Sociedade de Controle, Guerra às Drogas e as Favelas do Rio de Janeiro: O Caso do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS IESP-UERJ

Julio Cesar de Mendonça Santos Filho

SOCIEDADE DE CONTROLE, GUERRA ÀS DROGAS E AS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO: O CASO DO CENTRO DE COMANDO E CONTROLE DA UPP ROCINHA

Rio de Janeiro, 2015

Julio Cesar de Mendonça Santos Filho

Sociedade de controle, guerra às drogas e as favelas do Rio de Janeiro: o caso do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, IESP-UERJ.

Orientador: Profº Dr. Luiz Antonio Machado da Silva

Rio de Janeiro, 2015 2

Julio Cesar de Mendonça Santos Filho Sociedade de controle, guerra às drogas e as favelas do Rio de Janeiro: o caso do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, IESP-UERJ.

Aprovado em:_______________________ Banca examinadora: __________________________________ Profº Dr Luiz Antonio Machado da Silva (Orientador) __________________________________ Profº Dr Carlos Henrique Aguiar Serra (Externo) __________________________________ Profº XXX

Rio de Janeiro, 2015 3

À meus pais Suely e Julio, a meu irmão Paulo Henrique, a Isaac ou Esther e a Augusto.

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AGRADECIMENTOS Gostaria de começar esses agradecimentos lembrando das três pessoas mais importantes da minha vida e que foram muito compreensivas comigo durante a pesquisa e a escrita desta monografia: meu pai, Julio Cesar de Mendonça Santos, minha mãe, Suely Santana Mendonça Santos, e meu irmão, Paulo Henrique Santana Mendonça Santos. Sem eles nada do que fiz aqui teria sido possível. Obrigado pai e mãe pelo apoio financeiro e moral durante essa jornada e irmão por ser um ótimo amigo, me perturbar menos do que o usual durante a escrita desta dissertação e pelo meu sobrinho ou sobrinha que está chegando. Obrigado a meus avós por serem as pessoas mais fofas do mundo e me mostrarem que a vida vale a pena ser vivida em todas as suas fases. Agradeço imensamente a Augusto que a cada dia que passa torna-se mais imprescindível na minha vida. Dos meus amigos agradeço principalmente ao Ádamo da Veiga, Caio Almeida, Roberta Costa, Juliana, Isabelle e Beatriz, Ojamigos, aos Sorrateiros, à Cerveja dos Tronos e aos amigos militantes pelas causas mais básicas da vida. Estes são meus companheiros para a vida. A eles agradeço imensamente. Além disso, agradeço à Tribo, espaço quase mítico para mim onde inevitavelmente florescem minha criatividade e paz de espírito. E por último, mas não menos importante, a R’hllor que iluminou minha vida durante a Grande Noite que foi essa monografia. Obrigado por suas bênçãos. Reverencio acima de tudo aos moradores da comunidade da Rocinha por receberemme de braços abertos, com tanta simpatia e coragem. Agradeço ainda ao CNPq por tornar possível a realização desta pesquisa através de financiamento com dinheiro público. Obrigado povo brasileiro!

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Se queres uma visão do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano – para sempre. George Orwell, 1984. 6

RESUMO Esta dissertação versa sobre o ascensão de uma nova mecânica de poder e sua implantação em áreas de relegação como, no estudo de caso: a favela da Rocinha, com a instalação do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha. Para melhor descrever este processo, através de entrevistas, acompanhamento do dia-a-dia de inspiração etnográfica, conversas informais e revisão de literatura, realizou-se um extenso trabalho de campo e de esforço teórico para tentar dar conta da realidade que se apresentava. A partir das análises de processos subjacentes ou pressupostos ao âmbito central da pesquisa, tem-se mais substrato para chegar onde se quer. Por isto, analisam-se a origem e função da instituição policial, a história da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, as políticas de segurança do governo Sérgio Cabral e Pezão, a guerra às drogas e a militarização da segurança pública, a favela enquanto categoria analítica – ou não -, o projeto das UPPs. Além de conceitos teóricos chaves para o desenvolvimento deste trabalho, dentre eles: estado de exceção, homo sacer, campo, soberania schmittiana e biopolítica. Após estas discussões conceituais, modifica-se o rumo da análise para entender quais outras mecânicas de poder estão em funcionamento e como elas se imbricam, ressignificandose, gerando um híbrido. A sociedade disciplinar que, já entranhada como forma de governamentalidade das favelas, choca-se com a sociedade de controle, misturam-se, então, biopolítica e controle. Assim como a sociedade controle, a vigilância eletrônica é rizomática, ao contrário da vigilância disciplinar, que é arborescente, por negar o múltiplo, através de processos de moldagens descritos por Deleuze e Guattari (2000). Só então é que se torna possível tirar conclusões do campo com elevado poder explicativo, como por exemplo que a implantação do sistema de câmeras acentua diferenciações, portanto, as clivagens sociais, uma vez que é baseada sobre classificações, que por sua vez são fundadas sobre estereótipos racistas, machistas, classicistas e de toda a sorte, variando em função dos riscos percebidos, do público-alvo desejado para pôr em exceção sob vigilância eletrônica, típico das penalizações a céu aberto das sociedades de controle, o que alguns já chamam de ecopolítica.

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ABSTRACT This thesis is about the rapid expansion of a new mechanics of power and its implementation in relegated areas, such as the chosen case study: the favela da Rocinha, after the installation of a Center of Command and Control at UPP Rocinha. To better depict this process, through interviews, ethnographically- inspired day-to-day accompaniment, informal talks and literature review, it also was developed an extensive field work and a theoretical effort to try to explain reality as it presented itself in the field. From the analysis of subsequent processes to or presuppositions of the central aim of the research, more data is gathered and there's certainly more substratum to get to the point. This is the reason why are analyzed here the origins and function of the police institution, the history of the Military Police of the state of Rio de Janeiro, the public safety policies of Sérgio Cabral and Pezão administrations, the war on drugs and the militarization of public safety, the favela as an analytical category – or not -, the UPP project. Besides key theoretical concepts to the development of this work, such as: state of exception, homo sacer, the field, schmittian sovereignty and biopolitics. After these conceptual discussions, the course of the analysis is modified to understand which other mechanics of power are still in full operation and how they mingle, reframing themselves, giving birth to a hybrid. The disciplinary society, an embedded kind of governmentality in the favelas, clashes with the society of control, thus mixing biopolitics and control. As well as the society of control, electronic surveillance is rhizomatic, the opposite of surveillance in disciplinary societies, which is arborescent, because it denies the multiplicities, through “molding” processes depicted by Deleuze and Guattari (2000). Only then it is possible to reach conclusions from the field with high explicative power, for instance, that the implementation of the camera system accentuates differentiations, therefore, expanding the social cleavages, once it is based on classifications, which in turn are based on racist, misogynistic and class stereotypes not to mention others of all sorts, varying in function of the perceived risks and of the desired target-population to be declared under exception rules with electronic monitoring, typical of society of control borderless penalizations, which is already called by some as ecopolitics.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...........................................................................11

2. NOTAS METODOLÓGICAS.........................................................24

3. UMA GENEALOGIA DA POLÍCIA: O QUE HÁ COM A PMERJ?........28 3.1.Uma história da instituição policial...............................................28 3.2.Um breve histórico dos dois séculos da PMERJ................................34 3.3.A atuação da PMERJ e a política de segurança pública do governo Sérgio Cabral/ Pezão..................................................................................41

4. UPP

COMO

RADICALIZAÇÃO

CRIMINALIZAÇÕES

SELETIVAS

DA

GUERRA

PARA

UMA

ÀS

DROGAS:

CIDADE

DE

EXCEÇÃO..............................................................................46

4.1.Guerra às Drogas: o narcotráfico como uma Nova Ameaça e a militarização da segurança pública...................................................................46 4.2.Favelas da cidade do Rio de Janeiro: criminalização da pobreza e o tráfico de droga.................................................................................65 4.3.Unidades de Polícia Pacificadora: contrainsurgência à la carioca..........85 4.4.Soberania, o Homo sacer e o campo: a exceção como paradigma de gestão das favelas.............................................................................125

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5. SOCIEDADE DE CONTROLE NAS FAVELAS OCUPADAS DO RIO DE JANEIRO: O CASO DO CENTRO DE COMANDO E CONTROLE DA UPP ROCINHA...........................................................................139

5.1.Uma

ascendente

mecânica

de

poder:

a

sociedade

do

controle...........................................................................139 5.2.Planeta Rocinha: demografia, economia e sociabilidade na maior favela da América..........................................................................159 5.3.UPP Rocinha: a tentativa de implantação do controle e as resistências cotidianas.......................................................................170

6. CONCLUSÃO: A FAVELA, O CAMPO E O REFUGO.................197

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................206

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1. INTRODUÇÃO O objetivo primário desta dissertação será, através da análise histórica e política de algumas instituições e políticas públicas, entrevistas diretas, trabalho de campo e observação participante, analisar como os dispositivos de poder da sociedade de controle se engendram a outras mecânicas de poder já historicamente em funcionamento nas favelas cariocas, típicas da disciplina, como a biopolítica, que vem sendo ressignificada pelo controle. Assim sendo, elegeu-se o Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha como estudo de caso. A Rocinha foi escolhida por ser a única favela do Brasil que conta com um sistema de vigilância eletrônica com mais de uma centena de câmeras, sendo uma das maiores favelas da América Latina com quase 70 mil habitantes, de composição populacional jovem e com altas taxas de natalidade, com aquecida e variada economia, baixo Índice de Desenvolvimento Humano e renda se comparados com o restante da cidade, mas altos se comparados com outras comunidades, precários serviços públicos mesmo que estejam todos formalizados desde a ocupação policial, contudo com alta oferta – e demanda - por serviços que o senso comum não identifica como possíveis em favelas como agências bancárias, imobiliárias, redes de fast food como o McDonald's, pizzarias, cantinas italianas, uma loja especializada em vinhos, escolas particulares, prédios de mais de uma dezena de andares, ônibus urbanos regulamentados pela prefeitura – uma das pouquíssimas comunidades do Rio de Janeiro para o qual a Prefeitura regulamentou linhas de ônibus -, mototaxis que funcionam com a mesma lógica dos taxis, bastando fazer sinal com a mão para solicitar o serviço, ao contrário das outras favelas onde o usuário deve se direcionar a um dos pontos de mototaxis e enfrentar filas até embarcar, estacionamentos, o que permite uma dinamicidade ímpar à Rocinha se comparada a outras favelas da cidade. Soma-se a isso o fato da Rocinha estar localizada num locus estratégico para a vida da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Situada entre os bairros da Gávea e de São Conrado, na beira da Auto-estrada Lagoa-Barra, a principal via de integração entre a parte rica da zona oeste – a Barra da Tijuca – e a Zona Sul carioca, portanto, uma via vital para a cidade e de grande circulação de veículos. Parte da auto-estrada Lagoa-Barra na altura da comunidade, devido ao maciço rochoso que há entre Gávea, Lagoa e São Conrado, passa por um túnel conhecido como Túnel Zuzu Angel que, por diversas vezes, tem sido fechado devido a conflitos armados na região, inclusive depois da instalação da UPP, em 2012, seja devido a operações policiais, demonstração de poder da quadrilha que domina a região ou por embates entre facções. 11

Para analisar estes fenômenos, fez-se necessário primeiramente analisar os fatores que geraram o contexto no qual a comunidade se encontrava quando da instalação da UPP e do Centro de Comando e Controle da Rocinha, para só então poder entender como o sistema de vigilância eletrônica se engendra e se insere, e os porquês de seu desempenho e da retórica que o sustenta. Assim sendo, primeiramente decidiu-se analisar a origem da instituição policial, para entender o que é e como chegamos a este tipo de polícia que se apresenta hoje no Rio de Janeiro, além de compreender as razões que a levaram a se tornar uma das forças policiais que mais mata e que mais morre no mundo. Com a ajuda de Michel Foucault (2002; 2008) e de sua genealogia da polícia desde o fim da Idade Média, procura-se entender como e porquê surgiram as polícias e quais os processos mais amplos – de cunho político, social e econômico – que a fazem nascer. Para assegurar a estabilidade política depois de um século de guerras religiosas no continente Europeu, os Estados em conjunto utilizaram-se de duas técnicas de governo, uma na esfera externa, o equilíbrio de poder, e outra na interna, as polícias. A função da polícia era, assim como o equilíbrio de poder, “assegurar o esplendor do Estado” (FOUCAULT, 2008). No âmbito deste objetivo de garantir a “boa saúde do Leviatã”, eram serviços das polícias o bem público e a expansão das forças do Estado e por isso tomaram para si funções como: a instrução de crianças e jovens nos ofícios úteis e necessários ao Estado, fornecendo mão-de-obra ao Reino; registro de profissões e acompanhamento da vida profissional dos súditos do Estado, para evitar força de trabalho mal-empregadas, surgindo a figura criminosa da vagabundagem (vadios e sem honra), desempenhando inclusive uma função moral; dos pobres, da caridade e também da saúde coletiva da população, incêndios, inundações; dos comerciantes e regulará os problemas do mercado e o modo de produção, devendo favorecer sempre o comércio; e, ainda, deve assegurar os direitos senhorias e zelar pelos prédios, caminhos públicos, florestas e domínios do Rei. Junto com a Justiça, o Exército e as Finanças, a Polícia seria o quarto braço fundamental de qualquer Estado moderno. Esta polícia ainda não apresenta nenhuma relação com a Justiça, ou seja, ainda não atuava como instância inquisitorial da Justiça, como o faz hoje. Porém outra instituição administrativa foi criada pelo poder real para desempenhar papel de força armada usada para evitar desordens internas depois de guerras, reprimindo violência, delinquência, crime, roubo e assassinato, enfim, todas as pessoas errantes, consideradas perigosas e sem escrúpulos à época, cuja única relação com o soberano seria a de controle e repressão através desta força armada real, a gendarmerie. É a junção destas duas instituições que dá origem ao que hoje chamamos de polícia. A 12

polícia era, portanto, o exercício soberano do poder real sobre os indivíduos que são seus súditos, é nisso que consistia a polícia, e é nisso que ela continua consistindo. Uma ferramenta do Estado para a disciplinarização urbana. A polícia, portanto, já nasce como uma instituição conservadora e mercatil. Após esta operação analítica fez-se necessário versar sobre a história da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, em seus 206 anos de história. Fundada com a mudança da Corte Portuguesa para o Brasil, D. João VI cria por Decreto Real a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte (DMGRP), em 1809, sendo esta na verdade a transferência da Guarda Real de Lisboa que havia deixado de ser capital do Império Português em detrimento do Rio de Janeiro. A GRL havia sido criada poucos anos antes, em 1801, fortemente inspirada na Gendarmerie Nationale Francesa. Desde sua fundação a polícia se põe como um ator político bastante atuante, interferindo em grandes processos políticos nacionais de forma direta, como na Independência do Brasil, na Guerra do Paraguai, na Segunda Guerra Mundial e na Ditadura Militar. Apesar de ter sido usada em seu primeiro século de existência como força auxiliar das Forças Armadas, a polícia só passou a ser oficialmente considerada como tal em 1917, quando o Corpo de Bombeiros e a Polícia, ambos da capital federal, tornaram-se oficialmente reserva do Exército, o que gerou uma aproximação entre estas agências estatais e o Exército. Processo este que só se intensificou com o Estado Novo. Com a queda de Vargas em 1945, as polícias deixaram de ser centralizadas e voltaram à esfera dos estados. Para resguardar o prestígio obtido por sua atuação na FEB, é neste momento que oficialmente a instituição passa a ser denominada Polícia Militar do Distrito Federal. No entanto, uma outra força é criada para patrulhar ostensivamente as ruas e garantir que crimes de oportunidade fossem reprimidos: a Guarda Civil. Portanto, o patrulhamento ostensivo até a ditadura militar era essencialmente civil, o mais interessante é que esta Guarda Civil só dispunha de apitos e cacetetes, não portava armas de fogo, pois sua função era basicamente mediadora de conflitos e dissuasória, limitando a atuação militaresca, com a lógica de eliminação do inimigo, às polícias militares e às Forças Armadas, que eram em si entendidas como auxiliares das Armas e por isto necessariamente militarizados. Com a ditadura militar a Guarda Civil foi extinta e o patrulhamento ostensivo passou a ser feito exclusivamente por militares, sejam eles policiais ou das Forças Armadas. Ao mesmo tempo cria-se a Polícia Judiciária, o embrião do que hoje conhecemos como Polícia Civil. Assim sendo, como se vê as duas forças policiais estaduais com as quais contamos hoje em dia foram criadas na Ditadura Militar para atender a seus interesses. Apesar disso, a existência 13

delas não foi desafiada na Assembléia Constituinte, que assegurou a continuação deste modelo autoritário e ineficiente de segurança pública. Hoje a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro conta com quase 50 mil homens e mulheres em suas fileiras e o plano do governador recém-eleito Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ) é contratar mais 14 mil policiais nos próximos quatro anos. Totalizando, portanto, até 2018 quase 70 mil policiais militares. Muitos críticos da polícia afirmam serem elas mal treinadas, o que claramente é um equívoco se considerarem a letalidade com que os policiais entram nas favelas, como Deley de Acari coloca: “Um policial militar que consegue acertar a cabeça de uma pessoa de dentro de um Caveirão a oitenta metros não é um policial mal preparado. Pode ser mal preparado de caráter de formação, mas tecnicamente nosso policial é ótimo” (MOREIVA ALVES, 2013). A questão, portanto, não seria de treinamento, porque a polícia é de fato bem treinada. A questão seria o caráter militarizado de atuação e como este treinamento engendra o agente de segurança pública que, agindo de acordo com o treinamento recebido na academia de polícia, acaba agindo muitas vezes à revelia da própria lei. É essa polícia que Cabral encontra em 2007 quando é eleito. E é com ela que ele implementa sua única política pública de segurança até as UPPs: a política de confronto, de enfrentamento. Esta política completamente ineficaz, só resulta em disrupção das rotinas, mortes de cidadãos comuns, de policiais e de traficantes. Apesar do grande número de mortos e feridos, Cabral apoiava-se sobre o apoio popular – e as vezes até mesmo mandava policiais para o enfrentamento pelo apelo popular – para realizar essas ações de guerra. Aliado de Lula, esta política de confronto o colocou em por ocasiões contra o governo federal, que constantemente pressionava o governo estadual para adotar políticas que priorizassem os direitos humanos, que reduzissem a letalidade da PMERJ. O governo federal chega a lançar o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) em 2007 visando reformar a aparato de segurança pública em conformidade com a lei e ao respeito aos direitos humanos, através de medidas com um quê desmilitarizador que previam, por exemplo, o fim do financiamento com dinheiro federal da aquisição de armas de guerra e blindados às polícias estaduais, estimulando a substituição dos fuzis pelas carabinas, o que por si só já reduziria a letalidade policial, além do policiamento comunitário, extremamente estimulado pelo governo Lula. Contudo, o governo federal não é responsável, segundo o Pacto Federativo, pela segurança pública, sendo esta atribuição dos estados – só se estes falhassem em responder às questões de segurança pública é que poderiam solicitar intervenção do governo federal. Justamente por isso os efeitos desta política pública que poderiam ter sido 14

extraordinários, foram pífios. O governo federal contava que conseguiria grandes mudanças por possuir mais dinheiro que os estados, mas não contava que os estados prefeririam endividarem-se ou aceitarem doações de particulares - como no caso das doações do empresário Eike Batista ao projeto das UPPs – para continuarem levando a cabo essas ações violentas em nome da Guerra às Drogas. Esta política de repressão e combate ao tráfico de substâncias ilícitas é a chamada Guerra às Drogas, e é um processo histórico que se desenvolveu ao longo do século XX, principalmente nos EUA. Porém a primeira guerra movida por drogas foi ainda no século XIX, Guerra do Ópio, na qual Inglaterra e China lutavam pela comercialização ou não de ópio em território chinês. O imperador chinês Lin Tso-Siu resolveu, em nome da saúde pública, destruir um grande carregamento de ópio inglês. A Rainha da Inglaterra achou tal medida injusta com seus súditos e pediu ao Parlamento para enviar forças militares para pedir reparações por parte dos chineses. A Inglaterra vence a guerra, conquistando uma indenização, Hong Kong e a liberação do comércio de ópio dentro das fronteiras chinesas aos comerciantes ingleses, garantindo assim não só o mercado consumidor que já tinha, mas a expansão, a partir de Hong Kong, do seu negócio de venda de ópio para todo o extremo oriente. A Coroa estava satisfeita, os capitalistas também, tudo pela expansão da venda de drogas do Estado. Os primeiros surtos proibicionistas se deram nos EUA desde o fim da Guerra Civil (1861-1865), com grupos religiosos conclamando pela proibição do álcool e substâncias alucinógenas, relacionando-as com o Diabo e com o afastamento de Deus, já que estes movimentos pós-Guerra Civil eram marcadamente advindos da tradição puritana do protestantismo americano. Como se pode ver, argumentos puramente teológico-morais, sem semelhança alguma com a ciência. A Anti-Saloon League era um exemplo de organização que no final do século XIX lutava pela proibição de saloons nos EUA porque, para eles, os saloons concentravam muitos vícios que poderiam corromper o povo americano como o jogo de azar, a prostituição e o consumo de álcool. Como se pode ver, uma visão de pecado extremamente baseada na aversão ao prazer, típico do puritanismo protestante que migrou para as 13 Colônias inglesas. A reprovação moral ao uso de psicoativos culminou em leis como a Harrison Narcotic Act de 1914 que restringia o uso de alucinógenos a tratamentos médicos, inaugurando o narcotráfico moderno. Essa reprovação moral se aproveitou de alguns estereótipos, principalmente relacionados a grupos sociais subalternos, igualmente indesejáveis para conseguir efetivamente demonizar as drogas socialmente. Alguns exemplos dessa política racista de criminalização de alguns grupos imigrantes são: a relação feita entre 15

ópio e os chineses, a maconha e os mexicanos, a cocaína e os negros e o álcool e os irlandeses. Essas populações, portanto, no imaginário social passaram a ser consideradas exógenas, estranhas à sociedade branca e anglo-saxônica dos Estados Unidos. Essas comunidades não-americanas representavam, portanto, o perigo, já que traziam e usavam seus venenos consigo, tendo maneiras estranhas e hábitos perigosos, portanto potencialmente agressivas, violentas, e ainda por cima disputavam e roubavam empregos de homens heterossexuais brancos norte-americanos. “Prato cheio” para a criminalização destas populações. Associaram-se portanto desde o princípio classes perigosas a substâncias perigosas, como se viu durante o século XX, por exemplo, quando da proibição dos alucinógenos em 1914, que visava atingir povos indígenas que alteravam a consciência com enteógenos para fins religiosos e festivos, e do álcool pela Lei Seca em 1919, sobretudo para perseguir irlandeses e italianos, já que a maior parte da massa de migrantes europeus pauperizados que chegava na Costa Leste dos EUA desde o século XIX eram oriundos destes países. Revogada em 1937 a Lei Seca, não representou, contudo uma vitória do movimento anti-proibicionista, dado que em 1937 proibia-se a maconha no Marijuana Tax Act de Roosevelt. Na década de 1950 a onda proibicionista chegou também aos psicoativos tradicionais e a drogas sintéticas. Esta onda chegou a um de seus três principais momentos em 1961 quando foi aprovada a Convenção Única sobre Entorpecentes na ONU, criminalizando em todos os países signatários – a maior parte do mundo – quase todas as drogas conhecidas. Porém é só na década de 1970 que a Guerra às Drogas nasce e o movimento proibicionista se regozija pela segunda vez: é declarada a guerra às drogas pela administração Nixon. O traficante passa a ser visto como inimigo número 1 (talvez 2, porque ainda existiam os comunistas nesse época como perigo real ao sistema econômico vigente) do povo americano e a questão do consumo de substâncias psicoativas torna-se uma questão de segurança nacional. Os anos 1970 trouxeram para dentro dos EUA níveis alarmantes de heroína, trazida pelos veteranos da Guerra do Vietnam. Começa então o discurso do combate ao tráfico ao invés da droga em si, para deslocar o problema da esfera interna (o consumo em si, feito por cidadãos americanos na maioria adultos brancos de classe média que compram drogas porque querem) para a esfera externa (os traficantes e países produtores que são os perversos corruptores do povo americano ao produzir e comercializar as substâncias que degradam a sociedade americana). Para difundir o assunto, o governo americano passou a associar a Guerra Fria à Guerra às Drogas, associando, portanto, o comunista ao traficante e o comunismo às drogas. Perfeito para o discurso sensacionalista e moralista que tomou conta do país na mídia mainstream nos anos do governo Nixon em feroz 16

oposição à contracultura e ao movimento hippie, associando-se ambos os movimentos às drogas e ao comunismo. Até hoje estes estereótipos persistem na consciência coletiva estadunidense, principalmente nos meios mais conservadores e republicanos. É desta época também que surge o termo narcoguerrilha, consubstanciação máxima entre o tráfico e o comunista, o comunismo à droga. À essa altura um comunista, um traficante e um maconheiro representavam o mesmo perigo para o Estado. Nos anos 1980 há um aumento expressivo no consumo de cocaína e o surgimento de redes transnacionais de tráfico de drogas. Com o esfacelamento do comunismo soviético e das ditaduras de direita financiadas pelos americanos por todo o mundo, o vácuo da posição de inimigo dos EUA fica vaga, já que os comunistas não mais são uma ameaça com o fim da URSS. Essa posição de inimigo número 1 do governo estadunidense foi tomada, progressivamente, pela figura do narcotraficante e de seus estereótipos: terceiro mundista, não-branco e pobre, vivendo nos rincões que não podem mais ser absorvidos pelo capitalismo da modernidade líquida. Para combater este inimigo perigoso, a opção encontrada pelos americanos foi a militarização do conflito entre eles e os traficantes, por todo o mundo, mas, é claro, não em seu próprio território, onde o combate ao tráfico se dava pela DEA (Drug Enforcement Administration), uma agência repressiva, sim, porém civil. Com esse discurso de criminalização do terceiro mundo como região produtora e comercializadora de drogas, os EUA conseguiram renovar a retórica que justificasse o intervencionismo fora de suas fronteiras, principalmente em países em desenvolvimento, com abundância de matériasprimas e, recorrentemente, também de drogas. Porém já se demonstrou que esta separação entre países produtores e consumidores é totalmente falha, o que existe na realidade é toda uma zona de indiferenciação entre consumidores e produtores, um verdadeiro mercado internacional com produção e consumo disseminados pelo globo. No Brasil, o discurso americano foi aceito com uma resignação impressionante pela ditadura militar, que aprovou a Convenção Única sobre Entorpecentes como lei interna, através do Decreto nº 54216 de 27 agosto de 1964 assinado pelo General Castello Branco, então comandante do Golpe e, portanto, empossado presidente pelos golpistas, à revelia da ordem constitucional. E logo depois, entre 1968 e 1976, também o usuário de drogas foi criminalizado e equiparado a um traficante pela Lei 6368/76. Com o fim da ditadura, na transição da década de 1970 para a de 1980, o conceito de inimigo interno foi deslocado da criminalidade política para a criminalidade comum, do comunismo ao tráfico de drogas, combatendo-os, contudo, com o mesmo aparato policial-militar, gerando esses níveis altíssimos de violência urbana. Num contexto com a segurança pública militarizada, houve o 17

boom da cocaína e a compra de armamentos cada vez mais pesados, eficazes e caros pelos traficantes dos diferentes “comandos” - como se chamavam as facções à época. Como o enfrentamento era a alternativa desse modelo de política de drogas, a polícia militarizada teve que se rearmar para se equiparar ao poder de fogo dos criminosos, o que resultou numa corrida armamentista que dura até hoje. O consumo de drogas é um fato indiscutível do ethos social, cuja probabilidade de permanência como um hábito disseminado é perceptível na tendência histórica, demonstrada pelo aumento da tolerância e pela gradual absorção pela lei dos usos terapêutico e recreativo de drogas ilícitas, como a legislação californiana da maconha medicinal, a do Uruguai e a dos estados de Washington e Colorado – além da capital Washington - que legalizaram o uso recreativo de maconha por maiores de 21 anos em todo o estado. Talvez, aceito que a questão das drogas é questão de saúde pública e não de polícia, os níveis de violência das cidades brasileiras cairiam drasticamente, em consequência da diminuição exponencial do poder bélico do tráfico de drogas que dominam soberanamente, no sentido scmittiano do termo, as favelas cariocas. Em seguida, passa-se a problematizar a favela enquanto categoria e a retraçar um pouco da história desses aglomerados subnormais, como chama o Censo, ou dessas comunidades, como hoje prefere-se chamar. Para compreender a favela em sua inserção num sistema mais amplo, recorro às teorias da marginalidade latinas da década de 1960 e 1970 do século passado, em um momento que os países latinos passavam por um rápido processo de urbanização e industrialização. Foi neste período, portanto, que os limites do modo de organização capitalista – um capitalismo dependente - para absorver a força de trabalho disponível ficaram evidentes. Na década de 1990, o neoliberalismo impulsiona a redução dos gastos públicos com o setor social, a flexibilização dos contratos de trabalho. Tudo isso contribuiu para o aumento expressivo das taxas de desemprego, para a disseminação do trabalho informal, instável ou temporário e para a precarização das condições de vida de parcela expressiva da população. Este aprofundamento da subordinação econômica, política e tecnológica em relação aos países desenvolvidos, partindo de um mercado de trabalho pouco regulado e de um sistema de garantias sociais bastante rarefeito, é a causa principal do processo contemporâneo de marginalização de que sofrem todos os países em desenvolvimento da América Latina. Deve-se notar que o desenvolvimento do termo marginalidade se deu em meio ao paradigma da modernização, referindo-se aqui às consequências emergentes do rápido e massivo processo de urbanização do pós-guerra na América Latina. Com a explosão 18

demográfica e com altíssimos níveis de êxodo rural, as condições de habitação nas grandes cidades latinas degradaram-se absurdamente. Observou-se, portanto, a explosão do crescimento de favelas, cortiços e ocupações. O termo marginalidade era usado para designar o espaço de habitação das classes subalternas, geralmente nas periferias da cidade, à margem do espaço considerado como “a cidade legal” e suas condições precárias como a carência generalizada de serviços públicos como esgoto, água, eletricidade e escolas, a alta taxa de desemprego e as péssimas condições de trabalho dos que se encontram empregados. a marginalidade urbana é composta, em suma, por pessoas autônomas, auto-empregadas e/ou por trabalhadores inespecíficos, com baixos salários e baixa qualificação (GERMANI, 1973). O problema desta visão é traçar uma linha direta entre marginalidade e pobreza, o que será contestado nas décadas subsequentes por diversos trabalhos. O mais importante na problematização destas teorias é o entendimento de que as favelas e outros aglomerados subnormais são produtos inseparáveis do capitalismo, são pressuposto dele, uma vez que para ser concentrador, tem que ser excludente. Esse processo acontece em todo o mundo, mas em escalas diferentes, mais acentuado em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento e menos acentuados em países desenvolvidos. Porém no Brasil a Igreja se opôs fortemente às teorias da marginalidade, assim como o SAGMACS, responsável pelo primeiro estudo acadêmico das favelas cariocas, ainda na década de 1960. A integração dos favelados à vida política, na visão da Igreja, deveria ser incentivada, pois deveria haver a formação de uma comunidade de base, deveria haver coesão social entre vizinhos, e para isso foram incentivadas as Associações de Moradores. A Igreja se colocaria neste momento como uma intermediária entre o Estado e a população local, a intenção era contra-atacar práticas clientelistas de alguns políticos adeptos à tradicional “política da bica d'água” (GONÇALVES, 2013). Ambas as instituições estavam alinhadas a uma mesma ideologia capitalista, conservadora, que ao mesmo tempo admitia ser necessário rever e reformar alguns aspectos do capitalismo que acentuam a marginalização de setores amplos da sociedade. Porém, como se podia esperar, tais políticas se mostraram completamente ineficazes e mais cedo ou mais tarde foram abandonadas. Eram ineficientes justamente porque não atacavam a raiz do problema: o sistema capitalista. Entendidas como parte do desenvolvimento capitalista, a expansão das favelas no Rio começa a se dar nas décadas de 1920 e de 1930, apesar dos primeiros relatos de ocupação desordenada em morros urbanos serem de muito antes, ainda do século XIX. A origem do nome favela data de meados do século XX, quando soldados sem-teto voltaram do sertão bahiano depois de vencerem a Guerra de Canudos (1896 – 1897) com a promessa de um 19

quinhão de terra e em busca dos soldos atrasados. Enquanto combatiam em Canudos, os combatentes acampavam em colinas cheias de plantas, conhecidas localmente como favelas. Ao retornarem para o Rio de Janeiro, e não receberem as terras que lhes foram prometidas pelo governo para que eles se alistassem nas forças da República para a guerra, começaram a ocupar uma montanha no centro do Rio de Janeiro, atrás do Ministério da Guerra, dando o nome de Morro da Favella àquela colônia, em clara referência a Canudos. Segundo Valladares (2005), com a publicação do livro de Euclides da Cunha Os Sertões, em 1902, os intelectuais cariocas descobriam estes novos espaços da cidade através do olhar de Euclides da Cunha sobre Canudos. Como o nome Morro da Favella passou a identificar aquele acidente geográfico em 1897, pode-se afirmar que a nomeação se deu de forma independente da referida obra, mas, tal acontecimento teria passado despercebido, e essa palavra não teria alcançado a posteridade que conheceu, sem as imagens fortes e marcantes transmitidas através de Os Sertões. Imagens capazes de permitir aos intelectuais compreender e interpretar a favela emergente, seria a favela como lembrança de Canudos, do sertão, na cidade. (VALLADARES, 2005). A favela, portanto, é considerada antiga, bárbara, contexto do qual é preciso distanciar-se se se quiser alcançar estágios civilizados. Apesar do mito de origem das favelas estar ligado a Canudos como Valladares (2005) deixou claro, segundo Lílian F. Vaz (1988) e Rafael Soares Gonçalves (2013), “o surgimento das favelas é uma consequência direta do higienismo contra os cortiços” (VAZ, 1988). Em razão da campanha higienista estatal contra os cortiços no último quartel do século XIX e no primeiro do século XX, certos proprietários transferiram suas atividades para terrenos contíguos a eles, localizados muitas vezes no sopé dos morros. Muitas favelas herdaram, dessa forma, o nome dos antigos proprietários dos cortiços, transformados depois em proprietários de lotes ou barracões nas montanhas, portanto, surge a figura do “proprietário da favela”, o arrendatário ou locatário. Isso põe em xeque outro dogma de que as favelas seriam necessariamente frutos de ocupações ilegais de terrenos. Há relatos, no entanto, que havia outras ocupações, nos moldes do Morro da Favella, antes do suposto marco histórico da inauguração deste tipo de colonização tipicamente carioca. Segundo Gonçalves (2013), documentos históricos mostram que o Morro de Santo Antônio já estava ocupado pelo menos desde a Revolta da Armada em 1893, no entanto, segundo Valladares (2005), algumas favelas já existiam, porém mais de uma década antes da ocupação do Morro de Santo Antônio, desde pelo menos 1881, sendo, sobretudo, habitadas por imigrantes europeus pobres, sobretudo italianos, portugueses e espanhóis. A representação das favelas como epicentros de marginalidade urbana se disseminou 20

velozmente, o que serviu de justificativa para a construção de uma retórica institucional a seu respeito, focada, sobretudo, nas noções de patologia urbana e de classes perigosas, que por sinal persistem, de outras maneiras, até hoje. As favelas, portanto, acabam tomando o lugar dos cortiços como maior problema urbano da cidade, débil no quesito habitação popular. A partir de 1910 a imprensa passou a empregar o termo favela – derivado de Favella, o antigo nome do atual morro da Providência – pejorativamente para descrever os barracos que surgiam em vários morros da cidade. Porém, ainda segundo o autor, o termo só se disseminou enquanto categoria, que discernia estes espaços colonizados precariamente nos morros do resto da cidade, na década de 1920. As favelas, para Wacquant (2005), são comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de uma metrópole, onde residem os párias modernos e onde os problemas sociais se aglomeram e criam tensões visíveis, atraindo recorrentemente visões negativas por parte da mídia, dos políticos e do Estado. São locais conhecidos por todos, tanto moradores quanto outsiders, como regiões-problema, zonas violentas e selvagens da cidade, territórios de privação e de abandono, lugares a serem evitados e temidos, porque têm ou se crê que tenham excesso de crime, de violência e de vício, espaço, portanto, primordial da desintegração social. Por causa da aura de periculosidade que envolve seus habitantes, e do descaso do qual são vítimas, esta mistura de proletários, famílias, migrantes e outros setores subalternos da sociedade, são tipicamente retratados à distância, como se fossem um “eles”, um “outro”, diferente de um “nós”. A este outro, Agamben chama homo sacer, ou homem sacro, aquele sobre o qual a biopolítica é máxima e aquele sobre o qual a exceção como paradigma de governo é operada. Agamben ao tratar dos estados de exceção que viraram regra na contemporaneidade esclarece o que acontece e como acontece, por exemplo, nas políticas de enfrentamento e das UPPs do governo Cabral. Alguns outros conceitos que serão importante para entender este ínterim serão o de soberania segundo Carl Schmitt, o de refugo humano de Zygmunt Bauman, tanto para entender como a polícia age, o que ela representa, e os resultados que apresenta, além das graves consequências que desencadeia na sociabilidade destes locais. É através destes conceitos que se obtém uma análise com maior poder descritivo sobre o programa de pacificação das favelas cariocas, as UPPs. Começando pelo Morro Santa Marta, em Botafogo, no ano de 2008, UPPs começaram a ser instaladas na cidade do Rio de Janeiro. A primeira etapa não diferia em nada das práticas de antes: invasão da favela com artilharia pesada para enfrentar traficantes igualmente bem armados. Uma vez tomado o morro, o trabalho permanece rotineiro: policiais em busca de armas, drogas, bandidos 21

escondidos e pessoas com mandado de prisão. A diferença é que em todas as outras vezes, depois de todos esses passos, os policiais saíam da favela e deixavam-na livre para a reinstalação do tráfico novamente. Já dessa vez, eles não só invadiram, eles ocuparam. Não saíram da favela após a “incursão”. O objetivo era ocupação, apelidada de pacificação pelo governo do estado. através de uma unidade policial permanentemente montada na comunidade, com a finalidade de coibir o tráfico de drogas, sobretudo o tráfico de drogas armado, garantindo assim o monopólio legítimo do uso da violência pelo Estado naquela região. Para o processo de pacificação ser bem-sucedido, seguindo-se o manual de contrainsurgência americano da década de 1970, é necessário angariar apoio, legitimidade na comunidade. Para isso a UPP realiza reuniões com moradores e teoricamente dialogaria a todo momento com interlocutores considerados legítimos como os comerciantes, religiosos e etc. Excluindo-se aqui as Associações de Moradores, pois a Polícia as considera como laranjas do tráfico, pela relação que mantinham com os bandos armados antes do início das ocupações militares das favelas. Para isso, a UPP tenta colonizar práticas que o tráfico levava a cabo. É por isto que alguns acadêmicos crêem que a UPP está longe de subverter a exceção que assola as favelas, pois, como Ignácio Cano afirmou a UPP é novo “dono do morro” (CANO, 2012). No entanto, a UPP não se utiliza somente de práticas disciplinares e biopolíticas. Recentemente, na UPP Rocinha, foi instalado o Centro de Comando e Controle com quase duas centenas de câmeras espalhadas pela comunidade, radicalizando a ascensão das tecnologias típicas das sociedades de controle nas favelas cariocas. A implementação de uma mecânica de poder de forma alguma suplanta a outra, elas imbricam-se, chocam-se, embaralham-se e, por último, ressignificam-se, dando a luz a híbridos regionalmente únicos, mas sempre na mesma tendência do processo mais geral que é a ascensão de uma delas. É importante notar que a vigilância também existia nas sociedades disciplinares, que também contavam com suas tecnologias de vigilância, não sendo este portanto um fenômeno inédito das sociedades de controle. No entanto, há diferenças fundamentais entre a vigilância disciplinar e a do controle (COSTA, 2004). Na disciplina, a vigilância era centrada no vigiar do movimento físico de uma pessoa de interesse, era sobretudo o agente secreto que seguia um alvo de interesse para governos, ou o supervisor da fábrica vendo se algum dos operários paravam de trabalhar durante as horas de produção. Já no controle, como há uma reconfiguração da forma como as informações são estruturadas - em rede e reproduzidas em n pontos finitos -, a vigilância ganha novos contornos, interessando-se pelo modo como os indivíduos acessam essas informações. O interesse agora é sobre a dinâmica das 22

comunicações entre pessoas e destas com as empresas e o Estado. É, portanto, a partir deste novo tipo de vigilância e de outras tecnologias típicas das sociedades de controle que se constroem padrões de comportamento e acesso, utilizados para construir perfis virtuais, digital doubles, corpos sem órgãos. Perfis virtuais dinâmicos reconstruídos e reclassificados a todo o tempo, em funções de novos padrões de comportamento, que podem ser reterritorializados para construir identidades, identificando indivíduos na massa. É parte das tecnologias de controle esse processo de captura de fluxos imateriais de informação, construção de digital doubles e verificação de indivíduos, ou seja, de desterritorialização e reterritorialização, quando for de interesse. Alguns autores, dentre eles Bauman e Lyon (2013) e Haggerty e Ericson (2000) analisam este novo tipo de vigilância que surge na esteira da ascensão das sociedades de controle e a chamam de vigilância eletrônica rizomática. Tendo em vista a explicação anterior do que seria o rizoma na explicação deleuziana das sociedades contemporâneas, os autores entendem que este novo tipo de vigilância como um rizoma. Crescem rapidamente através de séries interconectadas de raizes que espalham-se por todas as direções. Assim como um rizoma que pode ser quebrado em qualquer região – inclusive a-significantemente -, mas retomará sua expansão seja por linhas antigas ou novas. A vigilância eletrônica apresenta qualidades expansivas e regenerativas típicas de um rizoma. Alguns dos desdobramentos do agenciamento de vigilância derivam dos esforços para procurar novas populações-alvo que ostensivamente requerem um grau mais elevado de monitoramento. Apesar da vigilância estar penetrando profundamente as sociedades contemporâneas, este processo se dá de forma diferencial, no entanto submete a todos. O panóptico de Bentham retomado por Foucault seria a vigilância fixa do guarda na torre da prisão, mediada humanamente, contando sempre com a opacidade do poder e a transparência do vigiado. Alguns autores dizem que vivemos a Era pós-panóptica, numa Era sinóptica ou o “panóptico faça-você-mesmo”, visão esta compartilhada por Bauman e Lyon (2013) , que, no entanto, crêem estar o panóptico ainda em plena operação, assim como Wacquant, porém somente nas margens. Wacquant chama este fenômeno de panopticismo social, assim como Bauman e Lyon o fazem através do termo banóptico. Outra diferença básica é que o panóptico tinha como função a disciplina, enquanto o banóptico responde a demandas por segurança. Segundo Lyon (2003), dados abstratos são manipulados para produzir perfis e categorias de risco em um sistema interligado e líquido. O trabalho de classificação é inerente ao Homem, surgiu junto com a capacidade da fala, mas o que o controle insere é inédito: 23

automatiza a classificação. O que se deve ter em mente sobre a classificação é que “these categories cannot be impartial because they are produced by risk institutions that already put different value on young and old, rich and poor, black and white, men and women” (HAGGERTY & ERICSON, 2000). Ou seja, a classificação é baseada sobre estereótipos, o que reforça fenômenos como o racismo, o machismo, a criminalização da pobreza e etc, além de sempre abrir espaços para que novas condutas sejam criminalizadas. Alguns autores, citados por Lyon, como Oscar Gandy, entendem a vigilância eletrônica como “tecnologia discriminatória”, sendo ou não esta atividade automatizada, o que torna clara a natureza hierarquizante da classificação dos vigiados. E essas classificações não apenas descrevem grupos, mas também definem possibilidades. Essas são as análises do modus operandi, da retórica, explicações teóricas, consequências, desempenho e tendências que tangenciam ou subjazem o Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha e o que ele representa. Ao analisar estas tecnologias de poder, sempre procura-se traçar o quadro mais amplo onde esses acontecimentos ou processos se enquadram, além dos contextos e dos usos que a tecnologia pode sofrer, uma vez que é contingente. A que necessidades respondem a ascensão destas mecânicas de poder, que desejos cria, e sobre quais é criado. São esses os questionamentos que ajudaram a construir a argumentação durante todo este trabalho, sempre procurando traduzir a realidade observada em campo e nunca somente operar o campo em função da teoria, como se a realidade fosse produto da teoria e não o contrário.

2. NOTAS METODOLÓGICAS Para realizar esta análise, foi realizada uma extensa revisão de literatura para que se desse conta de toda a questão a ser analisada. Para tal, se fez necessário utilizar alguns atores chave, diria quase que canônicos, que guiaram a própria moldura teórica mais ampla do trabalho, principalmente no que diz respeito ao pressuposto assumido neste trabalho: de que há estados de exceção utilizados como paradigmas de governo dentro de democracias contemporâneas não a negando e sim a sustentando, tornando-se até mesmo, em alguns casos, condição de soberania e, além disso, de que há mecânicas de poder que não se substituem, mas se imbricam, ressignificando-se mutuamente, gerando híbridos únicos que se regionalizam, mas que mantem padrões gerais que se repetem em diferentes regiões submetidas a relações de poder semelhantes. Dentre estes autores que servem de pano de 24

fundo para todo este trabalho estão: Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, Giorgio Agamben, Carl Schmitt, Zygmunt Bauman, David Lyon, Haggerty, Luiz Antonio Machado da Silva, Lícia do Prado Valladares e Loïc Wacquant. Porém, além destes principais há inúmeros outros autores fundamentais que serviram de fonte e inspiração para a realização deste trabalho, como poderia citar: Rafael Soares Gonçalves, Luis Eduardo Soares, Michel Misse, Thiago Rodrigues, Orlando Zaccone, Raul Zaffaroni, Vera Malaguti, Nilo Batista e etc, para não ser extenuante. Seus trabalhos de grande contribuição para as Ciências Sociais e mais especificamente para o campo de segurança pública e da filosofia política, seviram de ferramental teórico para a análise do que sustenta minha hipótese observada em campo. Estes autores foram fundação da dissertação pelas contribuições que deram nos debates sobre a formação de uma sociedade de controle, a criminalização, a guerra às drogas, a instituição policial, as favelas, a guetificação da pobreza, a violação dos direitos humanos, a segurança pública e a violência, além das relações de poder e práticas sociais destes locais de confinamento sem muros da pobreza nos contextos típicos da modernidade avançada. É importante ressaltar que não só os livros destes autores serviram de base bibliográfica para este trabalho, foram utilizados também artigos científicos, publicações e anais de congressos e seminários. Nos dois anos de pesquisa realizados para a confecção desta dissertação, muitos palestrantes concluíram quase que anonimamente para a formação crítica dos argumentos aqui defendidos, dentre os mais importantes figuram: os encontros da ANPOCS, da SBS, da ABCP e os seminários específicos sobre o tema das UPPs promovidos pelo Observatório de Favelas na Nova Holanda, uma das comunidades do Complexo da Maré, outro pelo IESP e outro, promovido pelo Instituto Pereira Passos, fora as incontáveis rodas de conversa e palestras oferecidas pelos vários programas de pós-graduação das universidades fluminenses. Para se aprofundar no tema da segurança pública carioca e das UPPs, foi necessário realizar extensas análises documentais, tanto de leis, decretos, acordos, relatórios nacionais e estrangeiros, divulgações, comunicados e zines de movimentos sociais, fotografias e reportagens da imprensa mainstream, alternativa e local. Contudo, estas leituras ainda não davam conta do minimamente requerido para as análises aqui contidas, tornando evidente a necessidade de ir a campo aprofundar as investigações. Em campo, algumas metodologias foram utilizadas para a realização do trabalho, dentre elas entrevistas informais com atores considerados fundamentais para o contexto da pacificação e implantação do controle na Rocinha, como comerciantes locais, ativistas políticos, integrantes de alguns coletivos e movimentos sociais, professores e soldados da 25

UPP durante suas rondas pela comunidade - sem, no entanto, solicitar previamente autorizações para tais conversas para o comando da UPP, visando garantir a informalidade e a espontaneidade das informações prestadas pelos agentes de segurança pública ouvidos -, acompanhamento de inspiração etnográfica do cotidiano de alguns moradores da favela, habitantes de regiões distintas do morro, dentre elas Laboriaux, Cachopa, Portão Vermelho, Bairro Barcelos e da Via Ápia, para verificar se a atuação da UPP e a implantação do controle variavam geograficamente dentro da comunidade, além de testemunhos de moradores que passaram por situações de violência infringidas tanto pelo tráfico quanto pela polícia ligados ao sistema de vigilância eletrônica ou que gozavam de alguma inserção junto ao tráfico de drogas, para aclarar as intrincadas disputas de poder internas no tráfico de drogas que domina a comunidade. As entrevistas informais ou conversas foram realizadas a partir de um roteiro parcialmente pré-definido, para servir aos propósito da pesquisa, visando questionar atores considerados chave para a tradução do status quo local, sobre os acontecimentos, as dinâmicas e as práticas sociais em voga depois da instalação do sistema de vigilância eletrônica na Rocinha, após as leituras e muita observação do campo, para realizar as perguntas corretas. O trabalho de campo de inspiração etnográfica na Rocinha, foi levado a cabo visando acompanhar o cotidiano de alguns de seus moradores - pessoas dos mais variados grupos étnicos, etários, de classe, gênero e escolaridade, escolhidos por relações de confiança previamente adquiridas devido a afinidades pessoais com o autor, o que favoreceu o livre trânsito de idéias e, ao menos, foi uma tentativa de burlar os silenciamentos impostos ao discurso destas pessoas pelo medo que têm do tráfico e da polícia -, suas relações com as instituições, sobretudo com a UPP e o Centro de Comando e Controle da unidade, e com o tráfico de drogas e suas disputas que sempre causaram disrupção das rotinas, tanto antes, quanto depois da ocupação militar do território. Também foi considerado importante acompanhar a relação dos comerciantes locais, tidos por alguns autores – como ficará claro durante o trabalho – como uma elite local, uma espécie de “burguesia favelada”, com a UPP, suas câmeras e o tráfico. Este trabalho foi realizado durante dois anos em diversos momentos diferentes tanto para o tráfico quanto para a UPP que passaram por mudanças importantes. O tráfico mudou algumas lideranças devido a prisões, fugas – até internacionais como o Johnny que fugiu para a Suíça - e trocas internas no comando do tráfico ordenados por Nem que continua chefiando o tráfico local mesmo preso, mas conseguiu manter seus lucros – e segundo a polícia inclusive aumentá-los –, sua hierarquia e seu poderio bélico . Quanto à UPP, 26

neste período entre 2012 e 2014, denúncias de violência, tortura, assassinatos, abuso de poder e etc, antes tidas como boatos implantados por pessoas pagas pelo tráfico ou por “inimigos” do processo de pacificação, como o apregoado pelo secretário de segurança pública Mariano Beltrame, foram confirmadas pela Delegacia de Homicídios, resultando na prisão de diversos policiais da unidade, dentre eles o comandante da UPP Rocinha à época, o Major Edson Santos pela tortura, morte e ocultação do cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza e colocando definitivamente em xeque a autoridade e a legitimidade da UPP frente aos moradores. Este processo de enfraquecimento da UPP tentou ser revertido pelo governo com a indicação da Major Priscilla para o comando da unidade, devido à experiência prévia da comandante à frente da UPP Santa Marta - primeira unidade instalada na cidade, tida como modelo do projeto de pacificação -, à sua fama de eficiente mediadora de conflitos e à boa relação que guardava com a comunidade de Botafogo. Contudo, esta tentativa se mostrou infrutífera com a escalada dos conflitos – chegando inclusive a ferir a major e o coordenador geral das UPPs Frederico Caldas -, a falta de cooperação da comunidade enfrentada pelos policiais, a continuação do poder armado do tráfico de drogas sob o comando do mesmo “frente” que geria o tráfico local antes da ocupação e a renúncia da comandante ao posto, com saída anunciada para meados de 2015. Devido a este contexto conturbado com mudanças rápidas, esse trabalho com um quê etnográfico do acompanhamento do cotidiano foi fundamental para captar as reorganizações da sociabilidade local, do tráfico e do ofício da própria polícia - já consideradas as dificuldades da pacificação na comunidade que serão expostas ao longo do trabalho – com a implantação de tecnologias características da sociedade de controle na comunidade. Ao mesmo tempo, procurou-se captar tentativas nascentes de resistência aos engendramentos do controle, como o observado no caso de midiativistas favelados que gravam operações policiais e, com isso, podem aumentar a chance de responsabilizar agentes de segurança que descumpram suas funções constitucionais. Para melhor captar este fenômeno, foram utilizados tanto entrevistas informais com perguntas previamente determinadas, para atingir aos fins da pesquisa, mas que poderiam ser modificadas no decorrer da conversa dependendo das respostas e questões apresentadas pelo interlocutor, quanto o acompanhamento de reuniões e atividades destes ativistas políticos que se utilizam da mesma arma empregada pelo Estado contra eles, na fiscalização de ações repressivas da polícia em sua comunidade. Por motivos de segurança apresentados tanto pela imposição do silêncio nas regiões sob o domínio do tráfico, quanto pela tradição revanchista e machista típica da Polícia Militar 27

do estado do Rio de Janeiro, o nome de todos os moradores e policiais da UPP Rocinha com os quais conversei ou entrevistei informalmente não serão veiculados neste trabalho, garantindo-se assim o anonimato e a integridade física de todos os que ajudaram na construção coletiva que foi este trabalho.

3. UMA GENEALOGIA DA POLÍCIA: O QUE HÁ COM A PMERJ? 3.1.UMA HISTÓRIA DA INSTITUIÇÃO POLICIAL “Os arquivos da polícia são nosso único passaporte para imortalidade” Milan Kundera.. A polícia segundo a análise de Michel Foucault (2008) surgiu como uma instituição acentuadamente distinta da que hoje entendemos como polícia. Na Europa do século XVI, com o processo de centralização do poder na mão do Rei absoluto, foi necessário desenvolver novas tecnologias de governo, novas formas de controle e redistribuição de relações de poder, sempre segundo o desejo e as necessidades do Estado. No século XVI polícia era entendida como uma comunidade regida por uma autoridade pública, um tipo de colonização humana assim como os burgos, as cidades, os principados e etc. Para manter a ordem, estes Estados modernos estabeleceram duas técnicas de governo: o equilíbrio de poder na esfera internacional, visando organizar, ordenar a composição e a compensação interestatal das forças, graças ao aparelho diplomático e à formação dos exércitos nacionais; e a polícia no âmbito interno, visando que, no século XVII, passa a adquirir o sentido de o conjunto de meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado aumentar, continuando com as boas condições de ordem interna. Tudo o que serve à manutenção da boa ordem da sociedade é da competência da polícia. Já nasce, portanto, inerentemente como uma instituição conservadora. “A polícia é o que deve assegurar o esplendor do Estado” (FOUCAULT, 2008). Como alguns Estados começaram a formar suas polícias, para manter a ordem e o esplendor interno, outros Estados, para manter o equilíbrio de forças, começaram a criar também as suas, para não deixar o jogo de forças virar a seu desfavor. A estatística, portanto, emerge como uma tecnologia policial das mais sofisticadas, pois se fazia necessário conhecer suas próprias forças e apreciar as dos outros para que se saiba se há ou não equilíbrio de forças, sendo 28

possível dispor desses dados para alterar ou para manter o jogo de forças na Arena Internacional. A polícia, como arte de desenvolver forças, supõe que cada Estado saiba quais são suas possibilidades, as suas virtualidades, a estatística, portanto, torna-se necessária por causa da polícia. “A estatística é o saber do Estado sobre o Estado, entendido como saber de si do Estado, mas também saber dos outros Estados.” (FOUCAULT, 2008, p. 424). Dentre os serviços desempenhados pelas polícias visando o bem público e a expansão das forças do Estado, estavam a instrução de crianças e jovens1 nos ofícios úteis e necessários ao Estado, fornecendo mão-de-obra ao Reino; registro de profissões e acompanhamento da vida profissional dos súditos do Estado, para evitar força de trabalho mal-empregadas, surgindo a figura criminosa da vagabundagem (vadios e sem honra), desempenhando inclusive uma função moral2; dos pobres, da caridade e também da saúde coletiva da população, incêndios, inundações; dos comerciantes e regulará os problemas do mercado e o modo de produção, devendo favorecer sempre o comércio para a boa saúde do Estado; e, ainda, deve assegurar os direitos senhorias e zelar pelos prédios, caminhos públicos, florestas e domínios do Rei. Junto com a Justiça, o Exército e as Finanças, a Polícia seria o quarto braço fundamental de qualquer Estado moderno. A polícia, portanto regularia a virtude política e social, além da atividade de homem na medida em que esta tem relação com o Estado. Era importante que os homens não fossem preguiçosos, que fossem dóceis, obedientes, virtuosos e trabalhadores, disso dependia a boa qualidade dos elementos fundamentais para o desenvolvimento Estado. Uma das primeiras preocupações da polícia foi com relação ao número de homens do Estado, pois à época o conjunto de forças do Estado era avaliado em função do número de súditos que ele possuía sob sua zona soberana. Uma população grande era necessária para o crescimento do mercado e do Estado e os excedentes sempre poderiam ser exportados para as colônias alhures. Contudo, com uma grande população surgia a contingência de que esta população tem necessidades fundamentais. Estas necessidades deveriam ser administradas e providas pela polícia através dos cofres estatais. Deve também cuidar da saúde coletiva para assegurar-se de que todos os homens estão em plena capacidade de produção para ajudarem a aumentar as forças do Estado através do trabalho. E uma grande população alimentada e com saúde deve ser bem empregada na cadeia produtiva de acordo com as necessidades mais imediatas apresentadas pelo Estado, sendo então, mais um papel da polícia, a alocação da mão-de-obra 1 Algo que acontece ainda hoje, em pleno século XXI, em alguns estados brasileiros, notadamente Goiás e Amazonas, onde escolas públicas foram entregues à Polícia Militar, que administra e hierarquiza, à semelhança do castro, o ambiente escolar que deveria ser democrático e libertador. 2 Função desempenhada pela Polícia Militar no Brasil até a ditadura militar.

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nacional. O comércio, última escala da saúde econômica do Estado, também deveria ser regulado por ela, já que da circulação de mercadorias dependia toda a economia do país, sendo, portanto, necessário o patrulhamento de estradas e caminhos, além de edifícios e da navegabilidade de canais, assegurando as estruturas básicas para que o comércio ocorra sem maiores dificuldades. A polícia era o conjunto das intervenções e meios que garantem que coexistir será útil à constituição e ao aumento de forças do Estado e que, em última instância, proporcionem a felicidade dos súditos do Estado (FOUCAULT, 2008, p. 438). A polícia seria, portanto uma instituição urbana e mercantil, uma instituição de mercado, em sentido bem amplo. Porém que ainda não tinha o caráter repressor que tem hoje. Porém outra instituição administrativa foi criada pelo poder real que seria uma força armada usada para evitar desordens internas depois de guerras, reprimindo violência, delinquência, crime, roubo e assassinato, enfim, todas as pessoas errantes, consideradas perigosas e sem escrúpulos à época, cuja única relação com o soberano seria a de controle e repressão através desta força armada real, a gendarmerie. Portanto comércio, desenvolvimento, urbanização e mercantilismo eram todos ofícios policiais no século XVII. A polícia nessa época não era vista tendo nenhuma relação com a Justiça, sendo tipos diferentes e isolados do mesmo poder régio, não era, portanto, pensada – a polícia - como um instrumento do poder judiciário. A polícia é, portanto, o exercício soberano do poder real sobre os indivíduos que são seus súditos, é nisso que consistia a polícia, e é nisso que ela continua consistindo. Uma ferramenta do Estado para a disciplinarização urbana. Torna-se preciso então enquadrar os fenômenos naturais de tal modo que eles não se desviem do que o Estado quer que eles façam, ou seja, são necessários mecanismos de segurança para que estes processos naturais sejam aplicados para o bem do Estado, da maneira como ele desejar que sejam aplicados. Começa então, a polícia, a ser um dispositivo pelo qual se impedirá a desordem das forças produtivas do Estado – as pessoas -, caracterizando-se a partir daí como um aparelho repressivo do Estado. Surge então a polícia que conhecemos hoje. A polícia, como poder régio do soberano, até hoje é encarada como se fosse para ser temida e respeitada, e não gostada. E o policial que lida com os considerados desvios do homem conserva, portanto, uma imagem negativa da natureza humana, sendo atributos comuns à classe policial a dissimulação, o ésprit de corps, a desconfiança, a astúcia e o conservadorismo (BRETAS & PONCIONI, 1999). Uma outra característica forte é que geralmente as atitudes de desconfiança dos policiais vêm acompanhadas da hostilidade – e por vezes violência – por parte dos policiais com relação à população. Tais estratégias de 30

relacionamento com a população se corporificam em formas diferenciadas de tratamento, conforme a situação e o segmento de classe ao qual pertence o usuário do serviço policial, a posição que ele ocupa na sociedade, sua cor e seu gênero, sendo a polícia um enclave de preconceitos e racismos incrustados no imaginário social e, portanto, policial compartilhado por eles. Entre eles há recorrentemente posturas autoritárias e paternalistas de acordo com os níveis hierárquicos na carreira, que vêm acompanhados de frações de capital simbólico e, portanto, de produção de verdades, estigmas e preconceitos, bem diferenciados. Devido ao elevado risco que envolve a profissão, o policial tem uma forte solidariedade com os colegas de farda, pondo-se sempre à disposição para defendê-los porque sabe que eles fazem o mesmo por ele, por serem iguais e enfrentarem os mesmos perigos diariamente. Junto com este forte ésprit de corps, há um conservadorismo advindo de sua função constitucional de manter o status quo, portanto, de manter a ordem vigente como está rechaçando mudanças e revoluções e também devido à idealização do passado da instituição durante o período ditatorial, tornando-se rotina discursos e atitudes autoritárias sem nenhum respeito aos direitos humanos das populações cujo estigma é de perigosas, violentas e naturalmente desafiadoras da ordem constitucional. Para os policiais, o temor que eles deveriam impor, é o mesmo temor do Estado, o desrespeito ao policial é entendido como o desrespeito ao Estado, (daí o famoso jargão policial “aqui a lei sou eu”), por isso, eles tendem a ser nostálgicos com relação ao Estado autoritário ditatorial, no qual tinham mais autoridade e liberdade de ação por não terem que prestar contas do seu serviço à população e sim somente à cúpula militar encarregada da administração do Golpe. A polícia não é uma instituição que age no vácuo, isolada da sociedade. Pelo contrário, ela age dentro do aceitado, esperado, pensado e até mesmo desejado por amplos setores da sociedade. Quando se diz que policiais geralmente são machistas, racistas, homofóbicos, classicistas e pouco valoram os direitos humanos, é porque assim é grande parte da nossa sociedade. A polícia é, portanto, o espelho dos sensos comuns, manipulada ao bel-prazer das classes dominantes, com maior poder simbólico de construção da realidade. Portanto, pode-se dizer que a polícia como instituição, foi construída sobre preconceitos e estigmas prévios destas classes dominantes com relação ao pobre, ao negro e ao favelado, entendidos como pessoas perigosas. Portanto, verifica-se a incorporação de valores discriminatórios e racistas à percepção de mundo e à atuação profissional da polícia, reproduzindo o modelo hierárquico das relações sociais e a lógica excludente inerente a estas relações. E estas populações que mais são reprimidas e exterminadas pela polícia, paradoxalmente, são, 31

geralmente, pertencentes ao mesmo background socioeconômico e ao mesmo grupo étnico dos policiais. Usa-se, portanto, membros das classes subalternas para reprimir a própria classe subalterna, sob a desculpa de proteger e assegurar os direitos destas mesmas classes. Tudo para assegurar o interesse econômico e, portanto, político e social das elites que controlam o Estado. Existe uma dialética entre o Estado de direito real, concreto ou histórico, entre este e o Estado de polícia. O Estado de polícia que o Estado de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de direito lhe coloca 3. Como estratégia de controle social o Estado de polícia usa o poder punitivo. O poder punitivo tem extrema seletividade que pode ser atenuada, mas não reprimida, já que a caracterização do inimigo contra o qual se deve lutar é sempre produto de uma relação de poder voltada a reprimir uma parcela da população em detrimento de outra, pelo interesse de outra. Com a desregulamentação econômica, divisões étnicas históricas onde o negro é sempre posto em posições subalternas e o Estado mínimo neoliberal acontece um processo em que o que acontece é “the restrictive revamping of the state's welfare wing and the expansive deployment of its penal wing in and around neighborhoods of relegation” (WACQUANT, 2008, p. 58). Como se vê a penalização da marginalidade urbana reativa associações simbólicas entre negritude e periculosidade, forjados nos tempos da abolição. A favela brasileira é casada com o sistema penal via agências policiais extremamente agressivas, através da criminalização da pobreza e do racismo institucionalizado historicamente. A favela brasileira é, portanto, o espaço social e físico primordial no qual o Estado - brasileiro - penal neoliberal está sendo testado e construído. Como o descrito abaixo por Wacquant: In the Brazilian city, the polícia militar routinely intrude into shanty-towns with blitzes, during which low-flying helicopters knock off tin rooftops and troops back down doors and windows, ransack houses and bully their occupants, fire weapons indiscriminately, close down stores and schools, and carry out mass arrests for vadiagem leading to indefinite custody with its string of tornments, that are indistinguishable from military incursion into an occupied territory in their tactics and effects (WACQUANT, 2008, p. 66).

Características marcantes das polícias brasileiras são a corrupção e a violência, arraigadas e aceitas pelos códigos morais da corporação, como o notado abaixo por Wacquant:

3 ZAFFARONI, Eugénio Raúl. O inimigo do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 170.

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They are themselves [os policiais] deeply involved in drug trafficking, arms selling, kidnapping, extortion, and assorted illegal activities from which they extract payoffs in exchange for toleration and protection. The police are just as feared and scorned by the residents of the poor neighborhoods as are the bandits they are supposed to subdue (…) Inhabitants of Rio view their police precinct as a dangerous place where their rights, honor and physical integrity are more likely to be violated than upheld (…) The routine use of lethal violence by the military police (...) and of torture by the civil police (…) partakes of a century-old national tradition of control of the dispossessed by force (…) stigmatized neighborhoods have become the prime targets of virulent police action and pivotal sites for innovations in and exhibitions of aggressive law-enforcement through which the state ritually reaffirms its capacity for action (WACQUANT, 2008, p. 60).

A necessidade de enfrentar a corrupção policial ganha importância na agenda pública, levando o governo a desenvolver políticas de valorização e de melhor formação da nova geração de policiais, voltadas para a promoção da cidadania. Porém, não adianta de nada educar os novos cadetes em direitos humanos quando a instituição policial é fortemente influenciada pela criminalização da pobreza, pela violência e pelo assassínio como métodos corriqueiros de trabalho e pelo autoritarismo e pelo desrespeito à vida herdados dos tempos da ditadura militar. Uma polícia com uma bandeira cujo símbolo é de uma caveira transpassada por uma faca, não é consoante com o Estado de direito e sim com um Estado autoritário que legitima práticas genocidas, além da violação generalizada dos direitos humanos. E o maior perigo aqui, além da expansão das atividades criminosas desta polícia autoritária e militarizada, é a naturalização, o apoio e a glamourização do ofício desta polícia, como se chacinas e torturas fossem, além de normais, necessárias à vida em sociedade. Os níveis são tão altos, é tão sério o problema que até organizações internacionais como a ONU criticaram o Brasil por vias oficiais. No Universal Periodic Review do Brasil de 2012, a ONU destacou como um dos principais problemas o grande número de execuções extrajudiciais por agentes do Estado e recomendou que todas as mortes causadas por policiais em serviço fossem registradas, investigadas e que os culpados fossem efetivamente punidos conforme à lei, além de pedir medidas mais fortes contra os chamados esquadrões da morte, que aterrorizam bairros periféricos das grandes e médias cidades brasileiras. Chegaram até mesmo a recomendarem que o Brasil desmilitarizasse sua polícia, dando fim à PM, unificando-a com a Polícia Civil e, que esta nova polícia, fosse de facto educada para agir em respeito aos direitos humanos e à lei.

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3.2.UM BREVE HISTÓRICO DOS DOIS SÉCULOS DA PMERJ

“Nos lugares onde as forças militares são relativamente grandes, centralizadas e hierárquicas, como acontece na maioria dos países, hoje em dia, a poliarquia é certamente impossível a menos que os militares sejam suficientemente despolitizados para permitir um governo civil.” Robert Dahl, Poliarquia, 2012. Segundo Gustavo Bandeira de Mello (1924), com a vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808, resultado das Guerras Napoleônicas, a estrutura colonial mudou de forma extraordinária, inclusive com relação ao número de habitantes, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. Para cuidar da segurança pública, as estruturas existentes à época demonstraram-se completamente ineficientes, o que então levou D João VI, então ainda Príncipe Regente, a criar a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte (DMGRP), em 1809. Antes da edição deste decreto real, a segurança pública da colônia, assim como da metrópole, ficava a cargo dos chamados “quadrilheiros”. Composta por 218 homens de início, a DMGRP era composta de um Estado-maio, responsável pelo comando conjunto de 4 companhias de duas Aras: 3 de Cavalaria e 1 de Infantaria. Comandada por um ex-integrante da Guarda Real de Polícia de Lisboa, o capitão José Maria Rebello de Andrade Vasconcellos e Souza. A semelhança com a Guarda Real de Polícia de Lisboa vai lém: os uniformes e as armas usadas eram os mesmos. Portanto, pode-se falar com exatidão que a DMGRP foi na verdade a instalação na nova capital do Império Português da Guarda Real de Lisboa, que deixara de ser capital menos de um ano antes. Por isso, é importante mencionar que D. João VI havia criado a Guarda Real de Polícia de Lisboa em 1801, portanto pouquíssimos anos antes de sua transferência para o Brasil, assim como é importante notar que este foi um projeto completamente inspirado na Gendarmerie Nationale francesa, a citada no capítulo anterior. A polícia carioca, desde o início de seu funcionamento não atuou como uma mera instância repressiva do Estado, mas sim politicamente, por vezes interferindo nos grandes processos políticos nacionais, como são os casos da Independência em 1822: “A Guarda Real de Polícia, como ficou primeiramente conhecida a PMERJ, teve participação decisiva em omentos importantes da história brasileira como, por exemplo, na Independência do país. Em 25 de abril de 1821, D. João VI é forçado a

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retornar para Portugal. Porém, seu filho, o príncipe D. Pedro, permanece no Brasil. As Cortes de Lisboa que haviam obrigado o retorno de D. João VI, determinam o imediato retorno de D. Pedro para Portugal. As elites brasileiras ante isto, promovem um abaixo-assinado, cujo movimento entra para a história como o Dia do Fico: em 9 de janeiro de 1822. A população é conclamada a dirigir-se à uma residência do centro do Rio de Janeiro e assinar um manifesto pela permanência de D. Pedro. Ante tal ato, o Brigadeiro Jorge Avilez, Comandante da Divisão Auxiliadora, força de ocupação portuguesa, determina que integrantes daquela força impeçam a realização do ato. Em represália, Miguel Nunes Vidigal determina que as tropas da Guarda Real da Polícia garantam o abaixo-assinado e depois escoltem o manifesto até o Paço, para ser entregue ao Príncipe D. Pedro. Ao receber o manifesto, D. Pedro comovido anuncia a sua permanência no Brasil. A represália vem no dia seguinte, com a rebelião da Divisão Auxiliadora. Esta força ocupa o Morro do Castelo e ameaça bombardear a cidade, caso D. Pedro não embarque imediatamente para Portugal. A reação se faz imediata: sob o comando do Brigadeiro Xavier Curado, tropas fiéis ao príncipe e alinhadas com o desejo de independência, incluindo aí a GRP reforçadas com populares armados, cercam a Divisão Auxiliadora. Inferiorizado em homens e munições, e com pouca água, Avilez se rende, sendo ele e a sua tropa expulsos do país. Têm início as articulações políticas para tornar o Brasil um país independente, que produzem o seu resultado em 7 de setembro de 1822. A corporação, por aclamação popular, passa a se chamar de Guarda Imperial de Polícia, sendo porém negado a mesma a dignidade de ostentar o pavilhão imperial, ao que esta vai perdendo prestígio que tivera nos tempos de D. João VI.” (BANDEIRA DE MELLO, 1924)

E, da Guerra do Paraguai em 1865: “Na época, como o país não dispunha de um contingente militar suficiente para combater os cerca de 80 mil soldados paraguaios, o governo imperial se viu forçado, então, a criar os chamados “Corpos de Voluntários da Pátria”. Em 10 de julho daquele ano, partiram 510 oficiais e praças do Quartel dos Barbonos da Corte, local onde hoje está o situado Quartel General da Polícia Militar. A este grupo foi dado o nome de “31º Corpo de Voluntários da Pátria”. Neste contexto surge o mascote da Corporação: o cão Bruto. Este animal era um cão de rua, que certo dia adentrou no Quartel dos Barbonos e virou mascote da tropa. Quando toda a Infantaria do Corpo seguiu para a Guerra do Paraguai, Bruto seguiu a tropa e embarcou junto com eles. Participou ativamente dos combates, e apesar de ferido, retornou com a tropa. Morreu no Rio de Janeiro, envenenado. Os praças da Corporação mandaram empalhar o seu corpo que está em exposição no Museu da Corporação, no Centro do Rio de Janeiro. A parte da polícia que cuidava da então província do Rio de Janeiro, a exemplo do que aconteceu na Corte, também enviou contingente de 510 homens à Guerra do Paraguai, sob a designação de “12º Corpo de Voluntários da Pátria”, sob o comando do Tenente-Coronel João José de Brito, a qual partiu para o teatro de operações em 18 de fevereiro de 1865. Os feitos heróicos deste corpo de voluntários chegou ao ponto do governo argentino ter criado uma medalha em sua homenagem, cuja utilização foi permitida pelo aviso nº 542 do Exército brasileiro, em 4 de abril de 1867. Inobstante isto, o 12º CVP foi dizimado na guerra, sendo os seus sobreviventes empregados – juntamente com integrantes de outros Corpos de Voluntários – para compor o 44º CVP. Este Corpo de Voluntários, sob o Comando do então Major Floriano Peixoto, em heroica carga, capturou uma bateria de canhões inimigos.” (PMERJ, 2014)

Assim como no golpe da República em 1889, quando por indicação dos republicanos que tomaram o poder, assumiu a chefia do governo fluminense Francisco Vítor da Fonseca e 35

Silva, então comandante do Corpo Policial da Província, sendo o primeiro governante republicano do estado do Rio. No início da República, esta não foi a única interferência policial na vida política do então Distrito Federal. Nas décadas seguintes, a instituição viu-se envolvida, tanto na capital quanto em outras partes do país, em diversos conflitos políticos e sociais, tendo sido empregada, ora sozinha, ora como corpo auxiliar do Exército. São exemplos destas interferências as Revoltas da Armada e da Vacina, as Revoluções de 1930 e Constitucionalista de 1932. Até mesmo entre as tropas brasileiras enviadas à 2ª Guerra Mundial, encontra-se a presença da Polícia do Distrito Federal, esta tendo mobilizado oficiais para a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária enviada para os combates na Europa. (BANDEIRA DE MELLO, 1924; 1928) O que deve ficar claro é que, mesmo que de fato as polícias tenham sido usadas pelo Estado como forças auxiliares das Forças Armadas desde a implantação da Divisão Militar de Polícia da Corte, só passaram legalmente a serem entendidas como tal em 1917, quando o Corpo de Bombeiros e a Polícia, ambos da capital federal, tornaram-se oficialmente reserva do Exército, o que posteriormente foi estendido a todas as unidades da federação. É a partir daí que há uma reaproximação da polícia com o Exército, gerando padronizações de uniformes, armas e equipamentos. Com as Revoluções de 1930 e 1932, as duas instituições praticamente fundiram-se num mesmo modelo militarizado, e, devido ao período político vivido no Brasil varguista, onde os estados perderam muito de sua autonomia em benefício da União, as polícias também foram atingidas e postas de fato sob domínio do Catete, que indicava governadores aliados para o cargos estaduais. Este processo de centralização do poder e das polícias só reforçou a simbiose e a integração entre polícias e Forças Armadas, praticamente fundindo ambas as instituições. Com esta centralização do poder, pela primeira vez as polícias estaduais passam a ter estrutura e postos hierárquicos iguais, do soldado ao generalato – no caso dos combatentes da FEB até Marechal, patente extinta nos dias de hoje -, bem como armamentos, uniformes e modus operandi, pela primeira vez há uma espécie de modelo a ser seguido nacionalmente pelo agente de segurança pública, o que moldou todas as polícias estaduais à imagem e semelhança da polícia da Guanabara (BANDEIRA DE MELLO, 1932). Com a queda de Vargas em 1945, os estados recobraram autonomia e com isso as polícias voltaram de fato a serem estaduais, porém após esses 15 anos de correlação intrínseca com o Exército, o modelo militarizado estava incrustado e determinava muitas das posturas policiais que marcam até hoje a visão popular sobre a polícia e o policial. É nesse momento que as polícias passam a ser oficialmente denominadas Polícias Militares, até mesmo para 36

resguardar o prestígio ganhado pela 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, composta por policiais que foram lutar na Itália, como já foi dito. É na mesma época que as estruturas hoje observadas nas polícias militares estaduais começam a ganhar forma, com a criação de destacamentos especializados. Até este momento a polícia agia como gendarmerie francesa, protegendo prédios públicos, estradas e outros pontos vitais para o esplendor do Estado. No entanto, o policiamento ostensivo, hoje função primordial da polícia militar, encontrava-se sob responsabilidade da Guarda Civil, subordinada à Polícia Civil, porém uniformizada. Portanto, o policiamento ostensivo era até os governos militares genuinamente civil, o famoso modelo de policiamento “Cosme e Damião” ou os policiais de bairro, responsáveis pela dissuasão de crimes “de oportunidade”, aqueles como roubo, furto, estupro, depredação e etc, que diminuem de forma inversamente proporcional com a presença do policial circulando em meio à população que o conhece pelo nome, confia em seu trabalho justamente por manter, de forma amistosa a ordem pública local. O mais interessante é que esta Guarda Civil só dispunha de apitos e cacetetes, não portava armas de fogo, pois sua função era basicamente mediadora de conflitos e dissuasória, limitando a atuação militaresca, com a lógica de eliminação do inimigo, às polícias militares e às Forças Armadas, que eram em si entendidas como auxiliares das Armas e por isto necessariamente militarizados. O patrulhamento era feito por policiais em bicicletas ou a pé, para resguardar a proximidade com a população, entendida como a priori desta modalidade de policiamento. O policiamento ostensivo só deixou seu caráter civil com o Golpe de 1964, quando a lógica militar foi também estendida ao policiamento ostensivo, agora posto sob responsabilidade das Polícias Militares. Em 1967 foi criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM) , subordinando diretamente, novamente, as polícias ao Exército. A instituição desta Inspetoria Geral tornou o patrulhamento fardado exclusivo de organizações militares, colocando portanto o policiamento ostensivo sob responsabilidade das Forças Armadas e da Polícia Militar, extinguindo-se assim com as Guardas Civis e o modelo Cosme e Damião de patrulhamento. Com isso, as Guardas Civis foram extintas, e seus funcionários foram transferidos para o recém-criado cargo Agente de Polícia Judiciária, forma embrionária do inspetor de polícia, cargo presente até hoje na estrutura da Polícia Civil. Na década de 1970, com o recrudescimento do Regime Militar, o intercâmbio entre militares e policiais militares se deu de maneira mais intrínseca: o governo passou a indicar oficiais do Exército para o comando destas corporações policiais. Além disso, como parte do plano de militarizar a segurança pública a nível federal, as hierarquias das instituições foram pareadas e assim, novamente, todas as patentes da polícia eram as mesmas do Exército. Foram também 37

homogeneizados uniformes, armas e organização administrativa em Batalhões, Brigadas ou Companhias, variando regionalmente, que gozavam dos mesmos códigos disciplinares que o Exército. E assim se deu a completa militarização do policiamento ostensivo no Brasil – o Rio de Janeiro, agora não mais capital da república, unificado ao Estado do Rio de Janeiro, acompanhou estas tendências emanadas de Brasília. Com o fim da ditadura militar em 1985 e a Constituição de 1988, a organização do aparato de segurança pública não foi alterada, mantendo-se a militarização como traço inconfundível das polícias estaduais, ao contrário da tendência em outros países latinos que viveram períodos ditatoriais durante a Guerra Fria, no que diz respeito à reconstrução de instituições democráticas. Houve a influência direta com a eleição de representantes dos interesses militares inclusive na composição da Assembléia Constituinte, como evidencia Zaverucha: “Na Constituição Federal de 1988, as cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, policiais militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança pública em geral, permaneceu praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967/69. As Forças Armadas tiveram papel de grande importância na manutenção de suas prerrogativas, pois nomearam 13 oficiais superiores que fizeram lobby pelos seus interesses no período de redação daquela carta.” (ZAVERUCHA, 1998)

Lobbies com a intenção de guiar o processo de reconstrução ou manutenção das instituições autoritárias foram influentes em vários campos da chamada “Nova República”, sobretudo no artigo que delimita as funções constitucionais das polícias e das Forças Armadas, escrito por Jarbas Passarinho, personagem influente nos círculos militares da ditadura: “A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, presidida pelo então senador Jarbas Passarinho – o mesmo que participou do AI-5, em 1968, e fechou o Congresso Nacional – ficou encarregada dos capítulos ligados às Forças Armadas e à Segurança Pública” (ZAVERUCHA, 2005)

O resultado, como já se pode antever, foi uma constituição civil e democrática, porém resguardando fortes prerrogativas militares. O que na década de 1990 e 2000 foi reforçado com outros textos legais que conferiam poder de polícia às Forças Armadas em fronteiras e em situações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). É a partir desta previsão legal que a utilização das Forças Armadas em operações de segurança pública, como as invasões de favelas que precedem e inauguram simbolicamente o processo de pacificação, são possíveis e recorrentes. Mas como estabelece Stepan (1998), isto põe um perigo claro à nascente 38

democracia brasileira: “Como garantidores da lei e da ordem internas, a qualquer momento esse ator político pode interferir em assuntos de segurança interna que, em democracias plenas, jamais existiria. Tal prerrogativa aparece como sendo de alta intensidade, pois a constituição encarrega os militares de responsabilidade principal na garantia da lei e da ordem interna, outogando-lhes uma grande margem d decisão que lhes permitem determinar quando e como devem cumprir com suas obrigações.” (STEPAN, 1998)

Como se vê, portanto, a militarização da segurança pública é de caráter dual: com a militarização das polícias e a concessão de poder de polícia às Forças Armadas. Hoje a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro conta com quase 50000 homens e mulheres em suas fileiras e o plano do governador recém-eleito Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ) é contratar mais 14000 policiais nos próximos quatro anos. Totalizando, portanto, até 2018 quase 70000 policiais militares. No entanto, apesar dos vultosos números, muitos afirmam que a polícia brasileira - e especificamente a fluminense - é mal treinada, porém, Deley de Acari em entrevista dada à Maria Helena Moreira Alves (2013) desafia acertadamente este consenso: “Um policial militar que consegue acertar a cabeça de uma pessoa de dentro de um Caveirão a oitenta metros não é um policial mal preparado. Pode ser mal preparado de caráter de formação, mas tecnicamente nosso policial é ótimo. Eles mesmos dizem que o Bope é uma das polícias mais preparadas do mundo. E acreditamos nisso porque vemos os resultados efetivos dentro da favela, onde eles atuam.” (MOREIVA ALVES, 2013)

A questão, portanto, não seria de treinamento, porque a polícia é bem treinada. A questão seria o caráter de atuação e como este treinamento engendra o agente de segurança pública que, agindo de acordo com o treinamento recebido na academia de polícia, consegue fazer o que o líder comunitário descreveu acima. Portanto, para mudar o viés de atuação policial, mais do que reformas curriculares ou mudanças no treinamento, o que deve acontecer é uma reforma da polícia, na lógica de trabalho, no aparelhamento, nas hierarquias, na relação com a sociedade e nas prioridades de atuação, se o fim último for diminuir as situações de violência e tornar a segurança pública democrática. É aí que são introduzidas discussões sobre possíveis mudanças na formação do policial que poderiam trazer benefícios a médio e longo prazos para as condições de segurança pública no país. As primeiras e mais tímidas tentativas de reforma da polícia focaram na introdução de matérias de direitos humanos no currículo obrigatório de formação dos policiais 39

militares. Estes intentos, no entanto, demonstraram-se infrutíferos, com efeitos parcos. É, por exemplo, o caso de São Paulo que há 3 décadas alterou a grade curricular do curso de formação de PMs, com efeitos imperceptíveis no sentido do respeito aos direitos humanos no estado, que conta com uma das polícias que mais assassina no mundo. É como declara Paulo de Tarso Vannuchi, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do governo Lula, em entrevista à Maria Helena Moreira Alves (2013): “Desde 1983 há cursos de direitos humanos para a polícia, só que era um módulo. O professor de direitos humanos ia dar as aulas dele das sete às dez. Às dez entrava a aula seguinte sobre “abordagem policial”. O que é abordagem policial? Diziam que se passar um carro com três elementos negros do sexo masculino tem de parar o carro, porque estatisticamente está provado que são assaltantes, e não pode pedir documentos de dentro do carro, porque o colega fez isso e levou um tiro no meio da testa. Tem de mandar, com a arma na mão, sair do carro com a mão para cima, e se tiver algum medo já começa dando um chute no joelho. Tudo o que se ensinava sobre direitos humanos das sete às dez, das dez em diante anulava. Então nós fomos formando uma polícia que não foi modificada durante o regime militar e continuou basicamente com a mesma formação.” (MOREIRA ALVES, 2013)

Além disso, há a necessidade urgente, recomendada pela ONU, de extinguir as Polícias Militares e Civis e em seu lugar construir uma polícia unificada, que atenda ao ciclo completo do trabalho policial, desde a investigação e a inteligência até a repressão e ao patrulhamento ostensivo, de caráter desmilitarizado. A Polícia Civil também precisa ser desmilitarizada, já que apesar de hierarquia civil, ostenta um modus operandi completamente militarizado, com a mesma lógica da polícia militar: neutralizar o inimigo. Como demonstra este episódio vivido em Acari pelo líder comunitário Deley, contado por Maria Helena Moreira Alves (2013): “Em novembro de 2009, Deley de Acari anunciou o fracasso do Sistema para Redução de Danos e Perdas de Vidas Humanas no Complexo de Acari. Ele e outros tetaram convencer jovens que integravam gangues de drogas a deixar suas vidas de crime e suas armas e entrar na economia formal. Jorge Rodrigues de Souza, apelidado de “Uerê”, aceitou o desafio – foi um dos trinta jovens abordados, e outros vinte se mostraram interessados em se juntar a ele. Uerê entregou então sua metralhadora a um policial civil, que imediatamente atirou nele à queima-roupa e o matou. Deley culpou-se em parte pela morte de Uerê. Ele e outros líderes, ele disse, “se esqueceram” de “fechar um acordo com o governo e com o alto comando da polícia para acabar com a política de confronto, de extermínio dos pobres e de limpeza étnica”. Ele escreveu: “Nossa estratégia pela paz fracassou porque era romântica e unilateral”. Esse episódio trágico é mais uma evidência da ausência de comunicação e do abismo de desconfiança que separa muitas dessas comunidades e muitos líderes comunitários das autoridades governamentais e policiais do Rio de Janeiro.” (MOREIRA ALVES, 2013)

O projeto de emenda à Constituição que tramita no Senado Federal de autoria do senador Lindberg Farias (PT-RJ) escrito em conjunto com Luis Eduardo Soares para 40

desmilitarizar as polícias – a PEC 51/2013 - é única tentativa concreta de reforma do arcabouço jurídico que estabelece a estrutura do aparelho repressor do Estado. E é de suma importância para o avanço neste processo de desmilitarização, pois não é seguro contar com possíveis avanços de alguns governos que visam tornar a política de segurança pública mais humana sem o estabelecimento dessas mudanças por lei, porque política de governo muda com as eleições, o que se mantém é política de estado, que até então vem sendo, em níveis diferentes, a mesma repressão cristalizada no conflito bélico. Para garantir mudanças seguras e mais ou menos duradouras, é necessário reformar o pacto federativo no que tange à segurança pública e os artigos da constituição que dispõem sobre as estruturas de segurança pública do país. É como nota novamente Deley de Acari de forma maestral: “Uma coisa é a filosofia do governo, outra coisa é o comandante do Batalhão. Os mesmos caras dizem: - O governador vai ficar quatro anos, a gente está no Batalhão há vinte, quem sabe é a gente”. (MOREIRA ALVES, 2013).

3.3.A ATUAÇÃO DA PMERJ E A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO GOVERNO SÉRGIO CABRAL/PEZÃO “Acendo um e penso na polícia: Servir e Proteger. Servir a quem? Proteger de que?.” Planet Hemp, Test-drive de freio de camburão, 2000.

Sérgio Cabral (PMDB-RJ), apoiado pelo ex-governador Anthony Garotinho (então PMDB-RJ, hoje do PR-RJ), venceu as eleições de 2006, tornando-se assim governador do estado do Rio de Janeiro. Desde então apoiou intensamente a política de confronto como estratégia no combate ao tráfico de drogas, período sem precedentes de estado de sítio, invasões promovidas pela PM e por militares em favelas. Apesar do grande número de inocentes mortos e feridos graças a esta política, Cabral apoiava-se sobre o apoio popular – e as vezes até mesmo no apelo popular – a essas ações de guerra. Mesmo sendo aliado do Presidente Lula, esta política de confronto o colocou em diversas ocasiões contra o governo federal, que constante pressionava o governo estadual para adotar políticas que priorizassem os direitos humanos e uma polícia menos violenta. Conflitos esses que, no entanto, não foram fortes o suficiente para abalar a relação entre os dois aliados. 41

No entanto, como forma de concretizar esses anseios humanistas de segurança pública, o governo federal no segundo governo do presidente Lula lançou o PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. Ele foi lançado em 2007 como uma tentativa bem articulada de reformar o modelo arcaico de segurança pública com o qual o Brasil está acostumado há décadas. São princípios adotados pelo PRONASCI: defender que os direitos humanos e o trabalho policial devem estar interligados à segurança pública. Este programa coordena com os governos estaduais contrapartidas para investimentos federais em armamentos, infraestrutura e até mesmo bolsas-formação para as polícias militares estaduais. Todos esses investimentos sempre primando o respeito aos direitos humanos e a diminuição da letalidade policial. Como afirmou Tarso Genro, Ministro da Justiça do governo Lula, um dos criadores do PRONASCI, em entrevista à Maria Helena Moreira Alves: “Esse modelo de operação policial que está se levando a cabo no Rio de Janeiro é o modelo já aplicado anteriormente sobretudo depois do golpe de Estado de 1964, no qual a forma de comunicação da polícia com a comunidade sedá sempre através da violência e não na forma de diálogo de convivência comunitária, da vida cotidiana das pessoas na comunidade. O que está ocorrendo no Rio de Janeiro, na verdade, é produto de um aprendizado do aparato do Estado, é o aprendizado da violência, o aprendizado da repressão, o aprendizado do estranhamento do Estado em relação à sociedade, que não se dá somente no âmbito da segurança pública, se dá de uma forma extraordinariamente negativa. Então como fazer para mudar isso? É necessário mudar politicamente o pacto federativo. Porque não adianta somente o Estado mudar o seu comportamento. Se nós não tivermos, na base da sociedade, uma mudança na cultura da comunidade, uma mudança no aparato repressivo, essa mudança vai se transformar em impotência, e essa impotência pode exacerbar, inclusive, a violência (...) sobre os policiais, nós temos que desenhar uma política de formação, de alta qualidade, para que eles acompanhem essa mudança institucional e essa mudança cultural. Também não adianta só substituir o armamento policial.” (MOREIRA ALVES, 2013)

Uma das atitudes com maior sucesso do programa foi a troca de armas das polícias. Esse processo foi empreendido através da restrição das armas financiadas às polícias estaduais pelo governo federal. É como põe Ricardo Balestreri, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública do governo Lula: “Nós do governo federal não vamos mais financiar armas de guerra para os estados. Não vamos mais financiar metralhadoras, submetralhadoras, granadas, nem fuzis, que são armas pesadas de guerra. O que estamos financiando hoje para a polícia é uma carabina ponto 40, que é a indicada para a polícia em situação de confrontos urbanos. Qual é a diferença? A diferença é a seguinte: um tiro de fuzil em uma favela vai atravessar dois, três barracos, matar quem estiver no caminho, e atravessar os corpos. Já com uma carabina ponto 40, o policial em uma situação de confronto incontornável pode usar, está democraticamente autorizado a usa, se ele não tiver outra saída. Mas uma carabina ponto 40, se é utilizada em um confronto real, vai parar aí. Ela não transfixa, não passa pela pessoa, podendo atingir inocentes. Não passa por paredes. Eu só usei esse exemplo para mostrar que, através do

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controle de que armamentos compramos, o governo federal pode induzir a uma redução importante da letalidade, inclusive em confrontos urbanos, e é uma política de direitos humanos (...) Da nossa parte, com o nosso dinheiro, em primeiro lugar , armas não letais. E, em segundo lugar, armas precisas para confronto com o crime organizado.” (MOREIRA ALVES, 2013)

Porém, além do incentivo ao uso de armamentos menos letais e à melhor formação do policial, com apreço aos direitos humanos e à própria lei, a principal proposta do PRONASCI era o policiamento comunitário como substituto à política de confronto nua e crua, em vizinhanças que não contem com crime organizado armado. Para tais regiões o indicado seria o policiamento de proximidade para reduzir a incidência de assaltos, roubos e sequestrosrelâmpago, segundo Balestreri, o policial de proximidade: “É aquele policial que conhecíamos na nossa infância, que nós sabíamos o nome e sobrenome dele, ele sabia quem nós éramos e onde morávamos. O modelo “Cosme e Damião” que foi abandonado no Brasil para imitar aquele modelo americano dos anos 1960 e 1970, que é o da polícia motorizada (...) Eu me lembro de que meus pais diziam que “nós temos que procurar nosso policial”. E o que significa “nosso policial” é a nação se apossando de sua polícia. O que aconteceu no Brasil foi uma espécie de sequestro da polícia pelo Estado e agora o Estado tem que evolver a polícia para a nação, para a cidadania. A ditadura acabou com qualquer noção de polícia de proximidade. O que aconteceu no Brasil a partir de 1964, e principalmente a partir de 1968 com o agravamento do golpe, é que todos aqueles modelos de polícia de proximidade foram eliminados. Todas as experiências anteriores, inclusive a do “Cosme e Damião”, e de outras polícias de proximidade foram proibidas. A polícia foi aquartelada, colocada em viatura circulando o dia inteiro e utilizada somente como força de repressão. A Polícia Militar sob o comando do Exército; a Polícia Civil, em vez de ser uma organização investigativa, passou a ser uma espécie de cartório de registro de ocorrências, afastou-se totalmente da população” (MOREIRA ALVES, 2013)

Já em regiões dominadas pelo tráfico de drogas armado, o que o governo federal defende é a “repressão qualificada”, que, segundo o secretário “é a inteligência, é o entorno, é não ferir as pessoas inocentes, é ter um cuidado com o uso de armas de guerra, e um treinamento específico usado em situações somente de confronto com o crime organizado”. O programa também estabelecia como objetivos a serem perseguidos: a desmilitarização da polícia, o controle efetivo de armas e munições – estas tanto em poder da população, quanto do Estado -, o fim da invasão de domicílios sem ordem judicial expressa e seguindo os requisitos legais, o fim da revista indiscriminada de moradores e a abolição do uso do Caveirão. O problema é que, pelo pacto federativo, o governo federal não pode determinar como serão as políticas estaduais de segurança pública. Logo, estados podem comprar - e continuam a fazê-lo - armas de guerra e, por exemplo, blindados como o Caveirão, e não há nada que o 43

governo central possa fazer. O que o governo federal faz é determinar que com financiamentos dele, não haverá compras de material de guerra, não se comprarão, por exemplo, nem fuzis, nem blindados, “carros-chefe” da política de segurança do Rio de Janeiro. É por isso que os efeitos positivos do PRONASCI ficaram contidos, para que tal programa mudasse de fato o caráter da segurança pública nacional, só através de uma mudança no pacto federativo, o que é bastante improvável de acontecer. Apesar dessa tentativa gigante que foi o PRONASCI, os impactos concretos não foram de grande ordem. O problema da violência policial é tão grande que movimentos favelados ou populares que pedem o fim destes conflitos ou a mudança no caráter deles se amontoam. Conflitos esses que por serem extremamente ineficientes nunca cumprem sua suposta função: acabar com a violência, pelo contrário causam a escalada dela e uma corrida armamentista de ambos os lados visando sobrepujar o inimigo. Um exemplo destes movimentos é o “fora caveirão”, pedindo o fim da utilização dos blindados na segurança pública do estado. Comprados sob o pretexto de proteger a vida de policiais em incursões, servem como pontos móveis de extermínio, pois, como é sabido, o veículo entra nas favelas atirando indiscriminadamente e é utilizado, durante as incursões, mais como uma ferramenta de demonstração de poder para os traficantes. A população fica amedrontada e até mesmo traumatizada, como é mais comum no caso das crianças, com o emprego indiscriminado da violência física e psicológica pelo Caveirão. Há relatos inclusive de que, através dos auto-falantes do carro tático, uma mensagem musicada estarrecedora era veiculada, com as seguintes estrofes: “Vou te pegar, vou te matar, vou deixar corpos no chão, vou sugar sua alma”. Apesar de todos os protestos, o governo não só se negou a parar de usar o caveirão, como comprou mais desses veículos, com características mais resistentes. De fato, o BOPE uma máquina urbana de extermínio em tempos democráticos, age mais como a Infantaria do Exército do que como polícia. A polícia, assim como o sistema penal, agem de forma seletiva, com base em estereótipos, no classicismo, no racismo e no machismo. É essa atuação de caráter extremamente antidemocrático que vários autores se põe em contraposição. Essa atuação, com seus vieses conhecidos, resulta numa taxa de homicídios maior do que regiões em guerra declarada como o Iraque e o Afeganistão e muito mais que polícias de outros países democráticos, como os EUA. Isso se deve não só à polícia, mas a todo um conjunto de permissividades e tolerâncias de instâncias do Estado que acobertam estes desvios com remendos jurídicos e ineficiência no cumprimento de suas funções constitucionais, impulsionados ora pelo corporativismo, ora na crença de que o único meio eficiente de combater o tráfico de drogas é através da eliminação física das pessoas envolvidas nesta 44

atividade comercial. O auto de resistência é um desses dispositivos jurídicos que serviram exclusivamente para acobertar os crimes cometidos por policiais. Criado para abarcar quaisquer homicídios frutos de resposta policial à agressão prévia, foi utilizado desde sua criação com este fim escuso de não aplicar a lei prevista para os homicídios cometidos por policiais. E isso só foi possível graças à incrível complacência do Ministério Público em não oferecer denúncias arquivando a maioria esmagadora dos inquéritos sobre estas situações - e nem em investigar tais crimes. Assim como da Justiça que raramente condenou algum policial por assassinato durante o exercício de sua função quando o morto é estigmatizado como traficante, seja por complacência ou por morosidade. Até mesmo Paulo de Tarso Vannuchi, ex-secretário de direitos humanos do governo Lula, crê ser um absurdo a existência de tal dispositivo, que, segundo ele, são incentivos ao descalabro em ações policiais, ao desrespeito aos direitos humanos. Ele descreve em entrevista à Maria Helena Moreira Alves um suposto caso de dois autos de resistência no Complexo do Alemão que, pelas provas dos laudos médicos e da perícia, na verdade foram execuções empreendidas por policiais militares: “Dois com bala na nuca, trajetória descendente, e eles diziam que era morte em combate. Ora, morte em combate é feito daqui para lá, a pessoa, se ela está correndo e leva um tiro na nuca, ela está fugindo e leva um tiro na altura da cabeça, o que já contraria as recomendações de uso proporcional da força, que manda atirar na perna, atirar nas nádegas, atirar em região não letal. A academia de polícia ensina isso. Agora quando tem uma trajetória de bala na nuca, descendente, aumenta a chance de a pessoa estar rendida, ajoelhada, jogada no chão e etc” (MOREIRA ALVES, 2013)

E esse não é um fenômeno isolado, pelo contrário, é recorrentemente utilizado para acobertar execuções sumárias e inocentes mortos em decorrência de incursões militares em favelas cariocas. Os casos se amontoam, como evidencia o gráfico abaixo:

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Figura 1: Autos de resistência da PMERJ, tanto no estado quanto na capital.

Fonte: Ministério da Justiça, 2011.

Recentemente, com o amontoar de denúncias a respeito dessa ilegalidade recorrentemente travestida neste dispositivo legal, esta categoria foi extinta e em seu lugar foi criado a classificação de “homicídio fruto de intervenção policial”, que na prática é exatamente a mesma coisa, servindo exatamente à mesma função: acobertar assassinatos empreendidos pela polícia militar. Esse fato só reforça a necessidade urgente da instituição de uma corregedoria externa e independente, que não seja influenciada pelo forte corporativismo, marca da polícia brasileira. Para tal, especialistas defendem que esta instância seja composta por civis que não sejam ligados à Secretaria de Segurança Pública, que tenham independência em seu trabalho e que sejam especialistas em direito penal e direitos humanos. Isso facilitaria e muito na supervisão do ofício do policial e na proteção do cidadão quando em contato com o aparelho repressor do Estado. E a partir daí uma reforma generalizada na estrutura das polícias militares e civis para que elas se coadunem com os princípios gerais que regem o regime democrático.

4. UPP COMO RADICALIZAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS: CRIMINALIZAÇÕES SELETIVAS PARA UMA CIDADE DE EXCEÇÃO 4.1.GUERRA ÀS DROGAS E A MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA: O NARCOTRÁFICO COMO UMA NOVA AMEAÇA

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“Andam dizendo que o bem vence o mal, por aqui vou torcendo pra chegar no final. Quanto mais fé, mais religião, a mão que mata, reza, reza ou mata em vão? Me contam coisas como se fossem corpos, ou realmente são corpos todas aquelas coisas? Deixa pra lá, eu devo tá viajando enquanto eu falo besteira, nego vai se matando.” Marcelo D2, 2008.

O Sistema Internacional no século XX foi predominantemente interestatal, contudo, a partir da década de 1960, a agenda política e securitária internacional alargou-se tendo em vista a emergência de atores não-estatais. Com a globalização, grupos sociais antes isolados interagem através de fluxos informacionais globais proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico, favorecendo novas formas de interação social. O mundo, portanto, se tornou muito mais interdependente. Há, por conseqüência, uma maior facilidade de organizações transnacionais se organizarem melhor, sendo o narcotráfico uma dessas redes favorecidas pela globalização. Após a 2ª Guerra Mundial, os conflitos por todo o mundo têm ocorrido cada vez menos entre Estados, fato desafiador do conceito clássico de guerra, aceito - como um dogma - até então. Os novos embates, portanto, dão-se entre grupos armados motivados por fatores étnicos, políticos, sociais, econômicos ou religiosos e, em alguns casos, entre estes grupos e os Estados. Estes atores não-estatais são capazes de executar operações militares com alto poder bélico, em algumas situações chegando a ultrapassar o poder de fogo de alguns Estados, verificando-se uma extrema plasticidade na atuação de seus “soldados”, que lutam sem regras, sem modelos previamente conhecidos e cristalizados em manuais de guerra e sem objetivos políticos claramente definidos, além da consolidação de seu domínio sobre determinados território e população. Kaldor (1999) observa que novas identidades políticas podem emergir ou como reação à importância cada vez maior destes “novos” setores formadores de agenda, ou à perda de legitimidade das classes políticas, ou ainda como resultado de uma economia paralela, que diz respeito a formas alternativas, legais ou não, de atividades fundamentalmente econômicas desenvolvidas pelos excluídos da sociedade. Kaldor acrescenta que, em contraposição à centralização da administração das antigas guerras, o novo tipo de economia da guerra “globalizou-se”, devendo ser visualizado sob a ótica da desintegração do Estado, da perda de 47

sua legitimidade, da redução de recursos e da produção doméstica, da fragmentação militar do Estado. Nesse cenário, ocorreria uma crescente privatização da violência, o Estado não deteria mais o monopólio do uso da força. Fica claro, portanto que a máxima weberiana de que o Estado tem o monopólio legítimo do uso da força já está depassé, não correspondendo mais à realidade percebida no século XXI. Uma das características mais marcantes deste novo tipo de guerra é a impressionante taxa de baixas civis, nos mais recentes conflitos bélicos houve uma baixa maior entre os civis do que entre os militares, algo que soaria absurdo aos ouvidos de um politólogo antes da última metade do século XX. Esta chamada guerra suja visa obter vitórias através da instauração do terror no seio da população civil, não mais em batalhas regulares em campos de batalha entre forças militares regularmente organizadas. A brutalidade, o assassínio, o medo e o horror são as principais táticas usadas nesta nova geração de conflitos, por ambos os lados. Para alguns há uma desmilitarização da guerra, ao passo que objetivos civis e militares não mais se distinguem um do outro e a violência extremada é exercida contra nãocombatentes e sobre todos os domínios da vida social, em que se usam até crianças-soldado, tornando-se normal a violação dos direitos dos conflitos armados e dos direitos humanos, em última instância (GARCIA, 2007). Tornando difícil a separação entre vítima e agressor, já que os novos soldados estão desuniformizados e em meio à população. Espaço de indeterminação que como poderia se esperar é recorrentemente utilizado pelo Estado para criminalizar as vítimas civis “inocentes” - aqueles cujo envolvimento com o crime, especificamente com o tráfico de drogas, não foi confirmado –, efeitos colaterais das operações do estado em rincões. A construção social do perfil desses mortos por intervenção policial como traficantes, evita que surjam qualquer tipo de questionamento sobre o modus operandi da polícia por parte da sociedade civil e, pelo contrário, acaba reforçando o consenso hegemônico sobre a necessidade do uso da força extremada e do assassinato seletivo promovido pelo Estado de parte de sua população. É muito mais fácil estigmatizar os mortos ditos inocentes de traficantes, já que a morte destes últimos já está justificada por essa lógica de guerra por meio de vários dispositivos jurídico-burocráticos, do que investigar e punir policiais desviantes. Como os atores presentes neste tipo ascendente de conflito são outros, o próprio caráter da guerra teve que se ressignificar: as guerras agora são irregulares, assimétricas, sem fronts bem definidos, sem bases localizadas, sem fronteiras territoriais, com objetivos fluidos, com combatentes não uniformizados, em meio à população utilizando-a por vezes como escudo visando sua auto-preservação, diferenciando-se das guerras clássicas, portanto, em 48

âmbito,

método

e

financiamento.

Nesse

cenário,

as

novas

guerras

acontecem

preferencialmente em países em desenvolvimento entre forças convencionais do Estado e grupos de guerrilha, bandos armados e grupos terroristas. Segundo Kaldor (1999), as novas guerras são altamente descentralizadas, prosperam pela disponibilidade de armas leves e baratas e são extremamente dependentes de recursos financeiros externos. No entanto, seu argumento central é de que as novas guerras são lutadas por motivos muito distintos do que as guerras convencionais. As metas agora são acerca da identidade política, em contraste com a geopolítica ou identidade ideológica que dominavam as razões para as guerras travadas em abundância até o fim da Guerra Fria. A identidade política, diferentemente da ideologia, faz reivindicações de poder com base em rótulos mutuamente exclusivos de grupos em vez de sistemas de ideias, as novas guerras tendem, sobretudo à expulsão e ao assassínio das populações civis, mudança fundamental entre as duas categorias de guerra aqui apresentadas. Com o fim da Guerra Fria e então com o fim da “ameaça comunista”, definiu-se um conjunto de fatores que poderiam causar instabilidade e perigo para a comunidade internacional, entrando, portanto, para a agenda internacional no lugar do comunismo, como desequilíbrios ecológicos, explosão populacional, narcotráfico e crime organizado. A rede internacional de tráfico de drogas movimenta aproximadamente 500 bilhões de dólares ao ano, sendo segundo negócio mais rentável do mundo, só perdendo para o tráfico de armas. Por ser um negócio tão lucrativo, por detrás dele há uma verdadeira fábrica de lavagem de dinheiro que, graças à financeirização e à desregulamentação da economia nas últimas décadas, tornou mais fácil este processo para os narcotraficantes. Contudo, apesar de ser um negócio bastante lucrativo, o empresário de drogas no varejo – o traficante que conhecemos, aquele que vende sua mercadoria nas favelas do Rio de Janeiro ou nos becos de Nova York – está na ponta final do comércio de drogas proibidas, ficam com uma parcela ínfima dos lucros do negócio, ganho pecuniário este que nunca os levará a possuir participação real nas empresas que atuam no mercado ilegal de drogas. Estes bilhões narcodólares são pessimamente distribuídos, pauperizando o vendedor do varejo, aquele que enfrenta por sinal os maiores riscos envolvidos no negócio, e enriquecendo os grandes cartéis e máfias do tráfico internacional, além dos banqueiros responsáveis pela lavagem destes narcodólares em dinheiro limpo. Há, portanto, um casamento indissolúvel entre capital e drogas, como pode-se ver na passagem da obra de Alberx Jr e Cláudio Tognolli citada por Zaccone: 49

“O banqueiro saudita Gaith Pharaon, à época um dos quinze homens mais ricos do mundo, declarou, em Buenos Aires, que todos os grandes bancos lavam dinheiro do narcotráfico, inclusive instituições como o First Bank of Boston e o Crédit Suisse. Pharaon se ressentia do fato de que apenas o seu Bank of Credit and Commerce International, estopim de um grande escândalo financeiro em 1992, fosse citado com freqüência por suas vinculações com o narcotráfico (…)suas declarações permitem que se vislumbre um pouco da hipocrisia dos capitalistas que se comportam, publicamente, como donzelas indignadas contra o crime organizado e as drogas.” (ALBERX JR & TOGNOLLI apud ZACCONE, 2007)

Tendo em vista essa distribuição de lucros completamente desigual e a alta taxa de mortalidade e criminalização dos varejistas de drogas ilícitas e a impunidade e riqueza dos grandes cartéis e bancos, pode-se dizer que há na verdade um papel concentrador do negócio causado pelo poder punitivo na figura do direito penal. O sistema penal se converte num fato de concentração econômica quando reprime somente os varejistas, ao passo que nada faz com os grandes capitalistas que realmente lucram com o negócio, ou seja, os varejistas são retirados da competitividade do comércio ilegal, aumenta a corrupção na periferia e concentram-se os lucros do negócio junto às atividades legais da cadeia do tráfico, justamente as instituições financeiras que lavam os narcodólares. A atual política criminal de combate às drogas longe de eliminá-las, reforça e concentra o negócio do tráfico nas mãos dos grandes grupos econômicos e financeiros. Essa seletividade punitiva desta verdadeira guerra contra as drogas estabelece-se sobre a criminalização dos consumidores falhos, aqueles pobres, segregados que comercializam no varejo as substâncias criminalizadas, enriquecendo os grandes cartéis. Esta política de repressão e combate ao tráfico de substâncias ilícitas é a chamada Guerra às Drogas, e é um processo histórico que se desenvolveu ao longo do século XX, principalmente nos EUA. Porém a primeira guerra movida por drogas foi ainda no século XIX, Guerra do Ópio, na qual Inglaterra e China lutavam pela comercialização ou não de ópio em território chinês. O imperador chinês Lin Tso-Siu resolveu, em nome da saúde pública, destruir um grande carregamento de ópio inglês. A Rainha da Inglaterra achou tal medida injusta com seus súditos e pediu ao Parlamento para enviar forças militares para pedir reparações por parte dos chineses. A Inglaterra vence a guerra, conquistando uma indenização, Hong Kong e a liberação do comércio de ópio dentro das fronteiras chinesas aos comerciantes ingleses, garantindo assim não só o mercado consumidor que já tinha, mas a expansão, a partir de Hong Kong, do seu negócio de venda de ópio para todo o extremo oriente. A Coroa estava satisfeita, os capitalistas também, tudo pela expansão da venda de drogas do Estado. Os primeiros surtos proibicionistas se deram nos EUA desde o fim da Guerra Civil 50

(1861-1865), com grupos religiosos conclamando pela proibição do álcool e substâncias alucinógenas, relacionando-as com o Diabo e com o afastamento de Deus, já que estes movimentos pós-Guerra Civil eram marcadamente advindos da tradição puritana do protestantismo americano. A Anti-Saloon League era um exemplo de organização que no final do século XIX lutava pela proibição de saloons nos EUA porque, para eles, os saloons concentravam muitos vícios que poderiam corromper o povo americano como o jogo de azar, a prostituição e o consumo de álcool. Como se pode ver, uma visão de pecado extremamente baseada na aversão ao prazer, típico do puritanismo protestante que migrou para as 13 Colônias inglesas. A reprovação moral ao uso de psicoativos culminou em leis como a Harrison Narcotic Act de 1914 que restringia o uso de alucinógenos a tratamentos médicos, inaugurando o narcotráfico moderno. Essa reprovação moral se aproveitou de alguns estereótipos, principalmente relacionados a grupos sociais subalternos, igualmente indesejáveis para conseguir efetivamente demonizar as drogas socialmente. Alguns exemplos dessa política racista de criminalização de alguns grupos imigrantes são: a relação feita entre ópio e os chineses, a maconha e os mexicanos, a cocaína e os negros e o álcool e os irlandeses. Essas populações, portanto, no imaginário social passaram a ser consideradas exógenas, estranhas à sociedade branca e anglo-saxônica dos Estados Unidos. Essas comunidades não-americanas representavam, portanto, o perigo, já que traziam e usavam seus venenos consigo, tendo maneiras estranhas e hábitos perigosos, portanto potencialmente agressivas, violentas, e ainda por cima disputavam e roubavam empregos de homens heterossexuais brancos norte-americanos. “Prato cheio” para a criminalização destas populações. Associaram-se portanto desde o princípio classes perigosas a substâncias perigosas, como se viu durante o século XX, por exemplo, quando da proibição dos alucinógenos em 1914, que visava atingir povos indígenas que alteravam a consciência com enteógenos para fins religiosos e festivos, e do álcool pela Lei Seca em 1919, sobretudo para perseguir irlandeses e italianos, já que a maior parte da massa de migrantes europeus pauperizados que chegava na Costa Leste dos EUA desde o século XIX eram oriundos destes países. Revogada em 1937 a Lei Seca, não representou, contudo uma vitória do movimento anti-proibicionista, dado que em 1937 proibia-se a maconha no Marijuana Tax Act de Roosevelt. Na década de 1950 a onda proibicionista chegou também aos psicoativos tradicionais e a drogas sintéticas. Esta onda chegou a um de seus três principais momentos em 1961 quando foi aprovada a Convenção Única sobre Entorpecentes na ONU, criminalizando em todos os países signatários – a maior parte do mundo – quase todas as drogas conhecidas. 51

Porém é só na década de 1970 que a Guerra às Drogas nasce e o movimento proibicionista se regozija pela segunda vez: é declarada a guerra às drogas pela administração Nixon. O traficante passa a ser visto como inimigo número 1 (talvez 2, porque ainda existiam os comunistas nesse época como perigo real ao sistema econômico vigente) do povo americano e a questão do consumo de substâncias psicoativas torna-se uma questão de segurança nacional. Os anos 1970 trouxeram para dentro dos EUA níveis alarmantes de heroína, trazida pelos veteranos da Guerra do Vietnam. Começa então o discurso do combate ao tráfico ao invés da droga em si, para deslocar o problema da esfera interna (o consumo em si, feito por cidadãos americanos na maioria adultos brancos de classe média que compram drogas porque querem) para a esfera externa (os traficantes e países produtores que são os perversos corruptores do povo americano ao produzir e comercializar as substâncias que degradam a sociedade americana). Para difundir o assunto, o governo americano passou a associar a Guerra Fria à Guerra às Drogas, associando, portanto, o comunista ao traficante e o comunismo às drogas. Perfeito para o discurso sensacionalista e moralista que tomou conta do país na mídia mainstream nos anos do governo Nixon em feroz oposição à contracultura e ao movimento hippie, associando-se ambos os movimentos às drogas e ao comunismo. Até hoje estes estereótipos persistem na consciência coletiva estadunidense, principalmente nos meios mais conservadores e republicanos. É desta época também que surge o termo narcoguerrilha, consubstanciação máxima entre o tráfico e o comunista, o comunismo à droga. À essa altura um comunista, um traficante e um maconheiro representavam o mesmo perigo para o Estado. Nos anos 1980 há um aumento expressivo no consumo de cocaína e o surgimento de redes transnacionais de tráfico de drogas. Com o esfacelamento do comunismo soviético e das ditaduras de direita financiadas pelos americanos por todo o mundo, o vácuo da posição de inimigo dos EUA fica vaga, já que os comunistas não mais são uma ameaça com o fim da URSS. Essa posição de inimigo número 1 do governo estadunidense foi tomada, progressivamente, pela figura do narcotraficante e de seus estereótipos: terceiro mundista, não-branco e pobre, vivendo nos rincões que não podem mais ser absorvidos pelo capitalismo da modernidade líquida. Para combater este inimigo perigoso, a opção encontrada pelos americanos foi a militarização do conflito entre eles e os traficantes, por todo o mundo, mas, é claro, não em seu próprio território, onde o combate ao tráfico se dava pela DEA (Drug Enforcement Administration), uma agência repressiva, sim, porém civil. Com esse discurso de criminalização do terceiro mundo como região produtora e comercializadora de drogas, os EUA conseguiram renovar a retórica que justificasse o intervencionismo fora de suas fronteiras, principalmente em países em desenvolvimento, com abundância de matérias52

primas e, recorrentemente, também de drogas. Porém já se demonstrou que esta separação entre países produtores e consumidores é totalmente falha, o que existe na realidade é toda uma zona de indiferenciação entre consumidores e produtores, um verdadeiro mercado internacional com produção e consumo disseminados pelo globo. O narcotráfico na década de 1980 era recorrentemente relacionado com grupos armados de esquerda, como sugere o termo narcoguerrilha ou narcoterrorismo, como era chamado pelo governo americano. Pelo conflito leste/oeste, fica mais claro ainda perceber porque era interessante para os Estados Unidos a militarização da segurança pública interna destes países periféricos produtores de drogas. Reagan chega mesmo a mudar uma lei de 1878, que delimitava as funções das Forças Armadas, em tempos de paz, somente à circunscrição interna, em operações de lei e ordem, para que pudessem também atuar em âmbito externo. Esse empenho do presidente norte-americano se deu para que os militares yankees pudessem oferecer ajuda aos vizinhos latino-americanos em sua cruzada contra os produtores de drogas. E conseguiu derrubar o Posse Comitatus Act de 1878, apesar recebidas de setores militares por estes temerem a mudança das funções tradicionais da defesa nacional pelas FFAA. No Brasil, o discurso americano foi aceito com uma resignação impressionante pela ditadura militar, que aprovou a Convenção Única sobre Entorpecentes como lei interna, através do Decreto nº 54216 de 27 agosto de 1964 assinado pelo General Castello Branco, então comandante do Golpe e, portanto, empossado presidente pelos golpistas, à revelia da ordem constitucional. E logo depois, entre 1968 e 1976, também o usuário de drogas foi criminalizado e equiparado a um traficante pela Lei 6368/76. Com o fim da ditadura, na transição da década de 1970 para a de 1980, o conceito de inimigo interno foi deslocado da criminalidade política para a criminalidade comum, do comunismo ao tráfico de drogas, combatendo-os, contudo, com o mesmo aparato policial-militar, gerando esses níveis altíssimos de violência urbana. Num contexto com a segurança pública militarizada, houve o boom da cocaína e a compra de armamentos cada vez mais pesados, eficazes e caros pelos traficantes dos diferentes “comandos” - como se chamavam as facções à época. Como o enfrentamento era a alternativa desse modelo de política de drogas, a polícia militarizada teve que se rearmar para se equiparar ao poder de fogo dos criminosos, o que resultou numa corrida armamentista que dura até hoje. O consumo de drogas é um fato indiscutível do ethos social, cuja probabilidade de permanência como um hábito disseminado é perceptível na tendência histórica, demonstrada pelo aumento da tolerância e pela gradual absorção pela lei dos usos terapêutico e recreativo 53

de drogas ilícitas, como a legislação californiana da maconha medicinal, a do Uruguai e a dos estados de Washington e Colorado que legalizaram o uso recreativo de maconha por maiores de 21 anos em todo o estado – maconha medicinal já era reconhecida como direito nos dois estados há mais de uma década. Talvez, aceito que a questão das drogas – se for um problema, por exemplo, no caso dos usuários que desenvolvam níveis de dependência - é um problema de saúde pública e não de polícia, entendido que, legalizadas, as drogas poderiam ter seu comércio e consumo supervisionados por órgãos de defesa sanitária e de proteção à saúde, e que poderia este comércio ser incorporado à “economia legal”, pagando taxas e impostos, que poderiam ser investidos, dentre outras coisas, em medidas de prevenção aos riscos decorrentes do consumo das drogas. Além disso, ainda podem gerar investimentos em infraestrutura, desenvolvimento de tecnologia, formação de mão-de-obra qualificada e criação de postos de trabalho. De qualquer forma, as drogas continuarão fartas e amplamente disponíveis em quase todas as cidades do Brasil, onde é crime comercializar e plantar o que já não é mais apenável consumir, ainda que continue sendo considerado crime. Situação desconfortável e ambivalente em que usuários, growers e traficantes encontram-se hoje. Cometem um crime para o qual não há pena, podem ser apreendidos pela polícia militar em flagrante delito, conduzido à delegacia, onde será fichado e assinará o termo circunstanciado para depois ser processado pelo Ministério Público, o que geralmente não é levado à cabo, pois quase todos esses casos são resolvidos através de acordos de transação penal, que convertem qualquer tipo de pena em multa, serviços comunitários, reuniões com psicólogos, reuniões de narcóticos anônimos – NA -, além da suis generis bronca do juiz, que apesar de menos trabalhosa, deixa marcas eternas nos antecedentes criminais, o que não existe em caso de transação penal. No Brasil, portanto, hoje em dia consumir drogas, dentre elas a maconha, ainda é crime, só que despenalizado. Ou seja, um usuário de maconha não pode mais ser condenado a penas restritivas de liberdade, mas ainda está cometendo um crime, pode ser indiciado, fichado e levado à Justiça. No entanto, não se estabelece a quantidade de porte permitida ao usuário e, além disso, a lei de drogas brasileira tipifica porte, transporte, compartilhamento e cultivo como tráfico de drogas. Apesar da despenalização dos usuários, muitos deles acabam parando cotidianamente nos presídios país afora graças a essa indefinição do que caracterizaria um usuário e um traficante. Abaixo reproduzo o Artigo 28 da Lei 11343/06, a “nova” lei de drogas (nova entre aspas porque no sentido temporal é recente, de 2006, mas na verdade continua a reproduzir o paradigma antigo de tratamento da questão das drogas), artigo que versa sobre os usuários: 54

"Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. §1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. §2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. §3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. §4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. §5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. §6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa. § 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado."

Como se pode ver, esta lei, apesar de ser um avanço, dá à agência policial e ao poder judiciário o poder de definir quem é usuário e quem é traficante em função de características completamente subjetivas, o que abre portas para preconceito de classe, de região de habitação da cidade, de cor de pele, de aparência e etc. Ao levar o contexto social em consideração, à revelia das quantidades, aberrações surgem cotidianamente, com pretos, pobres e favelados sendo acusados de tráfico pelo porte de duas “maconhas de 10”, o equivalente a 15 gramas, enquanto pessoas brancas, de classe média alta e moradores de regiões nobres da cidade, encontrados com 1 quilo de cocaína dentro de seu carro importado são indiciados como usuários. Como se só houvesse tráfico nas regiões pobres da cidade e como se não houvessem traficantes nas classes média e alta. É uma lei que tinha um grande potencial de mudar a situação dos usuários de drogas no Brasil, mas que, no final, tem servido somente para reificar os fascismos nossos de cada dia, principalmente o racismo e a criminalização da pobreza. Visando sanar essa situação extremamente desconfortável e dúbia, os jurisconsoltos que estão a desenvolver o pré-projeto do novo Código Penal recomendaram a descriminalização das drogas, o que solucionaria este problema. Outra iniciativa que visa 55

acabar com este problema está no STF que julgará o Recurso Extraordinário (RE) 635659, que está na corte superior desde 2011, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, que trata da tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal, como está no site do STF: “Recurso extraordinário, em que se discute, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade, ou não, do art. 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada”. Ou seja, com o julgamento deste recurso o porte, o consumo, o plantio, estocagem e etc para consumo pessoal deixarão de ser considerados crime, ou seja, é a descriminalização de fato e de direito que está por ser julgada. Além de dois projetos de lei que estão tramitando no Congresso Nacional sobre a regulamentação do uso recreativo e medicinal de cannabis, de dois deputados federais pelo Rio de Janeiro: um de Eurico Junior, PV-RJ, e outro de Jean Wyllys, PSOL-RJ. Apesar dessas tentativas há ainda ataques proibicionistas e criminalizantes que visam acirrar ainda mais a guerra às drogas, como o projeto de lei de Osmar Terra, PMDB-RS, que encampa ataques religiosos a políticas progressistas. Este projeto de lei pretende regulamentar a internação involuntária de usuários de drogas, além de aumentar a pena de cadeia para os traficantes. Um enorme retrocesso que tem oposição inclusive do governo. Um dos recursos retóricos mais poderosos deste setor conservador é a suposta epidemia de crack, que justificaria a re-radicalização da guerra às drogas. Quando na verdade a única solução para este problema é exatamente oposta à guerra às drogas. Enquanto o Uruguai, com problema correlato ao nosso do crack, com a pasta base de cocaína, toma a decisão ousada de tentar resolver o problema de vez, o Brasil escolhe continuar a enxugar gelo, acoplando várias perversidades à já perversa guerra às drogas, como a criminalização da pobreza, o racismo e a limpeza social, principalmente depois de legalizado o sequestro de usuários que desenvolvem dependência química no crack pelo Estado, também conhecida como internação compulsória. Apesar de todos esses custos e sangue derramado para diminuir a oferta de drogas, a Cannabis, por exemplo, considerada droga e ilegal por lei, pode ter, dependendo da via de uso, impacto deletério tendendo a zero à saúde. Além disso, a maconha pode ser usada como insumo medicinal, como o já observado em alguns países para várias doenças como a esclerose e alguns tipos câncer. Como remédio, maconha pode ser usada para gerar apetite em pacientes que conseguem comer por causa, por exemplo, da quimioterapia, além de reduzir enjôos. Pode também ajudar a reduzir as dores causadas por algumas doenças como a febre reumática e o câncer nos ossos, doenças cujas dores geralmente excruciantes são tratadas com morfina, substância da mesma família do ópio, que pode causar dependência física e mental. 56

A maconha também pode ser usada na política de redução de danos, para ajudar dependentes de drogas pesadas, como o crack e a heroína, a largarem o vício destas através do uso de Cannabis, que tem um efeito muito menos danoso ao corpo. Esta prática se mostrou mais eficaz do que a prática usual de tirar o usuário que estava totalmente imerso na drogadição destas drogas pesadas direto para a abstinência total, uma condição utópica para boa parte dos dependentes. Uma dessas experiências de redução de danos através do uso da cannabis foi realizada pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da UNIFESP, divulgado no jornal Folha de São Paulo através da entrevista com o coordenador do projeto Dr Eliseu Labigalini Junior, como se pode ver no trecho, reproduzido abaixo, da entrevista: O trabalho foi realizado com 25 dependentes, todos homens. Depois de um ano, 70% deles pararam de usar crack e também não usavam maconha de uma forma compulsiva, pois ao longo desse ano foram orientados a reduzir o uso da maconha também. No começo a orientação era que se não fosse para usar o crack, poderia usar a maconha, passados dois meses, quando a fissura inicial havia passado (...) gradativamente eles foram retomando o trabalho, o namoro, as relações com a família (...) no projeto com usuários de crack, se a pessoa passa a fazer uso esporádico de maconha e isso não traz prejuízos na vida profissional, na vida afetiva, a gente não se contrapõe (…) A internação, por exemplo, é ilusória, pois as pessoas quando saem, recorrentemente voltam a usar a droga. (Folha de São Paulo, 20/06/2004)4

Além da utilização medicinal da cannabis, durante a história as sociedades humanas deram vários usos à maconha. As velas das caravelas portuguesas e espanholas que invadiram a América durante as Grandes Navegações eram feitas de cânhamo, 90% do papel utilizado no mundo no século XIX era feito de maconha, os primeiros jeans foram feitos de fibra de cannabis e etc. Mais de 25 mil produtos baseados na maconha já foram identificados até agora, dentre eles: roupas, calçados, produtos de beleza, óleo de cozinha, chocolate, sabão em pó biodegradável, tintas, isolantes, combustível, carrocerias de carro, material de construção e etc. E o maior ganho da utilização da maconha para produção de todos estes produtos é que ela além de ser biodegradável, é um produto renovável, diferentemente de muitas matériasprimas utilizadas hoje que são poluentes. Além de um produto barato e que cresce basicamente em toda a superfície do globo, é um produto versátil, ecologicamente correto e renovável. Apesar disso, no Brasil até mesmo a utilização do cânhamo como insumo é proibida por lei, sendo enquadrada como tráfico de drogas, mesmo que sejam utilizadas espécies de cannabis que não “dêem onda”, ou seja, com concentrações irrisórias de THC 4 Entrevista pode ser encontrada no link:

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(tetrahidrocanabidiol), o princípio psicoativo da maconha. Além disso, por ser um produto barato de ser produzido, a maconha é a principal commodity de alguns países como, por exemplo, o Afeganistão, conhecido mundialmente pela Afghan Kush, um tipo de maconha de ótima qualidade e alto preço no mercado internacional, que é a variedade mais plantada da cannabis do país. O plantio de maconha passou a competir com o cultivo de outra planta psicoativa que foi durante muito tempo a maior commodity afegã: a papoula, planta da qual se extrai o ópio. A kush afegã na Europa (United Nations, 2012, p.55) inclusive já ultrapassou o consumo de maconha vinda do Marrocos, país que tradicionalmente fornecia a maior parte da erva consumida no continente europeu. A maconha, portanto, pode representar grande parte do balanço de pagamentos de alguns países e poderiam ser usadas como meio de tirar alguns deles da situação de falência na qual se encontram, como é o caso do Afeganistão, considerado pelo Failed States Index da revista Foreign Policy5 como o 6º país mais falido do mundo, na frente de países como o Haiti e Coréia do Norte. Uma possível solução pacífica para a reconstrução econômica do país. Deveríamos todos nos espantar quando observamos a relação entre a proibição das drogas, o crime organizado e toda a violência que vivenciamos hoje - nos grandes centros urbanos do Brasil e do mundo - , produzida e justificada por esta proibição. Deveríamos nos espantar que justamente o medo da violência e do desfacelamento social seja na verdade a principal causa da própria violência. Quando conseguirmos lidar com a questão das drogas através da política e não da polícia, talvez nos tornemos uma sociedade mais segura e mais justa, pelo menos, certamente, com menores índices de violência. Porque para acabar definitivamente com o tráfico de drogas seria o mesmo que reconhecer a liberdade de experimentar estados alterados de consciência. E isso continua inaceitável, quando muito, restrito a tímidas investidas em políticas de descriminalização associada à redução de danos. A penalização ampliada não reduziu as situações de violência. (PASSETTI, 2011, pg. 52)

E nem reduzirá. É o que até o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que, como ficará demonstrado posteriormente, radicalizou a guerra às drogas na capital do estado através da política das UPPs, é a favor de rever a lei no que tange às drogas, como ficou claro na entrevista concedida à Maria Helena Moreira Alves (2013), diz Cabral: “Já que essa vai ser uma publicação internacional, quero dizer que já conversei com muitas lideranças internacionais, inclusive em um seminário no 5 Pode ser encontrado no link:

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Conselho das Américas, em que digo, e já disse publicamente, temos que rever as nossas leis sobre as drogas. O fato é que as pessoas consomem drogas. A droga é o que existe no mundo e, de anos para cá, cada vez mais poderosa. Que lógica é essa? Nós temos que rever a questão da legalização das drogas” (MOREIRA ALVES, 2013)

O ex-governador ainda vai além nesta entrevista, quando confrontado com a seguinte afirmação de Moreira Alves “Mas o governo norte-americano atual acha que está sendo bem-sucedido no combate às drogas.”, ele simplesmente responde “O que não é verdade.”. Cabral, portanto, admite a falência da guerra às drogas, apesar de ter como principal política pública sobre as drogas justamente o combate bélico, as incursões e ocupações militares, “menina dos olhos” das políticas yankees sobre drogas para o terceiro mundo, vide o plano Colômbia. Além disso a proibição que se diz guardiã da saúde pública, que teoricamente teria como objetivo proibir as substâncias mais perigosas à saúde humana e que causassem a maior dependência, não o é, proíbe drogas que são de uso relativamente seguro, como a maconha, o LSD e os cogumelos de psilocibina e deixa livre o comércio de substâncias extremamente perigosas como álcool, tabaco, morfina, benzodiazepinas e antidepressivos, drogas que matam centenas de milhares de pessoas por ano. As razões que se diziam médicas, científicas, na década de 1960 para justificar a proibição, começam a ser desmascaradas por cientistas que recentemente decidiram questionar o tabu. As proibições sempre tiveram motivos políticos e não científicos, geralmente de cunho racista, sempre visando o controle social de parcelas subalternas da sociedade, como ficará claro no decorrer deste trabalho. Apesar da proibição não ser uma opção viável para a política de drogas, como já foi demonstrado anteriormente, as drogas não são inofensivas e livres de riscos. Se consumidas em excesso podem gerar overdoses e dependência, além de riscos múltiplos à saúde, como câncer, problemas respiratórios, imunológicos e até mentais em alguns casos. Na análise científica dos riscos que envolvem o consumo de drogas, há vários métodos usados no desenho de pesquisas. Há o índice de toxicidade, o que compara a “dose efetiva” com a “dose fatal”, o de dependência e o múltiplo, que envolve dezenas de variáveis que compõem os riscos, danos e custos de cada uma das drogas, tanto para o usuário quanto para outros que são impactados pelo uso de drogas, quanto ao indivíduo analisa-se a dependência, a mortalidade e o comprometimento do funcionamento mental, ao passo que quanto aos danos a outros, analisa-se crime, danos ambientais, adversidades familiares, dentre outros. Aqui os três rankings serão citados para o melhor tratamento da questão proposta que é evidenciar a 59

falácia da proibição. Toxicidade consiste na capacidade, segundo Gable (2006) de uma substância química produzir um efeito nocivo quando interage com um organismo vivo. No caso da análise das drogas, deve-se tentar chegar à relação entre a dosagem necessária para que se sintam os efeitos da droga, o que na linguagem coloquial é chamado de “dar onda”, ou ainda “dar barato”, e a dose fatal, a quantidade de droga que levaria o usuário à overdose. O autor da pesquisa ainda propõe 4 faixas de toxicidade de drogas as extremamente tóxicas, como a heroína e o GHB, que com menos de dez vezes a dose efetiva leva à overdose, as moderadamente tóxicas como a cocaína, o álcool e o MDMA que com dez ou vinte vezes a dose efetiva pode levar à morte, as com baixos níveis de toxicidade como Rohypol e a Mescalina, que são letais numa dose de vinte a oitenta vezes a dose efetiva e, finalmente, as de baixíssimo nível de toxicidade como a maconha, cogumelos e LSD que necessitam de cem a mil vezes a dose efetiva para ser letal (GABLE, 2006). Figura 2: Níveis de toxicidade das drogas mais usadas nos EUA.

Fonte: GABLE, Robert S. The toxicity of recreational drugs, 2006. Encontrado em:

Para se ter uma idéia, a taxa de mortalidade de americanos por overdose de drogas, de forma não-intencional, ou seja, excluem-se aqui as overdoses motivadas para suicídios, as 60

que, então, tenham sido racional e ativamente administradas, com o único objetivo de por fim à própria vida, em 2010, foi de 30006, segundo o Centro de Controle de Doenças dos EUA. Em 60% dessas mortes, remédios de prescrição médica são os responsáveis pelas mortes, não heroína ou cocaína como muitos poderiam estar pensando. Essas drogas matam respectivamente, segundo dados do site educacional In the Know Zone, 425 e 5000 pessoas por ano nos EUA. Essas substâncias, como se pode ver, causam riscos e desenvolvem níveis de dependência muito maiores do que drogas consideradas ilícitas como o LSD, a maconha ou os cogumelos comidos ou em forma de chá, no entanto, são amplamente apoiadas pela moral coletiva. Pode-se notar nos gráficos acima que drogas como LSD, cogumelos e maconha são bem mais seguras que álcool e tabaco, o que a lei, como sabemos, ignora solenemente. Outra informação importante que pode ser extraída do gráfico acima são as famílias de substâncias psicoativas, ao invés de taxar tudo como “narcóticos” ou “entorpecentes”, o que ajuda a criminalizar todas as substâncias numa categoria totalizante e no fundo vazia, mas que ao mesmo tempo dificulta o debate sério sobre os efeitos e os danos das substâncias psicoativas, eles separam pelas famílias bioquímicas das substâncias, segundo os efeitos que cada grupo causam no corpo do usuário. Drogas, entorpecentes, narcóticos e tóxicos são palavras comumente utilizadas para denominar substâncias psicoativas ilegais. O próprio termo droga é usado também para designar produtos farmacêuticos vendidos em drogarias como remédios. Vê-se, portanto, que há ambiguidade e indefinição na hermenêutica dos termos geralmente utilizados para classificar policialescamente as substâncias psicoativas. Por exemplo, há uma delegacia de combate aos narcóticos, porém, segundo o Wikipedia: “O termo narcótico (grego νάρκωσις, estupefação, torpor) refere-se a uma variedade de substâncias que fazem adormecer e reduzem ou eliminam a sensibilidade (chama-se a esse estado narcose). Em medicina, o termo designa apenas o ópio, os derivados do ópio e os seus substitutos sintéticos ou semisintéticos (opióides ou opiáceos), usados como anestésicos” (WIKIPEDIA, 2014)

Será que esta delegacia oprime só drogas que se encaixam na definição acima? Sabese que não. Cientistas da Universidade Federal de São Paulo, a UNIFESP, e da Escola Paulista de Medicina, a EPM,6 contudo, não satisfeitos com essa totalização espúria no debate sobre as drogas, resolveram resolveram criar uma classificação das drogas com base em estudos científicos e dividiram-nas, então, em 4 grandes grupos: as depressoras, que diminuem a 6 Pode ser encontrado em: .

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atividade cerebral, deixando os estímulos nervosos mais lentos, como, por exemplo, ópio, morfina, heroína e tranquilizantes, as estimulantes, que aumentam a atividade cerebral, deixando os estímulos nervosos mais rápidos especialmente nas áreas sensoriais e motoras do cérebro, como, por exemplo, cocaína e crack, as perturbadoras, que, com efeito alucinógeno ou não, acelera o funcionamento do cérebro além do normal, causando perturbações na mente do usuário, como maconha, LSD, haxixe, cola de sapateiro e outros solventes – como lançaperfume e cheirinho da loló - e as mistas, que combinam dois ou mais dos efeitos acima listados, como o ecstasy. Como se pode ver, as substâncias agrupadas no nome de droga são múltiplas, sem correlações umas com as outras a não ser a proibição que sobre elas recai. Do ponto de vista de uma estratégia de repressão, da estigmatização e do estereótipo, taxar toda e qualquer substância ilícita de droga, tóxico ou entorpecente, independentemente das suas características bioquímicas e efeitos no corpo dos usuários, serve claramente a um fim político: facilitar a criminalização. Isso torna a nomenclatura uma relação de fácil abstração e assimilação popular, onde até o substantivo-contêiner “droga”, quando adjetivado, serve para estigmatizar todos os usuários de substâncias psicotrópicas das mais diversas possíveis, desde os maconheiros com sua onda criativa, relaxada e sonora até os usuários de crack, com sensação constante de perseguição, necessidade de isolamento do convívio social prévio por preconceito, que formam verdadeiras colônias de uso de crack, onde novos padrões morais coletivos são formados, visando facilitar a vivência para o constante uso da droga sem maiores empecilhos com amigos, vizinhos e família e etc. “Drogas” completamente distintas, com perfis de usuários completamente diferentes, com níveis de toxicidade e dependência incomparáveis, como bem coloca Zaccone (2007): “Um livro sobre narcotráfico é uma obra de política, uma reflexão sobre relações e jogos de poder, e não sobre drogas no sentido farmacológico ou técnico. Desse modo não cabem discussões prolongadas sobre as propriedades químicas das drogas e seus efeitos no corpo e na mente. No entanto, há que se enfrentar de saída uma importante questão: a nomenclatura das drogas como uma relação de poder ( …) Estas más aplicações, que reúnem as drogas ilícitas sob nomenclaturas imprecisas, devem parte de sua existência a práticas e atos classificatórios que se reproduzem, mas que também, da perspectiva política, acabam cumprindo uma função importante, que consiste em condensar em um único bloco substâncias que são alvo de perseguição governamental. Assim, o inimigo fica agrupado, fato que torna mais simples a declaração de guerra às drogas.” (RODRIGUES apud ZACCONE, 2007)

Uma outra falácia da proibição é o mito de que as drogas ficam mais caras por causa dela. Isso se dá porque há a crença de que, ao mexer diretamente na oferta, ou seja, ao 62

apreender cargas, prender ou matar traficantes e dissuadir usuários da compra e do consumo através do aparelho repressor do Estado, que com menos produto no mercado, mantendo-se ou diminuindo suavemente os níveis de demanda, que o preço tenderia a subir. Ledo engano. O que tem acontecido é exatamente o contrário: as drogas estão cada vez mais espalhadas pelo mundo, com maior potência e sendo comercializadas por preços mais baixos. Isso se deve sobretudo aos avanços tecnológicos notados no último quartel do século XX. Fontes de fornecimento de drogas, bem como plantações e laboratórios, assim como técnicas e insumos se disseminaram pelo mundo, fazendo com que o mercado seja alimentado por quantidades jamais vistas de múltiplas drogas, com preços cada vez mais competitivos. Quando não é mais possível baixar o preço mantendo margem de lucro considerável, os investidores e comerciantes de drogas investem em substâncias alternativas, atitude típica das drogas sintéticas. LSD e ecstasy, substâncias relativamente seguras e amplamente consumidas, porém caras, vêm sendo substituídos por produtos correlatos, com efeitos similares, porém com preços acentuadamente menores. Segundo Zuba, Sekula e Buczeké (2012), é o que se vê no caso do 25 I-NBOMe, usado como substituto do LSD, que, ainda legal em alguns países, é vendido pela internet por US$1,50 o blotter, que é o quadrado de papelão embebido da substância psicoativa que se coloca debaixo da língua para acelerar a absorção do ácido no sangue, via para de fato “ter onda”, para experimentar a extensão de consciência, a alteração de percepção. Enquanto um blotter correlato de LSD custaria no mínimo US$ 10,00. No Brasil as fenetilamidas, a família de substâncias da qual o 25 I-NBOMe faz parte era legal até 2014, quando a ANVISA atualizou a lista de drogas proibidas incluindo estas substâncias, além da substância correlata ao ecstasy: a metilona. Com a facilidade de síntese de novas substâncias a todo momento em laboratórios mais ou menos improvisados o risco associado ao consumo destas drogas aumenta pois, primeiramente, não se tem certeza do que se está consumindo e, segundo, porque não há certificação conquanto à quantidade de droga por porção consumida, nem informações sobre pureza do produto, podendo este inclusive estar contaminado ou misturado com outras substâncias, como vê-se frequentemente no caso da maconha, onde se encontram desde restos de animais, até fezes, pedras, galhos, fungos e da cocaína onde é possível encontrar vidro moído, mármore e fermento em pó e farinha. Esta situação crítica é extremamente perigosa para os usuários que não sabem ao certo o que consomem, típico de um mercado não regulado pelo Estado, deixado às própria sorte. Como exemplo do produto espúrio da proibição, a queda dos preços da droga proibida, escolhe-se a heroína, uma das drogas mais perigosas do mundo: 63

Figura 3: Relação entre preço e pureza da heroína no mercado estadunidense ao longo de 21 anos.

Fonte: Global Commission on Drug Policy

Como se vê a proibição não se sustenta em números. Outra taxa chocante da proibição é a do crescimento constante do número de usuários de drogas. Só para citar dados de três grandes drogas mundialmente consumidas, durante um intervalo de dez anos, reproduzo a tabela abaixo: Figura 4: Estimativa do aumento do consumo de drogas entre 1998 e 2008.

Fonte: Global Commission on Drug Policy.

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Como se pode ver a proibição não se sustenta, não havendo nenhum dado empírico que justifique ela enquanto política pública. A proibição não tem lastro na realidade, não há nenhuma correlação das drogas que são proibidas ou liberadas com seus respectivos níveis de danos, com suas toxicidades. É uma atitude visando exclusivamente criminalizar formas de sociabilidade de grupos subalternos, grupos estes que são etnicamente compostos por negros, latinos, imigrantes ou quaisquer outras classes perigosas ou indesejáveis.

4.2.FAVELAS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E O TRÁFICO DE DROGAS

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar.” Cidinha e Doca, 1994

Para explicar a origem das favelas e de outros “aglomerados subnormais”, como o censo denomina, procura-se aqui a ajuda das teorias da marginalidade que debateram a fundo esta questão. Julga-se importante sumarizar esta discussão por ser um dos primeiros intentos de explicar um fenômeno genuinamente urbano como as favelas do jeito que realmente são: subprodutos do desenvolvimento tardio do capitalismo no terceiro mundo. O conceito de marginalidade, desenvolvido pelo que muitos consideram a “Escola da Marginalidade” da América Latina, ganhou notoriedade e gozou de ampla aceitação no continente entre as década de 1960 e 1970 do século passado, em um momento que os países latinos passavam por um rápido processo de urbanização e industrialização. Foi neste período, portanto, que os limites do modo de organização capitalista dependente para absorver a força de trabalho existente ficaram evidentes. A partir da década de 1990, o neoliberalismo impulsiona a redução dos gastos públicos com o setor social, a flexibilização dos contratos de trabalho. Tudo isso contribuiu para o aumento expressivo das taxas de desemprego, para a disseminação do trabalho informal, instável ou temporário e para a precarização das condições de vida de parcela expressiva da população. Este aprofundamento da subordinação econômica, política e tecnológica em relação aos países desenvolvidos, partindo de um 65

mercado de trabalho pouco regulado e de um sistema de garantias sociais bastante rarefeito, é a causa principal do processo contemporâneo de marginalização de que sofrem todos os países em desenvolvimento da América Latina. O uso latino do termo marginalidade se deu em meio ao paradigma da modernização, referindo-se aqui às consequências emergentes do rápido e massivo processo de urbanização do pós-guerra na América Latina. Com a explosão demográfica e com altíssimos níveis de êxodo rural, as condições de habitação nas grandes cidades latinas degradaram-se absurdamente. Observou-se, portanto, a explosão do crescimento de favelas, cortiços e ocupações. Inicialmente o termo marginalidade era usado para designar o espaço de habitação das classes subalternas, geralmente nas periferias da cidade, à margem do espaço considerado como “a cidade legal”, no coração dos circuitos do capital. Num segundo momento, o termo foi reapropriado para abarcar também em si as péssimas qualidades das habitações nas quais os membros dessas classes moravam, a carência generalizada de serviços públicos como esgoto, água, eletricidade e escolas, a alta taxa de desemprego e as péssimas condições de trabalho dos que se encontram empregados. A partir deste momento portanto, a teoria da marginalidade passa a considerar então a relação entre os componentes das classes subalternas com o sistema produtivo e com o consumo. Essa última concepção tendo ficado conhecida como a ideologia da participação do DESAL, que definiria a marginalidade, portanto, como a falta de integração ou a exclusão da participação política de um determinado grupo social (PERLMAN, 1976). Autores marxistas usaram o termo marginalização para definir a incapacidade de, durante o processo de industrialização impulsionado pela política de substituição de importações, absorver o contingente crescente de força de trabalho e a sua tendência de expulsar trabalhadores de suas posições. O processo de industrialização capitalista resultou no acentuamento da acumulação de capital por um lado e, na marginalização de outros setores que não usufruem das benesses do desenvolvimento científico-tecnológico proporcionado justamente pela rápida industrialização. Considerando-se ainda que no capitalismo o processo de modernização, ou de desenvolvimento capitalista, dá-se necessariamente através da maior integração com o mercado global, através de transações com empresas multinacionais, regidas pelo capital financeiro transnacional, alguns autores ligaram a marginalidade ao conceito de dependência (NUN, 1969). Os estudos de marginalidade, no entanto, não devem ser entendidos fora de contexto e, portanto, deve-se saber que surgiram na década de 60 por razões políticas. Com a favelização de diversas regiões de grandes cidades latinoamericanas, elas, as favelas, começaram a ser 66

vistas como um perigo à estabilidade política. Desse modo, as favelas passaram a representar um novo risco, pois, se antes se constituíam como um espaço da marginalidade, onde o vagabundo e os pobres de um modo geral eram sujeitos apolitizados, o que caracterizava um espaço de riscos sociais, transformavam-se agora num espaço de riscos políticos pelas próprias “articulações perigosas” com os movimentos radicais de esquerda. Esse foi notoriamente o caso do Rio de Janeiro, onde organizações de esquerda se infiltravam e por diversas vezes mobilizavam os moradores contra o status quo, como é o caso dos comitês populares democráticos, comunistas, do PCB em favelas da cidade, como o Morro do Borel (PINHEIRO, 2007; GONÇALVES, 2013; VALLADARES, 2005) e do consequente medo da burguesia dessa presença nos morros, medo este declarado pelas autoridades e por membros da comunidade acadêmica como grave problema que demandava soluções rápidas e finais, pois a sublevação social era vista como eminente. Assim, pela lógica dos grupos hegemônicos, fazia-se necessário intervir nestes locais, legitimando tais ações geralmente muito autoritárias, sobretudo, através da ideia contida no slogan do relatório encomendado e publicado pelo jornal Estado de São Paulo à SAGMACS do Padre Lebret: “É necessário subir o morro antes que deles desçam os comunistas” (SAGMACS, 1960). Na academia e no meio político, duas grandes correntes de interpretação sobre a marginalidade surgiram, representando cortes ideológicos bem distintos. Um deles é o grupo que articula o conceito de modernização, que vê a marginalidade portanto como falta de integração de certos grupos à sociedade (GERMANI, 1971, 1973; PERLMAN, 1976); o outro grupo, articulando conceitos marxistas, concebe a marginalidade como intrinseca, naturalmente contida no processo de integração do país no sistema capitalista mundial, como Nun (1969) e Quijano (1977). Ambos os grupos, assim, apresentavam diagnósticos diferentes para a questão, enquanto o primeiro apregoava ser necessário medidas voltadas à integração dos grupos marginalizados em uma sociedade capitalista reformada, o segundo afirmava que a marginalidade era uma característica estrutural da sociedade capitalista e que só uma alternativa socialista poderia pôr fim à crescente marginalização. O argentino Gino Germani, um dos mais proeminentes autores da teoria da modernização (GERMANI, 1971) na América Latina. Escrevendo também sobre marginalização, ele a considera um fenômeno multidemensional e começa sua análise a defini-la como:

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“the lack of participation of individuals and groups in those spheres in which, according to determined criteria, they might be expected to participate that […] it is essential to note that the marginal sector is not located outside society but within it, eventually to be utilized or exploited by some of the participating sectors. It remains excluded from the exercise of its corresponding roles and rights according to the normative schema in use.” (GERMANI, 1973)

A marginalidade para o autor teria diversos tipos de inserção, dentre elas: no sistema produtivo, no consumo, na produção, no setor político e no cultural. Então a chamada marginalidade global seria um composto de várias formas de marginalidades específicas e indivíduos vivenciam combinações diferentes das múltiplas modalidades de marginalizações (GERMANI, 1973). Para o autor, a marginalidade aparece durante o processo de modernização, da passagem das sociedades tradicionais às modernas, industrializadas e integradas ao capital transnacional, processo esse que acontece de maneira desigual tanto em função da variável classe quanto da variável geografia. O que significa afirmar que, segundo o autor, o capitalismo geraria desenvolvimentos desiguais em um mesmo meio social, alguns acumulariam capital, se beneficiariam dos resultados advindos dos progressos tecnológicos, enquanto outros seriam deixados para trás, não participariam do processo de modernização deflagrado naquela sociedade. Surgindo assim, “os marginais” àquela sociedade. Marginalidade é usada também portanto para descrever os grupos sociais membros de uma nação que foram ficando de lado durante os processos nacionais de modernização pelos quais seus países passaram durante o século XX. A teoria da modernização é uma descrição e uma explicação do processo de transformação das sociedades tradicionais para as modernas. Como Eisenstadt (1966) coloca: "Historically, modernization is the process of change towards those types of social, economic, and political systems that have developed in Western Europe and North America from the seventeenth century to the nineteenth and have then spread to other European countries and in the nineteenth and twentieth centuries to the South American, Asian, and African continents" (Eisenstadt, 1966).

A teoria da modernização foi uma das maiores correntes da sociologia do desenvolvimento nacional desde a decada de cinquenta do século XX. O foco destas teorias é entender por quais caminhos sociedades passadas e presentes tornam-se modernas, no sentido ocidental de modernidade, é claro, o que pressupõe tornar-se correlato socialmente a um dos países centrais, com menor influência da religião no espaço público, por exemplo, devido principalmente, segundo os autores desta corrente teórica, ao crescimento e dinamismo econômicos e a mudanças sociais, políticas e culturais. No geral, autores da teoria da modernização estão preocupados com o crescimento 68

econômico das sociedades, como, por exemplo, as medidas do PIB, mecanização da agricultura e industrialização. Eles estudam as consequências sociais, políticas e culturais do crescimento econômico e das condições que são importantes para que a industrialização e o crescimento econômico aconteçam. Com isso, recorrentemente, modernização, industrialização e desenvolvimento são usados como sinônimos, como se não fossem fenômenos claramente distintos. Industrialização é um termo que abrange muito menos que o termo modernidade, enquanto desenvolvimento é um pouco mais geral. Industrialização envolve o uso de fontes inanimadas de poder para mecanizar a produção e isso gera, necessariamente, um aumento da manufatura, do trabalho assalariado, dos níveis de renda e também das opções de escolha profissional. Ela pode ou não estar presente onde houve modernização política, social ou cultural e também pode existir sem nenhum dos aspectos da modernização. Desenvolvimento, assim como industrialização, implica em crescimento econômico, mas não necessariamente devido a transformação da predominância da produção de produtos primários pela produção de manufaturados, e não necessariamente como o caracterizado pela teoria da modernização. Apesar de haver muitas teorias da modernização diferentes, há epítetos comuns entre elas como a concepção evolucionista da sociedade, esperando que as sociedades se desenvolvam através de uma série de estágios evolutivos, da sociedade menos evoluída para a mais evoluída; que estes estágios estariam baseados em diferentes graus e padrões de diferenciação social

e reintegração dos componentes estruturais e culturais compatíveis

funcionalmente, parar manter a sociedade em ordem; sociedades em desenvolvimento nos dias de hoje estão num estágio pré-moderno de evolução e eventualmente vão conseguir crescer economicamente e ganharão características semelhantes às sociedades européia e norte-americana, sociedades estas que progrediram para o mais alto estágio do desenvolvimento social evolucionário; esta modernização vai impulsionar exportação de tecnologia ocidental para países “pré-modernos”, com sociedades e estruturas tradicionais, culturalmente incompatíveis com tais tecnologias, e que, portanto, terão que se adaptar ao novo estado de coisas ou encontrar a extinção ou o isolamento – a marginalização. Em seu cerne, a teoria da modernização sugere que o avanço da tecnologia industrial produz não só crescimento econômico nas sociedades em desenvolvimento, mas também produz outras mudanças culturais e estruturais. As características comuns que as sociedades tendem a desenvolver quando se tornam modernas podem diferir dentro das diferentes versões da teoria do desenvolvimento, mas, no geral, elas assumem que estruturas institucionais e atividades individuais tornam-se altamente especializadas, diferenciadas e integradas às 69

formas sociais, políticas e econômicas características das sociedades avançadas do ocidente. É através desses processos desiguais, multidimensionais e com possibilidades de múltiplas configurações que Germani e a DESAL tentam determinar os graus de marginalidade de grupos ou indivíduos, suas características internas e suas relações com o restante da sociedade. É através destas análises que eles podem afirmar que a marginalidade urbana é composta, em suma, por pessoas autônomas, auto-empregadas e/ou por trabalhadores inespecíficos, com baixos salários e baixa qualificação (GERMANI, 1973). O problema desta visão é traçar uma linha direta entre marginalidade e pobreza. O objetivo primal do DESAL era impulsionar políticas públicas que fomentassem planos de integração destas populações tidas como marginais, dessem cabo à atomização e a falta de laços de solidariedade que caracterizavam segundo estes teóricos os bolsões de marginalidade. Estes objetivos eram perseguidos como forma de conter a influência de organizações de esquerda em favelas, ocupações e demais locais entendidos como bolsões de pobreza e, portanto, de marginalidade. Era o reconhecimento da necessidade de mudança imediata, sem Revolução, e justamente com o objetivo principal de impedi-la, de contê-la. É como afirma Janice Perlman: “DESAL rejeitou desde o início seu papel inicial como um grupo de pesquisa, não comprometido com ação política. Suas interpretações são agora vistas de maneira mais clara nas plataformas políticas que produziu. Nesta prática, DESAL rivaliza com os modelos de desenvolvimento apregoados pelas ciências sociais norteamericanas. No cerne dos trabalhos do DESAL está um modelo de participação popular, um amálgama de políticas ativistas desenvolvidas para combater a marginalidade e lutar contra a ameaça do comunismo” (PERLMAN, 1976)

Era, portanto, um reconhecimento do caráter desigual e concentrador do capitalismo e dos desdobramentos perversos que isso têm sobre a vida de milhões de latinos, mas é uma visão conservadora, já que visa realizar reformas pontuais no capitalismo. Crê ser possível humanizar o capitalismo através de ações do Estado que, porém, não deveriam intervir nas relações de mercado. No caso carioca, a Igreja Católica, sobretudo na figura da Fundação Leão XIII, e do SAGMACS, são duas das principais instituições com repercussões nas políticas públicas que concebiam a teoria da marginalidade através do paradigma da modernização. Segundo o diagnóstico de Valladares (2005): “A Fundação Leão XIII, criada em 1947 através de parceria entre o arcebispado do Rio e a prefeitura […] criada pela ala conservadora da Igreja […] no mesmo ano em que o Partido Comunista foi considerado ilegal no Brasil, tinha como

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um de seus argumentos principais não deixar o campo livre para os comunistas. A ameaça comunista parecia ainda mais importante na medida em que, de terceira força política do Distrito Federal durante as eleições presidenciais de 1945, o PCB havia chegado à primeira posição nas eleições municipais de 1947 […] comunistas confirmam a influência crescente do Partido Comunista nas favelas ao final dos anos 1940 […] “comitês populares democráticos” criados em diversos bairros do Rio pelos comunistas, com alguns subcomitês em algumas favelas” (VALLADARES, 2005)

Deixando-se assim mais do que claro o papel anticomunista, mas ao mesmo tempo antiimperialista deste empreendimento, que reflete uma atitude nova para a Igreja das décadas de 1940 e 1950: “A atividade da Fundação Leão XIII se inscreve na nova perspectiva aberta por Pedro Ernesto, que abandona a atitude repressiva e a condenação moral para pregar a educação social e a integração.” (VALLADARES, 2005). Ainda no âmbito do terceiro-mundismo católico, encontra-se o movimento Économie et Humanisme, que inaugura uma visão solidária, humanista, voltada para a solução dos problemas sociais por uma via antiimperialista e ao mesmo tempo anticomunista, que permitissem impulsionar mudanças sociais e ao mesmo tempo o desenvolvimento econômico. Pressupunham, portanto, ser plenamente possível através de reformas pontuais no capitalismo, diminuir seu caráter concentrador-excludente, marginalizador. O maior expoente deste movimento é o padre Lebret, chefe da SAGMACS, grupo de pesquisa financiado para realizar o primeiro grande estudo acadêmico, sistemático, sobre as favelas cariocas. SAGMACS foi escolhida porque Dom Helder Câmara desejava um estudo aprofundado, conduzido com autonomia, sem passar diretamente nem pela Igreja nem pelo Estado, que poderia fornecer muitos dados para políticas públicas voltadas a grande parte dos marginalizados cariocas (VALLADARES, 2005). A integração dos favelados à vida política, na visão da Igreja, deveria ser incentivada, pois deveria haver a formação de uma comunidade de base, deveria haver coesão social entre vizinhos, e para isso foram incentivadas as Associações de Moradores. A Igreja se colocaria neste momento como uma intermediária entre o Estado e a população local, a intenção era contra-atacar práticas clientelistas de alguns políticos adeptos à tradicional “política da bica d'água” (GONÇALVES, 2013). Como se pode ver ambas as instituições estavam alinhadas a uma mesma ideologia capitalista, conservadora, que ao mesmo tempo admitia ser necessário rever e reformar alguns aspectos do capitalismo que acentuam a marginalização de setores amplos da sociedade. Porém, como se podia esperar, tais políticas se mostraram completamente ineficazes e mais 71

cedo ou mais tarde foram abandonadas. Eram ineficientes justamente porque não atacavam a raiz do problema: o sistema capitalista. A principal crítica à teoria da marginalização entendida através do paradigma da modernização é feita na linha marxista, que tende a ver a marginalização não como falha, mas como regra. Não como externalidade do processo de desenvolvimento capitalista que pode ser reduzida ou contornada, mas como pressuposto, como componente estrutural necessário, inevitável, para a manutenção do status quo, inseparável do desenvolvimento capitalista. Lícia do Prado Valladares deixa caro a real incapacidade do sistema capitalista de absorver grande parte da força de trabalho: “O desenvolvimento do mercado de trabalho e de suas capacidades limitadas de absorção da mão-de-obra, as variações do custo de vida e dos salários, os preços elevados do mercado habitacional são estudados como fatores que, reunidos, contribuíram para o desenvolvimento das favelas.” (VALLADARES, 2005).

Autores marxistas como José Nun (1969) e Aníbal Quijano (1977) preocupam-se com o tema da marginalidade devido à incapacidade do sistema capitalista latinoamericano do pósguerra absorver o rápido crescimento da força de trabalho. Ambos entendem o problema da marginalização como advindo do crescente controle do capital monopolístico transnacional do processo regional de industrialização na América Latina. Então, é possível afirmar que a marginalidade também encontra-se presente nos países centrais ou desenvolvidos, que os autores chamam de imperialistas, sendo lá, no entanto, menos evidente, já que o capital monopolista tornou-se hegemônico nestes países bem antes que nos países latinos. Portanto, as interpretações marxistas da teoria da marginalização colocam a marginalidade em função da ascensão e da consolidação do capital monopolista transnacional, ou seja, a marginalidade é parte inseparável da expansão capitalista como um todo, não é especificidade da América Latina, está presente em todo lugar onde se encontra o capitalismo monopolístico, portanto, a teoria da marginalização diferencia-se completamente da teoria da dependência, que crê que o subdesenvolvimento latinoamericano é função do caráter dependente de nossas economias com relação às economias centrais e que tal processo poderia ser revertido através de algumas estratégias que visassem tornar-nos gradativamente mais independentes do capital advindo de países centrais. Tais estratégias políticas são vistas como inúteis pelos teóricos marxistas da marginalidade, pois o problema não estaria com o caráter associado da nossa economia às economias centrais, e sim com o próprio capitalismo monopolista. 72

José Nun (1969) começa seu trabalho analisando os conceitos existentes nas obras de Marx sobre o papel de excedentes populacionais no capitalismo. Ao mesmo tempo que, para Marx, o excedente populacional oferece uma reserva de mão de obra que seria demandada pelo sistema capitalista de acordo com os ciclos econômicos de expansão e de retração; ele obriga o trabalhador empregado a aumentar a sua produtividade e a submeter-se às regras e condições do capital sob pena de ser demitido e perder seus meios de subsistência; e, por último, ele diminui os níveis gerais de salários da economia. Este excedente populacional, portanto, é funcional para o capitalismo. Não obstante, com a penetração do capitalismo monopolista na América Latina, a população excedente cresceu em números tão alarmantes que parte deste setor populacional não é só afuncional, é, sobretudo, disfuncional para o capitalismo. Isso significa que tal excesso de população cessa seu papel positivo para o capitalismo e, além disso, passa a ser ofensivo ao sistema, impôr riscos a ele, tornando-se assim disfuncional. Assim sendo, esta parte disfuncional do excedente populacional supera a capacidade de absorção do setor hegemônico do capitalismo, não é e não poderá ser absorvida pelos circuitos econômicos do capital monopolista, mesmo durante ciclos de expansão da economia. Consequentemente, essa população não desempenha a função de um exército industrial de reserva, como o descrito por Marx (NUN, 1969). A incapacidade do sistema absorver estas pessoas se deu, por um lado, pela estratégia de desenvolvimento interno não revolucionou a agricultura e, então, nenhum mercado interno de massas foi criado para a indústria. Por outro lado, o sistema foi instalado na América Latina de forma dependente, o que levou prematuramente à concentração industrial e a adoção de tecnologias. Com isso poucos empregos novos foram gerados, apesar do rápido crescimento industrial. Este problema foi agravado pelo alto crescimento populacional dos países em desenvolvimento e pela baixa possibilidade de emigração, se comparada à Europa quando se encontrava passando pelo mesmo processo. Então, enquanto a Europa exportara seu excedente não-absorvível para colonizar o mundo, os países em desenvolvimento no século XX não puderam fazê-lo e, portanto, tiveram que lidar com seus excedentes populacionais dentro de seus próprios territórios, acumulando pessoas expulsas do campo e sem colocações possíveis de trabalho nas cidades, nas periferias e nas zonas de informalidade dos grandes centros latinoamericanos, como as favelas. Então, para Nun (1969), um problema não antevisto por Marx, surgiu na América Latina: a massa marginal. A massa marginal, portanto, designa a parte do excedente populacional que é afuncional ou disfuncional ao capitalismo monopolista. Ela é disfuncional 73

porque nunca será absorvida pelo capitalismo monopolista e porque ela não tem influência alguma sobre os níveis dos salários da força de trabalho empregada por ele. A massa marginal seria composta por: parte da força de trabalho empregada pelo capital industrial competitivo; empregados precariamente remunerados do setor de serviços; A maioria dos desempregados; autônomos, tanto no campo, quanto na cidade; trabalhadores semi-escravos, assalariados mantidos através da força declarada ou implícita; trabalhadores que não recebem em dinheiro; pessoas que vivem de bicos. Nun (1969), no entanto, não detalha estes membros da massa marginal. No entanto, deixa claro que partes dessa massa marginal podem exercer o papel de exército industrial de reserva para o capital industrial competitivo, papel que vem decaindo como possibilidade para a massa marginal com o tempo, devido à crescente impossibilidade deste tipo de capital absorver essas pessoas. Estão assim o capital monopolístico e competitivo desenvolvendo-se no mesmo sentido: o de aumentar a massa marginal. Assim como Nun (1969), Quijano (1977) relê Marx e seu conceito de exército industrial de reserva com o objetivo de entender a realidade latinoamericana. Assim como Nun, Quijano vê uma parcela da força de trabalho que não pode ser absorvida pelo capitalismo. A essa força de trabalho excluída ele dá o nome de trabalho marginal, que também, assim como em Nun, não funciona como exército industrial de reserva. Ele identifica diversas fontes da marginalidade tanto rural quanto urbana: o desenvolvimento do setor monopolista do capital gera falências de indústrias do setor competitivo, o que aumenta o desemprego; tende a quebrar negócios pequenos e autônomos; e, por último, com a penetração do capitalismo nas relações agrícolas, muita força de trabalho ficou desempregada e foi obrigada a migrar para as cidades, onde uma parcela maior de mão de obra era requerida. Portanto, é visível que uma parcela cada vez maior da população latinoamericana está empenhada em trabalhos marginais, em um pólo marginal da economia. Com a mobilização deste conceito, Quijano (2000) enriquece em muito o debate, pois a ele permite rechaçar o dualismo, reconhecendo que a força de trabalho marginalizada continua fazendo parte do sistema econômico. Com o conceito de pólo marginal, a estrutura econômica torna-se mais desigual e contraditória, mais complexa e, portanto, tem seu poder explicativo aumentado. O pólo marginal não é ligado diretamente a nenhuma função produtiva, consequentemente as relações de produção entre o núcleo dominante e o pólo marginal são fragmentárias e indiretas. Todavia, há uma relação direta entre este pólo marginal e os níveis mais baixos da estrutura produtiva, relação da qual extrai-se mais-valia, apropriada pela 74

pequena burguesia. Desse ponto de vista, o pólo marginal exerce um papel maior na concessão de mais-valia, já que oferece um mercado para os níveis baixos e médios do aparato produtivo. O pólo marginal é o setor mais baixo da economia, mas é um dos setores dela, faz parte do sistema econômico, não se encontra fora dela, já que está diretamente ligado à realização da mais-valia e descontinua e precariamente ligado ao processo produtivo. Quijano distingue dois tipos de populações no pólo marginal: a pequeno-burguesia marginal e o proletário marginal. A burguesia marginal é diminuta e menos marginalizada, geralmente auto-empregada, autônoma, normalmente com pequenos negócios e/ou ateliês. As atividades produtivas e os serviços desenvolvidos por essa burguesia marginal são voltados à população marginal, mas também podem encontrar espaço entre o proletariado urbano. Enquanto isso, o proletário marginal encontra ocupação apenas temporária em empregos que demandam altos níveis de produtividade, com poucos recursos tecnológicos, como construção civil e trabalhos manuais. Esses proletários marginais pouco provavelmente serão empregados pela pequeno-burguesia marginal porque esta não dispõe de recursos suficientes para arcar com estes custos e ainda manter sua atividade comercial, por isso geralmente tais empreendimentos mantém-se individuais ou, no máximo, familiares. Outro importante ponto tocado nas análises de Quijano (1977; 2000) é o que concerne à contribuição do pólo marginal à acumulação de capital. Em seu papel de exército industrial de reserva para o setor competitivo, o proletário marginal contribui para a depressão de salários daqueles empregados nos níveis competitivos da economia. Eles também colaboram através do consumo, comprando produtos dos setores competitivo e monopolista, configurando-se assim enquanto consumidores explorados. Estas são contribuições indiretas à acumulação de capital. Sobre contribuições diretas à acumulação capitalista, Quijano trata especificamente do caso da pequena burguesia marginal, que tem o objetivo de acumular um pequeno montante de capital diretamente através das atividades que desempenham no pólo marginal da economia. Sobre o caso das contribuições diretas dadas à acumulação de capital por proletários marginais quando esporadicamente empregados por capitalistas, quando a realização da mais-valia se dá de maneira direta, sendo apropriada, então, diretamente pelo capitalista, Quijano tem pouco a dizer, mencionando somente a quase impossibilidade de tais eventos e, portanto, o peso quase nulo que tal modalidade de apropriação do trabalho alheio teria sobre o fenômeno da acumulação de capital. Realizando o mesmo diagnóstico de Nun e sobretudo de Quijano, de que as favelas se organizam de maneira tipicamente capitalista, Machado da Silva (1967) ressalta o grande dinamismo econômico da favela, com as mais diferentes relações econômicas, comerciais e 75

financeiras sendo estabelecidas. Sobre esses recursos internos e sua negociação cristaliza-se uma subdivisão de classe, que para Quijano é a pequeno-burguesia marginal e para Machado da Silva a burguesia favelada. Como diz Machado da Silva: “A burguesia favelada monopoliza o acesso, o controle e a manipulação dos recursos econômicos, além das decisões e dos contatos políticos.” Já a parte mais baixa da população marginal/favelada, para Quijano o proletário marginal e para Machado da Silva os “favelados dos estratos mais baixos” não têm ambos poder político, servindo geralmente como massa de manobra para os setores mais abastados da favela, do pólo marginal. Portanto, a tal burguesia ou pequenoburguesia favelada/marginal acumula não só capital no sentido estritamente econômico, mas conserva sua posição através da acumulação de capital social, político e até mesmo cultural. Ainda neste escopo, é preciso remobilizar o conceito de pólo marginal de Quijano (1977) e tentar entender como as dinâmicas econômicas se dão. O pólo marginal é o local mais distante do núcleo duro do capitalismo, está numa zona onde os mecanismos de regulação e coordenação estão mais rarefeitos, mas não ausentes. Cardoso (2013) utiliza-se de uma metáfora astronômica para explicar a ordem econômica capitalista atual, sendo esta uma galáxia. No centro, no núcleo do buraco negro, determinando sua dimensão, forma, dinâmica e identidade está o tesouro norte-americano. Mais próximas ao buraco negro estão as estruturas coesas e densas, mais coordenadas e reguladas, que se rearranjam instantaneamente a qualquer movimento impulsionado do núcleo. Nesta metáfora de Cardoso (2013) o pólo marginal (QUIJANO, 1977) seria: “Quanto mais distantes do centro da galáxia, menor a força de atração do buraco negro, mais rarefeitos alguns de seus mecanismos de coodenação, sobretudo a institucionalidade estatal. Mas o mercado e a informação também são mais rarefeitos. É menos denso o conjunto de instituições, o montante de recursos circulando, a qualidade da informação disponível aos agentes. Mas esses três elementos estão ali. Isso quer dizer que esses lugares distantes são parte da galáxia, sofrem a influência do centro, têm seu movimento e sua densidade determinados, justamente, pela distância em relação ao centro e, portanto, definem-se por essa relação distante. Esse ambiente costuma ser nomeado como informal. É o lugar da economia informal, do mercado de trabalho informal, do “setor informal”. Quero apenas registrar que esse termo – informal - é amplamente insatisfatório para dar conta da relação entre esse ambiente e o centro da galáxia.” (CARDOSO, 2013)

Fica claro aqui que o pólo marginal, a “economia informal”, não está fora do sistema capitalista, é, pelo contrário, parte fundamental e inseparável dele. Como conclui Cardoso (2013): “É ingenuidade imaginar que o camelô da esquina não participa do circuito do capital”. Além disso, é preciso entender que nestas zonas do sistema econômico mais longes 76

do centro, marginais, não são isentos de mecanismos de coordenação, são na verdade densamente coordenados mas não necessariamente por mecanismos públicos, como a lei e o Estado. Nas periferias, a sociabilidade está no centro ao invés do Estado ou do mercado, ela passa a modular em alguma medida as relações econômicas, configura-se assim um “sistema complexo de tácitas lealdades recíprocas” (CARDOSO, 2013), acordos tácitos, que levam em conta a “sociabilidade como condição para transações comerciais, e, com ela, o denso conjunto de expectativas morais, valorativas, racionais e materiais envolvidas na satisfação de um desejo fútil ou de uma necessidade premente.” (CARDOSO, 2013). Portanto, muitas transações econômicas no pólo marginal envolvem necessariamente estratégia, julgamento das ações do outro, tensão e risco, como em qualquer operação comercial, mas, além disso, é concluída quase sempre sustentada pela confiança estabelecida entre os atores. Já no centro do sistema econômico capitalista, as leis e as instituições seriam o lastro de tais relações econômicas. Algo, portanto, consideravelmente mais impessoal do que o observado por Cardoso (2013) nas favelas do Rio de Janeiro. Logo, é possível afirmar que Nun (1969), Quijano (1977), Machado da Silva (1967) e Cardoso (2013), todos concordam, pelo menos, que as margens do sistema, na verdade, são parte integrante do próprio sistema, não estão “fora” dele. Por isso, conceitos como informalidade e exclusão do sistema econômico não dão conta de explicar a realidade. Como expõe Adalberto Cardoso sobre o tema: “Nada está fora do sistema, nem isento de seus elementos de coordenação. A ideia de informalidade supõe mundos desintegrados, e ao ser operacionalizada por formuladores de políticas públicas vem acompanhada da ideia de que é necessário reintegrar seus elementos ao centro do sistema. Isso impede a apreensão da natureza do entrelaçamento de seus elementos de coordenação. Logo, de sua realidade tangível, de outro modo definida, sempre, na negativa […] Não há informalidade. Há densidade variável dos mecanismos de coordenação do sistema”(CARDOSO, 2013)

Ou seja, assim como afirma Quijano (1977) e também defende Adalberto Cardoso e Luiz Antonio Machado da Silva, o pólo marginal é um nível econômico do sistema capitalista, é parte do sistema, parcela que contem grande excedente populacional que possui uma expressiva força de trabalho não-absorvível pelo capital monopolístico, e que, portanto, desenvolve estruturas, modalidades, códigos, formas de acumulação de capital, de coordenação e regulamentação próprios. Uma frase de Cardoso (2013) resume bem o estatuto do pólo marginal - de grande parte de algumas favelas e de zonas perifericas da cidade - com relação ao sistema econômico capitalista: 77

“Não há exclusão. O sistema inclui a tudo e a todos, fazendo-o, apenas, de maneira diferente, e certamente desigual. Mas a desigualdade não é um jogo de soma zero, nem uma dualidade, nem mesmo uma tríade. Trata-se mais propriamente de um contínuo […] não há jogo, apenas fluxos sustentados por mecanismos de coordenação, mas como tudo isso está ancorado em ações e decisões racionais ou valorativas de indivíduos e coletividades reais, então é inescapável inferir que há pessoas e coletividades com maior ou menor capacidade de determinar suas vidas (e muito especialmente a vida dos outros), tendo em vista seu lugar na produção, distribuição e consumo dos recursos materiais e simbólicos do sistema, que lhes permite lançar mão de seus mecanismos de coordenação de maneira diversa” (CARDOSO, 2013)

Entendidas como parte do desenvolvimento capitalista, a expansão das favelas no Rio começa a se dar nas décadas de 1920 e de 1930, apesar dos primeiros relatos de ocupação desordenada em morros urbanos serem de muito antes, ainda do século XIX. A origem do nome favela data de meados do século XX, quando soldados sem-teto voltaram do sertão bahiano depois de vencerem a Guerra de Canudos (1896 – 1897) com a promessa de um quinhão de terra e em busca dos soldos atrasados. Enquanto combatiam em Canudos, os combatentes acampavam em colinas cheias de plantas, conhecidas localmente como favelas. Ao retornarem para o Rio de Janeiro, e não receberem as terras que lhes foram prometidas pelo governo para que eles se alistassem nas forças da República para a guerra, começaram a ocupar uma montanha no centro do Rio de Janeiro, atrás do Ministério da Guerra, dando o nome de Morro da Favella àquela colônia, em clara referência a Canudos. Segundo Valladares (2005), com a publicação do livro de Euclides da Cunha Os Sertões, em 1902, os intelectuais cariocas descobriam estes novos espaços da cidade através do olhar de Euclides da Cunha sobre Canudos. Como o nome Morro da Favella passou a identificar aquele acidente geográfico em 1897, pode-se afirmar que a nomeação se deu de forma independente da referida obra, mas, tal acontecimento teria passado despercebido, e essa palavra não teria alcançado a posteridade que conheceu, sem as imagens fortes e marcantes transmitidas através de Os Sertões. Imagens capazes de permitir aos intelectuais compreender e interpretar a favela emergente, seria a favela como lembrança de Canudos, do sertão, na cidade. (VALLADARES, 2005). A favela, portanto, é considerada antiga, bárbara, contexto do qual é preciso distanciar-se se se quiser alcançar estágios civilizados. Apesar do mito de origem das favelas estar ligado a Canudos como Valladares (2005) deixou claro, segundo Lílian F. Vaz (1988) e Rafael Soares Gonçalves (2013), “o surgimento das favelas é uma consequência direta do higienismo contra os cortiços” (VAZ, 1988). Em razão da campanha higienista estatal contra os cortiços no último quartel do século XIX e no primeiro do século XX, certos proprietários transferiram suas atividades para terrenos 78

contíguos a eles, localizados muitas vezes no sopé dos morros. Muitas favelas herdaram, dessa forma, o nome dos antigos proprietários dos cortiços, transformados depois em proprietários de lotes ou barracões nas montanhas, portanto, surge a figura do “proprietário da favela”, o arrendatário ou locatário. Isso põe em xeque outro dogma de que as favelas seriam necessariamente frutos de ocupações ilegais de terrenos. Em muitos casos, os primeiros habitantes tiveram acesso às suas casas através do mercado imobiliário informal. Há relatos, no entanto, que havia outras ocupações, nos moldes do Morro da Favella, antes do suposto marco histórico da inauguração deste tipo de colonização tipicamente carioca. Segundo Gonçalves (2013), documentos históricos mostram que o Morro de Santo Antônio já estava ocupado pelo menos desde a Revolta da Armada em 1893, no entanto, segundo Valladares (2005), as favelas da Serra Morena, da Quinta do Caju e da Mangueira7 também já existiam, porém mais de uma década antes da ocupação do Morro de Santo Antônio, desde pelo menos 1881, sendo, sobretudo, habitadas por imigrantes europeus pobres, sobretudo italianos, portugueses e espanhóis. Dependência das áreas centrais, tolerância dos poderes públicos com a ocupação dos morros, reforçou consideravelmente o processo de expansão das favelas. Além do aspecto sanitário, era nas páginas policiais que as nascentes ocupações em declive ganhavam espaço. A representação das favelas como epicentros de marginalidade urbana se disseminou velozmente, o que serviu de justificativa para a construção de uma retórica institucional a seu respeito, focada, sobretudo, nas noções de patologia urbana e de classes perigosas, que por sinal persistem, de outras maneiras, até hoje. As favelas, portanto, acabam tomando o lugar dos cortiços como maior problema urbano da cidade, débil no quesito habitação popular. A partir de 1910 a imprensa passou a empregar o termo favela – derivado de Favella, o antigo nome do atual morro da Providência – pejorativamente para descrever os barracos que surgiam em vários morros da cidade. Porém, ainda segundo o autor, o termo só se disseminou enquanto categoria, que discernia estes espaços colonizados precariamente nos morros do resto da cidade, na década de 1920. Para ajudar na compreensão de fatos e práticas tão complexos, Valladares (2005) desenvolveu uma periodização histórica para facilitar a compreensão do processo de favelização na cidade do Rio de Janeiro, é o que segue abaixo:



Anos 1930: Início do processo de favelização do Rio de Janeiro e reconhecimento da existência da favela pelo Código de Obras de 1937;

7 Esta Favela da Mangueira ficava em Botafogo, em cima do tunel que liga o bairro à Copacabana.

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Anos 1940: Primeira proposta de intervenção pública com a proposta de Vargas de construir Parques Proletários;



Anos 1950 até 1964: Expansão descontrolada das favelas sob a égide do populismo;



De 1964 até os anos 1970: Eliminação das favelas e sua remoção durante o regime autoritário;



Anos 1980: Urbanização das favelas pelo Banco Nacional de Habitação, o BNH, e pelas agências de serviço público após o retorno à democracia;



Anos 1990: Urbanização das favelas pelo poder municipal do Rio de Janeiro com o Programa Favela-Bairro, do ex-prefeito Cesar Maia. Já Gonçalves (2013), dotado de outras preocupações, empreendeu outra divisão,

também de caráter sucessivo, das principais preocupações oficiais do Estado com relação às favelas – que determinaram as políticas públicas, levaram a estigmatizações e à formação de diferentes arcabouços jurídicos que lastreavam estas práticas -, sem, no entanto, contar com referenciais temporais estanques como a de Valladares. Isto se deve justamente porque, ao passo que em Valladares uma atitude pressupunha a extinção da anterior, em Gonçalves o principal foco de criminalização da favela se imiscui com o anterior, produzindo um híbrido de exigências legais, de espectativas, e de práticas, redefinindo o próprio conceito de favela, tanto para o senso comum, quanto segundo os códices oficiais. São respectivamente os que seguem os principais moduladores da atuação estatal nas e com relação às favelas:



Condições Sanitárias;



Estrutura e gabarito das construções;



Locais ocupados e seu status legal;



Todo estereótipo associado à favela e ao favelado. As condições sanitárias, urgentes sobretudo no Rio de Janeiro da virada do século XIX

para o século XX, levaram ao combate e à criminalização de quaisquer colônias humanas consideradas insalubres, resultando primeiramente no combate dos cortiços e posteriormente no ataque às favelas. Na segunda metade da década de 1930, com a edição do Código de Obras, a infraestrutura julgada como precária tomou o centro, porém, a infraestrutura considerada irregular geralmente também era considerada insalubre. Nas décadas de 1940 e 1950, o foco passou a ser as formas de ocupação do solo que eram múltiplas, variando entre favelas e muitas vezes até mesmo dentro delas. Eram desde ocupações legais em loteamentos, 80

arrendamentos, propriedades compradas, aluguéis e etc, até as formas informais correlatas, além da invasão, considerada pelo senso comum e recorrentemente pela retórica oficial como a forma primordial de origem da favela. Não obstante, o Estado não abandona o combate à insalubridade e às construções consideradas desordenadas pelo texto legal, típicos da criminalização de espaços de ocupação popular anteriores, só acopla a elas a variável jurídica na relação pública com a favela. Após a infertilidade da discussão sobre o status legal da ocupação do solo, resultando em várias tentativas de reintegração de posse/remoção fracassadas e em outras tantas bem sucedidas, que, no entanto, não foram capazes de diminuir e nem mesmo parar o processo de favelização em curso na cidade à época, o foco oficial de combate passa a ser o próprio estereótipo associado ao favelado e à favela, tidos como perigosos à sociedade ou ao menos desviantes do considerado “normal” pela moralidade elitista – hegemônica, cristalizada na letra da lei. Passa-se então a um novo nível de repressão, não mais se reprimem condições de vida consideradas danosas à sociedade como um todo pela disseminação de epidemias, nem condições estruturais das habitações “subnormais” para usar o termo empregado nos primeiros censos a considerar as favelas, nem, tampouco, o status legal de ocupação da terra, mas sim relações sociais, marcas culturais, as práticas e quaisquer outras características identificadas como pertencentes a estes rincões perigosos e bárbaros. As favelas, para Wacquant (2005), são comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de uma metrópole, onde residem os párias modernos e onde os problemas sociais se aglomeram e criam tensões visíveis, atraindo recorrentemente visões negativas por parte da mídia, dos políticos e do Estado. São locais conhecidos por todos, tanto moradores quanto outsiders, como regiões-problema, zonas violentas e selvagens da cidade, territórios de privação e de abandono8, lugares a serem evitados e temidos, porque têm ou se crê que tenham excesso de crime, de violência e de vício, espaço, portanto, primordial da desintegração social. Por causa da aura de periculosidade que envolve seus habitantes, e do descaso do qual são vítimas, esta mistura de proletários, famílias, migrantes e outros setores subalternos da sociedade, são tipicamente retratados à distância, como se fossem um “eles”, um “outro”, diferente de um “nós”. São frequentemente retratados como exóticos, improdutivos, brutais e descartáveis, chegando às vezes a serem descaracterizados como humanos despidos de suas vidas políticas, conservando neles somente suas vidas biológicas, comum a todos os animais. É como diagnostica Machado da Silva (2008):

8 Este termo será retomado mais adiante e seu sentido nessa frase e o motivo do grifo ficará claro.

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“O antigo fantasma das classes perigosas agora reencarna na ameaça representada pela violência criminal, que é rotineira e, portanto, “próxima”, personalizada (...) O medo de reifica e se espacializa nos perigos imputados aos territórios da pobreza, cujo caso exemplar na representação social são as favelas vistas como lugares prenhes de uma violência descontrolada (...) O medo produz expectativas e demandas de segurança contra e não com os outros – levando a polícia a funcionar como um verdadeiro dispositivo de confinamento. Dos aparelhos de segurança não se espera mais a regulação das relações de classe, e sim a evitação de encontros entre desconhecidos por meio de repressão livre de restrições, cotidiana e generalizada. A função da polícia passa a ser vista pelas camadas mais abastadas como um muro de contenção ao intercâmbio de indivíduos e maneiras de viver, em vez de ser um meio orgânico de sua regulação (...) Toda a população da favela começou a ser vista como composta por bandidos ou quase bandidos, em razão da contiguidade territorial inescapável com a minoria que integra os bandos armados (...) O medo e a desconfiança generalizados das camadas mais abastadas da cidade obrigam os moradores de favelas a um esforço prévio de “limpeza simbólica” - isto é, a necessidade de demonstrar ser “pessoa de bem”, a fim de ganhar a confiança do Outro -, poucas vezes bem-sucedido, antes mesmo que possam apresentar no espaço público suas demandas como interlocutores legítimos. O confinamento geográfico cerceia-lhes também a palavra.” (MACHADO DA SILVA, 2008)

A favela é um fato territorial dado, incontornável. Ela é o lugar produzido pelo que não encontra lugar nos territórios delimitados pela lei e pela inclusão econômica. Mas também pelo que não pode ser exterminado porque, por outro lado, embora incômodo e inquietante, é também necessário e, sob muitos aspectos, oferece prazeres e confortos amplamente desejados. Não só as drogas, mas o mais expressivo das artes populares, em particular a música. Os níveis de exclusão são diversos, porém nunca absolutos, até mesmo os tidos como completamente excluídos são incluídos à medida que não pertencem à norma, incluídos através da exclusão. Como qualquer outro tipo de colonização humana, as favelas e seus habitantes não só ocupam lugar, eles moram, demandam, consomem, precisam de infraestrutura urbana e prestam serviços essenciais à economia da sociedade em geral, interagindo, porém, com a cidade não só a nível econômico, mas também a nível social, político e afetivo. “Se a presença da favela e das populações faveladas produz mal-estar, a sua ausência produziria o colapso global da vida cultural”. (SILVA, 2011) As favelas historicamente são locais de excelência da economia informal e das ilegalidades, devido tanto à incapacidade do capitalismo de absorver essas massas à sua lógica, quanto à incapacidade do Estado em prover projetos alternativos de vida aos habitantes destes rincões. Por estar desde sua origem à margem da lei, é nela que negócios ilícitos, como o tráfico de drogas floresce, sendo estas as regiões preferenciais de bandos armados de narcotraficantes, tanto por estarem fora da jurisdição de facto do Estado, quanto pela quase inexpugnabilidade geográfica das favelas com relação ao restante da cidade (como se vê, geralmente as favelas estão dispostas em morros). Com o boom de violência causado 82

pela guerra às drogas e pela aquisição de armamentos pesados pelos traficantes nas décadas de 1970 e 1980 - assegurando de uma vez por todas o controle bélico das favelas, sendo, portanto, o narcotráfico o ator soberano da região -, as relações (históricas) simbólicas de medo, ganharam bastante subsídios, através particularmente da mídia, e se fortaleceram cada vez mais, visando, cada vez mais, a repressão e o controle social destas populações, “para o bem de todos”. Já na década de 1990, a debilidade da política de segurança do estado era mais que notória e tentativas alternativas começaram a surgir, como o Programa Favela-Bairro que construiu infraestrutura para várias comunidades, porém, não conseguiu incluí-las socialmente, apesar da melhora significativa nas condições de vida dos habitantes das comunidades contempladas pelo programa. Assim como o Favela-Bairro, políticas alternativas ao bang bang que marcava a política de segurança anterior foram tentadas, como o policiamento comunitário e a ocupação policial definitiva de algumas favelas, para que houvesse, de uma vez por todas, controle social efetivo sobre aquela população, para que a periculosidade que ela potencialmente representava para a sociedade fosse reduzida e geograficamente contida através das agências policiais, como se pode ver abaixo: “In the 1990s the constant police presence proposals that arose were developed from the new configuration diagnosis of violent urban criminality. As said previously, the drug trafficking organization and the territorial disputes between the criminal groups turned compulsory the police actions related to the favelas, as a way of discussing these criminal networks. In the process of rationalizing the police activity, diagnosis of favela as problems proposed as solution their occupation” (SILVA, 2012).

Para findar a análise da favela enquanto categoria histórica e sociológica, os três principais dogmas acadêmicos e do senso comum, segundo Valladares (2005) precisam ser expostos e desconstruídos de forma a permitir que interpretações não convencionais, com maior poder explicativo, venham à tona. É preciso, assim sendo, tocar em pontos até então considerados características intrínsecas às favelas: a especificidade da favela como categoria analítica, a relação quase direta e inconsciente que se faz entre favela e pobreza e a suposta homogeneidade das favelas. É dogma aquilo que não é discutido, nem mesmo pensado criticamente, é aceito como um a priori que modula e modela todos os círculos de significância ao seu redor. Por isso pode-se dizer que a especificidade da favela é um dogma. Concretada no senso comum e plenamente aceita na academia – muitas vezes tomadas como pressuposto -, a favela seria 83

uma manifestação específica peça sua história particular, seu modo de crescimento diferente dos demais bairros, sendo considerada um espaço único, singular. Geógrafos a definem como espaço urbano fora da regularidade, sem ruas bem traçadas, com escassos serviços e precarizados equipamentos coletivos, sendo, para alguns, inclusive essa forma diferenciada de apropriação do espaço que caracterizaria a favela. Urbanistas se apegariam à estética pouco comum, que não segue a modelos ou padrões. O Estado que ela é irregular, ilegal, em desacordo com as normas. Cientistas Sociais destacam os ritmos da favela como o samba, o funk e o rap, as atividades ilegais do bicho e do tráfico de drogas, as religiosidades afrobrasileiras. Em suma, o que todos pressupõem é uma forte identidade desses espaços, marcados não só por uma geografia peculiar, mas também pela ilegalidade da ocupação e pela resignação de seus moradores. Segundo esta corrente da especificidade, a trajetória típica do favelado seria abandonar os estudos e juntar-se ao tráfico de drogas, em busca de poder, dinheiro, masculinidade, status. A favela portanto condicionaria o comportamento de seus habitantes, em uma remobilização do postulado higienista da determinação do comportamento humano pelo meio no qual está inserido. Sendo, portanto, uma armadilha enveredar por este caminho da especificidade, sob a pena de descambar no positivismo lombrosiano mais ultrapassado. O segundo dogma é o que traça uma relação direta entre favela e pobreza, sendo a favela o país dos pobres. Haveria um verdadeiro enclave onde a marca identitária é onipresente, abandonados pelo Estado, teriam desenvolvido leis, códigos sociais e economia autônomos. Até os pesquisadores das ciências sociais elegem a favela como o território privilegiado do estudo da pobreza. Enquanto território da pobreza, a favela passou a simbolizar o território dos problemas sociais, associando-se espaço ao tecido social. Este dogma, por sua vez, quase certamente descamba em estigmatização, pois pressupõe ser o favelado, pobre. O que empiricamente não é necessariamente verdade, apesar de muitas favelas – assim como muitos outros bairros da cidade – terem níveis baixos de renda. Assim sendo, nem todo favelado é pobre e nem todo pobre é favelado. O terceiro e último dogma diz respeito à unidade, a homogeneidade da favela, presente tanto em políticas públicas, no senso comum, quanto na academia. Apesar de terem a noção de ser um fenômeno múltiplo, reduzem um universo plural a uma categoria única e universalmente válida: a favela. Tratam a favela no singular, ignorando a grande diversidade presente entre as favelas, mas também dentro de cada uma delas. Ocultam-se a diversidade, a variedade das formas e das relações: forma-se um arquétipo um tipo-ideal. Num mesmo sintagma, unificam-se situações com muitas características demográficas, geográficas, 84

urbanísticas e sociais distintas. Este dogma reforça a suposta dualidade excludente e antônima entre a favela e o resto da cidade, comparando-se os dois, não são consideradas as diferenças entre favelas, nem aquelas que demarcam diferentes espaços sociais dentro delas, quando, na verdade, diferenças inter e intra favelas não podem ser desvalorizadas, pelo contrário, devem ser priorizadas como método comparativo. O mais interessante é que o Censo confirma que estes dogmas são na verdade falácias: não há especificidade, não há relação direta com a pobreza e não há homogeneidade. Ele mostra que as favelas são heterogêneas física, espacial e socialmente, sendo inútil agrupá-las todas sob uma mesma categoria distinta. É, por exemplo, comum encontrar ocupação ilegal do solo, precariedade das habitações, pobreza, falta de serviços públicos, tráfico de drogas e etc em bairros populares da cidade que não são considerados favelas, daí a impossibilidade de definir com precisão e com poder explicativo “a favela”. Portanto, concordo com Lícia do Prado Valladares quando ela diz que “preferimos a hipótese de a identidade da favela afirmada pelos dogmas prender-se muito mais ao contraste violento com os bairros de classe média e alta que lhes são próximos ou vizinhos, do que às suas supostas “características compartilhadas” (VALLADARES, 2005) É nesta tentativa desesperada de homogeneizar o heterogêneo, de unificar o diferente, que as políticas públicas para as favelas tendem a ser sempre verticais, autoritárias, ignorando as especificidades locais onde são implantadas, sem participação social tanto na edição, quanto na implementação das mesmas. É um passaporte só de ida para o fracasso dessa política-molde – política aqui no sentido de policy, que fique claro - que tenta encaixar a realidade em um tipo-ideal a partir do qual as políticas são desenhadas para uma diversidade notável de ambientes e contextos. Esse é notadamente o caso do ascendente fracasso notado na política de pacificação das favelas cariocas nos governos Sérgio Cabral e Pezão.

4.3.UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA: CONTRAINSURGÊNCIA À LA CARIOCA “As vezes falo com a vida, as vezes é ela quem diz, qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz(...) Essa paz que eu não quero seguir admitindo.” O Rappa, Minha Alma, 1999 85

É no reboque dos incentivos dados pelo governo federal na administração Lula à mudança no caráter da política de segurança pública do Rio de Janeiro, priorizando o policiamento comunitário no lugar do confronto, que surge a Unidades de Polícia Pacificadora. A UPP, segundo o que consta no site do estado do Rio de Janeiro, é o reproduzido abaixo (grifos feitos pelo autor): “A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) é um dos mais importantes programas de Segurança Pública realizado no Brasil nas últimas décadas. Implantado pela Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, no fim de 2008, o Programa das UPPs é planejado e coordenado pela Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional. O Programa das UPPs foi elaborado com os princípios da polícia de proximidade, um conceito que vai além da polícia comunitária e tem sua estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de Segurança Pública. O Programa engloba parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do estado com a população. Além de levar paz aos moradores da comunidade, a pacificação tem um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializa a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades. O estado do Rio de Janeiro já recebeu 30 UPPs e até 2014 a previsão é de que sejam mais de 40. A polícia pacificadora conta com um efetivo atual de 8.014 policiais. Esse quantitativo deve chegar a 12,5 mil até 2014. As UPPs em operação abrangem 207 comunidades e já beneficiam aproximadamente 450 mil pessoas residentes nessas áreas. Até 2014, serão beneficiadas outras comunidades, abrangendo outros 860 mil moradores de comunidades da Zona Oeste, Baixada e outras cidades fluminenses com grande concentração urbana. Cabe ressaltar que os efeitos proporcionados por este Programa extrapolam as comunidades pacificadas, se estendendo a suas áreas adjacentes, beneficiando direta e indiretamente uma população bem maior.” 9

A propaganda, porém, não condiz com a realidade observada e vivenciada nas comunidades ocupadas do Rio de Janeiro. Para começar a desconstruir esse consenso hegemônico que há entorno das UPPs, algumas análises serão feitas e deixarão claro, portanto, que o discurso do governo não condiz com a verdade observada e sentida nas comunidades carentes do Rio de Janeiro sob ocupação militar permanente. É necessário entender que a UPP surge como política supostamente redentora, devido ao processo de acumulação social da violência que caminhou a passos larguíssimos desde a década de 1980 até a década de 2000, expondo o Brasil e especificamente o Rio de Janeiro a níveis de violência só vistos em outros países que estão de fato em guerra. Com surtos 9 Definição encontrada na página oficial do governo do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: .

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incríveis de violência no Rio de Janeiro (com queimas de ônibus), em São Paulo (com queima de ônibus e mortes de policiais e pessoas de periferia, comandados todos por ordens vindas das cadeias) e no Espírito Santo, que chegou a perder sua soberania em matéria de segurança pública para a União. Algum meio inovador do poder punitivo precisava ser rapidamente inventado para assegurar não só a ordem interna, mas a própria sobrevivência do Estado. Alternativas foram buscadas, modelos foram estudados, até que uma estrutura híbrida foi montada a partir do exemplo de Medellín, contudo preservando alguns padrões impossíveis de não serem reconhecidos, que permitiria ao Estado, reanexar esses territórios nos quais o soberano era o narcotráfico. Esta ferramenta foi a aposta - a única que o governo tinha além do confronto nu e cru, observado em casos como o cerco do Alemão no Pan-Americano do Rio - mas ela implicava em sérias violações à Constituição e aos direitos humanos, então o apoio da mídia e a formação de um consenso hegemônico sobre a necessidade dessas operações, sobre a urgência delas, custe o que custar, doa a quem doer, era extremamente importante. Como retórica, foi utilizado pelo governo desde a concepção deste projeto, a guerra como metáfora e o tráfico como inimigo. O Secretário de Segurança, Mariano Beltrame, falou abertamente “estamos em guerra, temos alguns poucos causando o terror de milhões”. O sintagma guerra é intencionalmente usado para que ninguém se espante com as irregularidades cometidas durante as operações de combate ao narcotráfico nas favelas pelas agências do Estado, porque na guerra, como se sabe, não há direito, há a suspensão das normas. A guerra é o espaço primordial do não-direito, do poder constituinte (e não do poder constituído como as leis), portanto, é legítimo que o Estado aja à revelia da lei, aplicando, inclusive, o poder bélico das Forças Armadas, cuja função primordial é matar o inimigo (e não fazer o suposto policiamento de proximidade, como o prometido pelo programa das UPPs), contra a própria população no meio da qual o inimigo estaria escondido, infiltrado ou ainda protegido, possibilidades essas que geram uma eterna desconfiança e cinismo da polícia com relação aos moradores das comunidades. O que não se percebe é que a toda a população destes rincões do capitalismo moderno são tratados como os inimigos do Estado, tratados como cidadãos de segunda classe. Suspende-se de facto, então, algumas liberdades democráticas em nome da manutenção das condições que permitiriam o bom funcionamento da democracia. E tudo isso com amplo apoio da população. É este discurso que legitima o emprego de fuzileiros navais, por exemplo, no teatro urbano em tempos de paz (na definição da lei: ausência de guerra declarada contra outro Estado) e a aceitação da violação generalizada dos direitos humanos das populações mais 87

pobres da cidade. Bem como restrições à imprensa, violações do direito de ir e vir, da inviolabilidade do lar (e do carro, por ser considerado como uma extensão do lar do indivíduo, somente com mandado judicial), torturas, abuso de poder, assassinatos, remoções forçadas em nome do progresso nos setores mais vulneráveis das comunidades pobres e etc. Violações jurídicas patentes como resultados de políticas públicas, amplamente aceitas e até mesmo incentivadas. Parar levar a cabo o combate militar aos bandos narcotraficantes, a única política que o estado conhecia era a incursão seguida da exposição espetacularizada do espólio de guerra obtido da invasão do território sobre domínio do outro, do inimigo, como nas sociedades mais primevas da história. Até mesmo o jargão policial incursão, usualmente utilizado para designar as operações policiais nas favelas tanto pela polícia, quanto pelo governo, mídia e pelos próprios favelados,

legitima prontamente a retórica governamental de guerra,

especificamente de guerra ao tráfico de drogas, uma vez que incursão significa: “1Penetração súbita em território inimigo; 2- Invasão militar”10. Tendo em vista este discurso de guerra e a ascensão do consenso no entorno da necessidade de ocupação militar permanente das favelas cariocas para acabar com a violência acumulada há décadas, surge o projeto das UPPs. As UPPs tornam-se palco de operações de guerra para o estabelecimento do mais cabal estado de exceção e, segundo Nilo Batista, transformam o território da favela e de seus arredores em teatro de operações armadas só cabíveis em condições de estado de sítio declarado pelo Congresso Nacional11,. Começando pelo Morro Santa Marta, em Botafogo, no ano de 2008 (apesar do decreto que cria oficialmente as UPPs só ser publicado no Diário Oficial do estado em 21 de janeiro de 2009, através do Decreto 41.650), as UPPs começaram a ser instaladas na cidade do Rio de Janeiro. A primeira etapa não diferia em nada das práticas de antes: invasão da favela com artilharia pesada para enfrentar traficantes igualmente bem armados. Uma vez tomado o morro, o trabalho permanece rotineiro: policiais em busca de armas, drogas, bandidos escondidos e pessoas com mandado de prisão. A diferença é que em todas as outras vezes, depois de todos esses passos, os policiais saíam da favela e deixavam-na livre para a reinstalação do tráfico novamente. Já dessa vez, eles não só invadiram, eles ocuparam. Não saíram da favela após a “incursão”. O objetivo da ocupação (apelidada de pacificação pelo Estado, para ajudar a reforçar o paradigma da guerra no combate ao tráfico de drogas) era 10 Verbete retirado do dicionário virtual Dicionário Informal, disponível em: . 11 Como o dito por Nilo Batista na entrevista concedida ao Jornal Nova Democracia, disponível em:

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assegurar a área para o Estado através de uma unidade policial permanentemente montada na comunidade, com a finalidade de coibir o tráfico de drogas, sobretudo o tráfico de drogas armado, garantindo assim o monopólio legítimo do uso da violência pelo Estado naquela região. O tráfico de drogas até poderia permanecer, mas estaria desarmado, igualando-se então ao tráfico encontrado no restante da cidade: espacialmente descentralizado, desarmado, com grande rede de contato, mas com uma freguesia delimitada e fidelizada. Nada equiparado a desafiadores do Estado armados em zonas periféricas dos centros de suas maiores cidades. A instalação da UPP pode ser dividida em 4 partes comuns a todos os processos de pacificação até agora empreendidos: 1. Desarticulação do tráfico de drogas, possibilitado por investigações policiais e por prisões de traficantes (de preferência dos donos dos morros para desarticular a hierarquia do tráfico antes da invasão);12 2.

Reconquista do território;

3. Instalação da UPP, com a entrada da polícia dita comunitária ou pacificadora; 4. Construção social da figura de favela segura. Para que esses passos aconteçam da melhor maneira possível, eles primeiros tentam mudar a imagem que os moradores têm da polícia militar, tentando construir alguma legitimidade no entorno dos PM's para garantir o apoio da população. Essa legitimidade do policial pacificador é construída através do diálogo que agora a polícia faz questão de manter com a comunidade, sendo parte fundamental de sua estratégia de ocupação territorial. A polícia procura que o diálogo seja com interlocutores legítimos, reconhecidos como lideranças dentro de suas comunidades e que não tenham nenhuma ligação com o tráfico recém-expulso da comunidade. Nesse sentido, os canais tradicionais legítimos de comunicação dos moradores com as instituições estatais e também com os traficantes, as Associações de Moradores, foram postas de lado do processo porque foram acusadas de serem cúmplices do tráfico, justamente pela relação que mantinham com o tráfico de drogas, o antigo soberano do local, demonizado pelo novo “dono do morro”, a UPP (CANO, 2012). Em entrevista à Maria Helena Moreira Alves, o líder comunitário Deley de Acari dá o relato dele sobre a relação que inegavelmente existe entre traficantes e associações de comunidades sob o julgo do tráfico 12 Maria Helena Moreira Alves (2013) divulga em seu livro a denúncia de que a prisão de chefes do tráfico de drogas é negociada pela polícia com o tráfico sempre que a mídia “condena” algum deles, justamente pela atenção chamada pela ostentação de riqueza ou elevado poder bélico, ou por casos emblemáticos de violência. Sendo a invisibilidade a melhor garantia de um domínio duradouro do tráfico sobre uma favela.

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armado: “Quando Berico [ex-chefe do tráfico em Acari] voltou para a favela, de 1996 a 2001, Acari ficou ocupada pela polícia. Em 2002, ele conversou comigo e algumas lideranças comunitárias e dissemos que precisávamos da colaboração deles: “Vocês entram em confronto com a polícia, matam um policial, no outro dia vêm vinte policiais, matam dois bandidos e dez moradores. Nós queremos saber o que vocês ganham com isso”. Então começamos a trabalhar para convencer “os meninos” e passou a ser reduzida a questão das mortes (...) Nós não temos nenhum tipo de vaidade com esse tipo de coisa. E, na verdade, as pessoas não compreendem. No asfalto as pessoas acham que isso é associação ao tráfico. Ter qualquer tipo de relação de amizade ou atender a um pedido é associação ao tráfico.” (MOREIRA ALVES, 2013)

Já segundo a interpretação da mãe de um aluno do Complexo do Alemão, a associação de moradores do local é conivente com o tráfico, não há eleições nem sentimento de representatividade envolvidos no processo de escolha do representante dos moradores, há o aparelhamento desta pelo tráfico de drogas, sendo este ator o responsável pela indicação dos presidentes da associação. Contudo, ela também indica que a polícia também exerce poder sobre este indivíduo. É como diz a mãe “É uma pessoa da comunidade em que os dois mandam, sabendo que fica ali, que não vai causar nenhuma problema, que não vai os impedir de fazer nada. Está lá enquanto querem, só para dizer que tem Associação de Moradores”. (MOREIRA ALVES, 2013) Depois de tomar o território, prender, matar ou expulsar os traficantes e apreender algumas drogas e armas (geralmente em quantidades muito insignificantes), há uma cerimônia simbólica que vem sendo feita para demonstrar a “retomada” do território pelo Estado, geralmente são hasteadas as bandeiras do Brasil, do estado do Rio de Janeiro e do BOPE, de preferência no ponto mais alto da favela, onde todos dentro e no entorno da comunidade possam ver os símbolos de poder do Estado flamulando. Esse mito de origem de que o território está sendo retomado é, mais uma vez, construído conscientemente pelos marketeiros do estado para que a população pense que o território um dia pertenceu ao Estado e que, de repente, invasores hostis conseguiram tomar o território das mãos do Estado, o que, decerto, não corresponde à verdade. Geralmente os territórios ocupados pelas favelas sempre sofreram cronicamente o abandono do Estado em todas as esferas. Eram ou áreas rurais, ou montanhas desocupadas ou propriedades particulares e públicas que foram invadidas por migrantes e trabalhadores de baixa renda com o fim de construírem ali seus casebres. O Estado nem impediu a construção e expansão das favelas, nem as reconheceu como moradias legítimas, já as tratando desde seu nascimento de forma ambígua. Assim sendo, não seria a UPP de fato uma retomada do território, seria sim uma primeira tomada do território, pois pela primeira 90

vez o Estado se faria de fato ostensivamente presente na comunidade, nem que seja só pela presença permanente da Unidade de Polícia Pacificadora. Pois, como disse uma moradora anônima de uma comunidade não precisada – por questões de segurança - em entrevista à Maria Helena Moreira Alves disse que a escola foi durante muito tempo o único epíteto de presença do Estado nas favelas, e que depois veio a luz e a água, mas assim como a escola, completamente deficientes frente às necessidades dos moradores das comunidades. Ela diz que o Estado não está presente, que ela não sente, não vê o Estado. Que na escola ela vê professores sem nenhuma ajuda superior, agindo autonomamente da melhor maneira possível, mas que na maioria das vezes não é minimamente aceitável, mas completamente compreensível haja visto os tiroteios, as chacinas e a falta de segurança ontológica experienciada por crianças que vivem e estudam em regiões de conflito. Ou seja, mesmo que a escola seja pública e estatal, ela acha que nem ali o Estado se faz presente. Essa é a tese de muitos acadêmicos que acham que o Estado se ausenta conscientemente das favelas, como forma de excluí-las dos circuitos do Capital e, portanto, da cidade. Tanto a moradora anônima, quanto estes acadêmicos concordam nesse ponto de que a favela é excluída, posta de fora de algo. No entanto, muitos outros acadêmicos defendem outra tese: a idéia de que o Estado está presente através de suas mais variadas agências, mesmo que seja somente a polícia. Em alguns casos, a partir da ocupação do Complexo do Alemão e do Complexo da Penha, foram utilizadas as Forças Armadas na ocupação dos territórios de interesse, tanto na fase de incursão, quanto na fase de consolidação do domínio do território. A utilização de militares na segurança pública é permitida por leis e decretos para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando tiverem sido esgotados os instrumentos tradicionalmente destinados à preservação da ordem pública, quando entendido como necessária pela (o) Presidente da República por sua própria iniciativa, ou por pedido feito a ela (e) por parte do Presidente do STF, do Senado, da Câmara ou até mesmo de um Governador de estado13. Essa função de GLO das FFAA é na verdade a faceta constitucional da militarização da segurança pública, quando se dá plenos poderes de polícia às Forças Armadas, como se vê no Art. 3º do Decreto 3897, de 24 de Agosto de 2001: “Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os 13 De acordo com o “Capítulo V: Do Emprego” da LEI COMPLEMENTAR Nº 97, DE 9 DE JUNHO DE 1999. Disponível em:

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termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.” (BRASIL, 2001)

Ainda há a possibilidade de atuação conjunta das Forças Armadas com as polícias estaduais se as últimas tiverem meios disponíveis, porém insuficientes, sendo esta a base jurídica e operacional do acordo feito entre Sérgio Cabral Filho e o presidente Lula em 2010, como dispõe o Art. 4º do mesmo decreto citado acima: Art. 4º Na situação de emprego das Forças Armadas objeto do art. 3o, caso estejam disponíveis meios, conquanto insuficientes, da respectiva Polícia Militar, esta, com a anuência do Governador do Estado, atuará, parcial ou totalmente, sob o controle operacional do comando militar responsável pelas operações, sempre que assim o exijam, ou recomendem, as situações a serem enfrentadas. (BRASIL, 2001)

É baseado nesse arcabouço jurídico que foi celebrado o Acordo para o Emprego da Força de Pacificação na Cidade do Rio de Janeiro14, em 2010, entre a Presidência da República e o Governo do estado do Rio de Janeiro, para dar continuidade ao processo integrado de pacificação do estado do Rio de Janeiro entre a União e o estado, que estabelece o emprego de recursos materiais e de pessoal das FFAA para a manutenção da ordem pública nos Complexos do Alemão e da Penha. Estas operações dar-se-íam num território bem delimitado, estando disposto no acordo, inclusive, o nome de ruas e praças que seriam as fronteiras do espaço de atuação desta Força de Pacificação. É importante deixar claro que ela – a Força de Pacificação - estaria sob comando das Forças Armadas, como manda a lei, sendo, então, o encarregado desta missão o Comando Militar do Leste. No acordo é mencionado também que estas operações dar-se-íam nos preceitos do Estado de Direito, respeitando as liberdades individuais garantidas pelo texto constitucional, dispondo inclusive que “Ninguém poderá ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei”, porém como vemos não é isso o que acontece. Na entrevista de Nilo Batista (2011) concedida ao Jornal Nova Democracia, o advogado expõe o caso de uma senhora na UPP dos Morros dos Prazeres, em Santa Teresa, que foi detida por desacato a autoridade. Caso aparentemente comum em áreas de UPP já que o próprio entrevistador cita outro caso, desta vez no Morro do Alemão, de um trabalhador que ficou 4 dias preso por desacato. A aberração é que, segundo Nilo Batista (2011) “quando, ainda que ele fosse condenado pelo crime de desacato, ele não cumpriria pena privativa de liberdade”. Portanto, vê-se claramente a distância entre retórica e fato, quando se diz manter o Estado de direito na região sob ocupação e na verdade violam-se os direitos destas populações cotidianamente. Ele 14 Acordo disponível em: < https://www.defesa.gov.br/arquivos/File/2010/mes12/acordo.doc>

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ainda vai mais longe, observa que o dispositivo legal do desacato a autoridade está sendo utilizado para acobertar na verdade abusos de autoridade, é a lei sendo usada para perpetuar violações da lei: Eu digo isso para o futuro pesquisador que vai estudar isso quando estes tempos infelizes já tiverem passado, a relação que ele vai encontrar entre os desacatos lavrados em UPPs, com relação ao abuso de autoridade policial, é a mesma que ele encontrará nos autos de resistência com relação aos homicídios. Atrás de cada desacato lavrado em UPP costuma ter um crime de abuso de autoridade praticado e que nunca vai ser apurado, porque quando arquiva-se o desacato, arquiva-se também o abuso de autoridade. (BATISTA, 2011)

Outras seções inusitadas encontradas no acordo são, por exemplo, a proibição de forças policiais entrarem nas áreas ocupadas pelas Forças Armadas sem a autorização do Comando Militar do Leste, sendo até mesmo necessário avisar aos militares sobre operações policiais da Secretaria de Segurança Pública do estado nas regiões contíguas: Art II: §6 É vedada a atuação de policiais militares e policiais civis não integrantes da Força de Pacificação no interior da Área de Pacificação, conforme delimitação constante neste instrumento. Em situações excepcionais, esta atuação poderá ser previamente autorizada pelo Comandante da Força de Pacificação. (…) Art II: §8 A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro informará previamente ao Comando da Força de Pacificação sobre o desenvolvimento de atividades policiais realizadas nas áreas contíguas ao perímetro da Área de Pacificação, que possam redundar em conflito com facções criminosas, para fins de conhecimento e coordenação. (BRASIL, 2009)

Além da necessidade de pedir autorização ao comando da Força de Pacificação no local e ao Comando Militar do Leste para a realização de eventos de qualquer espécie nos limites de atuação da Força de Pacificação. É de facto o exército controlando a vida social e cultural da favela, como nos tempos do regime militar. Nos termos do Acordo (2010) “Art II: §9 A realização de eventos públicos no interior da Área de Pacificação deverá ser previamente comunicada ao Comando da Força de Pacificação, para fins de coordenação dos respectivos projetos”. Para que a polícia e/ou o exército assumam o controle de fato dos territórios ocupados, evitando, assim, o retorno dos traficantes para o morro, eles precisam da confiança e do apoio da população local. E para ganhar o apoio destes, eles organizam eventos como festas, feiras literárias (como a FLUPP, Festa Literária das UPPs), reuniões com os moradores, dando a sensação de empoderamento e participação a eles, jogos e campeonatos de futebol, recreação com crianças, aulas de ginástica e etc. Esse processo de cooptação da comunidade se dá 93

também pela apropriação e utilização das redes sociais pré-existentes no local, antes usadas pelos traficantes, como, por exemplo, pixações de muros. Em toda comunidade com comércio de drogas ilícitas, há pixações nas paredes informando e reforçando o domínio de determinada facção em determinado território. É comum andar pelo Morro do Alemão e encontrar “CV” escrito nos muros, fazendo referência ao Comando Vermelho, facção que ainda atuai na comunidade. Sabendo deste fenômeno, a UPP se utilizou desta mesma técnica e pixou as letras “UPP” em azul, cor do projeto de pacificação e da farda dos policiais pacificadores. Além disso, a UPP ainda promove distribuição de comida e de eletrodomésticos (medidas assistencialistas antes eram promovidas recorrentemente pelos traficantes de drogas). Outro fator simbolicamente importante é instalar ou a base da UPP ou um posto avançado dela na região que era antes ocupada pelo quartel-general do tráfico na comunidade. Como a casa do dono do morro Nem que virou ponto de observação e de reuniões da tropa que ocupa a Rocinha, que, segundo denúncias feitas ao Ministério Público, estaria sendo usada como aparelho de tortura de suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas ou de pessoas que pudessem estar guardando informações privilegiadas do tráfico. (HERINGER, 2013). Todas essas medidas visam de uma forma ou de outra substituir as propriedades, meios e simbologias do tráfico de drogas pela polícia, pois acham que assim a presença policial seria mais aceita, legitimada e portanto consolidada, pois teria havido somente mais uma mudança de dono do morro, nada que os moradores já não estivessem acostumados depois de décadas de conflito entre facções rivais pelo domínio destas áreas. Tamanho empenho em ganhar o apoio e a confiança da população local ao projeto de “pacificação” é fundamental, como já vimos, para que uma política tão anti-democrática e violenta como a das UPPs possa sobreviver e se espalhar. Assim garantindo os lucros do governo e das grandes corporações privadas que financiam o projeto das UPPs, através dos empreendimentos e da exploração econômica das favelas, tudo isto feito em nome dos eventos internacionais que serão sediados no Rio de Janeiro em 2014 (Copa do Mundo da FIFA) e 2016 (Olimpíadas de Verão) e, supostamente, pelo bem da população. É quase que exclusivamente em função dos interesses privados vinculados à Copa do Mundo e às Olimpíadas que essas comunidades são estrategicamente escolhidas para serem pacificadas. A maioria absoluta das UPPs até agora instaladas o foram no entorno de grandes aparelhos que serão utilizados nas competições, como a pacificação das favelas da Grande Tijuca, bairro de classe média e alta onde se localiza o Estádio do Maracanã; o cinturão de segurança no centro da cidade que ocupou as favelas da zona portuária, por onde chegarão muitos cruzeiros internacionais e para onde destinam-se a maior quantidade de investimentos 94

públicos e privados da cidade no Programa Porto Maravilha, equiparando-se somente com os investimentos feitos na Barra da Tijuca, bairro onde a maior parte dos aparelhos das Olimpíadas estarão localizados, a região de Santa Teresa e da Lapa, locais com vida noturna muito intensa, que movimentam a economia da cidade de forma impressionante e onde também se encontra o Aeroporto Santos Dumont; toda a zona sul, de Botafogo a São Conrado, passando por Copacabana, Ipanema e Leblon, a zona hoteleira do Rio, onde estará concentrada a maior parte dos turistas que virão à cidade para os eventos e onde também, não por coincidência, estão concentrados a maior parte dos pontos turísticos da cidade; e por último, mas não menos, importante, esta última leva de comunidades pacificadas está mostrando que o processo tende a se direcionar às vias expressas que interligam zonas isoladas de extrema importância às competições às regiões mais privilegiadas da cidade. Esse é o caso sobretudo do Aeroporto Internacional do Galeão e das vias expressas que ligam a Ilha do Governador, bairro de classe média da zona norte do Rio onde o aeroporto está localizado, ao centro e à zona sul da cidade, além da Barra da Tijuca, com a pacificação dos entornos da Linha Vermelha e da Avenida Brasil ( depois de Manguinhos e Jacarezinho, todo o Complexo da Maré, a maior região de favelas a ser pacificada da cidade) e, posteriormente, a já prometida UPP do Morro do Dendê, no centro da Ilha do Governador, que se deixado sob o domínio dos traficantes, pode pôr em risco vôos do mundo inteiro que chegam diariamente ao Rio de Janeiro. Ainda aproveitando o ensejo de estar falando da região da Ilha do Governador, é importante citar uma outra grande obra de ifraestrutura na região que alterou definitivamente algumas dinâmicas dos bairros do subúrbio carioca e que já dita discursos da mídia e algumas reações no campo da segurança pública por parte do estado. Está sendo construido entre a Barra e o Galeão o BRT Transcarioca que promete fazer o percurso em menos de uma hora, diminuindo assim à metade o tempo tomado no trajeto hoje em dia. Este sistema de ônibus rápidos passará por grande parte do subúrbio carioca, fazendo a primeira ligação rápida de transporte da história desta parte do subúrbio – a Ilha é servida pelas barcas, porém esta parte do subúrbio não tem metrô e é pouca servida de trens – com qualquer outra parte da cidade, neste caso com a Ilha e com a Barra. Aposta-se que essa se tornará a via mais utilizada da cidade, superando até mesmo a Avenida Brasil. É devido a este nível de vitalidade da nascente via de trânsito e à importância que ela terá nos Jogos Olímpicos que começa a indicar mudanças nas estratégias de segurança pública nesta região da cidade. Exemplos fortes desta tendência são, de um lado, Madureira, onde há uma suposta nova guerra do tráfico nos morros da Serrinha e do Cajueiro, onde tiroteios são escutados todas as semanas e onde volta e meia policiais e traficantes morrem em confronto. Esta guerra localizada 95

começou a ser tratada como uma crise, noticiada à exaustão na grande mídia em 2013, enquanto que o conflito resguarda as mesmas características e ocorre ininterruptamente desde 2010. Ou seja, apesar dos confrontos acontecerem desde 2010, há 4 anos, a mídia só noticia há menos de 1 ano. Mesmo tempo que passou a noticiar as guerras entre facções rivais na Praça Seca, em Jacarepaguá. Assim como no caso de Madureira, bairro vizinho da Praça Seca, os níveis de violência começaram a aumentar em meados de 2009, quando bandidos fugidos de favelas onde UPPs estavam sendo instaladas começaram a popular essas áreas mais afastadas no coração da cidade. Há pelo menos 4 anos os moradores de ambas as regiões divulgam em mídias sociais seu desespero conquanto às condições de sobrevivência em seus bairros, e em todos estes anos ganharam somente espaços pontuais na grande mídia, que relatava a crise local como evento isolado, mesma interpretação das autoridades, que se negavam a traçar políticas de segurança sérias para as localidades. É somente com os ventos da inauguração desta importante via de trânsito da cidade, que a mídia começa a reverberar e demandar medidas urgentes na resolução dos imbróglios em questão. E a partir daí o estado começa a responder ao problema, já tendo instaurado uma Companhia Destacada na Praça Seca, uma espécie de UPP menos rebuscada, e também no Morro da Covanca, também em Jacarepaguá, vizinho do Complexo do Lins, onde já há uma UPP de fato instalada. O foco remanescente de conflito nesta região do subúrbio sem resposta que visasse a ocuapação definitiva ou pelo menos duradoura do território pelo Estado ficou restrito à Madureira, onde além de todo o problema já explicitado sobre as gangues rivais lutando pelo controle do mercado de drogas, há o problema do crack, sobretudo no Morro do Cajueiro, onde há inclusive crackolândias como as do Parque União e da Nova Holanda, ambas ao longo da Avenida Brasil, no Complexo da Maré. Hoje já são 37 UPPs instaladas nas zonas sul, norte, centro e oeste da cidade, sendo uma fora da cidade do Rio, na Baixada Fluminense, no município de Caxias, no bairro Centenário, atendendo de uma só vez a 5 comunidades que já contavam com uma Companhia Destacada. A zona oeste foi a que menos recebeu UPPs até agora, e todas as que recebeu estão bem localizadas perto de vias expressas importantes como o Jardim Batan na Av. Brasil e a Cidade de Deus, na saída da Linha Amarela entre Jacarepaguá e Barra (fim do trajeto do Aeroporto do Galeão até a Barra da Tijuca). Citei a zona oeste de forma separada para evidenciar que o papel principal das UPPs não é combater a criminalidade na verdade, e sim manter o domínio territorial somente nas favelas de maior interesse. Interesse este que não há na zona oeste, pois as favelas da região são predominantemente tomadas por milícias formadas por policiais e bombeiros que expulsaram o tráfico e tomaram o morro para si, 96

explorando a localidade economicamente e reprimindo a comunidade à revelia da lei, segundo seus próprios interesses, da mesma forma que os traficantes faziam, só que com tênue anuência por parte do estado. Um bom exemplo disso é que até hoje só duas das comunidades “pacificadas” eram controladas por milícias. Estas favelas eram o Jardim Batan que, como já dito, fica na beira da Av. Brasil e a favela da Praia de Ramos, que se localiza entre a Linha Vermelha e a Avenida Brasil, a menos de 1 km de distância sobre a Baía de Guanabara do Aeroporto do Galeão, o que, portanto, poderia em tese pôr em risco a segurança dos vôos no maior aeroporto do estado. Portanto, o alvo dessas pacificações não são as milícias, elas têm como objetivo exclusivo o de assegurar o território próximo à principal via expressa que liga as zonas norte e oeste ao centro da cidade. É importante frisar que a falta de políticas públicas destinadas ao combate das milícias não se dá por desconhecimento do tema, já que o perigo que as milícias representam para a segurança pública da cidade do Rio de Janeiro foi exposto no relatório da CPI das milícias, presidida pelo Deputado Estadual Marcelo Freixo, PSOL-RJ, em 2008, na ALERJ. Nem muito menos porque as milícias são um problema menor do que o tráfico. Pelo contrário, as milícias já dominam quase metade das favelas cariocas, mais de 400 comunidades. Abaixo encontra-se um gráfico de pizza mostrando a proporção das favelas do Rio de Janeiro dominadas respectivamente pelo tráfico de drogas, pela milícia e pelas UPPs: Figura 5: Proporção de favelas dominadas por tráfico, milícias e UPPs.

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Apesar do número de favelas altíssimo de favelas dominadas por milícias, que muitas das vezes são mais opressoras para os moradores do que o tráfico de drogas, os moradores não suportam mais ficar sob o jugo desses bandos armados, como demonstra a votação histórica de Marcelo Freixo, presidente da CPI das Milícias da ALERJ, em áreas de milícia nas eleições legislativas do ano de 2014, como em Praça Seca e Campinho, onde Freixo foi o campeão de votos com 2813, em Gardênia Azul e em Rio das Pedras, tendo sido, nestes lugares, o segundo candidato mais votado com 5088 votos e em Jacarepaguá, mais especificamente na Taquara, no Tanque e em Curicica foi o terceiro mais votado (FERREIRA & ARAÚJO, 2014). Isso mostra o desejo dos locais de que haja mudança, com o fim do domínio de grupos paramilitares milicianos. Porém, apesar dessa urgência representada pelas milícias, somente de 3% das UPPs instaladas o foram em áreas de milícia. E o maior inimigo até agora, não no discurso oficial - já que a Secretaria de Segurança adotou a política de não reconhecer as facções, não nomeá-las na mídia para não dar reconhecimento oficial a elas, uma atitude infértil e sem resultados práticos, já que a existência concreta dessas facções é um evento concreto, com repercussões reais e que modulam estratégias e percursos de vida -, mas na prática é o Comando Vermelho, maior e mais poderosa facção mais poderosa do estado. As UPPs em áreas de Comando Vermelho representam quase ¾ do total de áreas “pacificadas”. Terceiro Comando Puro, o TCP, segunda maior facção do estado, não teve ainda nenhum de seus domínios pacificados, apesar de já ter tido territórios ocupados pelas “forças de pacificação”, principalmente Exército e Marinha com poder de polícia que ocupam temporariamente grandes áreas para as quais ainda não há policiais formados o suficiente para a inauguração de uma UPP, como a Vila do João e o Vila do Pinheiro, Baixa do Sapateiro, Conjuto Esperança, Salsa e Merengue e o Morro Timbau, todas comunidades contíguas localizadas no Complexo da Maré, ocupado desde abril de 2014. Abaixo, segue um gráfico de pizza que mostra a proporção de UPPs instaladas por grupos armados:

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Figura 6: Proporção de UPP instalada segundo grupos armados.

Fonte: ZALUAR, Alba 2012; CPI DAS MILÍCIAS, 2008.

O mapa das UPPs do Rio de Janeiro até outubro de 2014 é representado abaixo 15. Note que há somente 36 UPPs na figura abaixo, mas a confusão se deve a nomenclatura de algumas UPPs que contam por vezes Barreira do Vasco como sendo parte do Caju ou do Tuiuti, mas sempre como duas UPPs separadas, independente de quem fique responsável pela Barreira do Vasco, porém, na imagem abaixo, Tuiuti ao invés de ter uma marcação geográfica própria, divide a que tem com a Mangueira. Daí só ter 36 UPPs no mapa abaixo, quando na verdade são 37. Para o que ainda estão em dúvida com relação ao mapa, vale lembrar que o Complexo da Maré ainda não tem UPP, por isso não está designado no mapa. Observe:

15 O mapa foi feito pelo autor com auxílio da plataforma google. 99

Figura 7: Mapa das 37 UPPs na Cidade do Rio de Janeiro, 2014.

Fonte: Sistema de mapeamento Google e informações do site das UPPs.

Como já foi dito aqui, há lobbies junto ao governo que apóiam, financiam e impulsionam a política de pacificação. O próprio Cônsul americano no Rio de Janeiro David Hearne, em um relatório escrito em 2009 e vazado pelo Wikileaks, percebe e analisa quão grandes são os ganhos de empresas privadas com o processo de pacificação, deixando claro o lobby do governo com o setor empresarial. Ele afirma que, segundo a estimativa de alguns analistas, a incorporação das favelas cariocas à “economia formal”16 da cidade, acarretaria um crescimento da mesma na ordem dos 50 bilhões de reais. É uma fonte de renda muito grande para ser deixada de lado. Um exemplo citado por Hearne (2009) é o da empresa concessionária de energia elétrica do Rio de Janeiro, a Light que, se regularizasse seu serviço de fornecimento de energia por toda a cidade, incluindo nas favelas, terminando com os chamados gatos e com as ligações ilegais de energia, ela deixaria de perder 200 milhões de dólares por ano. Além disso, muitas empresas estão se instalando nas comunidades pacificadas, 16 Mais adiante este termo será retomado e problematizado, pois essa dualidade entre economia formal e informal não consegue dar conta da realidade e da dinâmica econômica da cidade capitalista contemporânea.

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redinamizando a economia e as estratégias de vida locais. Lojas do varejo como a Casas Bahia e a Ricardo Eletro, operadoras de internet e de TV a cabo, além de financeiras e bancos de empréstimos consignados, como o BMG e o Banco Cacique, invadem quase que junto com a polícia as comunidades pacificadas, para começar então a explorar o mercado de consumidores imperfeitos da classe média em ascensão das favelas: a famosa Classe C, que consome mesmo que se endivide, não poupa e gasta tudo ou mais do que tem, é a classe responsável pela estabilidade, pelo dinamismo e pelo crescimento da economia brasileira nestes tempos de crise, mas também pelo crescente endividamento brasileiro. Só as favelas cariocas correspondem a uma movimentação de 13 bilhões de reais por ano, um PIB maior que o de muitas capitais brasileiras, como Natal, Florianópolis e Cuiabá (FLOR & MARINHO, 2013). Além das grandes redes de lojas do varejo, há também o interesse de grandes empresas multinacionais pelos terrenos baratos, seguros ou pelo menos com entendidos como mais seguros do que anteriormente e bem localizados das favelas. Um exemplo dessa tendência contemporânea pode ser observado com a instalação da Procter & Gamble (P&G), na Cidade de Deus. Outro caso ainda mais emblemático desse processo é o do lobby feito por empresas com o governo do estado visando a instalação de UPPs em áreas que elas já sondaram como sendo as melhores para a instalação de suas fábricas, com é o caso publicado no jornal O Globo em 14 de dezembro de 2010: “Há cerca de um mês, representantes da Philips estiveram com integrantes da secretaria de Segurança para fazer uma consulta. Segundo uma fonte do governo do estado, eles queriam saber se seria instalada uma UPP no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. A empresa teria interesse de montar uma fábrica na região. As autoridades estaduais confirmaram a pacificação no local até 2014. Ao ser perguntada sobre a reunião, a assessoria de imprensa da Philips confirmou que um representante da empresa teve um encontro com o governador Sérgio Cabral e representantes da Secretaria de Segurança, mas o motivo seria o fato de a multinacional manter contato estreito com o governo, classificado como "um cliente muito importante e estratégico para a companhia". (ARAÚJO, 2010)

Fica claro por esse trecho d'O Globo o lobby que a empresa Phillips fez com o governo do estado para levar a implantação de uma UPP no Morro do Dendê na Ilha do Governador que seria bom para o estado para pacificar toda a região no entorno do Aeroporto Internacional do Galeão e para a empresa pois estaria perto de todas as grandes vias de escoamento de produção da capital fluminense (Via Dutra, Washington Luis, Linha Vermelha, Linha Amarela, Av. Brasil e Ponte Rio-Niterói), do aeroporto e do porto da cidade através dos quais também poderia escoar sua produção; devido a incentivos fiscais dados pelo governo 101

como redução de ISS e de IPTU; e por causa de mão-de-obra barata, abundante e disposta a trabalhar nas piores condições possíveis para assegurar condições mínimas de sobrevivência para suas famílias. São esses os motivos que levaram também a P&G a se instalar na Cidade de Deus, e é este o motivo que levará muitas outras empresas a fazerem o mesmo pelas favelas ocupadas do Rio de Janeiro. Esse processo de instalação de empresas e indústrias nas favelas é uma reversão de um processo histórico que já dura 30 anos de esvaziamento econômico das regiões de favela, devido à violência e ao medo que os empresários têm de continuarem “reféns do tráfico” (como o apregoado pela mídia mainstream décadas afora). É uma reversão que tende a mudar a dinâmica econômica de grandes regiões da cidade que, como o Subúrbio da Leopoldina, onde se localizam os Complexos do Alemão e da Penha, tem uma chance de, a partir dessa ocupação militar, aportar renda, além de investimentos de infraestrutura, para a comunidade. A P&G na Cidade de Deus, por exemplo, gerou pelo menos 500 empregos diretos desde sua instalação, fora os empregos indiretos. Como nota o professor da UNIRIO Rodrigo Castelo, “with the accommodation of the UPPs in the favelas, capital can now settle in those regions with some level of legal and patrimonial security, which has not always been the case.” (FLOR & MARINHO, 2013). Em outubro de 2014 houve um ensaio de instalação de uma UPP no Morro do Dendê que acabou completamente frustrada com a Polícia Militar se retirando na calada da noite da comunidade, sem mais explicações, depois de criar grandes expectativas com a possível pacificação do local. Muito divulgada na mídia, a operação de ocupação do Dendê pelo BOPE, que se seguiu à revelação de um esquema de corrupção que libertou traficantes em troca de dinheiro e envolveu a venda de fuzis aos mesmos traficantes com os quais os fuzis foram apreendidos, acabou do dia para a noite, sem declaração oficial à imprensa da Secretaria de Segurança declarando quais seriam as políticas adotadas com relação ao Morro do Dendê, como haviam prometido. Tanto a polícia, quanto a imprensa especulavam quando a UPP Dendê seria instalada e não se. Mas também do dia para a noite, a imprensa, parece ter esquecido o caso e nem mencionou mais o morro nos seus telejornais no início da semana que se seguiu. Essa operação resultou na prisão do comandante do XX Batalhão da Ilha do Governador e de mais 16 policiais militares lotados no mesmo batalhão. O que ainda não se descobriu é o acordo mais duradouro e eficiente entre traficantes e policiais da história do Rio. Há mais de 10 anos Fernandinho Lopes e Gil, ou o Bonde LG, filiados ao TCP ou Terceiro Comando Puro, dominam o Morro do Dendê e outras comunidades menores da Ilha do Governador, como a Zaquias Jorge, Favela do 200, Pixunas, Morro do Querosene, Morro da Prefeitura, Praia da Rosa, Maruim/Parque Royal e mais recentemente o Morro Nossa 102

Senhora das Graças, mais conhecido como Morro do Boogie Oogie, contando mais do que com a complacência do Batalhão local, mas com a parceria deste. Parceiros nos negócios e na manutenção das baixas taxas de criminalidade da Ilha, tiveram seus laços abalados com esta operação. Sócios porque, segundo relato de moradores e de alguns policiais, é amplamente conhecida a participação da polícia nos lucros do tráfico, através dos arregos semanais feitos a luz do dia, em vias públicas movimentadas do morro, em viaturas, sem medo de ser visto ali cometendo este ilícito. Há ainda relatos que mostram a que ponto chegou a cooperação entre batalhão e tráfico do Dendê, com a venda de um morro dominado pela milícia do Batalhão para Fernandinho e Gil. O Morro do Boogie Oogie, a dois quarteirões do Batalhão, um dos primeiros a cair sob o julgo da milícia no Rio de Janeiro, ainda na década de 1990, contava com todos os serviços típicos de áreas dominadas por milícias em sistema de monopólio pelo batalhão, suprimento de gás, distribuição de sinal roubado de TV a cabo, ou o famoso “GatoNet”, além do pulso firme das máfias com usuários de drogas, criminosos, desafiadores de sua autoridade, inadimplentes e muitos inocentes. Porém, após investidas do Comando Vermelho querendo tomar o local, provocando algumas mortes e espalhando o terror em algumas localidades da Ilha com os “bondes”, o batalhão chegou a um acordo financeiro com o Fernandinho e Gil, para os quais passou o controle do Morro, permitindo inclusive a instalação de bocas de fumo e tráfico fortemente armado no local. Fernandinho permite que seus gerentes gozem de uma ligeira autonomia em seus pequenos territórios, desde que respeitem à autoridade central do Morro do Dendê, representada na figura dele. Com relação à paz pré-citada, o acordo regula a vida social em todo o bairro da Ilha do Governador e não somente no Morro do Dendê, estabelecido entre os donos do morro do Dendê Fernandinho Lopes e Gil com o comando do 17º Batalhão de Polícia Militar da Ilha, como o denunciado diversas vezes pelo Ministério Público e pela mídia corporativa - tendo sido a última a reportagem da revista Veja, edição do dia 04/12/2013 -, que proíbe assaltos e outros crimes, punidos com a pena de morte, sendo inclusive plenamente possível e até mesmo comum escutar pessoas que foram reclamar com Fernandinho sobre roubo de automóveis, assaltos ou outros crimes, ao invés de ir à delegacia de polícia civil da área. O tráfico é usado como árbitro diversas vezes até mesmo para desavença entre vizinhos ou violência doméstica. Através de uma taxa paga ao tráfico, a quadrilha de Fernandinho assegura estabelecimentos comerciais dos mais variados setores, desde joalherias até quiosques das praias, incluindo-se aqui o shopping Ilha Plaza, único do bairro. É através desses acordos que fica estabelecido que usuários de drogas não irão ser revistados e conduzidos à delegacia ou mesmo agredidos por policiais militares em revistas abusivas nas 103

saídas das bocas de fumo ou nos locais de consumo das drogas - que são amplamente conhecidos no bairro, como o Aterro do Cocotá, o Campinho, o Bowl, o Píer e etc. -, o que permite que haja uma variedade ímpar de pontos de venda de drogas, presentes em quase todos os bairros da Ilha, muitos deles em locais bem acessíveis, assegurados com níveis diferentes de poder de fogo, alguns com muitos traficantes bem armados e outros com adolescentes comercializando os itens ilícitos, muitas vezes desarmados, sendo estes fatores dispostos obviamente segundo o risco calculado para cada localidade. Permite também que haja um sistema de entrega de drogas muito bem estruturado através das entregas feitas pelos mototaxis, com diversos pontos espalhados nas bordas e no interior das favelas, característica também presente na maior parte das favelas cariocas. É também controlado por Fernandinho e Gil o transporte alternativo de kombis, cabritinhos, mototaxis e vans no bairro. Tais modais são bastante utilizados internamente no bairro devido ao precário serviço de ônibus prestado pelas únicas duas empresas com permissão da prefeitura para rodar no bairro. A fiscalização desses transportes não é enforçada no bairro como em outros porque há acordos econômicos espúrios entre o tráfico, a PM e a Guarda Municipal, que recebem suborno parte do dinheiro pago pelos motoristas ao tráfico local. É esse acordo que garante o transporte público no bairro sem que haja colapso, fato reconhecido pelo poder público que recentemente mudou de opinião quanto à extinção destas modalidades de transporte no bairro, agora defendendo a regularização através da concessão pública do serviço diretamente aos motoristas, para evitar que terceiros se envolvam no processo. O que não fica claro é como a prefeitura visa impedir que o “imposto do tráfico” continue a ser cobrado dos motoristas. Essa situação suis generis do tráfico do Dendê, presente recorrentemente em milícias, confere um caráter especialmente perigoso ao trânsito local, pois, sem medo da fiscalização dos órgãos públicos e assegurados pelo tráfico, esses motoristas agem de maneira imprudente no trânsito, frequentemente resultando em acidentes e tornando bastante perigosa a utilização do anel cicloviário da Ilha, formado por ciclofaixas não segregadas do trânsito, que melhoraria muito a situação do transporte de pequenas distâncias no bairro se oferecesse segurança ao ciclista. A única exceção do bairro a esses acordos estabelecidos entre Dendê e 17º BPM é o Morro do Barbante, no bairro do Galeão, a poucos metros do Aeroporto Internacional Tom Jobim, dominado pelo Comando Vermelho, mesma facção das favelas da Maré mais próximas à Ilha, Parque União e Nova Holanda que, de certa maneira, exercem influência sobre esta parte da Ilha. Os poucos assaltos registrados no bairro, inclusive são geralmente de responsabilidade dessas outras quadrilhas que agem menos pelas propriedades subtraídas dos 104

insulanos do que para pôr em xeque a legitimidade que os moradores conferem ao domínio de Fernandinho, questionando a eficácia de seu pacto. Outra investida visando a desestabilização deste acordo pelo Comando Vermelho eram as seguidas tentativas de invasão do Morro do Boogie Oogie, mencionadas anteriormente. Com a troca de comando no batalhão após o estouro dessas denúncias de corrupção na Operação Ave de Rapina e com a prisão do Major Dayzer Corpas, o novo comandante do 17º BPM o Tenente-Coronel Wagner Guerci Nunes prometeu um combate duro ao tráfico de drogas e dar fim à relação promíscua do batalhão com o tráfico, o que porém ainda não resultou em medidas de vulto, estas restringidas à ocupação relâmpago do Dendê, que durou por poucos dias - menos de uma semana -, à prisão de 15 suspeitos de tráfico, à apreensão de 500kg de maconha, um fuzil AK-47, nove pistolas, um revólver, uma granada, 13 carregadores, munição, nove celulares e 13 radiotransmissores. Números irrisórios perto do que movimenta a quadrilha de Fernandinho e Gil no Morro do Dendê e comunidades adjacentes. No mais, além dassa operação espetacularizada para marcar a substituição do comando do batalhão, para mostrar que algo estava sendo feito pela Secretaria de Segurança no combate à corrupção policial, por enquanto nada mais foi feito. Até agora nenhuma mudança profunda neste quadro de coisas ocorreu. Em suma, numa favela com tamanha capilaridade dentro da instância de segurança pública e com um acordo tão cristalizado, eficiente e duradouro, é normal que a população fique assustada com mudanças. Foi por exemplo, comum escutar que se uma UPP fosse instalada no Morro do Dendê os assaltos iam subir muito na Ilha, pois a proibição com tortura e pena de morte de Fernandinho não existiria mais. É por isso que a maior parte absoluta dos moradores da Ilha do Governador e do Dendê ouvidos afirmaram preferir a continuação do dominio do tráfico e dos termos do acordo, pois identificam isso como paz. Como ilustra a pichação encontrada no Morro do Dendê no dia seguinte a desocupação do morro pela Polícia Militar:

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Figura 8: Pichação no Morro do Dendê após saída da Polícia Militar, outubro de 2014.

Fonte: Arquivo do acervo pessoal do autor.

Um outro dado que deixa claro que a UPP não é um projeto para todos, é que o Rio de Janeiro possui quase 1000 favelas, e somente 37 UPPs e, segundo o Secretário de Segurança Mariano Beltrame, “não precisamos pacificar 100 favelas”, indicando que muito menos que 10% das favelas do Rio receberão UPPs. Há, segundo a Secretaria de Segurança pelo menos 450 mil pessoas libertadas pelas UPPs, termo utilizado pelo governo do estado, pois as pessoas que vivem nos entornos das comunidades ocupadas também seriam beneficiadas pelo processo, assim como as residentes nas favelas em si. Contudo, a população favelada carioca chega a quase ¼ da população da cidade, correspondendo a 22% no censo do IBGE de 2010, algo em torno de 1,4 milhões de pessoas dos 6,4 milhões de habitantes da cidade, a maior população favelada do Brasil (GALDO, 2011). Porém só algo entorno de 7% da população da cidade encontra-se em zona de UPP, algo em torno de 32% da população favelada vive hoje nas UPPs, um número baixo demais se levarmos em consideração a propaganda do governo de que a cidade do Rio como um todo é, hoje em dia, um local seguro, sob o controle do Estado na figura das UPPs. É quando se estudam os números que se olha o panorama real das favelas pacificadas do Rio e não pelo discurso oficial governo do estado. Como se disse: a UPP não é para todos, só para aqueles que o Estado deseja controlar de forma contínua, sofistacada e soberana - em sentido schmittiano -, visando garantir os grandes lucros que serão auferidos com a realização da Copa e das Olimpíadas.Para os outros espaços não tão lucrativos da cidade ocupados por favelas, a política de segurança pública que resta continua sendo o confronto nu e cru, condenado por especialistas em segurança pública, ativistas de direitos humanos e até mesmo pelo governo federal nas administrações petistas, mas ainda usado como política padrão de segurança pública do governo Sérgio Cabral/Pezão. 106

Dentro das áreas de UPP, conseqüentemente as áreas de maior valor estratégico para o estado dentre todas as favelas da cidade, há um processo que vinha sendo diminuído desde o fim da ditadura: as remoções. Com o fim da ditadura, as políticas de remoções de moradores de áreas pobres foram substituídas pelo intuito de modernizá-las e urbanizá-las, tornando-as mais habitáveis e com melhores condições de vida para a população, porém todas as tentativas não conseguiram se consolidar como políticas públicas bem-sucedidas, como é o caso do Favela-bairro. Desde o início do governo Sérgio Cabral e Eduardo Paes, porém, esse status quo veio mudando e hoje tornaram-se rotina as remoções, forçadas as vezes, de moradores de suas residências, sempre em nome do progresso e da realização de obras necessárias ou para a infraestrutura da comunidade ou para a Copa ou as Olimpíadas. Algumas remoções foram feitas sob a justificativa de que estavam em área de risco, ou de desmoronamento, ou de deslizamento de terra, ou por quaisquer outras causas naturais (Borel, Salgueiro, Fallet...) e outras porque estavam no local que o governo queria utilizar para obras (caso da Vila Autódromo, que está na iminência de ser removida justamente porque fica ao lado do antigo Autódromo de Jacarepaguá, onde será construído o parque olímpico, com o maior número de aparelhos a serem utilizados durante das Olimpíadas Rio 2016). No caso das demolições de casas por riscos à vida dos moradores, é até razoável que se remova as pessoas dali e as coloquem em programas de habitação do governo (como o Minha Casa, Minha Vida e o Aluguel Social) para que consigam condições mínimas de habitação. Já nos casos de desapropriação para obras públicas ou privadas, o processo é feito de forma totalmente vertical e autoritária, sem nem haver audiências públicas para escutar a opinião e as demandas dos moradores conquanto ao projeto. Este foi o caso da construção do teleférico do Morro da Providência e do Morro do Alemão, da demolição da única quadra do Vidigal para a construção do prédio sede da UPP e o da Vila União Curicica. Alguns exemplos rápidos e bem emblemáticos no qual sempre: Dissemina-se a crença em tolerância zero, em programas de policiamento ostensivo, programado e inteligente no meio urbano, e deixam-se intocáveis as práticas cruéis de desalojamento de populações (…) relacionado com o exercício previsível do tribunal de justiça favorável aos empresários. (PASSETTI, 2011, p. 52)

No caso da construção dos teleféricos da Providência e do Alemão os casos foram semelhantes, não se ouviu a população quanto à quantidade e a localização das estações, do preço da passagem que poderiam pagar, do horário de funcionamento, da acessibilidade, da administração, nada, não se ouviu em nada os moradores. As conseqüências foram dois 107

projetos autoritários que serviam mais aos interesses das pessoas de fora da comunidade do que os dos moradores delas. O da Providência, que ainda em 2014 não entrou em funcionamento - apesar de estar pronto desde 2012 - resultou em remoções muito drásticas principalmente no cume da comunidade, a área mais pobre e com menos infraestrutura da favela, removendo-se então de facto os setores mais pobres da favela, para a construção de um projeto completamente anti-democrático que não serve aos moradores. O nível de antidemocracia foi tal que os moradores além de não saberem onde ficariam as estações, não sabiam se suas casas teriam que ser demolidas para a construção destas, só souberam quando, chegando no fim da tarde de suas tarefas diárias, depararam-se com algo bem parecido com o PR, “Príncipe Regente”, comumente conhecido como “Ponha-se na Rua”, de 1808, época da transferência da Corte de D. Maria I para o Brasil, fugindo de Napoleão. Depararam-se com marcações em spray azul ou verde com um número, marcando a ordem de demolição das casas que ficavam no caminho do progresso da comunidade, e com a sigla “SMH” Secretaria Municipal de Habitação, não se sabia, porém, o dia da demolição e nem qual seria o prazo que teriam para a mudança, como – e de quanto - seria feito o ressarcimento pela desapropriação da casa e pela remoção dos moradores, um completo desconhecimento dos moradores quanto a seu próprio destino devido às práticas autoritárias as quais o Estado sempre recorreu para lidar com as favelas. Segundo reportagem do jornal O Dia: “Na Providência, muitas famílias foram pegas de surpresa porque sequer foram comunicadas da decisão da prefeitura. “Estava trabalhando. Quando cheguei em casa, levei um susto. O muro da minha estava marcado”, criticou o motociclista Wagner Teixeira, 36 anos, que apagou a inscrição. “É muito humilhante”, diz. Como ele, muitos moradores se negam a deixar suas casas. “Com o valor que ofereceram (R$ 50 mil) não consigo comprar outra casa do mesmo tamanho da minha”, destaca.” (O DIA, 2012)

Os moradores brincam que a sigla SMH significa na verdade “Saia do Morro Hoje”. Veja a semelhança entre as duas práticas:

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Figura 9: Casa pichada pela Secretaria Municipal de Habitação para remoção no Morro da Providência, 2013.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional.

Segundo o Secretário de Habitação da época, Jorge Bittar, à reportagem d'O Dia e publicada na edição de 21/05/2012, 832 casas seriam removidas no Morro da Providência para dar lugar às obras de revitalização do porto e do Programa Morar Carioca. No entanto, mesmo neste programa que foi feito para construir moradias populares também foi criticado por falta de participação social, tendo sido alvo de diversos protestos na Providência: Figura 10: Protesto contra o Programa Morar Carioca, Central do Brasil, 2013.

Fonte: Fotografia de Roberto Marinho, Fórum Comunitário do Porto.

No Alemão, as remoções deram-se de forma mais suave, com avisos prévios aos moradores e apresentações do projeto à comunidade sem, porém, a possibilidade de 109

participação desta na construção do projeto. Uma mera apresentação do que já estava certo de acontecer com eles, algo muito estranho à teoria democrática de participação e de representatividade direta. Mais uma vez o projeto serviu mais aos forasteiros e ao capital do que aos moradores: “the UPPs have two legs: the militarization and the commodification17 of the favelas. Nowadays, the cable car in Morro do Alemão receives more tourists than the Pão de Açúcar cable car, traditionally a touristic highlight of Rio. This past November the Alemão cars received more than double the visitors of Pão de Açúcar.” (FLOR & MARINHO, 2013).

Mais uma vez moradores moradores tentaram resistir de várias maneiras, dentre elas através de protestos e demandas por diálogo com o poder público no desenvolvimento e implantação do projeto do teleférico. O que foi solenemente ignorado pelo governo Sérgio Cabral, PMDB-RJ. Uma faixa presente na quadra da Providência evidencia toda a revolta dos moradores de lá e do Alemão com o autoritarismo presente nos projetos dos teleféricos: Figura 11: Faixa de protesto contra o teleférico, quadra da Providência, 2011.

Fonte: Acervo pessoal do autor.

No caso do Vidigal, o que houve foi uma suposta doação da Prefeitura ao Governo do estado para que no terreno onde hoje fica a quadra de esportes da comunidade, única área de lazer da favela inteira, fosse construída a sede da UPP de São Conrado, Unidade Avançada do Vidigal. Só que além deste local ser a única opção de lazer para a comunidade, os moradores além de não ouvidos, não foram nem mesmo comunicados da demolição. Só ficaram sabendo da ação quando viram tratores subindo a comunidade com este fim: 17 Este neologismo foi utilizado para indicar que a favela hoje virou um negócio, um bom negócio, virou quase que uma commodity carioca, figurando entre as mercadorias mais “comercializadas” e mais lucrativas da cidade.

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“Fomos pegos de surpresa e estamos indignados. Vão construir uma UPP e não fomos consultados. É a única área de lazer que os moradores têm. Poderíamos ter conversado sobre o assunto e entrado num acordo. A mudança tem que ser boa para todos”, disse ele, que divulgou na internet a demolição pela rede social Facebook. A Secretaria de Segurança explicou que a área foi doada pela prefeitura para a instalação da UPP e que a unidade será construída em outra data, que ainda será marcada. Inconformados, moradores planejam impedir de novo. Na confusão, a jornalista e moradora do Vidigal Mariana Albanese disse que levou um tapa no rosto de um dos PMs porque tentava filmar a demolição. Os policiais afirmam que ela ofendeu e agrediu um policial. “Ele jogou meu celular no chão, que ficou destruído”, disse a jornalista, que foi levada para a 15ª DP (Gávea). (MAGALHÃES, 2012)

No Vidigal, portanto, a não participação dos moradores não foi o único traço do autoritarismo com o qual o governo e a prefeitura lidam com a comunidade. A não comunicação aos moradores do que seria feito, junto com a repressão à imprensa quando esta estava registrando a resistência pacífica da comunidade ao desmando da PM, foram os traços mais berrantes e assustadores deste autoritarismo velado, necessário, na retórica governamental ao menos, para o bem da comunidade. O que não corresponde à realidade como acabamos de ver. Quanto à Vila União Curicica, favela que não possui UPP, mas que também não possui tráfico e que tem condições médias de urbanização, com esgoto a céu aberto, falta de luz e água recorrentes, e que fica próxima à região do Parque Olímpico (onde ficava o Autódromo de Jacarepaguá) e que por isso tem importância estratégica no planejamento da prefeitura. Primeiramente a comunidade, com Associação de Moradores forte e bem articulada, que prefere o diálogo e a negociação à resistência, conseguiu ser incluída no Programa Morar Carioca da prefeitura que urbanizaria a comunidade e melhoraria portanto a rede de esgoto e água, o calçamento das ruas e a melhoria da infraestrutura das casas, algo muito desejado pela comunidade e muito comemorado quando conseguido. Este programa tem como objetivo, segundo o prefeito Eduardo Paes, de acabar com todas as favelas do Rio até 2020. Contudo, passado algum tempo, modificações foram feitas no projeto das vias expressas de ônibus que estão sendo construídas para ligar a Barra da Tijuca, bairro ainda bastante isolado do restante do Rio por falta de vias de acesso (só tem 3 e todas vias rodoviárias, não tendo outras opções de transporte), aos lugares importantes para as Olimpíadas e a Copa (a Transcarioca, Transolímpica e a Transbrasil). O projeto da Transolímpica agora passaria sobre a comunidade de Vila União Curicica, o sonho de melhora de vida e urbanização do local que moram agora foi substituído pelo pesadelo do medo da remoção dos moradores e, novamente, pelo grande desrespeito e autoritarismo da prefeitura em não informar o que planejam fazer 111

com os moradores que são removidos com as obras. Este é o caso da Vila União Curicica, analisado magistralmente pela notícia publicada no portal RioOnWatch, escrita por Rexy Josh Dorado (2012): O caso da Vila União da Curicica, uma grande parte dela está nos limites da Estrada de Curicica e Estrada Calmete, está previsto que as ruas serão alargadas três vezes mais a fim de acomodar 6 pistas para o tráfego. Como o outro lado da Estrada da Curicica tem um hospital municipal, tudo indica que infelizmente a expansão acontecerá para o lado da comunidade, engolindo fileiras de casas para dar lugar às linhas de ônibus. “Tudo indica que eles virão e tirarão as pessoas da comunidade,”disse Vania de Jesus Julio Neri, atual presidente da Associação de Moradores da Vila União. “Mas não sabemos para onde nós iremos”. Não sabemos se será para a Estrada de Curicica, ou numa parte totalmente diferente do Rio. Nós não sabemos de nada.” Ao longo do ano passado, Vânia vem tentando contatar oficiais do governo, solicitando ao prefeito Eduardo Paes ou a um representante para fornecer detalhes concretos para os residentes da Vila União a cerca das remoções e realocações. Mas até agora, todas as tentativas de diálogo caíram no vácuo. “O que queremos”, disse Vânia “é que a prefeitura venha, sente e converse conosco sobre o que deve acontecer com a nossa comunidade, Só queremos saber. Mas isso ainda não aconteceu.” “Uma comunidade é mais do que o espaço que ela ocupa”, disse Regina Sônia Gomes Baptista, conhecida como “Sônia”, antiga presidente de Vila União. “São as relações que as pessoas formaram, conectadas por aquele ambiente. A segurança e alegria que tudo isso traz. Ninguém quer sair.” Este episódio de remoções e realocações orquestradas pela Prefeitura vem sendo ignorada historicamente. Embora a “opção” (frequentemente forçada) de realocações possa garantir casa para os desapropriados, as acomodações vem desprovidas das necessidades humanas de cultura e comunidade com as quais muitas favelas são repletas. Quando uma parcela da comunidade é removida quebra-se e deslocam-se as relações existentes com a população remanescente. Décadas de vivência, construção, e conhecimento do lugar e das pessoas são subitamente fragmentados. “Tudo o que pedimos é que eles tenham um pouco de cuidado conosco,” diz Vânia. “Ao menos”, ela continua, “queremos ficar em Jacarepaguá.” Além de manterem-se próximos de seus amigos e familiares, os moradores da Vila União desejam estar próximos de seus trabalhos e manterem seus empregos. Remoções anteriores em outras comunidades instalaram as pessoas em bairros distantes de Santa Cruz e Cosmos, longe de Jacarepaguá e ainda mais longe do Centro e da Zona Sul pra onde alguns moradores se deslocam diariamente. O website do projeto da Rio TransOlímpica é cheio de sentimentos de satisfação, sorrisos contentes, e promessas de “inclusão social”. Mas o legado que esses projetos olímpicos já deixaram nesse estágio inicial causaram o oposto: medo, frustração, e o deslocamento das pessoas que estão à margem das decisões. (DORADO, 2012)

É esse o caso enfrentado pela Vila União Curicica, mas também é o caso de muitas outras comunidades do Rio que, jogadas na ambiguidade, vivem de incertezas e do desrespeito dos oficiais da prefeitura. As UPPs apesar de precisarem do apoio maciço da população na esfera policial, não precisam da mesma participação popular nos projetos de infraestrutura da comunidade, por isso o tamanho déficit democrático quando se fala destas obras nas comunidades ocupadas e nas não ocupadas, mas envolvidas no jogo de interesse do 112

grande capital envolvido com os empreendimentos relacionados à Copa e às Olimpíadas. Como se vê, em todos os casos citados acima há um denominador comum: o baixo empoderamento da população favelada e o déficit democrático na formulação e implantação dos projetos, além do desrespeito por parte dos governos municipal e estadual em nem mesmo comunicar aos moradores, na maioria dos casos, o que seria feito na comunidade “pelo bem deles”, se seriam removidos, para onde, em quais condições e quando. Nenhuma informação foi fornecida aos moradores, jogando-os mais uma vez numa zona de indeterminação, onde eles são tratados de fato como cidadãos de segunda classe, que não merecem as benesses da vida democrática, justamente por serem vistos como subcidadãos. No projeto de cidade empresarial a urbe é normatizada a partir da lógica mercantil e anti-democrática, onde a única participação aceita e esperada da sociedade civil se restringe à participação nas privatizações. O governo é despolitizado e passa a ser encarado como gestão administrativa, algo técnico, acima de ideologias e debates políticos, um programa de governo genuinamente neoliberal, causa de eventos desconfortáveis em uma democracia, como os casos citados acima no caso das UPPs. Em conjunto com essas remoções forçadas feitas pelo Estado nas comunidades ocupadas, há as chamadas remoções brancas, que são aquelas remoções igualmente forçadas, mas ao invés do governo ser o algoz é o capital, a situação socioeconômica do indivíduo em comparação aos preços do local que vive. Nas favelas com UPP, o custo de vida no geral aumentou de forma explosiva, dos alimentos, até os aluguéis, além dos serviços públicos, antes clandestinos e por isso gratuitos, com seus altos preços estrangulam as condições de vida das populações já pauperizadas destas regiões. Com a alta generalizada de preços, as pessoas ficam impossibilitadas de continuar vivendo naquele local e são obrigadas a sair, daí o nome remoção branca, já que, aparentemente, ninguém a obrigou a deixar sua casa. Este processo que toma lugar nas favelas cariocas pacificadas é descrito com maestria no trecho abaixo do artigo de Gláucia Marinho e Katarine Flor (2013): “The market’s change in positioning, supported by the State, occurs as soon as the favelas begin to be perceived as very profitable spaces. “That is when large chains of cinemas, supermarkets, and banks settle in,” says Castelo. According to the professor, the entry of these enterprises can generate an increase in employment and income, but at the same time it can also bring impoverishment. “It will generate employment and income in the favelas. There is no way we can doubt this reality: but will these jobs and incomes be sufficient to cover the increase in expenses that people who live there will experience?” he asks himself. The professor reckons that at first, this movement will generate wealth, which might be followed by the impoverishment of many residents. “What will occur is what, in fact, has already occurred in some localities: people will not have the financial capacity to stay in that space,” he evaluates.” (FLOR & MARINHO, 2013) 113

Alguns moradores das comunidades chegaram, por diversas vezes, a procurar representantes do governo para expor a impossibilidade de permanecer no local com a alta dos preços, demandando tarifas sociais de água, luz e telefone, com uma parcela das contas subsidiadas pelo Estado, para que assim, possam honrar com suas novas obrigações legais com as concessionárias de serviços públicos. Estes benefícios porém estão em eterna fase de análise pelo Executivo que não demonstra interesse político em lançar tal programa de ajuda às pessoas originárias das favelas pacificadas para que estas se mantenham lá. Isto revela um projeto de cidade que amplia a mercantilização e pretende a integração pelo consumo e não pela expansão da cidadania, entendida como reconhecimento de sujeitos e garantia do direito deles à cidade. A esse processo de remoção branca dá-se o nome técnico de gentrificação, quando as condições de vida nos bairros melhoram, os preços tendem a subir e o bairro tende a atrair pessoas de mais alta renda e a expulsar os habitantes originários menos favorecidos. É um processos encontrado em todo o mundo, mas que fica mais claro no caso das UPPs, onde, por exemplo, o aluguel que antes não passava de 200 reais chega hoje a 900 reais, uma alta de mais de 400%, muito acima da média de preços de aluguel na cidade, que por sinal já é altíssima. Com isso, moradores de classe média e até mesmo da classe alta mudam-se para as favelas pacificadas – principalmente da zona sul – expulsando assim os moradores originais que não tinham mais condições de se manterem lá devido ao elevado custo de vida, tendo que se mudar para comunidades mais longes com relação ao centro e à zona sul, onde a alta generalizada de preços ainda não chegou em cheio. Leia o que o governo tem a dizer sobre isso: “O governo do Estado reconhece o risco de haver uma "remoção branca" nas favelas pacificadas. "O morador de algumas favelas aguentou ficar ali com o tráfico, com a polícia violenta, enfrentou políticas de remoção, passou por mil coisas", diz a coordenadora do projeto UPP Social, Silvia Ramos. "Seria muita ironia do destino se agora, com as UPPs, eles não aguentassem e tivessem de sair." Para ela, esse risco é maior nas favelas da zona sul, onde a especulação imobiliária é grande e quase não há espaço para construções. "Estamos discutindo com vários agentes privados o ritmo de cobrança. Uma das formas de reduzir a pressão é ampliar as UPPs. Se não tiver escala, o risco de que as dez atuais voltem atrás é muito grande. Na hora em que tiver 50 favelas com UPP, isso diminui", diz Silvia.” (WERNECK, 2010)

Apesar deste processo ser mais facilmente observado nas UPPs da zona sul, ele está ocorrendo em todas as UPPs e em algumas favelas perto dos grandes empreendimentos que estão sendo construídos para os eventos internacionais. Este é o tipo mais sofisticado de 114

remoção, pois acaba por guetificar ainda mais aquele que já era excluído, pondo-o mais longe da burguesia, de forma que ele fique quase que impossibilitado de frequentar os mesmos espaços que a burguesia costuma frequentar, há a elitização das favelas pacificadas, sendo visto, com frequência, estrangeiros e jovens solteiros e geralmente universitários mudando-se para estas regiões pacificadas, elevando, portanto, o custo de vida dos proletários que ainda resistem à alta generalizada de preços. Visa-se consolidar de forma definitiva a figura de cidade divida. Como concluem Flor e Marinho (2013) “the general increase in the cost of living in the favelas generates the expulsion of residents without even having to use tractors or a gun”. Este duplo processo de gentrificação e guetificação notado no Rio, não é algo especificamente carioca, pode ser encontrado em todo o mundo em diversas escalas e vem sendo acentuado desde a década de 1970 devido ao aumento de fluxos informacionais e financeiros entre os países: Este fenômeno também tem sido acentuado pelo processo de globalização, cujas características da nova economia são o aumento das disparidades e da desigualdade entre indivíduos e regiões dentro do espaço urbano, expressos como um duplo movimento de “guetização” ou exclusão espacial, por um lado, e a gentrificação ou aburguesamento e insulamento de certos espaços da cidade, por outro lado. (FLEURY, 2012)

A relação do poder estatal com as favelas foi estabelecida a partir da ausência de bens e serviços públicos nestes territórios, e da invisibilidade social construída por meio da denegação de sua existência. Políticas de remoção e criminalização de seus moradores estão presentes desde o surgimento do ideário desenvolvimentista, segundo o qual as favelas seriam falhas causadas pelo desenvolvimento imperfeito vivenciado nos países do terceiro mundo, que poderiam ser “sanadas” através da industrialização e do progresso (sinônimos à época). No entanto, as manifestações culturais oriundas das favelas cariocas, como o samba, o candomblé e o funk sempre atravessaram a cidade, sendo todos eles apropriados pela civilidade urbana. (FLEURY, 2012) Em áreas de UPP, como os policiais querem a qualquer custo suprimir o lugar que o tráfico ocupara antes, superestrutural e estruturalmente, os eventos que são percebidos como geradores de tumulto, ou que antes eram incentivados ou mesmo promovidos pelo tráfico são identificados

com

a

desordem

e

são

recorrentemente

coibidos

e/ou

proibidos,

independentemente do papel que estes eventos tinham na sociabilidade local. Para aumentar o controle formal da polícia sobre a realização de quaisquer eventos nas comunidades ocupadas, 115

o governo, através da Secretaria Estadual de Segurança Pública, editou a Resolução 013 que estabeleceu que era necessária a autorização prévia do comandante policial da área para que se realizassem eventos de qualquer espécie (cultura, social, esportivo, religioso e etc.). O evento favelado que mais sofreu com essa coerção preconceituosa do Estado é o baile funk que, apesar de ser reconhecido por lei como patrimônio cultural do Estado, é sempre alvo de repressão por parte das autoridades, justamente por ser identificado com o tráfico de drogas. Um preconceito contra um movimento cultural periférico de resistência que tem pelo menos 30 anos de existência que é claramente devido à origem do ritmo: as favelas. É um círculo vicioso apoiado pela mídia, onde o favelado é igual ao criminoso e ambos são iguais ao funkeiro. O mesmo acontece com outros ritmos como o rap e o hip-hop também provindos das periferias, e o mesmo aconteceu com o samba durante quase todo o século XX, chegando este até mesmo a ser proibido por lei por ser de origem mestiça, não-branca, um ritmo genuinamente mulato por ser um ritmo com influências africanas e européias, como o povo brasileiro, e, mais especificamente, o povo favelado. Continua-se, portanto, na política oficial do Estado, a tratar a cultura negra e favelada como uma cultura subalterna, incivilizada, perigosa, entendendo que o único tratamento oficial que esta cultura pode ter por parte do Estado é o policial. É a cultura da favela, continuando a ser regulada pela Segurança Pública. Felizmente após anos de denúncias dos ativistas de direitos humanos, dos movimentos de favela, do movimento negro e, sobretudo, do movimento funk e hip hop o governo Sérgio Cabral revogou essa resolução, devido ao absurdo jurídico que ela representava. Contudo, apesar de todos os efeitos deletérios analisados anteriormente, as UPPs tem influência positiva sobre a diminuição de alguns tipos de crimes, como é evidente na tabela abaixo:

116

Tabela 1: Criminalidade registrada dentro das comunidades antes e depois da instalação das UPPs. 18

Tipificações criminais pesquisadas Morte violenta

Número médio de casos por mês e Taxa média por mês e comunidade comunidade (por 100.000 habitantes) Pré-UPP Pós-UPP Pré-UPP Pós-UPP 0,94 0,25 10,03 2,21

Homicídio doloso

0,36

0,15

3,37

0,87

Autos de resistência

0,5

0,01

5,7

0,12

Desaparecimentos

0,32

0,71

3,6

6,92

Lesões dolosas

3,34

11,66

41,33

127,36

Violência doméstica e familiar

2,17

8,47

27,12

84,66

Ameaça

2,3

7,97

29,45

99,24

Estupro

0,14

0,37

1,35

4,84

Roubos

5,87

2,7

61,23

20,58

Furtos

3,48

5,38

46,46

64,99

Crimes relativos a drogas

1,91

5,83

24,13

63,93

FONTE: Instituto de Segurança Pública (ISP) e IBGE apud CANO (2012).

Crimes como morte violenta, homicídio doloso e autos de resistência diminuíram, já outros como desaparecimentos, lesão corporal, ameaça, estupro e furto aumentaram. No primeiro grupo – os de crimes que diminuíram -, encontram-se crimes que eram característicos de zonas controladas pelo narcotráfico e em conflito perene com a polícia e que, por isso, diminuíram com a expulsão do tráfico armado das favelas pela implantação das UPPs. Os autos de resistência, por exemplo, eram execuções feitas por policiais sob a justificativa de que o suspeito resistiu à prisão e pôs em risco a vida do policial, sendo a única alternativa do policial então, matar o sujeito - o que sabemos ser uma justificativa jurídica para policiais praticarem assassinatos indiscriminadamente nas favelas e periferias (SOUZA, 2011). Nas comunidades ocupadas a polícia realmente executa menos pessoas, talvez por não terem mais a “desculpa jurídica” para fazê-lo, uma vez que não há mais desafiadores do Estado naquele local que ponham em risco a vida do policial. Porém, na via oposta, crimes como lesão corporal e desacato19 aumentam, geralmente devido ao abuso de 18 Retirada de CANO, Ignácio et al. “Os Donos do Morro”: uma avaliação exploratória do impacto das unidades de polícia pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Laboratório de Análise de Violência da (LAV-UERJ), mai. 2012. 19 Apesar de não estar na tabela, tal tendência é claramente notada, como afirma Nilo Batista na entrevista concedida ao Jornal Nova Democracia, já citada aqui.

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poder do policial que espanca e tortura moradores – sobretudo homens, jovens e negros – que, segundo eles, não respeitam a autoridade do PM e que, por isso, geralmente são processados por desacato. Já crimes como estupro, desaparecimento, furto e ameaça tiveram aumentos porque, provavelmente, começaram a ser mais denunciados à polícia pós-ocupação, já que esta agora é realmente a instituição soberana do local. Há, portanto, provavelmente o maior registro destes tipos de crime e não o aumento da recorrência deles nas favelas “pacificadas”. Contudo, como se vê ainda há muitas ilegalidades advindas do abuso das funções constitucionais da polícia. Devido à história policial de corrupção generalizada e à fama que este fato atribuiu à polícia, para implementar um programa de policiamento comunitário, de proximidade, com apoio irrestrito da população, o caráter do ofício do policial, ou pelo menos como a população o percebe, tem que ser mudado, já que em uma polícia violenta e corrupta não há como a população depositar sua confiança. Por isso ganha importância na agenda pública a necessidade da formação de uma nova geração de policiais, com um caráter profissional menos voltado ao extermínio, à tortura e ao autoritarismo e mais voltado à promoção da cidadania, ao respeito à lei e à promoção dos direitos humanos (FLEURY, 2012). O fato do Rio de Janeiro ter sido escolhido para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas acelerou ainda mais este processo, tornando-se então fundamental para a superação das altas taxas de violência – inclusive policial – presentes na cidade. Por isso, começou-se a oferecer uma formação mais “humanista” aos policiais recém-entrados na Academia de Polícia, que geralmente são jovens beirando os 20, 25 anos, com uma mentalidade bem diferente dos policiais das gerações mais velhas, que conviveram por algum tempo com os tempos do Regime Militar e que, por isso, tem uma noção bastante deturpada de seu ofício de “proteger e servir”. O que se nota ao visitar as favelas com UPPs é justamente a permanência deste autoritarismo. Apesar da boa relação na maioria das favelas ocupadas entre o comandante da unidade policial e os moradores, o comando tem uma missão disciplinadora que vai muito além da defesa do território do poder corruptor dos traficantes. Com alto poder discricionário coercitivo na definição do ordenamento social da comunidade, esta intervenção policial na sociabilidade do local parte da consideração de que a favela é um território onde predominam a informalidade e a desordem, sendo necessária então a construção de uma nova ordem. Esta forma elitista, civilizatória e tuteladora das massas de encarar a favela e os favelados só fortalece seus estereótipos e a mensagem de que eles precisam ser educados, civilizados para serem incluídos, e, portanto, passa a reconhecer a polícia como agência civilizadora do 118

Estado, à qual caberia a tarefa de disciplinar e civilizar os perigosos e bárbaros favelados. Isso tudo com aval do público. A falta de controle sobre a arbitrariedade policial em UPPs levou alguns grupos das comunidades a elaborarem cartilhas, panfletos e reuniões sobre os direitos humanos, alertando a população sobre seus direitos e sobre os deveres dos policiais, o que, obviamente, foi encarado como resistência à dominação policial, sendo prontamente relacionada a intentos do tráfico de desestabilizar o controle da polícia sobre os moradores e, por consequência, sobre a comunidade. Como foi exatamente o caso do rapper Fiell, no Santa Marta, espancado por policiais militares por divulgar aos moradores seus direitos constitucionais (UCHÔA, 2010). O Estado nas UPPs chega a esses territórios basicamente com o aparato repressivo e, quando chegam outros serviços, estes são oferecidos através das estruturas e hierarquias das agências repressivas do Estado que são os novos “donos do morro”. Portanto, tal hipertrofia das funções da polícia militar nas favelas pacificadas, além de sobrecarregar o jovem PM, visa tornar a UPP indispensável àquela comunidade, canalizando através dela todos os possíveis serviços oferecidos pelo Estado para a comunidade. É comum, por exemplo, ver aulas de violão sendo ministradas por oficiais de UPPs, como no Borel. É possível encontrar UPPs onde policiais militares organizem torneios de futebol, escolinhas de futsal, aulas de reforço escolar, aulas de judô e etc. Não que a oferta desses serviços seja ruim à comunidade, pelo contrário, são atividades demandadas, mas que não deviam ser ofertadas no âmbito da polícia. Na última fase de consolidação da ocupação, chamada UPP Social, como o próprio o nome já sugere, a intervenção social nas favelas assume a mesma marca da política de segurança o que indica a hierarquização das prioridades nas políticas públicas destinadas às favelas ocupadas. A UPP Social demonstra também a debilidade em mobilizar recursos, em formular metas e meio-claros, em coordenar e em executar metas no campo social destinados às favelas. A cidadania, portanto, nas comunidades ocupadas tem sido vista, prioritariamente, como a formalização dos deveres dos moradores com o mercado, como o pagamento de contas e impostos, esquecendo-se, porém, o governo, de fornecer a contrapartida na oferta de serviços públicos de qualidade como saneamento básico, educação e saúde. Além disso, a estreita ligação entre a UPP Social, a UPP de facto e o setor empresarial, revela um novo modelo de definição do social que se afasta das políticas e instituições tradicionalmente ligadas à garantia dos direitos sociais e da cidadania: é a troca definitiva do Welfare pelo binômio Mercado-Polícia. Após a exposição das principais e mais marcantes características, críticas e resultados das UPPs, entraremos no debate de como ela é instalada e qual o real motivo de usar esta 119

tática como a preferida. O objetivo do governo, como pistas já foram dadas ao longo do trabalho, não é por fim à violência ou mesmo ao tráfico de drogas, o objetivo do governo é a anexação territorial – e econômica – das favelas a seus domínios. E isso fica claro depois dos últimos assuntos tratados na subseção anterior, como, por exemplo, o caso da gentrificação, da especulação imobiliária e da debilidade do programa UPP Social. Para atingir este fim, o governo utiliza uma tática muito parecida com a utilizada pelos EUA nas guerras do Vietnam, do Afeganistão e do Iraque: a da contrainsurgência. A doutrina de constrainsurgência foi desenvolvida pelo governo estadunidenses em 1962, para combater, na Guerra do Vietnam, as milícias comunistas dos Vietcongs, a Overseas Internal Defense Policy dispõe todas as características de uma insurgência e de uma contrainsurgência e quais agências do governo americano deveriam lidar com este problema, além de seus campos de atuação. Além disso, dispõe os três fatores fundamentais para uma operação de contrainsurgência bem-sucedida: poder bélico superior ao do inimigo, apoio da população e, por último, mas não menos importante, levar desenvolvimento socioeconômico para o ambiente de conflito, ajudando assim a construir a estabilidade necessária para ganhar o apoio da população e ocupar as ofertas econômicas que o inimigo oferecia anteriormente à população local. O sucesso de qualquer operação de contra insurgência depende não só de uma vitória militar clássica sobre o inimigo, mas, sobretudo da percepção dos moradores das localidades disputadas sobre a legitimidade das ações do ganhador e ao cálculo que a população fará sobre a vantagem ou desvantagem de permanecer sob o domínio do ganhador. E assim está acontecendo nas favelas cariocas, daí a importância tão grande dada pelo governo às reuniões de inauguração das UPPs com os moradores (com a presença do Secretário de Segurança e, por vezes, até mesmo do governador) e à relação que o comando da UPP mantém com a população da favela (como no caso do Fallet em Santa Teresa, onde o comandante da UPP foi afastado porque as relações que ele mantinha com a comunidade eram consideradas ruins). A contrainsurgência é aquela técnica clássica de combate a insurgentes, forças militares irregulares, desafiadores da autoridade do Estado, motivados por um objetivo político, religioso, social ou econômico, que mantém controle sobre determinadas parcelas do território do Estado e que, portanto, são também uma ameaça à própria soberania do Estado. A insurgência é a luta pelo controle sobre um espaço político contestado entre o Estado e o inimigo deste apoiado pela população numa configuração não-estatal, irregular e recorrentemente descentralizada. Insurgências são levantes populares que crescem de e são conduzidas por redes sociais pré-existentes (como, por exemplo, a vizinhança) e que existem 120

em ambientes complexos do ponto de vista social, físico e informacional. (KILCULLEN, 2006). Todos os atores envolvidos tanto na insurgência quanto na contrainsusrgência têm como objetivo-último maximizar seu poder: os atores se engajam em uma batalha pelo controle da população, não havendo técnicas de contrainsurgência conhecidas sem causar uma grande matança nos dois lados da luta e, sobretudo no seio da população disputada (SANTOS FILHO, 2012). Essa matança que envolve tanto a insurgência, quanto a constrainsurgência pode ser observada no Rio tanto no número grande de mortes provocada pelas facções armadas de narcotráfico e pelo Estado, quando este realiza incursões nestes territórios visando sua ocupação militar, já que a grande letalidade destas operações se dá pela luta mortal dos atores pelo controle da população, fazendo a “guerra”, portanto, no meio desta. Essas novas guerras são as mais sangrentas da história e com a maior taxa de mortalidade civil, por não haver batalhas regulares, contra exércitos regulares, uniformizados e profissionalizados. O número de mortes em operações de instalação de UPP como a do Morro do Alemão até hoje é nebuloso, e apesar de todos saberem que este número corresponde a uma cifra bem alta, não há sequer menção a isso na grande mídia. O que há são denúncias de grupos de direitos humanos e de ONGs, que rapidamente são relegadas ao ostracismo, para não pôr em xeque os grandes lucros do governo e dos empresários, stakeholders20 das “pacificações”. Já os moradores, os maiores prejudicados desse estado de coisas, não denunciam o que lhes acontece por medo, dos bandidos e aqui incluo tanto os narcotraficantes, quanto os policiais achacadores que quebram a lei em nome de sua aplicação, buscando a maior “eficiência” capitalista mesmo - em seu ofício policial ou da manutenção da ordem e da paz pública. Entendido que é a população o asset determinante para a vitória neste embate, a eficiência da operação, ou seja, a vitória do Estado sobre os desafiadores, é medida através da percepção que os moradores têm de que ela – a operação – está de facto sendo feita em benefício da mesma, só assim a população é capaz de aceitar os tamanhos custos que envolvem estas operações. É por isso que é tão caro ao governo em ambos os sentidos a construção de um forte consenso hegemônico, através dos meios de comunicação mainstream, no que diz respeito à necessidade das UPPs e à melhoria que elas inexoravelmente trazem tanto à população favelada quanto àquela do resto da cidade – principalmente das áreas nãofavelizadas no entorno de favelas ocupadas por UPPs, que, segundo a SESSEG foram libertadas, como, por exemplo, a Tijuca. Sendo, portanto, a propaganda um pilar importantíssimo de qualquer operação de contrainsurgência. 20 Stakeholders é o termo utilizado para denominar um grupo de pressão que suporta uma política pública por ser ele, geralmente, o beneficiado pela mesma.

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Junto com a força bélica e com o apoio da população o terceiro pilar que determina o sucesso ou o fracasso de uma operação de contrainsurgência é o desenvolvimento que o Estado leva à área, sendo estes os três pilares da contrainsurgência (KILCULLEN, 2006). Sem desenvolvimento econômico e, portanto, geração de emprego e condições de vida para que a população permaneça no local, não há operação de contrainsurgência bem-sucedida, pois não há apoio da população. No projeto das UPPs, essa faceta de desenvolvimento institucionalmente deveria ser representada pela UPP Social, mas, como já vimos, a atuação dela é um fiasco. Este é o fator mais deficitário da estratégia de constrainsurgência à la carioca, só polícia, Forças Armadas e propaganda não adiantam por muito tempo, senão houver desenvolvimento local, o projeto tenderá à instabilidade e ao fracasso. O que inclusive é hoje claramente notado em várias comunidades como todo o Complexo do Alemão e da Penha, Chapéu Mangueira, Babilônia, Rocinha, Borel, Mangueira, Complexo da Maré, Morro dos Cabritos, Jacarezinho, Manguinhos, Fallet, São Carlos, Cidade de Deus e Macacos, só para citar alguns locais onde acontecem diariamente embates de moradores e de traficantes – estes últimos recorrentemente acobertados por moradores fiéis ao antigo régime – com os policiais e com os militares. Não há possibilidade de tomada real e definitiva do território da comunidade e nem da construção de uma sensação de paz dentro do mesmo, senão forem oferecidas aos moradores opções econômicas viáveis e legais, possibilidades de projetos individuais de vida reconhecidos pela lei e dentro do sistema, o que hoje claramente não têm, e sem os quais a operação de contrainsurgência no médio e longo prazo tende a falhar. Uma lição que será arduamente aprendida pelo governo estadual. Isto também é fundamental já que o controle numa operação de contrainsurgência não corresponde à imposição da ordem através de dominância incontestável, corresponde sim a ganhar colaboração dos locais para atingir alguns objetivos compartilhados, daí a necessidade de se fazer as reuniões de instalação de UPP e da boa relação entre o morador e o policial pacificador. Politicamente, quanto mais força uma das partes usa para se impor, pior a campanha deste lado está indo, como se nota, por exemplo, no caso dos EUA no Vietnam e no Afeganistão. Marginalizar e tornar pouco competitivo o adversário são táticas mais importantes que a força em si numa operação de contrainsurgência para atingir a meta de controle sobre o espaço sociopolítico no qual o conflito ocorre. Força, portanto, é só mais um os componentes e nem de longe o principal, algo ainda não notado pelos intelectuais orgânicos da constrainsurgência à la carioca, como o Coronel Pinheiro Neto, ex-Chefe de Estado-Maior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e ex-comandante do Batalhão de Operações Especiais da PMRJ, o BOPE, que, em entrevista ao jornal online Último Segundo 122

IG, em 2012, afirmou: “Curiosamente, o coronel Pinheiro Neto mantém, em seu gabinete no quartel-general da PM, o manual de Contra-Insurgência do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. O documento expõe a doutrina norteamericana de operações de guerra assimétrica contra guerrilhas e planos de ocupação das áreas, dando vital importância às ações no “campo humano”. Lá como aqui, um dos principais objetivos da doutrina é “conquistar corações e mentes”, ganhar a confiança dos moradores, para que eles apóiem o trabalho das autoridades e as municiem com informações para o combate dos criminosos. De acordo com a doutrina, uma campanha de contrainsurgência é um misto de operações ofensivas, defensivas e de manutenção de estabilidade, conduzidas por múltiplas linhas de operação. Cenário parecido com o do Rio de Janeiro, sendo os traficantes as tropas de insurgência. Conduzir uma campanha de contrainsurgência, requer uma força flexível, adaptável liderada por líderes ágeis, bem informados e culturalmente astutos.” (GOMIDE, 2012)

Como se vê, as UPPs não são um projeto original, são nada menos do que uma modificação da doutrina de contrainsurgência americana: uma contrainsurgência à la carioca. Esta adaptação se deu, sobretudo, na parte em que os civis, que são as maiores vítimas destas operações, são nacionais do próprio Estado que luta contra o desafiador, e o grupo desafiador é composto por marginais comuns, por foras-da-lei, que são tratados como inimigos de guerra pelo Estado. A aplicação da contrainsurgência na esfera interna implica na suspensão de facto de várias garantias constitucionais e, por diversas vezes, dos direitos humanos. É uma tática utilizada para se implantar o mais cabal estado de exceção, porém sem declará-lo formalmente, sendo este usado como paradigma de governo, plenamente compatível com as democracias modernas. Em torno da UPP se formou um consenso tão forte na mídia nacional e internacional que, pela primeira vez, um modelo genuinamente carioca de estado de exceção começou a ser exportado para países que também buscam inovações no campo da repressão social, para evitar contratempos com o grande capital. O Panamá foi o primeiro país a implantar em seu território, com a ajuda de policiais cariocas, uma unidade militar de ocupação de área carente análoga à UPP carioca (CUNHA, 2012). A primeira Unidad Preventiva Comunitaria (UPC) foi criada na cidade de Curundu, Panamá. Os policiais panamenhos vieram ao Rio e visitaram várias UPPs e viram que o modelo poderia funcionar, se adaptado à realidade panamenha e, para tal, pediram ajuda aos policiais cariocas, que prontamente se dispuseram a ajudar. A UPC, segundo o governo panamenho, será expandida para diversas regiões do país para prevenir o crime, através, mais uma vez, da aproximação com os moradores das comunidades (tática crucial em ambas as “pacificações” para a anexação do território, de acordo com a estratégia de contrainsurgência utilizada pelo Estado). O treinamento dos 123

policiais pacificadores panamenhos foi feito por dois oficiais da polícia militar do Rio de Janeiro. A política de pacificação apesar do que é dito pelo governo do estado, está vacilando no domínio a alguns territórios, já vem demonstrando a impossibilidade de sustentação desse modelo de exceção a longo prazo. No Morro do Alemão, por exemplo, o General Tomás Miguel Miné Paiva Ribeiro, comandante da Força de Pacificação que atuou no Alemão e na Penha e que, anteriormente, havia atuado na MINUSTAH, no Haiti, na pacificação de Cité Soleil, a favela mais perigosa do país, afirmou que “tomou mais tiros no Alemão e na Penha do que no Haiti” (GOMIDE, 2012). Ele reconhece que enquanto atuava nestas comunidades havia tráfico de drogas bem menos armado do que o que já tinha ocupado a favela antes da ocupação militar. Ainda assim estes traficantes, insatisfeitos com a presença do exército e/ou da polícia, combateram por diversas vezes estas tropas e, até hoje, frequentemente tiroteios, guerras entre facções e outros conflitos acontecem lá envolvendo muitas mortes, tanto de policiais, quanto de bandidos, mas sobretudo de moradores jovens, pobres, negros e do sexo masculino, o que mostra o pífio avanço obtido quantitativa e qualitativamente com a implantação das UPPs . Como o encontrado numa pichação de muro no Santa Marta: “Copa para os ricos e UPP para os pobres” e, mesmo assim, nem a UPP é para todos os pobres, só para aqueles que vivem nos territórios que mais interessam ao governo, às empreiteiras e ao capital financeiro. Como diz O Rappa, citado por um morador da Rocinha, em uma das visitas ao campo: “essa é a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz”. Figura 12: Pichação Rio de Janeiro, 2014.

Fonte: Arquivo do acervo pessoal do autor.

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4.1.SOBERANIA, O HOMO SACER E O CAMPO: A EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GESTÃO DAS FAVELAS

“Todo favelado é um preso político em seu próprio território.” Anarquista favelado, 2014 Outros conceitos bastante úteis à análise aqui feita das UPPs são o de soberania (na interpretação de Carl Schmitt), o de zoé e bios, biopolítica, homo sacer, estado de exceção, campo e polícia-soberana. Todos podem ser observados nas cidades contemporâneas do Brasil, e, de forma ainda mais clara, no Rio de Janeiro. Segundo Foucault (2011), a marca da soberania estatal antes da Era moderna era baseado no controle e na ritualística pública da morte pela entidade estatal, sendo a morte o principal asset político do Estado. Daí a função social e política fundamental dos suplícios, das confissões arrancadas e das execuções em praça pública das pessoas que ameaçavam o Estado. O soberano pré-moderno só exibia e exercia seu poder sobre a vida, exercendo seu direito de dispor da morte de seus súditos. Já na modernidade, com a importância cada vez maior da força de trabalho para o sistema capitalista, a vida humana passa a ser indispensável para o Estado, o que faz com que as execuções percam seu lugar de destaque na política estatal e que, no lugar da morte, a soberania se manifeste agora sobre a vida. A vida torna-se o centro da política, e é sobre ela que a soberania estatal moderna age. Portanto, soberania passou, da Idade Média à modernidade, do paradigma de “deixar viver e fazer morrer” para o de “fazer viver e deixar morrer”. A vida tornou-se o centro das atenções do Estado porque ela é a causa e o motor do desenvolvimento econômico dele e, portanto, para que o crescimento do Estado tendesse à maior taxa possível, dever-se-ia não só preservar a vida de seus súditos, agora entendidos puramente como força de trabalho, mas assujeitá-los21, para que, dóceis, pudessem viver para produzir, viver para, em última instância, maximizar a força do Estado. É neste momento que surgem instituições como a polícia, a escola e a prisão. Todas estas instituições foram criadas para disciplinar os corpos, para torná-los aptos para o trabalho nas fábricas e, assim, para impulsionar a grandeza do Estado, sempre confundida com os grandes lucros dos capitalistas. Portanto, toda vida era, além de útil, necessária ao Estado e, por isso, as penas de suplício e 21 Assujeitamento significa, de forma sucinta, segundo Foucault, uma submissão racional a um conjunto de regras, uma disposição a aceitar o jugo de uma instituição ou de um princípio organizativo comum. Trata-se de um modo de realização do controle da subjetividade pela constituição mesma da individualidade.

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execução perderam espaço para as penas de degredo, de trabalho forçado e à reclusão em casas de detenção, onde o detento era treinado em um ofício necessário ao Estado, sendo libertado quando esta formação estivesse completa para que pudesse contribuir para o desenvolvimento do Estado, tendo assim pago sua dívida com o soberano. É nesse momento que surge, por exemplo, o crime de vadiagem. A velha potência da morte que caracterizava o poder soberano é trocado então pela gestão dos corpos. Técnicas diversas foram desenvolvidas para obter o assujeitamento dos corpos e para o controle da população. Nasce assim uma nova era onde as técnicas políticas estão intrínseca e inexoravelmente ligadas à vida: inaugura-se, portanto, a Era do biopoder. Este biopoder, além de ser responsável pela inserção controlada dos corpos à produção, foi também utilizado para que se ajustassem os fenômenos populacionais aos processos econômicos. Observa-se então a politização da vida: a biopolítica. O homem durante milênios permaneceu o que era para Aristóteles: um animal biologicamente vivo, vida esta compartilhada por todos os seres vivos que, na Era clássica, não era incluída na pólis, não sendo, portanto, objeto da política; além disso, o homem tinha uma outra vida genuinamente humana, aquela que busca a possibilidade de viver bem, de viver politicamente. O que a emergência da biopolítica mudou nessa dinâmica é que, na modernidade, a vida biológica do homem é em si o objeto da vida política. Em termos aristotélicos: zoé – vida biológica - e bíos – vida política. A zoé é a simples vida biológica, automática, sustentada pelo ato de respirar, comer e se reproduzir, já a bios tem como atributo principal o político e, portanto, a linguagem, a comunicação, sendo a bios a vida especificamente humana. Daí a afirmação de Aristóteles que o homem é um animal político, o único animal que possui a bios. Quando o homem é despido de sua vida política, de sua bíos, a vida genuinamente humana, diz-se que ele só vive a vida biológica, a vida nua, sendo esta vida nua o objeto por excelência da biopolítica na modernidade. A vida nua é o espaço no qual a soberania do Estado age através de técnicas políticas, como o policiamento. Um dos exemplos mais característicos de vida nua é o homo sacer. O homo sacer, ou homem sacro, é uma figura dúbia do direito romano arcaico, que é em si a concretização da vida nua. Na definição explicitada por Agamben (2003), o homo sacer ou: O homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito, e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio. Na verdade, na primeira lei tribunalícia, se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro. (AGAMBEN, 2003)

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O homem sacro é aquele, segundo o costume romano, que é destinado aos deuses e que por pertencer aos deuses, não pode ser morto em rituais, já que, por definição, a morte ritual era a cerimônia que sacralizava algo a ser imolado, comendado aos deuses. Como o homem sacro já pertence aos deuses, já é algo divino per se, não há lógica em matá-lo ritualmente. Contudo, a vida do homo sacer, como se pode notar no trecho acima, é matável, pois quem o mata não é considerado homicida, sua morte não constitui crime, não é homicídio, já que, por já pertencer aos deuses, quem o mata só estaria empenhando-se num serviço sagrado, apressando-se na entrega daquela vida consagrada a seu dono: os deuses. Portanto, o homo sacer é aquele ser que não pode ser sacrificado, mas que é matável, sem que sua morte constitua um crime. Como se nota, a figura do homo sacer é genuinamente uma figura de limite, que não pertence nem ao direito divino, pois não pode ser ritualmente sacrificado, e nem ao direito humano, já que seu assassinato não é considerado crime e quem o mata não é homicida. É uma figura que permanece, portanto, na ambivalência, num espaço de indiferenciação. Uma ambivalência mesmo entre o que é sacro e o que é profano, pois o que é sacro geralmente não pode ser violado, só o que é profano, porém o homo sacer pode ser violado justamente por ser sagrado, algo que à primeira vista pode parecer paradoxal, mas que não é, já que aquilo que é consagrado aos “deuses infernais” ainda assim é sagrado, mesmo guardando em si uma auréola de impureza, de profano. É o que Agamben (2003) chamou de “ambivalência do sacro”, algo que é ao mesmo tempo sagrado e maldito. Um homo sacer é uma pessoa que foi simplesmente posta fora da jurisdição humana sem, porém, ultrapassar para a jurisdição divina. É alguém que deveria estar morto, pois pertence aos deuses e, portanto, deveria estar na esfera divina e não terrena. Porém, está vivo, apesar de não poder ser abarcado pelo direito terreno por não mais pertencer à Terra e sim aos deuses. É por isso que quem o mata não é criminoso e, além disso, é encarado como se estivesse prestando um serviço santo, sacro, por estar dando aos deuses o que já lhes pertence, não podendo, em sua santa tarefa, ser posto sob a jurisdição humana. O homo sacer, portanto, apesar de estar fora do direito humano, é incluído neste através de sua matabilidade, a lei portanto, aplica-se ao desaplicar-se e faz com que o homo sacer seja incluído através de sua exclusão. É nesta zona de indiferença entre sacrifício e homicídio que encontram-se duas figuras centrais aqui: o homo sacer e a soberania. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera. A esta potência da lei de aplicar-se desaplicando-se, de manter-se na própria privação, dá-se o 127

nome de bando. Aquele que foi posto em bando, que foi banido, não foi simplesmente posto fora da lei, foi abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno se confundem, não é possível, portanto, determinar se uma pessoa in bando22 está dentro ou fora do ordenamento. A vida sacra é então a vida in bando, no bando soberano, sendo a soberania a responsável pela produção deste tipo-ideal de vida nua, é ela - a soberania - a responsável por pôr pessoas in bando. Portanto, o homo sacer é aquele que goza somente da vida nua, que é matável e insacrificável, que vive in bando, abandonado, por decisão explícita do poder soberano. Nos dois limites hierárquicos extremos do ordenamento, soberano e homem sacro, figuras simétricas, têm a mesma estrutura e são correlatas, no sentido em que o soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos agem como soberanos. É, portanto, tarefa soberana a de anunciar, quem é sacro, quem é vida nua, quem está abandonado, quem é bandido. É neste sentido que o conceito de soberania de Carl Schmitt torna-se fundamental para se entender a articulação coerente destes conceitos aqui apresentados com o poder deciosionário do soberano. Para Schmitt (1985), soberano é aquele que decide sobre a exceção. Esta é a única definição capaz de abarcar o conceito fronteiriço, indiferenciado, de soberania. A definição de soberania deve então estar ligada a um caso limítrofe e não à rotina. A exceção pode ser caracterizada como um caso de extremo perigo que ponha em risco a existência do Estado, que não está codificado na ordem legal existente e que, portanto, não pode ser circunscrito e nem obedecer a uma lei pré-existente. Mesmo que o soberano permaneça fora do sistema legal válido, ele, contudo, pertence a ele, uma vez que é ele quem decide quando a constituição precisa ou não ser suspensa. Na exceção os laços com princípios naturais gerais cessam e todo a ordem legal é baseada na decisão do soberano. A ordem legal é, portanto, baseada na decisão do soberano e não nas normas. Se um Estado não tem mais o poder de declarar exceção em seu território, esta unidade política não deveria mais ser chamada de Estado, pois não é soberana, devendo perder o status de Estado. Sendo um Estado falido. O que caracteriza a exceção é principalmente a autoridade ilimitada, o que significa a suspensão da ordem existente. Nesse caso, fica claro que o Estado permanece e é a lei que retrocede, que perde efetividade. Não se deve confundir exceção com anarquia ou caos, a ordem no sentido jurídico ainda prevalece, mesmo que não em sua forma ordinária. A decisão 22 É desta expressão in bando que advem a palavra bandido, aquele que está in bando, está abandonado e é bandido.

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soberana do Estado por si mesmo liberta-se de todos os laços normativos e torna-se verdadeiramente absoluta. O Estado suspende a lei na exceção sob a justificativa de que esta suspensão é necessária para que ele se auto-preserve. Na exceção a decisão do soberano é em si nomos, tem força-de-lei, já numa situação de normalidade a lei prevalece e o espaço para as decisões do Estado tende a zero. Portanto, soberania não é o monopólio do uso legítimo da coerção ou da lei, soberania é o monopólio da decisão, mais especificamente da decisão sobre a exceção. Não há norma aplicável ao caos. Para que uma ordem legal faça sentido, deve existir uma situação normal e, aquele que é soberano, decide quando é que essa situação normal de facto existe. A autoridade, da qual está imbuída esta decisão, prova que para produzir lei, não é preciso estar baseado na lei. Para o soberano tomar uma decisão, independente do conteúdo que ela tenha, é o mais importante, para provar para os outros e para si mesmo a todo momento que ninguém poderia revisar esta decisão, ou seja, para provar que é soberano, uma vez que seu poder de decisão é final e irrevogável. É esse soberano que decide sobre a vida, que decide tomar para si os técnicas de controle sobre a vida biológica de seus súditos, que decide sobre quem está dentro e quem está fora do ordenamento, além de decidir também quem está in bando. É ele que decide sobre quem está revestido com a vida nua, quem é homo sacer, quem e em qual momento tem – percebida no discurso oficial - sua bíos reduzida à sua zoé e quem está nesta zona de indiferenciação entre o sagrado e o profano, entre o mundano e o divino, entre o jurídico e o extrajurídico. É nesta dificuldade de discernir as fronteiras entre o que é o si próprio e o que é a personalidade alterada por uma droga. Entre o que é uma questão médica e o que é uma questão moral. Entre o que é favela e o que é o asfalto. Entre o que é estado de direito e estado de exceção. Entre tudo isto, é ele, o soberano, quem decide entre a existência política propriamente humana (bíos) e a pura existência (zoé), exposto na nudez destituída de cidadania de sua vida biológica, transformada em objeto da política. É sobre todas essas zonas de indiferenciação que se apóiam as certezas que sustentam o estado de exceção, de onde escorre o sangue vindo do tratamento violento do Estado à vida nua. Como já mencionado anteriormente, para Schmitt (1985), soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção. Este estado de exceção, de emergência ou de necessidade não pode ter forma jurídica uma vez que necessitas legem non habet, a necessidade não tem lei (AGAMBEN, 2007). É um conceito limítrofe, que se encontra na indeterminação entre fato político e direito público, entre lei e suspensão da lei. É a resposta imediata do poder 129

estatal a conflitos internos considerados pelo Estado como extremos, como disturbadores da ordem (obviamente do que o Estado entende como ordem). É, portanto, no estado de exceção que o soberano mostra seu poder decisório máximo, onde o único elemento com força-de-lei é o nomos basileus - a normatividade soberana - que é criado através de suas decisões soberanas, é o soberano em si a força constituinte da ordem vigente, é ele a única fonte do direito, correspondendo ao que Agamben (2007) chama de força-de-lei, pois apesar de obrigar como uma lei, ter força equiparável a de uma lei, não é lei, é descolado dela, é uma força-delei sem lei, um imperium flutuante, puramente força, livre dos mecanismos que contém geralmente a violência disciplinadora desta força-de-lei, ou seja, sem a capa da lei: por isso força-de-lei. Deve-se, contudo, entender que conceitos como ordem e necessidade são juízos subjetivos de caráter moral e/ou político e não dados objetivos que podem ser extraídos tecnicamente do meio, sendo o soberano o ator que faz estes juízos subjetivos e que, portanto, decide sobre a ordem e a necessidade. A soberania novamente reduz-se ao monopólio do poder de decisão. Devido a todo este espaço que se abre para a ação estatal no estado de exceção, a criação voluntária de estados de exceção permanentes, como técnica de governo, como modalidade de gestão pública, torna-se a regra nas democracias contemporâneas. Portanto, há, hoje em dia, um casamento irresistível entre democracia e o absolutismo característico dos estados de emergência não declarados, extra oficiais. São exemplos da produção de exceção como paradigma de governo tanto as UPPs cariocas, quanto o Patriot Act dos Estados Unidos e também a atuação policial nos protestos brasileiros recentes, ambas políticas se apresentam no significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua suspensão, colocando o indivíduo que está sob seu leque de atuação permanentemente in bando. Na primeira, impõe-se sobre os moradores o jugo de uma polícia-soberana com altíssimo poder discricionário e decisório para criminalizar e investir de vida nua, colocando assim in bando, aquele que ela considera como inimigo ou perigoso ao processo de consolidação de sua influência sobre a comunidade, dentre eles os funkeiros, os líderes das Associações de Moradores e os ativistas de direitos humanos. Já na segunda, a lei promulgada em 2001, depois dos atentados de 11 de setembro, conhecida como Patriot Act permitia, entre outras coisas, a prisão sem acusação legal por prazo indeterminado, criando a figura limítrofe do detento, que não está preso e nem acusado por nenhum crime, mas definitivamente também não está livre. Na terceira cena, atua como a única face do Estado em contato com os militantes mobilizados nas ruas uma políciasoberana, a mesma que age nas favelas, porém geralmente com armas menos letais, digo 130

geralmente porque casos se amontoam do uso de armas de fogo por policiais nos protestos. Apesar do poder de inflingir a morte diminuído pela obrigação do uso de armas menos letais, danos físicos graves podem ser impostos sobre os manifestantes que por má sorte encontrem a polícia depois de iniciados os conflitos. Além das agressões injustificáveis serem justificadas, prisões ilegais e arbitrárias, como as prisões para averiguação, são comuns e assumidamente ferramenta de trabalho, como no recente caso da repressão ao protesto Não Vai Ter Copa, em São Paulo, onde a PM usou a técnica ilegal do “Kettling” ou “Panela de Hamburgo”- sendo considerada ilegal por organismos internacionais justamente por colocar em xeque o direito à manifestação, já que o cerco impede que os manifestantes marchem (TOMAZ, 2014). É nestes casos que a vida nua atinge sua máxima indeterminação e que o soberano, através do monopólio da decisão, transforma toda política em biopolítica. É importante destacar que o estado de exceção não é um direito especial, é de facto a suspensão de toda a ordem jurídica existente, definindo-se a si mesma como poder soberano e, portanto, criador de normas com força-de-lei, é o supra-sumo do poder constituinte, sendo caracteristicamente um conceitolimite, que tende à máxima indeterminação. A lição que fica é que uma democracia protegida leva inexoravelmente à instauração de um regime autoritário, mesmo que este conserve a retórica e alguns procedimentos técnicos classicamente relacionados às democracias, como eleições com sufrágio universal onde todos podem votar e ser votado e o sistema de representatividade do povo com relação aos mandatários de funções eletivas, independentemente do poder republicano no qual desempenhem seus trabalhos. É em nome da proteção destas instituições democráticas burguesas que o soberano declara a exceção, sendo ela constitucional ou não. A democracia protegida e o estado de exceção como paradigma de governo tornaram-se então a regra. Esta teoria do estado de exceção não é de maneira nenhuma pertencente à tradição antidemocrática, é, pelo contrário, inerente à democracia contemporânea e inseparável dela. Um não existe mais sem o outro. Uma estratégia biopolítica caracteristicamente de exceção utilizada pelo soberano e suas agências no sistema de gestão da favela e da cidade, principalmente em protestos, é a polícia-soberana e a consubstanciação do espaço geográfico da favela ou dos protestos com figura agambeniana de campo. São estes três elementos os pontos-chave que caracterizam estes locais como espaços in bando, espaços em estado de exceção. A polícia não é uma mera função administrativa da imposição da lei, a polícia é talvez o lugar onde a proximidade com e a troca quase constitutiva entre violência e direito, que caracteriza a figura do soberano, é mostrada mais nua e claramente que em qualquer outro 131

local. Se o soberano de fato é aquele que marca o ponto de indistinção entre violência e direito proclamando o estado de exceção e suspendendo a validade da lei, a polícia é a instituição que funciona mais similarmente ao soberano. A polícia sempre age dentro do estado de exceção (AGAMBEN, 2000). A ostentação de armas que caracteriza a polícia em todas as regiões do mundo é na verdade a ostentação da violência soberana, pronta a ser posta em ação caso o soberano – ou o Estado ou a polícia – assim o decida. A entrada do conceito de soberania na figura da polícia não é nada animadora, pois aumenta ao máximo o poder discricionário dos policiais, deixando então a ação da polícia a serviço dos grandes sensos comuns, como o racismo e a criminalização da pobreza, e, por consequência, dos grupos formadores de opinião, com maior capital simbólico do campo social (BOURDIEU, 1992). O policial-soberano tem a tendência de agir na exceção, suspendendo o ordenamento vigente, atribuindo a suas decisões força-de-lei, independentemente do conteúdo destas decisões, ou seja, estas decisões soberanas com força-de-lei podem ser completamente ilegais, mas ainda assim serão válidas, legítimas e terão peso de nomos. A criminalização do inimigo é necessária para submetê-lo às operações policiais para que, assim, possa, a polícia, eliminar o inimigo, neutralizá-lo, sem problemas. Primeiro, o inimigo é despido de toda a humanidade e taxado como um criminoso, violento, bárbaro, e só então torna-se possível e lícito eliminá-lo ou neutralizá-lo através de operações policiais. Tal operação policial não está obrigada a obedecer nenhuma regra jurídica e pode, então, não fazer distinções entre engajados ou não nos conflitos e ações políticas. Estas operações policiais soberanas são postas em ação pela decisão do Estado, sob a justificativa de que ela é necessária para a manutenção da ordem e da normalidade ou até mesmo em nome da sobrevivência do Estado situações limítrofes onde tudo o que Ele (o Estado) ou Ela (a polícia) decidir está legitimado e tem força-de-lei. Nos protestos o que temos é exatamente isso: forças militarizadas colonizando, coexistindo e influindo diretamente na dinâmica dos atos, uma polícia que permanentemente impõe, por seu poder decisório soberano, a exceção àquelas demonstrações. É o poder decisório da polícia-soberana normalizado como algo institucionalmente aceitável e estável, à revelia da lei, como se isso fosse compatível com uma democracia e com o estado de direitos. É esta polícia soberana que interfere de forma decisiva nas estratégias de militância e até mesmo de vida, uma vez que conseguiu desmobilizar muitos dos manifestantes que nunca tinham ido às ruas, mas que foram em junho. É ela, em última instância, quem decide quem está investido com a vida nua, quem está in bando, quem é homo sacer, o que é a norma e o que tem força-de-lei, o que é caracterizado como ordem e desordem, normalidade e exceção, e 132

é dela o monopólio da decisão final, irrevogável e não sujeita à revisão, já que age com o aval irrestrito do soberano, sendo ela, a polícia, a agência mais próxima dele, se confundindo, por vezes, com o próprio soberano. Há na verdade uma constante oposição entre o Estado de Polícia e o Estado de direitos e, por definição, “o Estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao Estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam” (ZAFFARONI apud MALAGUTTI, 2011). Partindo-se desta definição, fica claro que os manifestantes experienciam, apesar do discurso oficial, não um Estado de direito, mas na verdade um Estado policial em sua faceta máxima, onde a polícia é o soberano do local, competindo a ela inclusive o monopólio da decisão sobre os mais diversos aspectos que vão desde o percurso, os repertórios legítimos de ação coletiva, a integridade física dos militantes de diversos grupos, o direito à livre associação e de ir e vir. É, em suma, a cristalização espacial do estado de exceção como paradigma de governo. E o local onde o estado de exceção atinge sua faceta biopolítica máxima é o campo,. Como nota Foucault (2011), nossa é a Era da biopolítica, onde acontece a crescente implicação da vida natural, a zoé, nos cálculos de poder, nas técnicas de governo. Assim sendo, em nosso tempo a política tende a tornar-se integralmente biopolítica, passando, então, a zoé, a ser o principal objeto com o qual a política passa a lidar. Esta politização da vida é, ao contrário do que muitos pensam, uma estratégia da economia do poder tanto de Estados que são democracias modernas, quanto de outros que são totalitários. Esta politização da zoé, apesar de “total” e “absolutista”, é completamente compatível com a democracia contemporânea, sendo, portanto, a biopolítica a principal técnica de governo utilizada por estes Estados. Nesse sentido, o campo é o puro, absoluto e insuperável espaço biopolítico e, enquanto tal, fundado sobre o estado de exceção, que surgirá como o paradigma do espaço político da modernidade, assumindo as mais diversas formas e configurações espaciais em diversas localidades do mundo, portanto: The camp is the space that opens up when the state of exception starts to become the rule. In it, the state of exception, which was essentially a temporal suspension of the state of law, acquires a permanent spatial arrangement that, as such, remains constantly outside the normal state of law (…) the camp is a piece of territory that is placed outside the normal juridical order (…) what is being excluded in the camp is captured outside, that is, it is included by virtue of its very exclusion (…) The camp is the paradigm itself of political space at the point in which politics becomes biopolitics and the homo sacer becomes indistinguishable from the citzen. (AGAMBEN, 2000)

Estes trechos citados acima do capitulo “The Camp” do livro Means Without Ends: 133

Notes On Politics, de Agamben, descrevem com maestria o conceito de campo. O campo é então um espaço primordialmente de exceção, que está in bando, fora do ordenamento normal, onde há a politização máxima da vida, onde toda a zoé é politizada, onde toda a política vira biopolítica e onde todos são matáveis, onde o cidadão é indistinguível do homo sacer. Como se pode ver, todas estas características são compartilhadas entre campo e favela, logo, pela definição de Agamben (2000) de campo, as favelas são de fato campos de concentração. A favela, assim como o campo, delimita o espaço no qual a vigência normal da lei é suspensa e são locais onde atrocidades podem ou não ser cometidas pela polícia-soberana do local, e estas atrocidades não dependem da lei, mas de noções cívicas e éticas da polícia que é de facto soberana naquele local e que, portanto, pode agir como bem entendesse por criar, através de suas decisões, o nomos basileus com força-de-lei, apesar de não pertencerem à lei. Assim como a favela cariocas, há outros exemplos de campos pelo mundo, além das experiências nazi-fascistas, como os banlieues franceses, as inner cities nos Países Baixos, os ghettos norte-americanos, os campos de refugiados, as vilas gaúchas e os townships na África do Sul, os protestos no Brasil, entre outros. Todas versões culturalmente únicas do mesmo fenômeno: o campo, o novo nomos biopolítico do planeta, é a primeira organização política coletiva da vida humana baseada exclusivamente sobre a vida nua, sobre a zoé. O campo, é um híbrido entre direito e fato, no qual ambos os termos tornam-se indiscerníveis. Sobre ele não é possível dizer se está dentro ou fora do ordenamento jurídico. Fruto não do descaso das autoridades, como geralmente se afirma, mas, pelo contrário, fruto do exercício ativo da soberania estatal em decidir sobre a exceção, em pôr um espaço específico de indeterminação, onde o jurídico e o alegadamente necessário indeterminam-se a si mesmos. Com todo este poder cru, discricionário e constituinte, característico da políciasoberana, violações, como já visto, são, além de inevitáveis, parte inseparável do modus operandi da polícia, sobretudo a polícia militar. Ainda em 26 junho de 2013, recém explodidos os protestos que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, a ONU solicitou explicações do governo brasileiro sobre o uso excessivo de força contra manifestantes, o que prova que o maior problema dos atos, desde junho, já era justamente a atuação da polícia e não a suposta violência dos manifestantes. Segundo a ONU, “o uso de força foi arbitrário e o violento, tendo como consequência muitos jornalistas e manifestantes feridos (...) número elevado de manifestantes pacíficos presos. Alguns chegam a ser presos antes da participação nos protestos” (CHADE, 2014). Além de se colocar contra o uso 134

abusivo de força pelo Estado, a instituição também pede para que o país explicações eventuais investigações que não tenham sido feitas, que tenham sido inconclusivas ou arquivadas contra policiais. Pede também que os suspeitos que comprovadamente tenham cometido delitos sejam levados a julgamento e punidos para que casos correlatos não se repitam. Até março de 2014, no entanto, o pedido de explicações da ONU não havia sido respondido pelo governo brasileiro, que claramente escolheu ignorar a organização para evitar assumir suas ilegalidades na Arena Internacional, arriscando sua legitimidade. Devido a esta clara percepção da polícia como uma instituição autoritária, entidades, coletivos, ONGs e outras instituições da sociedade civil vem recorrentemente cobrando explicações e investigações sobre as ações de agentes do Estado em protestos. No entanto, assim como crimes cometidos pela polícia em outros campos, a ação da polícia permanece, em geral, inquestionável, nem investigada e nem punida, e, geralmente, independente dos níveis de violência aplicados, conta com o apoio do Ministério Público - e da mídia - que repetidamente arquiva os processos e investigações sobre possíveis condutas ilegais de policiais em atividade. É por esta blindagem que o Estado dá à polícia e à inexistência de vontade política em mudar este quadro, que os grupos da sociedade civil procuram órgãos internacionais, para constranger o país a responder o porquê deste descaso. É assim também que a polícia-soberana age na favela, mas com balas de verdade, massacrando a juventude negra favelada das nossas periferias. É essa polícia-soberana que põe em exceção toda uma comunidade durante as incursões, ou durante a ocupação militar da PMERJ nas favelas com UPP, ou até mesmo em protestos nas favelas, geralmente em resposta justamente a ações desmedidas da PM, por falta de serviços públicos ou pela falta de diálogo com as autoridades públicas em grandes obras na comunidade, como a construção dos teleféricos que já foi citada. A esses protestos, assim como àqueles do asfalto, a polícia reserva a repressão. Mas a repressão destinada a um público desnudo, homo sacer, é letal, aplicada com o objetivo de neutralizar a ameaça, como se um grupo de manifestantes simplesmente por quererem mudar aspectos do status quo, desafiassem a autoridade do Estado, sendo, portanto, identificados como inimigos, e consequentemente criminalizados, se possível no mesmo grupo dos inimigos já tradicionais do Estado, os traficantes. Por isso é recorrente ver veiculado na grande mídia que protestos em favelas foram orquestrados, bancados ou ordenados pelo tráfico e que estes protestos foram proativamente violentos, espalhando o pânico à “população de bem” que nada tinha a ver com aquela “desordem”. Apesar desses moradores de favela reivindicarem uma participação política com uma interface com o Estado, visando fins práticos, mais direitos, apesar de resistirem 135

politicamente, de se organizarem para obterem fins práticos através de meios fundamentalmente políticos e etc, sendo portanto seres genuinamente políticos, são encarados pelo Estado e suas agências como homens sacro, logo, plenamente matáveis. Entender, como fez Foucault (2008), o conflito como inerente à vida humana e por consequência à política, ou, na famosa inversão da máxima clausewitziana do autor francês, “a política é a guerra por outros meios”. A questão que deve se pôr aqui é o que é violência, em primeiro lugar, e em segundo se é possível atingir algo como a “não-violência” e em terceiro lugar se a dicotomia violência/não-violência é interessante analiticamente ou se é só mais uma das ferramentas das classes dominantes. O conceito de violência para o coletivo CrimeThinc (2013) é “harm or threat that violates consent”, nesse sentido é violência quando a polícia remove famílias de suas casas em nome do Capital, é violência quando guardas armados protegem plantações e rebanhos inteiros de famélicos. Assim como também pode ser entendido como violência jogar bombas de gás lacrimogênio de volta para os policiais que as tacaram. Pode-se, então, chegar à conclusão de que não há “não-violência”, o que há são diferentes níveis de legitimidade. Então, segundo o coletivo, “instead of asking whether an action is violent, we might do better to ask simply: does it counteract power disparities, or reinforce them?”(CRIMETHINC, 2013) O discurso dicotômico de violento/não-violento, oferece um caminho fácil para clamar superioridade moral, podendo ser usada tanto pelo Estado quanto pelos desafiadores da autoridade estatal, porém frequentemente ao entrar nesta lógica e reclamar para si superioridade moral, reinforçam-se as hierarquias (CRIMETHINC, 2013). Legitimidade, novamente, é a chave para determinar o violento e o pacífico, e, como se pode esperar de todas as coisas no capitalismo, é distribuída desigualmente. Taxar grupos ou táticas de violentos tem resultado imediato: justifica a repressão estatal, que teoricamente tem o monopólio legítimo do uso da força. Obviamente a desligitimização e a estigmatização de movimentos sociais inteiros são recorrentemente utilizadas pelas classes dominantes e consequentemente pela mídia mainstream. “One consequence of the past several decades of self-discribed nonviolent civil disobedience is that some people regard merely raising one's voice as violent; this makes it possible to portray those who take even the most tentative steps to protect themselves against police violence as violent thugs.” (CRIMETHINC, 2013)

É como dizia Malcolm X: “Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo.” 136

Esta cadeia de opressões, no entanto, não se cristalizam sem gerar resistências e elas são de múltiplo caráter, presentes desde o âmbito cultural com a produção musical, poética, cênica ou plástica, até o âmbito da práxis política, com redes de auto-ajuda durante conflitos deflagrados entre facções ou entre elas e a polícia, com organização de redes de impactados pela violência, de protestos, processos coletivos, dentre outros, mas que também sofrem reações do Estado, que estabelece uma margem de dissenso consentido para os favelados, margem essa que é significativamente menor que a permitida à classe média. Quanto às produções culturais de resistência nos espaços preferenciais de criminalização pelo Estado e por suas agências policiais (favelas e periferias), contra justamente esta criminalização indiscriminada da pobreza elas são várias, apresentando-se nos mais variados ritmos, sendo em sua maioria samba, rap e funk. Há inúmeras críticas veladas em accounts sobre a vivência nestes locais de exceção, feitas por artistas residentes nestes rincões, como muitas das letras de funk, rap e hip hop nas grandes cidades brasileiras. Um bom representante desse grupo de produções culturais é o rapper niteroiense Black Alien, Gustavo de Nikity ou simplesmente Gus. O trecho reproduzido abaixo da música Estilo do Gueto do rapper niteroiense é bastante marcante da criminalização da pobreza pelas agências policiais (inclusive pelo barulho constante de uma sirene policial no fundo da faixa) nas periferias e favelas do Rio, onde todos são reduzidos à vida nua, onde a política tornou-se integralmente biopolítica, onde indifere-se o cidadão do homo sacer, veja: “Você se assusta com o barulho da bala? Eu aprendi desde moleque a adivinhar qual é a arma, isso não é novidade nessa parte da cidade A violência é comum e a paz é raridade (…) A polícia sobe aqui pra matar, pra morrer, pois quem mora por aqui não tem nada a perder (...) Justiceiros desfilam, fuzilam qualquer um Conselho que eu lhe dou é não marcar por aí A noite é traiçoeira, ela vai te engolir Sem deixar nenhuma pista, sem vestígios, enfim De onde eu vim, você também veio Só que eu sou nascido aqui no Rio de Janeiro ” Black Alien – Estilo do Gueto23

Ele deixa claro neste trecho que a violência produzida pelos confrontos patrocinados pela guerra às drogas é cotidiana, vivenciada permanentemente desde sua infância até a fase adulta, chegando inclusive, ele, a conhecer os tipos de armas utilizadas por narcotraficantes e 23 Vídeo com a música disponível em: e a letra disponível em: .

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por policiais nestes conflitos ao ouvir os estampidos delas durante os tiroteios. A polícia quando atua na região, é com o único fim de neutralizar, de eliminar as pessoas que, segundo o entendimento do Estado e da sociedade, são perigosas à normalidade e à ordem. Esta eliminação diária do refugo humano acontece sempre em nome da lei, do status quo, de forma legal e ilegal também. Legalmente usam-se tipificações legais como aquela encontrada na Lei de Drogas de 2006 para deliberadamente criminalizar os pobres, além de tipificações penais inexistentes na teoria, mas bem presentes na prática como os autos de resistência, que, em última instância, justifica e permite juridicamente o assassínio indiscriminado pelas agências repressoras do Estado de membros das classes preferencialmente criminalizáveis. Ilegalmente, há “justiceiros”, grupos de extermínio e milícias, todos eles bandos armados agindo à revelia da lei, apesar de justificarem sua atuação em nome da lei e supostamente para resguardar a lei, precisando, porém, para isso burlá-la, suspender temporariamente sua aplicação – recorrentemente num espaço geográfico bem delimitado – para “o bem maior”, a segurança coletiva, como, por exemplo, a eliminação cotidiana de pessoas consideradas potencialmente perigosas à sociedade. É o famoso slogan direitos humanos para humanos direitos, um completo nonsense jurídico. Outra denúncia implícita na letra do rap de Black Alien é que essas mortes infligidas por esses bandos armados à população favelada acontecem “sem deixar nenhuma pista, sem vestígios”, demonstrando claramente o desinteresse da polícia em investigar e solucionar esses casos, justamente porque provavelmente os autores dessas chacinas foram policiais agindo em nome da lei à revelia dela, além do know how que os policiais têm em encobrir os crimes que cometem, observando uma cidade que está claramente dividida, pelo menos no que diz respeito ao empenho da polícia para a resolução de crimes e do Ministério Público e da Justiça em denunciar e condenar os policiais criminosos. Por fim, ele se identifica com todas as outras pessoas que passam pelas mesmas privações de direitos que ele, falando que a única diferença entre ele e os outros guetificados é que ele é “nascido aqui no Rio de Janeiro”, deixando claro, portanto, que a rotina dele é vivenciado todos os dias por milhões de outros pessoas que vivem em favelas e periferias espalhadas pelo Brasil, não sendo este, portanto, um problema carioca, mas um problema brasileiro.

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5. SOCIEDADE DE CONTROLE NAS FAVELAS OCUPADAS DO RIO DE JANEIRO: O CASO DO CENTRO DE COMANDO E CONTROLE DA UPP ROCINHA 5.1.UMA ASCENDENTE MECÂNICA DE PODER: A SOCIEDADE DO CONTROLE

“No deserto me acho. Faço cobra morder o rabo. Escorpião virar pirilampo! Meus pés recebem bálsamos unguentos suaves das mãos de Maria irmã de Martha e Lázaro, no oásis de Bethânia. Pensou que eu ando só? Atente ao tempo! Não começa, não termina, é nunca, é sempre! É tempo de reparar na balança de nobre cobre que o Rei equilibra. Fulmina o injusto e deixa nua a Justiça!” Maria Bethânia, Carta de Amor, 2012. Para compreender como as mecânicas de poder típicas da sociedade de controle se instalam é preciso antes traçar um rápido histórico das modalidades de poder precedentes e como elas se engendraram umas nas outras para formar o híbrido que se chocou com o controle, gerando produtos completamente diferentes e regionalmente únicos. O controle está rizomaticamente disseminando-se pelo mundo, com capilaridade incrível e aceitação em níveis sem precedentes da população, que através da filiação à retórica oficial, assujeita-se de maneira extremada, deixando em segundo plano voluntariamente a privacidade e até mesmo os direitos humanos, princípios básicos para qualquer democracia. Portanto, a ascensão do uso das técnicas de controle em última instância põe em xeque a própria democracia. Daí a importância de deter-se mais nesta análise. Porém, antes de começar a análise em questão, é interessante ver as ressalvas e caminhos indicados por Michel Foucault para o estudo do poder, tema ao qual o autor dedicou toda a sua vida. Foucault, no livro Em defesa da sociedade (2002), propõe quatro precauções metodológicas no estudo do poder. Primeiramente, trata-se de analisar o poder, não pela sua legitimidade a partir de um centro, mas, sim, de observá-lo nas suas ramificações, no ponto em que ele se torna capilar, no conjunto de técnicas, aparelhos e saberes que ele se utiliza na sujeição. Ao invés de uma abordagem globalizante, observar a sujeição nas extremidades para 139

além da mera norma jurídica, para além dos seus fundamentos morais e teóricos, mas nos corpos institucionais em que ela se materializa, nas práticas que a constituem em um nível local. Ele oferece o seguinte exemplo: ao contrário de se buscar na lei a justificativa para a punição, observá-la na sua manifestação e forma, seja dos suplícios ao encarceramento. Em seguida, não se deve buscar o poder na intenção ou na decisão, como faz Karl Schmitt, mas na sua incidência direta sobre os corpos dos indivíduos. Não na deliberação oficial de um governante, mas nos processos pelos quais gestos, expressões, idéias são controlados de forma subcutânea. Trata-se de romper com o tipo de indagação que se pergunta quem, porque, em nome de que, se exerce o poder, que parte das multiplicidades para a forma geral, das células individuais para o corpo monstro do Leviatã. Pelo contrário, é necessário buscar a compreensão do conjunto de processos que formam efetivamente este corpo total, o “como” do poder e não o seu porquê. Procurar entender como a divergência amorfa é esculpida e moldada em uma unidade superior, e não o porquê desta escultura. A terceira precaução consiste em não supor o indivíduo enquanto uma mônada, um átomo, fechado e idêntico a si mesmo, sobre o qual a força homogênea de determinado grupo de aplica. O poder influi no interior dos indivíduos, criando-os enquanto sujeitos que já nascem sujeitados, e nesse ponto que ele realmente é efetivo. O individuo para Foucault não é ontologicamente fechado, unitário e autônomo no sentido kantiano, passivo ou ativo em uma relação de poder, agente de dominação ou agente dominado; o poder não se exerce sobre indivíduos; ele passa por eles (FOUCAULT, 2005). O sujeito já é um efeito do poder, funcionando enquanto ponto de transmissão do mesmo, em uma ampla rede, em uma cadeia de relações que efetuam a dominação materialmente. Desta forma, o poder não é exógeno ao sujeito, não é um fora que se exerce sobre ele. É justamente o que o constitui enquanto tal. A quarta precaução é a de não partir de uma análise descendente do poder, como as que o vêem como emanando do soberano ou equivalente democrático, mas sim, de uma análise que começa por baixo, nos aparelhos e modos do seu exercício. Ao invés de se indagar sobre a natureza abstrata do conceito de soberania, trata-se de investigar em que medida instituições como a escola, a psiquiatria, a polícia exercem de fato a dominação.

Em

detrimento de uma visão globalizante que limita o poder ao centro político, as suas relações formais com a sociedade, deve-se buscar no nível micro a efetuação concreta desse poder, na formação e docilização dos indivíduos. Partindo-se então destas precauções, começa-se a análise pela teoria da soberania. Assim sendo, é fundamental começar pelas definições clássicas de soberania, representadas 140

por Jean Bodin e Thomas Hobbes e posteriormente enveredar nas análises de Foucault sobre o discurso de ambos os autores. Jean Bodin foi um jurista francês, o primeiro a definir a soberania de forma sistemática, em seu Six books of the Commonwealth. Sua vida foi marcada pela fragmentação política de seu tempo, pelas guerras religiosas que dividiram a França e embebedaram de sangue o seu solo. Para o autor a soberania é “o poder absoluto e perpétuo de uma república”, inalienável, irrecorrível. O soberano é o Deus na terra, Deus feito em carne e subordinado apenas ao do céu. A soberania é absoluta e perpétua, pois em sua essência não pode residir em nada além de si mesma; se a autoridade soberana emanasse de qualquer outra fonte, não seria soberana, pois estaria sujeita àqueles que a investem. As leis que o limitam são apenas as Divinas e naturais; as leis dos homens não se aplicam a ele. Bodin argumenta que não há obrigação em nenhuma matéria que proceda do livre arbítrio daquele que a garante (BODIN, 1955). Uma vez que o soberano dita a lei e dá ela a sua força, ele não pode a ela estar subordinado. Ele não é um delegado do povo ou de uma elite, não tem sua autoridade proveniente de nada além de si mesmo e de Deus; do contrário seria apenas um magistrado, um representante, desprovido do perpétuo do poder soberano, passível de perda de autoridade mediante o arbítrio dos que o colocaram lá ou da expiração de seu mandato. Sua autoridade é em si mesma, não derivando de nada além de si. Somente a Deus o príncipe deve satisfações, e a ninguém mais. Thomas Hobbes (2010), pioneiro da idéia de contrato social, inaugura junto desta, dois conceitos fundamentais à teoria política desde então: a representatividade e a proeminência do individuo. Neste aspecto distingue-se de Bodin, fundamentando a soberania no sujeito comum. Ele cria uma situação ideal, não histórica, denominada estado de natureza. Os indivíduos se encontrariam em um contexto a-estatal, a-social, no qual se desenrolaria a luta de todos contra todos; cada um nasce com o direito natural a todas as coisas, só podendo garanti-lo pela suas capacidades pessoais. O homem nesta situação agiria da forma que bem lhe aprouvesse na busca da própria sobrevivência. Não haveria autoridade que constrangesse o arbítrio individual. Este estado de guerra permanente torna a humanidade estéril às artes e às ciências, pela preocupação perpétua com a própria sobrevivência, pelo medo da morte violenta nas mãos do próximo. A vida humana no estado de natureza é solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.( Hobbes, 2010) Os homens, saturados pela guerra constante, assumiriam então, um contrato que engendraria a sociedade transferindo de cada parte seu direito e liberdade originários para o 141

soberano em troca de segurança. A guerra e o terror seriam os agentes propulsores do Estado. Ele representaria cada parte constituindo-se enquanto o todo, fonte última da autoridade, o grande Leviatã. Por ser o representante de cada membro contratante, ir contra ele é ir contra si mesmo; a sedição de direitos é perpétua e o seu poder absoluto, referente apenas ao contrato que o fundou. Divergindo da maior parte dos analistas de Bodin e Hobbes, o filósofo Michel Foucault propõe uma abordagem distinta em seu trabalho, divergindo na concepção de Estado de natureza e sobre o papel da guerra. Foucault, em uma das suas aulas no Collège de France, oferece uma visão da teoria hobbesiana que não supõem a guerra como fator principal. O estado de natureza, a guerra de todos contra todos, não constitui, segundo ele, para Hobbes, uma guerra efetiva, mas, sim um estado de guerra. Por se situar em um plano referencial teórico e não em uma dada realidade histórica, o estado de natureza não é um momento anterior ou futuro, mas uma constante no exercício de poder, um plano de fundo por detrás do Estado. Ele tem sua causa na igualdade dos indivíduos imersos nele, na qual há pouca diferença de força física entre eles. O medo leva a um cálculo, no qual se percebe que esta pouca disparidade não permite que se assegure apenas de si próprio. O mais forte, jamais por si só, poderia se precaver plenamente de uma revanche dos mais fracos; e estes, não são tão fracos ao ponto de simplesmente cederem sem embate. Através desse cálculo a guerra direta é evitada. Não há derramamento de sangue no estado de natureza; nela acontece apenas um jogo de representações, intimidações, ameaças. Ele define três elementos deste estado no pensamento de Hobbes:

“Primeiro, das representações calculadas: eu me represento na força do outro, represento-me da mesma forma que o outro se representa em minha força, etc. Segundo, das manifestações enfáticas e acentuadas de vontade: demonstra-se que se quer a guerra, mostra-se que não se renuncia a guerra. Terceiro, enfim, utilizam-se táticas de intimidação entrecruzadas: receio tanto fazer a guerra que só ficarei tranquilo se você recear a guerra pelo menos tanto quanto eu - e mesmo, na medida do possível, um pouco mais.” (FOUCAULT, 2002)

Isso engendraria o Estado na medida em que os indivíduos, por sua vontade de viver, se representam no soberano. Representam-se nele de forma que o soberano valha por cada parte. Cada indivíduo nele se encarna em uma soma orgânica de milhares de células, das quais se constitui o corpo-monstro do Leviatã. Dessa forma, ir contra ele, seria ir contra a si próprio e contra todos. A obediência, assim, se torna logicamente justificada, e a dominação devidamente legitimada. 142

Para Hobbes há dois tipos de soberania constituídos nesse movimento: a de instituição e a de aquisição. A primeira é aquela na qual as partes engendram um Estado pela vontade de viver, pela qual renunciam a sua situação natural em prol da manutenção da vida. Não haveria então, nessa situação, embate direto, mas apenas cálculo e representação. É a instituição do contrato. A segunda, a de aquisição, é característica da anexação de um Estado pelo outro. Nesse caso, haveria, de fato, guerra, com exércitos e sangue. Após a dominação de um povo por uma nação estrangeira, no que se fundaria a soberania uma vez que esses indivíduos sujeitados não participaram do contrato? Hobbes responde que através de um novo contrato, motivado pela vontade das partes derrotadas de evitarem a sua aniquilação. O contrato se dá na medida em que o novo soberano ocupa o lugar do antigo; no seu corpo se encarnam as partes que outrora investiam no do passado. Isso corrobora o caráter constante do estado de natureza e a não-historicidade do momento fundador. É isso o que acontece em alguma instância nas UPPs, como afirma Ignácio Cano sobre as unidades de polícia pacificadora serem os “novos donos do morro”. Em ambos os casos, encontra-se o mesmo móbil inicial: o da vontade de renunciar ao medo, a escolha da vida em vez da morte. Acrescenta Hobbes a sua teoria da soberania, o direito primevo que um progenitor tem sobre o seu filho infante, em que ele pode matá-lo facilmente, sua vida se encontrando completamente a sua mercê. Este direito parte de uma renúncia da parte da criança de um direito, em prol do seu pai ou mãe. A renúncia não é consciente, não é verbal; é simplesmente a preferência da vida a morte, a vontade de viver. Nesse sentido, é análogo ao contrato e renúncia que fundam o Estado. Essa segunda definição de soberania é uma resposta de Hobbes aos embates de sua época, marcada por guerras civis e religiosas. O direito monárquico se baseava não no indivíduo ou no direito natural, mas no direito de conquista. Os interesses religiosos e políticos em conflito se articulavam na distinção entre os dominadores normandos e os conquistados saxões; a identificação discursiva dos membros do Terceiro Estado, com os últimos, e dos aristocratas, com os primeiros. O Rei reinava pelo direito do seu ancestral, que pelas armas subjugara um povo que pela sua derrota deveria ser eternamente sujeitado. Quando fala de soberania de aquisição, Hobbes argumenta que essa distinção entre perdedores e vencedores, normandos e saxões, não tem mais nenhuma aplicabilidade após o momento da guerra. Nos tempos de paz, o novo contrato coloca todos em posição de igualdade. Estaria assim, a totalidade dos indivíduos representada no soberano, em uma sujeição que se baseia 143

na lei, pela razão e direito natural, e não na guerra. Desta forma, podemos observar que a soberania em Hobbes é um discurso de Verdade produzido com a finalidade de justificar determinada mecânica de poder, reportando-se a uma demanda local de seu contexto político. O centralismo e absolutismo monárquico são uma resposta a fragmentação da sua sociedade, as multiplicidades conflitantes que se embatiam na Guerra Civil Inglesa. Foucault argumenta que a teoria da soberania, como é claro pela sua etnologia, se liga ao corpo do soberano. A figura do rei é central na construção política do Ocidente, sempre se tratando dos seus direitos, do seu poder, e de seus limites eventuais (FOUCAULT, 2005). Tanto os juristas que o defendiam, tais como os que o criticavam e visavam impor-lhes limites, se utilizavam deste conceito. Tratava-se de fundamentar o poder com base na adequação dele à princípios dogmáticos, tais como as leis da natureza ou a lei divina. A forma e o exercício do poder real eram as preocupações centrais dos juristas. Não à toa, eles eram pagos pelos reis. Nesse sentido, a proeminência no discurso jurídico renascentista do Direito Romano, com o seu dominus, imperius, majestas, em detrimento do descentralismo político bárbaro, é um indicador da centralidade da figura do Rei conforme ela vai se desenvolvendo, tanto efetivamente, na consolidação do Estado-moderno, quanto juridicamente na produção do discurso de verdade que acompanha esse mesmo processo. A teoria da soberania, sob uma perspectiva histórica, realizou três grandes papéis. O primeiro seria referente à mecânica do poder feudal, posteriormente transposta para a do poder absoluto, ao qual serviu de instrumento e justificativa. O segundo foi durante as guerras que se seguiram à Reforma, tendo servido a ambos os lados, tanto para legitimar a expansão do poder real em detrimento do papal, tanto quanto para impor-lhes limites, como na defesa da liberdade religiosa. Não coincidentemente, que é desse período que escreve Jean Bodin. O conceito de soberania permaneceria sendo utilizado nesse sentido ao longo do Século XVII, sofrendo uma inflexão no século seguinte, quando o poder monárquico será contestado pelo Iluminismo. A centralidade do rei seria substituída pelo do direito do povo, exercendo aqui a soberania o seu terceiro papel. A partir de então, ela se ligaria a uma nova mecânica de poder, o disciplinar, característico da sociedade burguesa do século XIX. Esse novo mecanismo de dominação viria articulado com a idéia de Nação e do discurso permanente de guerra, de conflito de raças, classes, estamentos. A partir desse novo papel, a perspectiva jurídico-filosófica do poder soberano seria substituída por uma perspectiva histórico-politica, na qual teriam palco os discursos raciais, marxistas, e da autonomia nacional. 144

Para Foucault, a teoria da soberania procura instaurar um círculo do sujeito ao sujeito. Parte-se de um sujeito natural, dotado de potências e capacidades rumo à unidade do poder que necessita ser fundamentada, retornando ao sujeito na legitimidade da sujeição na qual ele se insere e deve respeitar; do indivíduo natural ao soberano no momento do contrato, e do soberano ao individuo através da lei e da obediência. Este é o ciclo que a teoria da soberania tenta necessariamente constituir, mostrando como um sujeito pode e deve se tornar sujeito, mas entendido como elemento sujeitado em uma relação de poder (FOUCAULT, 2002); é a tríade, sujeito, lei, e unidade do poder. Para ele, a teoria trabalha com um conjunto de poderes entendidos como potencialidades, capacidades, possibilidades (FOUCAULT, 2002), que necessitam de uma unidade transcendente de poder para operar; o soberano (ou o Estado) efetua estes poderes, é sob o seu corpo que eles se inscrevem e através dele que se realiza a síntese entre as capacidades naturais e a necessidade de sujeição. Uma análise que visa entendê-lo em sua natureza e exercício pleno deve, para Foucault, deixar de lado o conceito jurídico de soberania - estatal. Ela não dá conta de apreender os poderes em sua multiplicidade imanente, no conjunto de relações que o percorrem, nas múltiplas tecnologias, instituições, saberes, que antes de reunirem sujeitos em corpos mitológicos totais dos quais o poder emanará para sempre, formam os sujeitos enquanto tais em uma relação de sujeição ampla, difusa e polimorfa. Ademais, do século XVII para cá, as técnicas de poder mudaram deveras de feição, trazendo consigo novos saberes e práticas coercitivas que escapam ao domínio da teoria da soberania. No século XVII, surge uma nova mecânica de poder com técnicas, instrumentos e aparelhagem muito distintos, e, em certa medida, incompatíveis com as relações de soberania. Ela agia sobre o território, sobre as riquezas e sua extração bruta; esta nova economia de poder, por sua vez, age, sobretudo, sobre os corpos dos súditos . Essa nova mecânica de poder se interessa muito mais em extrair tempo e trabalho dos corpos do que em extrair diretamente riqueza da terra, baseando-se principalmente na vigilância e na disciplinarização, na forma de obrigações crônicas que sujeitam os corpos, tornando-os dóceis, produtivos e úteis. É de fato:

“Um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita.” (FOUCAULT, 2002)

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A soberania e poder disciplinar funcionam de maneiras diferentes. O que se vê, portanto, é um esforço institucional do Estado desde o século XVII direcionado ao fortalecimento do poder disciplinar, à uma crescente racionalidade e economia do poder; muito mais preocupado em controlar os corpos do que riquezas ou a terra em si.

“A teoria da soberania é o que permite fundamentar o poder absoluto no dispêndio absoluto do poder, e não calcular o poder com o mínimo de dispêndio e o máximo de eficácia. Esse novo tipo de poder, que já não é, pois, de modo algum transcritível nos termos de soberania, é, acho eu, uma das grandes invenções da sociedade burguesa (...).. Esse poder não soberano, alheio portanto à forma da soberania, é o poder disciplinar. Poder indescritível, injustificável, nos termos da teoria da soberania, radicalmente heterogêneo, e que deveria ter levado normalmente ao próprio desaparecimento desse grande edifício jurídico da teoria da soberania.” (FOUCAULT, 2002)

Apesar da oposição aparente entre soberania e disciplina, as duas técnicas de poder se mostraram simbióticas no século XVII, uma se acoplando a outra ao invés de suplantá-la. Esse fato se deve principalmente por duas razões: nos séculos XVIII e XIX, momento de constantes embates entre monarquias e repúblicas, o princípio da soberania foi utilizado constantemente pelos opositores das monarquias para legitimar suas reivindicações pelo governo do Estado e para contra-arrestar possíveis obstáculos impostos ao desenvolvimento e à consolidação do poder disciplinar. O conceito de soberania permitiu, em última instância, que mecanismos de disciplina fossem encampados pelas leis, mascarando as técnicas de dominação, salvaguardando o direito do Estado de usar tais instrumentos disciplinares em nome de sua soberania. Há, pois, um direito público baseado na democratização da soberania, onde todos delegam suas soberanias individuais ao Estado (todos seriam virtualmente parte do soberano) de um lado, e tramas cerradas – nas leis - de coerções disciplinares que garantem a coesão social em benefício da burguesia do outro. Cada máquina de coerção se utiliza dos dispositivos herdados da anterior, resignificando-os, dando-os uma nova roupagem segundo as necessidades de sua engrenagem. No século XIX uma nova máquina nasceria, reunindo em si elementos das precedentes em uma outra mecânica de sujeição. No Século das Luzes, o poder disciplinar se sofistica ainda mais, passando a regular não só os corpos, mas a própria vida dos súditos do Estado, em uma estatização do biológico, na terminologia de Foucault. Na teoria clássica de soberania, um dos fundamentos é o direito de vida e de morte. Porém, o poder soberano clássico só poderia se exercer sobre a vida no momento em que decreta a morte; é na morte que se regulava a vida, daí o fausto pedagógico 146

do suplício como demonstrado em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2004). É o direito de matar que seqüestra em si a essência do direito soberano sobre a vida; somente enquanto poder constante de morte que o soberano tem direito sobre a vida. O direito de soberania, portanto, é o famoso direito de deixar viver, fazer morrer. O poder disciplinar dos séculos XVII e XVIII assegurava a distribuição, organização, vigilância e treinamento dos corpos individuais, baseava-se em técnicas de racionalização e de economia estrita de poder, aplicando-se diretamente aos corpos, assujeitando-os, moldandoos, tornando-os dóceis. Durante o fim do século XVIII e no XIX nota-se a ascensão de uma outra tecnologia do poder, já citada neste trabalho, diferente da disciplina, mas que não a nega, não a supera, pelo contrário, a modifica e se embute a ela. Diferentemente da anátomo-política (outra denominação da politização dos corpos assujeitados pelo poder disciplinar), esta nova tecnologia de poder aprofunda seu locus de ação, não mais age somente sobre os corpos, mas sim sobre a própria vida dos sujeitos. É a vida que esta nova mecânica de poder regula e politiza, não mais somente o corpo. Foucault chama esta nova técnica de Biopolítica. O biopoder, além de ser responsável pela inserção controlada dos corpos à produção, foi também utilizado para que se ajustassem os fenômenos populacionais orgânicos aos processos econômicos. Abandona-se, portanto, nos séculos XIX e XX o antigo mote da soberania “fazer morrer, deixar viver” para outro, que, num primeiro momento pode parecer sem sentido, mas que é a definição da biopolítica como tecnologia de poder: fazer viver, deixar morrer. A natureza dos fenômenos levados em consideração pela biopolítica é essencialmente coletiva, de massa, na medida em que se referem à população como um todo. Leva-se em consideração quaisquer fenômenos coletivos que tenham efeitos políticos ou econômicos em nível massivo. Estes fenômenos são geralmente aleatórios individualmente, mas constantes em nível de coletividade, tendo quase sempre uma duração considerável. Essa é mais uma diferença da biopolítica com relação à disciplina: a primeira trata de contingências aleatórias, a nível de massa, com duração considerável; já a segunda se relaciona sobretudo com os corpos individuais, através de treinamentos específicos, para fins bem delimitados, realizados diretamente, através de saberes localizados, sobre os corpos.

É o que diagnostica Deley

de Acari de forma maestral e simples sobre a biopolítica, sem provavelmente ter o conhecimento formal sobre o que esta categoria denomina:

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“Estou convencido de que hoje política de saúde, política de reprodução humana, é uma política de segurança pública. Eles acreditam que o planejamento familiar é uma forma de reduzir a criminalidade em médio prazo... Não dá pra acreditar, como Beltrame diz, que o feto que está na barriga da mãe já é bandido.” 24 (MOREIRA ALVES, 2013).

.

As três tecnologias de poder apresentadas até aqui, portanto, agem sobre loci distintos:

a soberania sobre a vida pela morte, território e extração de riqueza; a disciplina sobre o controle dos corpos através da vigilância do capataz, da divisão do tempo e da educação, para a inserção controlada dos corpos ao sistema econômico; e a biopolítica através da regulação da vida e de seus processos biológicos culminando, em última instância, na negação da morte, no fazer viver e deixar morrer. Gilles Deleuze e Félix Guattari para além de Foucault, esquematizam uma nova configuração das relações de poder e suas tecnologias mecânicas após a disciplina foucaultiana: o controle. No artigo “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle” (1992) indicou alguns aspectos que diferenciariam os dois tipos de mecanismos de poder. Para os autores o que Foucault descrevia estava situado até a Segunda Guerra Mundial e, daí em diante, com o declínio da disciplina, ascende então o controle. Assim como Foucault, os autores vêem o enclausuramento como operação fundamental da sociedade disciplinar, a partir da divisão do espaço em meios fechados como prisões, escolas e fábricas, e ordenação do tempo de trabalho. A esses processos os autores chamaram de moldagem, já que um molde fixo e determinado poderia ser aplicado às mais diferentes formas sociais. No que diz respeito à sociedade de controle, a moldagem deixaria de ter espaço central, sendo então a Era da modulação. Essa mudança se dá basicamente porque a sociedade de controle é marcada pela interpenetração dos espaços, pela suposta ausência de limites definidos, formando-se então uma rede, e pela representação do tempo como algo contínuo, sem fim, onde os indivíduos estariam sempre no meio, com, por exemplo, dívidas impagáveis através do crédito, onde a dívida é feita antes mesmo do ato da compra. O que haveria, portanto, segundo Deleuze, seria uma espécie de modulação constante e universal que atravessaria e regularia as malhas do tecido social. Além disso, Deleuze vê como típico das sociedades disciplinares dois pólos: a assinatura, que indica o indivíduo, e a matrícula, que indicaria a posição do indivíduo na 24 Em 2008, Beltrame declarou no Fórum de Segurança Pública, que “as crianças das favelas já surgem do ventre de suas mães criminosas por conta do ambiente ao redor, uma vez que nele seria tão normal ver bandidos empunharem armas automáticas como pessoas utilizarem telefones celulares”. Condena-se a favela como berçário de bandidos, reforçando o discurso centenário sobre estes locais e seus habitantes. É uma clara tentativa de justificar o injustificável: o assassinato indiscriminado de jovens favelados.

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massa. Na sociedade de controle o essencial seria uma cifra, um código, uma senha. A linguagem digital é genuinamente uma das tecnologias de poder desenvolvidas no âmbito do controle, pois é feita de cifras, que marcam o acesso ou a recusa a informações e pertenças. Essa passagem altera inclusive a identidade. Em relação à cifra, o indivíduo passa a ser divisível de acordo com o estado de sua senha, se é ou não aceita. As massas, desejo de disciplinarização biopolítico, tornam-se amostras, dados ou mercados que são rastreados, cartografados e analisados para que padrões de comportamento repetitivos possam ser percebidos e assim categorizados. Os dispositivos de controle obtém informações das mais variadas ações dos indivíduos, propriedades das mais variadas agências estatais e empresas privadas para então formar padrões de composição e acesso, modus operandi da sociedade de controle. O conteúdo em si é colocado em segundo plano em escala de importância. Isso se deve ao fato de que enquanto os conteúdos apontam para as pessoas, para os indivíduos, os padrões de composição e acesso remetem aos fluxos de ações desses indivíduos, como códigos digitais dentro de uma amostra. A isso também se soma a forma como as sociedades estruturam suas informações, ao passo que na disciplina as informações seriam verticais e hierarquizadas, o acesso à informação dependeria de posições hierárquicas no sistema e elas seriam compartimentalizadas, assim sendo cada instituição, com seu saber específico, detém informações como se fizessem parte do seu próprio espaço físico, como se fossem posses destas agências. Há, portanto, uma intensa regulação do fluxo de informações, com baixo compartilhamento de informações. No controle, por sua vez, o poder seria cada vez mais ilocalizável, difuso, pois estaria disseminado nos nós da rede, seria horizontal e impessoal, e, portanto, facilmente acessado e compartilhado entre as agências do Estado, ONGs e empresas. Portanto, enquanto na disciplina o campo de concentração era aquele da experiência nazista, no controle o campo de concentração não tem muros ou grades eletrificadas, apesar de ter guardas de fronteira e limites bem determinados de acesso ou não a espaços, informações e até mesmo formas de sociabilidade. É, portanto, típico do controle o confinamento em espaço aberto, sem muros, como nomeia Acácio Augusto (2012), penalizações a céu aberto. Como afirma Costa (2004) “nenhuma forma de poder parece ser tão sofisticada quanto aquela que regula os elementos imateriais de uma sociedade: informação, conhecimento, comunicação”. Para compreender a forma como essas sociedades de controle se engendram, os autores recorrem ao conceito de rizoma. Deleuze e Guattari (2000) na introdução do Mil Platôs volume 1, segundo a edição brasileira que separou o livro em 5 partes, aludem à natureza rizomática do pensamento humano e, em última instância, a das sociedades de controle. Para tal, caracterizam o rizoma, começando pela própria problematização da questão 149

da autoria na literatura, usando como referência eles mesmos, seus pseudônimos e seus livros. Na verdade, eles estão introduzindo o conceito de agenciamento, um pressuposto para o conceito de rizoma. Agenciamentos pressupõem o descentramento do sujeito, são, portanto, parte de uma interpretação pós-hermenêutica da realidade, que entendem como múltipla, contingente e dividual. É como põem: “Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus para movimentos geológicos. Num livro como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linha e as velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal agenciamento e, como tal, inatribuível (...) Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade (...) Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. ” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

O que deve ficar claro é que apesar do exemplo dado ter sido o livro, esta é a definição ampla de agenciamento. É devir, movimento puro, e estes movimentos estão presentes como parte integrante da esquizofrenia contemporânea disseminada rizomaticamente, como é assim chamado pelos autores o capitalismo contemporâneo. Agenciamentos são multiplicidades, linhas, estratos e segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, construção, consistência e seleção de corpos sem órgãos e, sobretudo, sua convergência com outros agenciamentos maquínicos. Portanto, para além das interpretações, significados e significantes, o ofício da escrita é na verdade um esforço de cartografia – reconstituindo todas estas regiões do agenciamento e tudo o que há fora dele, já que agenciamentos não existem per se, só em contato com outros agenciamentos, só em fluxo. Haveria no entanto tipos de interpretação do homem e da sociedade que poderiam ser explicados recorrendo a imagens básicas da biologia: as estruturações das raízes e caules. Encara-se assim a árvore como a imagem do mundo e a raiz como imagem da árvore-mundo. A primeira análise deles é sobre o livro-raiz, caso mais simples, com “inferioridade orgânica, significante e subjetiva”. É a concretização do Uno que se torna dois, o autor e seu livro, através da reflexão do sujeito. Ou na figura da árvore, a raíz e a parte visível da árvore. A esta 150

dicotomia, sucessiva divisão subjetiva binária, chamam Lei do Uno. A lógica binária é, portanto, o anima do complexo árvore-raiz. Isto implica dizer que por esta lógica não renunciar à dicotomia, nega, por consequência, a multiplicidade. Apesar de sistemas rudimentares semelhantes a este existirem na natureza, Deleuze e Guattari indicam que as formas naturais são mais complexas, pois apesar da necessidade de uma unidade, uma totalidade coesa e principal, dela partem raízes não necessariamente binárias, dividindo-se em três, quatro, cinco..., mas sempre estruturando-se e sustentando-se a partir do pivô, deste núcleo Uno que suporta tudo o que é secundário. Nada se altera quando as relações em questão são biunívocas, quando há a existência de sucessivos círculos centrais que subdividem-se de forma pivotante, pois, apesar da aparente multiplicidade, reconhecem totalidades separadas, que pode existir isoladas umas das outras, com organicidades próprias e autônomas, apesar de manter uma relação necessária com o complexo árvore. Renega-se assim novamente a multiplicidade, evidenciando a redundância da análise de ambos os casos. A segunda análise recai sobre o sistema-radícula ou raiz fasciculada, da qual, segundo os autores, “nossa modernidade se vale de bom grado” (DELEUZE & GUATTARI, 2000). Neste caso, a raiz central ou o pivô abortou, destruindo sua extremidade. Com este acontecimento, as células-tronco de suas extremidades se desenvolvem rapidamente, enxertando-se assim uma multiplicidade imediata – não específica, podendo tomar diversos caminhos de crescimento e configuração - de raízes que logo se desenvolvem. Contudo, neste modelo, apesar da aparente multiplicidade, sua unidade subsiste como possível, passada ou por vir, construindo uma totalidade mais extensiva que as anteriores, mas que ainda assim compõe uma unidade tácita. É como põem: “É neste sentido que a obra mais deliberadamente parcela pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande Opus. A maior parte dos métodos modernos para fazer proliferar séries ou para fazer crescer uma multiplicidade valem perfeitamente numa direção, por exemplo, linear, enquanto que uma unidade de totalização se afirma tanto mais numa outra dimensão, a de um círculo ou de um ciclo. Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

É por isso que afirmam que o sistema fasciculado não rompe com a lógica binária, com a complementariedade entre sujeito e objeto. A unidade é a todo tempo impedida no objeto, mas um novo tipo de unidade triunfa no sujeito. Assim sendo, o sistema-radícula mantem somente a aparência de multiplicidade, quando em essência reproduz a lógica dicotômica, mesmo que de forma desinencial. Sabiamente resumem: “Estranha mistificação, 151

esta do livro, que é tanto mais total quanto mais fragmentada”. (DELEUZE & GUATTARI, 2000) Como estes dois modelos de raiz-árvore, segundo os autores, não conseguem dar conta da multiplicidade, eles formulam o a priori do múltiplo enquanto categoria. Indicam, assim, que, para fazer o múltiplo, não se pode acrescentar dimensões superiores, criando hierarquias entre áreas da raiz, deve-se, contrariamente, subtrair o uno do múltiplo e finalmente fazer do uno parte efetiva do múltiplo - “com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1” (DELEUZE & GUATTARI, 2000). A este sistema cuja unidade está sempre subtraída de si mesma para compor o múltiplo, dá-se o nome de rizoma. O rizoma é um sistema completamente diferente da raíz ou do sistema-radícula previamente apresentados, apresentando-se de muitas maneiras, sem resguardar relações binárias, dividindo-se e espraiando-se sobre novas áreas de forma verdadeiramente múltipla. Pode possuir diversas formas, desde sua extensão superficial ramificada para todos os lados, até potenciais cristalizações pontuais, que formam nódulos – no exemplo da biologia bulbos ou tubérculos –, que, por sua vez, reorganizarão toda a disposição do rizoma, como ficará claro mais a frente. Justamente por ser múltiplo, é impossível dar conta de todas suas possibilidades no real através de uma única representação gráfica, por isso, a seguir, encontrase um modelo geral da estrutura biológica mais recorrente dos caules ou hastes rizomáticos, que não tem a ambição de explicar o todo, mas a de tornar mais fácil a compreensão da disposição do múltiplo:

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Figura 13: Caule Rizomático.

Fonte: Desenho disponível em: .

No entanto, para operacionalizar o uso teórico deste sistema de hastes subterrâneas, os autores acreditaram ser necessário enumerar as características aproximativas do rizoma, para melhor entendê-lo e diferenciá-lo das outras representações do mundo que não dão conta da multiplicidade. São, portanto, os seis princípios de um rizoma os: da conexão e da heterogeneidade, de multiplicidade, de ruptura a-significante, de cartografia e decalcomania. Os princípios de conexão e heterogeneidade estabelecem que qualquer ponto do rizoma pode e deve estar ligado com quaisquer outros pontos. Para explicar esta fórmula, pressuposto de qualquer sistema rizomático, os autores se valem da língua. Segundo eles, num rizoma cadeias semióticas de todo tipo são ligados a modos de codificação bastante diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas e por aí continua. “Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias (...) A língua é, segundo uma fórmula de Weinreich, “uma realidade essencialmente heterogênea”. Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se como manchas de óleo (...) Um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros. Uma língua não se fecha sobre si mesma senão em uma função de

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impotência.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

Portanto, pode-se afirmar com certeza que quanto mais interconectados forem os pontos de um rizoma, quanto maior for o fluxo entre estes pontos completamente assimétricos do sistema, maior será a dinamicidade e a organicidade deste conjunto vivo de relações. Mais longevidade e alcance tende a ter o rizoma. O terceiro é o princípio da multiplicidade e - como de certo modo já foi explicado anteriormente quando a multiplicidade foi entendida como divisor de água entre os sistemas precedentes e o rizoma -, para ficar claro, ela não nega o uno, o abarca. Ela nega qualquer tipo de totalização. Pressupõe, portanto, que o múltiplo seja efetivamente tratado como substantivo, sem relações com o uno seja como sujeito ou objeto. A efetiva multiplicidade, assim sendo, é genuinamente rizomática, enquanto as multiplicidades aparentes não passam de arborescências. “Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade) (...) Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

Assim sendo, pode-se afirmar que para ser rizoma, tem que ser múltiplo, e em sendo múltiplo, não se admite que haja uma dimensão suplementar ao número de suas linhas, não tolera sobrecodificações. Então, os autores chegam a conclusão de que todas as multiplicidades são planas, uma vez que completam todas suas dimensões, não havendo linhas de referência como no caso da Lei do Uno, da unidade. Dá-se a isso, então, o nome de plano de consistência das multiplicidades. Quanto maior o número de conexões, maior será este plano. No entanto, ainda chamam atenção, os autores, para o fato das multiplicidades definirem-se pelo fora, pela linha de fuga, pela desterritorialização, mudando assim de natureza a cada nova conexão estabelecida, ressignificando-se, reorganizando-se. Toda suplementariedade será tragada pelo múltiplo, sob a pena de, senão fazê-lo, tornar-se dicotômico, reproduzindo as arborescências do Uno, abortando o rizoma em nome de estruturas menos móveis. Assim sendo, dizem “o plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades” (DELEUZE & GUATTARI, 2000). Mais detidamente nos termos empregados pelos autores:

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“A linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

O quarto pressuposto dos rizomas é a ruptura a-significante, contra os cortes que se propõem carregados de significados típicos das estruturas. Um rizoma pode ser e é rompido em qualquer lugar e, da mesma forma, retoma seu fluxo em qualquer outra linha de seu plano de consistência. É esse o caso de um formigueiro que raramente acaba, apesar de ser plenamente possível atacar regiões da colônia, que é retomada em um ou várias outras linhas de crescimento e expansão, as formigas, assim como os ratos são exemplos de rizoma animal. Todo rizoma apresenta estas rupturas, esses cortes que redefinem e retroalimentam o rizoma. Ele pressupõe sua transformação contínua e só enquanto transformação e movimento pode ser entendido como rizoma. É importante dizer que todos estes cortes e transversalidades possíveis e recorrentes em um rizoma provocam novas conexões e novas heterogeneidades, sendo em verdade, as rupturas a-significantes as maiores indicadoras da “saúde” de um rizoma. As rupturas neste caso criam novas conexões. “Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

Pode-se dizer, de outra forma, ainda sobre as rupturas a-significantes, que toda territorialização pressupõe em si uma desterritorialização, não sendo um o inverso do outro, mas sim sendo um parte efetiva do outro. Para explicitar melhor esta relação necessária, os autores se utilizam da relação entre vespa e orquídea, um recurso belo e bastante elucidativo do devir: “A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orquídea imita a vespa cuja imagem reproduz de maneira significante. Mas isto é somente verdade no nível dos estratos – paralelismo entre dois estratos determinados cuja organização vegetal sobre um deles imita uma organização animal sobre o outro. Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da

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orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

O mimetismo que muitos pressuporiam ser o caso na relação entre vespa e orquídea é na verdade o modelo arborescente de explicação do caso, reproduzindo o binarismo simplório para o que eles crêem ser de natureza completamente distinta. Por fim, os autores resumem em poucas palavras a natureza segmentar e expansora do rizoma: “Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas. Conjugar os fluxos desterritorializados. Seguir as plantas: começando por fixar os limites de uma primeira linha segundo círculos de convergência ao redor de singularidades sucessivas; depois, observando-se, no interior desta linha, novos círculos de convergência se estabelecem com novos pontos situados fora dos limites e em outras direções. Escrever, fazer rizoma, aumentar seu território por desterritorialização, estender a linha de fuga até o ponto em que ela cubra todo o plano de consistência em uma máquina abstrata.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000')

Os dois últimos princípios são o de cartografia e o de decalcomania, para resumir estes princípios os autores usaram como primeira frase “um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo” (DELEUZE & GUATTARI, 2000), colocando seu modelo explicativo em contraposição clara ao estruturalismo. Dizem que o rizoma é contrário a qualquer eixo genético ou estrutura profunda, pois ambos descambam na reconstituição de uma unidade, pois o primeiro é um unidade pivotante objetiva a partir do qual se desenvolvem círculos sucessivos, sempre subsidiários, no entanto, do pivô; e o segundo pressupõe a possibilidade de decompor o todo em partes constituintes, que da mesma forma, porém seguindo o caminho inverso, podem recompor a estrutura, o todo, assim sendo a unidade reconstituída em uma dimensão transformacional e subjetiva. Com isso, “não se sai do modelo representativo da árvore ou da raiz fasciculada.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000). São tanto o eixo genético, quanto a estrutura profunda, princípios de decalques25, reproduzidos em aparências diferentes, mas resguardando a mesma visão de mundo arborescente. Árvores são sobretudo decalques:

25 Decalque é a cópia de uma imagem em determinado papel para tornar possível a reprodução desta imagem em outro lugar,.

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“Tanto na Linguística quanto na Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de correlações intersubjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

O rizoma, ao contrário da árvore, não é decalque, é mapa. “A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa” (DELEUZE & GUATTARI, 2000).Segundo os autores, a diferença entre o mapa e o decalque é que o primeiro está inteiramente voltado para uma experimentação do real, enquanto o segundo reproduz o inconsciente fechado sobre ele mesmo. O mapa não reproduz o inconsciente, ele o constrói. É aberto, conectável, desmontável, reversível, modifica-se a todo tempo. Pode adaptar-se a formações sociais, indivíduos, grupos e etc. Como dizem os autores: “Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas” (DELEUZE & GUATTARI, 2000). O mapa, portanto, tem múltiplas entradas, já o decalque sempre volta ao mesmo. Mapa é performance, decalque reconhece a suposta “competência”: “Ao contrário da psicanálise, da competência psicanalítica, que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda idéia de fatalidade decalcada (...) As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu desejo.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

Ao contrário do que se possa pensar, ao analisar decalques e mapas, os autores não propõem o estabelecimento de uma nova dicotomia, de um novo dualismo arborescente que provavelmente abortaria o próprio rizoma ao inevitavelmente remeter ao pivô, ao recompor o Uno. Deve-se entender, portanto, esta análise de mapas e decalques de forma múltipla e assim sendo é possível decalcar o mapa, o próprio mapa deve ser reconhecido como tendo seus decalques, como fenômenos de redundância, por exemplo. A multiplicidade tem estratos onde se enraízam unificações. As linhas de fuga podem reproduzir formações que seriam destruídas ou reorganizadas a partir delas. É somente uma questão de projetar o decalque sobre o mapa:

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“O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga. O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são somente os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação (...) Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore acontecem quedas interna que o fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e produtivas.” (DELEUZE & GUATTARI, 2000)

Ao mesmo tempo que é necessário decalcar o mapa, é necessário religar os decalques ao mapa, relacionar raízes ou árvores ao rizoma. Situar os impasses sobre o mapa, abrí-los sobre linhas de fuga possíveis, que subsistam mesmo que subterrâneas, fazendo clandestinamente rizoma. Linhas de fuga que permitam explodir os estratos, romper as raízes e realizar novas conexões. Assim como existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, de um galho de árvore ou de uma raiz podem começar a brotar rizomas. Há, assim sendo, como se pode ver, agenciamentos muito diferentes de rizomas-raízes, mapas-decalques. Depois de explicitados as características e os princípios mais comuns ou “aproximativos”, como dizem os autores, dos rizomas, é interessante colocar a ilustração, feita propositalmente numa partitura musical, que é apresentada na abertura da introdução do Mil Platôs volume 1 por Deleuze e Guattari como representante geral daquilo que não apresenta unidade, mas linhas, segmentaridades e, sobretudo, movimento e multiplicidade. Em suma, rizoma:

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Figura 14: Ilustração do rizoma segundo Deleuze e Guattari.

Fonte: DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Mil Platôs. 2000.

5.2.PLANETA ROCINHA: DEMOGRAFIA, ECONOMIA E SOCIABILIDADE NA MAIOR FAVELA DA AMÉRICA LATINA

“The informal economy is thus not an individual condition, but a process of income-generating activity, characterized by one central feature: it is unregulated by the institutions of society, in a legal and social enviroment in which similar activities are regulated” CASTELLS & PORTES, 1989 É fundamental primeiro traçar um quadro geral da Rocinha, do campo, para entender posteriormente em que ecologia a UPP tenta se inserir e posteriormente entender como a sociedade de controle tenta modular essas relações. A Rocinha é uma favela localizada entre os bairros da Gávea e de São Conrado, na beira da Auto-estrada Lagoa-Barra, a principal via de integração entre a parte rica da zona oeste – a Barra da Tijuca – e a Zona Sul carioca, portanto, uma via vital para a cidade e de grande circulação de veículos. Parte da auto-estrada Lagoa-Barra na altura da comunidade, devido ao maciço rochoso que há entre Gávea, Lagoa e São Conrado, passa por um túnel conhecido como Túnel Zuzu Angel. A comunidade pode ser grosseiramente divida em duas 159

grandes partes – alta e baixa – em função da divisão feita pela Estrada da Gávea, principal via de circulação de veículos – inclusive linhas de ônibus urbanos – dentro da comunidade que corta a Rocinha no meio. A parte alta da Rocinha faz parte do bairro da Gávea e a baixa ao bairro de São Conrado. A história da ocupação deste território data no início do século XX. Segundo Gonçalves (2013) e Parisse (1970), a favela da Rocinha surgiu a partir do loteamento de uma fazenda de 550 mil m² no bairro da Gávea – hoje parte alta da Rocinha -, em 1927 da empresa Castro Guidon. Com a entrada da empresa em concordata em 1933, as obras de urbanização do local foram paradas. Além da infraestrutura precária desses lotes resultado da falência da empresa loteadora, infrações com relação às disposições do Código de Obras do Rio de Janeiro de 1937 e ao Decreto nº 58 de 10 de dezembro de 1938, causaram a não aprovação estatal do loteamento e a consequente falta de títulos de propriedade com registro definitivo em cartório. Surge aí o primeiro estímulo a ocupação descontrolada na região, já que o comércio legal de lotes não havia sido reconhecido e a empresa não dispunha de recursos para impedir construções de serem feitas em áreas que lhe eram pertencentes. Com a abertura do Tunel Zuzu Angel em 1972, o acesso à parte baixa da Rocinha foi facilitado – a ocupação já crescera de tal forma que as casas não se encontravam mais somente nas áreas loteadas da Gávea, mas também nas terras desocupadas adjacentes à antiga fazenda da empresa Guidon, já em São Conrado. Nos anos 1960 e 1970, a política de erradicação das favelas das áreas centrais e nobres da cidade fez com que a Rocinha recebesse um grande fluxo de removidos. Àqueles advindos de algumas favelas removidas da zona sul, como a Catacumba, a Mangueira – que ficava em Botafogo, em cima do Tunel Velho que liga o bairro à Copacabana – e a Praia do Pinto, encontraram na Rocinha refúgio das garras do poder público e da especulação imobiliária. Uma outra tentativa de loteamento foi feita, em 1964, na área de hoje conhecemos como a Rocinha. Esta foi empreendida pela empresa Christo Redentor na parte baixa da comunidade na área hoje conhecida como Bairro Barcelos. Contudo, assim como o loteamento da empresa Guidon, não foi aprovado pelo poder público, agora por não respeitar as dimensões mínimas de lote previstas pela lei. No entanto, desta vez, as obras de infraestrutura aconteceram proporcionando a essa parte da comunidade ruas retilíneas, largas e planas. Alguns moradores cujos lotes respeitavam às mensuras legais conseguiram obter o título de propriedade e escritura, tornando-se proprietários legalmente reconhecidos de suas casas, porém estes foram minoria. É através desta constante luta para a permanência em suas casas que em 1986 a Rocinha passa a ser reconhecida como a 27ª Região Administrativa da cidade do Rio de Janeiro, passando, portanto, a ter o status de bairro para o serviço municipal. 160

A partir daí, a política municipal conquanto à comunidade passou a ser a tentativa de reconhecimento da posse da terra habitada por seus ocupantes, havendo inclusive um programa para a regulamentação chamado Papel Passado, que se concentrou na regulamentação das habitações da comunidade, sobretudo no Bairro Barcelos, posteriormente tendo sido expandido para outras localidades. No entanto seus resultados foram tímidos, permanecendo a grande maioria dos moradores da Rocinha sem título de propriedade de suas casas. O título de propriedade é muito mais do que só o reconhecimento público da legitimidade da propriedade do imóvel por seu habitante, é uma garantia definitiva de permanência na comunidade, extinguindo-se o risco de remoção – isto é, salvo sob justificativas de áreas de risco de desmoronamento ou para atender aos grandes projetos da cidade-empresa que se tornou o Rio de Janeiro sob a administração do manager Eduardo Paes. Assim como muitas outras favelas do Rio de Janeiro, a Rocinha é bastante heterogênea internamente com relação a serviços públicos, privados, níveis de renda, qualidade dos domicílios e etc por região da favela. Por isso, torna-se importante traçar um panorama das principais diferenças entre regiões dentro da Rocinha. Uma boa forma de começar estas demarcações é traçando os limites geográficos internos da favela. Abaixo segue um mapa destacando todas as regiões reconhecidas da comunidade:

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Figura 15: Subdivisões internas da favela da Rocinha.

Fonte: CIESPI – Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância.

São áreas da parte alta as localidades: Vila Cruzado, Laboriaux, Portão Vermelho, Vila União, Dionéia, Almir, Cachopa, Cachopinha e Vila Verde. E da parte baixa: Setor 199, Vila Vermelha, Rua 1, Rua 2, Rua 3, Faz Depressa, Capado, Terreirão, Macega, Roupa Suja, Campo da Esperança, Rua 4, UPMMR, Cidade Nova, Bairro Barcelos, Largo do Boiadeiro. Há diferenças grandes entre essas localidades da comunidade. O Bairro Barcelos, por exemplo, é predominantemente habitado pela classe média local, é onde há a maior oferta de comércio e de serviços e prédios altos de vários andares, como o prédio de 11 andares conhecido como o Empire State da Rocinha, assim como no Largo do Boiadeiro, na Via Ápia e na Estrada da Gávea, consideradas “áreas nobres” da comunidade pelos próprios moradores. O Bairro Barcelos considera-se tão diferenciado do restante da comunidade que possui inclusive uma associação de moradores autônoma que representa somente esta “elite local” (GONÇALVES, 2013). Não obstante, ainda nos limites da Rocinha, há localidades com baixa oferta de serviços e comércios, com baixíssimos níveis de renda e dificuldade de acesso, 162

como Capado, Faz Depressa, Vila Laboriaux e a Rua 4, consideradas as áreas mais vulneráveis da favela. Houve inclusive iniciativas governamentais para tentar aplacar tais diferenças alargando vias e construindo moradias populares através do PAC no lugar de habitações insalubres ou em áreas de risco ambiental. Laboriaux e Rua 4 foram as mais impactadas, havendo obras de contenção de encostas na primeira localidade e o alargamento significativo da via – que antes contava com apenas 1 metro de largura e agora permite até o tráfico de veículos – que agora dá acesso às novas casas na segunda. Na Rua 4 a diferença é abissal e pode ser vista, em etapas, nesta montagem de fotos antes, durante e depois das obras: Figura 16: Antes e depois das obras do PAC na Rua 4, Rocinha.

FONTE: Subsecretaria de Comunicação Social, governo do estado do RJ.

No entanto, apesar destas diferenças entre regiões da Rocinha, ela é uma comunidade só, reconhecida tanto interna quanto externamente como tal e, portanto, ela será tratada como tal, uma única comunidade – apesar de estar claro que há fragmentações internas. É, portanto, fundamental começar a delimitar as características desse agrupamento populacional. A cifra de população – assim como a própria favela - é bastante heterogênea e até sobre seu número total resta dúvidas. O Censo de 2010 do IBGE afirma que a Rocinha é a maior favela do Brasil e que o número de habitantes dela é de 69.161. Porém este número não é consenso. A Secretaria de Estado da Casa Civil concluiu o censo domiciliar da Rocinha e afirma que a população efetivamente recenseada é de 73.410 habitantes, porém devido a recusas de participar da pesquisa e a moradores ausentes, que não estavam em casa quando os agentes do estado foram a suas casas levantar os dados da favela chega a 98.319 pessoas. Já o presidente 163

da União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR), Leonardo Rodrigues Lima, mais conhecido como Léo, afirma que a Rocinha tem entre 180 mil e 220 mil, segundo ele, dados de um censo feito por uma instituição que ele não se lembra. (TABAK, 2011). A oferta de comércio e serviços na Rocinha é a cristalização mais evidente da integração deste aglomerado humano com os circuitos econômicos da cidade e do capitalismo internacional. Como afirma Valladares (2005), na Rocinha, há pelo menos duas décadas, encontram-se facilmente agências bancárias, lojas grandes do varejo – como Casas Bahia e Ricardo Eletro -, redes nacionais e internacionais de fast food – como o McDonald's 24 horas da comunidade que em 2000 teve os maiores números de vendas da cidade -, restaurantes de comidas típicas nacionais e estrangeiras – como pizzarias, cantinas italianas, restaurante de comida mineira, nordestina e etc, geralmente com entrega a domicílio -, tem um mercado imobiliário dinâmico, com mais de 10 agências espalhadas pela favela, uma loja de vinhos, estacionamentos particulares, ampla aceitação de pagamento com cartão de crédito e débito nos comércios locais, consultórios médicos privados, conta com taxis e moto-taxis 24 horas, além da comunidade ser servida por uma linha regular de ônibus regulamentada pela Prefeitura, como no resto da cidade. Há até mesmo uma Associação Comercial e Industrial da Rocinha, para galvanizar os interesses comerciais locais, o que sem dúvida rechaça o dogma de que favelas são locais típicos da pobreza, do subemprego e da criminalidade. Além disso, há o desenvolvimento definitivo do turismo como uma fonte alternativa de renda na comunidade, que conta com um centro de informações turísticas, guias e agências que organizam tais passeios para turistas nacionais e estrangeiros. No entanto, apesar de toda essa diversificação econômica, é o comércio de drogas que ganha atenção e notoriedade, pois, justamente por ser ilegal, é transacionado, estocado e etc sob forte escolta armada, recorrentemente descambando em conflitos com as forças estatais. Considerando-se que a maior parte da demanda por drogas vem de fora da comunidade e o montante de capital movimentado nas outras atividades econômicas supracitadas, é sem sentido reduzir a economia da favela à economia das drogas, sendo esta uma armadilha do senso comum perigosa às análises acadêmicas. Um outro fator que ajuda no elevado dinamismo econômico das favelas, em especial da Rocinha com toda sua pujança econômica é o fato de ser composta por uma população jovem, ao contrário da tendência observada nas áreas ricas da cidade e do próprio Brasil, que vê a cada ano sua população envelhecer mais. Como demonstra a ilustração comparativa entre as pirâmides etárias de Copacabana e Rocinha, sobrepostas: 164

Figura 17: Pirâmides etárias Copacabana e Rocinha comparativamente.

Fonte: Censo 2010,

IBGE.

A Rocinha é uma das favelas mais jovens do Rio de Janeiro, inclusive se comparadas a outras favelas de mesma dimensão. No estudo “CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ”, realizado por Marcelo Neri da Fundação Getúlio Vargas em 2010, comparam-se as características demográficas da Rocinha, do Alemão e de Manguinhos. Quando sobrepostos os dados obtidos a partir do Censo das Comunidades do governo do estado do RJ, o estudo da FGV nos oferece os seguintes quadros de comparação entre a Rocinha e outra(s) s favela(s) conquanto à composição etária das populações:

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Figura 18: Estrutura etária da população nas grandes favelas

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Como se nota pelas retas, é possível afirmar que elas têm a mesma tendência de alta nas populações mais jovens e de baixa com avançar da idade. No entanto, já se pode afirmar só através da interpretação do gráfico anterior, que a Rocinha, dentre as 3 favelas comparadas, é a que tem a população mais jovem, acima de Manguinhos e muito acima do Complexo do Alemão. Portanto, como brinca o estudo, a Rocinha é “ jovem² ” - “jovem ao quadrado”. Na comparação das proporções relativas, representando cada faixa etária, é possível ver de forma mais clara o que se passa, como demonstra a tabela abaixo: Tabela 2: Estrutura etária comparada Rocinha e Alemão.

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Outro dos fatores representativos dessa quantidade enorme de jovens é a prevalência de solteiros sobre o resto da população - mais da metade no caso da Rocinha -, tendência que se repete, mas em taxas muito maiores que em outras favelas, confirmando a leitura das 166

figuras anteriores. Veja: Tabela 3: Estado conjugal dos habitantes da Rocinha e do Complexo Alemão.

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Além disso, as taxas de mulheres grávidas e amamentando são superiores às do Complexo do Alemão, o que demonstra mais uma vez a tendência de que essa população acentuadamente jovem da Rocinha continue a prevalecer sobre outras faixas etárias: Tabela 4: Mulheres grávidas e amamentando por favela

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Logo esse fenômeno jovem² continuará a ser observável, e terá desdobramentos concretos, por exemplo, na economia local, já que não faltará mão-de-obra, nem pessoas necessitando ser qualificadas para entrar no mercado de trabalho. Tal quadro também demandará políticas públicas específicas às demandas da área, como mais escolas, creches, áreas de lazer, atividades esportivas gratuitas e etc. Com relação ao trabalho, às ocupações ou às situações ocupacionais mais recorrentes na Rocinha, destacam-se os empregos formais, aqueles com carteira assinada, e os estudantes. Mais uma vez rompendo o senso comuns sobre “as favelas”, pretensa e errônea unidade. Seguem as distribuições conquanto às ocupações:

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Tabela 5: Ocupações comparativamente entre Rocinha e Complexo do Alemão.

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Outro dado econômico interessante é que segundo a pesquisa, uma pequena parte da população da Rocinha está incluída em políticas sociais do governo federal, como o Bolsa Família. O mais interessante é notar que tais números são bem inferiores ao observado no Complexo do Alemão. Veja:

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Figura 19: Porcentagem das comunidades incluída no Programa Bolsa Família

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Talvez isso possa ser explicado pelos níveis de renda das respectivas comunidades. Rocinha tem renda per capta de R$220, enquanto o Complexo do Alemão apresenta R$176,90. Porém levando em consideração a média do resto da cidade é de R$615, são níveis muito baixos. E esse dado de renda tem causas e conseqüências, como o colocado no artigo da Carta Capital abaixo: Conforme pesquisa do Centro de Políticas Sociais (CPS) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), pode-se observar a ausência do Estado nas principais favelas do Rio de Janeiro, particularmente o Complexo do Alemão e a Rocinha. A renda per capita mensal do Complexo do Alemão é de R$ 176,90 e a da Rocinha, R$ 220, diante de uma média das demais de R$ 615 das 30 regiões administrativas do município do Rio. A Rocinha registra o menor nível de escolaridade do Rio, de 5,08 anos completos de estudos. O Complexo do Alemão ocupa o segundo lugar desse triste ranking, com 5,36 anos de estudo. A média das demais regiões administrativas da cidade é de 8,29 anos completos de estudos. A proporção de pessoas com curso universitário nas favelas é de 2,75%, quase dez vezes menor que no resto da cidade. Alcança 92% o percentual de crianças de zero a três anos do Complexo do Alemão que nunca frequentaram uma creche. (DANIEL, 2010)

Explica-se assim o fato da Rocinha contar com um baixo Índice de Desenvolvimento Humano, de apenas 0,735 – na aferição de 2013. O IDH é uma grandeza calculada pela ONU que mede, comparativamente com outras localidades, níveis de renda, longevidade e 169

educação das áreas, uma ótima referência para a construção de políticas públicas e um fidedigno retrato do desenvolvimento social e de seus desdobramentos nestes locais. Essa escala classificatória encontra-se entre dois limites virtuais - portanto inatingíveis – 0,000 e 1,000, quanto mais próximo a 1 melhores as condições sociais do local e quanto mais próximo a 0 menor a qualidade de vida dos locais. Se compararmos com o IDH dos bairros vizinhos da Gávea e de São Conrado, assim como com o IDH da cidade do Rio de Janeiro, que são respectivamente 0,970, 0,873 e 0,799, fica clara a condição precária de vida que os moradores são submetidos à precarização cotidiana da vida pelo descaso do Estado. Outro dado interessante de se notar, é que o serviço de energia elétrica, novidade nas favelas cariocas ainda na década de oitenta tenha se espalhado com tanta capilaridade pelas favelas cariocas. Praticamente todas as casas recebem energia elétrica, vejam as taxas: Tabela 6: Porcentagem de domicílios com acesso à rede de energia elétrica.

FONTE:CPS/FGV processando os microdados do Censo das Comunidades / Gov. Estado RJ.

Apesar da taxa alta, não se menciona nesse número divulgado quantos obtém energia elétrica por serviços formais e não através das ligações clandestinas, os chamados “gatos”, e qual a taxa de consumidores que está satisfeita com o serviço prestado pela concessionária Light. Também não há informações comparativas do número de horas que cada uma das áreas “subnormais” - como afirma o IBGE – é submetida a cortes inesperados de fornecimento de energia elétrica. Estes dados evidenciariam a qualidade e o nível de acesso que tais populações teriam a esses serviços.

5.3.UPP ROCINHA: A TENTATIVA DE IMPLANTAÇÃO DO CONTROLE E AS RESISTÊNCIAS COTIDIANAS “Para quem vive na guerra, a Paz nunca existiu! Como dizer que mais armas irão nos trazer paz? Violência gera violência, já dizia o Gentileza. Eu não confio na paz das armas, nem sei o que é PAZ, afinal, em seu nome só vejo guerras, então devo entender 170

que PAZ e GUERRA andam juntas e o que queremos ainda nem tem nome. Mas vale saber que temos a certeza do que NÃO queremos, e nós NÃO QUEREMOS MORRER vítimas dessa política de segurança de contenção e extermínio do pobre. Falta mais educação, saúde, amor e MENOS ARMAS! #SOSCPX #FAVELASEMPRE #COLETIVOPAPORETO Nós por Nós!” Coletivo Papo Reto, Post no Facebook, Janeiro de 2015. A Rocinha foi eleita campo desta dissertação por ser a maior favela do país – e uma das maiores do mundo -, por ser caracteristicamente heterogênea e por quebrar a maioria dos sensos comuns arraigados sobre as favelas cariocas. Além disso, neste local há uma UPP desde 2012 que se insere num contexto longo de guerras entre facções rivais do tráfico de drogas e da divisão da comunidade em áreas dominadas por facções diferentes. Após a instalação da UPP, ao contrário do que se imaginava, as disputas do tráfico pelo poder não cessaram nem diminuíram de intensidade. É, a Rocinha, notadamente uma das áreas pacificadas da capital fluminense com o menor resultado objetivo na desarticulação do tráfico armado local. É na tentativa de melhorar este desempenho da unidade de polícia pacificadora que o governo Sérgio Cabral instala na comunidade o primeiro Centro de Comando e Controle em favelas do Rio de Janeiro. É também porque o sistema de vigilância eletrônica em relativamente pouco tempo de funcionamento já enfrentou denúncias de uso seletivo do material gravado – em benefício dos policiais que inclusive desligam e quebram as câmeras para acobertar mal-feitos -, racismo, sexismo, perseguição a usuários de drogas e mal uso das imagens e escutas, chegando a levar sob custódia inocentes no lugar de gerentes do tráfico, como no caso Amarildo. Ao mesmo tempo há megaoperações organizadas a partir dos materiais gravados através das câmeras do Centro de Comando e Controle, com relativo sucesso na diminuição da tensão em alguns momentos da guerra entre facções do tráfico de drogas. É crescente também a parceria firmada entre a Polícia Militar e a Polícia Civil no compartilhamento das imagens e trabalho conjunto. Para entender o meio no qual a UPP Rocinha se inscreve, é necessário traçar um breve panorama das disputas do tráfico de drogas na favela e como elas moldaram o comércio 171

armado de psicoativos em funcionamento na comunidade depois da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora. “Nem” ou Antônio Francisco Bonfim Lopes era entendido, quando da instalação da UPP, como o principal responsável pelo narcotráfico local, por isso essa história será contada em volta do percurso que teve – ou tem - este ator dentro do tráfico violento da Rocinha. Como fontes desse account foram utilizados artigos jornalísticos, conversas com moradores da comunidade e ativistas locais de direitos humanos, o site da Polícia Civil e também através de funks proibidões, aqueles que, financiados pelo tráfico, servem de jograis contemporâneos, cantando as épicas aventuras – e desventuras – do tráfico de drogas, servindo também como um dos meios oficiais de propaganda dos grupos narcotraficantes cariocas. Essas são as fontes devido à escassez de material acadêmico produzido estritamente sobre o assunto. “Nem” entra no tráfico por volta do ano 2000 para saldar uma dívida contraída com “Lulu da Rocinha” ou Luciano Barbosa da Silva, pertencente ao Comando Vermelho, dono do morro da Rocinha de 1999 a 2004. Lulu lhe emprestara dinheiro para pagar despesas médicas da filha de Nem, que tivera um problema de saúde. Em 2004, no entanto, Lulu foi traído por sua própria facção que deu aval para Dudu da Rocinha desse um golpe de estado que lhe afanasse o domínio sobre o morro. Dudu empreende uma invasão da Rocinha a partir do Vidigal, o que causou muitas mortes tanto na favela quanto no asfalto e evidenciou o poder bélico das gangues do tráfico de drogas. Ao mesmo tempo que mostrou uma dissensão na cúpula do Comando Vermelho. A invasão e os conseqüentes conflitos seguiram-se por dias até que a polícia ocupasse o morro para tentar aliviar as tensões no local. Dois dias após a invasão da PM, o traficante Lulu foi morto. Com a morte de Lulu e a fuga de Dudu para não ser preso ou morto, o “vice” de Lulu assume o tráfico: “Zarur” ou André da Costa Brito,também do Comando Vermelho. Ainda em 2004, pouco tempo depois da posse, Zarur foi traído por Lyon, também integrante do Comando Vermelho e antigo integrante da quadrilha de Lulu, mas que não estava na “linha de sucessão” de Lulu. Com essa nova traição do Comando Vermelho ao grupo que era de Lulu, parte da quadrilha dele renegou a facção e uniu-se à facção inimiga Amigos dos Amigos. Lyon, do Comando Vermelho e apoiado pela facção para dominar a favela, conseguiu tomar para si a parte alta da Rocinha. Já na parte baixa da comunidade, o terceiro na linha de sucessão de Lulu assume o controle das bocas: “Bem-Te-Vi” ou Erismar Rodrigues Moreira, ex-Comando Vermelho, agora filiado ao ADA. Bem-Te-Vi assume, portanto, em 2004 o comando da parte baixa da Rocinha, mobilizando todo o arcabouço simbólico de Lulu, supostamente prometendo manter seu legado e sua forma de governar. 172

Depois de alguns meses de disputa entre as quadrilhas de Bem-Te-Vi e Lyon, Bem-Te-Vi ganha e assume o controle de toda a Rocinha. Pela primeira vez, portanto, o Comando Vermelho foi escorraçado da Rocinha. Isso foi muito simbólico, pois o Comando Vermelho e antes a Falange Vermelha sempre dominaram a Rocinha, é o fim de uma era e o início de outra, porém com algumas permanências, principalmente no que diz respeito ao capital simbólico mobilizado a partir da figura de Lulu, como já foi dito. Assim sendo, com a vitória de Bem-Te-Vi, a Rocinha tornou-se a maior favela dominada pelo ADA. Bem-Te-Vi manteve a relação amistosa com a comunidade, típica de Lulu, conservando também as práticas assistencialistas, fatores que levaram a comunidade a apoiar a troca de facção do bando armado que dominava o local. Em sua gestão, a comunidade passou a ser frequentada por celebridades e jogadores de futebol que iam a bailes funk e grandes festas organizadas pelo tráfico, com ostentação de armas banhadas a ouro, uísque e cocaína aos montes. Apesar da enorme repercussão que Bem-Te-Vi teve na mídia carioca, frequentemente retratado como um war lord, semelhante a Pablo Escobar, seu reinado durou um pouco mais de um ano. Já em 2005, em uma operação muito elogiada pela mídia carioca, mas que era uma flagrante violação dos direitos humanos e das funções constitucionais da Polícia Civil, Bem-Te-Vi é assassinado. Em outubro de 2005, policiais civis alugaram uma casa na comunidade e a calada da noite deflagaram suas armas em direção a Bem-Te-Vi, o que obviamente gerou um conflito armado. Contudo, a operação foi considerada um sucesso, já que o inimigo havia sido neutralizado. Tão ineficiente quanto enxugar gelo, horas depois, chegavam ao poder do tráfico local Nem e “Joca” ou João Rafael da Silva, havendo, portanto, a primeira mudança segura de “frente”, como dizem os moradores, de “dono do morro”, na gestão do ADA. O que representou um outro marco, e uma outra derrota para o Comando Vermelho, que agora via o ADA consolidando seu poder sobre a Rocinha. Porém, logo depois da sucessão Joca foi preso e assim, em 2005, cinco anos depois de entrar para o tráfico, Nem se torna o “dono da Rocinha”. Como diz o funk proibidão entitulado “Saudades do Bem-Te-Vi”: “Bate palma quem gosta do Bem-Te-Vi, Rocinha bonde do Joca e do Nem estão aí. Dois polícias chapados se esconderam na Rocinha com coragem e informação contra o nosso dia-a-dia. E os amigos na pureza ainda não estavam sabendo que eram todos vigiados de dentro de um apartamento. O clima tava tranquilo, mas o patrão não sabia que ele era vigiado dali durante mais de dez dias. Mas como o patrão fazia ele sempre tava ali, escutando uma música no Rei do Açaí. Partiram na madrugada, olha só como é que pode, aqueles filhas da puta tinham tramado sua morte. Mas de duzentos polícias, centrados no balanço, com um só objetivo que era matar o patrão. E dentro daquele prédio aqueles vermes estavam ali só esperando a hora certa pra matar o Bem-Te-Vi. Foi quando de repente, de onde

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ninguém viu, surgiram 4 tiros que ali mataram o Bill. O Buguinha na pureza, foi socorrer o patrão, mas também foi baleado e caiu ali no chão. Aí bala comeu pra cima dos chapados, era tiro pra caralho, traçante pra todo lado. Eles ficaram encurralados lá dentro do Valão, mas com medo de morrer se esconderam no Caveirão. E o Bill bonde não se cala e bota bala pra comer, levaram quarenta minutos pra sair lá do QG. Na Rocinha bala come, não se espanta e bota a cara. Balão é Faixa de Gaza. Rocinha, o arrego é bala. Como se não bastasse vocês terem matado o Magro, agora mataram o Bem-Te-Vi seus policiais recalcados.” (PERNALONGA RELÍQUIA, 2010)

Nota-se na letra do funk acima a história narrada pelo ponto de vista dos traficantes e também a tentativa de dar legitimidade aos bondes de Nem e Joca que substituiriam legitimamente o comando do ADA no morro com a morte de Bem-Te-Vi. O reinado de Nem teve repercussão internacional quando ele, em 2010, ordenou que seus comparsas invadissem o Hotel Intercontinental em São Conrado para despistar a polícia e assim acobertar sua fuga. Sua fuga era imperativa pois, ao saber que Nem deixaria a Rocinha para ir até o Vidigal comemorar o aniversário do dono de lá, conhecido como 99, a polícia montou uma operação com o objetivo de capturar Nem no asfalto, na volta para a Rocinha. Ao se deparar com os policiais, Nem e seus seguranças trocaram tiros com a polícia pelas ruas de São Conrado. Segundo a polícia (MONKE, 2010), o traficante foi baleado nesse confronto. Devido a este estado de coisas, para conseguir evadir do local de volta à Rocinha, seu enclave de segurança, ele ordenou que 10 de seus seguranças, numa ação suicida, invadissem o Hotel Intercontinental, hotel de luxo de São Conrado, para assim chamar atenção da grande mídia nacional e internacional, obrigando a polícia a dar prioridade absoluta a esta ocorrência. Foi o que aconteceu, com a mudança de objetivo principal, Nem consegue escapar e retorna à favela, ferido, mas vivo. Dentre os 10 traficantes presos na invasão do Intercontinental estavam personagens importantes do tráfico naquele momento como Perna” ou Ítalo de Jesus Campos, o segundo na hierarquia do tráfico depois de Nem, além de personagens que iriam desempenhar papéis importantíssimos no tráfico depois da instalação da UPP, como “Rogério 157” ou Rogério Avelino da Silva, Davi Gomes de Oliveira, este último conhecido de fato pelo nome de batismo. No entanto, em maio de 2012, o TJRJ concedeu habeas corpus aos 10 presos foram na operação do Intercontinental. A maior parte deles voltou para a Rocinha para reassumir sua posição anterior no tráfico, já com a favela ocupada pela UPP. Além desse plano inusitado, Nem também teve outras táticas de resistência à prisão pouco convencionais para o tráfico carioca, porém comuns entre gangsters americanos. Ele forjou sua própria morte para despistar as autoridades, em 2006. Além disso, com a iminência da invasão da Rocinha pela polícia em 2011, Nem trama sua fuga dentro da mala de um carro oficial da representação diplomática do Congo no Rio de Janeiro, inclusive com um diplomata 174

congolês presente no carro. O carro foi parado pelo Batalhão de Choque na saída da Rocinha, mas como pesava a dúvida sobre o status do carro, se diplomático ou não, os policiais militares decidiram que iriam escoltar o carro até a Polícia Federal na Praça Mauá, para que a revista fosse feita. Porém, ainda na altura da Lagoa Rodrigo de Freitas, os 3 ocupantes do carro – o diplomata, um funcionário do consulado e um advogado, depois reconhecido como o advogado do Nem – ofereceram aos policiais suborno para que não revistassem o carro, com oferta inicial de 30 mil reais e final de 2 milhões que porém não foram aceitas pelos policiais. Com a oferta de suborno, os policiais militares pararam o comboio e revistaram o carro, onde, no porta-malas, encontraram Nem, que foi então levado com os demais ocupantes do veículo até a Superintendência da PF na Praça Mauá. Preso, o discurso do governo era de que a pacificação da comunidade iria ocorrer de forma mais tranquila, menos conflituosa, porém, subdimensionaram o poder de articulação e de adaptação do tráfico de drogas. Outros hábitos e atitudes de Nem que o fizeram um dos traficantes mais famosos do país nos anos 2000, com mais espaço na mídia foram, por exemplo, alugar um helicóptero para sobrevoar o Rio de Janeiro, cumprindo o desejo de uma de suas três esposas, usar ternos Armani, construir um ginásio luxuoso na comunidade para que ele pudesse malhar e etc. Três dias após a prisão de Nem, policiais militares, civis e federais, com o apoio de fuzileiros navais, ocuparam as favelas da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu. É com essa operação articulada nos níveis estadual e federal que se inaugura a ocupação permanente da Rocinha pelo aparelho repressor do Estado. Esta incursão na favela se deu de forma ordeira, sem haver registro de tiroteios, pois, como de costume em outras ocupações “pacificadoras” do governo Sérgio Cabral, dava-se um aviso público aos traficantes locais para que deixassem a região, pois ela seria pacificada. O que resultou, em via de regra, em ocupações sem conflito armado. Obviamente há exceções fortes a essa tendência, como o foi o caso do massacre registrado na invasão do Complexo do Alemão e da Penha. No caso da Rocinha, cerca de 3 mil homens participaram da operação, que contou com apoio de 6 blindados da PM ("Caveirão"), 18 blindados da Marinha, 4 helicópteros da PM e outros 3 da Polícia Civil. Criminosos tentaram colocar barricadas e jogaram óleo na pista, mas isso não pediu a chegada das tropas ao alto do morro. Sem prisões ou apreensões de droga, também sem maiores resistências do tráfico, depois do que acontecera no caso do Alemão. Como diz o site das UPPs sobre a ocupação da Rocinha “Em apenas duas horas a Secretaria de Segurança deu como encerrado o processo de retomada da comunidade”. Muitas drogas e armas foram retiradas nesse primeiro momento da comunidade para evitar apreensões que seria espetacularizadas pela mídia como a prova do sucesso da operação, no entanto, logo depois 175

voltaram ao seu ofício os traficantes, as drogas ilícitas e com isso as armas para resguardar as mercadorias. No discurso oficial, a importância dessa ocupação apareceu como objetivo estratégico de segurança número 1 no momento, que para ser possível, necessitou da ajuda do governo Dilma, para que o Exército permanecesse mais do que o previsto ocupando o Alemão, permitindo que a polícia militar ocupasse por fim a Rocinha, como o declarado pelo próprio governador Sérgio Cabral em discurso à imprensa: "Nada acontece por acaso. Isso foi planejado há muito tempo pela Secretaria de Segurança, há cerca de quatro, cinco meses, quando pedimos a presidente Dilma que o Exército ficasse no Alemão e Penha até 31 de junho de 2012, porque com isso conseguiríamos entrar na Rocinha" (CABRAL, 2011)

A UPP Rocinha foi inaugurada 20 de setembro de 2012, portanto dez meses depois da ocupação pelas chamadas “forças de pacificação”. Inicialmente contava com um efetivo de 310 policiais militares sob o comando do Major Leonardo Nogueira. Dois anos depois, segundo a Secretaria de Segurança, o aparato repressor do estado na comunidade, sob o comando da Major Priscilla conta com 700 policiais militares, 150 câmeras e auxílio mais próximo da Polícia Civil, devido a criação da 11ª Delegacia da Rocinha, responsável somente pela favela em questão, o que não acontecia quando a 15ª Delegacia da Gávea era a responsável pela área. A UPP, assim como muitas outras, foi instalada em contêineres, com paredes finas que põem em risco a vida dos policiais em confrontos armados com narcotraficantes. Localizada no Parque Ecológico, no antigo sítio Portão Vermelho, está estrategicamente posicionada numa das partes mais altas da comunidade, proporcionando assim uma das vistas mais amplas da comunidade, além de estarem à margem da região de mata que cerca os limites superiores da Rocinha, o que dificultaria a fuga ou a instalação de traficantes no meio da Mata Atlântica. Nestes contêineres estão contidas todas as funções burocráticas da UPP, os locais de refeição, descanso, paiol de armas, escritório de inteligência, salas de reunião e etc. São ao todo 6 contêineres climatizados agrupados, como exposto na foto abaixo:

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Figura 20: Instalações da UPP Rocinha.

Fonte: Arquivo do acervo pessoal do autor.

A polícia militar, como em todas as UPPs, é sobrecarregada com funções que constitucionalmente não lhe pertencem, ficando encarregada de atividades de inteligência, de investigações, funções da Polícia Civil, e da regulação de atividades sociais, culturais e até mesmo religiosas. É neste contexto de sobrecarga de tarefas dos policiais militares, de conflagração de conflitos recorrentemente pela comunidade, pela continuação do domínio armado de Nem sobre o tráfico local e sobre a comunidade mesmo dentro do presídio, que surge o Centro de Comando e Controle. Segundo a retórica oficial, a implantação do sistema de vigilância eletrônica em questão era um avanço pioneiro, com possíveis resultados positivos na repressão de crimes em números sem precedentes. Foi ao mesmo tempo uma tentativa de aumentar a sensação de segurança de moradores e policiais, facilitar o trabalho da polícia e a identificação de indivíduos envolvidos com o tráfico, além de um ótimo recurso para gerar provas para a Justiça, para além dos depoimentos dos agentes de segurança que atribuíam aos réus a posse de materiais ilícitos ou condutas desviantes, uma vez que as imagens possuem marca d'água digital, o que garante a autenticidade e o possível uso judicial dessas imagens. Assim sendo, segundo o discurso oficial, a sociedade poderia esperar uma melhora nas condições de segurança – na verdade a segurança é uma percepção, uma sensação – e mais eficiência no combate ao tráfico de drogas e outras modalidades de crime presentes neste rincão do capitalismo. A instalação do sistema de CCTV Rocinha foi anunciada em abril de 2012 pelo excomandante da UPP Major Edson Santos, posteriormente condenado pela tortura e desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza. De início, o centro de comando e controle funcionava num contêiner na localidade conhecida como Portão Vermelho, no alto 177

da Rocinha. Contava com monitoramento da comunidade por algumas – poucas - câmeras e das viaturas policiais por GPS. Como o centro tem vocação fortemente tecnológica, há alta demanda de energia elétrica e por isso, até uma parceria com a Light – concessionária de energia do Rio de Janeiro, já citada aqui anteriormente – teve que ser firmada (QUAINO, 2013), para fornecer toda a eletricidade necessitada sem prejudicar o fornecimento elétrico do restante da comunidade – que conta com um serviço de luz precarizado, com picos de luz e apagões em taxas superiores aos bairros circundantes da Gávea e de São Conrado. Abaixo, encontra-se a foto mostrando a primeira instalação do CCTV na comunidade: Figura 21: Primeira instalação do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha.

FONTE: Lilian Quaino, G1.

O plano de monitoramento por câmeras foi feito de início para que elas fossem instaladas estrategicamente, nos pontos de maior interesse para a polícia, sobretudo nas entradas e nas principais vias da comunidade, para auxiliar a atuação da UPP em seu trabalho de repressão, prevenção e policiamento ostensivo. A localização das câmeras como se pode imaginar é fundamental, como fica evidente neste trecho abaixo retirado do portal das UPPs na internet: “De acordo com o comandante da UPP Rocinha, Major Edson Santos, as novas tecnologias são ferramentas de apoio ao patrulhamento, melhorando os resultados durante as ações policiais. As câmeras foram instaladas em 14 áreas estratégicas, entre elas Estrada da Gávea, Boiadeiro e Rua 2, além dos principais acessos da Rocinha. “Teremos câmeras nas regiões mais importantes da comunidade, que foi dividida em setores. Em cada local, haverá quatro policiais de plantão. Caso aconteça alguma

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ocorrência, a resposta será imediata. Com as câmeras eu passo a ter mais do que os 700 homens que tenho no efetivo da UPP”, explica o comandante da UPP Rocinha, major Edson Santos.” (UPPRJ, 2013)

Em janeiro de 2013, o Centro foi transferido do contêiner do Portão Vermelho para um prédio de alvenaria na Rua Dois, que já pertencia à Polícia Militar. Nesse prédio funcionava o Posto de Policiamento Comunitário. Esse prédio, assim como o contêiner que ele substituiu, estão separado da sede da UPP, que fica no Parque Ecológico, outra região da Rocinha Abaixo encontram-se, respectivamente, fotos do CCTV, tanto da fachada do prédio, quanto do ambiente interno, onde há o acompanhamento em tempo real das filmagens e o tratamento das imagens por policiais militares: Figura 22: Prédio atual do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha, antigo DPO da comunidade.

Fonte: Arquivo do acervo pessoal do autor.

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Figura 23: Interior do Centro de Comando e Controle da UPP Rocinha.

Fonte: SOS PMERJ

Para resumir o objetivo, a capacidade e o alcance do sistema de monitoramento em operação na Rocinha, cito aqui o blog de Policiais Militares “SOS Polícia Militar”, em um post de 2013:

“A partir desta terça-feira, quem cometer algum crime na Rocinha poderá ser preso em flagrante, mesmo que não haja nenhum policial por perto. Isso graças à inauguração do Centro de Comando e Controle da UPP da Rocinha. Instalado na Rua 2, no prédio onde funcionava o antigo Posto de Policiamento Comunitário, o espaço recebe imagens em tempo real de 80 câmeras espalhadas em pontos estratégicos da comunidade. No local, 20 policias se revezarão durante 24 horas. - Temos câmeras capazes de uma aproximação de até 36 vezes e com possibilidade de girar em 360 graus - diz o subcomandante Neyfson Borges, que comentou os benefícios do novo sistema para o efetivo da UPP, de 700 policiais. - Se algum policial avistar alguém em situação suspeita, ele entrará em contato com a sala de operações, que, por meio de GPS, vai acionar a equipe que estiver mais próxima do local da suposta ocorrência. Com isso, ganhamos agilidade, e maior assertividade nas ações. O planejamento de instalação das câmeras começou há dois meses. Durante a fase de testes, segundo a PM, cinco pessoas foram presas em dezembro, graças ao auxílio das câmeras, que estão espalhadas em pontos como as Ruas 1, 2, Beco 199, Via Ápia e Estrada da Gévea, além de todos os acessos à comunidade. - Praticamente a Rocinha inteira está monitorada - garante o subcomandante. Para ele, as câmeras também serão mais um meio para avaliação da conduta policial. - Vamos poder avaliar se o trabalho do policial foi feito de acordo com nossos treinamentos. Será uma forma de cobrá-lo ou defendê-lo de alguma acusação indevida durante uma ocorrência. Todas as imagens ficarão registradas num período de um mês. De acordo com a PM, o próximo passo será a instalação de um software de reconhecimento facial nas câmeras.” (SOS POLÍCIA MILITAR, 2013)

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Quanto às questões técnicas sobre o sistema de vigilância eletrônica, as imagens apreendidas pelas câmeras podem ser vistas em 360 graus e com zoom de aproximação de até 300 metros de distância - 36 vezes -, além de infravermelho que garante visualização nítida até no escuro, exibidas por meio de painéis em alta definição, que estão instalados em uma sala monitorada por policiais que se revezam durante 24 horas. As imagens podem ser usadas como provas judiciais, pois possuem marca d’água digital, o que garante a autenticidade das imagens e permite que elas sejam usadas em qualquer instância judicial. (UPPRJ, 2013) Grandes operações contra o tráfico de drogas local já foram articuladas com a ajuda do sistema de vigilância eletrônica da UPP Rocinha. Uma dessas operações foi a Operação Paz Armada. A Polícia Civil, em julho de 2013, nas investigações que culminaram na operação, que visava a desarticulação do tráfico de drogas na Rocinha. Na ocasião, através de vigilância eletrônica, escutas e outros meios de inteligência, foi possível mapear mais de 100 bocas de fumo, segundo o delegado responsável pela operação, presentes na comunidade, sendo dentre estas, 25 bocas principais com grande movimentação de capital e de drogas. Portanto, já com a favela sob domínio da UPP, que ocupava a favela desde setembro de 2012 – inclusive, com muitas câmeras da UPP, sendo a Rocinha já na época a favela mais vigiada do Rio de Janeiro -, o tráfico continuava de vento em poupa. O mapeamento é o que se vê a seguir, sendo as principais bocas de fumo as demarcadas pelos círculos amarelos:

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Figura 24: Principais bocas de fumo da Rocinha mapeadas pela Polícia Civil do RJ em 2013.

FONTE: Polícia Civil do Rio de Janeiro, Operação Paz Armada, julho de 2013.

O delegado substituto da 15ª DP da Gávea, Ruchester Marreiros, responsável pela operação faz sem querer um resumo do quadro do tráfico na Rocinha pós-instalação da UPP, obviamente a partir do que viu e concluiu através das filmagens: "Ao longo de três meses de investigação verificamos que o Nem, que eles chamam de Mestre, ainda comanda o tráfico na Rocinha. Mas com a chegada dos policiais da UPP, os traficantes procurados saíram da favela e se refugiaram em outro lugar. A venda de drogas passou então a ser feita por pessoas que não têm ficha na polícia. Com o trabalho de inteligência da PM, o uso de 104 câmeras de alta definição e o mapeamento feito pela Polícia Civil, descobrimos cem bocas de fumo. A venda de drogas não é mais ostensiva, ela ainda existe. Cada ponto de venda rende em média R$ 15 mil por semana. E há bocas que tem faturamento de R$ 12 mil por dia" (MENDONÇA, 2013)

E o delegado titular da 15ª DP, Orlando Zaccone, vai além em seu diagnóstico para mostrar como o tráfico continua com as consideradas – pelo governo - “velhas práticas do tráfico”, tipicas do momento anterior à pacificação, quando o tráfico gozaria de uma suposta liberdade de ação maior: 182

"Djalma é o gerente dos pontos de venda de droga no alto da Rocinha, que é mais ermo e mais violento. Ele tinha programado um 'golpe de estado' para tomar as bocas de fumo da parte baixa da favela, que são gerenciadas pelo David, com quem tem uma rivalidade. Mas por lealdade ao Dudu (Eduíno Eustáquio de Araújo Filho), Djalma não atacava a parte baixa. Com a morte do Dudu na prisão, ocorrida esta semana, ele estava se sentindo livre para agir. Nos antecipamos e evitamos que ocorreu um banho de sangue na favela. Com certeza seria uma disputa muito violenta", disse Zaccone.” (MENDONÇA, 2013)

Na operação paz armada citada anteriormente vigilância eletrônica e outras formas de controle ajudaram na identificação indivíduos, fluxos de dinheiro, pontos micro de venda de drogas, inclusive na esfera privada, tendo sido reconhecidas bocas de fumo em locais como casas e bares, chegando a pessoas sem passagem prévia pela polícia, o que pode indicar que o tráfico se pulverizou pela comunidade apostando em micropontos de venda ao invés das grandes bocas concentradas em alguns poucos pontos específicos da comunidade, porém resguardando a lógica de domínio armado e até certo ponto violento da atividade comercial ilegal: hierarquia e delegação de poderes. É concedida autoridade e certa autonomia aos chamados gerentes do tráfico, responsáveis pelo funcionamento de bocas de áreas específicas da comunidade, dividindo, portanto a comunidade em setores. Vê-se abaixo o mapa divulgado pela Polícia Civil demarcando e especificando onde as bocas citadas funcionavam, incluindose aí os espaços privados previamente citados:

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Figura 25: Divisão por áreas de domínio de cada gerente do tráfico da Rocinha

Fonte: Polícia Civil do Rio de Janeiro, Operação Paz Armada, julho de 2013.

Através de serviço de inteligência com o substrato ofertado pelas câmeras de vigilância que monitoram a Rocinha, foi possível entender como o tráfico se rearticulou depois da prisão de Nem e da instalação da UPP em 2011. Estes dois eventos são marcos para entender o tráfico que hoje ocorre nos becos e vielas da Rocinha. A hierarquia do tráfico a partir destes fatos sofreu muitas reviravoltas com prisões, mortes e fugas de personagens importantes. O resultado dessas disputas foi a divisão da Rocinha novamente em duas zonas com “chefes”, “frentes” ou “donos” distintos. No entanto, não se deve perder de vista que todo esse processo se deu sob a batuta de Nem, mesmo preso. Com Nem preso, “Johnny” ou John Wallace da Silva Viana tornou-se gerente do tráfico na Rocinha por sua habilidade gerencial e pela lealdade que tinha a Nem. Johnny não tem o perfil usual dos traficantes de drogas, fala inglês, concluiu os estudos e já foi ao exterior, tenso inclusive parentes morando na Suíça. Johnny, escolhido por Nem, dividiu o poder em alguns momentos com Davi e Rogério 157. Essa escolha de Nem deixou outros gerentes do tráfico na comunidade insatisfeitos, sentindo-se injustiçados, preteridos. Um deles foi “Djalma” ou Luiz Carlos Jesus 184

da Silva, que era responsável pela administração das bocas na parte alta da comunidade Laboriaux, Dionéia, Paula Brito, Cachopa, Cachopinha, Vila Verde e o Parque da Cidade, comunidade na Gávea que não é parte da Rocinha, mas que está igualmente submetida ao tráfico que comanda a Rocinha -, não reconheceu legitimidade na escolha de Johnny e autoinstituiu-se como dono da parte alta da comunidade, com apoio dos traficantes do Complexo do Alemão, que avaliaram ser uma ótima oportunidade de reintroduzir a facção deles, o Comando Vermelho, na comunidade. Mais uma vez, portanto, a comunidade encontra-se dividida entre Comando Vermelho e Amigos dos Amigos. Djalma estabeleceu seu domínio sobre a parte alta da comunidade, porém a parte baixa continuou fiel a Nem e pertencente ao ADA. Johnny escolhido por Nem para substituí-lo, dividiu o poder com Rogério 157 e Davi e assumiu o controle das bocas da parte baixa da comunidade, composta pela parte da comunidade abaixo do corte que representa a Estrada da Gávea - Rua 1, Rua 2, Macega, Terreirão, Rua do Valão e Largo do Boiadeiro. Essa fronteira estava mais ou menos garantida, sem muitos conflitos armados entre as facções porque Dudu - o que invadiu a Rocinha de Lulu pelo Vidigal com aval do Comando Vermelho -, pelo qual Djalma nutria muito respeito, não permitia que houvessem tentativas de tomar a parte baixa. Contudo, com a morte de Dudu na cadeia, como põe Zaccone, Djalma sentiu-se livre para tomar a outra parte da comunidade. No entanto, tais planos foram frustrados devido à Operação Paz Armada, que resultou na prisão dele e evitou o que provavelmente seria um grande derramamento de sangue. Com a prisão de Djalma, a parte alta da Rocinha continua porosa e deflagrada, mas o domínio mais ou menos estável é da facção ADA, mesma facção da parte baixa, de Nem, que nesta localidade continua firme, bem estabelecido, sem ameaças à sua soberania, além das pontuais operações da polícia. Um prova disso é que, em 2014, de dentro do presídio, ele destituiu do poder Rogério 157, expulsando-o da Rocinha por desentendimentos entre ambos. O que reforçou a autoridade de Johnny, como representante de Nem. Apesar das porosidades, reviravoltas e descontinuidades que o tráfico sofreu pós-UPP, algumas observações podem ser feitas, os lucros auferidos pelo tráfico são iguais ou maiores, como afirma a própria polícia, as lutas inter e intra facções em disputa pelo controle do comércio de drogas continuam, bem como a autoridade de Nem segue através de seus associados e sucessores a ter desdobramentos reais no cotidiano de milhões de pessoas que habitam na Rocinha. É como demonstra claramente o funk proibidão lançado em 2014 na Rocinha pelo Mc Urubuzinho chamado “Na Rocinha é o bonde do Nem você sabe muito bem”: 185

“É que o Bizunga tá fechando com a gente, o Papaleguas e o Marrento nunca rende pro Alemão, é que o Tchicão mandou bem no AR, o RP leva a vida sem estresse, lá no Vidigal o bloco anda pesadão, lá o Gustavo e o Novinho boladão, saudade do Zidane e do Amaral, Menor 70 tá portando um Parafal. Uma coisa é certa pode procurar na Bíblia, a coisa feia é a tal da judaria, o Judas traiu e o Neto traiu também, o Judas com moeda e o Neto com nota de 100. Esse é o bonde do Nem, fuzil nós tem mais de 100, você sabe muito bem. Não vem que não tem. Esse é o bonde do Nem, é tudo Saddam Hussein, você sabe muito bem. Não vem que não tem.” (MC URUBUZINHO, 2014)

Tal é o retrato magistral capturado por este funk da realidade da Rocinha hoje conquanto ao tráfico, nomeia diversos traficantes da comunidade, pertencentes ao “bonde do Nem”, que aparentemente está fortemente armado com mais de 100 fuzis. E bastante atento a suas fileiras, notando inclusive ensejos de traição, como no caso do Neto. É bom lembrar que traições dentro de gangues narcotraficantes na Rocinha custaram muitas vidas e a estabilidade de um negócio extremamente lucrativo no passado. Resultando em trocas dramáticas no comando da favela e até mesmo períodos nos quais a comunidade estivera dividida por duas facções criminosas rivais. Assim sendo, pode-se dizer que o domínio da facção - ou das facções - cristalizado de forma contínua no território tornou-se descontínuo, com a ocupação policial permanente, alterando o balanço de forças e as relações de poder, abrindo janelas de oportunidade para invasão de facções rivais ou outros grupos considerados exógenos aquele ambiente, ou até mesmo a troca de facção por líderes do tráfico insatisfeitos com a distribuição de forças. Tal processo é observado em várias outras regiões pacificadas da cidade, sendo outros casos notórios Cajú, Chapéu Mangueira, Tabajaras e Mangueira. Ainda em novembro de 2014, portanto dois anos após a ocupação militar da comunidade, o tráfico de drogas ainda sob a batuta de Nem, que se encontra preso no Penitenciária Federal de Campo Grande no Mato Grosso do Sul, continua forte, armado e explorando um dos negócios mais rentáveis no ramo da droga no estado do Rio. É como reconhece o coordenador das UPPs, Coronel Frederico Caldas: Segundo o coronel, a polícia recebeu informações através do DisqueDenúncia de que há 20 pontos de venda de drogas na comunidade. Com investigações do serviço reservado das UPPs, os locais foram mapeados, e a polícia, com ajuda de cães farejadores, tenta apreender armas e drogas. Entre os locais listados pela polícia, estão Cachopa, Laboriaux, Roupa Suja, Rua 1, 2 e 3, além da Rua do Valão. (COSTA & RESENDE, 2014)

Apesar de terem participado da operação destacamentos de elite da Polícia Militar, o resultado até agora é praticamente inexpressivo no sentido de prender traficantes e apreender 186

drogas e armas. Só elevando as tensões do conflito armado no local, gasta rios de dinheiro público: “Na tentativa de surpreender os traficantes, a polícia montou um cerco em toda a favela, por volta das 22h desta segunda-feira. No entanto, os policiais que estavam a postos entraram na Rocinha, por volta das 5h30m desta terça. Ainda de acordo com o coronel, no início da manhã, houve intenso tiroteio. Não há registro de feridos. Também não há informações sobre apreensões de armas ou drogas na região. Um veículo do Batalhão de Choque foi posicionado na Rua Cedro, nas proximidades da Escola Americana, e funciona como um centro de comando da PM, que recebe em tempo real imagens feitas pelo helicóptero que sobrevoa a favela.” (COSTA & RESENDE, 2014)

Ao mesmo tempo, ainda nessa operação, moradores denunciam a continuação da abusos policiais – agressão física, furto, coação, ameaça, abuso de autoridade, invasão de domicílio... -, fato que a própria polícia militar reconhece como possível, solicitando que as vítimas registrassem ocorrência na 11ª DP da Rocinha e que para lá levassem informações como o nome do policial, a hora e o local da ocorrência. No entanto, sabe-se que há o já clássico problema da identificação do PM nas fardas, pois ela pode ser removida a qualquer hora, é presa por velcro à farda. Em suma, depende da vontade do agente em ser ou não identificado, a exposição do nome dele na farda. E sem o nome do agente, segundo a polícia civil, é difícil identificar os mal-feitores, apesar do amplo sistema de vigilância por câmeras na Rocinha e nas viaturas, além do sistema de GPS das patrulhas. (BRITO, 2014) É a clara ineficácia desse modelo de guerra às drogas que dominou o debate de segurança pública no Rio de Janeiro, com níveis inéditos de legitimidade e aceitação, as UPPs já nasceram falidas, pois a função primordial de toda política pública é causar a sua extinção dando cabo do problema em questão. O que nunca acontecerá no caso das UPPs, pois não se acaba com o comércio de drogas psicotrópicas com repressão e exceção e sim com educação, regulamentação e saúde pública. Até a própria comandante da UPP Rocinha reconheceu a ineficiência da unidade pacificadora em dar cabo do tráfico na comunidade, segundo ela: “A presença de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) não foi capaz de diminuir os lucros do tráfico de drogas da Rocinha. Um ano e dois meses depois da implantação da UPP, traficantes movimentam R$ 10 milhões por mês na favela. A informação, levantada pelo setor de inteligência da unidade, foi revelada neste sábado pela comandante da UPP, major Pricilla Azevedo, em entrevista ao EXTRA. Em abril de 2011, antes da ocupação da favela pela polícia, um levantamento da Delegacia de Combate às Drogas (DCOD) apontou que a quadrilha movimentava R$

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8 milhões (...) — A quadrilha fatura muito aqui e não quer perder esse montante. Informações do nosso setor de inteligência apontam para um faturamento de mais de R$ 10 milhões por mês, interno e externo — disse a oficial, que confirmou que bandidos armados de fuzis ainda circulam pela comunidade (...) Pricilla também afirmou que a repercussão do caso Amarildo em meio aos moradores foi usada pelo tráfico para pôr em xeque a legitimidade da polícia. Segundo o Ministério Público, 25 PMs da UPP participaram da sessão de tortura seguida de morte de Amarildo (...) Segundo o setor de inteligência da UPP, há bocas de fumo em todas as regiões da favela, inclusive no asfalto. A Via Ápia, rua mais movimentada da Rocinha, tem dois pontos de venda de droga em sua extensão.” (SOARES, 2013)

Vê-se assim que após a implantação da UPP os lucros do tráfico só aumentaram ao invés de diminuírem, como era esperado e apregoado pelo governo em sua retórica de sustentação do projeto de pacificação, e que o tráfico, pulverizado, se disseminou por todas as regiões da comunidade, o que não era necessariamente verdade anteriormente, já que apesar do poder armado do tráfico se expandir por toda a extensão territorial da comunidade – e algumas áreas adjacentes como o Parque da Cidade na Gávea -, não havia bocas em todas as regiões da comunidade. Apesar de desarticular a centralização do comércio de drogas, a UPP também foi ineficiente na retirada de circulação de armamentos pesados da comunidade, sendo recorrente ver ostentação de fuzis por traficantes de drogas que eventualmente são usados tanto em confrontos com a polícia, quanto com outras facções na disputa pelos pontos de venda de drogas. A repressão nua e crua evidentemente não está funcionando. É nesse contexto difícil e conflituoso que o sistema de vigilância eletrônica tem papel fundamental. É através dele, por exemplo, que chegaram à comandante Priscilla Azevedo as informações de que há bocas e armamentos em todas as localidades da favela. Cada vez mais, portanto, a busca pela eficácia no combate ao tráfico de drogas – portanto, a eficiência na guerra às drogas, uma contradição em termos como ficou claro anteriormente - demanda a expansão do Big Brother que vigia a comunidade 24 horas por dia. Um outro nível de prova de poder do tráfico na Rocinha se deu em fevereiro de 2014 quando traficantes fuzilaram a sede da UPP e fecharam o Túnel Zuzu Angel que liga a Lagoa à São Conrado. Esses atos não passaram despercebidos pelos moradores, pelo contrário, tem grande valor simbólico, já que fechar o Túnel Zuzu Angel era uma prática recorrente empreendida pelo tráfico antes da UPP, que parava parte da cidade e evidenciava de maneira patente a falência da política de segurança pública e, por outro lado, ganhava a obediência e o medo dos moradores através dessa demonstração de poder. Além desse resgate do passado na prática, houve o desafio ao suposto controle que a UPP teria sobre a comunidade e seu território quando o tráfico consegue, apesar de todas as câmeras, inteligência e patrulhas 188

articular uma ação vultosa com armas pesadas e muitas pessoas com o fim de metralhar o coração da pacificação na comunidade. É com a unidade de polícia pacificadora em frangalhos que o morador da Rocinha percebe que o tráfico está longe de ir embora, só que agora a fonte de conflito mais imediato, quase sempre descambando em tiroteios, encontra-se fincada no seio da comunidade, circulando por ruas, becos e vielas, onde a vida cotidiana das pessoas acontece. É, portanto, a aproximação máxima do conflito armado do cotidiano das pessoas. E em resposta a isso é necessário agir estrategicamente com todas as partes envolvidas no conflito para que assim se conserve a vida e o que lhe permitem ter de dignidade e direitos. É neste contexto de escalada de conflito que se instalam e se expandem as câmeras pela Rocinha. Em janeiro de 2013, como o afirmado no blog de policiais militares - SOS Polícial Militar - havia na Rocinha 80 câmeras de vigilância. Apenas 6 meses depois, em julho do mesmo ano, os delegados Orlando Zaccone e Ruchester Marreiros utilizaram-se de cerca de 140 câmeras para dar substrato às investigações que culminaram na Operação Paz Armada, como afirmam nas declarações dadas à época da operação. Assim sendo, houve um crescimento quantitativo de 75% em 6 meses. Um grande aumento em pouco tempo. Prova de que este deve continuar sendo o caminho escolhido pelo governo do estado para tentar obter controle sobre comunidades deflagradas, que, no entanto, na prática, obtém resultados ainda tímidos perante o potencial apregoado pelas autoridades da segurança pública. Quanto à localização das câmeras, como já foi dito, estão colocadas em pontos estratégicos que, porém, não são divulgados pela UPP para que não frustrem o objetivo do sistema que é flagrar atos considerados ilícitos em meio à sociabilidade intensa, marca característica da Rocinha. Mas a polícia garante que todas as entradas e pontos de maior movimentação de pessoas são monitorados, como por exemplo a Via Ápia, Largo do Boiadeiro e o Bairro Barcelos. O próximo passo, como já foi citado, é instalar um software de reconhecimento facial, que permitirá com que os policiais saibam em tempo real identificar criminosos que tenham mandado de prisão, por exemplo. A plataforma pode ser utilizada por outros órgãos do Governo do Estado. Por outro lado, apesar de todo o investimento público em vigilância, não há câmeras no Caveirão. Isso mostra a disposição do governo em priorizar a repressão sem supervisão para que seja a mais “eficiente” possível, mesmo que causem grandes perdas humanas recorrentemente. Os caveirões foram modernizados, mas não receberam os equipamentos para monitorar os policiais como câmeras de vídeo e áudio, como o recomendado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em ocasiões de emprego do veículo. No entanto, há avanços 189

no monitoramento de policiais em outras funções, como a desencadeada pela lei estadual aprovada para a instalação de câmeras e GPS em todas as viaturas da Polícia Militar, o que já ajuda a expor os policiais à revisão de suas condutas, dentro ou fora da lei. É importante notar que a vigilância também existia nas sociedades disciplinares, que também contavam com suas tecnologias de vigilância, não sendo este portanto um fenômeno inédito das sociedades de controle. No entanto, há diferenças fundamentais entre a vigilância disciplinar e a do controle (COSTA, 2004). Na disciplina, a vigilância era centrada no vigiar do movimento físico de uma pessoa de interesse, era sobretudo o agente secreto que seguia um alvo de interesse para governos, ou o supervisor da fábrica vendo se algum dos operários paravam de trabalhar durante as horas de produção. Já no controle, como há uma reconfiguração da forma como as informações são estruturadas - em rede e reproduzidas em n pontos finitos -, a vigilância ganha novos contornos, interessando-se pelo modo como os indivíduos acessam essas informações. O interesse agora é sobre a dinâmica das comunicações entre pessoas e destas com as empresas e o Estado. É, portanto, a partir deste novo tipo de vigilância e de outras tecnologias típicas das sociedades de controle que se constroem padrões de comportamento e acesso, utilizados para construir perfis virtuais, digital doubles, corpos sem órgãos. Perfis virtuais dinâmicos reconstruídos e reclassificados a todo o tempo, em funções de novos padrões de comportamento, que podem ser reterritorializados para construir identidades, identificando indivíduos na massa. É parte das tecnologias de controle esse processo de captura de fluxos imateriais de informação, construção de digital doubles e verificação de indivíduos, ou seja, de desterritorialização e reterritorialização, segundo Deleuze e Guattari (2000). Como põe David Lyon: “Relationships no longer depend on embodied persons being co-present with each other. Abstract data and images stand in for the live population of many exchanges and communications today. Some of those abstract data and images are deliberately intercepted or captured in order to keep track of the now invisible persons who are nonetheless in an immense web of connections. Thus the disappearing body is made to reappear for management and administrative purposes by more or less the same technologies that helped it to vanish in the first place (...) the data doubles, created as they are from coded categories, are not innocent or innocuous virtual fictions. As they circulate, they serve to open and close doors of opportunity and access. They affect eligibilities for credit or state benefits and they bestow credentials or generate suspicion. They make a real difference. They have ethics, politics.” (LYON, 2003)

Alguns autores, dentre eles Bauman e Lyon (2013) e Haggerty e Ericson (2000) analisam este novo tipo de vigilância que surge na esteira da ascensão das sociedades de controle e a chamam de vigilância eletrônica rizomática. Tendo em vista a explicação anterior 190

do que seria o rizoma na explicação deleuziana das sociedades contemporâneas, os autores entendem que este novo tipo de vigilância como um rizoma. Crescem rapidamente através de séries interconectadas de raizes que espalham-se por todas as direções. Assim como um rizoma que pode ser quebrado em qualquer região – inclusive a-significantemente -, mas retomará sua expansão seja por linhas antigas ou novas. A vigilância eletrônica apresenta qualidades expansivas e regenerativas típicas de um rizoma. Alguns dos desdobramentos do agenciamento de vigilância derivam dos esforços para procurar novas populações-alvo que ostensivamente requerem um grau mais elevado de monitoramento. Apesar da vigilância estar penetrando profundamente as sociedades contemporâneas, este processo se dá de forma diferencial, no entanto submete a todos. Haggerty e Ericson se opõem a tese de que somente alguns setores populacionais estariam submetidos à lógica da vigilância eletrônica “The lives of the white mainstream are still comparatively untouched by it (FISKE, 1998: 85). And while the targeting of surveillance is indeed differential, we take exception to the idea that the mainstream is untouched by surveillance. Surveillance has become rhizomatic, it has transformed hierarchies of observation, and allows for the scrunity of the powerful by both institutions and the general population.” (HAGGERTY & ERICSON, 2000)

Essa possibilidade contemporânea de vigilância dos poderosos não é realizada somente por grupos sociais poderosos e por instituições, alguns atores acentuam a tendência de formas de observação “de baixo para cima”. O que caracteriza o sinopticismo. Sinopticismo significa muitos indivíduos focando-se em algo em comum, meios de comunicação como a televisão e a internet permitem, por exemplo, que o grande público escrutine seus líderes como nunca antes. Em suma, “no major population groups stand irrefutably above or outside of the surveillant assemblage” (HAGGERTY & ERICSON, 2000), mesmo que a vigilância se dê de forma diferencial, todos estão submetidos, em diferentes graus, a ela. Segundo Bauman e Lyon “o sinóptico é o panóptico faça-vocêmesmo... a vigilância sem vigilantes” (BAUMAN & LYON, 2013) O panóptico de Bentham retomado por Foucault seria a vigilância fixa do guarda na torre da prisão, mediada humanamente, contando sempre com a opacidade do poder e a transparência do vigiado. Alguns autores dizem que vivemos a Era pós-panóptica, visão esta compartilhada por Bauman e Lyon, que, no entanto, crêem estar o panóptico ainda em plena operação, assim como Wacquant, porém somente nas margens. Wacquant chama este fenômeno de panopticismo social, assim como Bauman e Lyon o fazem através do termo banóptico. Outra diferença básica é que o panóptico tinha como função a disciplina, enquanto 191

o banóptico responde a demandas por segurança. É como põem os autores: “A função estratégica do banóptico é traçar o perfil de minorias indesejadas. Suas três características são o poder excepcional em sociedades liberais (estados de emergência que se tornam rotineiros), traçar perfis (excluir certos grupos, categorias de pessoas excluídas de forma proativa em função de seu potencial comportamento futuro) e normalizar grupos não excluídos (segundo a crença no livre movimento de bens, capital, informações e pessoas).” (BAUMAN & LYON, 2013)

Segundo Lyon (2003), dados abstratos são manipulados para produzir perfis e categorias de risco em um sistema interligado e líquido. O trabalho de classificação é inerente ao Homem, surgiu junto com a capacidade da fala, mas o que o controle insere é inédito: automatiza a classificação. Se anteriormente a decisão sobre um indivíduo ser suspeito ou não era de um ser humano, aberto a interpretações, dúvidas, sentimentos e com o poder de mudar de idéia a qualquer momento, agora é substituído por matrizes e logaritmos em softwares que, através de códigos, fazem a triagem de movimentações econômicas, interações, visitas a sites, chamadas e etc. O que se deve ter em mente sobre a classificação é que “these categories cannot be impartial because they are produced by risk institutions that already put different value on young and old, rich and poor, black and white, men and women” (HAGGERTY & ERICSON, 2000). Ou seja, a classificação é baseada sobre estereótipos, o que reforça fenômenos como o racismo, o machismo, a criminalização da pobreza e etc, além de sempre abrir espaços para que novas condutas sejam criminalizadas. Alguns autores, citados por Lyon, como Oscar Gandy, entendem a vigilância eletrônica como “tecnologia discriminatória”, sendo ou não esta atividade automatizada, o que torna clara a natureza hierarquizante da classificação dos vigiados. E o autor ainda vai mais longe: “For those still in dire need, because of unemployment, illness, single parenthood or poverty otherwise generated, surveillance is tightened as a means of discipline” (LYON, 2003). Bauman e Lyon chamam atenção para o fato de que essas classificações não apenas descrevem grupos, mas também definem possibilidades. Esses softwares usados na automação contemporânea dos sistemas de vigilância eletrônica, que realizam o trabalho de classificação no lugar dos homens, desempenham na verdade, ainda segundo os autores, uma “discriminação racional”, que, baseado sobretudo em perfis raciais, provoca uma desvantagem cumulativa para aqueles negativamente identificados. E essa automação, deve-se dizer, resulta numa capacidade superampliada de agir à distância, como o também proporcionado por outros avanços tecnológicos do século XX (BAUMAN & LYON, 2013). Alguns dados podem ser inclusive obtidos através do computador instalado nas 192

viaturas policiais, o que o autor apelida de e-cop ou policial eletrônico, onde informações sobre a situação do indivíduo com a Justiça, os bancos de suspeitos, a lista de procurados, os antecedentes criminais e etc podem ser acessados em questão de segundos, o que há menos de dez anos demoraria dias para solicitar às respectivas agências tais informações. Portanto, o sistema está sem dúvida mais integrado e mais eficiente. Para Torin Monaham, retomado por Bauman e Lyon (2013), diferentes culturas de segurança, com suas infraestruturas de vigilância têm consequências semelhantes para gerar inseguranças e agravar as desigualdades sociais. A partir do medo do outro duas vertentes de ações são desencadeadas: agir para a preservação de sua própria segurança e apoiar medidas de exceção por parte do Estado, como torturas, assassinatos... sempre em nome da segurança. É em suma um sistema autopoiético: o desejo por segurança se retroalimenta, expandindo tecnologias de gerenciamento de riscos, de inseguranças, que geram insegurança, exceção e desigualdade. Como resumem Bauman e Lyon: “Os moradores da cidade são estranhos entre si, e todos somos suspeitos de portar o perigo; assim, todos nós, em algum grau, queremos que as ameaças flutuantes, difusas e incontroladas sejam condensadas e acumuladas num conjunto de “suspeitos habituais”. Espera-se que essa condensação mantenha a ameaça afastada e também, simultaneamente, nos proteja do perigo de sermos classificados como parte dela. É por essa dupla razão – proteger-nos dos perigos e de sermos classificados como um perigo – que temos investido numa densa rede de medidas de vigilância, seleção, segregação e exclusão. Todos nós devemos identificar os inimigos da segurança para não sermos incluídos entre eles. Precisamos acusar para sermos absolvidos, excluir para evitarmos a exclusão. Precisamos confiar na eficácia dos dispositivos de vigilância para termos o conforto de acreditar que nós, criaturas decentes que somos, escaparemos ilesos das emboscadas armadas por esses dispositivos – e que assim seremos reinvestidos e reconfirmados em nossa decência e na adequação de nossos métodos” (BAUMAN & LYON, 2013)

É este o paradoxo do mundo hoje, repleto de dispositivos de vigilância que fazem com que esta seja a geração mais protegida de todos os tempos, ao mesmo tempo que é a que se sente mais insegura. É o medo do outro, rotinizado, que diminui os espaços de privacidade e direitos em nome de uma suposta segurança (BAUMAN & LYON, 2013), que, como o próprio conceito de tempo nas sociedades de controle, algo contínuo, sem fim, onde os indivíduos estariam sempre no meio, no intermezzo (DELEUZE & GUATTARI, 2000). Assim sendo, independentemente do número de câmeras instaladas, prisões feitas, torturas e assassinatos perpetrados pelas autoridades estatais, as fontes de risco e insegurança continuarão a se multiplicar cada vez mais, assim como a sensação de insegurança que provavelmente não sofrerá reduções com o contexto societal que se apresenta, estruturado a 193

partir do risco e da incerteza. “Paradoxalmente estamos inquietos por causa de nosso insaciável desejo de sossego que nunca será plenamente aplacado enquanto estivermos vivos.” (BAUMAN & LYON, 2013) Um dos grandes exemplos observados no trabalho de campo deste fenômeno estabelecido por Bauman e Lyon é a elite local da Rocinha. Chamada por alguns autores de burguesia favelada, é a parcela populacional da favela que tem capital politico e social, além de ser considerado um dos interlocutores da UPP, sendo considerados legítimos por todos, tanto por policiais, quanto por moradores, subtraindo-se desta parcela obviamente os traficantes. No entanto, como interlocutor considerado legítimo, a UPP apesar de não procurar apoio nesta classe na implementação do sistema de vigilância eletrônica, o recebeu prontamente, pois estes tinham a percepção que a instalação de um sistema de câmeras permitiria condições melhores de proteção a suas posses. Seus negócios estariam mais protegidos da ação de mal-feitores. Portanto, muitos comerciantes ajudaram ativamente colocando câmeras em seus estabelecimentos dentro e fora e previamente pondo as imagens à disposição da polícia mediante a aviso verbal. Não se atinou para o fato de que ceder tais imagens poderia fornecer à polícia a lista de clientes, a frequência com que vão, que tipo de relação empreendem enquanto estão socializando no lugar, se há ou não tráfico no local, se há exceções por parte dos clientes ou omissões por parte dos comerciantes e etc facilitando e muito as investigações da polícia que poderiam afetar os negócios e até mesmo a vida pessoal dos comerciantes que moram na favela, caso as imagens de seu estabelecimento fossem usadas para, por exemplo, preder traficantes ou apreender mercadorias. Apesar da presença da UPP no local e da redução drástica das taxas de homicídio no local empreendidas pelo tráfico de drogas, é amplamente sabido o poder de fogo dos traficantes e seu empenho para manter seu negócio e seus lucros intocados. A experiência e a história documenta que assassinatos estão entre penalidades menos cruéis associadas àqueles acusados de traição, os famosos X-9s. Relatos de moradores colhidos em campo indicam que comerciantes já foram expulsos da comunidade depois da instalação da UPP devido a esse compartilhamento voluntário de informações, o que mais uma vez deixa claro o poder que o tráfico ainda ostenta na favela da Rocinha. É claramente a ascensão do paradigma do controle que rege as novas tecnologias de poder - e de exceção – postas em funcionamento recentemente na Rocinha. É o engendramento

entre

biopolítica

e

controle,

gerando

uma

forma

híbrida

de

governamentalidade. É a vigilância rizomática, a criação de digital doubles facilmente desconstruíveis e reconstruíveis em diferentes padrões segundo o desejo do analista dos 194

dados, inclusive com anseios claros de avançar na direção da tecnologia de reconhecimento facial e compartilhamento dos dados entre as mais diversas agências estatais. A tecnologia é contingente quanto ao contexto de seu uso e abre espaços para agência e para contra-métodos de controle. Como dizem Bauman e Lyon “A tecnologia não determina as coisas: ela restringe, mas também possibilita” (BAUMAN & LYON, 2013). Abrem-se, portanto, espaços inéditos para novos tipos de resistência que surgem a reboque da reorganização das relações de poder. Pois, como se sabe, é pressuposto, ou seja, sempre estão presentes as resistências como parte constitutiva de qualquer relação de poder. As tecnologias de controle são usadas em favelas por ativistas políticos favelados como resistência às ações ilegais da polícia nestas áreas, assim como contra o domínio de traficantes. Um exemplo deste uso das tecnologias de controle é do militante Raull Santiago do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, que sempre sai pelas ruas de sua comunidade com câmeras e microfones prontos para surpreender policiais da UPP cometendo crimes, o que recorrentemente denuncia. No entanto, por suas atividades, ele se encontra em constante risco de vida, já tendo sido ameaçado diversas vezes. O sucesso das postagens de Raull foram tão grandes que, além de passar a ser visto como uma das fontes de informação mais seguras sobre o que se passa na comunidade, foi contratado pela Globo News, o maior canal por assinatura de notícias do Brasil. Apesar de Raull ser um caso emblemático, as possibilidades de resistência estão capilarmente disseminadas, pois grande parte dos moradores de favela do Rio de Janeiro hoje em dia tem acesso a celulares e câmeras portáteis, podendo se tornar, mesmo que inesperadamente, cinegrafista de um ilícito, que provavelmente depois será postado na internet. Amontoam-se as denúncias feitas através de vídeos na internet – ao invés de denúncias à polícia civil, pela percepção de que esta é ineficiente na resolução de crimes cometidos por policiais -, mostrando que esta é uma tendência que nos últimos anos vem se acentuando. Além desses dispositivos, há aplicativos de localização em celulares e outros aparelhos eletrônicos, que permitem a localização de ativistas como Raull em possíveis situações de sequestro, o que o assegura mais uma vez, já que é reconhecido o envolvimento de policiais criminosos em extrações forçadas de testemunhas de seus crimes ou denunciantes. Com isso, crimes cometidos por policiais antes da disseminação dessas tecnologias, como é o caso denunciado por Maria Helena Moreira Alves no Complexo do Alemão, hoje não seriam possíveis porque seriam gravados de dezenas de ângulos diferentes, com as mais variadas qualidades de gravação, o que levaria à identificação dos mal-feitores:

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“Tinha uma professora que era a favor da invasão do Bope, mas mudou de idéia quando viu um grupo de moradores, muitos que eram pais de alunos dela, que foram espancados e torturados na praça, para todo mundo da comunidade ver. Para que ficassem com medo e contassem o que sabiam. Mas as pessoas têm medo de contar porque também os outros ameaçaram. E os dois lados, a Polícia Militar e os bandidos, ameaçam levar para o micro-ondas.” (MOREIRA ALVES, 2013)

É importante, portanto, levar em consideração que o controle tem desdobramentos negativos, mas também positivos inegáveis, são estes poucos efeitos positivos, superdimensionados na retórica oficial, que levam a sociedade a aceitar essas sujeições e exposição de forma voluntária, em nome da segurança. Mas está enganado aquele analista que interpreta este fenômeno de maneira maniqueísta, pois certamente encontra-se em choque com a realidade. É aí que reside a diferença entre análises acadêmicas e político-ideológicas sobre a sociedade de controle. Também é preciso entender que estas inovações tecnológicas citadas por todo o trabalho não são produtos que tiveram impactos sociais, pelo contrário são tecnologias ativamente buscadas para responder a pressões particulares de natureza políticoeconômica. É total e inescapável o avanço do controle, mas ao mesmo tempo que essa nova mecânica de poder cria assujeitamentos, tornam-se possíveis novos espaços e repertórios de resistência, já que cada relação de poder pressupõe em si mesmo as resistências.

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6. CONCLUSÃO: A FAVELA, O CAMPO E O REFUGO

“A guerra às drogas que matou o Amarildo” Marcha da Maconha do Rio de Janeiro, 2013. A violência é o hoje a principal razão alegada para a Guerra às Drogas, colocada como causada pelo narcotráfico. Entendida a absoluta inutilidade e ineficácia do proibicionismo, diante do fato de um consumo que persiste e, de fato, financia as organizações criminosas, sendo as drogas uma questão de política e saúde pública e não de polícia que, legalizadas, poderiam ter seu comércio e consumo controlados pelo Estado – e por seus órgãos, como a vigilância sanitária – que fiscalizaria e criaria padrões para atestar a qualidade e pureza do produto, garantindo maiores condições de segurança para os usuários que hoje em dia têm acesso a produtos inferiores, de péssima qualidade e profundamente danosos à saúde devido exclusivamente à completa desregulamentação do negócio imposta pela criminalização das drogas. Ao ser incorporado à economia formal, este comércio recolheria taxas que poderiam ser aplicadas para custear a prevenção dos riscos decorrentes do consumo das drogas, como já acontece em alguns países. Além dos ganhos para os consumidores dos produtos criminalizados e para o Estado, a violência associada ao narcotráfico diminuiria vertiginosamente, pois, uma vez legalizadas, os narcotraficantes perderiam o monopólio da venda da droga agora disponível legalmente, tornando os riscos de aquisição da droga no mercado negro muito altos. Há riscos de permanência do tráfico de drogas sim, mas só em casos específicos, como, por exemplo, se a descriminalização das drogas incluir em si limitações ao consumo (como o observado em alguns países) consideradas muito severas pelos usuários, que recorrerão então ao mercado negro para obter a quantidade adicional de mercadoria que querem ou ainda se os preços das drogas legalizadas tornarem-se proibitivos pela incisão de taxas abusivas, elevando em muito o preço de mercado delas, fazendo então que, mais uma vez, as pessoas recorram à cadeia ilegal de fornecimento de drogas, por serem mais baratas. Porém, se a política pública de descriminalização das drogas for racionalmente construída para pôr fim ao tráfico e para melhorar as condições sanitárias de consumo, dificilmente esses desvios de consumo do mercado legal para o ilegal acontecerão. Com altas taxas de violência e de criminalização de condutas sociais pelo Estado, traduzidas, por exemplo, no hiperencarceramento da população, o sentimento de insegurança é generalizado na sociedade, vê-se o combate mais ferrenho às drogas e aos traficantes vistos 197

como a única saída. Vistos, estes dois elementos, como responsáveis pelo problema da violência, entende-se que podem e devem ser, eles, eliminados pelo Estado, para que o perigo à sociedade seja neutralizado. Para que este trabalho seja realizado com maior afinco, a população, impulsionada pela grande mídia conservadora, clama pelo uso das Forças Armadas na segurança pública, sendo este um dos consensos, dos sensos comuns, mais arraigados do campo da segurança pública. Como analisado aqui, o emprego indiscriminado de militares no combate à criminalidade comum, atribui caráter bélico, de guerra, às operações de segurança pública, onde o direito é suspenso e o fora-da-lei é encarado como o inimigo, tornando-se legítima (e legal de facto levando em consideração que o soberano é aquele que tem o monopólio de produzir normatividade através de sua ação, de seu poder decisório) a aniquilação dele pelas FFAA, cuja função, em última instância, é matar, e não combater a criminalidade. Este uso não-clássico das Força Armadas pode resultar na degradação tanto do profissionalismo militar, quanto do controle civil objetivo sobre as Forças Armadas, ambos incompatíveis com democracias, como a própria história brasileira comprova. Além disso, o contato direto com o poder corruptor do narcotráfico pode levar os militares a imiscuírem-se com ele, problema gravíssimo já experienciado em outros países latinos que militarizaram por completo seus setores de segurança pública. É nesse sentido que, na contemporaneidade, o estado de exceção como paradigma de governo tornou-se regra, assumindo assim a função de garantir o modo de produção capitalista, que inexoravelmente gera exclusão, produzindo e eliminando cotidianamente os detritos advindos do capitalismo, os refugos humanos. Se o estado de exceção tornou-se a regra, o campo de concentração é o espaço que se abre como sua consequência. No campo, há a suspensão temporal do direito (o direito vige, mas não obriga, aplica-se desaplicando-se) ante a existência de um perigo, ou seja, o estado de exceção torna-se um estado permanente fazendo com que o campo adquira uma estabilidade fora do ordenamento jurídico, uma estabilidade in bando. Apesar do que muitos acreditam, os campos de concentração não se resumem à experiência nazi-fascista da Segunda Guerra Mundial, pelo contrário, já existiam antes, e não param de surgir e de se espalhar por todos os recantos do planeta, como depósitos de lixo, de refugo humano, produzidos pela economia capitalista contemporânea que já não consegue utilizar toda a mão-de-obra disponível, não havendo mais a figura do exército de reserva de mão-de-obra, já que estas pessoas têm chances nulas de serem absorvidas pelo sistema capitalista e, portanto, tende a zero a chance de terem trabalho e renda. Portanto, o refugo humano são pessoas que, diante das constantes transformações socioeconômicas causadas pela globalização do capitalismo avançado, não encontram mais um lugar na 198

sociedade de mercado, de trabalho e de consumo. São, os refugos humanos, considerados excessos do sistema, são supérfulos, descartáveis, sendo, portanto, cotidianamente eliminados, sem que sua morte constitua crime, assumindo a figura do direito romano do homo sacer. Assim, no capitalismo tardio, as massas não-absorvidas por ele são consideradas descartáveis, pois não têm e continuarão a não ter utilidade para o desenvolvimento do sistema capitalista, pelo contrário, só atravancam este desenvolvimento e, por suas condições constantes de privação, teoricamente colocam em risco a própria sociedade, uma associação simbólica entre pobreza e delinquência, já muito antiga no Brasil. Quando entendido como causa de uma crise securitária, o refugo humano é despido de sua existência política e reduzido à vida nua, onde a própria vida biológica é politizada, onde não é considerado crime a eliminação física destes seres potencialmente perigosos. Portanto, o refugo tem a vida matável, porém não sacrificável, por não poder ser formalmente, pela lei, condenado à morte por sua condição socioeconômica, apesar de tal fato ser normalmente observado nas periferias de todo o mundo. É, portanto, uma vida matável, porém não sacrificável e não absorvível pelo capitalismo da pós-modernidade, a vida das pessoas que moram nos rincões do capitalismo, nos campos de concentração modernos. Coincidem, então, as figuras do homo sacer, do refugo humano e do favelado, no caso especificamente carioca, ficando claro, portanto, que a favela adquiriu um estabilidade fora da ordem jurídica, in bando, como espaço genuíno de exceção, podendo assim ser justaposta à figura do campo. À vista disso, pode-se dizer que a favela é a modalidade genuinamente carioca do campo de concentração, como diz Agamben (2003), sendo a favela – o campo – o nomos moderno, como o mais contemporâneo paradigma biopolítico. É nesse quadro de exclusão e privação permanentes que as UPPs são formuladas e implementadas como a “solução para o problema das favelas” como disse ao programa 60 Minutes o empresário carioca Eike Batista, maior financiador privado do processo de pacificação. Porém, como o visto aqui, o problema da violência é multidimensional e multifatorial, não havendo respostas simples para saná-lo. As UPPs, ocupações territoriais permanentes de áreas de favela de grande importância estratégica para o Estado, em momento de preparação para a Copa e para as Olimpíadas, tornam-se instâncias organizativas descentralizadas da implementação “do mais cabal estado de exceção”, como o dito por Nilo Batista. É, portanto, a suspensão da ordem jurídica normal, ordinária, nas áreas de favela ocupadas pelas UPPs, colocando-as sob o bando soberano do Estado e, sobretudo, da polícia, instituição que se confunde com o soberano nessas regiões, sendo, inclusive, a instituição responsável por permitir ou negar que eventos culturais, sociais, religiosos e políticos tomem 199

lugar nas comunidades. É, além da militarização dos conflitos sociais, a cultura sendo tutelada pela autoridade policial ou, as vezes, até mesmo militar, como foi o caso do Morro do Alemão durante os anos de ocupação da comunidade pelo Exército. Algo completamente incompatível com a democracia. É o Estado de Polícia, o Estado penal, assumindo a gestão da miséria, tomando o lugar que na modernidade era ocupado pelo sistema de welfare e suas agências. Na pósmodernidade porém, os Estados de Polícia convivem muito bem dentro das democracias, não mais correspondendo necessariamente a sistemas considerados autoritários ou antidemocráticos. Este estado de exceção usado como paradigma de governo, o Estado de polícia que suplanta o Estado de Direito, torna-se, portanto, intrinsecamente ligado às democracias, sendo usado nelas cotidianamente como técnica de governo. Portanto, mantém-se a casca democrática, com algumas formalidades identificadas com a democracia sendo respeitadas, como a igualdade jurídica entre todos os cidadãos e o sufrágio universal, para que se legitime a ação totalizante da faceta penal do Estado neoliberal, no caso específico das UPPs, para que se legitime o grande espaço ambíguo de atuação da polícia-soberana, que cotidianamente, nestes espaços, é investida da autoridade e, portanto do poder, do próprio soberano. A biopolítica, em plena operação no que diz respeito aos espaços de relegação como chama Wacquant, os guetos, favelas, innercities e etc, no entanto não é a única mecânica de poder em funcionamento nas favelas cariocas. Recentemente, um processo toma lugar com relação a esses espaços: a ascensão das técnicas e tecnologias típicas das sociedades de controle como descritas por Deleuze. Com a chegada desta nova mecânica de poder, há uma reorganização da governamentalidade local, ou seja, forma-se um híbrido que resulta em algo novo e único.

Assim como Foucault, Deleuze vê o enclausuramento como operação

fundamental da sociedade disciplinar, e aí reside uma das mais importantes diferenças entre a disciplina e o controle: no controle as penalizações são a céu aberto, com interpenetração de espaços, visão de tempo contínua, infinita, apresentando-se sempre como o intermezzo, como chama Deleuze. Os dispositivos de controle obtém informações das mais variadas ações dos indivíduos, para então formar padrões de composição e acesso, modus operandi da sociedade de controle. O conteúdo em si é colocado em segundo plano em escala de importância. Isso se deve ao fato de que enquanto os conteúdos apontam para as pessoas, para os indivíduos, os padrões de composição e acesso remetem aos fluxos de ações desses indivíduos, como códigos digitais dentro de uma amostra. Os padrões de composição destes fluxos, reunidos, formam um digital double, ou seja, o indivíduo desterritorializado em múltiplos fluxos que em conjunto formam um perfil virtual, diferente de uma identidade, dinâmico e 200

(re)construível em tempo real, de acordo com a movimentação do indivíduo pela sociedade em rede. É possível e recorrente que tome lugar um processo subsequente de reterritorialização, quando for de interesse, para reconstituir o indivíduo, mas só enquanto estado transitório, pois a regra das sociedades de controle são os divíduos, ao contrário das sociedades disciplinares cujo locus de aplicação de poder era o indivíduo, entendido como unidade indivisível. Ainda segundo os autores Deleuze e Guattari (2000), a sociedade vem se organizando em rede nas últimas décadas, mas não segundo uma organização qualquer. Recorrendo a uma figura biológica, eles caracterizam a sociedade à imagem e semelhança dos rizomas, estruturas subterrâneas, que se confundem, se interligam, se expandem, mas também se quebram, morrem em certas regiões. O rizoma é um sistema verdadeiramente múltiplo, que renega a Lei do Uno, típica dos sistemas fasciculados e radiculares. O rizoma está sempre no meio, no intermezzo, e é fluxo, movimento, além de apresentar de maneira geral seis princípios: da conexão e da heterogeneidade, de multiplicidade, de ruptura a-significante, de cartografia e decalcomania. Apesar das diferenças claras entre raiz, sistema fasciculado e rizoma, há diversos agenciamentos que podem se configurar a partir dessas configurações. É interessante ainda notar que quaisquer mudanças como novas conexões ou rupturas provocarão uma reorganização, que pode ser significante ou não, de todo o rizoma. É portanto um sistema complexo e extremamente conectado e interdependente. É essa a imagem para os autores, tanto do pensamento humano, quanto da questão da autoria e principalmente das sociedades de controle. O que, porém, os autores não trataram diretamente foi a natureza rizomática de outros tantos eventos, alguns já existentes, advindos de mecânicas de poder anteriores, como, por exemplo, a vigilância. A vigilância, típica da disciplina, ganha novos contornos com a ascensão do controle, sendo chamada por autores como Bauman e Lyon (2013) e Haggerty e Ericson (2000) vigilância eletrônica rizomática. É rizomática pois crescem rapidamente, através de séries interconectadas de raizes que espalham-se por todas as direções, pode ser quebrado em qualquer região que retomará sua expansão seja por linhas antigas ou novas, apresenta qualidades expansivas e regenerativas típicas de um rizoma. Desdobramentos do agenciamento de vigilância vem da classificação soberana de novas populações-alvo que, por serem tidas como perigosas, requerem um grau mais elevado de monitoramento. Apesar da vigilância estar penetrando profundamente as sociedades contemporâneas esse processo se dá de forma diferencial. Sem negar o que afirmam alguns deleuzianos sobre o controle religar a cidade - ao contrário das mecânicas de poder precedentes que clivavam a cidade -, que 201

submete a todos, é importante ressaltar que não submete a todos igualmente. Há, por exemplo, para Wacquant, Bauman e Lyon o banóptico, que nada mais é que o panóptico com fortes braços eletrônicos voltados à vigilância dos indivíduos que sejam entendidos como um risco às sociedades – policiais – de controle. O controle modifica tudo o que toca: a sociabilidade, o ofício das agências estatais e instituições, incluindo-se aqui a polícia, além das mecânicas precedentes de poder. Por isto esta discussão teórica foi de suma importância para o desenvolvimento desta dissertação. O teatro de operações, espaço de experimentação escolhido para a implantação do controle de estilo baóptico é a comunidade da Rocinha, única favela do Brasil que conta com um sistema robusto de vigilância eletrônica com mais de uma centena de câmeras e, portanto, a comunidade foi escolhida para o desenvolvimento do trabalho de campo. A Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina com quase 70 mil habitantes, de composição populacional jovem, com altas taxas de natalidade, com aquecida economia – que vai muito além da suposta informalidade e do tráfico de drogas -, apresenta níveis baixos de renda se comparada com o resto da cidade, porém alto se comparada com outras favelas, e que apresenta grandes variações em função da localização geográfica no interior da comunidade, com baixo IDH, mas com elevada oferta de comércio e serviços, contando inclusive com agências bancárias, imobiliárias e redes internacionais de fast food. É a cristalização mais evidente da integração deste aglomerado humano com os circuitos econômicos da cidade e do capitalismo internacional. É oficialmente encarada como bairro pela prefeitura da cidade, porém conta com serviços públicos de péssima qualidade, mesmo que desde a ocupação militar do morro todos os serviços tenham sido formalizados. A UPP Rocinha, inaugurada em 2012, insere-se num longo contexto de disputas de facções do tráfico e dentro destas pelo controle da venda de drogas na comunidade, tida como um dos pontos mais lucrativos do comércio de psicoativos da cidade. Consolidado no poder, Nem, mesmo tendo sido preso, ainda continua a chefiar as atividades ilícitas na comunidade indicando diretamente os atuais “frentes” da favela. A própria UPP e a Polícia Civil em operações como a Paz Armada admitem que o tráfico continua em funcionamento na comunidade, porém com uma nova configuração, apesar de fortemente armados, disseminaram-se “microbocas” por toda a comunidade, tendo sido mapeadas mais de cem através de investigação da Polícia Civil. Para melhor responder aos desafios apresentados por este contexto conturbado, é inaugurada a 11ª Delegacia da Rocinha que aliviaria a UPP na sobrecarga de funções típica do programa de pacificação do governo Sérgio Cabral. Devido a este contexto conturbado é instalado o Centro de Comando e Controle da 202

UPP Rocinha para fortalecer o braço da inteligência policial, num contexto tão complexo e múltiplo como é o caso da Rocinha. Não que a repressão e a ostensividade tenham sido diminuídas, como acontece em cidades pelo mundo onde o controle é implantado, como no caso de Guarujá, em São Paulo, mas elas teoricamente começariam a ser melhor direcionadas, alocando melhor os recursos disponíveis. O que se viu na prática foram parcos resultados na contensão das gangues armadas dentro da comunidade, tendo acontecido inclusive uma guerra de facções já depois da UPP estar instalada na comunidade, e na redução das taxas de criminalidade. Além disso, há impactos inegáveis na sociabilidade de dependentes químicos e usuários de drogas que não apresentam dependência dos psicotrópicos consumidos, que, uma vez identificados, passam a ser cotidianamente perseguidos, mesmo quando não há qualquer evidência de transgressão das leis. Outros impactos são, como observaram Haggerty e Ericson (2000) o reforço das desigualdades e de estereótipos, pois a classificação soberana dos agentes que fazem a triagem das imagens capturadas pelas câmeras não é neutra, é política e, segundo os autores, tem até mesmo uma ética própria. Em suma, ela reproduz e retroalimenta o machismo, a criminalização da pobreza e o racismo, dentre outros, ao mesmo tempo que só aumenta o desejo inatingível por segurança nas sociedades de risco ou de controle. Alguns autores como Oscar Gandy, citado por Bauman e Lyon (2013), vão ainda mais longe e nomeiam tais procedimentos aparentemente técnicos, neutros, de “discriminação racional”. No entanto, como afirmam Bauman e Lyon (2013), a tecnologia é aquilo que as pessoas fazem dela, é contingente quanto a seu uso e por isso é operacionalizada para fins não antecipados. Esse é o caso do uso do controle para resistência e autopreservação de moradores de favela, principalmente de ativistas políticas favelados, que são constantemente ameaçados e por vezes até perseguidos e chantageados em função das denúncias que realizam. É graças ao barateamento e à capilaridade de tecnologias de controle como câmeras digitais e em aparelhos celulares, que hoje em dia o controle é usado contra o Estado, para gravar possíveis mal-feitos de agentes públicos no exercício de sua função. Com isso alguns crimes cometidos por policiais antes da disseminação destas tecnologias, como no caso citado do Complexo do Alemão, passam a ser pouco prováveis, pois o policial antes de se engajar em tais desvios de sua função realiza um cálculo racional de que provavelmente será fotografado ou filmado no ato. É claro que sempre há a possibilidade de, mesmo com provas claras do envolvimento de agentes de segurança em crimes contra a população, o policial seja absolvido ou o processo arquivado, isto é, se o Ministério Público chegar a oferecer denúncia. É o corporativismo e a visão bélica de segurança pública, além da desvalorização dos direitos humanos, que permitem que tais situações sejam recorrentes no Brasil. 203

Para ultrapassar este contexto, alguns processos e algumas políticas públicas precisam ser urgentemente revertidas, dentre eles estão: a desmilitarização das polícias, a criação de uma ouvidoria externa e independente que tenha liberdade de ação e seja livre de corporativismos, o fim da guerra às drogas através da regulamentação de todos os psicoativos hoje considerados ilícitos, da maconha ao crack, o que retiraria grande parte do poder econômico dessas quadrilhas, impossibilitando assim o tráfico de armas e a corrida armamentista que levou, por exemplo, artilharias anti-aéreas para as favelas e fuzis para o patrulhamento ostensivo do asfalto, como se não fossem armas de guerra, naturalizadas no cotidiano da cidade, igualdade de oportunidades para toda a cidade, oferecendo serviços públicos de qualidade inclusive para as favelas, sobretudo educação, lazer e cultura e, por último mas não menos importante, é preciso que o Estado encare os favelados como cidadãos plenos, com direitos a serem respeitados e deveres a serem cumpridos e não como possíveis riscos à estabilidade da cidade, como sementes do mal ou potência de revolta e desordem. Só quando forem considerados atores políticos legítimos, com direitos plenos, e não como o Outro a ser temido e controlado, só então a democracia brasileira deixará para trás a pecha autoritária que contaminou a transição da ditadura para a democracia, cristalizando-se nos artigos da Constituição de 1988 analisados comedidamente durante este trabalho. Pois, como diria Robert Dahl: “Um regime competitivo não pode ser mantido num país onde as forças policiais e militares estão acostumados a intervir na política, mesmo que a ordem social seja, sobre outros aspectos, pluralista e não centralmente dominada.” (DAHL, 2012)

Para além disso, apesar do controle ser inescapável – mesmo que diferencial -, não sou tão pessimista quanto George Orwell que, em seu livro 1984, durante um diálogo entre Winston e O'Brien, diz que o futuro da humanidade é um crânio humano sendo esmagado por um coturno. Porém, é fato que certamente estaremos cada vez mais vulneráveis e expostos ao Estado, às empresas e ao grande público que utilizam as tecnologias de controle para os mais variados fins. Daqui a algum tempo, o cartaz “sorria, você está sendo filmado” não necessitará mais ser ostentado publicamente para informação dos indivíduos - que teoricamente têm direito à privacidade, à imagem e até mesmo ao esquecimento -, ele estará internalizado, se apresentará como um a priori, de forma subcutânea, será parte constitutiva do sujeito e aí sim terá completado sua jornada e provavelmente será ressignificado por outras tantas mecânicas e tecnologias de poder que responderão a novas necessidades e demandas de outros contextos histórico-sociais. É uma concatenação contínua e 204

aparentemente interminável de mecânicas de poder, que se sucedem e se transformam com as transformações sociais, econômicas e, sobretudo, políticas.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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