante refletir juntamente com Marshall Sahlins (1987) acerca da distinção entre acontecimento e evento. O primeiro denota a qualidade de algo histórico, que ocorre de fato. O evento se fundamenta na significação do acontecimento, operado através das categorias de pensamento particulares a um povo, por exemplo. Se estendermos essas noções à música e interpretarmos o ouvinte como um lugar de produção de significados únicos, acredito que esse tipo de sonoridade se aproxima de escutas menos munidas de categorias pré-estabelecidas de percepção. Em outras palavras, o ouvinte se torna compositor, pois o material sonoro está, supostamente, à deriva. 1

868

PARTITURA

869

870

871

872

873

874

875

876

877

878

879

880

REFERÊNCIAS DELEUZE, G.; GUATARRI, F. 1997. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. 1ª edição. Editora 34. São Paulo. SAHLINS, M. 1987. Ilhas de história. Editora Zahar.

881

MILONGA NOVA Gadiego Carraro [email protected] Graduado em Música LP - UPF Mestrando em Performance Musical – UFG

A obra Milonga Nova aborda o diálogo do contrabaixo acústico com o violão. Está estruturada na forma ABA, porém recebe adições estruturais que buscam evidenciar o caráter camerístico da obra, entre os quais introdução, interlúdio, além de trechos abertos para a improvisação. Ramil (2004) esclarece em suas reflexões, que sempre houve uma busca de sua parte em definir a música feita no sul e como se associava a uma estética do frio, sua conclusão foi de que tudo sempre acabava desencadeando para a milonga. De fato a milonga como gênero musical pode ser enquadrada como de origem platina, estruturada em ritmo binário, normalmente cantada ao som do violão. Nativamente é interpretada com canto em voz empostada, demonstrando muita rigidez, sentimento e melancolia. Para o compositor, escritor e intérprete Vitor Ramil a referência estética da milonga vai muito além de um conceito musical, antes representa o próprio jeito de ser do gaúcho que vive na região do pampa (RAMIL, 2004). O autor ainda complementa: Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil. A discussão em torno de sua origem expressa bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas: há teses para sua origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem uruguaia; sua ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana, mais especificamente cubana. (RAMIL, 2004, p. 21).

Para Loureiro Chaves o disco Ramilonga – A estética do Frio (1997) de Vitor Ramil reflete musicalmente muito mais do que se ouve tradicionalmente na milonga, pois apresenta uma visão estética ampliada do gênero, transformando a música regional em música do mundo. Uma reinvenção da poesia e da música onde a voz suave substitui o canto forte e o requintado tratamento harmônico e melódico redirecionam as estruturas usuais da milonga, representando o refinamento da própria figura gaúcho. O intuito desta breve reflexão acerca do gênero milonga, objetiva localizar o leitor com relação ao gênero musical milonga e da sua definição estética, principalmente a partir da obra a Estética do Frio (2004) de Vitor Ramil. Com isso objetiva-se o maior esclarecimento sobre o gênero musical milonga dentro dos moldes estéticos do gênero não nativo, mas cosmopolita, que recebe influências do mundo, ao passo, que também influencia. Voltando novamente a discussão da obra Milonga Nova, estão algumas características estéticas que tornam combinação sonora atraente entre o diálogo

882

do contrabaixo acústico e o violão, pois explora uma nuance intimista que propicia uma variedade de texturas e timbres, sugerindo associações com o clima do pampa gaúcho e da música sulina. Esteticamente esta obra não corresponde aos moldes tradicionais de estruturação do gênero, a não ser pela utilização do violão e emprego de melodias cantáveis. Antes disso explora uma maior abstração que ocorre pelo enfoque instrumental, que entrelaça momentos de rigor rítmico a outros totalmente líricos, que se intercalam a um interlúdio em harmonia suspensa que remete a sensação de flutuação da obra. Outro fator importante diz respeito à intencionalidade composicional que valoriza e evidencia à escrita camerística, que para Borém, Ray e Rosa (2011) reflete em um dos atributos principais da prática musical em câmara, pois a mesma parte do princípio da igualdade de importância entre os instrumentos na composição e arranjo musical. Na obra Milonga Nova as características exploradas no violão, estão principalmente à técnica de rasqueado, arpejos e blocos harmônicos em isoritmia, todos, recursos comuns na execução do violão erudito e popular. A escolha dos instrumentos teve como critério a relação e possibilidades de combinação sonora, também de particularidades musicais e estéticas de cada um dos instrumentos. Dentre elas, o violão por ser um representante genuíno das manifestações musicais do pampa gaúcho, estando presente juntamente com a “gaita” (como é conhecida no Rio Grande do Sul) em praticamente todos os gêneros musicais praticados no sul, sendo sua sonoridade imprescindível à estética da música pampeana gaúcha. O contrabaixo acústico por sua vez é um instrumento que ainda necessita ser melhor explorado na MPB, principalmente no âmbito solista e camerista1. Isso porque atualmente é sabido que o mesmo possui muitas possibilidades de atuar amplamente em um arranjo ou composição musical, tanto como acompanhante, solista e improvisador, motivando a ideia da composição em questão. De fato a utilização do contrabaixo acústico na Música Popular Brasileira ainda não é homogênea, sendo segundo Borém e Santos (2002), utilizado ainda tradicionalmente na maioria das formações instrumentais populares, como instrumento de acompanhamento, quase sempre em pizzicato. Tanto o contrabaixo como o violão são instrumentos transpositores uma oitava abaixo, de forma que soam em regiões complementares e próximas, facilitando combinações harmônicas e dispensando o uso de scordaturas na escrita para esta formação. Situações que podem ser facilmente observadas na obra em questão, onde os instrumentos atuam em combinação e complementação timbrística em inúmeros momentos, essas combinações hora enfatizam o caráter rítmico, hora o melódico, delineando inflexões harmônicas que conduzem a Apesar de no século XX, alguns compositores observarem novas possibilidades timbrísticas para o contrabaixo, a exemplo dos Quintetos para cordas de A. Dvorak (1841-1904), Quintetos de S. Prokofiev (1891-1953), a Sonata de H. W. Henze (b.1926), as orquestrações de K. Penderecki (b. 1933), ainda a muito que fazer para a ampliação do repertório em câmara e solista, principalmente na MPB. 1

883

música e adicionam a ela um movimento constante que a impulsiona, sendo que, mesmo com a ausência da letra a lembrança da poética característica da milonga fronteiriça do pampa fica aparente. Sendo assim o foco desta abordagem composicional foi de explorar elementos estéticos e musicais do gênero fronteiriço do pampa (milonga), principalmente a luz da obra Estética do Frio de Vitor Ramil (2004), traçando algumas possíveis similaridades conceituais e musicais. Fundamentalmente a reflexão estética que constituiu o fio condutor deste trabalho voltou-se para o entendimento de mescla de elementos regionais e universais, que tentou-se elucidar musicalmente neste trabalho através da obra Milonga Nova. Para isso foram apresentadas algumas possibilidades de utilização do contrabaixo acústico em colaboração com o violão, considerando os recursos idiomáticos dos instrumentos e algumas possibilidades de diálogo camerístico entre ambos e das possíveis contribuições quanto à exploração de dois instrumentos acústicos tão representativos nas formações musicais atuais. PARTITURA

884

885

886

887

888

889

890

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORÉM, Fausto; SANTOS, Rafael dos. Práticas de performance "eruditopopulares" no contrabaixo: técnicas e estilos de arco e pizzicato em três obras da MPB. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO EM MÚSICA, 14., Anais… Porto Alegre: ANPPOM, 2003, p. 1-20. BORÉM, Fausto; Ray, Sônia; Rosa, Alexandre. Manhã de Carnaval: percepções na elaboração e realização de um arranjo para trio de contrabaixos. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA. 11., Anais... Goiânia, 2011, p. 59-64. LOUREIRO CHAVES, Celso. Ramilonga – a estética do frio. Disponível em: http://minerva.ufpel.edu.br/~ramil/vitor/discog/ramilong/release.htm. Acesso em 20/07/2013. RAMIL, Vitor. A estética do frio: conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004. DISCOGRAFIA Ramil, Vitor. Ramilonga – a estética do frio. (Satolep Music, 1997).

891

SÍNTESE ABSOLUTA Halley Chaves da Silva [email protected] Universidade Federal de Campina Grande José Liduino Pitombeira de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande

Nesse texto de apresentação do quarteto de cordas Infinictus Op.1, primeiro movimento, de Halley Chaves, descrevemos o planejamento composicional, com base na transposição sistematizada, para o plano musical, de princípios oriundos do pensamento dialético Hegeliano. No decorrer, apresentaremos estes princípios Hegelianos bem como sua tradução para o domínio musical, traçando um perfil musicológico-filosófico do processo triádico entre a tese, a antítese e a síntese. Com influência de Kant, Hegel introduz uma nova visão sobre a dialética. Segundo Kant, o sujeito é ativo na construção da realidade, portanto atua como protagonista do processo do constante devir. O “vir-a-ser” é uma nova lógica que Hegel denomina como dialética, que é o princípio de contradição. A palavra Dialética vem do grego dialektiké, a união de duas palavras: lego, “falar”, e dia, “através de”, “por meio de”. Para os gregos, constitui o diálogo, a arte da discussão. Para Hegel, elucida a mutação pela contradição. O constante devir é incorporado no primeiro movimento do quarteto infinictus Op.1, fitando o que Hegel chama de aufheben, “superar”. A importância do termo está em estabelecer um fundamento a “suprimir”, “negar” e também a “conservar”. Os termos tese, antítese e síntese são amplamente usados por musicólogos e por comentadores de Hegel atribuindo às três etapas da dialética Hegeliana. No entanto, Hegel não faz uso desses termos, ele foi introduzido em 1837 por um comentador, Heinrich Chalybaus. A partir do século XIX, a estrutura da dialética pós-hegeliana foi amplamente associada aos componentes da Sonata Clássica. Para Schmalfeldt (1995, p.53), a forma ternária da sonata clássica vem sendo associado à estrutura triádica do pensamento hegeliano (teseantítese-síntese). Na primeira metade do século XIX, A.B. Marx caracteriza a forma sonata ternária (exposição-desenvolvimento-recapitulação), como um componente de realização da dialética hegeliana. Schmalfeldt (Ibid., p. 38), entende que, para Dahlhaus, que (juntamente com Adorno) considera “a música de Beethoven como um convite à nossa percepção da forma como um processo dialético no preciso senso hegeliano”. Tradicionalmente, a estrutura dialética de Hegel é associada à estrutura da forma sonata clássica, especialmente em Beethoven. Examinou-se, entretanto, em uma pesquisa anterior (HALLEY, MATHEUS e PITOMBEIRA, 2012), a possibilidade de elaboração de uma estrutura musical que apresentasse uma maior relação de isomorfismo com a

892

dialética Hegeliana. Esta pesquisa resultou na composição da obra Sonatina Hegeliana, Op. 182, de Liduino Pitombeira, integralmente planejada com base na dialética Hegeliana. O ponto de partida para o planejamento do primeiro movimento de Infinictus foram duas escalas de tons inteiros complementares, isto é, duas escalas que formam um agregado cromático: [Dó, Ré, Mi, Fá#, Sol# , Lá#] e [Dó#, Ré#, Fá, Sol, Lá, Si]. Duas árvores dialéticas serão construídas a partir da segmentação destes hexacordes em estruturas menores: a primeira árvore é constituída de um tetracorde [Dó, Mi, Lá#, Fá#] e de uma díade [Ré, Sol#], que se encontram pelo processo de síntese dialética, onde o tetracorde é a tese e a díade é a antítese, reconstituindo a primeira escala de tons inteiros; a segunda árvore é constituída pelos tricordes [Fá, Sol, Si] e [Dó#, Ré#, Lá], que são posto em conflito e reestabelecem a segunda escala de tons inteiros. As sínteses resultantes destas duas árvores, ou seja, as duas escalas de tons inteiros complementares, são postas em contradição, na fase final, gerando a escala cromática, que é tratada como um moto perpétuo. Salienta-se que estas árvores atuam concomitantemente como duas estruturas independentes nos dois primeiros ciclos de produção de síntese, isto é, até que sejam produzidas as duas escalas de tons inteiros. A síntese (SAB) consistiria, nesse caso, na construção de um tema cujas alturas pertencessem à escala de tons inteiros. Em seguida o material gerado no processo de síntese se transformaria em uma nova tese, ou seja, SAB = C, o qual seria confrontado com seu antagônico (D), gerando nova síntese (SCD) e assim por diante, até a formação a primeira escala de tons inteiros (SM). Depois a segunda escala de tons inteiros irá se formar numa nova síntese (SGH) e irá repetir todo o processo até formar outra escala de tons inteiros (SN). As duas escalas de tons inteiros irão se fundir e irá gerar a síntese, SMN=O, o “Absoluto”. O absoluto é composto de doze notas, que comtemplam as duas escalas de tons inteiros, e completam as doze notas musicais, formando a possibilidade de trabalhar com o sistema tonal, como ocorre no decorrer do “SO”, ou até com a própria negação de um campo tonal usando a ideia de paralelismo e não resolução dos acordes, pois a síntese nessa composição permite o uso livre das doze notas. Em toda a peça há um constante devir da dialética Hegeliana, que se manifesta pela contradição dos aspectos sonoros. É esse devir referente à dialética hegeliana que determina o constante movimento da fala decorrente da escolha das formas musicais, proporcionando uma dança dialética. Desse modo, é visto que ocorre uma constante comunicação entre as notas que gera uma contradição ontológica de si mesmo e um eterno “vir-a-ser”.A escolha do nome da peça se deve aos fatores referenciais supracitados e há um tratamento filosóficopoético. O uso do sistema triádico pós-hegeliano (tese-antítese-síntese) aponta toda dialética inserida no processo de composição do primeiro movimento do quarteto Infinictus Op.1. Hegel cita constantemente em suas obras, o devir entre o objetivo, o subjetivo e o absoluto, que dá a se entender que se trata dos mesmos

893

termos. Em virtude disso, o nome do primeiro movimento do quarteto foi batizado como: “Síntese Absoluta”. PARTITURA

Figura 1: Gestos iniciais do Primeiro Movimento do quarteto de cordas Infinictus Op.1 de Halley Chaves

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena. Filosofando: introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Moderna, 2009. ARAÚJO, Augusto Matheus, SILVA, Halley Chaves, OLIVEIRA, Liduino José. O

pensamento dialético de Hegel como estrutura fundamental do planejamento

894

composicional de uma Sonatina para piano. In: XXII Congresso da ANPPOM. João Pessoa-PB, 2012. DAHLHAUS, C. Nineteenth-Century Music. Los Angeles: University of California Press, 1989. DAHLHAUS, C. Ludwig van Beethoven. Approaches to His Music, trans. Mary Whittall (Oxford: Clarendon, 1991), 170. HEGEL, G. W. F. Aesthetics Lectures on Fine art by G. W. F. Hegel . Translated by T. M. Knox, Volume i Clarendon Press Oxford. New York: Oxford, 1975. _______________. Textos dialéticos. Trad. Djacir Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. SCHMALFELDT, J. Form as the Process of Becoming: The Beethoven-Hegelian Tradition and the Tempest Sonata. REYNOLDS, C., Ed. Beethoven Forum. London: University of Nebraska Press, p. 37-71, 1995.

895

MISANTROPIA Igor Mendes Krüger [email protected] Universidade Federal do Paraná (UFPR)

INTRODUÇÃO “Misantropia” é a primeira faixa do disco conceitual1 Olhar, a composição deste disco faz parte da minha pesquisa para a formulação do memorial descritivo de dissertação de mestrado, ainda em andamento. Neste projeto composicional, são justapostas características estilísticas de bandas de rock progressivo e técnicas composicionais pertencentes a música contemporânea de concerto, formando assim um hibridismo composicional. Do rock progressivo utilizei principalmente a instrumentação básica que conta com guitarra, baixo, sintetizador e bateria; a forma do disco conceitual que se utiliza narrativas extramusicais para unir tematicamente todas as faixas do disco; e a ideia de compor músicas especificamente para gravação. Da música contemporânea de concerto utilizo principalmente uma combinação das teorias de Paul Hindemith e Allen Forte para a organização das alturas combinadas com as técnicas de estruturação temporal desenvolvidas pelo compositor Elliott Carter. O trabalho aqui apresentado foi subdividido em três seções principais: na primeira chamada “Temática Extramusical Escolhida” apresento um breve resumo do conto “Olhar” de Ruben Fonseca, que será utilizado como narrativa extramusical para a formulação do conceito do disco. Na seção 2 “Realização do Conceito” apresento a forma com que relacionei a narrativa literária com a música a ser gravada no disco conceitual e as bases estético/filosóficas que fizeram-me optar por esta forma de realização do conceito. Na seção três é apresentada a partitura da música “Misantropia”. TEMÁTICA EXTRAMUSICAL ESCOLHIDA Esta proposta de composição está voltada para o ambiente acadêmico vinculado a música contemporânea de concerto. Difere, portanto, significativamente dos objetivos comerciais e de contestação social contidos nos discos conceituais que me inspiraram para a formulação deste projeto Trata-se de uma forma de composição que foi muito difundida nos anos 60 e 70 do século XX por bandas do chamado rock progressivo", onde uma temática extramusical é utilizada para unificar todas as faixas de um disco. 1

896

composicional. Procuro extrair o que parece “belo”2 das composições das bandas do rock progressivo e fundir estas características a linguagens composicionais oriundas da música contemporânea de concerto, formando assim um hibridismo

composicional. Para a fusão destas características estéticas e técnico-composicionais escolhi como narrativa extramusical o conto de Rubem Fonseca intitulado “Olhar”, parte do livro Romance Negro e Outras Histórias (1994). Escolhi esta narrativa pois retrata um personagem que apresenta uma série de problemas psíquicos que variam entre o transtorno obsessivo compulsivo (TOC)3 e a psicopatia4. Trata-se de um escritor vegetariano que gosta de ficar sozinho em casa escrevendo, lendo literatura clássica, ou ouvindo música clássica. No início da narrativa, diz não gostar de comer e só precisar dos alimentos da alma (para ele, a literatura, música e o teatro). Após passar mal por falta de alimentação adequada, seu médico o chama para jantar em um restaurante onde se escolhem as trutas que se desejam comer em um aquário. Nosso personagem acaba escolhendo a truta que vai comer por conta do olhar do animal, dizendo que uma determinada truta possui um olhar “meigo e inteligente”. À partir de então, sua psicopatia vai aumentando e, ele só consegue comer a carne de animais dos quais tenha visto o olhar antes de abatê-los. A narrativa termina com o personagem principal imaginado como seria comer animais maiores, um cabrito ou até mesmo um humano. Realização do Conceito A representação musical do conto de Ruben Fonseca, não será realizada como nos discos conceituais do rock progressivo. Pois estes discos apresentam basicamente o agrupamento de canções, em que a poesia cantada fazia referência, direta ou através de metáforas, à história que representava. Aqui, não utilizo nenhuma referência através da linguagem, pois, todas as composições apresentadas no disco serão exclusivamente instrumentais. O conto “Olhar” de Ruben Fonseca é utilizado com o objetivo de compor um disco no qual as diferentes faixas tenham uma mesma temática e, portanto, Ver a definição de Belo apresentada por Mikel Dufrenne em seu capítulo intitulado “O Belo”, do livro Estética e Filosofia. 3 Segundo Gonzales (1999), “O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é caracterizado pela presença de obsessões e compulsões. Obsessões são idéias, pensamentos, imagens ou impulsos repetitivos e persistentes que são vivenciados como intrusivos e provocam ansiedade. Não são apenas preocupações excessivas em relação a problemas cotidianos(...) Compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais que visam reduzir a ansiedade e afastar as obsessões. Esses rituais freqüentemente são percebidos como algo sem sentido e o indivíduo reconhece que seu comportamento é irracional.” 4 Segundo Shine (2005: p.11) analisando a definição apresentada no Dicionário Aurélio para psicopatia, ela é um “estado mental patológico caracterizado por desvios, sobretudo caracterológicos, que acarretam comportamentos anti-sociais. 2

897

estejam unificadas musicalmente, ao mesmo tempo que apresentem clareza formal. Tal clareza formal está diretamente relacionada com a forma do conto. Esta proposta foi formulada tendo como base as idéias expostas por Mikel Dufrenne sobre a “sensibilidade generalizadora” e, sobre a relação entre língua e música, contidas no livro Estética e Filosofia. Segundo Dufrenne, Essa essência5 também é sensível, pois o sentido não é uma significação abstrata que seria preciso extrair ou produzir por um trabalho de pensamento. Eu posso, certamente, me perguntar pelo sentido de MacBeth, ou dos demônios de Bosch, ou de um poema de Mallarmé; e posso dizer que uma pintura não-figurativa é um não-sentido porque não comporta assunto e, muito menos, moral, como as telas de Greuze. Mas será necessário dizer que a música só tem sentido quando é música de programa, ou que um pas-de-deux clássico tem menos sentido que uma pantomima? Não. O primeiro sentido do objeto estético, e que é comum ao objeto musical e ao objeto literário ou pictórico, não é um sentido que apela para o discurso e que exercita a inteligência como o objeto ideal que é o sentido de um algoritmo lógico. É um sentido totalmente imanente ao sensível que, portanto, deve ser experimentando no nível da sensibilidade e que, contudo, cumpre bem a função do sentido, a saber: unificar e esclarecer. (DUFRENNE, 2004, p.92).

Como podemos observar, para Dufrenne o sentido musical deve ser alcançado através da sensibilidade e não através de relações entre trechos musicais e objetos existentes no mundo material. Ele explica ainda que Se quisermos aplicar à música o aparato conceitual da linguagem, a primeira tarefa é determinar os seus elementos. Ora, é verdade que o domínio sonoro oferecido pela música é descontínuo. Os elementos são os sons ou as notas que, ao menos antes do advento da música concreta, são definidos pelos intervalos. À primeira vista, as notas são os termos de uma língua: eles constituem unidades sintagmáticas na medida em que as distinguimos entre si como os graus da escala, e elas recebem um estatuto diferencial pois dependem da escala adotada, por exemplo de 5, 7 ou 12 tons. Essas unidades tornam-se unidades paradigmáticas quando as diferenciamos segunda a duração, intensidade ou timbre: como um verbo se conjuga, assim uma nota se toca. Mas a linguagem, acabamos de dizer, possui uma dupla articulação: a que tipo de unidade - significativa ou distintiva - faz-se mister assimilar as notas? À palavra (assim como o sintagma quando se trata da frase melódica), ou ao fonema? O campo musical é comparável a um vocabulário ou a um sistema fonológico? Uma e outra comparação, ao serem analisadas com mais vigor, logo vacilam. Poderíamos assimilar as notas aos fonemas? Não. Pois o seu discernimento parece operar-se imediatamente; ao musicólogo, em todo o caso, que analisa uma obra, elas se propõem como dados. Enquanto isso, os fonemas não são dados, nem ao linguista que deles deve fazer um repertório, nem ao homem falante que simplesmente os ignora; pois os fonemas não são a matéria de sua fala: ele escolhe as palavras para enunciar frases e não fonemas para enunciar sequencias fônicas (a menos que ele não se escute falar como um ator que repete). Outra diferença: as A essência à qual o autor se refere diz respeito a singularidade e sensibilidade do artista criador da obra de arte. 5

898

notas são relativas a certo estado da cultura musical, à escala dos sons em vigor, e elas só tem uma necessidade institucional, enquanto os fonemas próprios de uma língua são tirados de um conjunto restrito que está submetido a uma necessidade fisiológica, limitado pela natureza dos órgãos de fonação… (DUFRENNE, 2004, p.116-117).

Baseado nas ideias de Dufrenne, acredito que não seja possível realizar uma representação musical que faça referência direta a objetos ou acontecimentos presentes na narrativa, assim como é possível fazer referências a objetos e acontecimentos por meio da linguagem. Portanto, em nossa representação utilizaremos a forma crescente do conto de Fonseca (considerando que a psicopatia do personagem principal de “Olhar” cresce lentamente durante o desenvolvimento da narrativa), como inspiração para formularmos uma forma musical para o disco, em que o nível de tensão aumente gradativamente da primeira à última faixa. PARTITURA

899

900

901

902

903

904

905

906

907

REFERÊNCIAS DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2004. FONSECA, Rubem. Romance Negro e Outras Histórias. São Paulo: Companhia da Letras, 1994. FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. London: Yale University Press, 1973. GONZALES, Christina Hajaj. Transtorno obsessivo-compulsivo. São Paulo: Revista Brasileira de Psiquiatria, vol.21, Outubro de 1999. Disponível em: Acesso: 23/03/2013. HINDEMITH, Paul. The Craft of Musical Composition. London: Scot & Co., Ltd, 1945. SCHIFF, David. The Music of Elliott Carter. London: Eulenburg Books, 1983. SHINE, Sidney Kiyoshi. Psicopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda. 2005.

908

BANDA DE UM HOMEM SÓ: MEMORIAL DESCRITIVO DE COMPOSIÇÃO PARA O DISCO CONCEITUAL OLHAR. FAIXA 1: “MISANTROPIA” Igor Mendes Krüger [email protected] Universidade Federal do Paraná (UFPR)

INTRODUÇÃO Nesta trabalho apresentamos um memorial de composição musical da primeira faixa de um disco conceitual1 no qual são justapostas características estilísticas de bandas de Rock Progressivo com a utilização de técnicas composicionais pertencentes à música contemporânea de concerto, formando assim um hibridismo composicional. Esta proposta apresenta ainda algumas especificidades, pois, trata-se de uma composição de música gravada, ou seja, música composta e executada em estúdio, cujo resultado final foi gravado em disco2 e não possui o intuito de ser executada ao vivo. Portanto, eliminaram-se algumas limitações do ponto de vista técnico de execução, pois possibilitou uma série de edições e correções no estúdio que não seriam possíveis ao vivo. Outra especificidade desta proposta é a de que todas as etapas da produção do disco ficaram sob a responsabilidade do compositor, ou seja, composição, gravação dos instrumentos, edição de áudio, manipulações eletroacústicas, mixagem e masterização foram tratadas como etapas do processo composicional, oportunizando assim que o resultado composicional final não contenha nenhuma interferência humana que não seja a do próprio compositor, o que possibilita que as idéias composicionais propostas por este cheguem inalteradas ao ouvinte. Este trabalho foi fortemente influenciado pelos discos conceituais de rock progressivo das décadas de 60 e 70 do século XX, dos quais extraímos algumas características para a realização de nossa proposta: sua instrumentação básica, que conta com guitarra elétrica, baixo elétrico, sintetizador e bateria; a forma do disco conceitual baseado em narrativas extramusicais; e o fato de que alguns dos discos das bandas de rock progressivo terem sido compostos exclusivamente para a gravação. Um dos Trata-se de uma forma de composição que foi muito difundida nos anos 60 e 70 do século XX por bandas do chamado rock progressivo", onde uma temática extra-musical é utilizada para unificar todas as faixas de um disco. 2 O termo disco tem, neste caso, o sentido de agrupamento de composições gravadas, que podem ou não estar contidas em um objeto físico como, por exemplo, o CD. 1

909

grandes responsáveis pela divulgação destes discos foi o grupo britânico The Beatles, na fase quando decidiram abandonar as turnês e se dedicar exclusivamente aos trabalhos de estúdio. Vejamos o que Janotti Junior expõe sobre os Beatles: “A década de 60 realçou ainda mais o entrelaçamento entre os aspectos musicais, sociais e tecnológicos que fazem parte do universo do Rock. Em 1967, quando já haviam abandonado as apresentações ao vivo. os Beatles lançaram o LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, disco que é considerado por muitos críticos como o primeiro álbum conceitual da história do Rock. Explorando as possibilidades tecnológicas do LP, os Beatles criaram um álbum, cujas faixas possuíam ligações temáticonarrativas entre si, abrindo assim, a possibilidade de se contar uma história através da interligação das músicas, tal como em uma ópera. Para realizar o álbum, eles utilizaram o recurso de gravação que viria a ser denominado multitrack, ou seja, a sobreposição em uma mesma faixa de gravações realizadas em períodos diferentes. Até então, as gravações eram realizadas com todos os músicos tocando juntos em um mesmo lugar; logo, essa técnica aumentou enormemente as possibilidades de inserções de outros instrumentos e vocais. O resultado foi uma serie de instrumentos interagindo com gravações de vocais e instrumentos orquestrais sobrepostos.” (JANNOTTI JR, 2003, p. 39).

O disco Sgt. Pepper’s também é apontado por alguns autores (MOORE, 1997; JULLIEN, 2008; GATTO, 2011) como o primeiro disco de rock progressivo. Pois apresenta uma fusão entre as características do rock and roll clássico com elementos da música erudita (instrumentos de orquestra e manipulações eletroacústicas), jazz, folk e elementos de música indiana. As composições aqui apresentadas, também foram fortemente influenciadas pela linguagem composicional desenvolvida pelo compositor norte-americano Elliott Carter, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento temporal. Segundo Schiff: “...Carter tem desenvolvido um novo tipo de desenho rítmico. Os elementos básicos estruturais de seu ritmo são os fluxos temporais sobrepostos3. Em qualquer ponto, pelo menos dois destes fluxos são articulados. As proporções das velocidades entre os fluxos são escolhidas de forma que os pulsos [internos] raramente coincidam. Porque a coincidência entre dois pulsos poderia criar uma métrica regular, a música de Carter articula proporções de 15:8 ou 20:21 em vez das simples proporções de 2:1 e 3:1 encontradas na música tonal. Uma tradução literal para o termo cross-pulse seria pulso cruzado, porém, escolhemos o termo fluxos temporais sobrepostos, pois, acreditamos que desta forma fique mais claro o que realmente ocorre na música de Elliott Carter, que é a sobreposição de um conjunto de elementos rítmico/temporais que inclui pulso, ritmo e métrica. 3

910 Ele ainda suprime a aparência de metro através da acentuação irregular de cada fluxo temporal. Assim ele substitui a grade rígida de metro com uma interferência complexa, mas ordenada.” (SCHIFF, 1983, p. 26).

As técnicas de estruturação temporal desenvolvidas por Elliott Carter constituem-se em uma importante ferramenta composicional em nosso trabalho, pois, possibilitam a criação de atmosferas variadas, quando precisamos de contraste entre as seções, sem a necessidade de criação de rupturas entre as diferentes partes das obras, colaborando assim com um sentido de continuidade nas composições. Estas técnicas contribuem também, de forma significativa com a direcionalidade dramática das obras, contribuindo para a criação de momentos de repouso ou de tensão dependendo da necessidade expressiva de cada passagem. Para a organização das alturas escolhemos utilizar a proposta de Paul Hindemith, em seu livro The Craft of Musical Composition, escolhendo acordes mais ou menos tensos de acordo com a necessidade expressiva de cada seção. Hindemith organiza os acordes em dois grupos, o grupo A apresenta acordes que não possuem trítono e o grupo B apresenta acordes que contém o trítono. Combinamos a utilização dos acordes proposta por Hindemith com a Teoria dos Conjuntos de Allen Forte, visto que com esta teoria podemos escolher os conjuntos de forma que possamos utilizar a predominância de determinadas classes de intervalos em nossas composições. Esta trabalho esta dividido em dois capítulos principais: No Capítulo 1, “Bases Estéticas e Técnico-Composicionais”, apresentamos cinco seções: a primeira apresenta um histórico sobre o rock, rock progressivo e os discos conceituais. Na segunda apresentamos à narrativa extramusical escolhida, o conto de Rubem Fonseca intitulado “Olhar”, publicado no livro Romance Negro e Outras Histórias, bem como, as razões que nos levaram a escolhê-lo e a fundamentação estética que utilizamos para a realização do conceito, baseada nas idéias de Mikel Dufrene em seu livro Estética e Filosofia. A terceira seção trata da organização das alturas em nossa composição. A quarta seção descreve a utilização da organização temporal, bem como a forma com que esta organização contribui para a caracterização do conceito do disco e para seu desenvolvimento dramático. A quinta seção apresenta o estúdio utilizado para a composição geral da obra. O Capítulo 2 apresenta o memorial da composição com a descrição das principais tomadas de decisão ocorridas durante a composição das faixas que fazem parte do disco, a relação de cada uma delas com a narrativa extramusical, como as técnicas composicionais foram utilizadas e a forma com que foram resolvidos os principais problemas composicionais.

911

Em anexo apresentamos a partitura integral da faixa “Misantropia”, que é o primeiro movimento do disco conceitual Olhar. BASES ESTÉTICAS E TÉCNICO-COMPOSICIONAIS Neste capítulo, apresentamos as bases estéticas e técnicocomposicionais do disco conceitual Olhar. Nosso objetivo com este capítulo é apresentar quais bases estéticas norteiam as decisões composicionais presentes na obra. Estas decisões dizem respeito, principalmente à escolha da forma musical, técnicas composicionais a serem utilizadas, instrumentação, escolha da narrativa extramusical e a forma de realização musical desta narrativa. ROCK PROGRESSIVO Autores como MOORRE, 1997; JULLIEN 2008; GATTO, 2011, apontam como primeiro álbum de rock progressivo o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band de 1967 dos Beatles. Este álbum dos Beatles pode ser considerado como um divisor de águas na história do Rock, pois funde em uma mesma obra de arte uma série de elementos que faziam parte da cultura de seu tempo (meados dos anos 60), como os elementos advindos da contracultura principalmente do movimento hippie, instrumentos de orquestra, instrumentos da música indiana, técnicas composicionais advindas da música de vanguarda e utilização das novas possibilidades tecnológicas disponíveis para a produção do disco. Fenerick e Marquioni dizem que “Décadas após o lançamento do álbum, George Martin diria que Sgt. Pepper foi “a sinfonia hippie definitiva”. Curiosamente, conforme lembrou o historiador Paul Friedlander, essa “sinfonia hippie” não foi produzida por nenhuma comunidade de HaightAshbury, em San Francisco (centro da cultura e da música hippie), mas nos estúdios da EMI na Rua Abbey Road, em Londres, com o próprio George Martin segurando a batuta da orquestra.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.2-3).

O Sgt. Pepper surge em um momento cultural onde o movimento hippie ganhava destaque através dos meios de comunicação em massa (principalmente a TV), com seus ideais pacifistas (inspirados principalmente por Mahatma Gandhi) e slogans como “paz e amor” e “faça amor não faça guerra”, que eram utilizados em oposição a todas as guerras e em especial a Guerra do Vietnã. Além disso, propunham um modo de vida comunitário e em comunhão com a natureza, negavam o nacionalismo, interessavam-se por religiões orientais como o budismo e hinduísmo, além das religiões das culturas nativas norte-americanas (MARQUES, BERUTTI e FARIA 2003,

912

p.69). Nas comunidades hippies a prática de nudismo e emancipação sexual, além do uso das mais variadas drogas alucinógenas era comum. “Desse modo, partimos do pressuposto de que esse álbum dos Beatles é uma síntese de determinados ícones e procedimentos estéticos e culturais que estiveram presentes em uma época – no caso, a segunda metade da década de 1960. Por meio de colagens diversas, os Beatles criaram um álbum em que se esfumaçaram os limites entre a chamada cultura erudita e a cultura de massa, entre o Oriente e o Ocidente, entre a música popular e a música de vanguarda, criando assim um tipo de arte pop – onde esse “pop” não deve ser entendido como oposto ao culto e sinônimo de massificação, mas sim como um mosaico, “de recíproca infiltração de estilos antes distintos, de dialética entre opostos”. Além disso, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é uma síntese das possibilidades criativas da relação entre tecnologia e arte. E é a partir desse último aspecto que devemos começar a pensar esse álbum, pois sem as condições tecnológicas para a gravação de um álbum, nada em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band se viabilizaria.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.3).

Através do desenvolvimento tecnológico presente em sua época, notadamente o LP e o sistema de gravação multicanal, os Beatles conseguiram reunir em um mesmo álbum todo o conteúdo cultural e artístico/expressivo ao qual se dispuseram. “A idéia de um “álbum”, no universo musical, só passou a ser possível com a chegada definitiva de um novo suporte (software) de comercialização da música, no caso, o LP de 33 e 1/3 RPM.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.3). Com o álbum Sgt. Pepper, “pela primeira vez uma banda rompe com o formato do single, cada música é parte do todo” (GATTO, 2011, p.63). “Com o LP, o trabalho de autor passa a se relacionar com o de obra de uma maneira diferente. Não são mais singles, ou uma coleção deles, que são lançados no mercado, mas sim, um álbum, uma obra completa em cada disco.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.4). Com o LP os compositores começaram a cada vez mais serem os próprios interpretes de suas obras, sem precisar mais da figura de um interprete de prestigio para lançar as suas músicas no mercado. (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.4-5). Assim como o LP, o sistema de gravação multicanal também influenciou significativamente a forma de compor dos Beatles e do rock progressivo em geral. “No início dos anos 60, distinções começaram a ser feitas entre música feita em estúdio e música ao vivo, embora isso geralmente fosse visto em termos de o estúdio melhorar a performance compensando-a pela falta de atmosfera ao vivo. O próximo desenvolvimento, em meados dos anos 60, foi o de um sistema de gravação multicanal que permitisse que os sons fossem captados individualmente na mesma fita e alterados com relação aos outros na fase de mixagem, em vez de simples adição sonora. Este tipo de multicanal deu aos produtores uma liberdade completa para

913 trabalhar na fita, produzindo uma performance gravada, mas que na verdade podia ter sido em várias ocasiões diferentes e bem distintas.” (SANTINI, 2005, p.34).

No caso do álbum Sgt. Pepper, a gravação multicanal proporcionou a adição e sobreposição de uma serie de sonoridades de instrumentos orquestrais, sons de aplausos, animais, etc., juntamente à sonoridade dos instrumentos da banda de rock. Outra influência sofrida pelos Beatles presente em Sgt. Pepper é a da música de vanguarda. Segundo Fenerick e Marquioni, “Tudo se juntou em Sgt. Pepper. Esse álbum dos Beatles alargava praticamente ao infinito o campo da canção pop, propondo uma estética altamente inclusiva. Todo som (musical, ruidoso ou até mesmo o próprio silêncio) passaria a ser utilizável em uma canção popular após Sgt. Pepper. (p.11) Uma colagem de sons que inseria na canção popular técnicas de composição vanguardistas que faziam do intérprete uma espécie de co-autor da obra, uma vez que (nos 24 compassos) 4 esse podia escolher as notas a serem tocadas, dentro de um plano geral determinado pelo arranjador; e ao mesmo tempo incorporava o acaso como possibilidade criativa. Assim, como no exemplo de A day in the life comentado, o campo da música popular era ampliado com a inclusão de técnicas provenientes das vanguardas musicais dos anos 50 e 60 (especialmente a partir das pesquisas de John Cage, Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio e Pierre Boulez); mas essa canção, apesar de tudo, não deixava de ser música popular, e enquanto tal, com limites para as experimentações.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.15).

Além de todas as inovações apresentadas até então, o álbum Sgt. Peppers é considerado por muitos críticos como o primeiro álbum conceitual da história (JANOTTI JR, 2003, p. 39). ÁLBUNS CONCEITUAIS Como observamos até então, o álbum Sgt. Pepper apresentou uma serie de inovações composicionais no campo da música popular, estas inovações influenciaram significativamente e causaram uma serie de modificações na forma de composição de inúmeros discos de rock que o sucederam. Segundo Hoffmann e Bailey (1990), Sgt. Peppr's Lonely Hearts Club Band mudou profundamente as características do Rock e

Os 24 compassos referidos, dizem respeito a uma seção da música A day in the life, onde ocorre um crescendo aleatório de uma orquestra sinfônica. “O crescendo da orquestra, durante os 24 compassos, deveria ser feito utilizando-se de notas escolhidas ao acaso pelo intérprete, entretanto, de forma controlada.” (FENERICK e MARQUIONI, 2008, p.14). 4

914 [...] tornou-se um padrão no qual todas as gravações futuras seriam mensuradas. Sendo que, suas influências se expandiram para muitas outras áreas: 1. Álbuns conceituais construídos em torno de um tema literário específico e /ou sociológico se tornaram uma moda. 2. Os efeitos psicodélicos de estúdio contidos dentro de suas faixas foram espelhados nas gravações de virtualmente todos os artistas populares desse período. 3. Os artistas ganham um maior interesse na obra de arte adornando capas de seus álbuns. Muitos procuraram alcançar uma correlação direta entre ilustrações de capa e da natureza de sua música. 4. Como os Beatles, outros artistas começaram a passar uma quantidade maior de tempo no estúdio, a fim de maximizar a qualidade estética das obras. 5. "A arte pela arte" tornou-se o mote prevalecente dentro da subcultura do rock. 6. A contracultura em si, se consolidou através do estabelecimento da música. (HOFFMANN e BAILEY. 1990. P.281).

Sgt. Pepper’s é, pois, um divisor de águas na história do Rock, e suas influências sobre a mudança nas características deste estilo podem ser percebidas em várias outras bandas que o sucederam. Após Sgt. Pepper’s muitos discos conceituais foram compostos, dentre eles destacamos os das seguintes bandas: The Who (Tommy, de 1969 e Quadrophenia, 1973), Jethro Tull (Aqualung, de 1971 e Thick as a Brick, 1972), Yes (Tales from Topographic Oceans,1973), King Crinson5 (In the court of The Crinson King, 1969, In the wake of Poseidon, 1970, Lizard, 1970, Islands, 1971), Pink Floyd (Dark Side of the Moon, 1973, Wish You Were Here , 1975, Animals , 1977, The Wall , 1979 e The Final Cut, 1983) e Genesis (The Lamb Lies Down on Broadway , de 1974). Estes discos apresentam em suas temáticas extramusicais personagens principais (normalmente denominados como anti-heróis) que simbolizam, em suas experiências, alguma forma de contestação ou de proposição de mudanças nos valores e normas comportamentais vigentes. Estes valores comportamentais, baseados em regimes tecnocrático-puritanos e totalitários, aos quais a sociedade daquela época estava submetida por conta da Guerra Fria. Neste período, “o mundo era dividido pela disputa entre os defensores do capitalismo dos Estados Unidos da América e os do pseudo-socialismo dos regimes totalitários do Leste Europeu, de linhagem stalinista, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas” (BOSCATO, 2006, p. 5).

Embora não sejam discos necessariamente conceituais, os discos do King Crinson foram incluídos na lista das análises devido a suas características composicionais e importância para mudança do estilo progressivo, alcançando níveis de sofisticação composicional até então não alcançados nas gravações deste estio. 5

915

NARRATIVA EXTRAMUSICAL Nossa proposta de composição está voltada para o ambiente acadêmico, vinculado à música contemporânea de concerto. Difere, portanto, significativamente dos objetivos comerciais e de contestação social contidos nos discos conceituais que nos inspiraram para a formulação deste projeto composicional. Nossa proposta procura extrair o que parece “belo”6 das composições das bandas do rock progressivo e fundir estas características a linguagens composicionais oriundas da música contemporânea de concerto, formando assim um hibridismo composicional. Para a fusão destas características estéticas e técnico-composicionais escolhemos como narrativa extramusical o conto de Rubem Fonseca intitulado “Olhar”, parte do livro Romance Negro e Outras Histórias (1994). Escolhemos esta narrativa, pois retrata um personagem que apresenta uma série de problemas psíquicos que variam entre o transtorno obsessivo compulsivo (TOC)7 e a psicopatia8. O personagem do conto é um escritor vegetariano que gosta de ficar sozinho em casa escrevendo, lendo literatura clássica, ou ouvindo música clássica. No início da narrativa, diz não gostar de comer e só precisar dos alimentos da alma (para ele, a literatura, música e o teatro). Após passar mal por falta de alimentação adequada, seu médico o chama para jantar em um restaurante onde se escolhem as trutas que se desejam comer em um aquário. Nosso personagem acaba escolhendo a truta que vai comer por conta do olhar do animal, dizendo que uma determinada truta possui um olhar “meigo e inteligente”. A partir de então, seu TOC vai aumentando, o personagem só consegue comer a carne de animais dos quais tenha visto o olhar antes de abatê-los. A narrativa termina com o personagem principal imaginado como seria comer animais maiores, um cabrito ou até mesmo um humano. REALIZAÇÃO DO CONCEITO

Ver a definição de Belo apresentada por Mikel Dufrenne em seu capítulo intitulado “O Belo”, do livro Estética e Filosofia. 7 Segundo Gonzales (1999), “O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é caracterizado pela presença de obsessões e compulsões. Obsessões são idéias, pensamentos, imagens ou impulsos repetitivos e persistentes que são vivenciados como intrusivos e provocam ansiedade. Não são apenas preocupações excessivas em relação a problemas cotidianos(...) Compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais que visam reduzir a ansiedade e afastar as obsessões. Esses rituais freqüentemente são percebidos como algo sem sentido e o indivíduo reconhece que seu comportamento é irracional.” 8 Segundo Shine (2005, p.11) analisando a definição apresentada no Dicionário Aurélio para psicopatia, ela é um “estado mental patológico caracterizado por desvios, sobretudo caracterológicos, que acarretam comportamentos anti-sociais. 6

916

A apresentação musical do conto de Rubem Fonseca, não será realizada como nos discos conceituais do rock progressivo. Pois os discos das bandas citadas anteriormente apresentam basicamente o agrupamento de canções, em que a poesia cantada fazia referência, direta ou através de metáforas, à história que representava. Em nossa representação, não utilizaremos nenhuma referência através da linguagem, pois, todas as composições apresentadas no disco serão exclusivamente instrumentais. O conto “Olhar” de Rubem Fonseca será utilizado com o objetivo de compor um disco no qual as diferentes faixas tenham uma mesma temática e, portanto, estejam unificadas musicalmente, ao mesmo tempo que apresentem clareza formal. Tal clareza formal estará diretamente relacionada com a forma do conto. Esta proposta foi formulada tendo como base as idéias expostas por Mikel Dufrenne sobre a “sensibilidade generalizadora” e, sobre a relação entre língua e música, contidas no livro Estética e Filosofia. Segundo Dufrenne, “Essa essência9 também é sensível, pois o sentido não é uma significação abstrata que seria preciso extrair ou produzir por um trabalho de pensamento. Eu posso, certamente, me perguntar pelo sentido de MacBeth, ou dos demônios de Bosch, ou de um poema de Mallarmé; e posso dizer que uma pintura não-figurativa é um nãosentido porque não comporta assunto e, muito menos, moral, como as telas de Greuze. Mas será necessário dizer que a música só tem sentido quando é música de programa, ou que um pas-de-deux clássico tem menos sentido que uma pantomima? Não. O primeiro sentido do objeto estético, e que é comum ao objeto musical e ao objeto literário ou pictórico, não é um sentido que apela para o discurso e que exercita a inteligência como o objeto ideal que é o sentido de um algoritmo lógico. É um sentido totalmente imanente ao sensível que, portanto, deve ser experimentando no nível da sensibilidade e que, contudo, cumpre bem a função do sentido, a saber: unificar e esclarecer.” (DUFRENNE, 2004, p. 92).

Como podemos observar, para Dufrenne o sentido musical deve ser alcançado através da sensibilidade e não através de relações entre trechos musicais e objetos existentes no mundo material. Ele explica ainda que “Se quisermos aplicar à música o aparato conceitual da linguagem, a primeira tarefa é determinar os seus elementos. Ora, é verdade que o domínio sonoro oferecido pela música é descontínuo. Os elementos são os sons ou as notas que, ao menos antes do advento da música concreta, são definidos pelos intervalos. À primeira vista, as notas são os termos de uma língua: eles constituem unidades sintagmáticas na medida em que as distinguimos entre si como os graus da escala, e elas recebem um estatuto diferencial pois dependem da escala adotada, por exemplo de 5, 7 ou 12 tons. A essência à qual o autor se refere diz respeito a singularidade e sensibilidade do artista criador da obra de arte. 9

917 Essas unidades tornam-se unidades paradigmáticas quando as diferenciamos segunda a duração, intensidade ou timbre: como um verbo se conjuga, assim uma nota se toca. Mas a linguagem, acabamos de dizer, possui uma dupla articulação: a que tipo de unidade - significativa ou distintiva - faz-se mister assimilar as notas? À palavra (assim como o sintagma quando se trata da frase melódica), ou ao fonema? O campo musical é comparável a um vocabulário ou a um sistema fonológico? Uma e outra comparação, ao serem analisadas com mais vigor, logo vacilam. Poderíamos assimilar as notas aos fonemas? Não. Pois o seu discernimento parece operar-se imediatamente; ao musicólogo, em todo o caso, que analisa uma obra, elas se propõem como dados. Enquanto isso, os fonemas não são dados, nem ao lingüista que deles deve fazer um repertório, nem ao homem falante que simplesmente os ignora; pois os fonemas não são a matéria de sua fala: ele escolhe as palavras para enunciar frases e não fonemas para enunciar seqüências fônicas (a menos que ele não se escute falar como um ator que repete). Outra diferença: as notas são relativas a certo estado da cultura musical, à escala dos sons em vigor, e elas só tem uma necessidade institucional, enquanto os fonemas próprios de uma língua são tirados de um conjunto restrito que está submetido a uma necessidade fisiológica, limitado pela natureza dos órgãos de fonação…” (DUFRENNE, 2004, p. 116-117).

Baseados nas idéias de Dufrenne acreditamos que não seja possível realizar uma representação musical que faça referência direta a objetos ou acontecimentos presentes na narrativa, assim como é possível fazer referências a objetos e acontecimentos por meio da linguagem. Portanto, em nossa representação utilizaremos a forma crescente do conto de Fonseca (considerando que a psicopatia do personagem principal de “Olhar” cresce lentamente durante o desenvolvimento da narrativa), como inspiração para formularmos uma forma musical para o disco, em que o nível de tensão aumente gradativamente da primeira à última faixa. Em “Olhar”, o personagem principal apresenta, desde o princípio da narrativa, uma série de obsessões, como a que se vê no trecho a seguir: “Um parêntese: quando vou escrever, primeiro preparo a mesa. É uma coisa muito simples um maço de folhas de papel artesanal de linho puro especial fabricado "en los talleres de Segundo Santos em Cuenca", que recebo regularmente da Espanha (só sei escrever nele, "los papeles contienen mezclas de lanas teñidas a mano, esparto, hierbas, helechos y otros elementos naturales") e uma caneta antiga, daquelas que têm um depósito transparente de tinta. Mais nada. Acho graça quando ouço falar em idiotas que escrevem em microcomputadores.” (FONSECA, 1994).

Estes TOCs apresentados pelo personagem seguem ocorrendo até o final da narrativa. A concepção da primeira faixa do disco é de utilizar estruturas harmônicas simples, contando com acordes pouco dissonantes, com o predomínio de acordes do Grupo A (I, III e V) da classificação de Paul

918

Hindemith10, e utilizar esta estrutura harmônica sob andamentos lentos, fazendo referência às obsessões do personagem de Fonseca em seu estado inicial. À medida que as faixas se desenvolvem ao longo do disco, novas notas serão polarizadas (com uma maior utilização de acordes do Grupo B: II, IV e VI) sobrepostas à harmonia inicial, gerando assim uma politonalidade e conseqüentemente o aumento da tensão. Estes novos centros tonais sobrepostos ao inicial devem apresentar um desenvolvimento temporal cada vez mais irregular, com mudanças súbitas de andamento, relacionado assim o crescimento da tensão com o crescimento da psicose do personagem principal do conto “Olhar”. ORGANIZAÇÃO DAS ALTURAS Para as composições apresentadas neste trabalho, decidimos utilizar uma combinação da Teoria dos Conjuntos proposta por Allen Forte no livro The Structure of Atonal Music com a teoria apresentada por Paul Hindemith em The Craft of Musical Composition. Combinado estas duas teorias para a organização das alturas, conseguimos escolher seqüências de acordes que contenham o predomínio de determinadas classes de intervalos e, ao mesmo tempo fazer com que estes acordes sejam polarizados em relação a uma mesma fundamental. Para escolher quais as classes de intervalos serão as mais recorrentes em nossa harmonia, utilizamos os vetores intervalares propostos pela teoria de Allen Forte. Por exemplo:

Exemplo 1: Acordes com predomínio das Classes de Intervalos 3 e 4.

Apresentaremos com maiores detalhes a harmonia de Hindemith no subcapítulo “Organização das Alturas. 10

919

Para o exemplo 1, foram escolhidos acordes que apresentam em seus vetores intervalares uma maior ocorrência das classes de intervalos 3 e 4. Estes acordes foram ordenados de menor a maior, de acordo com o número de dissonâncias que apresenta em seu vetor intervalar11. Para que a série de acordes apresentada no exemplo 1, seja percebida em torno de uma fundamental, devemos escolher transposições para estes acordes que contenham a nota polarizada. Por exemplo, poderíamos polarizar a nota dó (representada pelo número 0).

Exemplo 2: Todas as transposições dos acordes que possuam a nota dó.

No exemplo 2, são apresentadas todas as transposições dos acordes apresentados no exemplo 1 que contém a nota dó. Além de escolher as transposições dos acordes que contenham a nota polarizada, é importante que enfatizemos esta nota durante o discurso, fazendo com que a nota polarizada apareça com mais freqüência que as demais. Isso pode ser feito através do ritmo, utilizando figuras de maior duração ou enfatizando estas notas melodicamente (HIBDEMITH, 1945, p.132-133). Com esta forma de organizar as alturas, pudemos direcionar as tensões das composições, deixando a nota polarizada mais presente em acordes menos dissonantes para obter regiões harmônicas mais calmas. Foi possível também fazer com que a tônica aparecesse com menos intensidade nas regiões harmônicas mais tensas.

Considerando como dissonâncias as classes de intervalos 1, 2 e 6 que dizem respeito aos intervalos de 2ªm e 7ªM; 2ªM e 7ªm; 5ªdim e 4ª aum respectivamente. 11

920

Exemplo 3: Região harmônica menos tensa.

O exemplo 3 apresenta uma região harmônica menos tensa, pois, conta somente com os acordes (0.3.7) e (0.1.4) que são os menos dissonantes entre os que apresentamos no exemplo 1. As setas vermelhas apontam para as ocorrências da nota dó que foi escolhida como central em nosso exemplo.

Exemplo 4: Região harmônica tensa.

No exemplo 4 apresentamos uma região harmônica tensa, pois apresenta os quatro acordes com maior número de dissonâncias dos que escolhemos para nossos exemplos (0.1.3.5), (0.2.3.6), (0.1.3.6) e (0.1.3.7). Para alcançar uma região mais tensa no trecho apresentado acima, combinamos os acordes mais dissonantes com uma utilização menos constante da nota dó (que é o centro desta passagem), uma aceleração no ritmo das notas e a utilização de dinâmicas mais fortes como o forte e fortíssimo. Hindemith divide os acordes em dois grupos principais denominados como A e B, os acordes do grupo A não possuem trítono e os acordes do grupo B são os que possuem trítono.

921

Tabela 1:12 Grupos de Acordes de Paul Hindemith.

Esta tabela, também nos auxilia para escolhermos a direcionalidade das tensões em nossa harmonia, visto que os acordes do grupo A, são considerados menos tensos que os acordes do Grupo B, assim como, os acordes dos subgrupos I, II e III são menos tensos que os acordes dos subgrupos IV, V e VI. DESENVOLVIMENTO TEMPORAL Em nossas pesquisas sobre o desenvolvimento temporal na música de Elliott Carter, encontramos no livro de David Schiff intitulado The Music of Elliott Carter uma grande quantidade de informações sobre como este compositor desenvolveu ao longo dos anos sua técnica composicional. Dentre estas informações, destacamos as contidas no capítulo 2 "Musical Time: Rhythm and Form".

Tabela extraída do Apêndice do livro The Craft Music Composition (1945) de Paul Hindemith. 12

922

Com a utilização das técnicas de estruturação temporal apresentadas por David Shiff13, podemos sobrepor andamentos aumentando e diminuindo o grau de tensão de acordo com a necessidade expressiva. Através das modulações de andamento podemos obter, quando necessário, mudanças de caráter entre as diferentes seções de uma obra, sem precisar interromper o fluir musical por meio de articulações formais ou pausas, proporcionando um fluir musical contínuo. ESTÚDIO Assim como ocorrera com o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles, nossa proposta não seria passível de realização se não houvessem ocorrido inúmeras evoluções no campo da tecnologia musical. Pois, nos dias atuais é possível com um baixo investimento financeiro, obtermos gravações com uma boa qualidade sonora, o que a alguns anos atrás não seria possível. Portanto, por conta desta evolução e barateamento nos equipamentos de estúdio, é possível que realizemos obras originais, completamente desvinculadas das necessidades impostas pela indústria fonográfica, proporcionando que o compositor possa trabalhar na construção de suas obras com total autonomia. Vejamos o que Huber e Runstein expõem sobre a relação de custo benefício proporcionadas pelos estúdios modernos: “Relação custo benefício: (...) Equipamentos de estúdio que duas décadas atrás custavam centenas de milhares de dólares, por exemplo. Podem agora facilmente ser comprados por um décimo do preço (...); Organizar a própria programação e economizar enquanto trabalha: (...) Um project studio pode liberar o usuário para gravar enquanto houver humor, sem ter de se preocupar em acertar o relógio do estúdio; Vantagens criativas e funcionais em relação ao comercial studio para a criação e produção de estilos personalizados de música.” (HUBER e RUNSTEIN apud ZANATTA, 2007, p.11-12).

Para a realização das gravações apresentadas neste trabalho, utilizamos um estúdio doméstico, contando com um microcomputador contendo o software Cubase para a gravação, edição e seqüenciamento de áudio e MIDI; interface de áudio; guitarra elétrica, baixo elétrico, teclado controlador MIDI, violão com cordas de nylon e dois microfones direcionais. Também foram utilizados uma serie de plug-ins de efeito, softwares de instrumentos virtuais como o Addictive Drums (que simula uma bateria), B4 Para uma melhor compreensão sobre as técnicas de estruturação temporal que estamos utilizando, ver em . 13

923

II (que simula um sintetizador analógico), CS-80V (que simula um sintetizador analógico), Minimonsta (que simula um sintetizador analógico) e Moog Modular V (que simula um sintetizador analógico). Realizar composições de música gravada proporciona uma maior liberdade composicional para o compositor, visto que, o fato de podermos editar as gravações, diminui significativamente a dificuldade na hora de executar as obras, diminuindo assim as limitações referentes à técnica de execução dos interpretes para o compositor. Isto faz com que suas idéias composicionais possam ser expressas com maior liberdade e facilidade. MEMORIAL DESCRITIVO DA COMPOSIÇÃO “MISANTROPIA” “Misantropia” é a primeira faixa do disco conceitual Olhar. Esta peça está relacionada ao inicio do conto de Rubem Fonseca, quando o personagem principal diz se sentir um misantropo, pois, não gosta de se relacionar com pessoas e vive sozinho em seu apartamento, lendo, ouvindo música e escrevendo. “Devo confessar que era também, antes dos episódios que relatarei, quase um misantropo. Gostava de ficar só e até mesmo a presença da empregada, Talita, me incomodava. Por isso ela recebera instruções de trabalhar no máximo duas horas por dia, e depois se retirar. Eu a mandava embora, transcorrido esse prazo, mesmo que o suflê de espinafre, que ela fazia diariamente, não tivesse ficado pronto, para, desta forma, poder escrever, e ler, e ouvir minha música, sem ninguém me incomodar.” (FONSECA, 1994).

Esta composição está estruturada sob a forma ABA. Para a seção A, foram utilizadas duas guitarras elétricas tocando em contraponto. O andamento escolhido foi o de semínima a 35 BPM, pois com um andamento tão lento se torna mais difícil que percebamos a pulsação básica, o que contribui para a criação de uma atmosfera caótica. Relacionamos esta atmosfera caótica ao estado mental do personagem do conto, visto que, embora ele se encontre calmo, sua mente esta significativamente perturbada. A harmonia da seção A foi construída com acordes que possuam como classes de intervalos predominantes as de número 3 e 4. Estas classes de intervalos foram escolhidas, pois proporcionam o predomínio de intervalos de terça e sexta, assim como ocorre na música tonal. Tais semelhanças com a música tonal contribuem para que esta peça seja percebida como a de menor tensão do disco, pois, as demais peças serão compostas com o predomínio de intervalos mais dissonantes, com andamentos e ritmos

924

harmônicos mais rápidos, com o intuito de estabelecermos o crescendo de tensão relacionado ao aumento da psicose de nosso personagem. A seção A tem a nota dó como centro, para que esta nota fosse percebida como centro, escolhemos utilizar as transposições dos acordes que contem esta nota, assim como fora demonstrado na seção sobre organização das alturas. A seqüência de acordes utilizada foi: (0,3,7), (0,1,4), (0,3,7), (0,1,4), (0,1,4,8) e (0,2,5,8)14 com ritmo harmônico de um acorde por compasso na primeira parte da seção A (do c.1 ao c.6). (0,3,7), (0,1,4), (0,3,7), (0,1,4), (0,1,3,5), (0,2,3,6), (0,1,3,7) e (0,3,7) com o ritmo harmônico de um acorde por compasso até o c.10 e dois tempos por acorde no ponto culminante que ocorre do c.11 ao c.13 na segunda parte da seção A (que vai do c.7 ao c.15). Quanto à organização temporal da seção A, utilizamos o conceito de fluxo temporais sobrepostos, exposto no capítulo anterior, contribuindo assim para a criação da atmosfera caótica à qual nos referimos anteriormente.

Exemplo 5: Compasso 5 de “Misantropia”, sobreposição de fluxos temporais.

No exemplo anterior é demonstrada a utilização do procedimento técnico denominado de sobreposição de fluxos temporais que ocorre na música “Misantropia”. As ligaduras de fraseado demarcam as articulações temporais, criando para cada uma delas uma hierarquia métrico/temporal característica, propiciando uma sobreposição de fluxos temporais assimétricos. Também foram utilizados os caracteres rítmicos acelerando e ritardando, conforme a necessidade de aumentar ou diminuir a tensão.

De todos os acordes utilizados na seção A, somente o (0,2,5,8) pertence ao grupo B da tabela de Paul Hindemith, pois este é o único que possui o trítono em sua formação. 14

925

Exemplo 6: Misantropia c.12, acelerando rítmico para o clímax da seção A.

No exemplo 6 é demonstrado o momento de maior tensão da seção A, destacando com um quadro em vermelho o acelerando rítmico que contribui para o aumento de tensão. Na fase de mixagem da seção A, foi escolhido um pré-set do Guitar Rig chamado “Psychekiller”. Este pré-set gera uma série de freqüências adicionais às executadas pelas guitarras, contribuindo para a criação da atmosfera caótica citada anteriormente. Na passagem da seção A para a B, bem como na volta de B para A ocorrem modulações de andamento. Optamos nesta obra, por não realizar a mudança entre as seções ininterruptamente, por este motivo a modulação métrica serviu somente para que aumentássemos o andamento da seção B em relação ao da seção A. Na seção A, a semínima é executada com andamento de 35 BPB em um compasso 4/4, na seção B a semínima pontuada é executada com andamento de 35 BPM em um compasso 6/8 (que faz a colcheia ter uma duração de 105 BPM, enquanto na seção A, a colcheia possui a duração de 70 BPM). Quando a seção A é retomada, o andamento volta a ser de semínima a 35 BPM com o compasso 4/4. A seção B (c.15 ao c.32) conta em sua instrumentação com duas guitarras e um sintetizador. Para a harmonia da seção B, também foram escolhidos acordes que favoreçam o predomínio das classes de intervalos 3 e 4. Porém para esta seção, utilizamos três acordes que contém três dissonâncias em seus vetores intervalares (enquanto que na seção A os acordes variavam entre 0 e 3 dissonâncias em seus vetores), o que deixa este trecho significativamente mais tenso do que a seção A.

926

Exemplo 7: Acordes utilizados na seção B e seus vetores intervalares.

Como podemos observar no exemplo 7, os três acordes utilizados na seção B de Misantropia, pertencem ao grupo B da tabela de Hindemith, pois, todos apresentam a ocorrência do trítono em sua estrutura, representado pela classe de intervalo número 6 em seus vetores intervalares. A harmonia da seção B foi transposta em cinco semitons acima em relação à seção A, deixando como nota predominante o fá. Escolhemos esta transposição dos acordes, por observar que todos os acordes desta seção possuem trítono, proporcionando assim que enfatizássemos alternadamente as notas fá e si. Com a ênfase nestas notas, remetemos de forma não direta à relação de tônica e dominante existente nas formas ABA da música tonal. Pois, tendo a seção A com a nota dó como centro, e a seção B alternando entre as notas fá e si (trítono característico do acorde de dominante G7), construímos esta relação em um contexto harmônico atonal. A estruturação temporal da seção B se diferencia da estruturação da seção A, pois, apresenta uma série de contrapontos de caracteres rítmicos. O sintetizador em sua pauta inferior (ou registro grave) executa o caráter rítmico denominado como Pulso Metronômico, pois, demarca a pulsação utilizando uma seqüência de semínimas pontuadas. Porém, somente a pauta inferior do sintetizador apresenta uma estrutura regular, tendo sua pauta superior e as duas guitarras desenvolvimentos temporais apresentando assimetrias métricas sobrepostas, contando com acelerandos e ritardandos, propiciando um contraponto de caracteres rítmicos o que causa uma atmosfera ainda mais caótica do que a da seção A.

927

Exemplo 8: Misantropia c. 21-23, contraponto de caracteres rítmicos.

Na seção B, também é utilizado um acelerado rítmico, quando todos os instrumentos tocam notas rápidas, para enfatizar o ponto culminante.

Exemplo 9: Ponto Culminante da Seção B.

No exemplo 9, é apresentado o ponto culminante da seção B, sendo demarcado com os quadros vermelho e verde o mesmo fragmento melódico executado pelo registro grave do sintetizador com andamentos diferentes. No quadro vermelho é apresentado o fragmento com o andamento de semínima pontuada a 35 BPM e no quadro verde o mesmo fragmento melódico é apresentado com o andamento de semicolcheia ligada a semínima à 41,9 BPM. Logo após o clímax da seção B, é retomada a seção A para o fechamento da obra, retornando a ter a nota dó como centro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho apresentamos as bases estéticas e técnico/composicionais da música “Misantropia”, primeira faixa do disco conceitual Olhar no qual justapomos características estilísticas do rock progressivo e técnicas composicionais da música contemporânea de concerto.

928

A realização deste trabalho proporcionou que investigássemos uma série de questões referentes à composição musical, realização conceitual de narrativas extramusicais sob uma fundamentação estético/filosófica, utilização de procedimentos técnicos de estúdio como gravação, mixagem e manipulações eletroacústicas de forma criativa e sendo executados de forma composicional. Para a realização musical da narrativa extramusical estudamos uma série de questões estéticas expostas no livro Estética e Filosofia de Mikel Duffrene. Através das idéias apresentadas nesta obra, decidimos realizar o conceito do disco relacionando a forma crescente da psicopatia do personagem do conto de Rubem Fonseca com a forma crescente de tensão apresentada no disco. Optamos por esta forma de realização do conceito, pois, baseados nas idéias de Duffrenne, acreditamos que não seja possível realizar uma representação musical que faça referência direta a objetos ou acontecimentos presentes na narrativa, assim como é possível fazer referências a objetos e acontecimentos por meio da linguagem. A composição musical realizada permitiu que pudéssemos investigar formas de organização das alturas às quais não estávamos habituados, como a polarização de notas para que estas sejam percebidas como centrais proposta por Paul Hindemith. Com a utilização deste procedimento, conseguimos criar uma sonoridade característica para cada seção ou região harmônica, facilitando assim que consigamos estabelecer contrastes harmônicos quando desejamos. Combinamos as técnicas de organização das alturas propostas por Paul Hindemith com a Teoria dos Conjuntos proposta por Allen Forte, que já estávamos habituados a utilizar em nossas composições e contribuiu para que através dos vetores intervalares dos conjuntos, pudéssemos escolher quais seriam os intervalos predominantes em cada seção ou região harmônica, utilizando um maior ou menor número de dissonâncias para obter respectivamente uma maior ou menor tensão harmônica de acordo com a necessidade expressiva. Outra técnica composicional utilizada à qual tivemos a oportunidade de nos aprofundar foi à estruturação temporal da música de Elliott Carter. Utilizando estes procedimentos de estruturação temporal conseguimos alcançar momentos de maior tensão sobrepondo fluxos temporais mais rápidos, causando um maior número de acontecimentos em um menor espaço de tempo. Assim como conseguimos alcançar momentos com menor tensão à medida que propiciamos um menor número de acontecimentos em um menor espaço de tempo. Além de conseguir realizar crescendos e decrescendos de tensão temporal, pudemos obter passagens de uma seção para outra sem causar rupturas ao fluir musical através do procedimento de modulação de andamento.

929

A utilização de procedimentos técnicos de estúdio como gravação, mixagem e manipulações eletroacústicas, sendo pensados como etapas do processo composicional, nos proporcionou uma oportunidade de refletir sobre estes procedimentos de forma criativa. Compor música para gravação possibilitou que escrevêssemos passagens com alto grau de dificuldade técnica para a execução instrumental, visto que, poderíamos gravar cada parte separadamente e seqüenciar na fase de edição. Estas edições diminuíram significativamente as limitações interpretativas e possibilitaram a escrita de passagens ritmicamente complexas para a sobreposição de fluxos temporais. Na fase de mixagem pudemos escolher os timbres e efeitos, bem como regular as dinâmicas e volumes individuais de cada instrumento, seus níveis de reverberação de forma a contribuir para a criação do resultado musical que esperávamos. Além disso, pudemos incluir manipulações eletroacústicas que contribuíram para a criação das atmosferas necessárias para a realização musical do conceito do disco. Se o compositor tivesse somente escrito a música e deixado a cargo de outros instrumentistas e produtores as fases de gravação, edição e mixagem, teriam sido produzidos uma série de resultados musicais que fugiriam do controle deste. Com a justaposição de características estilísticas do rock progressivo e técnicas composicionais advindas da música contemporânea de concerto, conseguimos obter uma composição original, que faz referência aos modelos que nos inspiraram sem pretender ser uma cópia destes. Aproveitamos o que nos parece “belo” dos modelos que escolhemos, para criar uma música que responde a nossas pretensões pessoais como compositor ao utilizar tais modelos, buscando alcançar novas respostas composicionais através da justaposição de elementos composicionais de estéticas já existentes. REFERENCIAS BOSCATO, Luis Alberto de Lima. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no Panorama da Contracultura Jovem. São Paulo: Tese de Doutorado em História Social, apresentada à FFLCH/USP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva, 2006. DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2004. FENERICK, José Adriano. MARQUIONI, Carlos Eduardo. Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club: Uma Colagem de Sons e Imagens. Uberlândia. Fênix, Revista de História e Estudos Culturais. Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura - NEHAC, da Universidade Federal de Uberlândia. Vol. 5. Ano V. n. 1. 2008. FONSECA, Rubem. Romance Negro e Outras Histórias. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.

930

FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. London: Yale University Press, 1973. GATTO. Vinicius Delangelo Martins. Rock Progressivo e Punk Rock: Uma Análise Sociológica da Mudança na Vanguarda Estética do Campo do Rock. Brasília. Dissertação apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UNB). 2011. GONZALES, Christina Hajaj. Transtorno obsessivo-compulsivo. São Paulo: Revista Brasileira de Psiquiatria, vol.21, Outubro de 1999. Disponível em: Acesso: 23/03/2013. HINDEMITH, Paul. The Craft of Musical Composition. London: Scot & Co., Ltd, 1945. HOFFMANN, Frank W. e BAILEY, Willian G. Arts & Entertainment Fads. New York: Harrington Park Press, 1990. HUBER, David M; RUNSTEIN, Robert E. Modern Recording Techniques. Oxford: Focal Press, 1997. JANOTTI JR, Jader. Aumenta que isso aí é rock and roll: mídia, gênero musical e identidade. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda, 2003. JULIEN, Oliver. Sgt. Pepper and the Beatles: Its Was Forty Years Ago Today. Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2008. MARQUES, Ademar Martins; BERUTTI, Flávio Costa; FARIA, Ricardo de Moura. Historia do tempo presente. São Paulo: Editora Contexto, 2007. MOORE, Allan F. The Beatles: Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Cambrige: Cambrige University Press, 1997. SANTINI, Rose Marie. Admirável chip novo. Rio de Janeiro: E-papers, 2005. SCHIFF, David. The Music of Elliott Carter. London: Eulenburg Book, 1983. ZANATTA, Luciano de Souza. "Música Doméstica": Em Direção à Composição de Música Gravada. Porto Alegre: Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, 2007

931

METAGON – TEMPO MUSICAL ESPIRAL Luigi Antonio Irlandini [email protected] UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina

Escrita para shakuhachi1, Metagon (2008) é uma composição solística de cerca de quinze minutos de duração nascida da colaboração com o artista plástico Jean-Pierre Hébert e associada mais especificamente à sua escultura de areia do mesmo nome, Metagon (ver Fig. 2, abaixo). Trata-se aqui de uma concepção poiética da composição e performance musicais na qual elementos de Zen budismo, geometria e simbologia arquetípica confluem para tornar presente o próprio processo criativo. O devir/processo instaurado multissensorialmente (musical e visualmente) por uma estrutura espiral (sonora e escultural) apresentam, na performance, a cosmogonia2 como evento gradual, por meio de uma música cujo código formativo não é abstrato, mas algo passível de ser percebido estesicamente, que se torna efetivamente presente e experienciável pela audição e pela visão, música e escultura, ao mesmo tempo. Em sua série de litografias 15 Variationen über ein Thema (1938), o designer suíço Max Bill (1908-1994) compôs um “tema” que explicita a sua própria essência construtiva (Fig. 1), e cuja natureza é a espiral; a obra consiste em quinze variações sobre este mesmo princípio formativo. Hébert, inspirado em Max Bill, tomou o mesmo tema para compor seu portfolio de desenhos One hundred views of a metagon3 (1998), cunhando o tema de Bill com o nome metagon, metágono ou “metapolígono”, e definindo-o como “uma linha poligonal regular, aberta e possivelmente infinita desenvolvida em duas ou mais dimensões seguindo uma regra serial de 4 expansão .”(HÉBERT, 2012, p. 1). Trata-se de uma escultura que se manifesta gradualmente à frente do expectador tornando visível, ao vivo, a sua própria construção. Isto se dá com a ajuda de um computador que, comandando um plotter localizado debaixo de uma caixa de areia, move, por magnetismo, uma esfera metálica Shakuhachi é a flauta de bambu japonesa ligada às tradições zen budistas. A primeira execução de Metagon teve lugar no recital “Mantra e Espiral: Música de Luigi Antonio Irlandini” realizado no Teatro SESC Prainha em Florianópolis, Santa Catarina, em 10 de outubro de 2012. 2 Composição como cosmologia e cosmogonia, gênese de um universo sonoro ou acústico, conforme desenvolvido anteriormente (IRLANDINI, 2012). 3 O título faz menção tanto ao trabalho de Max Bill quanto ao de Katsushika Hokusai (1760-1849) “Cem Vistas do Monte Fuji” (1835-1847). 4 “Metagon – a regular, open, possibly infinite polygonal line developed in two or more dimensions following a serial rule of expansion.”(tradução do autor) 1

932

que se encontra inicialmente no centro da superfície de areia e a faz percorrer uma trajetória espiral conforme o software/algoritmo gerador da espiral/metágono. A música é executada ao vivo e em sincronia com o “caminhar” da esfera metálica sobre a areia. O universo sonoro da composição segue regras análogas às da figura do metágono. Ao concluir-se a música, conclui-se também o rastro espiral deixado na areia pela esfera metálica. A música pode ser tocada independentemente da escultura, embora isto não corresponda à proposta completa inicialmente desejada pelo compositor.

Fig. 1 Fig. 2 A espiral como estrutura dinâmica, princípio construtivo ou processo musical tem sido objeto de pesquisa composicional do autor desde 1988, iniciando com Pralâya, para piano solo. Desde então, diversas outras composições realizaram diferentes temporalidades espirais: organizações do tempo musical que seguem o desenrolar cíclico em contínua e intensificada transformação característico da espiral. Assim como é possível criar diversas linhas espirais definidas por diferentes geometrias e matemáticas, são inúmeros os modos pelos quais a temporalidade musical pode expandir-se ou contrair-se como uma espiral. A macroforma de Metagon, como a de outras composições anteriores5, determina um único segmento finito de uma tendência espiral melódica, rítmica e textural possivelmente infinita. É neste sentido que se pode dizer que a música não termina, mas simplesmente pára, pois o processo teria continuado ad infinitum6. Além disto, esta identidade macroforma/espiral resulta num devir musical de tipo processual e gradual. A concepção de música como processo gradual remonta às primeiras teorizações do compositor Steve Reich (n. 1933) que, em seu pequeno ensaio de 1968, Music as a Gradual Process, propõe uma música que é, literalmente, o processo. Para ele, este processo deve ser perceptível, ideia que, de modo parecido, também importa em Metagon, pois busca-se a estrutura ou o processo Alguns outros exemplos de macroforma espiral são as composições, Pythagoras (2000), para flauta doce tenor, e Trail of tears (2005), para dois violinos e piano, mas não a de Luna (2006), para coro a cappella, que contém duas ocorrências da espiral dupla. 6 Aqui o compositor age como um mediador (um demiurgo ou trickster), que tenta tornar possível a experiência do ilimitado , mas só pode fazê-lo por meios limitados. 5

933

reconhecíveis/perceptíveis audivelmente. No entanto, aqui não há minimalismo nem repetitivismo, já que Metagon almeja justamente o retorno diferente, de efeito acumulado, espiral. Tampouco se busca um “processo que, uma vez inicializado e carregado, prossegue por si próprio 7” (REICH, 1974). O compositor de Metagon tem intenções, cria e intervém no processo, no entanto, sem alterá-lo essencialmente. Em Metagon, a macroforma é uma monodia cuja tendência espiral é expansiva, partindo de um som único e, gradualmente abarcando a maior multiplicidade de sons disponível no instrumento. A centricidade tonal (o centro é o Dó do terceiro espaço da pauta) não implica em tonalismo mas simplesmente no ponto central de um espaço textural e de alturas que se expande gradualmente. As alturas vão se acrescentando e acumulando uma a uma a cada ciclo fraseológico8 (um giro ou ciclo da espiral), por semitom acima e abaixo da última nova nota ou, explicado diferentemente, com relação ao Dó central, primeiro acrescenta-se o semitom superior – Dó# depois o inferior – Si – depois o tom superior – Ré – e assim por diante, expandindo a tessitura melódica e o espaço textural. Ao mesmo tempo os ciclos (fraseológicos) vão progressivamente se expandindo, tornam-se mais longos, na mesma razão do princípio sugerido na figura do metágono: inicialmente um polígono de três lados, depois de quatro, depois de cinco, etc. Esta relação ocorre aqui com o número de compassos que, desprovidos de qualquer significado métrico, simplesmente servem como unidade de medida dos ciclos: ao início duram dois compassos, depois três, depois quatro, até o último, com vinte e sete compassos. A espiral macroformal de Metagon tem vinte e seis ciclos. A espiral é um símbolo arquetípico da grande força e processo criativos, da emanação, etc (COOPER, 1978). A obra musical como forma formada, forma sensível, ao tomar a espiral como princípio construtivo, coincide com ela, e reenvia ao arquétipo (forma formante, não sensível), (ZOLLA, 1988), tornando-o presente. A espiral se torna tempo musical ao instaurar, nos sons, a sua trajetória cíclica intensificante. A música passa a ser um símbolo da espiral e, consequentemente, também do arquétipo. Metagon propõe um envolvimento profundo com as tradições ligadas à prática da meditação Zazen, não só por meio da simples escolha do

7

“once the process is set up and loaded it runs by itself.” (Reich, 1974) (tradução do autor)

A expressão “ciclo fraseológico” tenta colocar as “frases” musicais no contexto de tempo cíclico, em contraste com o que tradicionalmente se entende por “frases” no estudo da fraseologia ou morfologia musical, que, pelo menos na música clássico/romântica ocidental, as contextualizam num tempo linear e dialético. A expressão passa a ser abreviada para “ciclo”, simplesmente, e indica, na música de temporalidade espiral, uma estrutura do discurso (melhor dizendo, do decurso) que tem, como a frase, um sentido completo. Este sentido completo é, justamente, o completar-se de um giro da espiral. 8

934

instrumento musical diretamente ligado a ela, o shakuhachi, como também por buscar elementos comuns à estética honkyoku9 a ele relacionado: a simplicidade da monodia desacompanhada, o som dinâmico e internamente vivo, o tempo circular de suas melodias, e seu caráter de ferramenta para a meditação, como disciplina do controle da respiração, suizen, ou Zen do sopro. A escultura de Hébert aproxima-se do Zen não só pela semelhança paisagística da escultura de areia com o karensansui (o jardim de pedras japonês), como também por aceitar e cultivar sua própria efemeridade musical, desprendendo-se dela: a escultura é desmantelada, como uma manḍala de areia tibetana, para ser reconstruída novamente noutra performance.

Honkyoku (“peças originais”) é o repertório solístico do shakuhachi ligado à prática da meditação Zen. (BLASDEL, 1988) 9

935

PARTITURA

936

937

938

939

940

941

942

943

944

945

946

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA BLASDEL, CHRISTOPHER YOHMEI. The shakuhachi – a manual for learning, Tokyo, Ongaku no Tomo Sha Corp, 1988. 162 p. COOPER, J.C. An illustrated encyclopaedia of traditional symbols. Londres: Thames & Hudson, 1978. 208 p. HÉBERT, JEAN-PIERRE. “One Hundred Views of a Metagon”. Dasta de publicação: 23 de outubro de 2012. Disponível em: http://jeanpierrehebert.com/docs/HVall%20121023.pdf., 2012. Data do acesso: 15 de julho de 2013. IRLANDINI, LUIGI ANTONIO. “Cosmologia da composição e suas interações com a teoria e análise musicais”. In: IV Encontro de Musicologia de Ribeirão Prêto, 2012, Ribeirão Preto, SP. Anais do IV Encontro de Musicologia de Ribeirão Prêto, 2012, ISBN 9788577470396, pp. 239-245. REICH, STEVE. Writings About Music. Halifax: Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 1974. 77 p. ZOLLA, ÉLÉMIRE. Archetipi. Venezia: Marsilio Editori, 1988.160 p.

947

A MÚSICA NÃO PODE SER ERUDITA1 SONETO CONCRETO SOBRE COMPOSIÇÃO PLANIMÉTRICA MONTAGEM DE FRAGMENTOS DE H. J. KOELLREUTTER & ADONIRAM BARBOSA Antonio Herci Ferreira Júnior [email protected] Filosofia – FFLCH/USP

Gilbert Garcin

Soneto concreto Aos operários, Esteve na prisão comigo, Música não pode ser erudita, Músico pode ser erudito! Eu prefiro dizer o que sempre se dizia: Música clássica e música popular. A música é uma arte que se serve da linguagem dos sons, Nós usamos então metáforas! Fusão do popular e do clássico, Na base da improvisação: Submetida ao I Simpósio de Estética e Filosofia da música SEFIM-UFGS, Porto Alegre, outubro de 2013. Peça inédita composta em 2012 e gravada em 2013. Disponível on-line: https://soundcloud.com/antonioherci/a-musica-nao-pode-ser-erudita 1

948

Música não pode ser erudita; Músico pode ser erudito! Raro é a realização da personalidade. Cada um é diferente: o círculo se fechou! Soneto concreto é uma montagem de frases proferidas pelo compositor e professor Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), com recortes de sua voz original colhida em gravações de aulas, conferências e documentários. (Conf. principalmente: SGANZERLA, 2003). São apresentadas duas de suas mais marcantes e controversas teses:

a. NEGAÇÃO da dicotomia, ou bi partição, ou classificação da música a partir dos termos ‘erudito’ e ‘popular’, utilizado na época pela maioria dos acadêmicos e academias. b. NEGAÇÃO da erudição como qualidade da música. Apresenta a ‘erudição’ como algo mais apropriado à qualificação do próprio homem, isto é, do músico; por outro lado recusa a classificação da música segundo uma suposta presença ou ausência de ‘erudição do objeto artístico’, pois a própria delimitação para representar tais categorias implica na divisão entre o que tem e o que não tem erudição, o que seria o mesmo que afirmar que a erudição é vetada ao músico do campo popular. A delimitação do erudito, dessa forma, seria uma forma de desqualificação do popular. Propõe, como alternativa, os termos ‘popular’ e ‘clássico’, este último compreendendo o universo da música de concerto europeia, a partir do renascimento. (KOELLREUTTER, 1990, 1999a, 1999b e TOURINHO, 1999) COMPOSIÇÃO PLANIMÉTRICA

A música não pode ser erudita é uma 'obra manifesto': interpreta e defende uma tese, não se reivindicando neutra. Seu suporte é uma montagem literomusical em dois planos: 1. Trechos de falas, conferências ou documentários de Koellreuter, que compõe o Soneto Concreto. 2. Fragmentos musicais de Koellreutter e seu contemporâneo Adoniram Barbosa. Adoniram – Casamento do Moacir; Despejo na Favela; Morro da Casa Verdade;

Mulher patrão e cachaça; Trem das Onze e Véspera de Natal (músicas). Koellreutter – Anacron; Panta Rhei; Wo-Li; Improviso para flauta; Três peças para piano (músicas). Informação (documentário).

949

Desse universo sonoro são recortados trechos de alguns segundos — ‘módulos básicos’, material sonoro que vai ser utilizado na montagem. Os módulos são organizados em bancos de timbres, disparados por teclados e controladores virtuais, segundo uma técnica planimétrica. Nas palavras do próprio professor:

PLANIMETRIA É a técnica de composição que organiza os signos musicais em diagramas multidirecionais de séries e estruturas. Relação profunda entre som e silêncio, combina predeterminado (composição) e aleatório (improvisação). Valoriza ocorrências acausais e permutações, vivência e percepção do tempo, em campos sonoros. Busca superar o dualismo: consonância/dissonância, melodia/acorde, contraponto/harmonia, forte/fraco, definido/indefinido, correto/incorreto, belo/feio, vida/morte, imanência/transcendência. "Concretion" (1960) foi meu primeiro ensaio planimétrico. A base é a minha "estética relativista do impreciso e do paradoxal". (Definição de Koellreutter, in: ADRIANO; VOROBOW, 1999, destaque meu. Cf. item 4.)

ESTÉTICAS E IDEOLOGIAS O século XX foi marcado por experiências musicais que demoliram tabus e fronteiras. Ousadias estéticas que não passaram despercebidas pelos órgãos de censura, durante a repressão que decorria no Brasil sob Ditadura Militar. Transgredir regras estéticas acabava inevitavelmente tendo um conteúdo contestatório, pois efetivamente entrava em choque com a própria normalização da vida cotidiana, passada a pente fino pelos aparatos ideológicos: currículos, etiquetas, bom gosto, organização da produção e distribuição musical; ou mesmo em questões diretamente ligadas à sintaxe e prosódias, tecnicamente falando. Koellreutter expressava um ponto de convergência na expressão dessas vanguardas, tanto clássicas e populares: trazendo inovações técnicas e composicionais — dodecafonia, música aleatória e planimetria — e abrindo as portas da universidade para a criatividade e temática social da música popular. Com o grupo Música Viva [1944], orientou a geração de compositores que veio a orientar os signatários do Manifesto Música Nova no início da década de 60 (Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Willy Correia de Oliveira

950 etc.); formou, entre outras coisas, toda a geração dos tropicalistas; a geração dos signatários do Música Nova, por sua vez, foi tutora de compositores e grupos vinculados à ECA-USP, como Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, Premeditando o Breque, Terço, Luis Tatit, no campo da música popular, e Silvio Ferraz, Flô Menezes e Denise Garcia, no campo da música eletroacústica. (COSTA, 2006)

Era preterido nas rádios, mesmo em programas especificamente de música clássica e sofreu oposição de parte dos acadêmicos, pelo radicalismo estético, abertura para o popular e suas convicções socialistas. Chegou a ser criticado — pela mesma prática da dodecafonia — ora de ‘fascista’, ora de ‘comunista’. (KOELLREUTTER, 1999b) Alguns músicos ligados ao PCB (Guerra Peixe entre eles) o acusavam de estar impregnando a cultura nacional com elementos estranhos; os censores da ditadura de estar introduzindo, pela estética, um pensamento igualitário e anarquista. (ADRIANO; VOROBOW, 1999 e COSTA, 2006) Adoniram Barbosa (1910-1982) foi um dos mestres da música brasileira, criador de um estilo falado e improvisado, entrecortado por silêncios e paradinhas (samba de breque) e harmonias vocais — coros de três ou quatro vozes—, em estribilhos muitas vezes onomatopaicos. Seu maxixe ‘Vai-Da-Valsa’ de 1950 foi sumariamente vetado na época [Estado Novo], só chegando ao disco meio século depois. ‘Despejo na Favela’ de 1969, foi alvo de implicância dos militares, especialmente devido aos versos: “[...] essa gente aí, hein? Cumé que faz?” (MUGNAINI JR., 2002, pág. 124. Destaques meus.)

Os censores de plantão ainda vetaram a obra pela “imoralidade dos erros de português” e por utilizar “palavras proibidas”, como “sargento” e “polícia”. (MUGNAINI JR., 2002, pág. 132) TÉCNICA E CONSTRUÇÃO DA PEÇA A notação planimétrica dispõe signos em um plano, organizados em dois eixos perpendiculares, segundo uma escala mais ou menos rígida, em uma relação, por exemplo, entre tempo (horizontal) e altura (vertical). Trata-se, aqui, de acrescentar uma semântica: formas para interpretar a maior ou menor expectativa de solução sonora ou relação causal entre os eventos — um dos valores fundamentais para Koellreuter (conf. acima [Planimetria]) — numa escala que varia de estruturas preconcebidas a interrupções bruscas de expectativa habitual da vivência sonora.

951

São isolados sons característicos e frases marcantes ou recorrentes e decompostos em unidades — módulos básicos —, racionalizáveis segundo a maior ou menor implicação de fraseado entre um e outro. Depois recombinados, compondo novos e inusitados caminhos de expectativas ou interrupções de expetativas. I Adoniram — dois módulos recorrentes notáveis: 1. A batida da percussão: (a) do tempo forte (geralmente no grave do surdo) e (b) contratempo (geralmente no agudo do surdo, pressionando a pele), sua ‘solução habitual’:

2. Solução dominante-tônica (ou subdominante-tônica) dos fraseados habituais respectivos, inclusive com suas cadências de engano e interrupções (os ‘breques’):

II

Koellreutter: 1. Sons cuja expectativa de implicação entre um e outro venham da disposição original da obra:

2. Sons sem ligação na obra, que dão origem a expectativas atuais:

3. Ruídos e sons indeterminados, com fraca implicação de fraseado:

III 1. Interruptores ou terminadores de frase

952

2. Contínuos

3. Nota ou evento isolado

IV Ruídos contínuos de alta frequência 1. Cama alta 2. Cama baixa

V

Planimetria bidimensional. 1. O eixo horizontal representa a temporalidade. 2. O eixo vertical representa a DISPOSIÇÃO DOS TIMBRES dos fragmentos sonoros em uma escala qualquer (aqui foi usada a escala cromática). Cada nota dispara um som de cada um dos compositores segundo o banco acessado de timbres. Quando sobre fundo de reticulado, devem ser exclusivos de Adoniram ou Koellreutter (respectivamente).

953 3. O eixo vertical representa AS ALTURAS em improvisos sobre objetos metálicos.

VI 1. Frases de Koellreutter, que compõe o Soneto Concreto:

2. Cantarolar — Adoniram, utilizando os recorrentes arranjos para grupo vocal (“lalaiás”, “joga cascas pra lá” etc.); Koellreutter em polifonia sobre sua própria voz (respectivamente);

BULA INTERPRETAÇÃO PLANIMÉTRICA: pode ser executada em outros universos sonoros e conjuntos de timbres.

954

955

956

957

958

959

BIBLIOGRAFIA ADRIANO, Carlos; VOROBOW, Bernardo. A revolução de Koellreutter. Folha de São Paulo - Caderno MAIS, 7 de novembro de 1999. COSTA, Valério Fiel da. Apenas Koellreutter. Overmundo. Blog. 6 de dezembro de 2006. Disponível em: . Acesso em: 26/7/2013.

KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Wu-li: Um Ensaio de Música Experimental. Estudos Avançados (USP), v. 4, no 10, p. 203–208, 1990. KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Sobre o valor eo desvalor da obra de arte. Estudos Avançados (USP), v. 13, n. 37, p. 251–260, 1999a. KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Koellreutter fala sobre “Café”. Estudos Avançados (USP), v. 13, n. 37, p. 265–266, 1999b. MUGNAINI JR., Ayrton. Adoniran: da licença de contar. São Paulo: Editora 34, 2002. SGANZERLA, Rogério. Informação H. J. Koellreutter. Documentário, 2003. TOURINHO, Irene. Encontros com Koellreutter: sobre suas histórias e seus mundos. Estudos Avançados (USP), v. 13, n. 36, p. 209–223, 1999.

960

COTA ZERO: UM ESQUEMA SUMÁRIO Claudia Helena Alvarenga [email protected] Professora de Música no Colégio de Aplicação da UFRJ Doutoranda em Educação pela UNESA Tarso Bonilha Mazzotti [email protected] Professor do P.P.G em Educação da Universidade Estácio de Sá

A MÚSICA O objetivo deste trabalho é examinar os significados de concisão no discurso musical a partir da utilização do ostinato como recurso musical e discursivo. Para tanto, desenvolvemos esta análise a partir do arranjo vocal criado pela primeira autora deste texto para o poema Cota Zero de autoria de Carlos Drummond de Andrade. Em 2004 Belchior lançou o CD duplo1 As várias caras de Drummond com 31 músicas cujos textos eram todos de autoria do poeta mineiro acima citado. Um dos poemas musicados é Cota Zero (ANDRADE, 1930): Stop. A vida parou ou foi o automóvel?

Para este poema, Belchior apresenta um baião de melodia modal no âmbito de uma 5ª Justa cuja estrutura é tão sumária quanto o poema de Drummond. O tema é entoado três vezes seguidas antes do interlúdio instrumental. A seguir, é retomado e cantado mais três vezes como na primeira parte. A conclusão do tema no 3º grau do mixolídio sublinha o tom suspensivo instaurado pela pergunta do texto, antes do término no 1º grau com caráter conclusivo na terceira e última repetição.2 As intervenções do acordeão acentuam os ritmos em contratempo, e os desenhos melódicos no modo mixolídio, caracterizado pela ausência da sensível, reforçam o sentido de plagalidade típico do universo modal (SENA, 1990). Os trechos melódicos em que piano e acordeão dialogam no interlúdio nos reportam às sonoridades modais da música popular do nordeste brasileiro. O POEMA Disponível em: . Acesso em: 6 jul.2013. 2 Ouça a canção em: . Acesso em: 6 jul. 2013. 1

961

Cota Zero é um poema de 1930. Aproximadamente 50 anos antes, o uso da energia elétrica e do motor à combustão, entre outros avanços, permitiram a aplicação direta das novas tecnologias nas indústrias metalúrgica e de transporte, época conhecida como a segunda Revolução Industrial. No início do século XX, as sociedades europeia e americana se deslumbravam diante destes progressos que tinham desdobramentos imediatos na vida social cotidiana. O automóvel, uma invenção desta época, sintetiza a representação de modernidade, associada não apenas à exaltação da máquina e da velocidade, expressa em O Manifesto Futurista de Marinetti, publicado na França, em 1909 (BONVICINO, 2009), mas também à crise ecônomica ocorrida nos EUA, em 1929, que teve repercussão no Brasil com o fechamento de fábricas, provocando uma busca freada no desenvolvimento econômico (GUIMARÃES, 2011). A brevidade do poema de Drummond questiona o encantamento com a velocidade rápida dos novos tempos, que o automóvel representa, expondo outra possibilidade: a imobilidade dada pela freada inesperada do automóvel. As palavras “stop” e “parou”, além da sinonimia com o cessar do deslocamento, produzem um ritmo onomatopaico que interrompe o fluxo sonoro na leitura do poema, proporcionado pelas consoantes explosivas,3 que obstruem a passagem de ar provisoriamente, o que sublinha a antinomia movimento-imobilidade cuja ambiguidade o poeta coloca para a nossa reflexão. A ambiguidade também aparece no título: cota zero (BONVICINO, 2009; GUIMARÃES, 2011). Uma cota é um quinhão, uma parte. Se é zero, não existe ou nada vale. O que significaria uma cota de nada? A contextualização histórica é relevante para uma interpretação possível do poema, visto que os artistas em suas criações individuais operam no âmbito das tradições culturais que são compartilhadas em seus grupos sociais. Assim, compreender o impacto do automóvel como representação na décade 30 permite apreciar o impacto do poema de Drummond em sua concisão, tão veloz e dinâmico quanto o automóvel com a proposição de uma súbita parada para considerações e questionamentos. O ARRANJO Para esta canção foi elaborado um arranjo para coro misto a 5 vozes (soprano, mezzo-soprano, contralto, tenor e baixo), a cappella, estruturado com ostinatos, fundamentado em estruturas curtas e sumárias, os mesmos esquemas que fornecem o eixo de construção do poema de Drummond e da composição de As consoantes explosivas ou oclusivas, são produzidas por uma pequena explosão quando o ar expirado tem sua passagem temporariamente bloqueada pelos articuladores, no caso “t” e “p”. Para maiores esclarecimentos: . Acesso em: 7 jul. 2013. 3

962

Belchior. Sendo assim, buscamos instituir uma unidade esquemática entre texto, composição e arranjo, que também se inspira na paisagem sonora introduzida pelas novas tecnologias das máquinas fabris cuja redundância e continuidade sonoras são características preponderantes (SCHAFER, 2001). O ostinato é uma frase musical claramente definida cuja repetição é persistente e contínua durante uma peça musical inteira ou parte desta (APEL, 1972). Na perspectiva da retórica, sustentamos que o ostinato se aproxima do lema ou slogan pelo efeito que produz e, conforme explica Reboul (1984), deve ser destituído do sentido pejorativo associado à propaganda. Este autor define o slogan como um esquema discursivo conciso que visa impactar e mover o auditório. Sua origem está nos gritos de guerra, que eram, antes de tudo, cantados. Por isso, o slogan é uma fórmula, expressão ou frase relativamente fácil de memorizar e repetir, tal qual o ostinato em música. Destacamos alguns traços característicos do slogan, os quais relacionamos ao ostinato: (1) o slogan é um fórmula anônima embora alguém o tenha criado. No entanto, deve soar como se todos já o soubessem; o ostinato deve ser evidente como uma melodia familiar, uma vez que deve ser facilmente reconhecido e memorizado; (2) o slogan é sumário, sendo assim, apresenta muitos significados, o que o torna impactante e também polêmico; o ostinato deve ser relativamente conciso para que possa se adequar aos demais elementos da composição que soam concomitantemente, de modo que sua persistência, uma amplificação do discurso, seja reconhecida e os sentidos diversos da sua combinação com os outros elementos sonoros da peça sejam apreendidos. O arranjo vocal proposto mantém o ritmo do baião, sustentado pelos baixos no ostinato rítmico, e a concepção modal, acrescentando o uso do 4º grau elevado (modo lídio) em determinados trechos. A alternância entre tônica e subtônica nos baixos opera na funcionalidade dos acordes. A introdução do arranjo (compassos 1 ao11) expõe os ostinatos que servem de acompanhamento para o tema, apresentados, sucessiva e respectivamente, pelo baixo, tenor e contralto que se sobrepõem e se complementam musicalmente, sugerindo a sonoridade de máquinas pela repetição obsessiva da frase “foi o automóvel ou a vida que parou?”. Ainda na introdução, os intervalos de quarta, pelos quais se deslocam Mezzo-Soprano e Soprano, ao provocar dissonâncias com a base, sugerem as buzinas de automóveis em trânsito que param bruscamente no compasso 11. Então, retorna a engrenagem de ostinatos e segue a apresentação do tema na voz de mezzo-soprano, sublinhado em terças paralelas por soprano, por três vezes consecutivas. No compasso 34, contralto interrompe o ostinato para retomá-lo adiante, antecipado em um tempo em relação ao tenor, o que torna a paisagem sonora mais ruidosa pelo desencontro na articulação da frase “foi o automóvel ou a vida que parou?” entre contralto e tenor. Segue o tema reapresentado por mezzo-soprano. Dessa vez, soprano ganha um contorno polifônico com relação ao

963

tema e só volta a sublinhá-lo em terças paralelas na anacruse do compasso 46, prenunciando o final do arranjo. A partir daí, o nível de ruído gradualmente se amplifica tanto pela fragmentação e dessincronização dos ostinatos de tenor e contralto, efeito que causa a sensação de aumento de velocidade, como pela inserção de objetos percussivos de pequeno porte que os cantores devem tocar, aumentando gradativamente o volume e a densidade, enquanto cantam, quando tudo é subitamente interrompido pelo acorde final, que sugere o apito de um trem. Dessa maneira, a elaboração de um arranjo para Cota Zero, fundamentado em um esquema musical sumário, aproxima os sentidos do discurso poético e musical. PARTITURA

964

965

966

967

968

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edições Pindorama, 1930. APEL, Willi. Harvard Dictionary of Music. 2nd. ed. rev. e amp. Cambridge: Harvard University Press, 1972. BONVICINO, Régis. O poema antifuturista de Drummond. Sibila: Poesia e crítica literária. Ano 13, 29 abr. 2009. Disponível em: . Acesso em: 5 jul.2013. GUIMARÃES, Desirèe Mercer. Carlos Drummond de Andrade: “Cota Zero” e a Simbiose Homem-Máquina. In: Simpósio Nacional de Tecnologia e Sociedade, 4. Curitiba. Anais… Curitiba: Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), 2011. Disponível em: . Acesso em 5 jul. 2013.

969

REBOUL, Olivier. A linguagem da educação: análise do discurso pedagógico. Tradução: Tarso Bonilha Mazzotti, 2000. Título original: Le langage de l’éducation: analyse du discours pédagogique. Paris: Presses Universitaires de France, 1984 (Col. L’Éducateur). Tradução não publicada. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001. SENA, Hélio de Oliveira. Implicações Harmônicas do Modalismo Nordestino. Tese de Livre-Docência. UNIRIO, 1990.

970

IMAGENS DO SERTÃO PARA CLARINETA EM Bb E VIOLÃO Marcelo Alves Brazil [email protected] Universidade Federal da Bahia

O presente texto relata o processo de criação de uma composição original para duo de clarineta (Bb) e violão, suas bases estéticas e a proposta de diminuir as distâncias entre a música popular e a chamada música de concerto. A peça intitulada Imagens do Sertão surgiu originalmente como uma peça para clarineta solo no ano de 2007. Posteriormente, foi escrita a parte do violão procurando manter, ainda, o caráter solista do instrumento de sopro. Estreada em 2011, a composição é uma pequena suíte, executada de forma contínua, que aborda alguns dos diversos ritmos da música nordestina, principalmente aqueles praticados nos estados da Paraíba e de Pernambuco, onde o autor residiu por mais de vinte anos e onde iniciou os seus estudos musicais. Livremente inspirada na estética armorial, a peça traz uma linguagem que transpõe as barreiras que alguns teóricos insistem em criar entre a música chamada de popular e a denominada erudita ou de concerto. A música foi uma das manifestações artísticas exploradas pelos integrantes do Movimento Armorial, iniciado oficialmente em outubro de 1970 na cidade de Recife, Pernambuco, com um concerto e uma exposição de artes plásticas. (NÓBREGA, 2007). Seu fundador e mentor intelectual, o escritor Ariano Suassuna, definiu assim o movimento: A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1974, p.7).

A proposta de Suassuna era criar uma arte erudita brasileira partindo dos elementos da música popular do sertão nordestino. De acordo com Newton Júnior, coube a ele a identificação de princípios comuns nas obras de vários artistas que viriam a fazer parte do Armorial, e a elaboração, posteriormente, baseando-se nesses princípios, de toda uma fundamentação teórica para o movimento. (NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 97) Elaborada dentro dessa proposta estética, onde o popular e o erudito se fundem, a obra também dialoga com o pensamento de Adorno que afirma que em uma peça de música séria: “Cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical.” (ADORNO,

971

1974, p. 117) Buscar um caráter “erudito” para a linguagem popular utilizada na composição foi uma das preocupações iniciais e, certamente, realizá-la sem interrupções foi a forma de buscar essa totalidade citada por Adorno. A peça inicia com um solo tranquilo de clarineta, representando um aboio1, o começo de um dia de trabalho. O violão executa um acompanhamento em arpejos, reforçando o caráter modal da melodia, e juntos concluem com um melancólico intervalo de terça menor. Na sequência, em contraponto, temos um baião alegre onde os instrumentos interagem e dialogam dentro de uma linguagem tonal. Intitulado Brincando, o trecho reflete a alegria e a algazarra das crianças ao longo do dia, suas brincadeiras, brigas e jogos. O movimento seguinte, Caminho do Rio, é mais descritivo e utiliza os recursos de técnica expandida dos dois instrumentos para criar um clima misterioso e de reflexão. Dentro da linguagem modal, a melodia exposta pela clarineta é sustentada inicialmente por um acompanhamento delicado, quase etéreo. Os instrumentos dialogam até o momento onde o mistério e a surpresa de um fim de tarde no sertão surgem em formas diversas: luzes, sons, pássaros... O final lento encaminha o discurso musical para outro gênero da música popular nordestina, o xote. Aprender a dançar na cozinha é um fato bastante comum entre os jovens no sertão. Enquanto cozinham, as mulheres ouvem rádio e ensinam os passos de dança aos mais jovens, meninos e meninas. O Xote na cozinha traz a linguagem da sanfona através de uma melodia simples e marcada, típica desse gênero. Uma pequena cadência do violão leva a mais um movimento lento, intitulado Pôr do sol. Aqui temos o momento de fechamento das atividades do dia: o gado já está recolhido no curral, as brincadeiras das crianças vão se encerrando e o surgimento da primeira estrela conduz a um momento de oração e recolhimento. A clarineta canta uma melodia construída em dois níveis de altura, talvez conversando consigo mesma, como se estivesse refletindo e avaliando o seu trabalho diário, buscando respostas para mais um dia que irá chegar. Mas antes do descanso noturno, ainda existe espaço para a festa, para a alegria da noite nordestina. Com uma melodia que remete ao pífano2, o Forró no Mulungú retrata um típico baile do sertão, com sua melodia rápida e alegre. O desenho melódico executado pela clarineta recorda, na cadência, o mesmo elemento estrutural do movimento anterior, criando um diálogo entre dois níveis de altura enquanto o violão reproduz uma zabumba com uma percussão executado no corpo do instrumento. O ritmo acelerado é interrompido bruscamente e surge novamente o aboio, um recomeço, agora tocado pelo violão Aboio é um canto sem palavras e sem acompanhamento utilizado pelos vaqueiros para conduzir o gado. 2 Pífano ou pífaro é uma pequena flauta transversal feita de bambu, parte integrante do Terno de Pífano que, em Pernambuco, é composto por dois pífanos, uma caixa, um bombo, um surdo e um tambor. No nordeste brasileiro também é chamado de pife. 1

972

que conduz a peça calmamente para o seu final com algumas intervenções da clarineta. A estética da música armorial permeia a composição não apenas pelo uso de ritmos nordestinos ou da linguagem modal. A ideia de utilizar instrumentos modernos e tradicionais da música de concerto representando e reproduzindo os instrumentos típicos da música sertaneja está presente desde o início do movimento. Na contracapa do LP Chamada da Orquestra Armorial (1975), o maestro Cussy de Almeida, responsável pela regência do grupo, descreve o papel de cada instrumento na construção da sonoridade rústica: violinos e violas representando as rabecas, flautas transversais que substituem pífanos, uma viola de dez cordas que acrescenta a sonoridade das cordas pinçadas do cravo e o naipe de percussão que representa a zabumba. Cussy afirma: No fundo, a Armorial não passa de uma orquestra de câmara ligeiramente alterada, com a inclusão de percussão e das duas flautas que a integram. Os trabalhos até aqui apresentados são apenas uma tentativa de encontrar uma música que um dia, em mãos dos nossos compositores maiores, possa vir a representar, em âmbito universal, uma forma de música brasileira. (ALMEIDA, 1975)

Concluindo, Imagens do Sertão traz um desdobramento da estética de Ariano Suassuna através de uma outra sonoridade, da busca de novos timbres, onde a clarineta pode ser um pífano e o violão, uma zabumba. PARTITURA3

3

Dedicada a Rosa Barros - 2011

973

974

975

976

977

978

979

980

981

982

983

984

985

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Sobre a música popular. In: COHN, Gabriel (org). Adorno: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 54) ALMEIDA, Cussy de. Chamada: Orquestra Armorial. Texto de contracapa do LP. São Paulo: Continental, 1975. NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, o Exílio e o Reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1999. NÓBREGA, Ariana Perazzo da. A música no Movimento Armorial. Anais do XVII Congresso da ANPPOM. São Paulo: 2007. SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1974.

986

SIBÉRIA Prof. Dr. Paulo José de Siqueira Tiné Instituto de Artes – UNICAMP Campinas: [email protected]

APRESENTAÇÃO Sibéria é uma obra para Big Band cuja versão para Big Band foi finalizada em 2012. Sua estreia se deu através do grupo Big Band da Santa no Teatro da Vila Madalena em São Paulo mas, em 2013, foi executada também pela Big Band de Tatuí. A primeira versão para a obra foi para 4 violões, finalizada em 2006. Na passagem de uma instrumentação para outra houve um processo que denominei de “transcriação”, ou seja, de uma transcrição na qual alguns elementos são modificados dependendo do contexto e universo musical para o qual a peça está sendo escrita. No caso trata-se da passagem de um grupo de quatro violonistas de formação clássica (QUATERNAGLIA, 2012) para um grupo que, tradicionalmente, excuta obras de jazz e música popular. A obra encontra-se, portanto, nesse ponto de tensão ou de fricção, de acordo com a nomenclatura aplicada por PIEDADE (2005). Antes que se discutam procedimentos musicais aqui, cabe lembrar que a própria formação da Big Band se prestou a essas musicalidades em obras como o “Ebony Concerto” (1946) de Igor Stravinsky encomendada pelo band leader norte americano Woody Hermann. Poderiam ser citados também o “Prelude, Fugue and Riffs” (1949) de Leonard Bernstein ou o “Salmo 149” (1998) de Almeida Prado, para dar um exemplo brasileiro, ainda que se trate de uma peça pouco conhecida. Se a obra “Siberia” pretende se encaixar nessa linha que poderia ser batizada poeticamente por Third Stream, não no sentido de uma filiação estética, mas de um tipo de cruzamento de universos musicais que há muito ocorre. Nesse sentido deve-se citar aqui o compositor Radamés Gnattalli cuja obra é fruto de tais vivências muito embora o autor não tenha escrito obras para Big Bands na formação padrão (5 saxofones, 4 trompetes, 4 trombones e seção rítmico harmônica). Pode-se, portanto, perguntar sobre qual seria pertinência desses procedimentos em pleno Séc. XXI, assunto sobre o qual discorrerei adiante. Na passagem da versão para quatro violões para Big Band são introduzidos duas seções de improvisação: uma para um solista (1º saxofone alto) dentro da estrutura harmônica da primeira seção ficando como pano de fundo (background) o contraponto que ocorria na primeira versão e outra, em substituição a um trecho dodecafônico para 4 violões, cuja série foi extraída da melodia segunda seção, por um trecho de improvisação livre idiomática, baseada na mesma série, no entanto, ao modo do free jazz, com 3 solistas simultâneos (1º

987

saxofone tenor, 2º trompete e 2º trombone)1. Por fim, a versão para Big Band retoma a seção, aqui já atonal, encaminhando-se para a coda, comum às duas versões. Resumindo, a disposição formal de “Sibéria”, na versão para Big Band, é a seguinte: Introdução (oscilação entre os acordes D7M e Ab/D) c. 1-4 Seções A em Ré maior (c.5-16) e A’ (c.17-29), Seções B em Lá bemol (c.30-40) e B’ (c.41-56) Seção C com armadura de Lá maior (c.51-92) A2 se repte três vezes com improvisação de saxofone Alto (c.93-104) B2 e B3 repetição de B e B’ partindo de Ré (c.105-120) Seção D improvisação coletiva baseada em série dodecafônica (c.121-124) Coda, finaliza em Ré (c.125-142)

Ou seja, na “transcriação”, as diferentes musicalidades são observadas para as diferentes formações, a partir das habilidades específicas de cada músico. Nesse sentido que se pode pensar em um tipo de antologia musical que se baseia não necessariamente na inovação do material sonoro, mas no interesse que o instrumentista, de uma maneira geral, pode ter diante de determinado trabalho. Nesse sentido, compositores muitas vezes relegados a um segundo plano dentro de uma linha principal do ponto de vista composicional, como o citado Radamés e, para dar um exemplo mais recente, Edmundo Villani-Cortês2, são compositores muito executados principalmente por causa do interesse dos intérpretes pelas obras. É significativo também, o fato de que a obra Inside Score de Rayborn Wright (1982), obra de referência quando se fala de escrita para Big Band, trate os autores das músicas abordadas na obra (Sammy Nestico, Thad Jones e Bob Brookmeyer) por arranjadores, e não por compositores, ainda que os temas de tais arranjos sejam dos próprios autores. Na medida em que, justificadamente, uma composição tonal pode ser tomada por anacrônica, pode-se referir à “Sibéria” como um arranjo, ou seja, como algo mais próximo a um artesanato do que a uma arte, já que tal cisão, segundo BURKHARDT (1988) se trate de um fenômeno relativamente recente na história ocidental. A dissociação entre esses dois termos é próprio ao ocidente, na medida em que esse optou, em uma linguagem figurada, por “queimar as pontes depois de atravessá-las”, como diria o professor Ricardo Rizek (1953-2006). Ou seja, é como de a composição de “Sibéria” fosse uma arranjo de um tema qualquer mas, nesse caso, trata-se de um tema do próprio arranjador. Há que se observar que, tradicionalmente os 2os trompetes e trombones são os responsáveis pela condução das improvisações na Big Band, sendo os 1os especialistas na execução das notas agudas e extremo-agudas da formação. 2 Este também autor de obras híbridas com, por exemplo, o “Ponteio pra Savana” (2011), para Big Band. 1

988

O título da peça advém da imagem sugerida pela inspiração da primeira sequência de acordes inspirados em Alexander Scriabin (Poema Divino), processo que também corrobora com a ideia da “transcriação”, remetendo às regiões geladas do continente asiático, mas, também, a um lugar próximo ao distrito de Lumiar (município de Nova Friburgo-RJ) que tem a mesma denominação, lugar de renovação e inspiração para o autor. A harmonia inspirada no autor russo já é bastante singular e próxima àquela utilizada no jazz não havendo, aí, grandes estranhamentos de maneira que a menção ao autor passa praticamente despercebida aos ouvidos. Por fim é importante apontar outras obras minha que ilustram o procedimento da “transcriação” como, por exemplo, a “Ave Maria No 2” para Maria Schneider, também para Big Band. Ela está baseada na verticalização das notas no Prelúdio No 2 do 1º volume do Cravo Bem temperado de J.S.Bach. Tal verticalização incorpora as notas que bordam a harmonia do prelúdio formando clusters diatônicos que fazem lembrar a sonoridade da maestrina norteamericana. Sobre tais acordes foi construída uma melodia, ao modo de Charles Gounod, baseado no texto em latim da oração. Para a seção de improvisação da composição foi extraída uma cifra da fuga correspondente ao mesmo Prelúdio e nela se deu uma seção de improvisos simultâneos, uma espécie de fuga improvisada. Tal seção é repetida com contrapontos passivos como pano de fundo da improvisação para terminar com uma pequena coda. Esses seriam os procedimentos técnicos, que ocorrem em muitas das minhas obras, que pretendem justificar os pressupostos estéticos propostos pela obra em questão.

989

990

991

992

993

994

995

996

997

998

999

1000

1001

1002

1003

1004

1005

1006

1007

1008

1009

1010

1011

1012

1013

1014

1015

1016

1017

1018

1019

1020

1021

1022

1023

1024

1025

1026

1027

1028

1029

1030

1031

REFERÊNCIAS BURKHARDT, Titus. A Arte del Islam. Barcelona: Ediciones de la Tradición Unánime, 1988. CORTEZ, Edmundo Villani. Ponteio pra Savana. In: Movimento Elefantes. CDê. (CD) São Paulo, Faina Moz et al., faixa 2, 2011. QUATERNAGLIA. Jequibau. (CD) São Paulo: Quaternaglia, 2012.

1032

PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. “Jazz, Música Brasileira e Fricção de Musicalidades”. Revista Opus, Vol.11, Dez. 2005. PRADO, Almeida. Salmo 148. (Partitura, manuscrito) Belém-PA: 1998. RIZEK, Ricardo. A Teoria da Harmonia em Platão. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ECA-USP, 2003. STRAVINSKY, Igor. Ebony Concerto.(Partitura) Milwaukee: Boosey & Hawes, 1973. WRIGHT, Rayburn. Inside Score. New York: Kendor Music Inc., 1982.

1033

QUEM VEM LÁ?! METALINGUAGEM, AGONISMO E HIBRIDAÇÃO CULTURAL COMO MARCAS DIFUSAS DE UM PROCESSO CRIATIVO Paulo Rios Filho UFBA – Universidade Federal da Bahia

Eu nasci no ano de 2013. Todo compositor nasce junto com a sua música. Quem vem lá?! é fruto de um esforço de imaginação sobre o nascimento. Nomeadamente, o nascimento do autor, da obra, ela própria, e também o nascimento de um pelas entranhas do outro. A música é o esboço de um roteiro fantástico que inclui, em seu núcleo, o criador (reflexivo por natureza) virando a sua própria pele ao avesso, renascendo-se a si próprio, na medida em que pare, também, a criatura. Neste curto ensaio, teço alguns breves comentários sobre aspectos filosóficos fundantes da citada obra musical, em dois momentos do que entendo ser uma energia que, uma vez empregada, continua a operar, esta entidade chamada “processo composicional”. Os dois momentos são, justamente, o do processo entendido como o percurso do ato criativo, em si; e o do processo entendido como uma entidade formal ou estrutural do artefato musical “finalizado”. Processo composicional é, então, o enredo de ações e situações disparado pelo emprego de uma energia criativa concentrada, por parte do compositor – o ímpeto (REYNOLDS, 2002) ou a ideia (LASKE, 1991) –, que desenvolve-se através de diversos níveis de implementação do que virá a ser a obra, dando espaço a uma força dialética da criação1, que, por sua vez, tende a desempoderar progressivamente o autor, até alcançar o momento da obra “finalizada”, onde finalmente esta mesma energia é que dá “vida própria” à criatura. Apesar de ser corrente, na literatura sobre criação musical, a separação desses dois momentos e o emprego de metodologias diferentes para cada um deles, o meu discurso é o da indiferenciação entre análise do ato criativo2 e análise formal da música3. 1 Dialética também – mas não só – citada por LASKE (1991) em sua descrição do “Ciclo de Vida da Composição”, que se resume na máxima de que o criador cria a sua obra na mesma medida em que é criado por ela. 2 Como feita em uma série de estudos relacionados principalmente à área da cognição musical. Cf. SLOBODA (2008) e COLLINS (2012), cujos percursos investigativos partem da compreensão de uma obra através dos rastros deixados pelo autor durante a sua confecção, ou do próprio registro de diversas etapas deste ato. 3 No sentido das análises mais tradicionais, baseadas em uma grande diversidade de modelos e teorias, cujos percursos são justamente inversos ao da análise empírica do ato criativo, partindo da compreensão de aspectos da criação de uma obra a partir dos próprios mecanismos que parecem operar internamente na obra. Pode-se citar, por exemplo, a análise schenkeriana

1034

Os aspectos filosóficos que percebo serem fundantes dentro do processo composicional de Quem vem lá?! são pelo menos três: metalinguagem, agonismo e hibridação cultural. Trataremos brevemente sobre cada um desses aspectos, na forma em que operam dentro do processo, logo após uma breve descrição do contexto da criação da peça. A composição foi escrita no início de 2013, sob encomenda do Orpheus Ensemble, conjunto baseado em Fresno, na California, EUA. Foi estreada pelo grupo em Abril deste ano, na Fresno State University, sob regência do compositor Jack Fortner4. A encomenda foi feita especialmente para o concerto de comemoração do trigésimo aniversário do grupo. A montagem do repertório para este evento baseou-se na escolha de compositores nascidos ou falecidos, ou de obras estreadas em anos terminados com o número 13, um de cada século, de 1613 até 1913, de Gesualdo até Ravel. Obviamente, a minha participação se encaixa na lógica do repertório por vias da data de estreia da minha obra – já que não nasci em um ano terminado em 13. Mas esta negativa foi justamente a matriz da primeira ideia composicional a me ser despertada: “e se eu estivesse nascendo agora, enquanto componho essa peça?” Aos poucos, já no meio do percurso criativo, dei-me conta que ao tratar do nascimento da própria música, estaria, por via da assunção da dialética supracitada, falando também do meu próprio (novo) nascimento – ou seja, de como eu estava sendo inventado pela minha invenção. O processo composicional passou a ser, assim, uma fonte nuclear também de ideias e material musical. E em meio a esta retroalimentação, couberam auto-citação, reciclagem discreta de modelos musicais utilizados anteriormente, além de interferências vocais com texto fazendo referência ao que ia acontecendo na própria música. Isso é o principal a se falar sobre o aspecto metalinguagem do processo composicional da obra. Seguindo a ordem de aparição de ideias musicais chave do percurso criativo, o segundo aspecto filosófico fundamental do processo de criação da obra é a ideia de agonismo. Agonismo, como entendido na teoria política desenvolvida por Chantal Mouffe, tem a ver com um modelo de democracia onde o espaço político se configura através da assunção e aceitação do conflito de identidades e ideias antagônicas, que encaram-se como adversários e não como inimigos, onde a valorização da contestação e da diferença sobrepuja-se àquela do consenso e da anulação do confronto. Para Mouffe, “o objetivo das políticas democráticas deveria ser prover o quadro através do qual conflitos podem tomar a forma de uma (FORTE, 1982), a Teoria dos Conjuntos (STRAUS, 1990), ou a análise motívica (SCHOENBERG, 1984). 4 A gravação da performance poe ser escutada em meu website: http://www.pauloriosfilho.com

1035

confrontação agonística entre adversários ao invés de manifestarem-se, elas próprias, como uma luta antagonística entre inimigos”5 (MOUFFE, 2000, p. 117). Este conceito filosófico de pluralismo agonístico está bastante refletido no caminho tomado pelo processo composicional, em Quem vem lá?!, na medida em que este processo foi contaminado-se com fragmentos selecionados de cada uma das músicas que seriam apresentadas naquele mesmo concerto. Na verdade, esta contaminação – através do emprego de citações literais e camufladas, gestos roubados e superfícies musicais emprestadas e deformadas – nada mais é do que a exposição do autor virado ao avesso, de suas influências e afluências. Mas não só, pois é também a exposição da própria obra que nasce, do seu processo natalício, em suas demandas e indisciplina autoral; em sua teimosia em desobedecer 'o pai': "Eu não sou você! Sou Wagner! Corelli!" Criar a sua música é convencê-la, então, de que ela é você e não outro alguém, fazê-la 'vestir a camisa' de sua própria ideia seminal, mesmo sabendo que o sucesso nesta tarefa jamais chegará. Este é um percurso através do qual o conceito de autoria pode ser agenciado de forma diferenciada, acolhedora da diferença (as obras citadas) e do conflito (entre os discursos emulados e entre as implicações estéticas divergentes causadas por estas interferências). É a própria Chantal Mouffe quem abre espaço para a aplicação do agonismo no campo das artes, ao afirmar que este é um campo estratégico para o oferecimento de “espaços de resistência que minam o imaginário social necessário para a reprodução capitalista” (MOUFFE, 2013, p. 88). Não o faz exatamente de forma a compreender a abordagem desse conceito dentro do âmbito musical, por analogia – o que fundamenta o meu parágrafo anterior. Outrossim, aponta a necessidade de “visualizar formas de resistência artística como intervenções dentro do contexto de lutas contra-hegemônicas” (MOUFFE, 2013, p. 88), ressaltando a importância da apropriação e valorização das formas institucionais tradicionais da arte, para o maior empoderamento dessa força de resistência. Ainda assim, esta relação traçada pela autora faz também sentido dentro do íntimo do processo composicional da peça em questão, no sentido em que o reconhecimento de um nível social e político no meu fazer musical acaba tornando-se também uma matriz criativa fundamental do próprio processo. Afinal, o que esperavam os que me encomendaram a música? E os que foram assistir ao concerto? O que eu e a minha música poderíamos oferecer àquela comunidade como resposta às potenciais expectativas relacionadas às implicações estéticas de fatores culturais?

5 “In my view the aim of democratic politics should be to provide the framework through which conflicts can take the form of an agonistic confrontation among adversaries instead of manifesting themselves as an antagonistic struggle between enemies.”

1036

É principalmente no tocante a essas questões que surge o vetor da hibridação cultural, como a terceira fundante do processo composicional de Quem

vem lá?! As teorias da hibridação cultural têm mostrado-se muito eficazes para a compreensão de fenômenos artísticos em contextos pós-coloniais (PAPASTERGIADIS, 2000 e 2005) (CANCLINI, 2008) (BORN, 2000). Dentro desses contextos, a noção de resistência cultural é muito importante para entender a complexidade da criação de arte contemporânea. O criador de arte contemporânea da 'periferia' é um agente de resistência com relação tanto aos discursos hegemônicos de vanguarda do 'centro', quanto ao frequente discurso reacionário nacionalista, à geralmente frágil estrutura institucional que o suporta e ao covarde domínio das subjetividades pela indústria cultural. A resposta do criador que coloca, no cerne de seu processo criativo, a filosofia da hibridação, é a de confundir os limites, para resistir. Os limites, por exemplo, entre a vanguarda e o regional continuam existindo dentro da obra, mas são embriagados, durante o processo composicional, pela criação de situações radicalmente ambíguas, marcadas pela atuação de agentes culturalmente diversificados e de referenciais transculturais. Além de acolher as interferências de nada menos do que cinco obras de diferentes períodos da história da música, a música em questão faz ainda uso da citação literal do famoso tema Forêts Paisibles, da ópera-balé Les Indes Galantes, de Rameau e de ritmos oriundos do universos cultural afro-baiano. Ambas as aparições acontecem sempre nos mesmos momentos pontuais da obra (três, no total) e são demonstradas em anexos da partitura da peça. O primeiro anexo é intitulado “Tema de Forêts Paisibles” e o segundo “Pílulas de Exoticismo”. São apaziguadores de possíveis expectativas frustradas. Rápidos momentos em que eu sou o índio galante, com meus ritmos aditivos, que talvez estivessem esperando. Finalmente, o ciclo de criação da peça é encerrado com a descoberta e inclusão de uma obra não musical. You, who was born..., da poetisa russa Anna Akhmatova (1956), funciona como a resolução desse percurso confuso de duplo nascimento, um sinal de que não há por que se preocupar com a indisciplina autoral e com os conflitos internos da obra: "Tu, que nasceste para criação Não repitas os dizeres dos antigos Muito embora talvez a nossa própria poesia Seja tão somente uma bonita citação.”6

PARTITURA 6 “You, who was born for poetry’s creation / Do not repeat the sayings of the ancients. / Though, maybe, our Poetry, itself, / Is just a single beautiful citation.”

1037

1038

1039

1040

1041

1042

1043

1044

1045

1046

1047

1048

1049

1050

1051

1052

1053

1054

1055

1056

1057

1058

1059

1060

1061

1062

1063

1064

1065

1066

1067

1068

1069

1070

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORN, G.; HESMONDHALGH, D. (Ed.). Western music and its others: difference,representation, and appropriation in music. Berkley: University of California Press, 2000. 360 p. CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. 4 ed.,4 reimpr.: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 385 p. FORTE, A. An Introduction to Schenkerian Analysis. New York: W W Norton & Company Incorporated, 1982. 397 p. LASKE, O. E. Toward and Epistemology of Composition. Interface–Journal of New Music Research, v. 20, n. 3-4, p. 235–269, 1991. MOUFFE, C. Agonistics: Thinking the World Politically. Verso: Londres, 2013. 228 p. __________. The Democratic Paradox. Verso: Nova Iorque, 2000. 143 p. PAPASTERGIADIS, N. Hybridity and ambivalence: Places and flows in contemporary art and culture. Theory Culture Society, v. 22, n. 4, p. 39-64, 2005. _________. The turbulence of migration: globalization, deterritorialization and hybridity. Cambridge: Polity Press, 2000.

1071

REYNOLDS, R. Form and Method. Oxford: Routledge, 2002. 137 p. SCHOENBERG, A. Style and Idea. Los Angeles: University of California Press, 1984. 561 p. SLOBODA, J. A Mente Musical. Tradução Beatriz Ilari e Rodolfo Ilari. Londrina: Eduel, 2008. 384 p. STRAUS, J. N. Introduction to post-tonal theory. New Jersey: Prentice Hall, 2000.

1072

CATÓLICOS LIMIARES: A OBRA E BREVES CONSIDERAÇÕES Samuel Cavalcanti Correia [email protected] Universidade Federal de Pernambuco

A presente obra está pensada para grupo de câmera de dezenove executantes e foi elaborada em dois anos de pesquisa, viabilizados por meio de estudos no mestrado em música, na subárea de composição, sob orientação da professora Drª. Ilza Nogueira. “Todo pensamento começa com um problema” (ALVES, 1981: 18). O objeto do plano conceptivo, da arquitetura de Católicos Limiares, se formalizou através de uma autoimposição: projetar algo coerente e que partisse de uma escolha temática. A necessidade do tema levou-me a pesquisar cantos de pássaros. Os motivos, muito simples: afinidade pessoal e algum conhecimento prévio sobre o assunto. A partir daí a questão se tornou cada vez mais sutil, pois era necessário encontrar parâmetros de logística para a formalização do projeto: utilizar literalmente o canto dos pássaros? Outros materiais? Como relacioná-los? Que timbres usar? Que linha estética seguir? Apenas para citar alguns questionamentos. Então, “Imaginação e memória se confundem” (MIRANDA, 2007: 7). Jourdain é ainda mais específico: Olhando atentamente para o espaço vazio, um compositor imagina através da convocação do seu conhecimento de dispositivos musicais específicos, não importa se dez segundos ou dez anos depois que ele os lembrou pela última vez. Isso parece implicar que, em última instância, a memória é a oficina do compositor (JOURDAIN. 1997: 216).

A linha estética adotada se materializou na composição através da criação de camadas que, vistas isoladamente, tendem a uma percepção de breves estases; mas que, quando somadas, promovem a ideia de um contínuo dinâmico-mutante que se relacionam a partir do princípio da dicotomia ou dialética sonora: princípio muito atraente em minha busca criativa. A dialética, manifestada pelo equilíbrio entre polos, se dá, no discurso de Católicos Limiares, por meio dos parâmetros de textura, ritmo e orquestração, da organização formal e desenvolvimento dramático em perspectiva temporal condutora de tensão e relax. Seus subtítulos revelam minha intenção de reunir ideias ou sugestões diversas para, de fato, propiciar a catolicidade, à qual persigo: Avant la Lettre, Sem tréguas rumo às melodiosas planícies e, Comme il faut à outrance. A relação título-obra é de fundamental importância. Em Avant la Lettre há um progressivo acúmulo da densidade no que tange ao ritmo e à instrumentação. Comme il faut à outrance desenvolve um percurso inverso (de decréscimo de densidade), encerrando a obra

1073

com o repouso similar ao do início, dando a ideia de volta, de fechamento de ciclo. O II Movimento, Sem tréguas rumo às melodiosas planícies evolui a movimentação deixada pelo I Movimento, mas é em seu interior que acontece o menos óbvio: o apogeu dramático, que, por lógica discursiva, deveria alcançar o máximo de som, é obtido pelo silêncio. No exato momento de “absoluto” silêncio, no compasso central da obra, pretende-se representar o equilíbrio entre o início e o fim da peça; está aí representado o portal tão esperado ‘Antes de o termo existir’ e pelo qual se poderão vislumbrar as ‘veredas’ em direção às ‘planícies melodiosas’; em outras palavras, o caminho consciente e determinado pelo movimento reconduz à ‘imponderável estática’ e à tranquilidade certa do repouso final. Católicos Limiares foi elaborada a partir de um recorte estético que se delineia em três personalidades da criação musical recente: Olivier Messiaen (1908 - 1992), Einojuhani Rautavaara (1928) e José Antônio de Almeida Prado (1943 - 2010). A decisão por estes compositores foi tomada, em primeiro lugar, pela semelhança ideológica observável entre eles, e pela influência que cada um exerce sobre o ato pessoal de concepção1. Deleuze e Guatarri ilustram este conceito dialético relacionado ao sentido de estrutura e aos planos de desenvolvimento: É a velocidade e a lentidão, o movimento e o repouso, a morosidade e a rapidez que subordinarão não só as formas de estrutura, mas os tipos de desenvolvimento. [...] Em todo caso, puro plano de imanência, de univocidade, de composição, onde tudo é dado, onde dançam elementos e materiais não formados que só se distinguem pela velocidade, e que entram nesse ou naquele agenciamento individuado de acordo com suas conexões, suas relações de movimento. Plano fixo da vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. [...] A questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão. A questão é a dos elementos e partículas, que chegarão ou não, rápido o bastante para operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanência pura. (1997, p. 13).

A imitação de procedimentos em relação aos compositores escolhidos e suas obras se dá em Católicos Limiares, de maneira exemplificável, em alguns momentos específicos: os trechos compreendidos entre os compassos 100 - 130, 159 - 188, referentes à inclusão da canção Asa Branca, constituem-se numa textura muito similar ao trabalho de Rautavaara no I Movimento (The Bog) de seu Concerto para Pássaros e Orquestra, onde figurações rápidas, trinados e trêmulos são elementos num conjunto formante de uma textura que, adicionada Segundo Cristina Capparelli, Gilberto Mendes, referindo-se às suas próprias composições, afirmou com clareza que um compositor ouve a música de outros compositores, seleciona o que gosta e insere na sua própria escrita (GERLING, 2006: 90). 1

1074

ao canto dos pássaros, se submete à inflexão sonora dos cantos como se cada instrumento fosse um novo pássaro. Aliás, esse procedimento já é em si imitativo, e ao imitar Rautavaara, tem-se aqui uma dupla imitação, a imitação da técnica composicional e do que essa significa. O canto do Bem-te-vi é imitado em peça de mesmo nome na coleção Episódios de Animais de Almeida Prado e transformado para o timbre do piano. A imitação desse procedimento se dá, quando, por exemplo, um dos cantos do Canário é imitado pela flauta doce no trecho que vai do compasso 66 ao 82 no I Movimento e no III, do compasso 13 ao 29, numa espécie de tradução para a linguagem flautística. Neste caso também há uma dupla imitação: a do canto do Canário e a da técnica de Almeida Prado. Em relação ao Catalogue D’Oiseaux, o trabalho imitativo foi bem mais desdobrado. A imitação dos outros compositores baseou-se em impressões aurais enquanto que em Messiaen, houve seleção e processamento de trechos específicos. Messiaen usa um processo descritivo e sugestivo de imagens transcritas para o idioma pianístico, as quais são misturadas às imitações dos cantos dos pássaros. A concepção de Católicos Limiares apresenta ainda, outra manifestação dialética, no que diz respeito a organizações predeterminadas e a indeterminações. Há no pensamento formante da obra, uma liberdade que pode ser encarada, em alguns momentos, como espaços para “coautoria” – a cargo do “executante” do Laptop – projetada de forma que o estritamente escrito e delimitado participasse de um universo sonoro onde o mutante ou o inesperado, de antemão, interviesse, promovendo outro nível de diálogo: entre o previsto e o imprevisível. Ao lado de todas as determinações, ao nível de instrumentação, do conteúdo de notas e durações, dinâmicas etc., há indeterminações como, por exemplo, a inespecificação de software. O determinado rege o indeterminado e este se relaciona conjugalmente com aquele de maneira interdependente. Pode-se dizer que as intenções demarcadas na arquitetura e concretizadas na engenharia composicional, remetem ao equilíbrio ao qual se refere Pierre Boulez: “O grande esforço, no domínio que nos é próprio, é procurar, atualmente, uma dialética que se instaure a cada momento da composição entre a organização global rigorosa e uma estrutura submetida ao livre-arbítrio” (BOULEZ, 1995:33). Tudo, portanto – materiais e procedimentos técnicos – está a serviço do objetivo consciente da transcendência. A ideia, inaudível e amorfa, se concretiza quando revestida das necessidades humanas de início meio e fim; mas o plano é católico e oculto: [...] na música, o princípio de organização ou de desenvolvimento não aparece por si mesmo em relação direta com aquilo que se desenvolve ou se organiza: há um princípio composicional transcendente que não é sonoro, que não é "audível" por si mesmo ou para si mesmo. Isto permite todas as interpretações possíveis. As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou princípio oculto. Poderemos sempre expor o plano, mas como uma

1075

parte à parte, um não-dado naquilo que ele dá. Não é assim que mesmo Balzac, e até Proust, expõem o plano de organização ou de desenvolvimento de sua obra, como numa metalinguagem? Mas também Stockhausen não precisa expor a estrutura de suas formas sonoras como que "ao lado" delas, na falta de fazer ouvi-la? Plano de vida, plano de música, plano de escrita, é igual: um plano que não pode ser dado enquanto tal, que só pode ser inferido, em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma, pois ele é para essas formas e esses sujeitos (DELEUZE, 1997, p. 51).

O conteúdo sonoro em Católicos Limiares não se constitui então, simplesmente de cantos de pássaros propriamente ditos e de canções embutidas; mas de partículas que se subordinam ao corpo transcendente da ideação, rumo ao êxtase: “Quando a música nos transporta ao umbral do êxtase, nos comportamos como viciados em drogas, ouvindo repetidas vezes” (JOUDAIN, 1997: 17).

1076

1077

1078

1079

1080

1081

1082

1083

1084

1085

1086

1087

1088

1089

1090

1091

1092

1093

1094

1095

1096

1097

1098

1099

1100

1101

1102

1103

1104

1105

1106

1107

1108

1109

1110

1111

1112

1113

1114

1115

1116

1117

1118

1119

1120

1121

1122

1123

1124

1125

1126

1127

1128

1129

1130

1131

1132

1133

1134

1135

1136

1137

1138

1139

1140

1141

1142

1143

1144

1145

1146

1147

1148

1149

1150

1151

1152

1153

1154

1155

1156

1157

1158

1159

1160

1161

1162

1163

1164

1165

1166

1167

1168

1169

1170

1171

1172

1173

1174

1175

1176

1177

1178

1179

1180

1181

1182

1183

1184

1185

1186

1187

1188

1189

1190

1191

1192

1193

1194

1195

1196

1197

1198

1199

1200

1201

1202

1203

1204

1205

1206

1207

1208

1209

1210

1211

1212

1213

1214

1215

1216

1217

1218

1219

1220

1221

1222

1223

1224

1225

1226

1227

1228

1229

1230

1231

1232

1233

1234

1235

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Brasiliense, 1981. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Coordenação da tradução brasileira: Ana Lúcia de Oliveira. 1 ª. Ed. São Paulo: Editora 34, 1997. 170p. ISBN 8573260505. Versão escaneada. GERLING, Cristina Capparelli. A Sonata para piano de José Alberto Kaplan (1991) e a Tradição da Escrita Pianística.

In Claves, n. 1, p. 73-90. João Pessoa: PPGM/UFPB, maio de

2006. JOURDAIN. Robert. Music, The Brain, and Ecstasy. Tradução de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. ISBN 85-7302-184-5. MIRANDA, Ana. O Romance II: para um leitor que deseja escrever um romance. In Caros Amigos, ano XI, n. 121. São Paulo: Casa Amarela, abril de 2007.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.