Sociedade Civil Global, sua emergência como ator nas Relações Internacionais contemporâneas e seu papel no atual contexto.
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CENTRO UNIVERSITÁRIO JORGE AMADO - UNIJORGE CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
TAINÃ GOMES BARBOSA DOS SANTOS
SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL E A EMERGÊNCIA DESTE ATOR NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS
Salvador 2014
TAINÃ GOMES BARBOSA DOS SANTOS
SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL E A EMERGÊNCIA DESSE ATOR NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS
Monografia apresentada ao Centro Universitário Jorge Amado como requisito à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais.
Orientador: Nenrod Douglas Oliveira Santos
Salvador 2014
Ficha catalográfica elaborada pelo setor de processamento técnico da Biblioteca (Unijorge)
S237s
Santos, Tainã Gomes Barbosa dos. Sociedade civil global: uma análise sobre o papel e a emergência desse ator nas relações internacionais contemporâneas [manuscrito]. Tainã Gomes Barbosa dos Santos. – 2014. 58 f ; 30 cm. Monografia (graduação) – Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), Curso de Relações Internacionais, 2014. “Orientador: Prof. Nenrod Douglas Oliveira Santos”. 1. Relações Internacionais. 2. Sociedade civil. 3. Teoria crítica 4. Fórum Social Mundial I. Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE, Curso de Relações Internacionais. II. Santos, Nenrod Douglas Oliveira III. Título. CDU 327
TAINÃ GOMES BARBOSA DOS SANTOS
SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL E A EMERGÊNCIA DESSE ATOR NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS
Monografia apresentada ao Centro Universitário Jorge Amado como requisito à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais.
APROVADO EM ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
Prof. Gustavo Almeida
Prof. Lia Alvarenga
Prof. Nenrod Douglas
AGRADECIMENTOS
Longas caminhadas sempre apresentam trechos mais estreitos pelos quais não conseguimos passar sem o incentivo e a confiança que pessoas queridas nos depositam. Graças a elas cheguei a este momento, reta final do curso de Relações Internacionais. Por terem participação nesta conquista de minha vida profissional, os louros deste sucesso devem ser compartilhados com pessoas amadas e fundamentais em todos os campos da minha vida. Aos meus pais, Edma e Ailton, agradeço imensamente pelo estímulo e paciência constantes, por me dedicarem carinho e me oferecerem aconchego, por estarem presentes em todos os momentos em que eu precisei, por confiarem em minha escolha e vontade em adentrar num estudo de temas ainda pouco conhecidos na vida prática do mercado de trabalho e por que não medirem esforços para colaborarem com o alcance de meus sonhos. Agradeço a minha tia Edvalda pelas conversas ora descontraídas, ora direcionadas, e mesmo existencialistas, que me fazem perceber a leveza de momentos, a transitoriedade da vida, a importância do compartilhar. De fato, os Montes são singulares neste aspecto. Tio Gil, muito obrigada por estar sempre disposto a ajudar e aconselhar quando eu mais necessito; e a Luar, muito obrigada por me acolher como irmã, pois é assim que me sinto, e não há nada mais acolhedor do que esta sensação. A tia Meirinha, que, apesar da distância, se mantém presente em minha vida, acompanhando meu caminhar, agradeço por trazer alegria a mim e aos meus pais, por usar toda a sua engenhosidade para concretizar, de maneira impecável, ideias e planos; agradeço ainda por dissipar preocupações em minha mente e oferecer respostas rápidas às situações com as quais por vezes eu não sei lidar. Felizmente, a vida é um mosaico de momentos e pessoas, e o meu é colorido graças a minha enorme família e amigos. Um agradecimento sincero a tio Elielson, tia Edmária, tia Edilene, tia Edirce, e a vovó Lina, por me passar, com segurança, a certeza de que eu vou vencer, não importando o adversário ou a situação. Obrigada, vovó. Minhas crenças e ideologias postas à prova no decorrer desses anos foram edificadas no ambiente familiar, mas também encontraram respaldo no ambiente acadêmico, em professores como Gustavo Almeida, sempre pronto a deixar fluir a ânsia de conhecimento e a oferecer apoio ao desenvolvimento de raciocínios coerentes e teoricamente sustentáveis. Por esse motivo também agradeço ao professor Douglas, que me orientou durante esse semestre.
Por fim, esse trabalho condensa muito mais do que o esforço de meses, mas a soma de todos os momentos que contribuíram para fazerem de mim o que eu sou. Considerando a dinâmica da vida e minha inquietude em entender mais sobre a realidade dos fatos sociais, sei que vou continuar precisando da minha família para os próximos passos. Abraço forte a todos vocês.
RESUMO
Este estudo trata sobre a incorporação da Sociedade Civil à Teoria das Relações Internacionais enquanto ator e agenda, e o consequente reconhecimento de sua importância na política internacional contemporânea. Possui por plano de fundo a globalização neoliberal, contexto que apresenta elementos que dialogam com a Sociedade Civil e determinam o desenvolvimento da dimensão internacional deste ator, consubstanciando um novo ator enquadrado como Sociedade Civil Global, que tem propósito e capacidade de conduzir uma agenda multitemática que privilegia temas considerados secundários pela hegemonia neoliberal. Face à construção de um projeto alternativo plasmado nesta agenda, a Teoria Crítica e suas matrizes basilares ajudam a compreender a Sociedade Civil Global como ator impulsionador de um projeto contra-hegemônico e emancipatório. A proatividade deste ator pode ser verificada no Fórum Social Mundial, case escolhido para mostrar a composição do ator em questão e para reafirmar sua agenda. PALAVRAS-CHAVE: Sociedade Civil Global, Teoria Crítica, Contra-hegemonia, Fórum Social Mundial.
ABSTRACT
This study is addressed to the incorporation of Civil Society to the International Relations Theory while actor and agenda, and the ensuing acknowledgment about its contemporary international policy importance. It has neoliberal globalisation as background, context that present elements that talks to Civil Society and determinate this actor´s international dimension development, forming a new actor defined as Global Civil Society, that has purpose and capacity of lead a multithematic agenda that emphasizing themes secondary considered by the neoliberal hegemony. Given the construction of an alternative project embodied in this agenda, the Critical Theory and it´s matrices, helps to understand Global Civil Society as actor who drive-forces of a contra-hegemonic and emancipatory project. This actor´s proactivity, as have been presented, can be seen at the Mundial Social Forum, case choosed to show the composition of the actor in question and to reaffirm its agenda. KEYWORDS: Global Civil Society, Critical Theory, Contra-hegemony, Mundial Social Forum
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................... 9 1
A INCORPORAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL AO CAMPO TEÓRICO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ............................. 13 1.1 TRANSIÇÕES PARADIGMÁTICAS NA TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: ATORES E AGENDAS........................................... 13 1.2 TEORIA CRÍTICA ACERCA DA SOCIEDADE CIVIL ENQUANTO ATOR E AGENDA .................................................................................... 19 1.3
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CONCEITUAÇÃO DE SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI E EM UM RECORTE HISTORICISTA CONTEMPORÂNEO..................... 24 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL COMO ATOR CONTRAHEGEMÔNICO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.................. 30
2.1 RECORTE ESPAÇO-TEMPORAL UTILIZADO: A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL E A TEORIA CRÍTICA..................................................... 30 2.2 A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL EM CONTRAPOSIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE CIVIL ENQUANTO ATOR GLOBAL.....................................................................................................
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2.3 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL, SUA AGENDA E CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA CRÍTICA PARA SEU ENTENDIMENTO ......................... 37 2.4 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.................................................................................... 41 3
ESTUDO DE CASO: O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL........................
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3.1 O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL EM SEU CONTEXTO..........................
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3.2 AGENDA NO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL...........................................
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3.3 ESCLARECIMENTOS SOBRE A NATUREZA DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL................................................................................................... 55 3.4 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL E O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL................................................................................................... 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................
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INTRODUÇÃO
Os fatos internacionais possuem uma dinâmica intensa, o que dificulta seu acompanhamento por Teorias, as quais, em função disso, estão em constante desenvolvimento, incrementando argumentos e perspectivas ao campo acadêmico das Relações Internacionais através de variações do realismo e liberalismo, bem como com o desenvolvimento de novas matrizes capazes de captarem mais facilmente algumas transformações apontadas no cenário global. Nestas metamorfoses, novos atores e agendas vão sendo incorporados à disciplina das Relações Internacionais. Este campo do conhecimento, ancorado no estudo da política internacional, deve atentar para as variáveis que vão se fazendo visíveis no cenário ao qual se dedica a compreender e/ou transformar. Este, atualmente encontra-se em um momento sóciohistórico fortemente caracterizado pelo fenômeno da globalização, que aproxima povos através das fronteiras, fortalece a atuação internacional do setor privado e trás outras consequências derivadas da flexibilização da ideia de espaço, antes fortemente vinculada ao conceito de território. Comunicação e mobilidade facilitadas geram consequências que repercutem nos campos político, social, cultural, ambiental, fazendo com que analistas internacionais, cientistas políticos, sociólogos e economistas a se esforçarem para entendê-las a partir de sua causa geradora. Uma vez abertas vias para comunicação internacional, torna-se possível sociedades interagirem globalmente e, portanto, exercerem papel mais proativo no espaço internacional. Assim vai se tornando mais complexo o cenário internacional contemporâneo. Fica claro que, frente a todas essas variáveis, buscar compreendê-lo sob óticas tradicionalistas que relegam a segundo plano qualquer ator que não seja o Estado ou Organismos Internacionais, é investir na frustração de um entendimento incompleto do modo como as Relações Internacionais contemporâneas funcionam. Por esse motivo busca-se, através deste trabalho, um maior entendimento sobre a Sociedade Civil nesse campo acadêmico. Esta, submetida às determinações de diretrizes políticas globais levadas a cabo por Organismos Internacionais e por Estados, as quais corroboram inevitavelmente com o declínio do Estado do Bem-Estar Social e o consequente enfraquecimento de políticas sociais, sentem na prática seus reflexos, que, somados à mercantilização de direitos básicos,
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degradação do meio ambiente, etc., compõem a realidade que caracteriza a globalização neoliberal na era do capitalismo (GILL, 2014); (TEIXEIRA, 2002), a saber: Os críticos argumentam que as políticas e práticas da globalização neoliberal aumentam a riqueza e o poder de poucos à custa de muitos. As instituições financeiras internacionais e as corporações transnacionais ganharam uma influência política substancial, o que lhes permite influenciar as políticas a seu favor (Pollin, 2000) e minar a capacidade política dos pobres, enquanto aumentam o poder das novas redes de elites (Castells, 1989). O poder destas diminui a liberdade dos governos na condução das suas próprias políticas monetárias e fiscais, e as suas políticas deslegitimam o investimento expansivo no social (Esping-Andersen, 1996), causando empobrecimento massivo (Taylor et al., 2002). ( KATZ, 2014, p.1).
Dessa forma, é compreendido que o forte impacto desse quadro político-econômico incide sobre países inteiros, que, submetidos à influência de diretrizes políticas globalizadas, seguem suas determinações e, como consequência natural, faz recair sobre a esfera social o peso das políticas adotadas, sendo a Sociedade Civil aquela a receber o ônus das práticas neoliberais. O trabalho traz a argumentação necessária para vincular a hegemonia neoliberalismo às adversidades por ela criadas para, então, responder à pergunta que o guia: Como a Sociedade Civil pode ser caracterizada um ator para as Relações Internacionais? Pensar que as adversidades impostas são absorvidas sem qualquer tipo de reação é atestar as Sociedades Civis – no plural, por serem consideradas aquelas de todo o globo –, são inertes, o que não encontraria respaldo em acontecimentos recentes como a Primavera Árabe, cuja mobilização, organizada via internet, tornou possível a derrubada de governos ditatoriais; como o movimento Anonymous, cuja mobilização gira em torno da defesa dos mais variados campos de direitos – humanos, sociais, de liberdade, etc. –; como o Fórum Social Mundial, que, sem maior definição acerca de sua natureza – já que pode ser considerado ente, movimento, espaço de articulação – acolhe em si uma sociedade organizada internacionalmente com propósito de transformar o mundo. Parece claro que as implicações da vida prática incitam a uma postura mais proativa por parte da Sociedade Civil, que, mesmo sujeita a determinações da hegemonia política do neoliberalismo, apresenta a capacidade articular-se internacionalmente e se dirigir à agenda global, buscando sua transformação a partir de proposições de novos temas. Neste sentido, através da dimensão internacional da Sociedade Civil, será buscada a resposta para a pergunta antes posta. Por esse motivo, o presente trabalho é um esforço para compreender Sociedades Civis interconectadas globalmente em prol de um fim específico; isto é, a Sociedade Civil Global,
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sua emergência como ator nas Relações Internacionais contemporâneas e seu papel no atual contexto. O recorte utilizado foi o plano de fundo no qual está inserido este ator: a globalização neoliberal, fundamental para esclarecer os interesses da Sociedade Civil Global e o motivo pelo qual insurge. A Teoria Crítica foi escolhida para fornecer a argumentação necessária ao trabalho, uma vez que esta corrente teórica oferece bases sólidas para argumentar esse ator não-estatal como importante para as Relações Internacionais e por ir além, enxergando a inter-relação entre fatos e subjetividade, que de alguma forma perpassa a discussão trazida. Tal como será mostrado, de acordo com uma análise pautada na Escola de Frankfurt, a construção da Sociedade Civil enquanto ator global remete a uma compreensão maior do porquê do seu nascimento e o contexto em que está localizado. Para lograr cumprir com seu objetivo foram realizadas pesquisas secundárias a diversos autores que auxiliaram na evolução da lógica que guia o trabalho, sendo eles Antonio Gramsci, Atillio Monasta, Boaventura de Sousa Santos, Elenaldo Teixeira, Jan Scholte, John Keane, Milton Santos, Richard Devetak, Robert Cox, Robert Jackson e Georg Sørensen Stephen Gill, entre outros. Por fim, a estruturação do trabalho está da seguinte forma: inicialmente será feita uma exposição da maneira como as Relações Internacionais se transforma e passa a incorporar outros atores em seu campo de pesquisa, levando ao um momento subsequente, quando será mostrada a Teoria Crítica como aquela que trás a Sociedade Civil ao conjunto de atores das Relações Internacionais, e, para que se faça mais claro a respeito do que está sendo tratado, será feita a conceituação de Sociedade Civil em Gramsci e em autores mais contemporâneos. Tendo sido explicada esta base, o capítulo 2 apresenta a evolução do raciocínio seguido em função dos novos fatores apresentados no atual contexto histórico. Dessa maneira é introduzida à discussão a Sociedade Civil Global que, por só poder ser compreendida de maneira vinculada à realidade na qual está inserida, é precedida por uma breve introdução sobre o recorte utilizado, avançando posteriormente no sentido de explicar como esse recorte fomenta o desenvolvimento da Sociedade Civil em um ator global, apontando sua agenda e, por fim, explicando o que ela é. Buscou-se respeitar ao máximo a matriz teórica Teoria Crítica e ao gramscianismo nela marcante, porém houve um necessário enxerto no segundo capítulo, quando, no momento da conceituação da Sociedade Civil Global, foi inevitável incorrer a um teórico de tradição weberiana, conforme vem sendo explicado no devido momento.
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Se a Sociedade Civil Global for o ator que faz emergir uma ideologia contrária à hegemonia vigente, com agenda também contrária, é preciso que também componha essa pesquisa um exemplo de suas práticas, propostas e mesmo conquista de espaço. Este case está no capítulo 3, onde será mostrado um espaço no qual pode ser vista a Sociedade Civil Global em ação, o Fórum Social Mundial.
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A INCORPORAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL AO CAMPO TEÓRICO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1.1
TRANSIÇÕES
PARADIGMÁTICAS
NA
TEORIA
DAS
RELAÇÕES
INTERNACIONAIS: ATORES E AGENDAS
O estudo das Relações Internacionais (RI) é marcado por diversidade não somente de campos do conhecimento – economia, história, cultura, etc –, mas também daquelas relativas às diferentes maneiras de “descrever, explicar, prever e prescrever” a “realidade circundante”, que segundo Castro (2014, p. 310), é a função da ciência das Relações Internacionais. Este campo acadêmico ganha corpo nos Grandes Debates levados a cabo por correntes, tradições, ou as também denominadas perspectivas teóricas que, na medida em que contestam argumentos das correntes precedentes, apresentam novas perspectivas de análise. É assim que se desenvolve a disciplina da Teoria das Relações Internacionais (TRI). Este primeiro capítulo tratará mostrar que o campo acadêmico das Relações Internacionais divide espaço com perspectivas que discordam entre si tanto no que diz respeito ao nível de análise quanto à agenda de pesquisa. Como será percebido, conflitos normativos e metodológicos - fazem parte do desenvolvimento das RI, que tem seu ponto de partida no Debate entre os realistas e os idealistas – ou liberalistas utópicos, tal como são chamados por Sorensen; Jackson (2007). Por não ser objeto deste estudo, não há a necessidade de explorar todos os debates já ocorridos. O primeiro debate servirá de modelo para exemplificação do processo dialético que renova continuamente a TRI. O realismo será apresentado e em seguida será abordado o idealismo, sabendo, no entanto, que esta ordem não obedece a cronologia do Debate: segundo esta, “o realismo entra em cena muito após a utopia (liberalista), e como forma de reação contra ela” (CARR, 2014, p.85). Foi invertida a sequência cronológica de apresentação devido à própria origem do campo das Relações Internacionais: A proposta (inicial) das RI é estudar a “política internacional”, que é concomitante ao estabelecimento do “Estado territorial” criado pelo sistema Vestfaliano (ou Westphaliano) do século XVII, mais precisamente no ano 1648.
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Isto pode ser melhor entendido através de Castro: [...] a formação de um sistema de estados territoriais soberanos, que deu origem à “política internacional” como conjunto de fenômenos a partir do declínio político do Sacro Império, documentado na celebração da Paz de Westphalia. Contudo, a política internacional e sua dinâmica passaram a se apoiar inicialmente sobre um direito “internacional” adaptado do jus gentium, e não ainda sobre o estudo das Relações Internacionais calcado em uma Teoria das Relações Internacionais (2014, p. 13).
Por saber que a formação da disciplina Teoria das Relações Internacionais – definido por Castro (2014, p.9) como “o estudo dos fenômenos da prática política sob esta nova forma institucional, a da ‘ordem westfaliana’” – se dá bem depois da instauração do sistema Westphaliano, é importante deixar bem claro ao leitor o motivo da escolha desse sistema como ponto de partida para a apresentação das transições paradigmáticas das RI: a razão que motiva o modelo Westphaliano como ponto de partida é exclusivamente as características que ele apresenta. O modelo de Westphalia já apresentava aspectos centrais à retórica da tradição realista, conforme aponta Castro apud Held: 1. O mundo consiste de, e é dividido em, estados soberanos que não reconhecem qualquer autoridade superior; 2. O processo de elaboração de normas, a negociação de acordos e a manutenção da ordem permanecem em grande parte a cargo dos estados; 3. O direito internacional serve ao estabelecimento de regras mínimas de convívio; a criação de relações duradouras entre estados e povos é um fim, mas apenas na medida em que permitem a satisfação de objetivos políticos nacionais; 4. A responsabilidade por ilícitos transfronteiriços é um ‘assunto privado’, que diz respeito apenas às partes afetadas; 5. Todos os estados são considerados como iguais perante a lei: regras jurídicas não levam em consideração assimetrias de poder; 6. As diferenças entre estados são a final resolvidas pela força; o princípio do poder eficaz é válido. Praticamente não há limitações legais para conter o recurso ao uso da força; os parâmetros do direito internacional oferecem proteção mínima; Prova Final; 7. A minimização de impedimentos à liberdade dos estados é uma prioridade ‘coletiva’ (2014, p. 12).
Assim, verifica-se que o berço da política internacional e do estudo das Relações Internacionais é marcado por conceitos como poder, anarquia, soberania, força, os quais são muito típicos da tradição realista. Se o Estado moderno é consolidado como soberano, detentor de poder e igual com relação aos demais, isso ficou convencionado em 1648. A criação de tantos Estados-nação nascidos desse modelo, carregando todas essas características, faz surgir a anarquia internacional e o dilema de segurança, que tanto caracterizam o sistema Westphaliano estatocêntrico. Para melhor entendê-los, cabe uma analogia com as ideias de Hobbes, que trabalha a questão da sobrevivência e segurança em um cenário anterior à existência do Estado, cuja função é proteger seus homens e mulheres tanto das “desordens internas quanto dos inimigos
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e ameaças externas”. (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.111) – Segundo Hobbes, esse ambiente hostil e desordenado é chamado de Estado de Natureza; nele prevalecem os interesses egoísticos dos homens, levando-os a uma guerra contínua de todos contra todos. O reaparecimento de preocupações acerca de segurança no momento da criação do Estado está vinculado ao interesse estatal em buscar “satisfação dos objetivos políticos nacionais” Castro apud Held (2014, p.12) e à resolução das diferenças pela força. Não se designa limites para este tipo de comportamento, tampouco há autoridade superestatal1 capaz de ordenar esse sistema no momento em que os interesses se chocam, de maneira que, para Hobbes, “não é possível haver uma paz permanente ou garantida entre Estados soberanos” e isso está “enraizado na anarquia do sistema estatal” (JACKSON; SORENSEN, 2007, p. 111). Afirmativa perfeitamente colocada, capaz de tornar compreensível a replicação do Estado de Natureza no ambiente internacional na forma de dilema de segurança derivado da anarquia internacional. Maquiavel expõe de maneira transparente a primazia dos interesses de Estado sobre as demais questões. Para ele, o governante deverá atuar de maneira a antecipar-se aos rivais, aproveitar oportunidades de garantir os interesses do Estado e assegurar a sobrevivência deste através do cálculo inteligente (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.123) Dessa maneira, a busca pela segurança é o interesse último do Estado; para seu alcance torna-se imprescindível ignorar valores éticos, agindo de acordo com a virtude política (também chamada de virtude cívica), a única capaz de assegurar a sobrevivência e prosperidade da nação. Por conseguinte, verifica-se que o realismo clássico, representado por Hobbes, Maquiavel, e também por Tucídides – apesar de não tê-lo abordado – está presente no modelo Westphaliano e é o alicerce sobre a qual a tradição realista se desenvolverá no decorrer dos anos, com seus relevantes nomes, como Morghentau, Schelling, Waltz, Carr, entre outros. Assim, as palavras-chave dos realistas clássico são caracterizadoras desse modelo e ainda hoje continuam influenciando fortemente a abordagem do realismo neoclássico, realismo estratégico, neorrealismo e seus desdobramentos. O realismo apresenta perspectivas de análises no qual o principal ator do cenário internacional não é outro senão o Estado. A agenda dessa tradição teórica gira em torno de preocupações referentes à sobrevivência no ambiente anárquico, enfatizando o uso do poder enquanto meio de alcançar o interesse dos Estados: a segurança.
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A ausência de autoridade acima do Estado é o que se chama de anarquia internacional.
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Portanto, o Tratado de Westphalia remete a uma época em que a política internacional, essência do estudo das Relações Internacionais, era desenvolvida unicamente pelos Estados. Tal estadocentrismo westphaliano move a tradição realista das Relações Internacionais, tida como mais influente corrente das RI. O Estado como ator único das RI, o foco no poder e no ambiente internacional anárquico como pauta de pesquisa é apenas uma das muitas perspectivas para analisar as Relações Internacionais. Enquanto a ordem de Westphalia conduzia ao reconhecimento de apenas um ator, outras realidades vão tomando corpo, sendo acompanhadas por abordagens teóricas distintas cujos novos elementos trazidos vão paulatinamente dando continuidade ao processo dialético na TRI. De maneira gradual e constante as complexidades surgidas no cenário internacional levaram à incorporação de novos atores, que vão dividindo terreno com o Estado antes monopolístico e se firmando no terreno das Relações Internacionais. Essa mudança ocorre no decorrer dos longos anos de desenvolvimento de correntes teóricas, segundo Marques especialmente no século XX. O modelo da sociedade internacional moderna, com base nos tratados de Vestfália, vigeu quase que intocável até o início do século XX, quando foi substituído pela sociedade internacional contemporânea [...]. Essa nova sociedade internacional significa uma ruptura com o modelo de Vestfália e, consequentemente, representa uma ruptura com as relações internacionais estatocentristas por meio da multiplicação dos fluxos e canais de comunicação e integração entre os diversos atores internacionais. (2014, p. 23).
A idealização da Liga das Nações, esforço entre Estados para evitar a repetição da lamentável hecatombe que manchou os anos entre 1914 e 1918, foi concebida em raiz fortemente antagônica àquele modelo estatocentrista antes mencionado. O caráter contraditório entre os dois reside, entre outros motivos, no que tange a primazia do Estado como ator das Relações Internacionais. O idealismo dedicava esforços em “ordenar o campo internacional através do direito” e inclusive “na possibilidade de formação de um governo mundial”. (CASTRO; PIRES, 1914, p.9). A matriz do idealismo de Woodrow Wilson – idealizador da Liga das Nações – remete ao século XVIII, a saber, a paz perpétua de Kant e o abade de Saint-Pierre, em sua defesa do “consenso e a formação de alianças internacionais [...] como meios necessários para se alcançar a paz”, do abade de Saint-Pierre. (OLIVEIRA, 2014, p.3). Dessa forma, a paz se torna o objetivo político das nações e a incorporação das Organizações Internacionais (OI´s) é primordial neste projeto liberalista (de influência
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idealista), fazendo com que estas organizações chegassem a alcançar o feito de serem dotadas de personalidade jurídica internacional e, devido à sua capacidade de atuar sobre o cenário internacional, pudessem se firmar como atores das Relações Internacionais. As OI´s, segundo Marques (2014, p.24) são “as primeiras instituições a dividir palco internacional com os Estados”. A Liga das Nações marca a fundação oficial do campo, que segundo Sarfati (2005, p.63), ocorre em 1919. Sua existência dá margem à possibilidade de cooperação, o que é diametralmente oposto aos pressupostos realistas de disputa pelo poder, de primazia de interesses estatais e sobrevivência, em suma, ao conflito. É dessa maneira que o primeiro debate das Relações Internacionais polariza realistas e idealistas. Observa-se no idealismo e na corrente que o tem como base, o liberalismo, um exemplo da diversificação de atores compartilhando o ambiente internacional e do surgimento de outros temas na agenda de pesquisa das teorias das RI: a paz e a cooperação. De então em diante, o surgimento de novos temas na agenda internacional passa a ser capitaneado por diversas outras abordagens teóricas que vêm ganhando cenário, sobretudo com o advento da globalização. Nesse processo, alguns atores não-estatais passaram a ser reconhecidos como atores nas Relações Internacionais, outros continuam, através dos fatos internacionais, fortalecendo os motivos para serem assim enxergados – sendo alguns deles entes sub-estatais, mídia, os grupos, terroristas e os indivíduos. (MARQUES apud OLIVEIRA, 2014, p. 27). Segundo Marques (2014), é a globalização e a interdependência como pano de fundo que dão às teorias das RI novos atores, fazendo com que abordagens surgidas na “era” da sociedade internacional contemporânea voltem a atenção para novos aspectos da realidade e o aflorar de complexidades na arena internacional. O campo acadêmico das Relações Internacionais vai se desenvolvendo na medida em que a Teoria das Relações Internacionais se robustece em seus três importantes debates: idealistas versus realistas, tradicionalistas2 versus behavioristas3, neo-realistas versus pluralistas. Jackson; Sorensen (2007, p.61) apresentam, ainda um quarto debate, “[...] atual, envolve tradições consagradas contra alternativas pós-positivistas”.
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São assim denominados os realistas e idealistas. Estes se baseiam em métodos científicos para explicar os fenômenos das Relações Internacionais, o que os faz diferir dos tradicionalistas. 3
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Assim, hoje o campo das RI em seu todo considera as complexidades do cenário que estuda, com seu pluralismo de atores que apesar de sua maior ou menor relevância para a política internacional, evidencia que as RI centradas exclusivamente nos Estados não é mais uma opção tão satisfatória para compreender esta realidade internacional. Para além do escopo de pesquisa das tradições apresentadas, os fenômenos internacionais revelam temas e atores que vão ou das Organizações Internacionais, segurança internacional, Estados, cooperação, poder, etc. É dessa forma que a disciplina das TRI passa a ter uma caráter mais multifacetário do que o tradicionalismo permitiria, revelando que é possível enxergar as Relações Internacionais de novas perspectivas, que, pautadas sempre no atual momento sócio-histórico, trás novidades em fatos: A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92, trouxe ao debate novos temas – proteção ambiental, mudanças climáticas, direitos das gerações futuras – e novos atores (LOPES, 2014, p.7).
É um novo ambiente, com novos atores que possuem uma agenda internacional própria, isto é, que atuarão dando ênfase naquilo que lhes é de interesse. Uma vez considerada estas agendas, a vastidão de temas que aparecem é enorme: questões humanitárias, meio ambiente, saúde, educação, direitos humanos, questões étnicas, questões de gênero, segurança alimentar, minorias, o uso ou não uso de armas nucleares, entre diversos outros. Não se trata de fazer pouco do papel do Estado nessa sociedade internacional contemporânea, visto que o estatocentrismo continua marcante de maneira que os “atores não estatais – especialmente atores não estatais não violentos – têm papel limitado pela sua falta de meios de coerção”, no entanto, não se pode ignorar que estes “conseguem influenciar negociações internacionais investindo na construção de consensos.” (LOPES apud VILLA, 2014, p. 9). Entre estes últimos (novos atores), é possível destacar a presença significativa de redes e organizações internacionais da sociedade civil, que passaram a monitorar a agenda internacional relacionada ao desenvolvimento sustentável e criaram estratégias para influenciar atores e instituições (LOPES, 2014, p.7).
Sem pretender aprofundar nos meios pelos quais se torna possível influenciar na política internacional, este trabalho se limita a lançar um olhar mais atento sobre ambiente internacional (e nacional), vasculhando se a Sociedade Civil poderia vir a ser um nível de análise para as Relações Internacionais, e portanto, um novo ator.
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1.2
TEORIA CRÍTICA ACERCA DA SOCIEDADE CIVIL ENQUANTO ATOR E
AGENDA
O desenvolvimento do campo acadêmico das Relações Internacionais é, então, alavancado pelo evento tratado por Marques (2014) como ruptura do modelo Vestfaliano típico da sociedade internacional contemporânea. Essa mudança faz surgirem novas perspectivas, tais como a Teoria Crítica, também chamada de Escola de Frankfurt. Fortemente influenciada por Marx e pelo Iluminismo, a Teoria Crítica deve ser divisada dentro daquelas correntes teórica pós-positivistas (JACKSON; SORENSEN, 2007), – tais como o Construtivismo, o Pós-modernistas, etc. – isso a leva a contestação de tudo o quanto possa ser considerado imutável, objetivo. Muito pode ser dito sobre essa corrente teórica, mas talvez o mais marcante seja sua agenda de pesquisa; além disso, para ela, “todas as teorias são tendenciosas”, pois todas servem a propósitos políticos (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.335), premissa que renega a objetividade do conhecimento científico. Ao utilizar essa abordagem, a Teoria Crítica alcança um campo pouco explorado nas Relações Internacionais. É afirmado categoricamente o “uso de conhecimento científico para propósitos políticos” admitindo, a própria Teoria Crítica, seu fim político: a emancipação. Conquistá-la quer dizer “libertar a humanidade das ‘opressivas’ estruturas da política e da economia mundiais, que são controladas por poderes hegemônicos, em particular os Estados Unidos capitalista.” (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.335). O principal propósito da Teoria Crítica é este, sendo, portanto, o que integra os acadêmicos dessa tradição teórica, como pode ser visto: If there is anything that holds together the disparate group of scholars who subscribe to ‘critical theory’ it is the idea that the study of international relations should be oriented by an emancipatory politics (BURCHILL, et al., 2014, p.137).
O percurso até que se chegue à emancipação passa pela compreensão dos fatores histórico-sociais que conduziram a esse estado de coisas limitado e opressivo. Só a partir dessa “macrovisão” e do seu entendimento pode-se de fato enxergar não só as influências político-teóricas que levaram à consolidação dessa realidade, como também desarraigá-la do
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determinismo positivista4 que a considera imutável; essa sucessão de ações revela a transformação como possibilidade. Essential to the Frankfurt School’s critical theory was a concern to comprehend the central features of contemporary society by understanding its historical and social development, and tracing contradictions in the present which may open up the possibility of transcending contemporary society and its built-in pathologies and forms of domination. Critical theory intended ‘not simply to eliminate one or other abuse’, but to analyse the underlying social structures which result in these abuses with the intention of overcoming them (BURCHILL, et al., 2014, p. 138).
A compreensão da realidade a partir da história e de aspectos sociais junto à uma estruturada compreensão que vincula tanto da construção da realidade como da teoria colaboram para a contestação das forma de dominação impostas. Para a Teoria Crítica, as próprias teorias das Relações Internacionais têm suas bases em uma normatividade tendenciosa, – positivistamente prepotente, por se acreditar objetiva – e dubitável, pois, quando adotada a perspectiva historicista, verifica-se que correntes teóricas como o liberalismo utópico e o realismo partem de premissas cujas raízes encontram-se em um dado momento histórico e social, e, portanto, transitório e mudável. Assim, partindo do propósito politico de teorias, cabe citar Robert Cox, que diz que “theory is always for someone and for some purpose” (Burchill, et al. apud Cox, 2014, p.21). Dessa maneira, aquilo que foi imposto hegemonicamente pode ser recriado com o apoio de teorias em função do objetivo almejado. Deve-se atentar para a relação direta entre realidade tangível e o campo superestrutural5. [...] critical international theory sees an intimate connection between social life and cognitive processes, it rejects the positivist distinctions between fact and value, object and subject. [...] Cox (1992a: 59) expresses this (theoretical) reflexivity in terms of a double process: the first is ‘self-consciousness of one’s own historical time and place which determines the questions that claim attention’, the second is ‘the effort to understand the historical dynamics that brought about the conditions in which these questions arose (BURCHILL et. al, 2014, p. 142-143).
É neste marcante historicismo da Teoria Crítica que são forjadas as bases de suas críticas cáusticas e revolucionárias. Uma vez admitido que “não somente o objeto da pesquisa está imerso no fluxo da história, mas também o sujeito, o próprio pesquisador, sua perspectiva, seu método, seu ponto de vista” (LOWY, 2009, p.75), torna-se possível 4
O positivismo pode ser caracterizado por três pontos essenciais e concomitantes : (1). Leis naturais “invariáveis e independentes da vontade e da ação humana” guiam a sociedade, de maneira que (2) esta pode ser estudada pelos mesmos métodos que usados pelas ciências da natureza, ou seja, (3) uma vez sendo imutáveis as leis que guiam a sociedade, cabe apenas observar e explicar os fenômenos “de forma objetiva, neutra e livre de julgamentos de valor ou ideológicos”(Lowy, 2009, p.19-20). 5
Além do neo-gramscianismo, a Teoria Crítica também tem por alicerce o marxismo, de maneira que o uso de vocábulo tipicamente marxista é obediente à matriz teórica escolhida. O emprego da palavra superestrutura foi utilizado por ela se referir ao campo das abstrações, normas, ideologias, filosofia, religião e arte.
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visualizar que dessa plataforma historicista faz-se visto o processo de gênese das teorias e um pensamento mais crítico sobre seus papéis, atentando para a conexão entre processo cognitivo, sociedade e ambiente internacional. Esse mirante é determinante para a elaboração da contestação de premissas tidas como verdades, e por isso dominantes no campo das Relações Internacionais. Dessa forma, a agenda de pesquisa da Teoria Crítica estampa a mudança, ultrapassa6 as teorias clássicas, pois explora um campo além da segurança internacional e das organizações internacionais, identifica novas realidades e cria7 suporte teórico que fomenta a existência de um novo ator não-estatal mas, ainda assim, capaz de mover forças no cenário internacional. Não se trata mais de compreender, explicar ou prever fatos com base naquilo que se enxerga naquele momento específico, pois essa ação carrega em si um alto risco de enxergar o presente como eternidade e, com isso, torná-lo imutável. A Teoria Crítica, pelo contrário, se propõe a negar essa realidade momentânea - por entender que ela é fruto de perspectivas, pontos de vista, julgamentos de valor – e apresentar alternativas para a emancipação. Como foi visto, quando se fala em emancipação refere-se à libertação de determinados constrangimentos e limitações estabelecidos pela hegemonia. É importante ter claro que a emancipação, grande objetivo da Teoria Crítica, é compreendida aqui das seguintes maneiras: para Alberth; Carlsson apud Wyn-Jones (2014, p.6) “[...] emancipation understood as the development of possibilities for a better life already immanent within the present”. Ken Booth, teórico que traz a Teoria Crítica para o tema “segurança”, define emancipação como: Emancipation is the freeing of people (as individuals and groups) from those physical and human constraints which stop them carrying out what they would freely choose to do (ALBERTH; CARLSSON apud BOOTH, 2014, p.7).
E continua o raciocínio de maneira a expor claramente quais são esses constrangimentos: para ele “guerra e ameaça de guerra é um desses constrangimentos, juntamente com pobreza, baixa escolaridade, opressões políticas, etc”. (ALBERTH; CARLSSON apud BOOTH, 2014, p.7, Tradução nossa.) Outra definição de emancipação é trazida nas seguintes palavras: Ashley (1981: 227) defines emancipation as the securing of ‘freedom from unacknowledged constraints, relations of domination, and conditions of distorted
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Deve-se evitar entender “ultrapassar” como maneira de subestimar as contribuições das teorias clássicas, mas compreender no sentido de admitir a incorporação de novos níveis de análise, antes não explorados ou não enfatizados pelas teorias clássicas. 7 Partindo do pressuposto de que toda teoria serve de um propósito político, a Teoria Crítica também possui seus próprios propósitos, podendo dar suporte a situações que favoreçam o estabelecimento da conjuntura desejada.
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communication and understanding that deny humans the capacity to make their own future through full will and consciousness’ (BURCHILL, et al., 2014, p. 145).
A liberdade apresenta-se, nesta definição, com grande importância para a Teoria Crítica em sua dimensão internacional, visto que, segundo Burchill et al. apud Linklater (2014, p.146), seu objetivo é “extend the human capacity for self-determination”. Para ele, ser livre é poder se auto-determinar, tomar a frente de uma ação, decidir e determinar o futuro que se quer. Seja como beneficiado dos progressos em prol da emancipação, seja o meio pelo qual ela se torna possível, verifica-se, nesse momento, que o ser humano é o principal ator nesse processo. É assim que a sociedade civil vai se revelando na Teoria das Relações Internacionais, uma vez que, como será percebido mais adiante, na definição gramsciana sobre sociedade civil, os indivíduos estão localizados nas estruturas e instituições presentes nela. O objetivo político da Teoria Crítica deve ser conduzido por e em prol da sociedade civil. A liberdade almejada dá à sociedade civil possibilidade de buscar uma alternativa ao modelo neoliberal hegemônico, uma que não tenha em seu interior os constrangimentos este apresenta. A resolução desses constrangimentos virão a se tornar agendas para uma sociedade munida de conhecimento, isto é, capaz de entender criticamente a lógica por trás das práticas cotidianas. Esta é a interconexão entre o processo cognitivo e a vida social faz fermentar o anseio de emancipação. Esse raciocínio será melhor desenvolvido na terceira parte deste capítulo. Note que o raciocínio conduz à possibilidade de construção do futuro que se deseja pelos próprios indivíduos que antes estavam acorrentados às amarras sociais e pelo entendimento de que aquela situação era natural. Assim, fica claro que é a sociedade civil o novo ator trazido pela Teoria Crítica, devendo ela tomar as rédeas do seu próprio futuro e escolher o que quer a partir dessa ressignificação da realidade, abrindo portas para a transformação. Since critical theory takes society itself as its object of analysis, and since theories and acts of theorizing are never independent of society, critical theory’s scope of analysis must necessarily include reflection on theory […] By drawing attention to the relationship between knowledge and society, which is so frequently excluded from mainstream theoretical analysis, critical theory recognizes the political nature of knowledge claims (BURCHILL et al, 2014, p. 139).
Verifica-se que, até então, aquele que exercita o processo cognitivo e emancipatório da Teoria Crítica ainda é doméstico (dentro das fronteiras estatais). Porém, ao longo dos anos a
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Teoria Crítica vai se desenvolvendo de maneira a transcender análises por vezes consideradas fora do escopo das Relações Internacionais, se firmando neste campo através da busca pela universalização da emancipação. (Critical International theory) Such a theory would no longer be confined to an individual state or society, but would examine relations between and across them, and reflect on the possibility of extending the rational, just and democratic organization of political society across the globe (BURCHILL, et al., apud Neufeld; SHAPCOTT, 2014, p. 140).
A contestação da ordem dominante em escala global é um ato da Sociedade Civil – agora escrito em maiúsculo por já se compreender ator nas RI –, que, criticamente, analisa os problemas que a realidade estabelecida infringe sobre ela, que, munida de conhecimento e capaz de ser crítica torna-se hábil a “buscar a superação da ordem” (dominante) e “perseguir caminhos alternativos.” (SARFATI, 2005, p. 249-253). Dada a atual ordem político-econômica dominante, o interesse em trilhar caminhos alternativos é uma resposta aos constrangimentos de natureza econômica, social e política, tal como expressou Alberth; Carlsson apud Booth (2014). Assim, a sociedade da Teoria Crítica esforça-se em desmistificar ditas verdades imutáveis, em revalorizar questões sociais e, consequentemente, em para superar a hegemonia da globalização neoliberal – fomentada por instituições nascidas do Bretton Woods (KATZ, 2014, p.3). Esta Sociedade Civil está na contra-corrente da globalização neoliberal. Em tempos de globalização, o combalido Estado nacional está totalmente submetido à economia capitalista mundial e aos interesses das classes dominantes transnacionais. Por conta disso, Cox sugere que o movimento contra-hegemônico poderia vir da aliança dos países do Terceiro Mundo, que poderiam lutar contra a dominância dos países centrais. Esses países podem ainda contar com o apoio de alianças contra-hegemônicas de forças globais formadas pelas OING, movimentos sociais, sindicatos, etc. (SARFATI, 2005, p.255-256).
Não cabe, nesse momento, nos debruçarmos sobre o estudo da contra-hegemonia e as fontes propulsoras dela, mas tomar a Teoria Crítica como guia e, em um esforço por melhor compreender o que é sociedade, ressignificar seu conceito e, mais adiante, estudar a sintonia da articulação global entre Sociedades Civis.
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1.3 CONCEITUAÇÃO DE SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI E EM UM RECORTE HISTORICISTA CONTEMPORÂNEO
Torna-se vital para a linha lógica que vem se seguindo, conceituar sociedade civil a partir de um viés capaz de incorporar a totalidade do potencial transformador nela verificado pela Teoria Crítica, que a tem por ator. Esse caráter transformador identificado por Richard Devetak – no livro de autoria de Burchill, et al. (2014) – e a articulação internacional da Sociedade Civil em contraposição à hegemonia global que cria opressivas estruturas político (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.335) - a consolida como ator para as Relações Internacionais. Aqui se busca por um conceito que harmonize com a sociedade da Teoria Crítica, em especial no que se refere à capacidade de seu ator em conduzir um processo de “subversão” da ordem. Com subversão não se objetiva encorajar uma percepção anárquica do processo de transformação levado a cabo pela Sociedade Civil, mas ressaltar o caráter insurgente, emancipatório e contra-hegemônico dessa transformação. Tal como apresenta a Teoria Crítica, só é possível pensar em emancipação quando se contesta toda a normatividade que instaura e sustenta a presente ordem, tendo em vista que os conceitos possuem papel determinante para a existência daquilo que é e daquilo que pode ser. São apresentadas, ao longo da história, diferentes conceituações para sociedade civil. Estas, conforme o ponto de vista historicista são carregadas pelo inseparável plano de fundo histórico que trás qualquer conceituação, premissa, afirmação, visão de mundo. Assim, a necessidade em utilizar uma matriz teórica consistente para sustentar o potencial transformador da sociedade civil, remete em um primeiro momento a abordagem de Gramsci; para fazer jus à inquietude historicista em utilizar-se sempre de um marco teórico mais contemporâneo, sem, no entanto, fugir da matriz gramsciana, contribuições de autores da Teoria Crítica serão trazidos no momento subsequente. A complexidade em abordar sociedade civil através de Gramsci reflete a profundidade com que ele trata o tema: esta sociedade civil se encontra intrincada na existência de outra esfera de sociedade, que Gramsci chamará de política. Elas coexistem, ocorrendo um fenômeno interessante: a impossibilidade de uma real divisão entre ambas – sociedade
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política e sociedade civil – pois, só juntas, compreendidas como unidade, elas instituem o “Estado ampliado” (MENDONÇA, 2014, p. 2). A perspectiva gramsciana aponta que a cisão desses dois elementos constituintes do Estado ampliado torna-se admissível exclusivamente a título de ilustração, para facilitar a compreensão pedagógica, o que será aqui feito. [...] na realidade, essa distinção é puramente metodológica, mas não orgânica. Na concreta vida histórica, a sociedade política e a sociedade civil são a mesma coisa [...] (LIGUORI apud GRAMSCI, 2014, p.8).
Nunes apud Coutinho consegue, nas seguintes palavras, esclarecer o que vem a ser sociedade civil e sociedade política em Gramsci: Em Gramsci, [...] o termo “sociedade civil” designa um momento ou uma esfera da superestrutura. Designa o conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, os Parlamentos, as Igrejas, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de caráter científico e artístico etc. [...] No âmbito da sociedade civil, as classes buscam exercer sua hegemonia, isto é, buscam ganhar aliados para suas posições através da direção e do consenso. Por meio da sociedade política, ao contrário, exerce-se sempre uma ditadura, ou mais precisamente, uma dominação mediante a coerção (NUNES apud COUTINHO, 2014, p. 160).
A superestrutura é o nível no qual a sociedade política e a sociedade civil se tornam uma unidade (MONASTA, 2014, p.98). Neste campo do intangível, no qual se localizam as ideias, ambas se fazem onipresentes tanto no instante da elaboração de ideologias quanto no da sua manutenção. Isto pode ser melhor compreendido nos parágrafos seguintes, com foco no objeto de análise: sociedade civil. Se por um lado ideologias compartilham com a sociedade civil a mesma dimensão imaterial, espaço das abstrações; por outro, a sociedade civil pode também tem seu aspecto menos etéreo, sendo essa sua face condensada em: [...] instituições não coercitivas, estruturas e atividades exteriores ao Estado e ao mercado como sindicatos, escolas, associações profissionais, educativas e culturais, partidos, e igrejas.” (KATZ apud MOEN, 2014, p.2).
Os campos teórico e prático se encontram na sociedade civil, que, como visto, possui essas duas nuances. Para Gramsci, teoria e a prática muito claramente se fundem na figura do intelectual, cujo papel é determinante dentro da sociedade. Este possui função educativa e política sendo, por esse motivo, responsável por conduzir o processo de estabelecimento ou contestação de uma hegemonia (MONASTA, 2014), que na prática é entendida para Gramsci como: [...] combinação da força e do consenso, que se equilibram variadamente, sem que a força suplante muito o consenso, ou melhor, procurando obter que a força pareça apoiada no consenso da maioria. (1976, p. 116).
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Assim ocorre que liderando luta pelo ganho de espeço de uma ideologia, o intelectual: Cada grupo social, surgindo no terreno originário de uma função essencial do mundo da produção econômica8, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político (MONASTA, 2014, p.20).
Dessa forma, tendo a sociedade civil grande gama de grupos sociais expressos em sindicatos mais diversos, escolas, partidos, etc., sua dimensão superestrutural é marcada pela colisão de interesses defendidos pelos respectivos intelectuais de cada grupo. Por isso, “aí que reside a importância da sociedade civil, compreendida, agora, como palco onde entram em confronto diversas concepções do mundo" (MENDONÇA, 2014, p. 5). Assim, da mesma forma que Sociedade Civil atua, através dos seus aparelhos privados, na criação de um consenso (MENDONÇA, 2014, p.3) capaz de manter a ordem social hegemônica9, ela é dialética, pois é também o espaço onde uma nova ordem social pode emergir, contrária aos interesses das classes dominantes. O cerne do conceito de sociedade civil em Gramsci refere-se à organização e à produção de vontades coletivamente organizadas, implicando em visões de mundo, em consciências sociais e em formas de ser adequadas – ou opostas – aos interesses burgueses (MENDONÇA, 2014, p.2).
Conforme vem sendo apresentado, o estabelecimento de relações conflitivas entre indivíduos da sociedade civil é pautado na esfera econômica da produção. Desse processo conflitivo deriva a sobreposição de determinados interesses em relação a outros, de maneira que é estabelecida uma nova realidade – disciplinada conforme as expectativas dos vencedores – na base do consenso, expresso pela sociedade civil10, e da coerção, executada pela sociedade política – cujos aparatos estatais asseguram legalmente a disciplina dos grupos (GRAMSCI, 1978, p.99) –. Essa é a combinação que compõe o Estado ampliado de Gramsci. Logo, qualquer modificação na correlação de forças vigente na sociedade civil, dentro ou entre aparelhos privados de hegemonia distintos tem, necessariamente, repercussões junto à sociedade política e aos organismos estatais, em particular (MENDONÇA, 2014, p.3).
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A análise de Gramsci se ancora em conceitos tipicamente marxistas, ainda que por isso não se sujeite a concordâncias no que diz respeito aos temas compartilhados com este teórico. 9 Processo ao qual Cox chama de “cooptação” que, através do consenso político e cultural, subjulga a sociedade civil aos interesses das classes dominantes expressos na hegemonia vigente. (KATZ apud COX, 2014, p. 3). 10 Consenso pelo senso comum, isto é, pela aceitação acrítica do momento histórico. (GRAMSCI, 2010, p.72) É recomendável encontrar relação entre essa observação ao conceito de cooptação de Cox (2014b).
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Para Gramsci, todos podem ser intelectuais. É este o diferencial trazido pelo pensamento gramsciano ao presente trabalho: uma vez considerado que em qualquer trabalhador “existe um mínimo11 de atividade intelectual”, “todos os homens são intelectuais”. Portanto, sendo a igreja, os partidos, os sindicatos, as associações culturais e educativas, compostas por pessoas e sendo todos os indivíduos determinantes para a construção de novas realidades, por serem intelectuais, de qualquer parte poderá partir contribuições no sentido de contestar a hegemonia. A Sociedade Civil não cooptada pela hegemonia deve praticar a filosofia da práxis: estimular que o exercício intelectual vá além do pedestal “mínimo” inerente a todo indivíduo e assim “conduzir a uma concepção de vida superior” (GRAMSCI, 1978, p. 80), o que culminaria na contestação da realidade imposta pela coerção combinada ao consenso. Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do “senso comum” [...] (1978, p.78).
Assim, Gramsci apresenta sociedade civil como não somente como vetor fundamental para o estabelecimento de uma hegemonia12, mas também como plataforma de onde emergem ideologias antagônicas, que podem ser pensadas e alimentadas por qualquer um, pois todos têm capacidade intelectual. Assim, a sociedade civil contém em si duas possibilidades, que Cox apud Gramsci apresenta da seguinte forma: Gramsci regarded civil society not only as the realm of hegemony supportive of the capitalist status quo, but also as the realm in which cultural change takes place, in which the counter hegemony of emancipatory forces can be constituted. Civil society is not just an assemblage of actors, i.e. autonomous social groups. It is also the realm of contesting ideas in which the intersubjective meanings upon which people's sense of 'reality' are based can become transformed and new concepts of the natural order of society can emerge (2014a, p.10).
É de se ressaltar que esta sociedade está amarrada à retórica do historicismo, como pode ser visto através das palavras de Cox: The concept of civil society in this emancipatory sense designates the combination of forces upon which the support for a new state and a new order can be built. These forces operate in a political and social space, a terrain occupied by different conflicting forces as historical change proceeds [...] (2014a, p.5).
Como será melhor abordado mais adiante, estamos em um contexto histórico que leva a Sociedade Civil a se comportar de determinadas maneiras em função da busca por sua 11
Segundo Monasta apud Gramsci, em alguns indivíduos a atividade intelectual se desenvolve mais do que em outros. (MONASTA, 2014,p.78) 12 “Em hegemonia, de acordo com o pensamento de Gramsci, um certo tipo de vida e pensamento é dominante, e é difundido por toda a sociedade para influenciar normas, valores e gostos, práticas políticas e relações sociais” (KATZ apud SASSOON, 2014, p.2).
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emancipação. Com este objetivo, algumas variáveis político-econômicas fazem com que a Sociedade Civil una seus grupos sociais mais diversos numa soma de forças em prol da contestação do modelo hegemônico vigente. Ainda que a amostra desta sociedade evidencie e se contraponha à permanência de relações de dominação ancoradas na lógica da produção econômica13 conduzindo a um entendimento baseado em percepções de classes econômicas, o foco dado a este estudo recai sobre a sociedade civil – separada analiticamente da sociedade política – sem entrar em especificações acerca de sua composição em classes sociais, pois o imperativo aqui não são elas, mas a Sociedade Civil, como um todo não-estatal, no comando de um projeto contrahegemônico. Frente a isso, e tendo em vista seu potencial – identificado pela Teoria Crítica ancorada na matriz gramsciana – em alterar a ordem instaurada pela via de um projeto universal de emancipação, estamos sim tratando de um ator nas Relações Internacionais, cuja uma das maiores característica é ser uma coalizão de forças populares, muitas vezes distinta dos estados e corporações em interesses e atitudes, conforme ser. Parte desta colocação pode ser entendida nas palavras de Cox: The distinction common today is between dominant power over society shared by corporations and states, on the one side, and popular forces on the other. 'Civil society' is now usually understood to refer to the realm of autonomous group action distinct from both corporate power and the state. (2014a, p.10).
Esse grupo não-estatal e não corporativo pode atuar em sintonia com o grupo dominante, que ao fazer uso do poder coercitivo do aparato estatal, que dão continuidade à hegemonia conquistada, conforme será melhor exposto mais adiante, ou exercitar a filosofia da práxis, esforçar-se por dar um limite à perpetuação dessa hegemonia. Cabe lembrar que aqui está se dando ênfase a esta parcela resistente, contrahegemônica. Observa-se que essa última tendência passa a privilegiar o caráter crítico da Sociedade Civil, que assume uma atitude de reação aos impactos da globalização neoliberal pela via da resistência aos poderes econômicos dominantes e da contestação da hegemonia. Para Cox, [...] civil society [...] now takes on the meaning of a mobilized participant citizenry juxta posed to dominant economic and state power. [...] Civil society' has become the comprehensive term for various ways in which people express collective wills independently of (and often in opposition to) established power, both economic and political. (COX, 2014a, p.6-10).
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Robert Cox poderá ajudar a aprofundar esse viés de pesquisa.
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Tendo sido considerados esses pontos de teor conceitual, aspectos outros devem ser incorporados ao entendimento do modo como a Sociedade Civil insere-se no ambiente internacional. Novas conjunturas históricas implicam diretamente em uma concepção mais atual sobre Sociedade Civil, que na era da globalização se integra a esse novo ambiente interconectado econômica, política, cultural e, talvez acima de tudo, interconectado pela comunicação. Esta rede de articulação internacional da Sociedade Civil se apresenta como Sociedade Civil Global. Conceito novo e ainda em desenvolvimento, sendo um desafio abordá-lo, sendo justificado o porquê de ser muito criticado por seu caráter utópico e otimista. Em resposta às críticas, cabe apenas uma ressalva: utopia é aqui entendida como algo irreal, pois ainda não foi realizado, aquilo que não encontra correspondência na realidade, porém, ainda assim, que é possível de se concretizar (LOWY, 2009). Sabendo, afinal, que o impossível só é assim visto por aqueles que não exercem a filosofia da práxis capaz de forçar a transmutação do que antes eram falsas verdades imutáveis; cabe estudar mais a fundo a Sociedade Civil Global em desenvolvimento, entender o que ela é por quem é composta e o que almeja.
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2 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL COMO ATOR CONTRA-HEGEMÔNICO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
2.1 RECORTE ESPAÇO-TEMPORAL UTILIZADO: A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL E A TEORIA CRÍTICA
Além do historicismo, que perpassa o trabalho, e da postura contestatória da Sociedade Civil estarem de acordo com a retórica da Teoria Crítica, esta é utilizada também por ser sustentáculo teórico que advoga a adoção de uma abordagem ampla, direcionada “to the social and political complex as a whole rather than to separate parts.” (COX, 2014c, p. 208). A linha de raciocínio necessária à compreensão da Sociedade Civil Global demanda um recorte amplo capaz conter a realidade político-econômica por trás do ator, determinando sua origem. Segundo a Teoria Crítica, quando o recorte para análise é excessivamente limitado, os resultados dela serão baseados em limites estabelecidos e parâmetros préconcebidos que levam ao estabelecimento de um problema com reduzido número de variáveis (COX, 2010, p. 208), o que obviamente aumenta a margem de imprecisão dos resultados e, por conseguinte, alimenta dúvidas ao seu respeito. Este tipo de análise acaba servindo como argumentação teórica para a correção momentânea de problemas estruturais, gerando um receituário paliativo para uma disfunção inerente à própria ordem. Por outro lado, o recorte aqui utilizado, a globalização neoliberal, devido à sua vasta complexidade que a interconecta com os campos social, econômico e político, atende aos requisitos apontados por Cox. Esta é a ordem hegemônica vigente na atualidade, uma vez que determina normativamente o funcionamento da arena internacional e da local, já que esta ordem carrega em si contradições geradoras de problemas estruturais que constrangem a Sociedade Civil por violar sua liberdade de viver sem pobreza, opressões políticas entre outros tipos de constrangimentos já apontados anteriormente. Os ajustes econômicos sugeridos por instituições como o FMI tratam estes problemas de maneira muito pontual, emergencial, e acabam funcionando como molas que suavizam os
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choques derivados do mau funcionamento do próprio modelo vigente. Em outras palavras, serve como manutenção da ordem.
2.2
A
GLOBALIZAÇÃO
NEOLIBERAL
EM
CONTRAPOSIÇÃO
AO
DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE CIVIL ENQUANTO ATOR GLOBAL
O presente capítulo está dividido em mais três subcapítulos. Neste será feito um aprofundamento do contexto histórico no qual se insere a Sociedade Civil Global e o papel que cabe a ela desempenhar, em uma relação de causa e efeito com seu contexto. O segundo subcapítulo se dedicará a apresentar mais detalhadamente a agenda defendida por esse ator e, por fim, em um último momento serão apontados os componentes da Sociedade Civil Global. Recapitulando resumidamente, o capítulo 1.2 revelou que a Teoria Crítica entende Sociedade Civil como um ator nas Relações Internacionais, e a existência de constrangimentos que a leva a adotar uma postura emancipatória em um projeto universal que acaba conduzindo ao conceito de Sociedade Civil Global. O detalhamento sobre os constrangimentos que incidem sobre a Sociedade Civil será feito no capítulo 2.3, cabendo a este momento revelar o quadro que origina tais adversidades. Nesse ponto, deve-se voltar a atenção para o ambiente no qual esta se insere: cenário internacional determinado pela globalização neoliberal. Um olhar atento revela que fatores nascidos desta ordem hegemônica conduzem à reorganização da Sociedade Civil, tornando-se impossível compreender o novo conceito “Sociedade Civil Global” de maneira dissociada de sua origem. Esta reorganização se dá por fatores exógenos à Sociedade Civil, forças que atuam globalmente a serviço da uma hegemonia. O que fazem essas forças para terem lugar na presente discussão sobre sociedade? Ora, ela interage com nosso ator, que é atingido pelos efeitos das diretrizes hegemônicas. Stephen Gill apresenta essas forças da seguinte forma: The dominant forces of contemporary globalisation are constituted by a neoliberal historical bloc that practices a
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politics of supremacy14 within and across nations.” (2014, p. 402). Ainda dentro do escopo de teóricos da Teoria Crítica, também Robert Cox (2014a, p. 12) aponta que o “[...] neoliberalism is hegemonic ideologically and in terms of policy.” Ao tratar de hegemonia15 Cox fala sobre a pax americana, cuja configuração de poder fortemente amparada em numerosas instituições internacionais cria condições para o desdobramento da economia global que tem por centro ideológico os Estados Unidos (COX, 2014c, p.224-225). Assim, o estabelecimento da hegemonia é fomentado: […]by maintaining the rules of an international economic order according to the revised liberalism of Bretton Woods, the strength of U.S corporations engaged in the pursuit of profits was suficient to ensure the national power (COX, 2014c, p.224).
As corporações
que
crescem
sob
esta ordem
político-econômica nascida
ideologicamente nos Estados Unidos, transformam a realidade ao seu entorno, sendo elas indiferentes aos interesses da Sociedade Civil. Para Milton Santos: [...] o ‘mundo’, hoje, torna-se ativo sobretudo por via das empresas gigantes, essas empresas globais produzem privatisticamente suas normas particulares, cuja vigência é, geralmente e sob muitos aspectos, ‘indiferente’ aos contextos em que vêm inserir-se [...] (1996, p. 335)
Em função da norma ditada pela ideologia hegemônica – notadamente a globalização neoliberal – os cenários cultural, social e político passam a localizarem-se hierarquicamente em um nível inferior à esfera econômica (SCHOLTE, 2014, p.7), já que, uma vez a globalização sendo tratada por esta ideologia como processo econômico (SCHOLTE, 2014), as diretrizes econômicas do neoliberalismo se universalizam, padronizando a política global. Milton Santos ajuda a compreender melhor esse processo. A ordem trazida pelos vetores da hegemonia cria, localmente, desordem, não apenas porque conduz a mudanças funcionais e estruturais, mas, sobretudo, porque essa ordem não é portadora de um sentido, já que o seu objetivo – o mercado global – é uma autorreferência, sua finalidade sendo o próprio mercado global. Nesse sentido, a globalização em seu estágio atual é uma globalização perversa para a maioria da humanidade. [...] Assim, enquanto o ‘mundo’ intervém no espaço e o transforma unilateralmente, para responder localmente a imperativos ditos globais, mas exclusivos – como os interesses das transnacionais – a complexidade da organização espacial é agravada, como um problema coletivo (2002, p.268).
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Stephen Gill difere supremacia de hegemonia. Ela entende hegemonia como um bloco histórico capaz de transcender classes e canais por elas comandados, criando um amplo e legítimo sistema de regras; este é capaz de fundir os elementos políticos, culturais, e econômicos da sociedade em uma aliança que combina coerção e consenso. Já por supremacia refere-se às regras de um bloco de forças não-hegemônicas que exerce o domínio por um período sobre uma população fragmentada até que uma forma coerente de oposição emerja. Assim, em Stephen Gill supremacia ressalta a provisoriedade do domínio que poderá ser superado (GILL, 2014, p.400). 15 Entendida por Cox (2014b) como combinação entre poder, ideias e instituições; conjunção coerente entre configuração de poder material, imagens coletivas dominantes sobre a ordem mundial e suas normas e uma gama de instituições que administram a ordem sob aparência de universalidade (COX, 1981, p. 222-224).
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Ainda com relação ao presente contexto marcado pela globalização e pelo neoliberalismo, cabe parafrasear Paul Singer (2003, p. 254): “o neoliberalismo é umbilicalmente contrário ao estado de bem-estar porque seus valores individualistas são incompatíveis com a própria noção de direitos sociais.” Em outras palavras: Com a crise do Estado do Bem-Estar Social, revigora-se a política liberal com nova roupagem – adota-se o neoliberalismo no qual se fundamentam as medidas ortodoxas aplicadas e o desmantelamento do aparelho dos serviços de proteção social (TEIXEIRA, 2002, p.57).
Assim, a realidade histórica mostra-se adversa para a sociedade em variadas dimensões. Os problemas enfrentados pelas populações nos diversos países vêm se agravando em decorrência das políticas adotadas em nível mundial, tais como ajuste fiscal, privatização, dívida pública, comércio exterior. Os cidadãos defrontam-se com realidades que desafiam sua capacidade de indignar-se e de intervir para reconquistar direitos que vão sendo eliminados por políticas que atendem às diretrizes globalizadas (TEIXEIRA, 2002, p.54).
Assim, sob a sombra da esfera econômica, os constrangimentos vão se tornando nomeáveis ao impactarem sobre a vida de massas. Só enxergando esse contexto como um problema coletivo e percebendo o todo ao invés das partes, a Sociedade Civil se torna apta a transpassar fronteiras em prol do seu projeto emancipatório. Para que se faça mais clara a grande gama de problemas que atingem as sociedades, é trazido aqui um “catálogo” de problemas e motivos estruturais que os originaram. The prices of many medical products marketed by transnational pharmaceutical firms have risen and the relaxation of trade barriers, and other Market forms of restriction and regulation, has made it simpler to dump expired or unsafe medicines in parts of the Third World. Globally, public health and educational provisions have been reduced, partly because of neoliberal structural adjustment pressures on most governments to exercise monetary restraint, cut budgets, repay debts, balance their international trade, devalue their currencies, remove subsidies and trade and investment barriers and, in so doing, restore international creditworthiness and thereby extend the market civilisation globally. Such pressures emanate from agents in the global financial markets and from international organisation like the World Bank and IMF, as well as from within these societies (GILL, 2014, p.408).
Como vem sendo dito, a raiz dessas adversidades está intrincada na lógica de funcionamento da hegemonia. Stephen Gill prossegue, apontando as contradições da lógica neoliberal: Therefore, the logic of neoliberalism is contradictory: it promotes global economy integration ( and hence the need for global public goods), but also generates depletion of resources and the environment. […] Restructuring along Market-driven lines tends to generate a deepening of social inequality, a rise in the rate and intensity of the exploitation of labour, growth in social polarisation, gender inequality, a widespread sense of social and economic insecurity, and, not least, pervasive disenchantment with conventional political practice (2014, p. 419-420).
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Assim, entre o discurso e a prática existe uma lacuna na qual vão sendo apinhados problemas advindos do próprio funcionamento da hegemonia. Gill volta a mencionar a contradição discursiva e seu gap da seguinte forma: These policies are cast within a neoliberal discourse of governance that stresses the eficiency, welfare and freedom of the Market, and self-actualisation throught the process of consumption. However, the effects of these policies are hierarchical and contradictory, so the it is also possible to say that the neoliberal turn can itself be interpreted as partly a manifestation of a crisis of governamental authority and credibility, indeed of governability, within and across a range of societies.[...] this process is hierarchical: for example, burdens of risk are redistributed, marketised, and individualised (e.g., associated with illness, old age, or pensions) as opposed to being fully socialised through collective and public provision (2014, p.401).
O problema aponta ser mais profundo, atingindo o Estado, causando danos aos serviços que eles provêm. Além de Stephen Gill, essa argumentação é utilizada por vários teóricos aqui utilizados, porém, não se pretende aprofundar a discussão por este viés. A interação entre o modelo neoliberal e o Estado não deve desviar o foco nos problemas gerados pela hegemonia vigente, uma vez que são eles que, tendo sido impostos à sociedade, lhe tolhe a possibilidade de “uma vida melhor”. (ALBERTH; CARLSSON apud WYN JONES, 2014, p.6). A liberdade encontra limitações como aumento dos preços de produtos médicos, danos ao meio ambiente e insegurança daí derivada, redução na cobertura pública de serviços básicos devido à mercantilização de necessidades básicas, aumento da desigualdade social, exploração laboral, etc. Nesse momento, cabe dizer que a existência desse contexto desfavorável a parcelas da sociedade leva um conjunto de indivíduos e grupos a não pactuarem com ditos da hegemonia. Frente a isso, ocorre um fenômeno interessante: a sociedade civil adota uma postura ativa frente a essa adversidade. Esta é a parcela da sociedade não cooptada pela hegemonia capaz de se perceber enquanto pequenas partes do todo e se articular globalmente em prol de sua emancipação. A Sociedade Civil Global contra-hegemônica é condicionada à existência dessa fração insatisfeita. Tendo claro que Sociedade Civil Global é, em primeira análise, a Sociedade Civil articulada internacionalmente, cabe deixar claro porque esta deveria ser considerada contrahegemônica. Em primeiro lugar, como foi apontado no capítulo anterior, esse trabalho entende que sociedade civil também é uma esfera na qual se concentram forças populares – e com isso se quer dizer aquelas não-estatais e não-corporativas –, participativas e justapostas ao poder estatal e econômico dominante. Para Cox (2014a, p.6-10), essas forças expressam desejos contrários aos poderes econômicos e políticos estabelecidos.
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O antagonismo entre os interesses dos poderes dominantes e das forças populares são melhores explicados na conceituação de contra-hegemonia, antítese da hegemonia. Faz-se útil a parafrasear: Por apresentar certo grau de instabilidade, a hegemonia pressupõe a contrahegemonia, ou seja, forças que resistem à ação dirigente/dominante, propondo projetos alternativos ao estabelecido (MIRANDA, 2014, p.6).
Também destaca-se a contribuição de Laércio Torres de Góes para esclarecer o que Gramsci entende por forças contra-hegemônicas: Para Gramsci uma força contra-hegemônica só pode ser reconhecida como tal na medida em que consegue ultrapassar a espontaneidade do movimento, que intervém com capacidade de modificar e alterar uma dada estrutura social (2014, p. 3).
O olhar acrítico da realidade é ancorado um consenso de que a hegemonia em vigência funciona naturalmente, de maneira que os problemas daí surgidos são compreendidos, de maneira errônea, como ocasionais e sem relação com o todo. Porém, quando adotada uma postura crítica, sugerida por Gramsci através da metodologia da filosofia da práxis, quando abnegado o compartilhar de “[...] uma concepção de mundo mecanicamente imposta pelo exterior a mim” (MONASTA, 2014, p.24), a problemática da hegemonia se revela em seu todo, inclusive com suas contradições, e os problemas se mostram ser produtos da estrutura sistêmica de funcionamento da hegemonia neoliberal. Por estarem localizados em um mundo globalizados – e utilizarem-se dessa característica para universalizar diretrizes – as políticas neoliberais e seus problemas se desterritorializam, lançados por uma política de alcance global, pairando sobre o este ambiente “suprafronteiriço” e atingindo diversas sociedades civis de diferentes latitudes e longitudes. Portanto, “o local não desaparece, mas a noção de espaço passa a ser compreendida mais social que territorialmente.” (TEIXEIRA apud WATERMAN, 2002, p. 55). Com contornos muito parecidos em diferentes locais; os problemas passam por uma espécie de padronização nas mais variadas localidades, consequência direta dos efeitos adverso da “universalização de políticas” (COX, 2014c, p.219) ordem hegemônica. Para melhor explicar a referida padronização quer-se dizer que os problemas se tornam transtornos compartilhados não mais somente em esfera local, mas em uma dimensão abrangente o suficiente para abarcar todos aqueles que sofrem do mesmo mal, em dimensão mundial, passando assim a vigorar uma perspectiva mais social do que territorial para o tratamento da questão.
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Portanto, reforça-se que, na medida em que os constrangimentos vão sendo assim percebidos passam a ser indissociável daquilo os originou (ou que contribuiu para sua existência). Estes constrangimentos da ordem hegemônica e o nascimento da Sociedade Civil Global interagem numa relação de causa e efeito. Essa contestação estruturada em respeito à lógica dominante, é a contra-hegemonia, é a causa impulsionadora da gestação da Sociedade Civil Global. Este ator compartilha com a hegemonia neoliberal o mesmo cenário, está, portanto, em contato com as mesmas variáveis históricas nele apresentadas. Utilizando-se disso, a contestação é organizada no próprio veículo de disseminação da hegemonia vigente: a globalização. Dessa maneira, a união global das Sociedades Civis é facilitada “by the speed and ease of modern global communications and a growing awareness of common interests between groups in diferent countries and regions of the world.” (MCGREW, 2014, p. 27). A utilização do veículo comunicativo, da mesma forma que o aspecto internacional da Sociedade Civil Global, são reafirmados por Souri nas seguintes palavras: In short global civil society encompasses civic activity that; addresses transworld issues; involves transborder communication; has a global organisation; and works on a premise of supraterritorial solidarity. More specifically, global civil society exists in one sense when civic associations concern themselves with issues that transcend territorial geography. [...] At the same manner, civil society is global when campaigns adopt a transborder organisation and when its groups are motivated by sentiments of transworld solidarity [...] (2014, p.33). .
Assim, ao passo que a globalização, “envolve a redução de barreiras para contatos transmundiais, as pessoas se tornam mais capazes fisicamente, de forma legal, cultural e psicologicamente para se envolver com o outro em um mundo.”16 (SCHOLTE, 2014, p. 7, tradução nossa). É possibilitada então, através dos recursos oferecidos pela era da globalização, a articulação transnacional da Sociedade Civil.
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Para mais informações, Scholte, J. (1999)
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2.3 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL, SUA AGENDA E CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA CRÍTICA PARA SEU ENTENDIMENTO
Havendo possibilidades no atual contexto histórico para que a Sociedade Civil se articule através das fronteiras, tal organização leva à composição da Sociedade Civil Global como um novo ator no ambiente internacional. Ela carrega as mencionadas duas características fundamentais para ser categorizada como ator nas Relações Internacionais: primeiro, no centro dos seus esforços se condensa uma agenda a insere de maneira categórica ao palco global, por se dirigir ao e contestar o modelo político-econômico internacional vigente. Em segundo lugar, compartilhando com este modelo o mesmo contexto globalizado, a Sociedade Civil Global revela que os possíveis usos dos recursos oferecidos neste momento histórico vai além daquele praticado pela hegemonia – utilização da globalização para universalizar diretrizes político-econômicas – podendo servir como via para uma dimensão global de articulação contra-hegemônica. Estando isto claro, cabe elucidar em defesa de que este ator se organiza para possibilitar a melhoria da qualidade de vida daqueles que o compõe – em última análise, o indivíduo. A universalização de constrangimentos por políticas globalizadas relaciona-se diretamente com grupos afetados por políticas de alcance global. Tais grupos contestam o positivismo que caracteriza como imutável aquilo que lhes levou à insatisfação e revelam, nesse processo, serem atores não-neutros, críticos e opinantes. Como já foi dito, segundo a lógica da Teoria Crítica, inserir os fatos em um momento histórico faz com que eles possam ser transformados, afinal as realidades apresentadas num dado intervalo temporal são apenas produtos do próprio contexto histórico, que pode ser mudado. Assim, ao enxergar a possibilidade de mudança tendo por objetivo a emancipação dos constrangimentos que lhes foram impostos e para que seja possível alcançar a liberdade de desfrutar da vida cultural, social e do meio ambiente sem que uma dessas esferas seja subjugada em benefício da economia, é preciso que temas sejam organizados em uma agenda própria. Nas Sociedades Civis estão localizados grupos sobre os quais recaem os ônus das consequências da globalização neoliberal. Estes grupos afetados, que, como vem sendo
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apresentado, se articulam e dão à Sociedade Civil uma dimensão global. Verifica-se, frente ao fenômeno da globalização, “relação mais dinâmica entre política internacional e doméstica” (LOPES, 2014, p.8), tanto no que tange consequências locais para diretrizes globais quanto no que diz respeito ao produto da organização internacional da Sociedade Civil. Posto de outra forma, os grupos afetados, cuja procedência inevitavelmente os deixa arraigados a uma território, passam a ter voz e mobilizarem-se para a conexão internacional em torno de questões também internacionalizadas, e, portanto, comuns a outros grupos. A questão social que lhes é de interesse revela-se tanto um problema local como global. Dessa forma, por meio da postura dos atores domésticos citados é organizada a Sociedade Civil Global, esta é incorporada de maneira visível ao elenco de atores das Relações Internacionais como um novo ator, único, agregador e produto do contexto. Mais informações sobre a conceituação e composição da Sociedade Civil Global serão trazidas no próximo subcapítulo. No momento, cabe apontar as demandas estruturadas na agenda deste ator, que, refletindo seu pluralismo – vários grupos demandantes – espelha uma diversidade de temas que devem ser considerados em seu conjunto para serem compreendidos como o que de fato são: estruturação para emancipação hegemônica. Porém, antes de aprofundar nesta sistematização, cabe chamar atenção para uma demanda, em particular, capaz de abrir caminho para o comparecimento de todas as outras questões na agenda internacional. Um dos fatores que devem ser considerados quando se fala do dos problemas derivados da globalização neoliberal é o “pervasive disenchantment with conventional political patice” por Gill (2014, p. 420) e o anseio pela “reconquista de direitos” (TEIXEIRA, 2002). Isto é, a necessidade de reconquistar o sentimento de pertencimento dos indivíduos à tomada de decisões que dão rumo a países. A ausência democracia está nas nas entrelinhas, delatando que o desenho das políticas globais aqui abordadas foi feito fora da esfera participativa. Seguindo a lógica do pensamento gramsciano, para atender de maneira direta e efetiva aos anseios da Sociedade Civil Global, a solução para os problemas que a constrangem deve ser construída de maneira legítima, em conhecimento direto, constatação factual das adversidades na realidade cotidiana da Sociedade Civil – em referência à sua parcela insatisfeita, crítica, não cooptada pela hegemonia e questionadora da ahistoricidade 17 da globalização neoliberal. 17
Isto é, da qualidade da hegemonia se afirmar ser natural, independente do contexto social, político, histórico ou político.
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Isto é, é preciso que tenham se “tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas assinalavam pela sua atividade prática” (MONASTA, 2014, p. 77) e que os tenha organizado em uma agenda construída coletivamente. Utilizando a participação coletiva como metodologia, o desenho das políticas deve partir dos grupos demandantes. Isto é, da base. “‘[…]politics from below’ pursued by global civil society often pushes for a different organization of interests at the various levels of policy, local, national and global.” (HELD; ARCHIBUGI, 2014, p.15) Isto é, políticas desde a base, representando os interesses prol dos interesses das sociedade civis de diferentes territórios. A Sociedade Civil Global é definida por Herz e Hoffmann como “espaço de atuação e pensamento ocupado por iniciativas de cidadãos, individuais ou coletivos, de caráter voluntário e sem fins lucrativos”. (LOPES apud HERZ ; HOFFMANN, 2014, p.10). Este conceito carrega em si o estímulo à participação social, o qual leva à prática a legitimação de interesses elencados democraticamente pelos que a compõe. Fica ressaltado, pois, o protagonismo da Sociedade Civil Global na luta pela recuperação da democracia. Além da própria luta pela participação como grande bandeira, o atendimento de outras demandas vai sendo buscado de maneira mais profunda: pela contestação normativa18. Um exemplo interessante é a reformulação do conceito “desenvolvimento”. É importante que os esclarecimentos acerca desse exemplo sejam amarrados às considerações feitas sobre democratização das políticas globais. Está em andamento à contestação conceitual de “desenvolvimento” como sinônimo do progresso econômico19 e a dedicação por sociedades de diversas nações em construir um conceito que incorpore as dimensões que vão além da economia, incrementando-o com outras variáveis.
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Negação daquilo que tem caráter de norma. A palavra desenvolvimento por vezes passa por uma imposição tácita, já que seu conceito por vezes é diretamente vinculado ao bom desempenho no campo econômico, de maneira que para alcançá-lo seja necessário ter foco neste aspecto. Quando se contesta a normatividade deste conceito, revela-se que para compor sua integridade é necessário que outras variáveis sejam incorporadas, fazendo tomar corpo um conceito holístico, que possibilita compartilhar com índices quantitativos - como o PIB - alguns mais qualitativos, como é o caso do índice de Felicidade Interna Bruta. Para mais informações sobre este índice, pesquisar Butão, país percussor, que desde a década de 70 atenta para a necessidade medir a qualidade de vida e o bem estar da nação. 19 Não se pretende investigar de quem é essa iniciativa, já que, da mesma forma que a Sociedade Civil, também instituições internacionais também estão dando contribuições a essa transição, mas pontuar essa tendência e apresentar a participação da Sociedade Civil no seu desenvolvimento desse processo.
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Consultas feitas a sociedades civis de diferentes países marcaram sua participação na elaboração de uma nova agenda internacional, a Agenda de Desenvolvimento Pós-201520. Encontrada na plataforma virtual da Beyond 2015, a coleta de informações sobre os rumos que o mundo deve tomar para o desenvolvimento resulta no documento intitulado “Civil Society Demands for the Post-2015 Agenda from 39 Countries”, que evidencia a agenda desejada e formalização de insatisfações da Sociedade Civil. Nela, anseios que vão sendo revelados em palavras-chave tais como erradicação da pobreza, inclusão social, meio ambiente, etc. Mais uma vez, incorporado à proposta de um tipo de desenvolvimento mais holístico, a questão da democratização de políticas globais reaparece através da recomendação para “Incorporate targets on the reform and democratisation of global institutions, particularly the World Bank and International Monetary Fund (IMF)” (BEYOND 2015, 2014, p.9). Esse fato reforça a percepção de que a Sociedade Civil Global tem diante de si a democracia como estandarte que a possibilita dar voz a tudo aquilo que defende, notadamente a igualdade, respeito por direitos humanos, primazia do bem estar dos povos sobre as economias, e demais demandas as quais são ancoradas em valores, tais como igualdade e justiça, direitos humanos, sustentabilidade, good governance21, participação. (BEYOND 2015, 2014). A democracia é um passaporte para a esfera da participação na elaboração de definições de diretrizes globais que atinge o ambiente doméstico dos Estados. É ela a chave que abre da agenda internacional para a consideração de outros temas. As demandas expressas na agenda não devem ser vistas como uma maneira de conseguir emergencialmente o desvio de um obstáculo. Pelo contrário, a própria organização tendo por propósito a democratização da tomada de decisões quanto às prioridades para a política internacional, revela o intuito de redefinir políticas e transformar a ordem hegemônica. É, portanto, importantíssimo observar o caráter emancipatório dessa investida que enxerga os problemas de maneira vinculada ao todo e consciente da disfunção concebida no funcionamento “natural” e idealizado da política hegemônica – o neoliberalismo. Assim, assegurado o direito à voz, a agenda revela as demandas do conjunto de atores que compõe a Sociedade Civil Global, conforme apresentou a consulta a ela feita: The national deliberations raised an urgent need to work collectively to find new ways of organizing society, our relationship to the planet, and the logic of our economy. We have recieved contributions from people around the world echoing the 20
Mais informações esse processo no Brasil, acessar: Acesso em: 01 de mai. 2014. 21 Cujo conceito incorpora valores como transparência, participação, responsabilidade, efetividade e eficiência.
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same demands. Civil society is concerned about rising inequality. People acknowledge that social protection is decreasing, leaving more people vulnerable to vagaries like climate change and fluctuating food prices. Those who already live in poverty are being further marginalized. Even in places where economic growth is robust, many people are not included (BEYOND 2015, 2014, p. 3).
Ressalta-se, então que os constrangimentos que afetam a Sociedade Civil Global se infiltra pelos diversos campos que compõe a vida, em especial o social – seja pela elevação dos preços de medicamentos, aumento da desigualdade social, marginalização, epidemias e insegurança, como aponta Gill (2014) – e o ambiental – devido às dano ao meio ambiente e suas implicações em aumento de preços de alimentos, aumento do risco de desastres naturais, etc.
2.4 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A incidência dos constrangimentos impostos pelo contexto histórico atual sobre a vida prática das pessoas corrobora para a elaboração de uma agenda voltada para questões internacionais. Tendo isto ficado claro, podemos então aprofundar o entendimento sobre a Sociedade Civil Global, que é definida tanto pelo contexto ao qual está submetida – pelas adversidades impostas pela hegemonia atual e pela facilidade de articulação internacional possibilitado pelo avanço da comunicação na globalização – quanto pela agenda, direcionada ao ambiente global, a suas dinâmicas e práticas. Por este motivo condicionante ao surgimento desse novo ator, foi fundamental apresentar previamente contexto e agenda, para então aprofundar no entendimento sobre o que é a Sociedade Civil Global. Antes de qualquer tentativa de delinear este ator, cabe fazer uma ressalva: a construção conceitual de Sociedade Civil Global carrega em si a complexidade inerente a todo conceito, tendo em vista que definições acabam por limitar o objeto definido. A delicadeza da questão reside no fato de que este ator, como todos os outros, é sujeito a transformações por estar localizado em um momento histórico, sendo por isso, mutável. Assim, por mais completas que pareçam ser definições sobre Sociedade Civil Global em sua forma atual, o futuro pode evidenciar possibilidades tolhidas por meio da adoção de um conceito A ou B. Isto é, esse ator pode vir a se tornar algo que transpasse os limites
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conceituais impostos, o que influenciaria negativamente na sua forma de se auto enxergar – e tornaria necessária uma reflexão crítica contestadora do positivismo intrínseco à sua própria definição normativa. Ou seja, seria necessário a rejeição de um conceito engessado por um objetivismo que, sob o prisma de análise da Teoria Crítica, não existe, pois tanto o objeto de análise – neste caso, a Sociedade Civil Global – quanto o sujeito investigador – aquele que busca conceitua-la – estão inseridos em determinado momento histórico, e portanto sujeitos a fatos e valores influenciam quaisquer julgamentos ou conceituações feitas (BURCHILL et al., 2014). O projeto emancipatório da Sociedade Civil Global desafia a própria normatividade, que, na tentativa de padronizar em um conceito perfeito, tenta tornar objetiva a essência desse ator que, indiferente a esta tentativa, está submetido ao momento histórico e à subjetividade das pessoas que o constroem. Dessa maneira, parece ser mais prudente que o conceito permaneça em um momento de contínua construção para que seja constantemente enriquecido com contribuições nascidas de períodos históricos diferentes, de maneira a aprimorá-lo progressivamente (LOWY, 2009), não desfazendo das contribuições anteriores, mas complementando-as e dando sempre possibilidade do ator chegar a uma etapa ainda não alcançada. Anheier is correct: “Any measurement of global civil society will be simpler and less perfect than richness, variety, and complexity of the concept it tries to measure’. But the converse of Anheier´s rule must also be borne in mind: the conceptual theory of global civil society is infinitely ‘purer’ and much more abstract than the form and content of actually existing global civil society. (KEANE, 2014, p.8)
Cabe pontuar que foi necessário trazer para o presente trabalho as contribuições de John Keane que apesar de remeterem à matriz teórica weberiana, que destoa da linha teórica gramsciana aqui seguida, se fizeram importantes para o processo de conceituação de Sociedade Civil Global, ainda incipiente e de difícil acesso. Este enxerto teórico é aqui utilizado com muita cautela e sem nenhuma pretensão de entender a conceituação como a ideal, pois, como explicado anteriormente, essa percepção errônea seria contraditória à Teoria Crítica. Tendo sido feito este esclarecimento, seguem expostos alguns parágrafos do trabalho de John Keane, que trás algumas categorias para as conceituações sobre Sociedade Civil Global. Dentre elas, se propõe utilizar aquela que vincula o termo ao seu uso estratégico, voltado a questões de ordem política: Strategic uses of the term are directly concerned with political questions. They concentrate upon institutional constraints and opportunities as well as the manoeuvres of power groups and movements – upon the (potential) political gains
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and losses of supporters and opponents that operate from within or outside the structures of global civil society”. (2014, p.3).
O uso estratégico do termo remete à consideração feita por Cox, que identifica nas instituições um dos pilares que sustentam a hegemonia. A inter-relação entre os constrangimentos impostos institucionalmente por meio de políticas globais e as oportunidades apresentadas no contexto histórico atual combinam com as estratégias utilizadas tanto pelos defensores contra-hegemonia e quanto pelos defensores da hegemonia – estes, localizados também no interior da Sociedade Civil Global, na forma de sua parcela cooptada pelas práticas hegemônicas. Essa combinação deriva na atuação internacional da Sociedade Civil Global enquanto sujeito político. Estando aqui sendo tratado sobre a Sociedade Civil Global contra-hegemônica, se faz aconselhável uma definição que permita um pouco mais de precisão no exercício reflexivo em torno desse ator, não havendo pretensão, porém, de registrá-la como um modelo de conceito perfeito ou superior a outros. Keane (2014) destaca que muitas vezes Sociedade Civil Global possui por elemento caracterizador o fato de ser “Aquilo que não é estatal ou governamental”. No entanto, o caráter vago de algumas certezas a respeito de Sociedade Civil Global elencam características que nem sempre contribuem em grande medida para um pensar claro sobre o que ela é. Apesar de toda a profundidade e contemporaneidade dos debates, não cabe aqui esmiuçar conceitos, apontando contradições, mas apresentar uma conceituação que venha ajudar a entender o que é Sociedade Civil Global, ainda que seja generalista. Linked to territories but not restricted to territory, caught up in a vast variety of overlapping and interlocking institutuins and webs of groups afiliations, these actors talk, think, interpret, question, negotiate, comply, innovate, resist. Their recalcitrance in the face of classification is a basic feature of global civil society, which is never a fixed entity, but Always a temporary assembly, subject to reshuffling and reassembly. Static measures, like the numbers of INGOs registered within a country, fail to capture many of its qualities. Dynamism is a choronic feature of global civil society: not the dynamism of the restless sea (a naturalistic smile suggested by Victor Pérez-Diaz), but a form of self-reflexive dynamism market by innovation, conflict, compromise, consensus, as well as rising awareness of the syncretic architecture, the contigencies and dilemas of global civil society itself (KAENE, 2014, p.7).
A conceituação trazida por Keane (2014) é por ele proposta ser utilizada como um tipo-ideal, o que seria falho incongruente com o prisma historicista aqui assumido. Não se pretende entender a Sociedade Civil Global dessa forma, mas é reconhecido aqui que este conceito preenche o vácuo da necessidade de tornar o ator cognoscível, o que foi feito de maneira a não dar demasiada precisão viesse a impedir possibilidades futuras de desenvolvimento desse ator em constante transformação.
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Global civil society is neither a static object nor a fait accompli. It is an unfinished Project that consists of sometimes thick, sometimes thinly stretched networks, pyramids and hub-and-spoke clusters of socio-economic institutions and actors who organize themselves across borders, with the deliberate aim of drawing the world together in new ways. These non-governmental institutions and actors tend to pluralise power and to problematize violence; consequently, their peaceful or ‘civil’ effects are felt everywhere, here and there far and wide, to and from local áreas, throught wider regions, to planetary level itself. (KEANE, 2014, p.8).
Talvez o leitor possa precisar de uma definição mais clara capaz de trazer os gruposcomponentes que dão à Sociedade Civil Global heterogeneidade como característica e de fazer clara menção à desafiadora problematização da hegemonia vigente. Para atender a este anseio, a literatura nacional apresenta Elenaldo Teixeira (2002) como autor que se propõe a discutir o conceito – tal como Liszt Vieira e Herz e Hoffmann. Para Teixeira (2002), Sociedade Civil Global seria:
[...] conjunto de atores transnacionais (associações civis, organizações nãogovernamentais, movimentos sociais) que tentam monitorar questões que estão fora do controle de cada nação ( sistema monetário internacional, meio ambiente, novas formas de comunicação) e que buscam redefinir o papel das agências internacionais e suas relações com as instituições nacionais, organizações da sociedade civil, de forma a adotar regras e princípios democráticos (p.55).
Para além do papel ao qual se propõe a Sociedade Civil Global, notadamente emancipatório pelo levantamento de temas alternativos que colidem com os ditames da hegemonia neoliberal, atenta-se para os componentes dela: atores vinculados a territórios nacionais em prol de uma influência na política internacional. Mais do que a tentativa de se entender o que é Sociedade Civil Global, este conceito é uma resposta à tentativa de entender os atores que a compõe em torno de uma dinâmica e propósito de escala global. [...] busca-se definir, com a noção de “sociedade civil global”, um conjunto de atores heterogêneos que atuam no sistema internacional em torno de alguns valores e da criação de espaços públicos em que possam debater as políticas dos organismos internacionais e rever as tendências perversas da globalização. (TEIXEIRA, 2002, p.56).
São reincidentes as considerações sobre a proposta da Sociedade Civil acerca da construção um novo mundo, unindo esforços através das fronteiras em busca de maior democracia nas políticas globais. Nesse projeto verifica-se o delineamento de novos temas – meio ambiente, direitos humanos, culturais, etc. –, o pluralismo característico desta agenda e a condução desta pela Sociedade Civil Global, que apesar de se estender numa rede global, é composta por Sociedades Civis arraigadas à esfera doméstica. Faz parte de uma construção que deve enxergar a Sociedade Civil Global como o que é e suas possibilidades, sem cair em idealismos que superestimem sua capacidade de resposta
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nem subestime o papel preponderante que continua tendo o Estado na política internacional. Afinal, a Sociedade Civil Global: Está longe de ser a solução definitiva aos problemas que ela própria levanta. [...]é um movimento embrionário, em ritmo de crescimento e cheio de apostas e imaginação política. Os Estados nacionais continuam sendo a principal instituição que processa os temas públicos internos e o principal ator no sistema político internacional. (TREVISOL, 2014, p.12-22).
Além disso, não se pode negligenciar o caráter dual da própria Sociedade Civil Global, o que não poderia ser de outra forma, uma vez considerado o pluralismo de atores não-estatais que a compõe. Keane destaca-os: Individuals, households, profit-seeking businesses, not-for-profit non governamental organisations, coalition, social and linguistic communities and cultural identities. It feeds upon the work of media celebrities and past or present public personalities – from Gandhi, Bill Gates [...] It includes charities, think-tanks, prominent intellectuals [...], campaigning and lobby groups, citizens´ protest responsible for ‘clusters of performances’ small and large corporate firms, independente media, Interrnet groups and websites [...] It comprises bodies like Amnesty International, Sony [...] Indigenous Peoples Bio-Diversity Network, Transparency International[...], the Global Coral Reef Monitoring Network, the Ford Foundation, Shack/Slum Dwellers International, Women Living Under Muslim Laws, News Corporation International[...] (2014, p.8-9).
Essa amostra de Sociedade Civil Global contém representação dos dois pesos que compõe balança da política internacional. Polarização em dois extremos estão os interesses hegemônicos, que, além de serem sustentados por seus promotores e beneficiados, também encontram apoio na parcela da Sociedade Civil cooptada pela hegemonia, chamada por Stephen Gill (2014) de Market Civilisation, que funciona dentro da lógica imposta pelo mercado; versus os interesses da Sociedade Civil crítica, que põe em prática a filosofia da práxis. Também Cox reconhece a presença, na esfera civil global, de atores econômicos, e por serem desta natureza, consequentemente alinhados à hegemonia vigente. Dessa maneira, nem sempre a Sociedade Civil Global reverbera em seus interesses o atendimento a esferas não priorizadas pela hegemonia neoliberal globalizada. No entanto, também tendo sido encontradas representações de minorias – indígenas, mulheres vivendo sob leis mulçumanas, etc., bem como movimentos demandantes de uma resolução para os problemas originados da hegemonia, também deve-se concluir a existência do aspecto contra-hegemônico da Sociedade Civil Global. Apesar da diversidade de propósitos e interesses, algo pode-se colher de ponto em comum entre todos esses atores: Considered together, these institutions and actors constitute a vast, interconnected and multi-layered non-governmental space that comprises many hundreds of thousands of more-or less self-directing ways of life. All of these forms of life have at
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least one thing in common: across vast geographic distances and despite barriers of time, they deliberately organize themselves and conduct their cross-border social activities, business and politics outside the boundaries of governamental structures (KEANE, 2014, p.9).
De forma, não se pode fechar os olhos para a dimensão internacional dessa Sociedade, que atuando na mão ou na contramão da hegemonia, é um composto de atores domésticos que se lançam no ambiente internacional e passam a atuar a endereçar suas ações – pensar, interpretar, questionar, resistir, mobilizar – ao ambiente internacional, ainda que elas venham a precisar de uma delineação territorial para se concretizar. Estamos, por esse motivo, tratando de um ator internacional.
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UM ESTUDO DE CASO: O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
3.1 O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL EM SEU CONTEXTO
Como antes, a apresentação do contexto histórico deve preceder outros aprofundamentos a respeito do objeto estudado, que, neste capítulo é o Fórum Social Mundial (FSM), que interage de tal forma com o contexto histórico e a hegemonia que é, em si próprio, uma resposta a eles. Em outras palavras, esse panorama dialético é uma condicionalidade à existência do FSM tão forte que chega a ser determinante. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2014), podem existir duas possibilidades de uso para a globalização. Em uma delas é usada pelo que vem aqui sendo chamado de globalização neoliberal. Neste caso, o fenômeno da globalização se vê subordinado à lógica do mercado, utilizando-o como recurso para colocar a economia sempre em primeiro plano. A segunda serve à edificação de um outro mundo, diferente deste definido pelo campo econômico. Esta via abre espaço, graças às comunicações, para a construção do projeto emancipatório que, como foi pontuado, é orquestrado pela Sociedade Civil Global. O Fórum Social Mundial faz uso nesta última possibilidade. Originado do processo dialético da contemporaneidade, - que fazem confrontar-se o modelo neoliberal e suas forças versus os anseios da Sociedade Civil contra-hegemônica – serve como fomento à síntese: alternativa que vem sendo construída, isto é, o projeto emancipatório. Em outras palavras, o Fórum Social Mundial apresenta como resultado dessa interação a efervescência do exercício crítico no âmago da Sociedade Civil Global, derivando na construção de uma utopia a partir da utilização dos recursos oferecidos pelo fenômeno da globalização, como será melhor detalhado mais adiante. Em termos marxistas, pode ser dito que globalização neoliberal hegemônica apresentase como tese, as insatisfações das Sociedades Civis de diversas origens geográficas como antítese e a síntese está plasmada na resistência contra-hegemônica através do projeto utópico que se está esboçando no interior dessa arena propositiva que é o Fórum Social Mundial.
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Já foi apresentada a globalização neoliberal e seus efeitos práticos, mas retomar a discussão reforça a importância desse ponto para o Fórum Social Mundial. Então, de maneira resumida, o que a globalização é hoje? François Houtart (2014) responde da seguinte forma: It’s an economic process with political, military and cultural support. It’s a new stage in the neoliberal phase of capital accumulation, which began in the mid seventies, with what is known as the Washington consensus. (s/n).
A globalização neoliberal apresenta em seu discurso divergências que criam um gap, isto é, um abismo entre sua retórica e sua prática. Como foi bem exposto por Stephen Gill: [...]neoliberal discurse of governance that stress the efficienty, welfare, and freedom of Market” [...]is contradictory: it promotes global economic integration (and hence the need for global public goods), but also generates depletion of resourses and environment, as well as undermining the traditional tax base and the capacity to provide public goods (2014, p.419).
Isto é, o modelo neoliberal implica atendimento à lógica do mercado que, segundo Houtart (2014), é induzido por recomendações de instituições financeiras internacionais através de seus programas de ajustes estruturais, levando a privatizações de setores de serviços públicos, arrochos salariais e outras medidas que fazem gerar mais fontes de insatisfações. Desse cenário adverso para grande parcela da humanidade emerge a “insatisfação com relação aos danos e omissões do neoliberalismo” que, ao atingir o limite do inaceitável, faz “gerar um grande interesse em abordagens transformadoras para a globalização”. (SHOLTE, 2014, p.15, tradução nossa). Essa transformação é guinada pelo exercício da liberdade em seu sentido mais completo, transcendente ao campo mercadológico. O produto desse cenário de crise precisa ser forjado, afinal, não se espera que ajustes pontuais eliminem problemas nascidos do funcionamento do modelo econômico e político atual. Também não se espera que haja uma alternativa pronta para substituir o modelo neoliberal afinal, “o Fórum Social Mundial não pode se tornar simplesmente um supermercado de alternativas” (HOUTART, 2014, s/n). Segundo Boaventura de Sousa Santos (2014, p.9), o Fórum tem uma dimensão utópica e ela “consiste em proclamar a existência de alternativas à globalização neoliberal”, emancipar do pensamento único e condicionado de que o futuro não pode ser diferente é fundamental. Desacreditar na possibilidade de alternativas é tolher o futuro, o que vem sendo tentado pela engrenagem hegemônica; assim ela se sustenta. Em outras palavras, Milton Santos descreve: [...]Além das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o discurso da globalização serve de alicerce às ações hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa
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sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa. (2014, p.78).
Cabe esclarecer que utópico é algo que ainda não foi realizado, que não encontra correspondência na realidade, sendo, portanto, momentaneamente irreal. Aconselha-se cautela com esta palavra, é preciso desmistificá-la para que ela se livre do caráter pejorativo que a acompanha. Segundo Lowy, ao tratar sobre o conceito de utopia em Mannheim, diz: O pensamento utópico é o que aspira a um estado não existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não “irrealizável” (2009, p.1415).
Dessa forma, o discurso neoliberal de que o futuro é um “presente ampliado” é uma tentativa de cooptar mais pessoas, inserindo-as na letargia, na inação. Para construir outro mundo é preciso primeiramente se emancipar do consentimento imposto sobre a imutabilidade do presente, é preciso ir além: criticá-lo. Faz-se necessário praticar o que a retórica chama de irrealizável e construir uma utopia para romper a ordem estabelecida. Esse projeto utópico encontrou espaço no FSM, que nasce exatamente com o propósito de fazer surgir um modelo alternativo ao neoliberal. Graças à utilização dos recursos oferecidos pela globalização, o contexto histórico atual torna possível uma emergência da utopia gestada no FSM. Assim, combinando propósitos políticos com os sistemas técnicos característicos da globalização – cibernética, informática, eletrônica (SANTOS, 2014) – torna-se plausível a construção de outro mundo. O processo de organização do Fórum, espaço para construção do projeto contra-hegemônico, apoia-se nestas técnicas, “Afinal, a mobilização e todo o sistema de inscrições para participação e proposição de atividades são realizados pela Internet.” (FSM, 2014e, p. 35). Essa nova ordem de caráter técnico é capaz de abrir novas possibilidades tanto a diretores corporativos que realizam negócios internacionais por meio de redes quanto para Sociedades Civis insatisfeitas com a vida e prontas a se organizar em um espaço como é o Fórum Social Mundial e fazer com que ele ganhe vida ao ponto de se auto-organizar com os mesmos instrumentos. Os representantes da tese e da antítese do mundo globalizado utilizam a mesma via de organização. A ordem técnica, sobre a qual assenta uma a ordem social planetária e da qual é inseparável, criando, juntas, novas relações entre “espaço” e “tempo”, agora unificados sob bases empíricas.” [...] “A partir dessas duas ordens, se constituem, paralelamente, uma razão global e uma razão local que em cada lugar se superpõem e, num processo dialético, tanto se associam, quanto se contrariam, graças à própria ordem (SANTOS, 1996, p.266-267).
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Em sua Carta de Princípios, o Fórum se apresenta como um processo de dimensão mundial que tem por intuito fazer “prevalecer uma globalização solidária” articulando movimentos e organizações da sociedade civil de todos os países do mundo. (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014). Fica claro que não se trata de um movimento contra a globalização, pois só através das ferramentas trazidas pela revolução científico-tecnológica a referida articulação é viabilizada. A partir do contato e interação, do conhecimento da realidade do outro permitido pela convivência em um mesmo espaço, apresenta-se àqueles sujeitos sociais presentes no FSM aquilo que Milton Santos (1996, p. 165-166) chama de “novas possibilidades de ampliação de consciência”. As Sociedades Civis de diferentes origens territoriais alcançam, então, uma percepção da realidade material e intelectual imposta: privações em variados campos da vida que atingem a todas as localizações geográficas. Por este motivo, o FSM se faz terreno fértil para o exercício e a emergência da crítica sistêmica. De fato, a globalização hoje encontra duplo uso, cada um atendendo a interesses específicos e antagônicos. Nesse mesmo contexto histórico localiza-se o modelo neoliberal e o Fórum Social Mundial com os aparelhos ideológicos de Estado – ou seja, a Sociedade Civil, em termos gramscianos – em seu interior, lutando para emancipar-se desse modelo que lhe é adverso. Tendo sido recapitulado o atual estágio da globalização neoliberal e suas consequências, a seção seguinte tratará de abordar a agenda alternativa à hegemonia, terminando em uma explicação do espaço (ou movimento) no qual ela apresenta-se como resistência contra-hegemônica. Assim, tal como foi no capítulo anterior que tratou de Sociedade Civil Global, a globalização neoliberal é, também neste capítulo, foi o meio que permitiu a compreensão do Fórum Social Mundial.
3.2 AGENDA NO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Pensar em uma agenda que represente a grande heterogeneidade das expressões da Sociedade Civil agrupadas no Fórum Social Mundial é, sem dúvida, um desafio para os
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próprios participantes. Acresce a essa complexidade o fato de se tratarem de Sociedades Civis de diferentes nacionalidades. Essas Sociedades Civis são tão distintas em expressão e modelo associativo que a uma das únicas denominações capaz de torná-la cognoscível é Sociedade Civil Global. Em seu interior se encontra a multitude, outro conceito que pode ajudar a defini-la, já que seu significado é fidedigno à composição plural e heterogênea da Sociedade Civil Global. Multitude pode ser compreendida da seguinte forma: A multitude [...] é composta de inúmeras diferenças internas que jamais podem ser reduzidas a uma identidade unitária: “Diferentes culturas, raças, etnicidades, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes modos de vida; diferentes visões de mundo e diferentes desejos. A multitude é a multiplicação de todas essas singularidades”. (ESPINHEIRA, et al. apud HARDT; NEGRI, 2011, p. 41).
A multitude se fraciona em variadas frentes de luta, cada uma tendo diferentes prioridades: meio ambiente, direitos humanos, direitos trabalhistas, maior controle da economia internacional, diversidade cultural, questões étnicas e de gênero, justiça social, entre outras. Todas essas questões podem ser identificadas nos programas das diversas realizações do Fórum. São oficinas, seminários, workshops, atividades culturais, que trazem para discussão temas considerados importantes por movimentos sociais, organizações não-governamentais, comunidades, redes, associações, indivíduos. As programações do Fórum Social Mundial revelam muitos temas que são apresentados nos formatos descritos acima. Seguem alguns deles pontuados em seus títulos traduzidos: As Políticas de Ajuda Internacional; Fome e Pobreza; Exclusão, discriminação baseada em casta, classe, raça, gênero, etnia, religião, sexualidade, capacidade/incapacidade; Imperialismo cultural modelando identidades subordinadas; Segurança Humana; Direitos da Comunidade sobre Recursos, Direitos Ambientais, Direito à Informação; Espaços Econômicos Alternativos; Direito das Crianças; Comércio ou Justiça; Governança Justa e Democrática22 (INDIA SOCIAL FORUM, 2014); Problemática da educação superior pública na Colômbia, partindo da perspectiva das organizações estudantis; Direitos alimentícios e comércio internacional; Como as negociações de livre comércio afetam aos direitos das mulheres sobre a terra e a água; Campanha Zero Desalojamento: pela unidade global dos movimentos sociais de luta por moradia; Campanha de Controle de Armas; Infiltração militar
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Esses são apenas alguns exemplos colhidos da programação do Fórum em 2004, na Índia, e em 2006, na Venezuela. Estas duas realizações atendem ao propósito de exemplificar a diversidade de movimentos no Fórum Social Mundial.
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dos Estados Unidos na América Latina e intervencionismo; Máquina de transformar o mundo: A web como ferramenta para a universalização da comunicação das oportunidades entre Organizações e a sociedade civil; Soberania alimentar na América Latina: Lutas agrárias e de incidência urbano-rural. (FSM, 2014d). O desafio de incorporar todos esses temas a uma agenda é tão grande quanto a dimensão internacional do ator demandante – Sociedade Civil Global. No entanto, o ponto 14 da Carta de Princípios do FSM nos ajuda a avançar nessa reflexão, sua relevância se dá por referir-se a cidadania planetária23. Este conceito leva ao reconhecimento da diversidade interesses que expressos no Fórum, o que acaba por consolidar e definir os elementos prioritários da agenda. Uma cidadania planetária é por essência uma cidadania integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas nos direitos sociais, políticos, culturais e institucionais, mas também econômico-financeiros. (GADOTTI, 2014, p.6).
Segundo Aquino: [...] a cidadania planetária é uma expressão adotada para expressar um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstram uma nova percepção da Terra como uma única comunidade, indicando uma visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial [...] ainda em formação, uma nova maneira de ver o mundo como única comunidade, distanciando-se do processo de globalização centrado num modelo econômico e político excludente (2014, p.192) .
Como visto, trata-se de uma definição que converge com o propósito do Fórum Social Mundial e incorpora em seu âmago os DHESCA – direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; dessa maneira, em uma sigla capaz de sistematizar de todos os campos que devem passar por mudança, essa composição de direitos é entendida aqui como uma plataforma ampla e legítima das demandas da Sociedade Civil Global expressa no Fórum Social Mundial. Sistematizada em uma sigla e agenda e sintonizada com um projeto utópico comum, trata-se de uma agenda muito ampla. A pluralidade de demandas que são expressas nela corrobora com o distanciamento do processo de globalização que tem por eixo um modelo econômico e político excludente. (AQUINO, 2014), e, em última análise, com a busca de um único fim almejado por todos aqueles que a construíram. O padrão que serve como elo de ligação para esta plataforma é o projeto contrahegemônico. Conforme vem indicado na Carta de Princípios do FSM, o caminho que permite 23
As produções acadêmicas que tratam sobre cidadania planetária vinculam com frequência este conceito à sustentabilidade, ecodesenvolvimento, meio ambiente, o que leva a entender perceber a vastidão do conceito de desenvolvimento sustentável, estando nele contido o pluralismo de temas de interesse da Sociedade Civil Global que se expressa no Fórum Social Mundial.
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a congregação do que aqui se chama de multitude em torno de um objetivo comum é a oposição ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo capitalismo. Só através deste propósito esta plataforma se mantém íntegra. É isso o que guia e agrega essa Sociedade Civil Global em uma agenda única que é um novo projeto de mundo. No FSM ocorre uma declaração de apoio colaborativo em prol da emancipação da hegemonia neoliberal, já que desta originam os constrangimentos que levam as Sociedades Civis a manifestarem seu descontentamento e a organizarem agendas paralelas às de instituições internacionais e Estados. As Sociedades Civis superam suas diferenças, “minimizam aquilo que as divide e maximizam aquilo que as une”, (SANTOS, 2014, p.11) é daí que surge a agenda do FSM: da minimização de diferenças em prol da concordância sobre o que não se pode mais aceitar. A dimensão utópica do FSM consiste em afirmar a possibilidade de uma globalização contra-hegemónica. Por outras palavras, a utopia do FSM afirma-se mais como negatividade (a definição daquilo que critica) do que como positividade (a definição daquilo a que aspira). [...] Esse projecto utópico baseado na negação do presente em vez de assentar na definição do futuro, concentrado nos processos de intercâmbio entre os movimentos e não na avaliação e hierarquização do conteúdo político destes, é o mais importante fator de coesão do FSM (SANTOS, 2014, p.1011).
A agenda que toma forma no FSM é antecipada e condicionado ao processo crítico necessário à emancipação social, capaz de sistematizar informações e dar algum sentido às variadas demandas que incorporam essa nova agenda para a construção de um novo mundo. A materialização do resultado do processo crítico em uma agenda, é, portanto, uma conquista da filosofia da práxis posta em prática em conjunto pelos atores sociais que se encontram no FSM. Então, frisa-se aqui que este produto só é possível com a construção coletiva e entendimento das causas – exercício da práxis – . As insatisfações pontuadas evidenciadas em demandas e proposições dão corpo ao propósito político da Sociedade Civil Global e realimentam a tendência de desacorrentamento da “hegemonia do pensamento e do poder neoliberal” por parte deste ator. (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014a) Pela via da disseminação da crítica que encontra espaço no FSM e pelo consequente aumento de número de pessoas defensoras do objetivo político da Sociedade Civil Global contra-hegemônica, o Fórum Social Mundial é um espaço para a resistência à hegemonia neoliberal, e atua estimulando o envolvimento de atores sociais nas discussões e proposições; por fim, na elaboração de uma nova agenda para guiar países. É entendido que os indivíduos, isso é, aqueles que compõe a resistência, são fundamentais nesse processo.
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Então, pelo convite à participação de todos aqueles que possam colaborar com a construção de um novo mundo, toda expressão da Sociedade Civil que possa contribuir com essa utopia deve encontrar, no Fórum Social Mundial, abrigo para suas demandas. Para Boaventura de Sousa Santos (2014, p.11), o FSM é “uma utopia radicalmente democrática”. Ele precisa se fortalecer a partir da resistência e esta precisa mostrar o que quer, isto é, seus interesses, que podem não ser os mesmos, mas convergem para um único fim. Os movimentos e organizações colocam entre parênteses as clivagens que os dividem, tanto quanto for necessário para afirmar a possibilidade de uma globalização contra-hegemônica.” (SANTOS, 2014, p.11).
Mais do que os temas específicos de interesse de cada dos seus participantes, o Fórum tem na democracia a via de construção legítima do seu projeto utópico. A radicalização da democracia é a inclusão de todos nos rumos do novo mundo, o que vem sendo buscado pelo Fórum. Cabe mencionar, porém, que passos ainda precisam ser dados para a materialização desse objetivo, ainda assim, isso não desqualifica seu anseio em alcançar esse objetivo. Devido à necessidade de construir um projeto de mundo sobre bases legítimas, participativas, a agenda do Fórum Social Mundial encontra o seu primeiro passo na democratização da governança global24 para que o novo mundo a ser construído atenda aos interesses dos demandantes de hoje. Todos precisam ser ouvidos e atendidos. A Carta dos Princípios do FSM trás em seu ponto quatro:
As alternativas propostas no Fórum Social Mundial [...] visam fazer prevalecer, como uma nova etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos. (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p. 1).
Os temas da agenda do FSM em sua versão integral podem partir de várias áreas: social, ambiental, humanitária, etc; porém é na política que encontra sua dimensão estratégica, pois só através da participação democrática na política internacional será garantido que esta 24
Segundo Andrew Hurrell, a sociedade civil transnacional, considerada com um cenário conflituoso dentro do qual estão grupos, torna-se personagem central desta governança global, que por ele é tratada como um “consenso quanto a procedimentos”, isto é, “o acordo entre estados e outros grupos políticos sobre a estrutura de regras e instituições internacionais por meio da qual os choques de interesses e conflitos de valores possam ser negociados, por meio da qual a acomodação seja possível, e pela qual o unilateralismo dos poderosos possa ser efetivamente ‘domado’.” Disponível em: Acesso em: 15 de ago. 2014. A título de esclarecimento, cabe registrar que a conflituosidade por ele mencionada é reconhecida neste trabalho, porém, tratada de maneira secundária, já que o foco aqui é a Sociedade Civil Global contra-hegemônica, cuja antítese é a Sociedade Civil Global hegemônica.
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funcione a “serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos”, (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p. 1). Falar em agenda do Fórum Social Mundial sem falar em democracia é suprimir a presença de minorias na arena de tomada de decisão quanto aos rumos do mundo e apagar todas as possibilidades de atendimento à diversidade de pleitos da Sociedade Civil Global; em outras palavras, é descaracterizar o Fórum. Por isso, entende-se aqui que a democratização da política internacional é o mais estratégico ponto da agenda que vem sendo construída no Fórum Social Mundial, já que prepara terreno para a inclusão de todas as demais demandas no cenário internacional. Trata-se de uma eficiente modelo de enfrentamento da hegemonia do neoliberalismo visto que, tal como afirma Scholte (2014), a fonte da injustiça social está nos déficits democráticos que marcam o modelo neoliberal. Reverter esse quadro é fundamental para a construção legítima de um outro mundo.
3.3 ESCLARECIMENTOS SOBRE A NATUREZA DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Entendendo-o em função de seu contexto e da agenda nele organizada, o Fórum Social Mundial se consolida de maneira que por vários motivos que contribuem para dificultar sua conceituação. Muitas vezes denominado “movimento dos movimentos”, outras vezes rotulado como “evento”, e “espaço”, o Fórum transpassa essas definições, sendo inovador. Segundo Boaventura de Sousa Santos, a política moderna não encontra uma via que possibilite uma resposta sobre o que é o Fórum: [...] o FSM não está estruturado de acordo com qualquer dos modelos de organização política moderna, seja ele o do centralismo democrático, o da democracia representativa ou o da democracia participativa (2014, p.7).
Isso tudo se deve a algumas possibilidades abertas pelas atividades do Fórum; juntas, elas fazem com que ele não encontre similares: agrega movimentos sociais e entidades da sociedade civil “de todos os países do mundo” (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p.1) em debates, articulação, apresentação de propostas,
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proposição de alternativas. Todas estas ações giram em torno da defesa de um outro mundo possível, slogan do Fórum Social Mundial. Sem dúvida, seja o que for, o Fórum abriga uma grande gama de temas, de atividades em seu interior, e de representações da Sociedade Civil, sendo, portanto, multifuncional e multifacetário. Para Santos (2014), sua inovação está justamente na incorporação de temas diferentes e na sua dimensão internacional. Ambas as características lhe dão o caráter de unicidade. Ademais, nenhuma definição mais precisa pode ser dada a respeito, fazendo com que qualquer tentativa de defini-lo caia em uma abstração desejada e estratégica para o próprio Fórum, seus atores e propósito. Isto é: É interessante perceber que existe uma grande preocupação expressa nesta Carta de Princípios com a manutenção do FSM como um espaço de poucas definições para que ele não se constitua um sujeito social específico e acabe por excluir ou limitar qualquer tipo de demanda/grupo social que reivindique a cidadania. [...] O FSM não pretende ser um sujeito que apresente uma face específica, mas tem como objetivo garantir a multiplicidade de faces e sujeitos na arena social. (PUC-RIO, 2014, p.109110).
Além de não caber definições sobre o que o Fórum é em seu todo, tampouco ele quer definir-se. Conforme pode ser visto na Carta de Princípios de Porto Alegre, que trás, em seus 14 pontos, delineações capazes de ajudar a esboçar o que se pretende com o Fórum, mas acautelam-se para que se mantenha a abstração, terreno fértil para as possibilidades ainda irrealizadas. Cabe, portanto, tomar a via da negação, definindo o que ele não é: O FSM não é um evento. Nem é uma sucessão de eventos, embora procure dramatizar reuniões formais que promove. Não é uma conferência acadêmica, embora para ele convirjam os contributos de muitos investigadores. Não é um partido ou uma internacional de partidos, apesar de nele participarem militantes e activistas para muitos partidos de todo mundo. Não é uma organização nãogovernamental ou uma confederação de organizações não-governamentais, muito embora a sua concepção e organização devam bastante às organizações nãogovernamentais. Não é um movimento social, apesar de muitas vezes se autodesignar como movimento dos movimentos. Embora se apresente enquanto agente de transformação social, o FSM rejeita a noção de um sujeito histórico e não atribui prioridade a qualquer actor social específico nesse processo de transformação social. (SANTOS, 2014, p.6).
Assim, pela negação, é aberto um mundo de possibilidades ainda não exploradas sobre o que o Fórum Social Mundial pode vir a se tornar.
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3.4 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL E O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Desde o início vem sendo apresentado o contexto e a agenda para então ser tratado do terceiro fator, a formação do ator. Tal como no capítulo anterior, este volta a apresentar a Sociedade Civil Global (SCG) no último momento, como fruto dos elementos antes expostos. A escolha pelo singular para denominar o FSM pode chamar atenção, tendo em vista as várias as edições desse acontecimento iniciado em 2001, em Porto Alegre. Esse evento vem sendo realizado anualmente, acontecendo novamente em Porto Alegre nos dois anos seguintes e em 2005, alcançando a Ásia em 2004, onde foi realizado em Mumbai (Índia), e se distribuindo ainda mais no ano de 2006, quando alcança as cidades de Bamako (Mali), Caracas (Venezuela), e Karachi (Paquistão). Então, talvez o mais indicado fosse chamarmos de Fóruns Sociais Mundiais, ou ainda escolher uma edição em particular para ser estudada. Porém, há consonância nas atividades em andamento neles; ela é expressa em uma razão de ser comum: a “articulação altermundista” em prol da construção de um outro mundo pelo “enfrentamento ao neoliberalismo”. Segundo avaliações, o FSM é “avaliado como um dos espaços mais importantes de articulação altermundialista no enfrentamento ao neoliberalismo” (IBASE, 2014d, p.32). Essa é a função a qual o FSM atende, e, por mais que abundem realizações, ele continua tendo o mesmo papel, sendo reafirmado e consolidado a cada edição. Em outras palavras, guiado pela certeza de que “um outro mundo é possível”, o FSM “[...] se torna um processo permanente de busca e construção de alternativas, que não se reduz aos eventos em que se apoi[a]” (COMITÊ ORGANIZADOR DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p.1). As informações colhidas em pesquisas secundárias relativas às diversas realizações do FSM ajudarão a entendê-lo como espaço de expressão que por si só não tem sentido, senão compreendido através dos atores que o preenchem, utilizando-o como “caixa de ressonância e amplificação” (ESPINHEIRA, et al., 2011, p.41) de suas ideias. O FSM é um espaço construído para ser preenchido por ideias, estratégias manifestadas por aquela parcela da sociedade civil que é contra a globalização em sua expressão economicista e “perversa”, como já verificado por Boaventura de Sousa Santos (2014).
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É um reduto de inclusão participativa, ainda em desenvolvimento, onde o projeto antineoliberal sobressai e fortalece a contra-corrente da hegemonia. Segundo informações reveladas pelo IBASE (2014c) evento por evento, essa resistência hegemônica vai engrossando suas fileiras em número de participantes – excetuando o Fórum de 2006, que teve decréscimo no número de participantes –. Estes participantes escancaram as contradições da globalização econômica em curso, revelam seus problemas daí decorrentes e constroem alternativas. O Fórum Social Mundial, como espaço de debates, é um movimento de idéias que estimula a reflexão, e a disseminação transparente dos resultados dessa reflexão, sobre os mecanismos e instrumentos da dominação do capital, sobre os meios e ações de resistência e superação dessa dominação, sobre as alternativas propostas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização capitalista, com suas dimensões racistas, sexistas e destruidoras do meio ambiente está criando, internacionalmente e no interior dos países. (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p. 2).
Pode parecer petulante pensar em campo participativo que permita a expressão e a articulação transfronteiriça de atores contra a hegemonia em vigência, porém é isto o que vem acontecendo continuamente. Os elementos que fundamentam as críticas endereçadas a tal dose de utopia não são fortes o bastante para criar dúvidas sobre a existência do FSM em sua dimensão global, mas apenas revelam-se como desafios para seu crescimento, como será mostrado mais adiante ao tratar do predomínio dos latino-americanos no FSM. Foi mencionado o altermundismo sem, no entanto, o explicar. Sua explicação endossa o caráter essencialmente emancipatório do Fórum Social Mundial, como pode ser constatado logo abaixo: Para el movimiento altermundista, la emancipación del Hombre sólo es posible en una sociedad alternativa a la neoliberal, que no oprima a los más desfavorecidos. La nueva sociedad emancipadora será aquella donde cada sujeto sea autónomo y por tanto, capaz de tomar sus propias decisiones atendiendo a sus necesidades (GARCÍA, 2014, p.339).
Os sujeitos se auto afirmam neste movimento. Os atores desse ato são muito diversificados em natureza e em origem. São entidades, movimentos sociais, ONGs, grupos religiosos, associações, grupos culturais, sindicatos, indivíduos não vinculados a grupos. Eles têm variadas nacionalidades – o Fórum de 2005 registrou representantes de 149 países (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014e) –. No âmbito do Fórum, eles fortalecem a sua interação, tomam conhecimento do que acontece com o outro (SANTOS, 2014), articulam-se e, desse processo, deriva a criação de uma rede internacional com uma agenda altermundista (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014c).
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Em outras palavras, o Fórum Social Mundial é um espaço e um movimento, ocupado e protagonizado por Sociedades Civis de diferentes nacionalidades articuladas, sendo, portanto, protagonizado pelo que se conhece por Sociedade Civil Global, que, tal como já foi apresentado através das palavras de Keane (2014, p.8-9), é composta de indivíduos, comunidades linguísticas e culturais, organizações não governamentais sem fins lucrativos. Alguns outros componentes, apesar de também fazerem parte da Sociedade Civil Global, por motivos óbvios não são tão evidentes no FSM, pois ele é composto majoritariamente pela Sociedade Civil Global contra-hegemônica. Aquela parcela da SCG que funciona na lógica da globalização econômica e busca mantê-la, encontra no Fórum Mundial de Davos25 um espaço mais afim aos seus interesses. Como é evidenciado, o FSM agrega sujeitos sociais muito diferentes, com uma enorme diversidade de pensar, diferentes visões de mundo (ESPINHEIRA et al., 2011) e agendas próprias que se harmonizam com as outras tantas lá presentes, e convergem em uma agenda comum e multifacetada. Em números que variam entre 20.000, referente à realização do Fórum de 2001 e 155.000, sua quinta edição, o Fórum Social Mundial revela grande diversidade de atores sociais, a “multitude”. Essa diversidade é positiva por não ser excludente. As agendas dialogam e se integram a tal ponto que juntas formam a agenda altermundista. Nesta, revelam-se as várias facetas da luta contra a globalização neoliberal são congregadas, interconectadas em um projeto de novo mundo. A pluralidade é palavra de ordem; nesse espaço as demandas de minorias ganham visibilidade por serem interconectadas a outras tantas. Para a quinta edição do Fórum Social Mundial, ocorrida em janeiro de 2005 na cidade de Porto Alegre, Brasil, foi criado um espaço de debates específico e exclusivo para a temática indígena: o Puxirum de Artes e Saberes Indígenas.[...] A palavra Puxirum tem origem nhengatu, língua do Brasil colônia, que significa “reunião de esforços em prol de um objetivo comum”. E nessa “união de esforços” ficaram claros os objetivos do grupo: aproveitar um evento como o Fórum Social Mundial para criar maior visibilidade às questões indígenas a nível nacional e internacional principalmente aproximar povos para a construção de um movimento indígena transnacional eficaz na defesa de direitos (RUSSO, 2014, p.199).
O espaço do FSM serve para a transnacionalização dos atores sociais – que lá apresentam sua cultura, sua arte, sua identidade – tornando mais espessa a Sociedade Civil Global que, sendo também composta por movimentos sociais, tem no movimento feminista uma expressão. 25
Fórum econômico que reúne presidentes de Bancos Centrais, altos representantes de organismos como o FMI e o Banco Mundial, Ministros da Economia, além de políticos, representantes da sociedade civil, acadêmicos e homens de negócios.
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Este, concentrado na influência do discurso para a naturalização de relações de poder que tendem a subordinar mulheres aos homens, encontra no Fórum espaço de reflexão e oportunidade de reversão desse quadro, uma vez que a inclusão característica desta arena facilita que as mulheres lá presentes tenham maior autonomia para influenciar no planejamento de ações. O Fórum Social Mundial e a Rede de Movimentos Sociais que nele se criou têm sido nosso [da Marcha Mundial das Mulheres] terreno privilegiado para construir análises e agendas e para exercitar novas abordagens e formas de organização (NOBRE; FARIA, 2014, p.625).
O Fórum Social Mundial permite, em seu interior, maior articulação de igrejas e demais organizações religiosas, a exemplo da Coalizão Ecumênica:
A Coalizão Ecumênica bloco que congrega diversas organizações ecumênicas, agências de cooperação, igrejas e serviços diaconiais, de todo o mundo, para intervenção qualificada e articulada no FSM pretende, com estas atividades, estimular a reflexão aprofundada e a articulação em torno das temáticas definidas pelo grupo. (FSM, 2014b).
Da mesma forma que estes, outros atores podem ser nomeados por darem sua contribuição ao FSM, fazendo com ele seja um legítimo espaço para atuação da Sociedade Civil Global, por apresentar diversidade e em pluralidade de interesses – que convergem entre si. Os atores que compõem a programação e participam do FSM podem ser nomeados em alguns exemplos: Comunidade Zen Budista (Brasil); Asociacion Nacional de Redes Y Organizaciones Sociales (Venezuela); Bridge Initiative International (França); Fundacion de Estudios, Accion y Participacion Social (Equador); Sociedade Vegetariana Brasileira; Associação Ecológica Neo-humanista (Brasil) (FSM, 2014f); Movimentos Sociais Árabes; Movimiento Humanista de Buenos Aires (Argentina); Association pour la Taxation des Transactions financière et l'Aide aux Citoyen (França); União Nacional dos Camponeses (Moçambique); Rede Latinoamericana de Investigadores em Economia Social y Solidária (Brasil); Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (Brasil); e, para não negligenciar a categoria “indivíduos”, cabe uma exemplificação: também o renomado teórico da Teoria dos sistemas-mundo, Immanuel Wallerstein, já se fez presente no Fórum Social Mundial na qualidade de seminarista (INDIA SOCIAL FORUM, 2014), Essas indicações respondem ao anseio do leitor por exemplos práticos que possam deixar claro a quais atores se referem as categorias “movimentos sociais”, “associações”, “redes”, “coalizões” e “ONGs”. Também tornam evidentes os desejos de cada um deles, –
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que são diferentes, ainda que harmônicos,– seus modos de vida, e a natureza organizativa desses atores; compreensão que leva a reconhecer como é adequado o conceito “multitude” para definir a Sociedade Civil Global. Pode ser argumentado por críticos que a presença predominantemente latinoamericana – e notavelmente brasileira – no FSM, distorce o caráter “global” da Sociedade lá reunida. Deve, porém, ser dito que a Sociedade Civil Global encontra no Fórum um espaço político para sua expressão, contestação e planejamento emancipatório.
Não se pode
confundir o FSM com o ator que faz uso dele, este sim, pode ser de qualquer canto do mundo. O Fórum vem para atender a Sociedade Civil Global, cuja existência precede esse espaço hoje usado por ela como arena de manifestação. A dificuldade em aumentar o número de países lá representados é questão de distanciamento geográfico, e não da inexistência da Sociedade Civil Global. O desafio é incorporar ao FSM mais representantes desta Sociedade. A distância geográfica representa uma limitação à participação no Fórum, e o paíssede acaba imprimindo sua marca no público presente. Isso havia sido verificado em 2003, em Porto Alegre, em 2004, em Mumbai, e voltou a se repetir em 2005. Na Índia, a participação local correspondeu a 84% do total e, no Brasil, em 2005 a 80%. [...] países próximos à sede têm também número destacado de participantes (FSM, 2014e, p. 11-12).
É admitido, no entanto, que apesar de conseguir reunir parcelas da Sociedade Civil Global em seu âmago, o Fórum almeja aumentar a participação desse ator das Relações Internacionais, e uma estratégia para isso é revelar sua expressão em outros continentes, a partir de edições descentralizadas geograficamente, o que possibilita a incorporação de novos atores sociais demandantes ao espaço do Fórum. Cabe destacar a participação ampliada de indianos(as) em Porto Alegre em 2005 (2,5% das pessoas vindas do estrangeiro), que contrasta com a presença tímida em 2003 (0,6% dessas pessoas). Certamente, mente, tal aumento está ligado à realização do Fórum na Índia no ano de 2004 e confirma o êxito político da estratégia de deslocamento geográfico do FSM para ampliar e diversificar a participação que teve início naquele ano. (FSM, 2014e, p. 13).
Porém vencidas as limitações geográficas, o FSM é aberto para a participação de atores de todo e qualquer continente, como é afirmado nestes termos precisos: “O Fórum Social Mundial reúne e articula somente26 entidades e movimentos da sociedade civil de todos os países do mundo” (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 26
Entende-se aqui a palavra “somente” se refere à sociedade civil, de maneira a excluir a participação do FSM de atores governamentais. Como já foi apresentado, o conceito “sociedade civil” é extremamente complexo e sua perspectiva gramsciana evidencia sua vinculação com a esfera governamental. Porém, como documentos do FSM revelam a participação de coalizões, movimentos, organizações, igrejas, etc, é reconhecida sua participação neste espaço e estes participantes, apesar de estarem vinculados a um território específico e ligados a um Estado, se expressam de sua própria maneira organizacional.
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2014, p.1). Tal com indica sua Carta de Princípios, ele é um “[...] processo de caráter mundial. Todos os encontros que se realizem como parte desse processo tem dimensão internacional.” (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p.1) O Fórum Social Mundial é um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra (COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2014, p.1).
Assim, para resumir, cabem algumas considerações finais para essa etapa do capítulo 3: o Fórum Social Mundial é palco para a expressão do ator Sociedade Civil Global. Naquele espaço é gestado o projeto anti-neoliberal, que, por assim ser, é contra-hegemônico (SANTOS, 2014, p.4). Dessa forma, a Sociedade Civil Global que atua no Fórum Social Mundial divulgando suas insatisfações esforçando-se para construir modelos alternativos ao neoliberalismo é contra-hegemônica.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento da Teoria das Relações Internacionais (TRI) é uma reação ao dinamismo do cenário internacional que vai revelando novos atores ativos o suficiente para se firmarem nesse campo acadêmico que se dedica ao estudo da política internacional, conduzida tradicionalmente por Estados, e mais contemporaneamente por Organismos Internacionais, corporações, organizações não-governamentais e Sociedade Civil, conforme apresentam as variadas teorias da disciplina em questão. A transitoriedade do ambiente internacional recebe fortes influências de variáveis do contexto histórico do dado momento, que ao influírem sobre a realidade de maneira determinante, alteram cenários e contribuem para a construção de um mundo sempre provisório, mutável. A proposição de um outro mundo é plausível, tendo em vista a metamorfose do cenário internacional; porém ela está condicionada à existência de forças que atuem no sentido de transformá-lo. No que diz respeito a esta pretensão, muito se pode auferir da Sociedade Civil, que vivencia na prática a crise ambiental, precarização de condições sociais, encarecimento do preço de produtos alimentícios, declínio de políticas sociais, etc. Como foi visto, esses constrangimentos são impostos pela hegemonia do neoliberalismo que, através de suas políticas globais, gera tais desdobramentos perversos que implicam diretamente no cotidiano de localidades. Sendo assim, as adversidades pelas quais passam a Sociedade Civil são vinculadas umbilicalmente à política hegemônica atual, em uma relação de causa e efeito. Foi visto que há, na Sociedade Civil Global contra-hegemônica aqui estudada, interesse em transformar este mundo, em emancipar-se da causa e das consequências dos constrangimentos por ela impostos. Graças às contribuições do pensamento gramsciano pode-se perceber que o elo entre a realidade atual e aquela, ainda utópica, que se almeja alcançar. O conhecimento do contexto e variáveis faz parte do processo cognitivo de que impulsiona a mudança. Esse processo encontra respaldo acadêmico na Teoria Crítica pois, ancorada no entendimento historicista de que todo sujeito é submetido não só aos fatos como também à subjetividade de valores, esta corrente teórica aponta que todas as teorias, sem exceção, tendo partido de um sujeito, carregam em si uma tendência, servindo a um propósito específico.
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Tais indivíduos localizam-se na esfera da Sociedade Civil, que, considerada pela Teoria Crítica como ator, sintoniza com esta o mesmo propósito político: emancipar a humanidade dos constrangimentos por ela impostos ao uso-fruto da liberdade. Este propósito projetado na dimensão internacional envolve Sociedades Civis de diferentes nações, dando a este conjunto o nome “Sociedade Civil Global”. Esta, em função do da postura política assumida ser direcionada ao cenário internacional na proposição de um transformação profunda do modelo político-econômico atual, se consolida através da Teoria Crítica como ator das Relações Internacionais. O objetivo político defendido pela Teoria Crítica encontra na Sociedade Civil Global ator que arquiteta seu alcance. Para o êxito deste projeto emancipatório, o exercício gramsciano da filosofia da práxis – a assimilação de que teoria e a prática são concomitantes – apresenta-se como caminho fundamental para que esse novo ator logre uma contestação articulada da hegemonia da globalização neoliberal. O motivo disso é que, através da filosofia da práxis, as adversidades impostas à Sociedade Civil passam a ser percebidas como um problema coletivo, e não pontual. Essa compreensão dá unidade à multitude. Obviamente, as variáveis apesentadas no atual contexto histórico abrem espaço para essa nova dimensão da Sociedade Civil mais alinhada com as tendências deste ambiente contemporâneo. Reitera-se que o contexto histórico atual marcado pela a globalização neoliberal dialoga de maneira decisiva com a Sociedade Civil, sendo determinante para a insurgência da Sociedade Civil Global como novo ator global no cenário internacional. Para se chegar a este resultado dois fatores devem ser considerados: o desenvolvimento das comunicações capaz de aproximar Sociedades Civis, fazendo-as tomarem conhecimento mútuo da realidade que as circunda, e o produto desta integração que é a concretização de um processo de organização em torno do projeto contra-hegemônico que toma corpo em uma agenda multitemática. Sobre estes dois pilares está a resposta de como a Sociedade Civil pode ser caracterizada um ator para as Relações Internacionais: através de sua agenda direcionada a questões conduzidas internacionalmente por diretrizes políticas globalizadas, e através de sua articulação internacional que logra transpassar fronteiras e unir globalmente Sociedades Civis com o mesmo propósito utópico-emancipatório. Porém a utopia não deve ser considerada pura ao ponto de ser livre de interesses. O que agrega a Sociedade Civil em uma dimensão internacional é a simpatia entre os propósitos de cada uma, que se sintonizam com um projeto ambientalmente responsável e socialmente justo.
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A necessidade tanto de firmar internacionalmente uma agenda composta por temas considerados de importância secundária– cultura, direitos étnicos, meio ambiente, inclusão social, questões de gênero, etc. – por instituições com o poder de universalizar políticas, quanto a de preencher o vácuo na condução de um processo de resistência à primazia de aspectos econômicos sobre os demais são aspectos centrais para a Sociedade Civil Global. Por terem sido apresentados suportes teóricos que embasam essas considerações, foi cumprido o objetivo de pesquisar a convergência, no ambiente internacional, de interesses contra-hegemônicos impulsionados por Sociedades Civis. Eles convergem e consolidam-se em um ator novo defensor de uma agenda plural. O historicismo utilizado foi fundamental para apontar a emergência da Sociedade Civil Global como novo ator das Relações Internacionais. Este ator apresenta uma diálogo rico entre seus componentes – as Sociedade Civis de diferentes nações – mostrando a convergência interesses sólidos e claros vinculados a uma agenda global e contrários àquela já estabelecida. Trata-se de uma conquista para atores não-estatais que, apesar de não ter o peso de colocá-los a frente do Estado na condução da Relações Internacionais, dá a eles o diferencial de transcender seu exercício político em espaços de atuação como o Fórum Social Mundial, o que revela que a prática da Sociedade Civil Global vai além das delimitações territoriais que constrangem os Estados.
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ANEXO
Carta de Princípios do Fórum Social Mundial O Comitê de entidades brasileiras que idealizou e organizou o primeiro Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre de 25 a 30 de janeiro de 2001, considera necessário e legítimo, após avaliar os resultados desse Fórum e as expectativas que criou, estabelecer uma Carta de Princípios que oriente a continuidade dessa iniciativa. Os Princípios contidos na Carta, a ser respeitada por tod@s que queiram participar desse processo e organizar novas edições do Fórum Social Mundial, consolidam as decisões que presidiram a realização do Fórum de Porto Alegre e asseguraram seu êxito, e ampliam seu alcance, definindo orientações que decorrem da lógica dessas decisões. 1. O Fórum Social Mundial é um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra. 2. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi um evento localizado no tempo e no espaço. A partir de agora, na certeza proclamada em Porto Alegre de que "um outro mundo é possível", ele se torna um processo permanente de busca e construção de alternativas, que não se reduz aos eventos em que se apóie. 3. O Fórum Social Mundial é um processo de caráter mundial. Todos os encontros que se realizem como parte desse processo têm dimensão internacional. 4. As alternativas propostas no Fórum Social Mundial contrapõem-se a um processo de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos nacionais. Elas visam fazer prevalecer, como uma nova etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos. 5. O Fórum Social Mundial reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil de todos os países do mundo, mas não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil mundial. 6. Os encontros do Fórum Social Mundial não têm caráter deliberativo enquanto Fórum Social Mundial. Ninguém estará, portanto autorizado a exprimir, em nome do Fórum, em qualquer de suas edições, posições que pretenderiam ser de tod@s @s seus/suas participantes. @s participantes não devem ser chamad@s a tomar decisões, por voto ou aclamação, enquanto conjunto de participantes do Fórum, sobre declarações ou propostas de ação que @s engajem a tod@s ou à sua maioria e que se proponham a ser tomadas de posição do Fórum enquanto Fórum. Ele não se constitui portanto em instancia de poder, a ser
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disputado pelos participantes de seus encontros, nem pretende se constituir em única alternativa de articulação e ação das entidades e movimentos que dele participem. 7. Deve ser, no entanto, assegurada, a entidades ou conjuntos de entidades que participem dos encontros do Fórum, a liberdade de deliberar, durante os mesmos, sobre declarações e ações que decidam desenvolver, isoladamente ou de forma articulada com outros participantes. O Fórum Social Mundial se compromete a difundir amplamente essas decisões, pelos meios ao seu alcance, sem direcionamentos, hierarquizações, censuras e restrições, mas como deliberações das entidades ou conjuntos de entidades que as tenham assumido. 8. O Fórum Social Mundial é um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário, que articula de forma descentralizada, em rede, entidades e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo. 9. O Fórum Social Mundial será sempre um espaço aberto ao pluralismo e à diversidade de engajamentos e atuações das entidades e movimentos que dele decidam participar, bem como à diversidade de gênero, etnias, culturas, gerações e capacidades físicas, desde que respeitem esta Carta de Princípios. Não deverão participar do Fórum representações partidárias nem organizações militares. Poderão ser convidados a participar, em caráter pessoal, governantes e parlamentares que assumam os compromissos desta Carta. 10. O Fórum Social Mundial se opõe a toda visão totalitária e reducionista da economia, do desenvolvimento e da história e ao uso da violência como meio de controle social pelo Estado. Propugna pelo respeito aos Direitos Humanos, pela prática de uma democracia verdadeira, participativa, por relações igualitárias, solidárias e pacíficas entre pessoas, etnias, gêneros e povos, condenando todas as formas de dominação assim como a sujeição de um ser humano pelo outro. 11. O Fórum Social Mundial, como espaço de debates, é um movimento de idéias que estimula a reflexão, e a disseminação transparente dos resultados dessa reflexão, sobre os mecanismos e instrumentos da dominação do capital, sobre os meios e ações de resistência e superação dessa dominação, sobre as alternativas propostas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização capitalista, com suas dimensões racistas, sexistas e destruidoras do meio ambiente está criando, internacionalmente e no interior dos países. 12. O Fórum Social Mundial, como espaço de troca de experiências, estimula o conhecimento e o reconhecimento mútuo das entidades e movimentos que dele participam, valorizando seu intercâmbio, especialmente o que a sociedade está construindo para centrar a atividade econômica e a ação política no atendimento das necessidades do ser humano e no respeito à natureza, no presente e para as futuras gerações. 13. O Fórum Social Mundial, como espaço de articulação, procura fortalecer e criar novas articulações nacionais e internacionais entre entidades e movimentos da sociedade, que aumentem, tanto na esfera da vida pública como da vida privada, a capacidade de resistência social não violenta ao processo de desumanização que o mundo está vivendo e à violência usada pelo Estado, e reforcem as iniciativas humanizadoras em curso pela ação desses movimentos e entidades. 14. O Fórum Social Mundial é um processo que estimula as entidades e movimentos que dele participam a situar suas ações, do nível local ao nacional e buscando uma
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participação ativa nas instâncias internacionais, como questões de cidadania planetária, introduzindo na agenda global as práticas transformadoras que estejam experimentando na construção de um mundo novo solidário.
Aprovada e adotada em São Paulo, em 9 de abril de 2001, pelas entidades que constituem o Comitê de Organização do Fórum Social Mundial, aprovada com modificações pelo Conselho Internacional do Fórum Social Mundial no dia 10 de junho de 2001.
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