Sociologia do Esporte e Processos Civilizatórios - Eric Dunning

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Eric Dunning. (Org.). Sociologia do Esporte e os Processos Civilizatórios. 1ed.São Paulo: Annablume, 2014.

SOCIOLOGIA DO ESPORTE E OS PROCESSOS CIVILIZATÓRIOS

Eric Dunning

Sociologia do Esporte e os Processos Civilizatórios

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Organização: Heloisa Helena Baldy dos Reis

Tradução: Mauro de Campos Silva Sebastião Nascimento

Revisão técnica: Heloisa Helena Baldy dos Reis Digitação e revisão do original inglês: Angélica Pfister, Cleide Filipini, Marli Lima e Raoni Cordeiro

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Sumário

Capítulo 1 – Eric Dunning no CEAv/Unicamp, uma experiência única Pedro Paulo Funari Capítulo 2 – As contribuições de Eric Dunning para o desenvolvimento da Sociologia do Esporte no Brasil: uma introdução à Sociologia Figuracional Heloisa Helena Baldy dos Reis Capítulo 3 – Norbert Elias: uma breve biografia Capítulo 4 – Elias e a sociedade moderna: habitus, figurações, poder e processo Capítulo 5 – A “teoria central” de Elias: os processos “civilizadores” ocidentais e algumas de suas principais variações Capítulo 6 – “Testando” Elias: aspectos da violência numa perspectiva de longo prazo Capítulo 7 – Uma discussão dos antecedentes do esporte moderno na Europa antiga e feudal Capítulo 8 – A história e o desenvolvimento do esporte moderno Capítulo 9 – O desenvolvimento do futebol Capítulo 10 – Reflexões sociológicas sobre figurações e processos no esporte e na globalização: algumas observações conceituais e teóricas com especial referência ao futebol Capítulo 11 – O hooliganismo no futebol como um problema global Capítulo 12 – O esporte como um domínio masculino: observações sobre as fontes sociais da identidade masculina e suas transformações

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Capítulo 1

Eric Dunning no CEAv/Unicamp, uma experiência única

Quando o professor Fernando Costa, reitor da Unicamp (2009–2013), me convidou para organizar um Centro de Estudos Avançados, em setembro de 2009, a tarefa pareceu-me, ao mesmo tempo, imensa e necessária . Imensa, pela complexidade e ambição implícita em uma empreitada como essa, mas, ao mesmo tempo, necessária para que a universidade pudesse se dotar de um ambiente favorável à reflexão crítica, criativa, inovadora e arriscada . Entre as primeiras ações, esteve o conhecimento, in loco, dos grandes centros, a começar pelo Institute for Advanced Study, em Princeton, EUA, instituto pioneiro (1930) que congregou, logo nos seus inícios, grandes nomes da ciência mundial, como o do físico Albert Einstein (1879–1955) e o do historiador da arte Erwin Panofsky (1892–1968) . Em seguida, a Unicamp organizou um evento que congregou alguns dos mais importantes e consolidados Institutos de Estudos Avançados (Ieas) do mundo, com a participação de Princeton, Stanford, Jerusalém e USP, em 2011 . Nesses centros, atuaram em seus anos iniciais nomes de referência nas humanidades como Thomas Kuhn (1922–1966) e Karl Popper (1902–1994) o que, sem dúvida, contribuiu, de forma decisiva, para a consolidação e florescimento desses organismos de pesquisa e reflexão . O Centro de Estudos Avançados da Unicamp (CEAvUnicamp) contou, nesse período inicial, com um intelectual do calibre dos luminares que atuaram em outros institutos em seus começos: Eric Dunning, que é hoje um dos mais célebres cientistas sociais britânicos e uma referência mundial no âmbito da Sociologia do Esporte. Aluno e colaborador próximo de Norbert Elias (1897–1990) desde a década de 1950, Dunning ocupa hoje a posição honorífica de professor emérito no Departamento de Sociologia da Universidade de Leicester, Inglaterra. Membro destacado da chamada “Escola de

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Leicester” na Sociologia, o professor Dunning publicou diversos livros fundamentais para a abordagem do fenômeno esportivo pelas ciências sociais. Destaca-se, entre eles, o clássico A Busca da Excitação (Quest for Excitement, 1986), escrito em parceria com Norbert Elias, e publicado em português pela Difel, de Portugal, em 1992 , mas com muitos outros títulos recentes . Sua parceria com o grande sociólogo alemão Norbert Elias marcou, de forma decisiva, as Ciências Humanas, desde a década de 1960 e sua curiosidade intelectual, inspirada em seu mestre Elias, espraiou-se por um amplo espectro de temas, entre os quais deve destacar-se a violência no esporte. No nascente CEAv/Unicamp, o Grupo de Estudos Avançados em Esporte, sob a coordenação do professor Paulo César Montagner, apresentou a aspiração de trazer o professor Eric Dunning, para que pudesse contribuir com um ciclo de palestras e a publicação de um livro de referência. Montagner tem se dedicado, há tempo, a temas relativos aos aspectos sociais do esporte e logo se colocou em contato com a professora Heloisa Helena Baldy dos Reis, colaboradora de longa data do professor Dunning e estudiosa do tema da violência no esporte e seus aspectos sociais . Desta colaboração frutífera surgiram as condições para a concretização da vinda do professor Dunning à Unicamp. Não era uma tarefa fácil, a despeito do interesse imenso de ambas as partes, a começar pelas dificuldades práticas, tendo em vista que o professor Dunning apresentava algumas limitações derivadas de uma prótese óssea e de uma tardia deficiência visual. Contudo, e a despeito disso, foi possível trazê-lo, em 2011, para uma série de palestras, além de gravações na Rádio e na Televisão Unicamp , em entrevistas concedidas à professora Helena Altmann, estudiosa, em particular, do corpo e das relações de gênero no esporte e à professora Maria Beatriz Rocha Ferreira, especialista em jogos , que abordou o tema Norbert Elias e suas teorias . Durante sua estada, Dunning interagiu com diversos colegas da Unicamp e de outras instituições que acorreram à universidade, envolvidos, de uma maneira ou de outra, com a temática do esporte e da violência na sociedade contemporânea, como Arlei Dalmo e Márcio Seligman-Silva , entre outros. Como resultado, também, da sua atuação no CEAv, foi acertada a publicação de um volume que congregasse um corpo substancial da sua produção acadêmica e de referência. O professor Dunning entregou-nos um alentado conjunto de textos à mão ou datilografados, que foram digitados no original em inglês e, após cuidadosa revisão, foram traduzidos para o português. Os manuscritos apresentavam uma gama de questões paleográficas e de reconstituição dos originais,

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cuja solução não pôde contar com a participação efetiva do autor, por problemas de saúde que dificultaram, desde então, sua atuação nesse âmbito. Mesmo assim, a revisão cuidadosa da professora Heloisa Reis pôde dar conta das diversas questões, o que permitiu a publicação de um conjunto significativo de reflexões sobre a temática do esporte e da violência. Eric Dunning mostrou-se uma personalidade única, forte, marcante, sempre generoso e propenso a dialogar com os mais jovens, sem deixar nunca sua erudição e convicção. Ele confidenciou-nos, mais de uma vez, como os episódios de sua longa vida foram, na alegria e na tristeza, constitutivos de uma experiência de vida excepcional e que contribuíram para que pudesse colocar à prova, por assim dizer, as premissas teóricas da sua maneira de interpretar o ser humano em sociedade. Mais do que isso, sua dedicação às práticas desportivas também o colocaram em um contato mais imediato com a materialidade e a vida quotidiana e lhe deram condições muito realistas de confrontar a sociedade contemporânea. Como transparece nas suas obras e, mais ainda, nas suas conversas, sua paixão pelos esportes populares e por sua prática deram-me insights na mentalidade popular nem sempre presente em outros estudiosos menos afeitos à vida diária das pessoas comuns. Desde seus anos iniciais como estudante de Economia em Leicester, Dunning encontrou em Norbert Elias seu grande professor e futuro parceiro, isso em pleno pós-guerra, em 1956, antes da constituição do campo da Sociologia do Esporte . A Grã-Bretanha continuava a sentir os efeitos da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), com o fim do racionamento apenas dois anos antes da entrada de Dunning na Universidade, em 1954 ; com a crise de Suez (1956); e com o sinal claro do ocaso do império britânico , tudo isso compondo o quadro no qual passava, os conflitos e a violência associados aos esportes , pouco a pouco, a ser considerado um objeto de reflexão. Norbert Elias, embora tendo passado a metade mais produtiva da sua vida na Inglaterra (1935–1965), tardou a ter suas interpretações difundidas, o que reflete, em parte, a emergência tardia de uma preocupação com a violência nas sociedades ocidentais modernas. Dunning contribuiu, de forma decisiva, para que essa difusão ocorresse, na medida em que se destacou, desde cedo, por unir erudição incomum a estudos aplicados relevantes para o tempo presente. Sua contribuição ultrapassou em muito o âmbito da Sociologia do Esporte, embora seja seminal para a área, pois, como ressalta Stephen Mennell, suas observações mostraram-se pertinentes para o estudo de toda a sociedade moderna . A

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memorável frase de Elias e Dunning já o demonstra: “the controlled decontrolling of emotional controls” (o descontrole controlado dos controles emocionais ). Formulada para entender o esporte e o lazer, revelou-se útil para a compreensão de muitos outros aspectos das sociedades contemporâneas. A publicação deste volume, no âmbito das atividades iniciais do Centro de Estudos Avançados da Unicamp, constitui um monumentum aere perennius, um monumento mais perene do que o bronze, como diria o poeta latino Horácio (3, 30, 1). À maneira de outros grandes numes tutelares de institutos de estudos avançados, Eric Dunning contribuiu, à sua maneira, para que o CEAv tivesse, em seus primórdios, um intelectual cuja abrangência de reflexão fosse tão ampla e relevante para compreender a sociedade contemporânea e até mesmo o ser humano . Leitura inspiradora, este volume ficará como uma obra de referência e marca, ao mesmo tempo, as aspirações do Centro de Estudos Avançados.

Pedro Paulo A. Funari Coordenador do Centro de Estudos Avançados Universidade Estadual de Campinas Fevereiro de 2013

Capítulo 2

As contribuições de Eric Dunning para o desenvolvimento da Sociologia do Esporte no Brasil: uma introdução à Sociologia Figuracional

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Eric Geoffrey Dunning, nascido em 27 de dezembro de 1936, na Inglaterra, teve seu primeiro contato com Norbert Elias em 1956 na então University College Leicester como estudante de Economia. Foi aconselhado por seu mestre a realizar um mestrado em Esporte, quando iniciaram uma longa trajetória de colaboração em livros e capítulos de livros. O mais famoso entre eles é o clássico Quest for Excitement traduzido para o francês, alemão, italiano, espanhol, português, greco, holandês, japonês e húngaro. Na língua portuguesa foi publicado com o título A busca da Excitação pela editora Difel de Lisboa/Portugal, em 1992. PhD. em Sociologia pela Universidade de Leicester, na qual teve uma longa carreira como professor, sendo atualmente professor emérito. Aluno e orientando de Norbert Elias, estabeleceu com este um vínculo de profunda amizade e frutífera parceria intelectual, juntos fizeram contribuições importantes sobre sociologia, esporte e lazer. Seu domínio da língua alemã possibilitou-lhe ler obras originais de seu mestre, entre outras em alemão. Pode-se afirmar que Eric Dunning é o pai da Sociologia do Esporte, pois seus estudos foram os mais influentes na produção sobre esporte, na perspectiva das humanidades, nas três últimas décadas do século XX e início do século XXI. Homenageado em diversos países do mundo e, em 2011, pela International Association Sociology of Sport (ISSA). Eric esteve no Brasil pela primeira vez em 1996, a convite de minha então orientadora Maria Beatriz Rocha Ferreira e meu. Esta havia o conhecido naquele mesmo ano em um congresso, em Portugal. Maria Beatriz viu nele o melhor interlocutor para colaborar com o desenvolvimento da nossa pesquisa de doutorado, intitulada Futebol e Violência. Na ocasião, para trazê-lo ao Brasil, organizamos o “I Simpósio Internacional Norbert Elias” com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e total apoio do então diretor da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, também membro do CEAv, Edison Duarte. Outras sete vezes tivemos Eric Dunning entre nós, sempre a convite nosso ou de colegas oriundos da FEF/Unicamp. Sua última visita ao Brasil foi em maio de 2011, sendo esta sua estadia mais longa. O renomado sociólogo inglês veio a convite do Centro de Estudos Avançados – da

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Universidade Estadual de Campinas (CEAv/Unicamp) , ocasião em que proferiu sete palestras em quatro centros, institutos e faculdades da Unicamp, entre outras atividades acadêmicas. Esse livro é fruto das palestras proferidas por ele durante sua estada. Todos os textos são inéditos em língua portuguesa, tendo sido em sua maioria revisado e ampliado pelo autor especialmente para a publicação brasileira. O livro possui dez capítulos de autoria única de Eric Dunning, e são produções da Sociologia e da Sociologia do Esporte. O livro foi organizado em dois blocos, sendo o primeiro composto pelos capítulos de três ao sete. Nestes Eric Dunning, aborda de modo bastante claro e elucidativo a teoria do processo civilizatório de Norbert Elias, abrangendo a sustentação teórica para a compreensão de suas produções sobre Sociologia do Esporte que aparecem no segundo bloco do livro, o qual traz textos de extrema relevância para o campo dos estudos sociológicos do esporte no Brasil com atenção especial ao futebol. Esta obra contém ensaios de extrema relevância para o campo dos estudos sociais do esporte no Brasil com atenção especial ao futebol, ao holiganismo no futebol e às questões de gênero masculino e feminino envolvida no campo esportivo, particularmente no futebol e no rúgbi. Eric Dunning é autor de vários livros publicados em diversos idiomas, no entanto este é seu primeiro livro publicado no Brasil e seu segundo livro de autoria única , o que nos honra e nos traz imensa satisfação, gratidão e alegria. O capítulo três do livrodenominado Norbert Elias – Uma Breve Biografia, para além de uma biografia no sentido clássico, uma bela e instigante introdução à produção de Norbert Elias e a contracrítica à teoria dos processos civilizatórios, retomada de modo mais detalhadado, entre outros, nos capítulos dois e sete. No capítulo quatro sobre Elias e a Sociedade Moderna: Habitus, Figurações, Poder e Processo, Eric faz uma breve revisão da Sociologia enquanto campo de conhecimento, remonta a sua denominação original e a intenção de Auguste Comte – considerado o pai da Sociologia. Ensaio extremamente interessante para a Sociologia do Esporte no Brasil, considerando que aqui, diferentemente do Reino Unido, esta se desenvolveu como um subcampo da Educação Física, fato que torna ainda mais importante esse tipo

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de conhecimento, pois àqueles sem tradição nos estudos da Sociologia poderão compreender melhor a perspectiva sociológica de seu “velho mestre”, Elias. Para este a Sociologia era mais uma teoria social fundamentada na pesquisa do que uma ciência como proposto por Goldthorpe (1957) seu então colega da Universidade de Leicester. Aspectos da biografia de Norbert Elias foram novamente trazidos por Dunning neste capítulo para demonstrar como sua história de vida estava imbricada e foi determinante em sua produção, assim como seu interesse pelos processos civilizatórios e pela violência. Ainda no capítulo dois Eric faz uma síntese dos aspectos centrais da abordagem figuracional de Elias, para, a partir destes, apresentar duas críticas inconsistentes à produção de Elias. No capítulo cinco, A “Teoria Central” de Elias: os Processos “Civilizadores” Ocidentais e algumas de suas Principais Variações, Dunning aborda a teoria do processo civilizatório, iniciando com a novidade que “Elias considerava sua teoria do ‘processo civilizatório’ como exemplo daquilo a que costumava se referir como uma ‘teoria central’.” Alertando que até onde é do conhecimento dele, Elias jamais escreveu isto. Neste capítulo Dunning traz autores clássicos da Sociologia e estabelece com eles um debate sociológico, em um segundo momento no ensaio ele passa a fazer uma contracrítica aos críticos da teoria do processo civilizatório, utilizando para isso principalmente as próprias obras de Norbert Elias. Ainda nesta parte da obra de Eric Dunning, ele aborda temas/termos/conceitos como, civilidade, civilização, cultura, a formação do Estado e as cadeias de interdependência, processos sociais, o processo civilizatório como uma teoria eurocêntrica. Questões do método de pesquisa de Elias, como, o problema e suas fontes de pesquisa, também abordados neste capítulo. No capítulo seis “Testando” Elias: Aspectos da Violência em uma Perspectiva de Longo Prazo, Eric Dunning propõe um debate com outros autores sobre as categorias violência e agressão, com a finalidade de aproximar-se de uma definição mais objetiva e menos ambígua para elas. A partir dessa construção, o autor evidencia como a violência – e temas próximos, como as guerras e genocídios – foi compreendida por Elias na teoria dos processos civilizatórios, refutando algumas críticas advindas de leituras ideologizadas de sua obra.

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No capítulo sete é abordada uma discussão sobre os antecedentes do esporte moderno na Europa antiga e feudal, onde o autor abre as discussões mais específicas da Sociologia do Esporte. Dunning traz argumentos para a desmistificação da dimensão da violência atual de torcedores de futebol como algo nunca visto na história; assim como traz elementos para a compreensão do processo civilizatório que ocorreu nos torneios entre os séculos XII e XVI, período em que os torneios foram cada vez mais em direção de uma violência simulada em substituição à violência real. Neste ensaio Eric apresenta quão difícil são juízos comparativos entre os “esportes” da Grécia e Roma antigas. Ele busca contrariar a corrente do movimento olímpico, de que os “esportes” da Grécia Antiga eram menos violentos do que seus correspondentes na Roma Antiga. “Qual seria então o comparativo em termos de violência entre os ‘jogos’ da Roma Antiga, os ‘esportes” da Grécia Antiga e os atuais esportes modernos?” Essa questão é respondida pelo autor ao longo do capítulo, como uma evidência do processo civilizatório no esporte. O capítulo oito inicia-se por uma breve discussão sobre a origem do termo sport, descendente do termo anglo-francês desporter. O autor apresenta como o termo sport, nos séculos XVII e XVIII, teve conexão com a mudança da estrutura e do sentido dos quais eram utilizados anteriormente; assim como algumas diferenças importantes da França e da Inglaterra do século XIX, quando o esporte moderno se origina na GrãBretanha, particularmente na Inglaterra. Dunning toma o boxe e a caça à raposa como dois exemplos para apresentar ambos como pertencentes ao processo civilizatório. Neste capítulo o autor apresenta o processo de esportivização do boxe e da caça à raposa, no qual é possível perceber a relação entre aquele momento histórico e político e a aparição de novas formas de jogos, mais regradas, com registros escritos e menos violentos. Mesmo considerando, por exemplo, a repugnância atual e a proibição da caça à raposa na Inglaterra, o autor sustenta que, sem dúvida alguma, esta é muito mais regrada e civilizada que as práticas de caça não esportivizadas. No capítulo nove Eric Dunning parte da origem e do significado do termo futebol e soccer para apresentar o futebol popular e suas proibições como um processo históricosocial vivido na Grã-Bretanha desde a Idade Média. O autor nos contempla com a informação de que ainda hoje o futebol popular é praticado em Ashbourne (Inglaterra),

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na terça-feira de carnaval, e no condado de Leiscestershire (Inglaterra), na segunda-feira de Páscoa, entre outras localidades. A grande questão deste capítulo é: como se desenvolveram os jogos que conhecemos hoje? Particularmente os de futebol e rúgbi. Para tal, Dunning recorre a uma breve apresentação histórica das escolas públicas britânicas. Para ele, as relações estabelecidas no interior destas foram fundamentais para o regramento do futebol e do rúgbi como esportes modernos. Algumas especificidades das escolas de Rúgby e de Eton foram trazidas nesse ensaio, principalmente o mito de uma construção individual para o esporte moderno, o qual é desconstruído em favor da compreensão de um processo coletivo para o surgimento de alguns dos jogos com bola como esportes modernos. No capítulo dez Eric aborda as complexas questões associadas à globalização e à globalização do esporte a partir da teoria eliasiana. Para essa discussão, Dunning recorre tanto aos dados histórico-sociais – característica marcante de suas obras –, quanto à costumeira contracrítica das produções da Sociologia Figuracional – principalmente às de Elias e às suas. Ainda neste capítulo, o autor reafirma a necessidade de estudos de longo prazo para a compreensão dos fenômenos contemporâneos. Sua estratégia, para que compreendamos a relação entre esporte e o processo de globalização, foi retomar as origens da profissionalização e suas decorrências. Como parte das questões que envolvem o futebol contemporâneo, Dunning situa o problema do hooliganismo, que é o tema do penúltimo capítulo deste livro . Para o autor, a importância fundamental deve-se ao fato de que sem compreender cientificamente o hooliganismo não se alcançará estratégias e medidas eficazes para combatê-lo. A partir dos estudos realizados por ele e por outros pesquisadores da escola de Leisceter, Dunning demonstrou que esse fenômeno, a despeito do que diz a mídia, não é novo, nem mesmo está circunscrito à Inglaterra, tampouco já está superado. Ao contrário, a partir de dados sobre a violência relacionada ao esporte no mundo, o autor evidencia que o hooliganismo é um fenômeno mundial, que ganhou ainda mais relevância em outros países após a tragédia de Heysel. Ao final do capítulo, o autor contrapõe-se aos principais mitos e pré-noções relacionadas ao hooliganismo, buscando explicar sociologicamente suas principais motivações e causas, relacionando-o a características de masculinidade (como a busca por território) e do patriarcado.

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O tema da masculinidade relacionada ao esporte é tema central do último capítulo do livro, em que Eric Dunning situa a sociogênese do esporte moderno como parte de um processo civilizatório. Um dos principais argumentos do autor é que a manutenção de um espaço de masculinidade se dá em função do desenvolvimento de um processo civilizatório, no qual, formas extremadas de desequilíbrio de poder entre os sexos – o patriarcado – vão diminuindo. Entretanto, o esporte moderno, ainda que guarde em si formas menos frouxas de autocontrole, quando comparado aos jogos populares que o antecederam, ainda assim representa um dos últimos espaços de manifestação exacerbada de masculinidade. Esse cenário é mais evidente quando se atenta ao hooliganismo, no qual as formas de demonstração de hostilidade com os grupos rivais se faz a partir de afirmação da própria virilidade em contraposição a uma suposta feminilidade do oponente.

Heloisa Helena Baldy dos Reis Membro do CEAv Professora de Sociologia do Esporte do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Estadual de Campinas Atibaia, fevereiro de 2013

NORBERT ELIAS UMA BREVE BIOGRAFIA

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Norbert Elias – Uma Breve Biografia

Norbert Elias nasceu em 1897, em Breslau, na parte oriental do Kaiserreich alemão. (Após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, Breslau foi incorporada à Polônia e recebeu o nome de Wroclaw). Elias era descendente de judeus. O pai, Hermann, foi um próspero comerciante de tecidos. Ele e mais a esposa, Sophie, puderam dar-se ao luxo de enviar o pequeno Norbert ao ilustre Johannes Gymnasium de Breslau. Ali, Norbert recebeu uma clássica educação germânica, especialmente conhecimentos básicos em latim, grego, francês, matemática, ciência e clássicos da literatura alemã, como Goethe, Schiller e Heine.

No Gymnasium, Elias tornou-se membro de um grupo especial que se reunia com um professor para ler as obras de Kant. Foi também na época do Johannes Gymnasium que Elias pensou em seguir uma carreira acadêmica, e percebeu que, sendo judeu, encontraria enormes obstáculos para atingir sua meta. A primeira Guerra Mundial eclodiu em agosto de 1914 e, depois de se formar no Johannes Gymnasium em 1915, Elias alistou-se no exército alemão, juntando-se à Brigada de Sinais. Participou de combate tanto na frente oriental quanto na frente ocidental. Dali em diante, as experiências de Elias nos dão uma pista de seu interesse sociológico em temas como: violência e civilização, as relações entre os fenômenos “micro” e “macro” e também entre os aspectos “privados” e “públicos” da vida social.

Até 1914-15, o jovem Elias desfrutou de uma existência confortável e segura. Mas a Primeira Guerra Mundial foi o primeiro de uma série de eventos no cenário social que afetaram suas esperanças e planos, levando-o diversas vezes a testemunhar graves violências. Isso foi fundamental para que a orientação para a realidade fosse um dos principais aspectos de sua obra.

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Ao contrário de uma interpretação errônea, mas comum, de sua teoria dos processos civilizadores, que a vê como uma forma de “triunfalismo ocidental”, uma “teoria do progresso” que etnocentricamente celebra e privilegia o modo de vida ocidental, Elias desenvolveu essa teoria na esperança de contribuir para uma compreensão de como o que as pessoas pensam ser a “civilização” é apenas um ralo verniz, uma frágil camada sob a qual espreitam “forças” poderosas e potencialmente violentas e destrutivas. Também era uma das esperanças de Elias que, com maior compreensão, houvesse maior controle.

É claro que a educação formal também influenciou o pensamento de Elias. Na Universidade de Breslau, entre 1918 e 1923, ele aprendeu filosofia e medicina, esta em parte porque os pais queriam que ele fosse médico. Elias estudou medicina até completar a parte pré-clínica de sua formação, mas naquele momento desistiu para se concentrar em seu doutorado em filosofia. Não causa surpresa, portanto, que essa formação incomum, e de certo modo anômala, em medicina e filosofia tenha sido outra profunda influência nos padrões de pensamento de Elias. Como ele mesmo expressou um dos aspectos do dilema que enfrentou: “A discrepância entre a imagem filosófica, idealista das [pessoas] e a anatômica, fisiológica perturbou-me durante muitos anos” (1984: 84). Um exemplo ocorreu na sala de dissecação. Nas décadas de 1950 e 1960, em suas aulas de orientação intensiva em Leicester, Elias costumava relatar como, em virtude de suas experiências com dissecação de cadáveres humanos, ele começou a procurar explicações sobre a dicotomia, tanto popular quanto filosófica, entre “corpo” e “mente”, perguntando-se como essas categorias brutas, que implicam de algum modo a separação entre “mente e “corpo”, adequavam-se à estrutura e ao funcionamento daquele órgão complexo que ele observava na sala de dissecação e que, embora longe de ser totalmente conhecido, sediava o sentimento, o pensamento e a consciência. Foi também na sala de dissecação, dizia-nos Elias, que ele observou pela primeira vez a complexa e móvel musculatura da face humana, o que o levou a refletir sobre a importância do sorriso, da risada e do choro na comunicação e nos relacionamentos. Especulou ainda que a emergência da musculatura facial e da comunicatividade cognitivo-emocional dos seres humanos deve ter ocorrido interdependentemente durante o processo de longo prazo da evolução biológica e do desenvolvimento social em que o

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Homo sapiens emergiu como uma espécie com capacidade para criar, aprender e utilizar linguagem (Elias, 1991).

Elias obteve seu doutorado em filosofia no ano de 1924, em Breslau. No entanto, ele debateu com seu orientador, Richard Hönigswald, a questão dos a prioris kantianos, a ideia de que certas categorias do pensamento, como “tempo”, “espaço”, “causalidade” e a “moralidade” básica são inatas e não socialmente formadas e aprendidas. Isso influenciou a decisão de Elias de mudar para a sociologia e fazer em Heidelberg sua Habilitação, que era, e ainda é, a tese de pós-doutorado necessária na Alemanha para a obtenção de um cargo permanente em universidade. Ele matriculou-se para se “habilitar” com o “sociólogo cultural” (Kultursoziologe) Alfred Weber, irmão mais novo do renomado Max Weber. Foi também em Heidelberg que Elias conheceu Karl Mannheim, um dos principais nomes do que veio a ser conhecido como sociologia do conhecimento (Wissenssoziologie). Traços nítidos tanto da sociologia cultural de Alfred Weber quanto da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim podem ser encontrados na síntese desenvolvida por Elias, especialmente em relação a este último. O mesmo acontece com traços dos trabalhos de Georg Simmel, Kurt Lewin, Wolfgang Köhler, do psicólogo behaviorista J. B. Watson e do fisiologista W. B. Cannon. Acima de tudo, porém, o trabalho de Elias pode ser visto como uma síntese de Marx, (Max) Weber e Freud, e uma tentativa de construir sobre as bases que eles deixaram e ir além. Também estão presentes aspectos das obras de Comte e de Durkheim, mas foram acrescentados mais tarde, em parte como resultado do trabalho em Leicester com Ilya Neustadt nas décadas de 1950, 1960 e 1970.

Em 1929, Mannheim aceitou a cátedra de Sociologia na Universidade de Frankfurt e levou Elias como assistente. Mannheim também assumiu o lugar de Alfred Weber como orientador na Habilitationsschrift de Elias, a tese que é preciso escrever na Alemanha para se tornar um professor de universidade. Elias habilitou-se no começo de 1933, pouco depois de os nazistas chegarem ao poder. Sua tese foi sobre a corte francesa, tendo sido finalmente publicada em 1969 como Die höfische Gesellschaft (tradução inglesa, The Court Society [A sociedade da Corte], de 1983). Entre outras coisas, era notável – alguns poderiam dizer notavelmente profética, considerando-se o que estava

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acontecendo na Alemanha – em mostrar como um único indivíduo, isto é, Hitler, pode vir a exercer um controle monopolista sobre os instrumentos de poder num estado grande e complexo. É claro que o livro de Elias não era sobre Hitler, mas tratava de Luís XIV e, em menor extensão, de seus sucessores no século XVIII.

O advento da ditadura nazista introduziu outra descontinuidade na vida de Elias. Como observei anteriormente, isso o forçou ao exílio, primeiro para a França, onde ficou por dois anos e, em seguida, para a Inglaterra, país em que permaneceria até 1978, tendo obtido a cidadania britânica em 1952. Dois anos depois, em 1954, ele conseguiu seu primeiro cargo em tempo integral na universidade. Tinha, então, 57 anos! Foi na Colégio Universitário de Leicester – a partir de 1958, “Universidade de Leicester” –, onde, junto a Ilya Neustadt, conseguiu – apesar do clima predominante na sociologia britânica que era avessa àquilo que, apaixonada e erroneamente, pensavam ser a sua visão – criar o que viria a ser, por uns dez ou quinze anos, um dos mais prósperos e influentes departamentos de sociologia da Europa, se não de todo o Ocidente. Mas apenas alguns sociólogos de Leicester emergiram nesse contexto como, pode-se dizer, “figuracionistas plenos”, e entre esses os principais foram os sociólogos do esporte, ou seja, eu mesmo, Patrick Murphy, Kenneth G. Sheard, Ivan Waddington, Joseph Maguire e Dominic Malcom. No final das décadas de 1960 e 1970, a reputação sociológica de Elias começou a crescer na Europa continental, especialmente na Holanda, Alemanha e França. Descrente com a falta de receptividade sociológica positiva em relação ao seu trabalho na Grã-Bretanha, decidiu, em 1978, voltar definitivamente para o continente, estabelecendo-se por fim em Amsterdam, onde morreu em 1990.7

Resumindo, os seguintes aspectos da vida de Elias podem ajudar a explicar certas características de sua sociologia: i. Primeiro, foi sua experiência, acima de tudo, na Primeira Guerra Mundial e com a ascensão do nazismo que sensibilizou Elias para o papel desempenhado pela violência e pela guerra na vida humana. Essas experiências também fortaleceram “civilizadores”,

sua

percepção

dos

processos

“descivilizadores”

e

reforçando a visão de que os “controles civilizadores”

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raramente chegam a ser mais do que uma fina camada de verniz, se chegam a tanto. ii. Segundo, foram as repetidas interrupções em sua carreira, devido a eventos importantes – a Primeira Guerra Mundial, a hiperinflação de 1923 na Alemanha, a ascensão dos nazistas ao poder dez anos depois, o exílio para a França e depois para a Grã-Bretanha, o confinamento como “estrangeiro inimigo” – tudo isso foi que ajudou a sensibilizá-lo para a interdependência e a interrelação entre o “individual” e o “social”, o “privado” e o “público”, o “micro” e o “macro”. iii. E, terceiro, foi a formação de Elias em medicina e em filosofia. Isso o ajudou a problematizar aspectos da filosofia, contribuindo para que se tornasse em primeiro lugar um sociólogo, e para que fizesse contribuições importantes e originais ao que veio a ser conhecido como “sociologia do corpo” e “sociologia das emoções”. Que Elias foi um pioneiro da sociologia do esporte e do lazer, talvez possa também ser mais bem compreendido principalmente nesse contexto.

As Contribuições de Norbert Elias à Sociologia Cada vez mais Elias é visto como um dos maiores sociólogos do século XX, se não o maior. Johan Goudsblom foi persuasivo em igualá-lo a Charles Darwin. Acredito, porém, que a comparação com Copérnico possa ser mais procedente. Em seu trabalho, Elias estabeleceu tanto em termos teóricos quanto empíricos que o Homo sapiens é uma espécie animal que evoluiu biologicamente para ser dependente da linguagem e da transmissão intergeracional de fundos de conhecimento adquiridos, e que as sociedades por nós formadas são “sociedades de indivíduos”. Tais conceitualizações representam o que Elias teria chamado de “avanço”. Embora as ciências físicas e humanas tratem de assuntos bem diferentes, o avanço a que se refere Elias é indiscutivelmente equivalente àquele de Copérnico, no sentido que, assim como Copérnico desempenhou um papel fundamental no surgimento da moderna visão de mundo científica ao rejeitar a antiga ideia geocêntrica do sistema solar e substituí-la por uma visão heliocêntrica, Elias também pode ser visto como tendo estabelecido importantes precondições para a emergência da sociologia como ciência ao corrigir a visão do ser humano como Homo

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clausus ou “pessoa fechada”, substituindo-a por uma orientação que aponta para os homines aperti, pluralidades de “pessoas abertas”. Cada um desses avanços envolveu um processo de descentralização: no caso de Copérnico, uma descentralização do antropocentrismo primitivo da humanidade, isto é, sua visão do Homo sapiens e da Terra como o centro de tudo que existia; na visão de Elias, foi a descentralização da visão iluminista/judaico-cristã dos humanos como seres “racionais” que pairam “acima da natureza” e dos outros animais, e como separados ou solitários em relação uns aos outros. O pensamento do Homo clausus é também uma visão que implicitamente tende a aceitar como verdadeiro que o macho adulto ocidental pode ser vir como base para uma teoria viável do conhecimento. É claro que não pode.

Também associada ao avanço a que se refere Elias, há uma ênfase no fato observável de que, assim como o universo em geral, cada indivíduo humano é um processo; isto é, que nascemos, amadurecemos e morremos, um conjunto de fatos que parece banal, até lembrarmos que geralmente são esquecidos pelos criadores de teorias filosóficas e sociológicas. Os humanos também estão ligados uns aos outros por laços fluidos de interdependência que constituem um fato biossocial da vida; isto é, temos uma tendência inata a procurar a companhia de outros, por exemplo, para fins sexuais, mas também como um agradável “fim em si mesmo”. Outra maneira de expressar isso seria dizer que os humanos formam figurações ou configurações dinâmicas entre si.8 Através de formulações como essa, e similares, Elias conseguiu evitar o que sociólogos filosoficamente orientados, tais como meu antigo colega de Leicester, Anthony Giddens, chamam de dilema agência-estrutura.9 Essa é a dificuldade que por séculos os filósofos têm enfrentado para criar formulações da relação “indivíduo-sociedade” que evitem por um lado o “reducionismo” e por outro a “reificação”, ao mesmo tempo em que façam jus tanto ao lado individual quanto social da equação. Os sociólogos têm se envolvido no dilema agência-estrutura desde que sua disciplina começou a se separar da filosofia no século XVIII e começo do século XIX.

Uma vez que o conceito de figurações aplica-se igualmente a laços de interdependência em e entre “díades” (grupos de 2 pessoas), “tríades” (grupos de três pessoas), pequenos grupos, cidades, classes, nações e, de fato, toda a humanidade, a formulação de Elias

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também aponta para uma diminuição das distâncias entre as perspectivas “micro”, “meso” e “macrossociológicas”.

Elias também foi bem-sucedido em desenvolver formulações que impedem a tendência do Homo clausus de dicotomizar “corpo” e “mente”, isto é, de dividir o ser humano em duas partes: um corpo físico e o nível do “espírito” ou da “alma”. Mais particularmente, ele conceitualizava os humanos como uma espécie de animal criador de símbolos, organicamente equipado com capacidade de “sentir”, “pensar” e “agir”, e que, comparado aos outros animais, depende menos dos instintos herdados e mais do aprendizado social. Finalmente, Elias enfatizou a necessidade de os sociólogos desenvolverem um vocabulário que evite a tendência de reduzir processos a estados, em alemão Zustandsreduktion. Essa é uma tendência característica das línguas ocidentais. Como ele expressou em O que é Sociologia?, Nossas línguas são construídas de tal modo que frequentemente

podemos

apenas expressar movimento ou mudança constantes de forma a implicar características de um objeto isolado em repouso, e depois, quase como um adendo, acrescentamos um verbo que expressa o fato de que o objeto com essas características agora está mudando. Por exemplo, à beira de um rio vemos o fluxo perpétuo da água. Mas para apreendê-lo como conceito, e para comunicálo aos outros, não pensamos e dizemos, “Veja o fluxo perpétuo da água”, dizemos, “Veja como o rio está fluindo rapidamente”. Dizemos, “o vento está soprando, como se o vento de fato fosse uma um coisa em repouso que, num dado momento, começasse a se movimentar e soprar. Falamos como se o vento estivesse separado de seu soprar, como se existisse um vento que não soprasse . . . chamaremos essa redução de processos a condições estáticas de “redução de processo”. . . (Elias, 1978: 11-12).

Foi com a intenção de capturar essa ideia de processo que Elias insistiu que o vocabulário sociológico convencional envolvendo, por exemplo, “estrutura social e mudança social”, uma formulação que implica a possibilidade de existirem estruturas sociais imutáveis, deveria ser abandonado e, mesmo não soando bem, substituído por

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termos que envolvam processo, como “industrialização”, “urbanização”, “cortização” e “esportização”.

Elias

considerava-se

um

“cientista

humanista,

um

Menschenwissenschafter, em alemão, e, como tal, preocupava-se em estudar seres humanos, como expressou Goudsblom (1977), “sob todos os aspectos”, isto é “como um todo”, em seus aspectos biológicos, sociais e históricos interdependentes e interagentes. Tendo isso em vista, talvez não cause surpresa que Elias tivesse feito contribuições pioneiras ao estudo sociológico de áreas até então negligenciadas como o esporte e o lazer.

Ele não compartilhava a visão que o Homo clausus tem do esporte como um domínio “físico” de valor inferior ao domínio da “mente”, mas, ao contrário, considerava-o uma espécie de “laboratório natural” para esclarecer aspectos fundamentais da existência humana, por exemplo, a tensão-equilíbrio entre conflito e cooperação – além de constituir uma área-problema que precisa ser investigada em si mesma.

Há um reconhecimento geral de que a teoria dos “processos civilizadores” é a principal contribuição de Elias na sociologia. Sendo ela um construto complexo, nem sempre bem compreendido, é a teoria dos processos civilizadores que agora irei focalizar.

Teoria dos Processos Civilizadores Em sua obra máxima, O Processo Civilizador, Elias primeiramente considerou o significado do termo “civilização” e chegou à conclusão que, uma vez que qualquer aspecto da sociedade e comportamento humanos pode ser julgado como “civilizado” ou “incivilizado” em diferentes graus, formular tal definição é uma tarefa difícil, se não impossível. É mais fácil, disse Elias, especificar a função do termo. Segundo ele, o termo passou a expressar a autoimagem das pessoas nas nações ocidentais mais poderosas, tendo adquirido conotações depreciativas e racistas, não somente em relação ao que os ocidentais chamam de sociedades “primitivas” ou “bárbaras” por eles conquistadas, colonizadas ou submetidas a outras formas de dominação e exploração (p.ex., através das operações de companhias transnacionais), mas também em relação

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aos “menos avançados”, isto é, às sociedades menos poderosas e a grupos marginalizados no próprio Ocidente. É interessante como Elias mostrou que a Primeira Guerra Mundial foi travada por Grã-Bretanha, França e Estados Unidos em nome da “civilização”, e como, nos séculos XVIII e XIX, e começo do século XX, quando os antes desunidos e portanto relativamente enfraquecidos alemães estiveram engajados num processo de nivelamento com a França e a Grã-Bretanha, seus vizinhos mais unidos e poderosos, muitos alemães, especialmente aqueles da classe média, tornaramse ambivalentes sobre o termo “civilização”, preferindo expressar sua autoimagem através do conceito mais específico de Kultur ou “cultura” (Elias, 2000: 3ff). No entanto, embora reconhecendo que, na maior parte de seus usos, “civilização” é um termo crítico e com um viés de valor inerente, Elias procurou usar o substantivo adjetivo “processo civilizador” como um conceito técnico para descrever um processo social e psicossocial de longo prazo empiricamente demonstrável, da maneira mais imparcial possível.

Elias viu aquilo que começou como um livro de dois volumes representar não mais do que o começo de um processo de trabalho acadêmico. Conforme disse no Prefácio: Este estudo . . . apresenta e desenvolve um problema muito amplo; e não pretende resolvê-lo. Delimita um campo de observação que até aqui recebeu relativamente pouca atenção, e se empenha em dar os primeiros passos para uma explicação. Outros seguirão (Elias, 2000: xii-xiv). Não será possível nem necessário especificar em detalhes, neste contexto, todo o espectro de desenvolvimentos factuais vistos por Elias como constituintes do processo civilizador ocidental. Basta destacar que ele foi claro sobre o fato de que, assim como acontece com os desenvolvimentos sociais de um modo geral, esse processo baseava-se na transmissão intergeracional de experiências aprendidas. Daí ser reversível. De fato, é útil pensar a teoria de Elias como focalizada em dois níveis distintos que se interpenetram. Por um lado envolve uma generalização empiricamente fundamentada sobre a trajetória total das mudanças de hábito, estrutura da personalidade e padrões sociais nas sociedades da Europa Ocidental (principalmente França e Grã-Bretanha) a

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partir da Idade Média até o começo do século XX. Por outro lado, envolve a hipótese de uma conexão explanatória entre aquilo que Elias procurava estabelecer como uma trajetória civilizadora demonstrável nos níveis de hábitos, personalidade e padrões sociais, e uma tendência igualmente demonstrável em direção a formas mais efetivas de centralização estatal, pacificação sobre o controle do estado e o aumento das cadeias de interdependência. Mais particularmente, os dados das séries temporais de Elias sobre o que se poderia chamar convencionalmente de nível microssocial – sua principal evidência vem de livros de boas maneiras – revelam coerentemente uma tendência dominante que, apesar das variações de velocidade e inversões temporárias, continuou por longos períodos na direção: da elaboração e refinamento das boas maneiras e dos padrões de comportamento exigidos; do aumento da pressão social sobre as pessoas para que exercitem uma ação equilibrada de autorrestrição abrangente sobre seus sentimentos e comportamento público, isto é, em relação à totalidade de suas funções corporais e num amplo espectro de situações sociais; de uma mudança no sempre socialmente necessário equilíbrio entre restrições externas e autorrestrições, em favor das autorrestrições; de um limiar cada vez maior de repugnância, ou seja, uma crescente sensibilidade quanto à visão do sangue e uma tendência correlativa a cada vez mais ocultar a violência e o desempenho de funções biológicas. Exemplos são o abandono das execuções públicas, o confinamento da defecação e micção ao espaço do banheiro, bem como do sexo e do ato de dormir ao quarto de dormir. Em uma palavra, segundo Elias, uma tendência central do processo civilizador europeu desde a Idade Média tem sido a privatização.

Repetindo, Elias procurou explicar essa generalização empírica principalmente com referência a dados empíricos sobre formação do estado, isto é, com relação ao estabelecimento não planejado, no nível “macro” de integração social, de estáveis e seguros monopólios estatais centralizados da violência e da tributação. Para Elias, em sociedades que se encontram acima dos níveis mais simples de estrutura social e desenvolvimento econômico, a tributação e a violência são os principais “meios de governo”, e nesses processos de monopolização os violentos “conflitos de eliminação” ou “conflitos hegemônicos” entre reis, príncipes e pequenos senhores feudais foram decisivos.

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Um importante corolário desses “processos cegos” ou “processos não planejados” – esse foi um conceito pelo qual Elias tentou evitar a acusação de teleologia – foi a pacificação gradual de espaços cada vez maiores dentro de cada estado em desenvolvimento. Em outras palavras, os estados, que em cada estágio permaneceram organizados para fins de ataque e defesa, e frequentemente guerreavam entre si, tornaram-se cada vez mais pacificados internamente; observação: cada vez mais pacificados, e não pura e simplesmente pacificados. Processos de pacificação interna facilitavam – e eram por sua vez reciprocamente facilitados pela – a crescente produção material, intensificação do comércio, aumento das cadeias de interdependência (isto é, principalmente das divisões de trabalho), e o que Elias veio a chamar de “democratização funcional”. Com esse termo ele referia-se a mudanças de longo prazo numa direção equalizadora em diversos graus no equilíbrio de poder entre governantes e governados, classes sociais, homens e mulheres, gerações e outros grupos. Subjacente a esse processo tem sido a crescente dependência de grupos poderosos em relação àqueles que eram ou são menos poderosos, por exemplo, por seus votos, tributos, serviços militares, policiais e administrativos, e bens e serviços que estes produzem. Tudo isso tem sido reforçado, de acordo com Elias, por um declínio na legitimidade da violência no estabelecimento de disputas intrassocietais, mas não na mesma extensão em suas contrapartes interssocietais.

Nos diferentes países focalizados por Elias, principalmente Grã-Bretanha, França e Alemanha, essa constelação geral de desenvolvimentos ocorreu em parte de forma semelhante, em parte diferente. Também ocorreu em diferentes países em diferentes épocas e ritmos, e foi impulsionada tanto por pressões interssocietais quanto extrassocietais. Desenvolvimentos específicos podem ser remontados ao que Elias chamou de “centros formadores de modelo”, daí difundindo-se de modo mais ou menos amplo. Por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, a corte francesa era o principal centro formador de modelo para as boas maneiras e etiqueta, e nesse período os modos franceses de comportamento eram muito copiados nas cortes de outros países. Igualmente, nos séculos XVIII e XIX, a Grã-Bretanha, especialmente a Inglaterra,

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tornou-se o principal centro formador de modelo no que diz respeito às práticas “esportivas”. Como já indiquei, Elias escreveu sobre processos de “esportização”.

A esta altura, provavelmente vale a pena enfatizar que, ao se esforçar por lançar as bases de um programa de pesquisa contínuo sobre processos civilizadores e questões relacionadas, Elias lutou para se afastar das ideias toscas a respeito do caráter simplesmente cumulativo e permanente da unidirecionalidade, unidimensionalidade e inevitabilidade do desenvolvimento social que predominaram nos séculos XVIII e XIX e contra as quais haviam reagido, corretamente, os cientistas sociais do século XX. Por exemplo, a fim de transmitir a ideia de taxas, velocidades ou ritmo variáveis, ele criou o termo “surtos civilizadores (e mais tarde descivilizadores)”, um conceito semelhante em alguns aspectos aos “equilíbrios pontuados” de Stephen Jay Gould (Gould, 1989). Toda a questão das variações direcionais e dimensionais dos processos civilizadores é uma das muitas áreas em que é preciso trabalhar para levar nosso conhecimento além do nível a nós legado por Elias.

Figurações de Estabelecidos-Outsiders Uma teoria intimamente relacionada à teoria dos processos civilizadores, especialmente quanto à ênfase no poder, na desigualdade e no conflito, foi aquela que Elias chamou de teoria das “figurações estabelecidos-outsiders”. Essa teoria desenvolveu-se diretamente de um estudo feito por Elias e um estudante de Leicester, John Scotson, sobre uma figuração dominância-subordinação formada por dois grupos de trabalhadores de “Winston Parva”, um nome inventado para um subúrbio de Leicester, cidade localizada nas East Midlands inglesas (Elias e Scotson, 1965, 1994). Segundo Elias, esses grupos eram quase suficientemente idênticos em termos de índices convencionais de estratificação social (isto é, renda, ocupação e educação), diferindo apenas no fato de que o “grupo “estabelecido” vivera na comunidade por várias gerações, enquanto os “outsiders” (“forasteiros”) eram relativamente recentes. No entanto, detectou-se toda uma constelação de sintomas normalmente associados a hostilidades e opressão de classe, raciais ou étnicas. Isso levou Elias a sugerir que:

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Como regra, encontra-se esse tipo de figuração ligado a diferenças étnicas, nacionais e de grupo (como as que existem entre as classes) . . . Mas aqui em Winston Parva todo o arsenal de sentimento de superioridade e desprezo por outro grupo foi mobilizado nas relações entre dois grupos que eram diferentes apenas quanto à duração de sua residência . . . Aqui se podia ver que a “antiguidade” de associação . . . foi, por si só, capaz de criar o grau de coesão de grupo, a identificação coletiva e a comunidade de normas aptos a induzir a euforia gratificante que acompanha a consciência de se pertencer a um grupo de valor mais elevado e o consequente e complementar desprezo por outros grupos (Elias, 1994: xvii). Segundo Elias, o poder do grupo “estabelecido” em “Winston Parva” dependia principalmente, portanto, do fato de que o tempo ou “antiguidade” de associação capacitara-os a desenvolver uma coesão maior que a dos “outsiders”, muitos dos quais começaram como estranhos uns para os outros; e isso, por sua vez, possibilitou aos membros do grupo “estabelecido” monopolizar, por exemplo, posições oficiais em associações locais. Essa maior coesão do grupo dos “estabelecidos” em comparação ao dos “outsiders” é, sugeriu Elias, um componente “puramente figuracional” das relações de poder. Tenho usado essa teoria numa tentativa de esclarecer alguns problemas de raça e no esporte, enquanto os holandeses Bram Von Stolk e Cas Wouters (1980) utilizaram-na em estudos pioneiros sobre gênero e sexualidade. Exploremos algumas das contribuições básicas de Elias ao método sociológico. Como ficará claro, seu trabalho aos poucos foi se transformando num estudo sobre ciência e conhecimento.

Problemas de Envolvimento e Distanciamento Com a devida consideração a críticos da sociologia figuracional como Horne e Jary (1987: 102, 108) e Jennifer Hargreaves (1922: 165ff; 199), que traduzem o uso que Elias faz do conceito de distanciamento como um equivalente direto de “valorneutralidade”, uma das afirmações de Elias foi que a pesquisa e a teoria sociológica são antes prejudicadas que favorecidas quando se pensa em termos de dicotomias tão simples quanto “valor-viés” e “valor-neutralidade”, ou seus equivalentes, como “subjetividade e “objetividade”, “irracionalidade” e “racionalidade”. É melhor, sustentou, pensar em termos de equilíbrios fluidos e complexos em que tanto o lado

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emocional quanto o lado racional do comportamento humano são considerados. Além do mais, segundo Elias (1986: 144) “uma compreensão mais ampla do nexo de fatos oferece . . . a única base segura para julgamentos de valor . . .” Vamos detalhar um pouco mais essa ideia. Será útil começar comparando a opinião de Elias sobre essas questões com a dos autores da “Escola de Frankfurt”, os proponentes da “teoria crítica”.

A posição da teoria crítica sobre o envolvimento e o distanciamento foi convincentemente resumida por Robert Bocock da Open University em 1983. Para ele,

Do ponto de vista epistemológico, a teoria crítica enfatiza a importância de a sociologia e a teoria social serem críticas do cientificismo no âmbito da metodologia. Cientificismo, aqui, significa a tentativa acrítica de copiar os métodos das ciências naturais ao se fazer ciência social. A teoria crítica tentou manter os vínculos entre filosofia social e ética, em vez de separá-las para tornar a sociologia mais parecida com uma ciência natural – algo que em princípio é impossível de se fazer no que diz respeito a essa posição epistemológica. O mundo social é avaliado na própria linguagem usada para descrevê-lo, analisá-lo, explicá-lo e entendê-lo. A linguagem neutra de aparência científica não impede tal avaliação: simplesmente sugere que não há nenhum motivo para irritação, política ou moral, com aquilo que está sendo analisado. A teoria crítica desenvolveu sua epistemologia à sombra do regime nazista, e sempre sustentou que o liberal e bem-intencionado “valor-neutralidade” nas ciências sociais favoreceu a ascensão do nazismo ao parecer incapaz de oferecer quaisquer valores políticos que valessem a pena, deixando assim uma lacuna que foi preenchida pelo fascismo (Bocock, 1983: 22). Como observei anteriormente, Norbert Elias foi assistente de Karl Mannheim no Departamento de Sociologia da Universidade de Frankfurt, de 1929 a 1933, época que coincidiu com os primórdios do Instituto de Pesquisa Social, fundado por Horkheimer e Adorno, sede institucional da Escola de Frankfurt. Na verdade, a universidade alugava salas do Instituto para o Departamento de Sociologia, no assim chamado “Maxburg” (Mennel, 1989: 14), e uma vez Elias contou-me como, assumindo um considerável risco

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pessoal, ele havia ajudado Adorno a escapar dos nazistas. Digo isso apenas para reforçar o fato de que Elias também desenvolveu aspectos dessa “epistemologia” – ele preferia chamá-la simplesmente de “teoria do conhecimento” – à sombra dos nazistas. No entanto, apesar do contato com membros da Escola de Frankfurt, familiaridade com o que escreviam e exposição a perigos semelhantes, Elias chegou a conclusões diferentes nas questões de envolvimento e distanciamento. Ele concordava com Adorno e seus colegas quanto à oposição ao “cientificismo”, mas não, como já foi sugerido, com a aceitação de uma filosofia não reformada. Ele insistia que a sociologia pode tornar-se mais científica, mas para isso acontecer teria que desenvolver métodos, conceitos e teorias apropriados ao seu tema. E embora, pelo que sei, nunca tenha criticado detalhadamente a posição deles10, Elias também discordava da Escola de Frankfurt sobre o que considerava uma visão por demais simplista da linguagem e dos valores, e que sob muitos aspectos não levava em conta seu desenvolvimento. Ele não procurou negar que a linguagem de algumas formas de ciência social, embora alegassem ser “descritivas” e “neutras”, podem disfarçar uma “avaliação” do mundo social. Para Elias, no entanto, essa “avaliação” não é uma simples questão de “isso ou aquilo”, mas de nuances e graus de “cientificidade” ou, dizendo a mesma coisa ao contrário, de tipos e graus de “subjetividade” ou tipos e graus de “valor-viés”. Ideologias, também, diferem em seu grau de congruência com a realidade. Por exemplo, as ideologias seculares do mundo moderno são, simplesmente pelo fato de serem seculares e “deste mundo”, mais “congruentes com a realidade” do que as ideologias predominantemente “mágicomíticas”, “sobrenaturais” dos tempos antigos (Elias, 1978). No entanto, Elias afirmava que as ideologias – mesmo aquelas com que a pessoa simpatiza, e Elias simpatizava principalmente com as da esquerda ou do centro político – sempre contêm um componente não testado, e mesmo não testável. Ele tinha a firme opinião de que um sine qua non para uma intervenção eficaz no mundo social é um conhecimento devidamente testado e mais congruente com a realidade sobre nós mesmos e a sociedade que formamos (Elias, 1978: 68-70). De fato, a posição de Elias nessa questão era complexa e intimamente ligada com sua teoria emergente do conhecimento e do desenvolvimento social. De acordo com Elias (1987: xxxvi), “a capacidade para o distanciamento é um universal humano”. Ou seja, é um aspecto constitutivo do Homo sapiens e envolve atividades tão simples como fazer ferramentas ou armas. Para executar essas tarefas, “os seres

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humanos têm que . . . distanciar-se até certo ponto de sua situação imediata interna ou externa”. Em outras palavras, construir artefatos desse tipo não é um meio de aplacar a fome ou lidar com uma ameaça do ambiente. Envolve “a capacidade de se distanciar da situação do momento, para se lembrar de uma situação passada ou antecipar um possível futuro em que o trabalho realizado . . . poderia ser de alguma utilidade”. Essas operações, segundo Elias, “são essenciais para as diversas autorregulações aqui descritas como distanciamento” (1987: xxxvi). Em outras palavras, a maior ou menor capacidade de se distanciar cognitivamente e emocionalmente de uma dada situação ou de um estado do corpo é uma propriedade de todos os seres humanos, faz parte da condição de ser humano. Não é apenas uma propriedade de cientistas quando fazem pesquisa.

De acordo com Elias, essa capacidade universal humana para o distanciamento depende em parte da constituição biológica da espécie, acima de tudo das funções coordenadoras executadas pelo córtex cerebral e do fato de este órgão ser dominante em relação às partes inferiores do cérebro. Também depende do fato de o córtex ele próprio depender do aprendizado da experiência, especialmente daquilo que Elias chamou de “fundos sociais de conhecimento” (1987: 50ff). No entanto, o distanciamento necessariamente sempre se combina com o envolvimento. Segundo Elias (1987: 3): Não se pode dizer em sentido absoluto que a perspectiva de uma pessoa é distanciada ou envolvida (ou, se preferir, “irracional”, “objetiva ou “subjetiva”). Somente bebês, e entre adultos apenas pessoas insanas, envolvem-se, em suas experiências, com total abandono aos seus sentimentos aqui e agora; e também somente os insanos conseguem permanecer totalmente alheios ao que acontece no ambiente.

Pensamos que Elias concordaria em que, além dos bebês e insanos, os únicos seres humanos completamente distanciados são os mortos! O comportamento adulto – em todas as sociedades humanas – normalmente oscila entre os dois extremos. Segundo Stephen Mennell (1989: 160), “a ênfase de Elias nesse ponto está no nítido contraste com a noção de Talcott Parsons de que a distinção entre afetividade e neutralidade

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afetiva . . . é uma escolha bem-definida, dicotômica e mutuamente exclusiva entre opostos”. Em outras palavras, para Elias é uma questão de sequências gradativas e equilíbrios ou graus oscilantes.

Aqui é fundamental o grau em que o fundo de conhecimento de uma sociedade é expresso e entendido principalmente em termos “mágico-míticos”, isto é, em termos de “espíritos”, “deuses” ou “demônios” antropomorficamente concebidos, ou em termos “científicos”, demonstrando-se que podem ser empiricamente e teoricamente mais congruentes com a “realidade” observável. Vale a pena realçar mais uma vez que essa é uma questão de equilíbrios e graus: mesmo os fundos de conhecimento das sociedades mais “avançadas” cientificamente contêm camadas ou resíduos do pensamento mágicomítico, e nenhum membro, de qualquer sociedade que seja, não importa quão “primitiva”, pôde sobreviver sem um mínimo de conhecimento congruente com a realidade sobre si mesmos e seu ambiente sociogeográfico. No entanto, na maior parte da existência humana predominaram as formas mágico-míticas de pensamento, e o nível de conhecimento confiável tem permanecido, correlativamente, baixo. Isto é, as pessoas foram apanhadas num dilema. O pensamento mágico-mítico não gerou acúmulo de conhecimento congruente com a realidade, e a falta desse tipo de conhecimento manteve uma baixa capacidade de exercitar controle. Consequentemente, os perigos a que estavam sujeitas, bem como seus temores, ainda eram muitos, e o medo as manteve presas ao pensamento mágico-mítico. Segundo Elias, houve dois principais avanços a partir do dilema vivenciado: no Mundo Antigo ocorreu um avanço limitado em direção à ciência, que posteriormente “foi coberto por um mar de Cristandade”. Na Europa do Renascimento pode ser identificado um processo mais substancial e duradouro que até hoje ainda nos envolve.

Como se pode ver, a posição de Elias sobre questões que envolvem o método científico está ligada a uma teoria do desenvolvimento do conhecimento. Essa teoria baseia-se em parte à observação de que, ao longo de milênios, mas num passo mais acelerado a partir do Renascimento, as pessoas conseguiram acumular fundos cada vez maiores de conhecimento mais congruente com a realidade. Elas foram capazes, segundo Elias, de construir “pequenas ilhas de certeza nos vastos oceanos de sua ignorância”. No entanto,

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para Auguste Comte, que foi um dos primeiros apresentar essa questão, esses desenvolvimentos foram mais acelerados no que diz respeito a processos físicos, químicos e biológicos do que em relação aos humanos e suas sociedades. Mais uma vez nas próprias palavras de Elias: Ao longo de milênios, grupos humanos, com a ajuda de um crescente fundo social de conhecimento, vêm construindo no universo não conhecido e ingovernável uma área de segurança cada vez maior para si próprios – uma área de conexões conhecidas que possam mais ou menos controlar. Como resultado, agora, em certas áreas, as pessoas são capazes de se orientar no fluxo de processos cegos e ingovernáveis melhor do que seus antepassados – ao menos em níveis físicos, se bem que em menor grau em níveis humanos, assim como as pessoas dentro de um barco se orientam nas águas incontroláveis do oceano ou, em espaçonaves, nos processos incontroláveis do sistema solar. Dessa maneira, expandindo seu controle dentro dos incontroláveis fluxos de eventos, os humanos, nas sociedades mais avançadas, conseguiram equipar-se com uma concha protetora maior destinada a evitar, o máximo possível, os perigos que emanam dos níveis não humanos do processo global. Mas ainda não conseguiram desenvolver um fundo de conhecimento igualmente abrangente e realista em níveis humanos e sociais. Daí ainda não serem capazes de controlar os perigos que os seres humanos constituem uns para os outros.

Uma das principais hipóteses propostas por Elias é que o avanço do conhecimento desde o Renascimento tem sido, em parte, consequência do e, em parte, tem contribuído para um “surto civilizador”, uma aceleração no processo civilizador que começou naquela época. Em outras palavras, Elias sugeriu que uma das precondições para o avanço da ciência moderna foi o aumento, em grupos específicos (mas que mais tarde se ampliaram), da capacidade, socialmente inculcada, de seus membros exercitarem o autodistanciamento e a autorrestrição. Ao consolidar, porém, a experiência do seu próprio eu como um Homo clausus, esse mesmo processo que facilitou o avanço das assim chamadas ciências “naturais” atuou como um bloqueio para a emergência de suas contrapartes sociais – daí, em parte, o avanço mais lento, tardio e menor destas últimas. Ao mesmo tempo, o avanço das ciências naturais contribuía para a exacerbação de

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problemas sociais como a guerra, aumentando, por exemplo, a destrutividade das armas, e assim aumentando a necessidade de uma compreensão mais científica da sociogênese das guerras. Elias reconheceu, no entanto, que as ciências sociais tiveram certo avanço e, como observou Mennell em 1989, Elias admitiu sua dívida para com “o exemplo prático das três grandes figuras que ele sempre viu como os pioneiros das teorias de processo: Darwin, Comte e Marx”. Já no final da vida, Elias acrescentou aos problemas parcialmente causados pela ciência as crises ecológicas, que em sua opinião aumentam a necessidade de avanços na sociologia e na psicologia.

Não foi apenas a lenta emergência da sociologia e das outras ciências sociais que levou Elias a sugerir que as pessoas – especialmente nas sociedades mais “avançadas” – gradualmente estão adotando uma abordagem mais distanciada em relação a si próprias. Essa abordagem, segundo seu argumento, até certo ponto também é inerente às ideologias

predominantemente

seculares

de

nossa

época.

Conforme

sugeri

anteriormente, é inerente porque são seculares e não religiosas e, portanto, desprovidas, em maior ou menor grau, de concepções antropomórficas como as dos espíritos, demônios e deuses. Também é inerente ao fato de que essas ideologias seculares de hoje contêm, em suas raízes, ideias “holísticas” ou “sistêmicas” segundo as quais acredita-se que as “sociedades” podem vir a ser “mais justas” ou “mais ricas” e “mais eficientes” com a aplicação de políticas por parte do “estado”. Dito isso, porém, as ideologias atuais, sejam de direita, esquerda ou centro, continuam contendo ideias “voluntaristas”, como a crença de que é possível, com base no conhecimento atual, construir “Utopias” no mundo real, isto é, moldar as sociedades de acordo com nossas fantasias, desejos e sonhos. Segundo Elias, no entanto, o pensamento voluntarista sobre as relações humanas assemelha-se em muitos aspectos ao pensamento mágico-mítico. Crenças desse tipo, e seu compartilhamento, podem trazer certo grau de conforto emocional em um mundo social frio, impessoal, complexo e em acelerada mudança; mas, quando traduzidas em ação, provavelmente produzirão consequências não previstas e, de um modo geral, não desejadas e indesejáveis. Por essas razões é que Elias acreditava ser fundamental para os sociólogos empenhar-se por maior autonomia em relação a ideologias tanto políticas quanto de outra natureza. Mesmo que representem um desenvolvimento no sentido de maior distanciamento em certos aspectos, sistemas de crenças atuais de natureza predominantemente ideológica continuam a priorizar a fé

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cega e sem explicação. Exemplos são a ideia de que a propriedade pública dos meios de produção conduzirá à igualdade ou que a maximização da riqueza individual é o caminho para a felicidade e a realização pessoal. Na visão de Elias, ao contrário, nossa maior necessidade é por um maior fundo de conhecimento, sobre nós mesmos e as sociedades que formamos, que seja congruente com a realidade, isto é, por um conhecimento que aumentará nossa capacidade de controlar processos e

eventos,

evitando os velhos problemas das “conseqüências não intencionais de ações sociais intencionais”.

Uma vez Elias escreveu que os marxistas atuais parecem tratar as teorias de Marx como se fossem “o fim de uma estrada”, enquanto para Elias seria melhor vê-las como “sintoma de um começo” (Elias, 1997: xxx). Em outras palavras, esses marxistas e outros que igualmente parecem acreditar que não há uma necessidade urgente por mais conhecimento, e conhecimento mais confiável, sobre nós mesmos provavelmente sofrem de algum tipo de húbris ou soberba. Ao contrário, Elias nunca deixou de falar e escrever sobre quão rudimentar é o nosso conhecimento sociológico no estágio atual de seu desenvolvimento.

Embora Elias nunca o tenha dito explicitamente, penso que seria coerente com sua visão do nível atual de desenvolvimento da sociologia dizer que, se a obra de Marx constituiu o sintoma de um começo, a sua própria constitui outro começo. Já que ele foi capaz, como sugeri anteriormente, de construir sobre os fundamentos de Marx – e outros como Comte, Durkheim, Weber, Mannheim, Simmel e Freud –, em alguns aspectos talvez seja mais avançado, mas não deixa de ser sintoma de um começo. Todos os sociólogos trabalham, por assim dizer, numa ciência recém-constituída. Daí se conclui que em nenhum momento Elias afirmou que qualquer uma de suas teorias é ou completamente distanciada ou constitui algo mais do que pequenos e esperançosos avanços no processo de crescimento do conhecimento sobre nós mesmos. O distanciamento “completo” ou “absoluto” é uma quimera. E assim, da mesma forma, no atual nível de desenvolvimento sociológico, será qualquer teoria sociológica “completa” ou “final” da civilização, boas maneiras, formação do estado, poder, conhecimento, alimentos, esporte, lazer, vandalismo no futebol ou qualquer outra coisa. Segundo Elias (1987: 6):

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O objetivo das investigações (científicas) é descobrir a ordem inerente dos eventos tal como ela é, independentemente de qualquer observador específico; e a importância, a pertinência e o valor da coisa observada é avaliada de acordo com o lugar e a função que ela parece ter nessa própria ordem. Ao explorarem a natureza . . . os cientistas aprenderam que qualquer invasão direta em seu trabalho por parte de interesses de curto prazo ou necessidades de pessoas ou grupos específicos está propensa a pôr em risco a utilidade que no fim seu trabalho poderá ter para si próprios. Os problemas que eles formulam e que, por meio de suas teorias, tentam resolver, têm um alto grau de autonomia em relação a problemas pessoais ou sociais da época; o mesmo acontece com o conjunto de valores que eles utilizam; seu trabalho não é “isento de valor”, mas, ao contrário daquele de muitos cientistas sociais, é protegido por padrões profissionais solidamente estabelecidos e por outras salvaguardas institucionais contra a intrusão de avaliações heterônomas. Elias se opunha àqueles muitos marxistas, por exemplo, que argumentavam que a sociologia deveria ser instrumento de alguma classe ou grupo de interesse. Ele não aceitava a ideia simplista de que “se você não está do nosso lado, está contra nós”. Isto é, não aceitava a noção de que uma sociologia que não expressa, digamos, os interesses da classe trabalhadora, expressa ipso facto os interesses de seus dominadores. Em vez disso, insistiu para que os sociólogos se empenhassem pela autonomia e contra a heteronomia, contra a interferência na determinação e execução de seu trabalho por parte de qualquer grupo externo ou seus representantes. Para tanto, defendeu a criação de padrões, instituições e modos de procedimento semelhantes aos das ciências naturais, mas adaptados às propriedades específicas dos seres humanos e das figurações por eles formadas. O acréscimo de conhecimento per se deveria ser mais importante que interesses e preocupações de curto prazo tanto na pesquisa quanto na decisão dos méritos de trabalhos específicos. Que são possíveis avanços de natureza relativamente não ideológica no conhecimento sobre as sociedades humanas, é demonstrado, por exemplo, pela obra de Marx em relação à de Hegel, pelo fato de que a primeira contribuiu decisivamente para o desenvolvimento inicial da sociologia a partir da filosofia. No entanto, Elias deixou bem claro que, ao se empenharem para atingir esses objetivos, os sociólogos não podem e não devem abandonar seus interesses e suas preocupações políticas. Como ele expressou em 1987 (1987: 16):

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O problema que se impõe (aos cientistas sociais) não é simplesmente descartar seu (envolvimento político) em favor de . . . (uma posição mais distanciada, científica). Eles não podem deixar de participar de, e ser influenciado pelos, temas sociais e políticos de seu grupo e de sua época. Além disso, a própria participação e envolvimento é uma das condições para compreender os problemas que eles tentam resolver como cientistas. Pois, enquanto para entender a estrutura das moléculas não é necessário saber como se sente um de seus átomos – para entender o funcionamento de grupos humanos é preciso saber, por assim dizer, de dentro como os seres humanos vivenciam seus próprios grupos e outros, e não se pode sabê-lo sem participação e envolvimento ativos. O problema que se impõe àqueles que estudam aspectos de grupos humanos é como manter separados os papéis de participante e investigador de um modo claro e coerente e, como grupo profissional, estabelecer em seu trabalho o inconteste predomínio deste último. Foi por razões como essas que Elias sempre encorajou os estudantes a desenvolver pesquisa em áreas em que estejam diretamente interessados e envolvidos11, ao mesmo tempo em que insistia com eles para que se empenhassem o máximo possível, quando estiverem engajados no processo de pesquisa, em se distanciar dos objetos de sua pesquisa, em pegar “um desvio via distanciamento” a fim de maximizar o grau de congruência com a realidade de suas descobertas, isto é, fazê-las corresponder tanto quanto possível à estrutura e às qualidades dos próprios objetos, e não a suas fantasias e sentimentos pessoais e/ou interesses pessoais e de grupo e mitos de vários tipos. Em linhas gerais essa era a posição de Elias sobre os problemas do envolvimento e distanciamento. Em seguida discutirei algumas aplicações de seu trabalho, tanto pelo próprio Elias quanto por acadêmicos que tentaram testá-lo, explicá-lo e ampliá-lo. Começarei discutindo três extensões feitas pelo próprio Elias, a saber, seus trabalhos sobre tempo e timing, pronomes pessoais como modelo figuracional, e modelos de “jogo” e o poder. Depois disso farei um apanhado e discutirei algumas das principais críticas a sua obra.

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Algumas Aplicações e Elaborações do Trabalho de Elias A Teoria dos Processos Civilizadores como uma “Teoria Central” Sugeri anteriormente que Elias considerava a teoria dos processos civilizadores uma “teoria central”. Em menor alcance, também via da mesma maneira sua ramificação, a teoria das figurações estabelecidos-outsiders. Embora, até onde eu saiba, Elias nunca tenha escrito isso, sei de suas aulas e de conversas que tivemos durante muitos anos que ele desenvolveu o conceito de uma teoria central em parcial concordância com a postura crítica de C. Right Mills (1959) em relação ao que ele (Mills) chamou de as “grandes teorias” de Talcott Parsons, mas também em parcial oposição à defesa que Robert K. Merton fazia das “teorias de médio alcance”. Assim Mills descreveu a “grande teoria”: A causa básica da grande teoria é a escolha inicial de um nível de pensamento tão geral que seus praticantes não podem logicamente chegar ao nível da observação. Partindo de generalizações mais amplas, eles nunca, como grandes teóricos, descem até os problemas em seus contextos históricos e estruturais. Essa ausência de um forte senso de genuína problematização, por sua vez, é que possibilita a irrealidade tão evidente em suas páginas (Mills, 1959: 42) A obra de Talcott Parsons (1951) e, mais recentemente, embora em menor escala, parte do trabalho de Anthony Giddens (1984) são exemplos de “grandes teorias” nesse sentido. Elias concordava com a oposição de Mills quanto à generalidade e o abstracionismo dos textos de acadêmicos como Parsons e insistia na necessidade de um “tráfego constante de mão dupla” entre teoria e observação para uma sociologia frutífera, vigorosa e que produza conhecimento “congruente com a realidade” ou “adequado ao objeto”. Ele também compartilhava a ênfase de Mills na sociologia como disciplina histórica preocupada com estruturas. Daí a teoria dos processos civilizadores envolver, por um lado, a identificação de conexões entre os pormenores dos hábitos sociais e o desenvolvimento de padrões sociais e, por outro, níveis mais elevados, como os das cadeias de interdependência, níveis de formação do estado, democratização funcional e graus de pacificação.

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Robert K. Merton (1957) concordava em parte com a oposição de Mills e Elias à “grande teoria”. Ao defender aquilo que chamava de “teorias de médio alcance”, Merton sugeriu que . . . parece razoável supor que a sociologia avançará na medida em que seu principal interesse for desenvolver teorias de médio alcance e se frustrará se a atenção concentrar-se na teoria de um modo geral. Acredito que hoje nossa tarefa mais importante é desenvolver teorias especiais aplicáveis a extensões limitadas de dados – teorias, por exemplo, da dinâmica de classe, das pressões conflitantes, do fluxo de poder e do exercício da influência interpessoal – em vez de procurar imediatamente a estrutura conceitual “integrada” adequada para derivar todas essas e outras teorias . . . Estou sugerindo que a estrada que leva a esquemas conceituais eficazes em sociologia será mais bem construída através do trabalho com teorias especiais, e que continuará sendo um plano em sua maior parte não realizado se o que se quer é construí-lo diretamente agora (Merton, 1957: 9). Elias provavelmente aplaudiria o caráter processual da analogia de Merton entre construção de teoria e construção de estrada. No entanto, apesar da aparente semelhança sugerida pelas palavras “médio” e “central”, ele (Elias) se opunha decididamente ao caráter ad hoc do conceito de Merton. Essa oposição devia-se a sua crença de que a estratégia de Merton, embora possa ter seu valor quanto à necessidade de uma sociologia baseada num tráfego de mão dupla entre pesquisa e teoria, seria de pouca ou nenhuma utilidade para lidar com a fragmentação causada pelo caráter multiparadigmático da disciplina. Daí Elias enfatizar a necessidade de teorias centrais, isto é, teorias baseadas em observações empíricas meticulosas e detalhadas, expressas em um nível de síntese suficientemente elevado para ser aplicável a um espectro de diferentes assuntos e, no entanto, suficientemente prático para estar relacionado às experiências da vida real de seres humanos reais. O fato de que a teoria dos processos civilizadores tem sido usada para contribuir com o avanço do conhecimento, em relação a temas aparentemente díspares como tempo e timing, esporte e lazer, consumo de alimento e tabaco, guerra e violência, morte e morrer, música e muitos outros aspectos da vida humana, sugere que Elias teve algum sucesso. A teoria das

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figurações estabelecidos-outsiders do mesmo modo tem sido utilizada para lançar alguma luz sobre formas de desigualdade aparentemente diferentes como as que existem entre as classes, homens e mulheres, os assim chamados grupos “raciais” e pessoas de diferentes orientações sexuais. Vamos examinar alguns exemplos de como Elias usou a teoria dos processos civilizadores como uma teoria central. Os tópicos que focalizarei são: tempo e timing; os pronomes pessoais como modelo figuracional; e os modelos de jogo e o poder. Depois disso voltarei a uma breve discussão dos estudos eliasianos sobre esporte e lazer, raça e esporte, e nazismo e holocausto.

Tempo e Timing As contribuições de Elias à compreensão do “tempo” e do “timing” podem ser ilustradas por meio de uma crítica àquilo que Anthony Giddens escreveu sobre o assunto. Segue a citação: Como a finitude do Dasein e como “a infinitude da emergência do ser a partir do nada”, o tempo talvez seja o aspecto mais enigmático da experiência humana. Não é por nada (sic) que o filósofo que tentou enfrentar o problema da maneira mais fundamental, Heidegger, foi compelido a usar uma terminologia da mais apavorante obscuridade. Mas o tempo, ou a constituição da experiência no tempo-espaço, também é um aspecto banal e evidente do dia-a-dia do ser humano. Em algum ponto, é a falta de “adequação” entre o modo não problemático como lidamos com a continuidade da conduta ao longo do tempo-espaço, e seu caráter inefável quando confrontado filosoficamente, que constitui a própria essência da natureza enigmática do tempo (Giddens, 1984: 34-5). Ambos os lados dessa equação são problemáticos. O tempo pode ser um “aspecto banal e evidente do dia-a-dia do ser humano” no mundo moderno onde herdamos um calendário prático e dispositivos eficientes e globalmente padronizados para medir aquilo que chamamos de “tempo”, isto é, o que o relógio marca. No entanto, nem sempre foi assim, como mostra Elias quando escreveu que:

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As pessoas esquecem que durante milhares de anos os calendários apresentaram problemas por várias vezes; tinham que ser repetidamente reformados e aperfeiçoados até que um deles atingiu a quase perfeição que o calendário europeu alcançou desde a última reforma (Elias, 1992: 193). Na verdade, esse “aspecto do dia-a-dia do ser humano” está tão longe de ser “banal e evidente” que houve ocasiões em que as pessoas se opuseram às reformas do calendário porque acreditavam que encurtariam suas vidas”! Isso fazia parte da mesma mentalidade que no mundo antigo politeísta acreditava que o tempo era controlado por Kronos, o deus do tempo. A palavra atual para a medida do tempo, “cronologia”, mostra assim suas raízes no pensamento antropomórfico dos antigos gregos e romanos (Elias, 1992: 178).

O outro lado do que Giddens escreveu é problemático porque ele não parece ter considerado a possibilidade de que a “apavorante obscuridade” da terminologia de Heidegger pode estar ligada, não às propriedades do tempo per se, mas ao fato de que Heidegger abordou o problema filosoficamente, isto é, da perspectiva do Homo clausus. Esse parece ser o caso porque, embora os problemas associados ao “tempo” continuem sendo complexos se tratados sociologicamente, visto da perspectiva dos Homines aperti, ou propriamente sociológica, não são nem “apavorantes” nem “obscuros”. Pelo contrário, são perfeitamente inteligíveis.

Elias deu muito valor àquilo que chamou de “teoria do símbolo” (Elias, 1991), referindo-se à “emancipação simbólica” da humanidade como o maior passo de sua diferenciação evolutiva, e superioridade, em relação aos outros animais. Ampliando o conceito marxista de “meios de produção”, Elias escreveu sobre a necessidade de “meios de dominação” e, o que é mais pertinente aos propósitos atuais, “meios de orientação” também. Sociologicamente, o tempo é um meio simbólico de orientação, um dispositivo conceitual através do qual nós, humanos, coordenamos nossas atividades em relação uns aos outros e ao resto do mundo natural, isto é, em relação a processos e eventos em vários níveis e de vários tipos. Sua única realidade é como um símbolo de relações num universo onde existem apenas processos e eventos naturais

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(processos e eventos humanos e sociais), onde, se preferir, apenas eventos, processos e as relações espaço-temporais entre eles são conhecidos pelos humanos como sendo “reais”. Essa, pelo menos, era a visão de Elias. Assim ele expressou parte dela: Hábitos linguísticos . . . constantemente reforçam o mito do tempo como algo que de certa forma existe, e como tal pode ser determinado ou medido, mesmo se não puder ser percebido pelos sentidos. Pode-se filosofar indefinidamente sobre esse modo peculiar de existência do tempo, como aliás tem sido feito ao longo dos séculos. Pode-se entreter a si mesmo e aos outros especulando sobre o segredo do tempo como senhor dos mistérios, embora na verdade não haja nenhum mistério. Foi Einstein quem finalmente selou a descoberta de que o tempo é uma forma de relação e não, como acreditava Newton, um fluxo objetivo, uma parte da criação como os rios e as montanhas que, embora invisível, era, como eles, independente das pessoas que vivenciam a noção de tempo. Nem mesmo Einstein, porém, aprofundou-se o bastante. Ele, também, não pôde evitar totalmente a pressão do fetichismo da palavra e, ao seu modo, manteve o mito do tempo reificado, por exemplo, sustentando que em certas circunstâncias o tempo poderia contrair ou expandir (Elias, 1992: 43-4). Assim, processos e eventos, e não símbolos, são os únicos substantivos, os únicos fenômenos “materiais”, e o “tempo” é um símbolo, não um processo ou evento. Além disso, “toda mudança no ‘espaço’ é uma mudança no ‘tempo’; (e) toda mudança no ‘tempo’ é uma mudança no ‘espaço’” (Elias, 1992: 99-100). Não há necessidade de entrar em mais detalhes sobre os conceitos de “espaço” e “espaço-tempo” neste contexto. Basta acrescentar que, assim como hoje as pessoas são herdeiras de dispositivos que simbolizam e medem o tempo de um modo mais congruente com a realidade do que aqueles disponíveis como meios de orientação para nossos ancestrais, também são herdeiras de um fundo de conhecimento congruente com a realidade sobre “o espaço”, especialmente o “espaço local”, isto é, a Terra, o planeta que habitamos. Ou seja, temos mapas e dispositivos muito mais precisos e confiáveis, como bússolas e radares, para medir posições relativas no “espaço-tempo”, para nos localizarmos e nos orientarmos.

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Segundo Elias, a necessidade social de timing era menos aguda e disseminada nas sociedades antigas que estados-nações urbano-industriais complexas de nossos dias. Já em 1939, ele observava que a percepção generalizada da vida moderna como sendo de um “passo” ou “ritmo” “acelerado” é consequência dessa complexidade estrutural. O que ele escreveu sobre a questão vale a pena ser citado na íntegra. Elias começou referindo-se ao tamanho das redes modernas de interdependência e seus efeitos psicológicos: Uma das características que evidencia, de um lado, (a) conexão entre o tamanho e a pressão na rede de interdependência e, de outro, a formação psicológica do indivíduo é aquilo que chamamos de “ritmo” do nosso tempo. Esse “ritmo” é, de fato, nada mais que uma manifestação das diversas cadeias interligadas de interdependência que operam através de cada função social que as pessoas desempenham, e da pressão competitiva que permeia essa rede densamente povoada, afetando direta ou indiretamente cada ato individual. Isso pode ser visto, no caso de um funcionário do governo ou de um homem de negócios, na profusão de seus compromissos ou reuniões, e de um trabalhador, no timing e duração exatos de cada um de seus movimentos; em ambos os casos, o ritmo é uma expressão das diversas ações interdependentes, da extensão e densidade das cadeias compostas pelas ações individuais, e da intensidade dos embates competitivos que mantêm em movimento toda essa teia de interdependência. Em ambos os casos, uma função situada numa junção de tantas cadeias de ação exige uma determinada alocação de tempo; faz as pessoas se acostumarem a subordinar inclinações momentâneas às necessidades mais prementes de interdependência, treinando-as a eliminar quaisquer irregularidades do comportamento para atingir um autocontrole permanente. É por isso que tendências individuais rebelam-se com tanta frequência contra o tempo social representado pelo próprio superego, e tantas pessoas entram em conflito consigo mesmas quando desejam ser pontuais. A partir do desenvolvimento de instrumentos cronométricos e da consciência do tempo – assim como do dinheiro e de outros instrumentos de integração social – é possível perceber com uma precisão considerável

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como avança a divisão de funções, e com ela o autocontrole imposto aos indivíduos (Elias, 1939; 2000: 379-380). Assim, uma as principais ideias de Elias é que o desenvolvimento, ao nível do hábito social dos indivíduos, de um regime altamente complexo de autorregulação, parte importante do qual consiste em uma aguda sensibilidade em relação ao tempo, é um corolário convincente da emergência dos estados-nações urbano-industriais complexas do mundo moderno. A compulsão externa do tempo, representados por calendários, esquemas de horários, relógios de parede, agendas pessoais e relógios de pulso, forma, nessas sociedades, uma fina malha de restrições sociais relativamente discretas, moderadas, uniformes e não violentas, mas onipresentes e inevitáveis, que passa a ser internalizada em maior ou menor grau como autorrestrições. Em resumo, as pressões que incidem sobre as pessoas em estados-nações urbano-industriais para que desenvolvam uma “consciência do tempo”, isto é, para que estejam constantemente conscientes do “tempo”, de modo que possam ajustar suas ações e coordená-las com as de muitos outros indivíduos são aspectos característicos de um processo civilizador. Elias deixou claro essa conexão em Time: an Essay (Tempo: um Ensaio) (1992), quando escreveu sobre a internalização da consciência do tempo e de uma ética do tempo por parte dos indivíduos: A precocidade com que a regulação social começa a ser individualizada . . .(nas sociedades complexas) sem dúvida contribui e muito para a solidez e inevitabilidade da ética do tempo pessoal. A voz interior que indaga sobre o tempo está sempre presente. Não admira que, para pessoas com essa estrutura de personalidade, a experiência de todas as sequências naturais, sociais e pessoais em termos dos símbolos reguladores do tempo em suas sociedades frequentemente aparece como um aspecto de sua própria natureza, e depois da natureza humana em geral. Pessoas equipadas com uma ética do tempo arraigada, uniforme e onipresente têm dificuldade em imaginar que existam outros aos quais falta a compulsão de indagar sobre o tempo. Essa individualização do controle social do tempo encerra, de forma quase paradigmática, os aspectos de um processo civilizador (Elias, 1992: 23. O itálico e nosso).

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Algumas Consequências Conceituais e Metodológicas da Teoria do Tempo de Elias Parte da pertinência que a teoria do tempo de Elias tem para a sociologia é a implicação de que os praticantes dessa disciplina devem estar mais conscientes que de costume do fato de que seu objeto de estudo são os eventos e os processos (estruturados) no espaço e no tempo, ou melhor, no espaço-tempo. Isso significa que a visão convencional de que a sociologia e a história são disciplinas separadas e distintas, uma interessada no “presente”, a outra no “passado”, é arbitrária e errada. Todos os estudos são inevitavelmente estudos do passado. Um pouco de reflexão mostrará que é assim. As sociedades humanas existem no espaço-tempo, e o tempo, como diz o velho ditado, “nunca para”. Isso significa que o que chamamos de “presente” é um ponto de referência em constante deslocamento no fluxo incessante dos processos e eventos. O que era “presente” quando comecei a escrever esta introdução já havia se tornado parte do “passado” quando a concluí. Em resumo, “presente” é um conceito ambíguo e enganoso quando interpretado de qualquer outra maneira que não seja com uma conotação histórica. Consequentemente, se fôssemos aceitar que a sociologia envolve um determinado tipo de estudo do “presente”, deveria ser feito um julgamento mais ou menos arbitrário sobre o passado relativamente recente. Em outras palavras, seria preciso decidir se esse termo refere-se, digamos, à década de 1980, 1990 e 2000, antes da década de 1960 ou ao período que vem desde a Segunda Guerra Mundial. No entanto, qualquer que seja a decisão, tal estudo necessariamente envolveria uma tentativa de tratar de aspectos do “passado”. Ou seja, inevitavelmente isso nos levaria a nos envolver num tipo de estudo de “história”.

Costuma-se argumentar – por exemplo, Popper (1957) – que a história e a sociologia histórica não podem ser “ciências” por causa do caráter único e da não reprodutibilidade dos eventos sociais. A posição de Elias era mais sutil. Ele afirmou que o caráter único e a irreprodutibilidade não são inerentes aos eventos como “objetos”, independentemente dos valores das pessoas que fazem tais alegações (Elias, 1983: 9ff). Ao contrário, Elias sugeriu, alegações de unicidade e irreprodutibilidade refletem os valores de pessoas de sociedades industriais altamente diferenciadas em que a unicidade individual é

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altamente valorizada. Isso traz à tona questões complexas. De acordo com Elias, os seres humanos têm mais oportunidade para a individualização ou a diferenciação individual em suas ações do que qualquer outra espécie conhecida. No entanto, cada indivíduo humano único somente é único dentro do padrão recorrente e geneticamente determinado da espécie. As relações sociais de formigas e abelhas permanecem as mesmas por milhares de anos porque essas relações dependem da construção genética desses insetos, para usar um termo dos biólogos, himenópteros. Como espécie, porém, o Homo sapiens é fundamentalmente diferente porque os padrões humanos de organização social dependem de aprendizagem. Assim, a organização social humana pode mudar e muda sem que ocorram alterações biológicas. De fato, embora não tenha havido nenhuma mudança genética significativa no Homo sapiens desde que a espécie emergiu há 250 mil anos, os últimos 12 mil anos testemunharam as “revoluções” agrícola (“neolítica”), metalúrgica, urbana, científica, industrial e, mais recentemente, da tecnologia de informação. Além disso, os intervalos entre essas “revoluções” vêm diminuindo. Em outras palavras, a humanidade está vivenciando uma aceleração nas mudanças sociais.

Mais pertinente aos atuais propósitos, porém, é a dependência dos seres humanos em relação à descoberta e aprendizagem que nos possibilitam ter uma “história” e permitem a transformação e o desenvolvimento de nossas sociedades. Uma das ideias de Elias era que as sequências denotadas pelos termos “evolução cósmica”, “evolução biológica”, “desenvolvimento social” e “história” formam camadas inseparáveis, porém distinguíveis, de processos na totalidade do que é conhecido sobre o universo até agora (1983: 13ff; 1987: ).

O termo “evolução”, segundo ele, deveria restringir-se a processos cósmicos e biológicos, e não ser utilizado de maneira alguma em relação a processos sociais. A razão é sublinhar a relativa autonomia dos processos sociais, o fato de que ocorrem como resultado de dinâmicas especificamente sociais e não biológicas. Elias recomendava que o termo desenvolvimento deveria ser usado com relação a processos estruturais sociais, o termo “história” a níveis de eventos. Os ritmos de mudança nesses níveis inseparáveis, porém distinguíveis, tendem a ser diferentes. A evolução cósmica é

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a mais lenta de todas. As figurações sociais mudam mais rapidamente que as estruturas genéticas dos organismos biológicos, e os seres humanos individualmente mudam (no sentido, por exemplo, de percorrer um ciclo de vida) mais rapidamente que as figurações. Por exemplo, a figuração “cavaleiro-escudeiro-sacerdote-servo” da Idade Média europeia e a figuração “trabalhador-funcionário-administrador” dos tempos mais recentes (Elias talvez devesse ter acrescentado “cliente” ou “consumidor” à lista para torná-la mais atualizada) são exemplos de figurações que perduraram durante várias gerações. Isso independe do fato de que cada indivíduo que as contém é, ou foi, uma variação única e que não pode ser repetida dentro do padrão comum à espécie, e agiu mais ou menos diferentemente, em parte de acordo a capacidade da espécie para a individualidade comportamental, e em parte de acordo com o nível de individualização estruturalmente determinada representativo do estágio de desenvolvimento em que se encontrava ou encontra sua sociedade. Outra forma de expressar parte disso tudo seria dizer que as figurações têm um grau de autonomia em relação aos indivíduos que as formam. Isso é coerente com o que Durkheim tentou captar quando escreveu sobre a impossibilidade de modificar fatos sociais mediante um “simples esforço de vontade” (1896/1964). O que Elias tentava fazer, principalmente, era aumentar a compreensão sobre as variações espaço-temporais no equilíbrio entre voluntarismo e determinismo na vida social humana.

Pronomes Pessoais como Modelo Figuracional Um aspecto bastante arraigado na história da sociologia envolve tentativas de avançar o conhecimento construindo, ou utilizando para fins ilustrativos, modelos analógicos de estruturas e processos sociais, por exemplo, modelos de máquinas, modelos orgânicos e modelos de sistemas, incluindo, durante a década de 1960, modelos cibernéticos12. Quanto a essa prática, Elias não foi exceção, exceto por um aspecto: os modelos que construiu, conforme os expressou para fins didáticos, eram todos baseados na própria vida social, por exemplo, danças, jogos e pronomes pessoais. Consequentemente, sua congruência com a realidade é relativamente alta. Meu interesse aqui será apenas com os pronomes pessoais e os jogos.

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Neste contexto não há necessidade de uma discussão detalhada sobre o uso que Elias faz dos pronomes pessoais e dos jogos como modelos figuracionais. Uma breve abordagem será suficiente, exceto por dois aspectos: como Elias utilizava os pronomes para lançar alguma luz sobre as dimensões figuracionais da autoidentidade e da identificação de grupo, e como ele utilizava os modelos de jogos para esclarecer problemas relativos ao poder, coeficientes de poder , conflitos e lutas pelo poder.

Foi nos seminários de grupo do Departamento de Sociologia de Leicester, na década de 1960, que Elias começou a desenvolver sistematicamente a ideia dos pronomes pessoais como um modelo figuracional. Ele apresentou a ideia em Was ist Soziologie? (1970) e a desenvolveu em Die Gesellschaft der Individuen, isto é, A Sociedade dos Indivíduos, em 1987. O que ele estava basicamente tentando fazer era contribuir para um modo não reificante de formação de conceito sociológico, enquanto ao mesmo tempo se opunha a uma imagem ingenuamente egocêntrica da sociedade e à imagem das pessoas como o “eu sem nós”, como ele o chamava em 1987, característico das formas de pensar do Homo sapiens. Toda pessoa aprende a se referir a si mesma já no começo de sua socialização na infância como “eu” e aos outros como “você”, “ela”, “nós” e “eles”. Os pronomes são relacionais e funcionais. A função do pronome “eu” só pode ser entendida no contexto de todas as outras posições às quais “você”, “ela”, “ele”, “nós” e “eles” se referem, e a compreensão desse conjunto de relações por parte da criança é fundamental para que ela adquira uma concepção de si mesma como uma pessoa separada relacionada a outras pessoas separadas, “eles” ou “elas”, cada uma também com a experiência de si própria como um “eu”. Não há e nunca pôde haver alguém que não faça ou não tenha feito parte de uma figuração ou rede de indivíduos interdependentes, e a experiência dessa interdependência é pensada e expressa por meio dos pronomes e conceitos relacionados. Segundo Elias: O senso de identidade pessoal está intimamente ligado às relações de “nós” e “eles” do grupo, e à posição que cada um tem nessas unidades referidas como “nós” e “eles”. No entanto, os pronomes nem sempre se referem às mesmas pessoas. As figurações às quais costumam se referir podem mudar no curso de uma vida, assim como acontece com qualquer pessoa. Isso é verdadeiro não só para todas as pessoas consideradas separadamente, mas para todos os grupos e

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mesmo todas as sociedades. Seus membros universalmente dizem “nós” referindo-se a si próprios e “eles” referindo-se a outras pessoas; mas, com o passar do tempo, poderão dizer “nós” e “eles” referindo-se a diferentes pessoas (1970; 1978: 128). À primeira vista, isso pode parecer banal. No entanto, serve para nos lembrar de que tanto as pessoas individualmente quanto as sociedades que elas formam são processos. Não somente seus corpos, mas também suas imagens de “eu”, “nós” e “eles” mudam com o tempo. Além do mais, as imagens de “nós” e “eles” tendem a ser interdependentes e costumam persistir por períodos mais longos que o de uma única vida. Por exemplo, se a pessoa havia nascido na Inglaterra do século XIX, teria aprendido a pensar nos franceses como um “eles” militarista e quase totalmente ameaçador. Os pais costumavam assustar as crianças travessas dizendo: “Boney (Napoleão Bonaparte) vai vir te pegar”. Naquele tempo, os alemães tendiam a ser vistos como uma nação de músicos e poetas. No período que antecedeu e sucedeu a Primeira Guerra Mundial, porém, os alemães tomaram o lugar dos franceses aos olhos dos ingleses e continuam até hoje a desempenhar a função, para muitos cidadãos ingleses, de um temido, desprezado e odiado “eles” em relação aos quais têm um profundo sentimento de unidade em seu ódio.

Outro uso para o modelo do pronome está relacionado ao conceito de “função”. No funcionalismo de Parsons e de antropólogos como Radcliffe-Brown (1952), o termo tendia a ser usado para se referir às consequências de ações do indivíduo e do grupo para a “totalidade” ou “sistema” social. Elias, porém, afirmava que esse uso vinha de uma aplicação por demais rígida da analogia orgânica e que as sociedades não tinham as fronteiras nítidas e impermeáveis de um “sistema”. Também é fácil ver, disse ele, como essas análises funcionais atraem a acusação de que a sociologia “despreza o indivíduo”. Se, em vez de focalizar abstrações como “totalidade social”, “sistema social” ou “indivíduo”, examinarmos factualmente os processos cognitivos e emocionais envolvidos nos atos individuais e como as ações dos indivíduos se interligam com as de outros, poderemos ver como é útil distinguir conceitualmente entre funções-eu, funções-você(s), funções-nós e funções-eles. Essa abordagem também facilita a obtenção de um conceito de interesses mais diferenciado e matizado. Por

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exemplo, permite que se vá além da tosca concepção marxista (n.b. Não estou sugerindo que todas as formas de marxismo são toscas) segundo a qual todos os trabalhadores compartilham igualmente um interesse em combater seus patrões e derrubar o status quo capitalista. Assim, geralmente o que se vê é que, ao executar ações, as pessoas o fazem em parte para servir aos seus próprios interesses (funções-eu), em parte para servir a interesses que compartilham com outros (funções-nós). Por exemplo, ao cumprirem seu trabalho ocupacional, um homem e uma mulher que vivem juntos com os filhos (não necessariamente marido e esposa) estarão em parte provendo para seus próprios interesses materiais e de prestígio, em parte para os interesses dos parceiros, e em parte para os interesses dos filhos. Além do mais, numa sociedade capitalista, seu trabalho ocupacional terá também “funções-eles”; mais particularmente, através dos lucros, isto é, o valor de mais valia que é extraído de seu labor13. E se a sociedade tiver o assim chamado “estado do bem-estar”, por meio das tributações pagas, seu trabalho ajudará a satisfazer as necessidades dos pobres, doentes e desempregados.

Também existem as “funções-isso”, isto é, ações que são executadas e legitimadas no serviço de um “isso” simbólico – uma crença, um totem, uma bandeira, a honra e a glória de uma família, uma tribo, uma casta, uma classe ou uma nação. O equilíbrio entre essas várias funções perspectivais tende a variar em relação ao equilíbrio cambiante de poder entre indivíduos e grupos. Também tende a variar com o tempo. Por exemplo, com o desenvolvimento dos estados-nações urbanoindustriais capitalistas, cada vez mais pessoas passam a se ver e a sentir a si próprias como “eu sem nós”, portanto as “funções-eu” tendem a ser mais acentuadas e as “funções-nós” e as “funções-eles” tendem a ser empurradas para o plano de fundo. Esse esquema conceitual também é útil para esclarecer a passagem dos indivíduos pelas diferentes etapas da vida. Assim, as “funções-eu” predominam nas crianças, as funções “nós”, “eles” e “isso” ganham importância entre os adultos, e as “funções-eu” voltam ao palco principal com os mais velhos e aposentados.

O exemplo clássico na própria obra de Elias daquilo que, segundo a sugestão de Stephen Mennell (1989, 1992), pode ser chamado proveitosamente de “análise

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funcional do pronome” é encontrado em The Court Society (A Sociedade da Corte) (1969). Por que as atividades das cortes da realeza – Elias concentrou-se principalmente na corte francesa de Versalhes – eram tão dominadas pela cerimônia e pela etiqueta, formas sociais que constituíam uma perda de tempo do ponto de vista da racionalidade burguesa? Não, sugere Elias, por causa das supostas “necessidades” ou “exigências funcionais” de algum “sistema social” global. Considerando a distribuição das oportunidades de poder nos séculos XVII e XVIII na França como um todo, um período em que o poder da aristocracia decadente e da burguesia em ascensão era aproximadamente igual, os reis eram capazes de reivindicar poder absoluto e isso significava que as “funções-eu” de etiqueta para o rei poderiam preceder as “funçõesnós” e “-eles”. Em resumo, cerimônia e etiqueta serviam para dominar as facções aristocrática (noblesse d’epée) e burguesa (noblesse de robe) na corte. Para os dois grupos de nobres, esses rituais tinham “funções-eu”, pois o que o Rei lhes pedia para fazer capacitava-os a avaliar onde era o seu lugar na hierarquia da corte, particularmente em relação aos favorecimentos do Rei. Depois, à medida que as relações de poder na sociedade mais ampla se deslocavam na direção da equalização, tanto o Rei quanto os nobres ficaram presos num “abraço congelado”, isto é, na figuração que haviam mutuamente criado, porém não intencionalmente. Segundo Elias, essa foi uma das causas subjacentes da Revolução Francesa.

Entre as próprias aplicações dos pronomes pessoais em Elias, há mais uma que vale a pena ser comentada no contexto desta discussão introdutória. Em O Que é Sociologia? (1970:126), Elias observa que uma das consequências da democratização funcional numa sociedade de estado – basicamente uma mudança na direção de coeficientes de poder com mais igualdade ou menos desigualdade como resultado da crescente dependência dos grupos dominantes em relação aos dominados – é que as “funções-nós e as “funções-isso” passam a predominar sobre as “funções-eu” no desempenho de funções governamentais, embora, é claro, as “funções-eu”, não desapareçam por completo. Além disso, pelo que sei, embora o próprio Elias não tenha desenvolvido o modelo dos pronomes nessa direção, há nesse modelo um potencial inerente para lidar com questões de gênero em termos do desempenho de “funções-ela” em relação a “funções-ele”. O modelo dos pronomes poderia, é claro, ter sido desenvolvido sem usar a palavra “função”, visto que para algumas pessoas lembra muito o “funcionalismo”. A

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palavra, no entanto, é conveniente, e Elias insistiu na necessidade de usá-la num tema que diz respeito a relação. Concordo com ele, embora o ponto fundamental seja que as atividades humanas se interligam dentro de figurações que estão sempre em fluxo, não possuem fronteiras fixas e não apresentam qualquer “meta” posterior, a partir da qual todas as funções possam ser explicadas.

Max Weber pelejava justamente com essas questões em suas discussões daquilo que chamava de aktuelles e erklärendes Versthen, isto é, o “aqui-e-agora” ou “compreensão imediata” e a “compreensão explanatória”, quando insistia para que os sociólogos procurassem captar os “significados subjetivamente pretendidos” que os vários participantes de um processo social atribuem a suas ações. Parte da razão por que esse tipo de argumento fenomenológico é enganoso foi articulada por Johan Goudsblom em 1977, quando sugeriu que: A maior parte das tentativas metodológicas para explicá-lo é feita em termos de uma “perspectiva-eu” singular. O ponto central do problema então é: como posso eu, como indivíduo único, entender as declarações de outras pessoas, de tantos outros “eus”? Formulado nesses termos, o problema talvez seja mesmo insolúvel: quanto mais se pensa nele, mais enigmático se torna. Não é muito realista, porém, conceber-se a si próprio como um “eu” totalmente isolado. O fato mesmo de sermos capazes de dizer “eu”, e de entender os outros quando dizem “eu”, indica que, como seres humanos falantes, como homines sapientes, fazemos parte de um universo onde também podemos significativamente falar de nós mesmos como “nós”. A chave para entender o que está envolvido em Verstehen parece estar no reconhecimento de que Verstehen não é só uma questão de “perspectivas-eu”, mas também de “perspectivas-nós” (Goudsblom, 1977: 186). Uma vez que envolvem fatos sociais como valores e são articulados através do fato social da linguagem, obviamente é discutível quão “subjetivos” são esses “significados subjetivamente intencionais”. De qualquer modo, a abordagem altamente nominalista de Weber pareceria implicar que os sociólogos devem estar condenados para sempre a registrar nada mais que uma série infinita de pontos de vista “subjetivos” distintos, o que, obviamente, é absurdo. Além de ajudar a esclarecer esse problema, o modelo dos

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pronomes também pode ser usado como um modo não metafísico de formular o velho problema da “objetividade” versus “subjetividade”, um problema convencionalmente formulado (usando o jargão filosófico que Elias abominava: para ele é melhor referir-se simplesmente à teoria do conhecimento) em termos epistemológicos, e isso significa, segundo Elias, de um modo basicamente solipsista ou autocentrado. Elias utilizou os “modelos de jogo” para ilustrar como as ações das pessoas se interrrelacionam para produzir processos sociais “cegos” ou não planejados que, embora resultem de comportamentos individuais subjetivamente significativos, não são nem intencionais nem controláveis. Agora voltaremos nossa atenção aos modelos de jogo de Elias e a sua abordagem dos problemas do poder.

Os Modelos de Jogo e o Poder A ideia de consequências não intencionais ou não previstas da ação social é um clichê sociológico geralmente atribuído, com razão, à obra de Robert Merton (1936). Como ele demonstra, trata-se de uma ideia muito antiga e que remonta, por exemplo, ao conceito de “mercado”, em Adam Smith, como algo estruturado por uma “mão invisível”, ao conceito hegeliano de “astúcia da razão” (List der Vernunft), e à “lógica do capital” de Marx. Dos vários autores clássicos, porém, provavelmente foi o colaborador de Marx, Friedrich Engels, quem desenvolveu a versão mais elaborada. Segundo o que Engels escreveu em 1890: . . . a história faz a si própria de tal modo que o resultado final sempre surge de conflitos entre as vontades de muitos indivíduos . . . Há inúmeras forças interseccionais, uma série infinita de paralelogramos de forças que geram uma resultante – o evento histórico. Isso . . . pode ... ser visto como o produto de uma força que, quando considerada em sua totalidade, funciona inconscientemente e sem volição. Pois o que cada indivíduo quer é obstruído pelos demais, e o que emerge é algo que ninguém queria. Assim, a história passada prossegue como um processo natural e também está basicamente sujeita às mesmas leis de movimento (Engels, 1942: 382). É claro que a história “não faz a si própria” nem “age”, como dizia Engels; apenas indivíduos humanos interdependentes o fazem. Nem se trata de uma “força”

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“funcionando inconscientemente” e “sem volição”. O que está em jogo é um processo social puro e simples. No entanto, no caso de Engels, esse insight foi perdido porque submergiu numa teoria reducionista, teleológica e economicista, e porque o colaborador de Marx não viu com suficiente clareza que o equilíbrio de semelhanças e diferenças entre processos “naturais” e sociais é um assunto que requer investigação.

O trabalho de Merton sobre consequências não intencionais evitou os erros do reducionismo, da teleologia e do economicismo. No entanto, sua discussão mais extensa e explícita sobre a questão envolveu, sem dúvida, uma interpretação muito estreita sobre a significação sociológica dessas consequências. Começando com a máxima de W. I. e Dorothy Thomas de que “se as pessoas definem as situações como reais, estas serão reais em suas consequências”, Merton seguiu focalizando o tema das “profecias que se autorrealizam”, apenas mencionando de passagem seu inverso, ou seja, as “profecias que se autocontradizem” ou “profecias suicidas”. Uma profecia que se autorrealiza ocorre quando as pessoas agem baseadas numa falsa percepção ou “definição” de uma situação social de tal modo que essa definição posteriormente se torna verdadeira. Um bom exemplo é uma corrida aos bancos provocada pelo pânico, ou flutuações no mercado de ações, sejam elas “benignas” ou “perversas”. Tais situações, porém, são apenas casso especiais de algo mais comum e de maior significação social.

Norbert Elias reconheceu com mais clareza do que Merton o fato de o conhecimento que as pessoas têm das figurações em que estão envolvidas ser praticamente incompleto e às vezes imperfeito e impreciso. Sendo assim, suas estratégias de ação baseadas nesse conhecimento incompleto e inadequado tendem a ter consequências que elas são incapazes de prever antes de agir. Portanto, consequências não previstas não são uma curiosa nota de rodapé para a sociologia, mas um aspecto universal da vida social. Para Merton, a profecia que se autorrealiza é como um bumerangue: as consequências das ações das pessoas se voltam contra elas próprias. A analogia usada por Elias é menos exótica: como o efeito de uma pedra atirado em um lago, as consequências das ações das pessoas formam ondas que se propagam através das cadeias de interdependência que constituem a sociedade. Seus efeitos são sentidos, não aleatoriamente, mas de acordo com a estrutura da figuração total em que as pessoas estão envolvidas.

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Também com mais clareza do que Merton, Elias enfatizou que indivíduos separados, adultos, agindo propositadamente não são o começo da história. “As interdependências não intencionais humanas”, escreveu ele (1970: 94-5), “estão na raiz de cada interação intencional”. Nem tampouco, como eu disse anteriormente em relação aos valores, as “definições da situação” expressas pelas pessoas surgem do nada. Os objetivos que as pessoas perseguem e, de fato, as próprias pessoas ao nível de seus hábitos (incluindo contornos corporais) são moldados com o tempo através de suas experiências em figurações de pessoas interdependentes. Toda a importância das ações das pessoas que se interligam para produzir “fortes tendências” “cegas”, no sentido de que ninguém as planejou ou desejou, e que então agem como restrições sobre as percepções, objetivos e ações

das

futuras

gerações,

aparece

mais

nitidamente

nos

estudos

sobre

desenvolvimento. Johan Goudsblom expôs com clareza um aspecto importante disso tudo quando escreveu: “No desenvolvimento das sociedades humanas, as consequências sociais não intencionais de ontem são as condições não intencionais das “ações humanas intencionais” de hoje (Goudsblom, 1977a: 149).

Elias escreveu seu ensaio sobre os modelos de jogo em 1960-61, quando era o orientador da

minha tese de

mestrado sobre desenvolvimento do futebol

(Dunning,1961), e isso em parte pode tê-lo influenciado na ideia de construir esses modelos – os quais, como vimos, ele chamava de “didáticos” – como analogias bastante simplificadas das figurações e processos figuracionais humanos. Por serem os jogos da vida real, eles próprios processos sociais, essa analogia, como foi dito anteriormente, é menos perigosa que as analogias físicas e biológicas tão frequentemente encontradas na história da sociologia. A única exceção é que, por serem os jogos da vida real jogados de acordo com regras e convenções, os modelos de jogo podem ajudar a dar credibilidade à ideia – encontrada, por exemplo, na obra de Talcott Parsons (1951) e Anthony Giddens (1984) – de que as normas e regras são o sine qua non da estrutura, padronização ou ordem da vida social. Elias, porém, traçou uma clara distinção entre o que ele chamava de conceitos “científicos” e “normativos” de ordem, e sugeriu que – e aqui faço uma citação – se

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. . . (as relações sociais) forem vistas aqui como constituindo uma ordem de determinado tipo, a palavra “ordem” não estará sendo usada no sentido em que é utilizada quando as pessoas falam de “lei e ordem” ou, na forma adjetiva, de uma pessoa “ordeira” em oposição a “desordeira”. Está se falando de uma ordem no mesmo sentido que se fala de uma ordem natural, em que decadência e destruição como processos sociais ocorrem junto ao crescimento e a síntese, morte e desintegração junto a nascimento e integração. Para as pessoas envolvidas, essas manifestações parecem ser, com razão, contraditórias e irreconciliáveis. Como objetos de estudo, são indivisíveis e de igual importância. Seria, portanto, enganoso explicar o processo de interligação social nos termos de modelos que se referem a relacionamentos humanos regulados por normas fixas. A Luta Primitiva pode servir para nos fazer lembrar o que é que se torna socialmente regulado (Elias, 1978: 76). “Entre os homens, assim como na natureza, não é possível existir o caos absoluto”, escreveu Elias imediatamente antes da passagem que acabei de citar. Sendo assim, e a fim de enfatizar a diferença entre seus modelos de jogo e a teoria consensual de Parsons, ele os prefaciou com uma discussão sobre a “Luta Primitiva”, um combate bélico muito diferente de um esporte ou jogo “normal”. Essa discussão serve para lembrar que as relações sociais podem tornar-se um padrão estável sem qualquer componente moral nas expectativas e no comportamento das pessoas envolvidas.

O modelo de Elias da Luta Primitiva envolve a ideia de duas tribos caçadoras-coletoras que repetidamente se encontram em sua busca por alimento, o qual, por razões além de sua compreensão e controle, torna-se cada vez mais escasso. Começa o conflito entre as duas tribos. Uma ataca a outra e, algum tempo depois, ocorre um ataque retaliatório por parte daquela que foi atacada. Aos poucos, mas inexoravelmente, as duas tribos se veem presas a um ciclo de violência, um círculo vicioso ou “figuração duplo-cego” da qual têm dificuldade para escapar. Elias comenta essas relações recorrentes: . . . até mesmo . . . a interdependência entre inimigos violentos envolvidos numa luta de vida e morte é um processo de interligação. A sequência de movimentos em ambos os lados só pode ser compreendida e explicada em termos da dinâmica imanente de sua interdependência. Se a sequência de ações de ambos

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os lados fosse estudada isoladamente, pareceria algo sem nenhum sentido. A interdependência funcional dos movimentos dos dois lados não é menor neste caso do que no caso de conflitos governados por regras ou de cooperação. Mesmo que a interligação dos dois lados na sequência de tempo seja um processo sem normas, no entanto é um processo com uma estrutura nítida que pode ser analisada e explicada (Elias, 1978: 80). Do ponto de vista de Elias, um dos objetivos fundamentais da sociologia é desvendar a interligação das ações individuais que ocorrem no contexto das figurações humanas, seja qual for o equilíbrio entre tensão e harmonia, conflito e cooperação, intencionalidade e não intencionalidade que elas envolvem. De fato, Elias usou o futebol e seu desenvolvimento como um meio de esclarecer questões desse tipo num ensaio que escrevemos em 1966 e que foi reimpresso em nosso livro Quest for Excitement (A Busca por Emoções). Os modelos de jogo de Elias, porém, são construtos analíticos e não se baseiam em pesquisa empírica. Como já foi dito, o objetivo de Elias ao construí-los foi didático, e ele passou a mostrar alguns exemplos em que a interligação de ações individuais ocorre em jogos envolvendo duas pessoas, com grande desigualdade entre os jogadores. Em seguida ele discute jogos multipessoais de um nível, jogos multipessoais de vários níveis, jogos de duas camadas do tipo oligárquico e jogos de duas camadas de um tipo cada vez mais democrático. Esta última discussão é sem dúvida uma das melhores e mais realistas ilustrações da complexidade dos processos sociais numa sociedade estatal urbano-industrial complexa. Elias termina com uma tentativa de mostrar numericamente o que significa falar sociologicamente de diversos níveis de complexidade social.

Provavelmente um dos aspectos mais valiosos dos modelos de jogo de Elias é o esclarecimento sobre o conceito de poder que ele tentou apresentar nesse contexto. Até agora, as duas concepções dominantes de poder têm sido a dos marxistas e a dos weberianos. Segundo Weber, “entendemos por ‘poder’ a oportunidade de um homem ou vários homens fazerem valer sua própria vontade numa ação comunal mesmo contra a resistência de outros (Weber, 1946: 180). Em outro texto, ele deu a seguinte definição: “poder significa qualquer oportunidade numa relação social de fazer valer a própria vontade, mesmo em face de uma resistência, não importando a base onde repousa essa

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oportunidade” (Weber, 1972: 26, tradução de Eric Dunning do original alemão). Essa ideia do caráter relacional de poder é que foi apreendida por Elias. Por isso ele escreveu sobre “coeficientes de poder” ou “equilíbrios de poder” (usando o termo “equilíbrio” de um modo dinâmico), sugerindo que: Desde o dia em que nasce, o bebê exerce poder sobre seus pais, e não só os pais sobre o bebê. O poder do bebê sobre os pais dura pelo menos enquanto eles atribuírem algum tipo de valor ao filho ou filha. Caso contrário, o bebê perde seu poder . . . Igualmente bipolar é o equilíbrio de poder entre o escravo e seu senhor. Este tem poder sobre o escravo, mas o escravo também exerce poder sobre seu senhor, na proporção de sua função – a dependência do senhor em relação a ele. Nas relações entre pais e filhos, senhor e escravos 14, as oportunidades de poder estão distribuídas de modo bastante desigual. Mas, sejam grandes ou pequenos os diferenciais de poder, os equilíbrios de poder estão sempre presentes onde quer que haja interdependência funcional entre as pessoas . . . O poder não é um amuleto que uma pessoa possui e a outra não; é uma característica estrutural das relações humanas – de todas as relações humanas (Elias, 1978: 74). Posteriormente, Elias explicou com mais detalhes algumas das conexões entre poder e interdependência. Uma solução aos problemas do poder que seja mais adequada que aquelas até agora oferecidas pela sociologia, para ele (d)epende de se entender o poder inequivocamente como uma característica estrutural de uma relação . . . Nós dependemos dos outros; os outros dependem de nós. Na medida em que dependemos de outros mais do que eles de nós, em que somos comandados por outros, mais do que eles por nós, eles exercem poder sobre nós, quer tenhamos nos tornado dependentes pelo uso que eles fazem da força bruta, ou pela nossa necessidade de ser amado, de dinheiro, cura, status, ascensão profissional ou simplesmente por emoção (Elias, 1978: 93). Uma vez que não se pode comandar os outros sem tem poder para fazê-lo, aqui a referência a “ser comandado por outros” é tautológica15. Essa tautologia não parece no texto alemão, onde Elias escreveu “mehrauf andere angewiesen sind als sie auf uns”, que significa “sie Haber macht über in”. Fora isso, o diagnóstico é sociologicamente profundo. Elias sugere basicamente duas coisas: (1) que o poder é “polimorfo” e

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inerente a todas as relações humanas; e que (2) a chave para entender o poder está na interdependência das pessoas. Os exemplos dados por Elias nos segmentos aqui citados referem-se todos a relações “bipolares” ou “entre duas pessoas”, mas ele deixou claro que os equilíbrios de poder na sociedade mais ampla e nas relações internacionais, intertribais, etc., são sempre multipolares; isto é, envolvem configurações complexas de indivíduos e grupos.

A teoria da democratização funcional de Elias, já citada por mim, é inerente ao seu conceito de poder, este derivado principalmente da interdependência. Ele afirmou que a transformação social geralmente indicada pelos termos que denotam aspectos específicos como “industrialização” ou “crescimento econômico” de fato envolve uma transformação da estrutura social total (Elias, 1978: 63ff). E, segundo ele, um dos aspectos mais significativos dessa transformação total consiste na emergência de “cadeias de interdependência” mais longas, mais diferenciadas e mais densas (Interdependenzketten: Elias, 2000). Concomitantemente, segundo Elias, ocorre uma mudança na direção de diferenciais de poder cada vez menores no interior dos e entre os grupos, mais especificamente certo grau de mudança equalizadora no equilíbrio de poder entre governantes e governados, classes sociais, homens e mulheres, gerações, pais e filhos (Elias, q978: 65ff). Em um nível mais geral, segundo Elias, esse processo de “democratização funcional” ocorre quando há uma crescente especialização. Isso porque os responsáveis pelos papéis especializados passam a ter a oportunidade de exercer variados graus de influência e controle. As oportunidades de poder de grupos especializados aumentam ainda mais se eles conseguirem se organizar, contanto que se tornam capazes de, a partir da ação coletiva, romper as cadeias de interdependência mais amplas de que depende a sociedade moderna. É dessa maneira que, segundo Elias, divisões de trabalho cada vez maiores e a emergência de cadeias de interdependência mais longas resultam em formas mais niveladas e maiores de dependência recíproca e, portanto, em padrões de influência multipolar e de controle dentro de e entre grupos. É importante frisar que eu disse aqui “formas mais niveladas de dependência recíproca” e não “formas niveladas”. O comparativo é significativo. A hipótese de Elias é sobre processos de equalização empiricamente demonstráveis, mas não pretende negar as grandes desigualdades que ainda continuam existindo ou que aumentaram em certos

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aspectos nos últimos anos. Concluirei este ensaio voltando-me para à espinhosa tarefa de criticar e testar Elias.

Criticando e Testando Elias Provavelmente será justo dizer que neste momento a sociologia, talvez especialmente nos Estados Unidos, é caracterizada pela predominância do que poderíamos chamar de uma cultura de discussão e crítica sobre uma cultura de pesquisa e testagem. Essa situação parece ter surgido junto com a ascensão da teoria social – em oposição à teoria sociológica – e dos vários aspectos daquilo que passou a ser conhecido como “estudos sociais”. É claro que Norbert Elias era plenamente a favor da discussão e da crítica, mas sempre insistiu em que deveriam seguir de mãos dadas com a pesquisa e a testagem. De fato, na sua opinião estas deveriam ter prioridade sobre aquelas.

Ao enfatizar a necessidade de testar os conceitos e as teorias sociológicas, Elias não estava defendendo o que erroneamente tem sido chamado de visão “positivista” do assunto. Sua visão do método era o que poderíamos chamar de um tanto abrangente e dispensava a “metodologia” como sendo uma criação de filósofos16. Em vez disso, insistiu na necessidade de um “tráfego constante de mão dupla” entre pesquisa e teoria. Uma das consequências dessa posição é que seus conceitos e teorias estão mais permeados de observação factual e, portanto, são menos abstratos do que frequentemente tem sido o caso em sociologia.

Foi em parte a dependência em relação aos dados nos conceitos e teorias de Elias que os levou a serem descritos como “não explanatórios, puramente descritivos”17. Seguindo a mesma tendência é o fato de que ele argumentava contra a adequação de explicações casuais e que fazem uso de conceitos como fatores e leis ao nível da realidade social humana. Essas explicações são apropriadas no caso dos níveis físicos e químicos do universo, com suas estruturas relativamente simples e de transformação lenta. Ao contrário, ao nível social humano, mais complexo e com rápidas mudanças, são necessárias explicações de estrutura e processo. A teoria da evolução biológica de

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Darwin é um exemplo. Outros são as próprias teorias dos processos civilizadores e da formação do estado de Elias (Elias, 1939; 1974; 1978; 2000).

A insistência de Elias na testabilidade de seus conceitos e teorias vem de encontro a um julgamento generalizado no sentido contrário. Por exemplo, Dennis Smith, um exprofessor em Leicester e originalmente um historiador, argumentou em 1984 que a teoria dos processos civilizadores é “irrefutável” (Smith, 1984). Esse argumento foi repetido por Edmund Leach, o antropólogo, dois anos depois quando sugeriu que a teoria é “impermeável a testes” (Leach, 1986). Igualmente, Gary Armstrong escreveu em 1988 que a teoria de Elias “é uma fusão de generalizações não testáveis e descritivas” (Armstrong, 1988: 317), e Richard Giulianotti chegou a afirmar em 1999 que Elias introduziu o conceito de “”surtos descivilizadores” a fim de “refutar . . . a contraevidência” (Giulianotti, 1999: 45).

É fácil mostrar, especialmente pace Giulianotti, que esses argumentos são oportunistas e estão errados. Oportunistas porque envolvem o uso de versões da falácia do espantalho dos conceitos e teorias de Elias para dar sustentação a alegações exageradas a respeito do caráter supostamente pioneiro e inovador do trabalho do próprio autor. Estão errados porque a teoria dos processos civilizadores é testável em diversos níveis diferentes e de diversas maneiras. Seguem alguns exemplos ilustrativos. Stephen Mennell tentou fazer um teste limitado da teoria em 1985 com seu estudo comparativo do desenvolvimento das preferências alimentares na Inglaterra e na França. Mais tarde ele assumiu a tarefa mais ampla de testar, modificar e expandir as teorias de Elias com referência à história e desenvolvimento social dos Estados Unidos (Mennell,

). Elias e eu (1966; 1971;

1979; 1986) igualmente tentamos testar a teoria numa esfera limitada com nossos estudos do desenvolvimento do esporte. É claro que em se tratando do pai da teoria e um de seus alunos, pode-se argumentar que não teríamos o mesmo interesse em procurar exemplos que a desconfirmassem tanto quanto aquele que sustenta uma teoria rival. No entanto, tentamos procurar evidências com a mente aberta e não sabíamos antes dessas investigações que nossos resultados se mostrariam em boa parte coerentes com a teoria. Outros testes foram feitos por Goudsblom (19 Hughes (19

) em relação ao fogo;

; 2002) em relação ao tabagismo; Wouters (19

) em relação à

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informalização; Waddington (2000) e Waddington e Murphy (1992) em relação ao esporte e às drogas; e Maguire (1999) em relação ao esporte e à globalização. Vejamos a questão do método.

Para que sejam adequadas, futuros testes da teoria de Elias terão que distinguir dois de seus aspectos: as conclusões a respeito da direção geral tomada pelo processo civilizador europeu, e as conclusões a respeito de sua sociogênese e psicogênese. Em relação à direção, a teoria de Elias seria refutada se fosse possível demonstrar empiricamente que a tendência geral do processo civilizador europeu no período considerado – aproximadamente da Idade Média até após a Primeira Guerra Mundial – foi na direção descivilizadora na Grã-Bretanha e na França. (Ele começou a traçar o desenvolvimento da Alemanha em O Processo Civilizador (1939; 2000) e aprofundou a análise em Os Alemães (1996). Os desenvolvimentos descivilizadores desde aquele tempo não refutaram a teoria nem exigiram que fosse substancialmente revista, a não ser que se pudesse mostrar que haviam ocorrido como resultado de mudanças que, segundo a teorização de Elias, nos levassem a esperar que produzissem consequências de uma natureza civilizadora. Em outras palavras, a demonstração da ocorrência na Europa Ocidental de maiores ou menores mudanças descivilizadoras durante e após a Segunda Guerra Mundial não constituiria, ipso facto, uma refutação de Elias.

Isso nos leva ao segundo aspecto. A fim de testar a teorização de Elias sobre a sociogênese e a psicogênese do processo civilizador europeu, devemos prestar atenção ao modo como ele teorizou as complexas interrrelações e interações entre, de um lado, os desenvolvimentos sociais estruturais, como formação do estado, pacificação sob controle do estado, crescimento do comércio e da riqueza e monetarização das relações sociais, aumento das cadeias de interdependência e a democratização funcional, e de outro, os desenvolvimentos normativos e comportamentais ao nível das boas maneiras e hábitos. Também focalizaremos o equilíbrio de semelhanças e diferenças no curso do desenvolvimento de áreas culturais, nações, classes, regiões, minorias étnicas, etc. Em resumo, tentar fazer avançar continuamente o nível do conhecimento e de compreensão além do que nos foi legado por Elias. Isso deve ser feito com pesquisa em áreas

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geográficas, cultural e problemáticas até agora não exploradas e com o desenvolvimento de novos conceitos e novas propostas explicativas.

Falta só mais uma questão a ser discutida. Ao longo dos anos, uma crítica recorrente a Elias e sua “escola” tem sido a de que formamos uma “seita” e que “celebramos” e “adoramos” Elias, uma figura carismática, e sua obra, em vez de criticá-la e testá-la. Talvez existam, é claro, alguns “eliasianos” cujo comportamento às vezes é sectário, assim como há sectários marxistas, parsonianos e foulcaudianos. No entanto, suspeito que esse tipo de crítica tenha origem, ao menos em parte, na recusa de “eliasanos radiciais” em aceitar interpretações claramente falsas de Elias, como a que ele foi um “evolucionista” ou teórico do “progresso”, feitas por Giddens, Horne, Jary e Williams, ou que a teoria dos processos civilizadores é simplesmente uma variante de teorias da “modernização”, conforme alegou Smith. Além disso, há o fato de que “eliasianos radicais” regularmente têm apresentado, de fato, pequenas críticas ao trabalho de Elias. Isto é, embora a parte principal do trabalho de Elias constitua, em nossa opinião, a inovação na qual ele se empenhou, Elias ocasionalmente cometeu erros conceituais e factuais. Concluiremos apresentando alguns desses erros apontados pelos próprios “eliasianos”.

Comecei a elaborar uma pequena crítica a Elias já em 1968/69, quando argumentei que deveríamos ter prestado mais atenção, em nossos ensaios conjuntos “The Quest for Excitement in Leisure” (“A Busca de Emoção no Lazer”) (196 ) e “Leisure in the Sparetime Spectrum” (“O Lazer no Espectro do Tempo Livre”) (197 ), às questões de identidade e identificação, pois o envolvimento do ego e a identificação significativa são precondições para o pleno despertar da emoção no contexto do esporte e dos eventos de lazer. Isto é, para haver excitação emocional, para que “engrenagens da paixão sejam ativadas”, é preciso haver interesse (Ver também Dunning 1999)18. Mais tarde, sugeri que em O Processo Civilizador Elias trabalhou com um conceito muito geral de violência, não percebendo que, implícita em seu trabalho, está a ideia de um contínuo que vai da violência expressiva ou com carga afetiva, numa das extremidades, à violência mais fria, racional e instrumental, na outra (Dunning em Elias e Dunning, 1986). Em Sport Matters (Esporte é Importante), também faço críticas à discussão de

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Elias sobre o esporte e o lazer como atividades contrapostas às “tensões estressantes”, argumentando que havíamos deliberadamente arquivado essa questão espinhosa em nosso trabalho conjunto anterior (Dunning, 1999: 35)18. Finalmente, em nosso ensaio conjunto “On the Balance Between ‘Civilizing’ and ‘De-civilizing’ Trends in the Social Development of Western Europe: Elias on Germany, Nazism and the Holocaust” (Do Equilíbrio

Entre

as

Tendências

‘Civilizadoras’

e

“Descivilizadoras’

no

Desenvolvimento Social da Europa Ocidental: Alemanha, Nazismo e Holocaust em Elias”) (1966), Stephen Mennell e eu, com a devida aprovação, citamos a análise do sociólogo figuracional austríaco Helmut Kuzmics sobre o estudo de Elias relativo aos alemães: “em alguns aspectos, a interpretação de Elias parece apresentar um viés – prussocêntrico, “kleindeutsch e protestante” (Kuzmics, 1994: 11, 12). Nós acrescentamos: Essa análise é plausível e vale uma pesquisa mais detalhada. Talvez ajude a explicar essas lacunas na obra de Elias como uma falha sua em procurar uma explicação para fatos como a origem do partido nazista em Munique e que seu líder era austríaco. A plausibilidade da análise de Kuzmics é, em nossa opinião, reforçada pelo fato de se basear numa plena compreensão e apreciação da contribuição de Elias e no pleno conhecimento da história, do desenvolvimento social da Alemanha e das fontes pertinentes. Nasce, portanto, da pesquisa original e não expressa um paliativo basicamente filosófico/ideológico . . . (Dunning e Mennell, 1966).

Notas 1. Elias talvez tenha ferido o orgulho de algumas pessoas quando falou dos seres humanos do século XX como tendo apenas estabelecido “pequenas ilhas de certeza em meio aos vastos oceanos de sua ignorância”. Ele estava falando de um modo geral, e nunca deixou de enfatizar que a ignorância das pessoas é maior em relação a si próprias e às sociedades que formamos do que em relação aos níveis físicos e químicos do cosmo observável. 2. Robert van Krieken parece não saber que boa parte do trabalho de Elias foi escrito em inglês, traduzido para o alemão e depois traduzido de volta para o

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inglês. O que é Sociologia?, Envolvimento e Distanciamento e Tempo: um Ensaio são alguns exemplos. 3. L. Coser (1980): Resenha de What is Sociology? American Journal of Sociology, vol. 86, p. 194. 4. Z. Bauman (1979), “The Phenomenon of Norbert Elias”, Sociology, vol. 13. 5. C. Lasch (1985), “Historical Sociology and the Myth of Maturity”: Norbert Elias’s ‘Very Simple Formula’”, Theory and Society, vol. 14. 6. Giddens A. (1992), Resenha de The Society of Individuals, American Journal of Sociology, vol. 98. 7. Parece-me razoável supor que, ao escolher passar seus últimos anos em Amsterdam, Elias estava demonstrando certa insatisfação com a Grã-Bretanha e a Alemanha. 8. Primeiro Elias usou o termo “configuração”, mas depois percebeu que o prefixo “con” é redundante, p. ex., quando se fala das (com-) figurações que os seres humanos formam entre si. 9. Giddens, 1984. 10. Provavelmente, o mais próximo que Elias chegou de escrever uma crítica sistemática a Adorno e à Escola de Frankfurt foi em seu “Respekt und Kritik”, discurso proferido quando recebeu o prêmio Theodor W. Adorno da cidade de Frankfurt em outubro de 1977. 11. Portanto, em Frankfurt. Ilse Seglow, a atriz, e Gisele Freund, a fotógrafa, foram encorajadas por Elias a escrever suas teses de doutorado sobre a profissão de atriz e a fotografia, respectivamente. Em Leicester, o jogador de futebol da universidade, ou seja, eu, Eric Dunning, foi do mesmo modo encorajado a escrever sua tese de mestrado sobre seu esporte favorito. 12. Foi Parsons (1966) quem usou a analogia da cibernética em seu trabalho. 13. Aqui o uso do termo “mais valia” não deve ser considerado uma defesa da teoria do valor do trabalho de Marx. Uma das falhas nesta última, do ponto de vista eliasiano, é uma identificação por demais próxima entre a burguesia, a classe dominante no capitalismo, e a aristocracia, a classe dominante no feudalismo, supondo erroneamente que a primeira é tão improdutiva quanto a segunda. Elias, ao contrário, descreve a moderna burguesia como a “primeira classe dominante trabalhadora da história”. 14. Recuperei aqui o plural, “escravos”, que aparece no texto alemão.

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15. Esta tautologia não aparece no texto alemão. As palavras que Elias usa são “mehr auf andere angewiesen sind als sie auf uns”, que significam “dependem mais dos outros do que eles de nós” (Elias, 1970: 97). 16. Elias argumenta que, embora ele possa ter usado um método, “metodologia” – literalmente a ciência do método científico em geral – era principalmente uma criação dos filósofos. Na sua visão, eram necessários estudos sociológicos sobre o que os praticantes das várias áreas da ciência fazem de fato, em oposição ao que os filósofos dizem que eles deveriam fazer. 17. Estas foram as palavras recentemente usadas pelo meu bom amigo Sami Zubaida do Birkbeck College da Universidade de Londres. 18. A princípio Elias respondeu criticamente à minha crítica desse aspecto de nosso trabalho conjunto. Mais tarde, porém, no Quarto Simpósio do Comitê Internacional para a Sociologia do Esporte, ocorrido em Magglingen/Macolin, na Suíça, no verão de 1969, ele expressou sua satisfação pelo fato de meu artigo ter sido bem recebido. Posteriormente, em 1986, ficou feliz pela inclusão de minhas pequenas críticas e sugestões em nosso A Busca pela Emoção.

O esporte como um domínio masculino: observações sobre as fontes sociais da identidade masculina e suas transformações Eric Dunning

O esporte como um domínio masculino: observações sobre as fontes sociais da identidade masculina e suas transformações Eric Dunning

1 Introdução Poucos sociólogos discordariam que as mudanças nas relações entre os sexos constituem uma das questões sociais mais importantes do nosso tempo. É verdade

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que a maioria poderia muito bem considerá-las menos importantes que a pobreza, a fome, o desemprego ou os conflitos raciais. No entanto, com exceção das ameaças de guerra nuclear e aquecimento global, que têm implicações universais e que, muito provavelmente, seriam universais em suas consequências se as ameaças se tornassem realidade, em certo sentido as relações entre os sexos são mais fundamentais do que essas outras questões. Isso porque, mesmo tendo sido principalmente as mulheres de classe média dos países mais industrializados quem primeiramente se conscientizou da dominação masculina, ou do patriarcado, como algo socialmente problemático, e passaram a lutar contra isso, há uma dimensão de sexo/gênero em todas as outras questões sociais fundamentais, tais como classe e raça. Apesar da universalidade e da importância social da diferenciação de gênero e do caráter cada vez mais problemático das relações entre os sexos na maior parte das sociedades industrializadas – algo que é evidente especialmente na rupturas e/ou transformações das formas tradicionais de casamento e da família que parecem estar ocorrendo atualmente – não se pode dizer que até agora essas questões têm sido adequadamente teorizadas na sociologia . Nem tampouco, como parte do nexo geral pertinente a essa ligação, que se tenha dado muita atenção ao esporte, tradicionalmente um dos principais domínios masculinos e, portanto, de significado potencial para o funcionamento das estruturas patriarcais. As possíveis razões para essa dupla falha na imaginação sociológica não são difíceis de encontrar.

Nos últimos anos, principalmente devido ao desafio feminista, tornou-se cada vez mais evidente que a sociologia surgiu como uma disciplina com pressupostos patriarcais. Comte, por exemplo, que inventou o termo “sociologia”, considerava as mulheres “intelectualmente inferiores” aos homens e acreditava que a família deve se basear na dominação do marido . Pressupostos não diferentes podem ser encontrados na obra de Durkheim , e continuam – embora menos explícitos – a permear contribuições mais modernas à disciplina. A sociologia do esporte é uma das áreas menos desenvolvidas da sociologia , mas dado o patriarcalismo implícito na disciplina em geral, não causa surpresa que pressupostos indicativos de uma inquestionável dominação masculina tenham sido amplamente incorporadas a essas contribuições, assim como tem sido feito até agora nesta área. Uma das consequências dessa situação é que o caráter patriarcal do esporte moderno e o papel

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que ele possa desempenhar na conservação da hegemonia masculina têm sido questionados apenas por um punhado de autoras feministas. Na maioria das vezes, elas tendem, porém, a se concentrar em questões como a discriminação contra a mulher no esporte e, embora seu trabalho tenha ajudado a provocar uma situação em que isso é possível, até agora nenhuma delas, pelo que sei, tentou elaborar uma teorização sistemática das formas de dominação masculina que existe no e por meio do esporte ou das transformações ocorridas. Neste capítulo quero começar nessa direção. Em seguida, usando dados britânicos, considerarei o esporte como um domínio masculino e o papel que ele desempenha, relativamente a outras fontes, na produção e reprodução das identidades masculinas.

2 O equilíbrio de poder entre os sexos: alguns pressupostos sociológicos Assim como todas as outras interdependências, pode-se melhor conceitualizar a interdependência entre homens e mulheres, pelo menos no primeiro exemplo, em termos do “equilíbrio de poder” ou “coeficiente de poder” entre as partes envolvidas. Isso constitui uma “estrutura profunda” dentro da qual as ideologias e os valores que governam as relações entre os sexos são gerados e sustentados. Embora essas ideologias e valores constituam um ingrediente ativo no equilíbrio de poder entre os sexos – no sentido, por exemplo, em que podem desempenhar um papel na mobilização de homens e mulheres para que lutem por aquilo que percebem como sendo de seu interesse – acontece que as transformações nas relações sexuais e nas ideologias e valores que as governam geralmente dependem de mudanças prévias no equilíbrio subjacente de poder, e que são não intencionais e não estão arraigadas em ideologias e valores especificamente articulados.

O equilíbrio de poder entre os sexos tenderá a favor dos homens na medida em que a violência e a luta forem aspectos endêmicos da vida social. Esse é o caso, obviamente, em sociedades guerreiras, mas também tende a ser verdade nas sociedades industriais em que o poder dos militares predomina sobre o poder das elites civis – por exemplo, em sociedades de regime totalitário ou em tempos de guerra. Também tende a ser o caso nas áreas de estrutura social em que as condições

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sociais levam à produção e reprodução de gangues. O equilíbrio de poder entre os sexos também tenderá a favor dos homens na proporção em que suas oportunidades de engajamento em ações unificadas forem maiores do que as das mulheres, e na medida em que os homens monopolizarem o acesso aos principais determinantes institucionais de oportunidades na vida, bem como seu controle, especialmente na economia e no estado. Além do mais, quanto mais extremas forem as formas de dominação masculina numa sociedade, maior será a tendência a predominar uma rigorosa segregação entre os sexos. Outro corolário é que os valores machistas tenderão a desempenhar um papel mais importante na identidade masculina sob condições sociais em que as lutas forem frequentes e o equilíbrio de poder estiver fortemente distorcido a favor dos homens. De modo correspondente, as tendências machistas dos homens sofrerão o que se pode chamar de uma mudança no sentido civilizador a ponto de pacificar as relações sociais e aumentar as oportunidades de poder das mulheres, além de acabar com a segregação sexual. Subjacentes a esses pressupostos, há dois fatos ostensivos: primeiro que, embora haja certo grau de sobreposição entre os sexos, os homens tendem a ser maiores e mais fortes que as mulheres e, portanto, melhores como lutadores; e segundo que a gravidez e os cuidados com os filhos tendem a incapacitar as mulheres para a luta (entre outras coisas). É claro que a tecnologia das armas modernas tem o potencial de compensar e talvez eliminar as vantagens masculinas intrínsecas para a luta. Igualmente, as modernas técnicas de controle de natalidade reduziram o tempo gasto pelas mulheres na gravidez e nos cuidados com os filhos. Em outras palavras, as oportunidades de poder obtidas pelos homens graças a sua força e capacidade de luta tendem a variar inversamente com o desenvolvimento da tecnologia – isto é, são maiores quando o desenvolvimento tecnológico é baixo, e vice-versa. No entanto, é razoável supor que o nível da formação do estado, mais especificamente o grau em que um estado é capaz de manter com eficácia o monopólio do uso da força física, provavelmente é a influência mais significativa de todas.

Essa maneira de abordar os problemas do poder e da identidade masculina tem origem no trabalho de Norbert Elias , que é um pouco diferente da dos marxistas, que atribuem o complexo machista em grande parte às demandas e restrições do

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trabalho braçal . Mais particularmente, embora essas restrições possam desempenhar um papel na sustentação de formas mais extremadas de identidade machista, dando um grande valor à força física, é difícil ver como possam ter gerado, por si só, um ethos em que valentia, habilidade na luta e lealdade ao grupo são fundamentais, e que enaltece a luta como a principal fonte de significado e gratificação na vida. De fato, é discutível se essa abordagem em si própria é um exemplo do tipo de pressuposto patriarcal implícito em muitas teorizações sociológicas até agora. E esse é o caso na medida em que a produção e a reprodução da vida material forem concebidas como algo que tem lugar principalmente na economia, e que a importância da família e das relações entre os sexos estiverem relegadas, pelo menos implicitamente, a uma posição “causal” subordinada.

Chegamos agora a um ponto em que algumas das relações entre esporte e patriarcado podem ser consideradas. A fim de ilustrar essas relações, serão brevemente discutidos três estudos de casos. São eles: o desenvolvimento dos modernos esportes de combate; a emergência e o subsequente declínio (relativo) da subcultura machista que tradicionalmente veio a ser associada principalmente ao futebol da Rugby Union; e o fenômeno do hooliganismo (vandalismo) no futebol e como ele se manifesta atualmente na Grã-Bretanha.

3 Aspectos do desenvolvimento dos modernos esportes de combate Todos os esportes são inerentemente competitivos e, portanto, despertam ímpetos de agressão. Em condições específicas, essa agressão pode espalhar-se em formas de violência explícita contrárias às regras. Em alguns esportes, porém – por exemplo, rúgbi, futebol (soccer), hóquei, luta livre e boxe – a violência física na forma de “luta esportiva”, “batalha simulada” ou combate físico entre dois indivíduos ou grupos é um ingrediente fundamental e legítimo. Na sociedade atual, esportes desse tipo são enclaves para a expressão socialmente aceitável, ritualizada e mais ou menos controlada da violência física. Neste capítulo focalizarei unicamente esses “esportes de combate”, mais particularmente os que envolvem uma luta esportiva entre dois times.

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As origens dos modernos esportes de combate como o futebol (soccer), rúgbi e hóquei remontam a um conjunto de jogos populares medievais e do começo da idade moderna, com variações regionais, conhecidos por diversos nomes, tais como football hurling (futebol de arremesso), knappan e camp ball (bola de campo) . Eram jogados de acordo com regras orais nas ruas das cidades e na zona rural. Não havia qualquer agente de controle “externo”, como árbitros, juízes de linha (bandeirinhas) ou touch-judges, e às vezes chegavam a ter mil pessoas de cada lado. Apesar das diferenças entre eles, uma das principais características desses jogos, relativamente ao esporte moderno, era o alto nível de violência explícita. Os jogadores davam quase que livre vazão a suas emoções e exercitavam apenas uma forma relativamente frouxa de autocontrole. De fato, esses jogos eram um tipo de luta ritualizada em que grupos podiam medir forças contra rivais locais, embora ao mesmo tempo gerassem, de maneira relativamente agradável, excitação semelhante àquela despertada numa batalha. Jogos dessa natureza evidentemente correspondiam à estrutura de uma sociedade em que os níveis de formação do estado e de desenvolvimento social eram, de um modo geral, relativamente baixos, em que a violência era um aspecto mais regular e explícito do dia-a-dia do que é hoje, e o equilíbrio de poder entre os sexos sofria uma forte distorção a favor dos homens. Em resumo, esses jogos populares expressavam uma forma razoavelmente extremada de patriarcado. Como tal, incorporavam a expressão dos valores machistas de uma forma relativamente desenfreada.

Os primeiros desenvolvimentos significativos que apontam para a modernização desses jogos ocorreram nas escolas públicas inglesas do século XIX . Foi nesse contexto que os jogadores começaram a se sujeitar à restrição de regras escritas, muitas delas visivelmente preocupadas com a eliminação ou controle das formas mais extremadas de violência. Em outras palavras, a incipiente modernização do futebol e de jogos correlatos envolveu um conjunto de mudanças que os tornou mais “civilizados” que seus antecedentes. A comparação é importante. Isso porque não se tornaram “civilizados” num sentido absoluto, tão somente mais do que eram antes. Continuaram a refletir pressupostos patriarcais característicos de uma sociedade que

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ainda se encontrava num estado inicial de sua emergência como um estado nacional urbano-industrial. Isso pode ser visto no fato de esses jogos serem ideologicamente justificados, em parte como treinamento para a guerra, em parte pelo seu uso na educação de líderes militares e administrativos para a expansão do império britânico, e em parte como veículos para a fixação e expressão da “virilidade”.

Pode-se ter uma boa noção das normas de virilidade encontradas nos jogos das escolas públicas da época no relato de um Velho Rugbista – um antigo aluno da Escola de Rúgbi – que aparece numa revista da escola em 1860. Ali ele faz um contraste entre o jogo então atual e o rúgbi do seu tempo de estudante, dois ou três anos antes. Segundo o Velho Jogador de Rúgbi: Vocês tinham que ver os scrummages na Sexta Partida dois anos atrás . . . O pessoal nem se importava com a bola, exceto quando ela dava um bom pretexto para chutar canelas. Eu me lembro de um scrummage! . . . Nós vínhamos chutando canelas fazia já uns cinco minutos, de fato, os bacanas estavam começando a se empolgar, quando um espectador . . . nos informou que a bola estava esperando por nós no topo da ilha . . . E então tinha o Hookey Wlaker, o hack bacana da Sexta equipe! Não é que ele entrou na Escola! só para calar a boca de dez companheiros pelo resto da temporada, e mandar meia dúzia para o banco até acabar o tempo . . . [S]implesmente vê-lo entrar num scrummage era o suficiente para as moças gritarem e desmaiarem. E como agora elas gostam de ver um scrummage, meu amigo – que vergonha para nós. E não havia esse jogo de movimentos ardilosos que existe hoje; nada de passar um para o outro; tudo era viril e bem simples. Ora, livrar-se da bola depois que você entrou num scrummage era considerado uma transgressão tão flagrante das regras do futebol quanto pegá-la quando você estivesse fora da equipe. Nem tampouco você via essa falta de empenho fora dos scrummages que hoje sempre acontece. Ninguém achava que você valia o que comia se não estivesse da cor da mãe terra da cabeça aos pés dez minutos depois de iniciado o jogo. Mas, que droga! Hoje em dia você não tem a chance de ter uma queda decente; e também não admira ver jovens almofadinhas “trajados sem se importar com as despesas”, andando com afetação em Big Side, e parecendo como se a sua constituição delicada não fosse sobreviver a qualquer contato violento com a bola. Enforquem esses fedelhos! Daqui a pouco

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teremos gente jogando de botinhas e luvas infantis cor de lavanda. . . Meu lema é manda a bola para a frente quando ela chegar perto de você, e se não puder, acerte quem estiver do seu lado .

Esse relato nos dá uma boa ideia das normas de “virilidade” que governavam o rúgbi naquela época. Também fornece evidências de que o jogo estava sendo transformado num sentido civilizador. Assim, o Velho Jogador de Rúgbi recomendava o retorno às glórias de seus dias de colégio, quando, segundo ele, “chutar canelas” era mais importante. Ao mesmo tempo, ele deplorava o advento do “passe”, pois, na sua opinião, isso levava à “emasculação” do jogo. O padrão mais antigo que ele descrevia remonta ao boxe e à luta livre dos gregos antigos, que, como nos mostra Elias, baseavam-se no ethos do guerreiro, segundo o qual era covardia evitar ou recuar dos golpes do oponente . Já que o Velho Jogador de Rúgbi considerava “ardiloso” e “indigno de um homem” fintar ou passar para um companheiro a fim de evitar a falta, parece que o rúgbi a princípio baseava-se num ethos semelhante. Nesse estágio, a bola era relativamente sem importância para o jogo. Os scrummages eram pontapés indiscriminados e a “virilidade” exigia que se ficasse frente a frente com o oponente para um confronto com chutes na canela. Daí se conclui que a força e a coragem do “hack”, o jogador violento, eram os principais critérios para estabelecer uma reputação de “virilidade” no jogo.

O relato do Velho Jogador de Rúgbi também nos mostra qual era o ideal de identidade feminina que os homens de classe média e classe média alta tinham naquela época. Assim, enquanto o homem ideal é retratado como arrogante e fisicamente robusto, a mulher ideal – aos olhos masculinos – é temerosa, fraca e dependente. Isso correspondia à imagem dos papéis masculino e feminino incorporados na forma de família nuclear patriarcal, que então se tornava norma entre a classe média em expansão. É possível especular que, ao contrário da visão feminista atualmente disseminada, senão a dominante, essa configuração de família pode, pelo menos num aspecto, ter representado uma mudança no sentido da equalização de oportunidades de poder entre os sexos. Isso porque criou laços mais fortes entre os homens e a família, submetendo-os assim à possibilidade de um

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maior grau de influência e controle femininos. Também possivelmente agindo a favor de uma equalização das oportunidades de poder entre os sexos foi o caso da transformação civilizadora aqui mostrada por meio do esporte. Seu efeito teria sido resultado da imposição de um conjunto de restrições internas e externas à expressão da agressividade dos homens, por exemplo, via código de comportamento “cavalheiresco”, limitando assim as oportunidades para o uso de suas principais vantagens de poder em relação à maioria das mulheres – a força física e a superioridade como lutadores. Isso, por sua vez, teria aumentado as chances de as mulheres se envolverem em uma ação unificada própria, organizando, por exemplo, jogos e demonstrações. Esse efeito teria ocorrido reduzindo-se a probabilidade de que tais demonstrações de unidade e poder femininos incipientes provocassem uma resposta violenta dos homens, seja no contexto doméstico pelo marido e o pai, seja no contexto das demonstrações pela policia e o público em geral. Mais particularmente, na medida em que pudesse ser esperada uma resposta não violenta dos homens a esses atos políticos das mulheres, poderia ser esperado o medo das mulheres, o medo das mulheres teria sido reduzido e, por conseguinte, aumentaria sua confiança para seguir em frente com a luta pelo que elas acreditavam ser os seus direitos, parece razoável formular a hipótese de que o deslocamento de poder entre homens e mulheres, que pela primeira vez obteve expressão pública no movimento das suffragettes, pode ter sido, pelo menos em parte, inerente ao desenvolvimento civilizador que acompanhou a emergência da Grã-Bretanha como um estado nacional urbano-industrial.

Uma das implicações dessa discussão até agora é que, apesar de continuar permeado pelos valores patriarcais e escorado por estruturas predominantemente patriarcais, o esporte moderno emergiu como parte de uma transformação civilizadora. Um dos aspectos dessa mudança foi um deslocamento equalizador, por menor que possa ter sido, no equilíbrio de poder entre os sexos. No entanto, isso contribuiu para o desenvolvimento, em certas esferas, de expressões simbólicas de machismo. Um exemplo é o padrão de quebra de tabu socialmente tolerado que, pelo menos na GrãBretanha, veio a ser associado principalmente, mas não exclusivamente, ao jogo de Rugby Union .

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4 A ascensão e o declínio da subcultura machista no rúgbi As tradições envolvidas na subcultura machista do rugby union são encenadas após a partida no bar do clube ou, se o time jogou fora de sua cidade, no ônibus que transporta os jogadores de volta para a casa. Entre seus principais constituintes está o “striptease”, um ritual que debocha da stripper. O sinal tradicional para o começo desse ritual é a canção chamada “Guerreiro zulu”. Cerimônias de iniciação também fazem parte da subcultura do rúgbi. Ao longo das cerimônias, tira-se a roupa do iniciante – geralmente à força – e seu corpo, especialmente os genitais, é lambuzado, talvez com graxa de sapato ou vaselina. Beber cerveja em excesso, um comportamento geralmente acompanhado de rituais e corridas que tendem a aumentar o consumo e a velocidade com que se atinge a embriaguês, passou a fazer parte da tradição do clube de rúgbi. Quando bêbados, os jogadores cantam canções obscenas e, se as esposas ou namoradas de alguns deles estiverem presentes, cantase a canção “Boa noite Meninas” como um sinal para que elas saiam. Daí em diante, os eventos deverão ser exclusivamente para homens, e qualquer mulher que quiser ficar será vista como depravada.

As canções obscenas apresentam pelo menos dois temas recorrentes: de um lado, zombar das mulheres; e, de outro, caçoar dos homossexuais. À primeira vista, esses dois temas podem parecer não estar relacionados, mas é razoável formular a hipótese de que ambos refletem o poder crescente das mulheres e sua ameaça cada vez maior à autoimagem tradicional dos homens. O rúgbi começou a se tornar um jogo para adultos na década de 1850. No começo era exclusivo das classes média e média alta, fato que talvez seja significativo porque a maioria das suffragettes era do mesmo extrato social. Em outras palavras, é razoável supor que as mulheres desses níveis de hierarquia social tornavam-se, naquele período, cada vez mais uma ameaça para os homens, e que alguns reagiram criando o rúgbi – como um domínio masculino onde poderiam fortalecer sua masculinidade ameaçada e, ao mesmo tempo, menosprezar, aviltar e objetificar as mulheres, a principal fonte de ameaça. Uma breve análise do conteúdo das canções de rúgbi ilustrará como isso acontecia.

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Um dos principais aspectos recorrentes nas canções de rúgbi consiste no fato de que encarnam uma atitude hostil, brutal, mas ao mesmo tempo temerosa em relação às mulheres e ao ato sexual. Na balada “Nell, o Esquimó”, por exemplo, nem mesmo o grande mulherengo “Dick Bom de Mira” é incapaz de fazer Nell sentir prazer sexual. Isso fica a cargo de seu capanga “Pete, o Mexicano”, que realiza a tarefa com seu “revólver de seis balas”. No “Hino do Engenheiro”, o personagem principal, um engenheiro cuja esposa “nunca estava satisfeita”, teve que construir uma máquina para satisfazer o componente erótico de seu papel de marido. A máquina foi bem-sucedida onde ele havia falhado, mas, durante o processo, sua esposa foi brutalmente assassinada. Raramente, se é que alguma vez, aparecem homens ou mulheres “normais” nessas canções. Poderes sobre-humanos são exigidos para que o “herói” possa satisfazer o apetite sexual voraz da “heroína”. Nada poderia ser mais revelador

da função dessas canções em expressar

simbolicamente – mas também, talvez, até certo ponto simbolicamente reduzindo – o medo às mulheres vistas como poderosas e exigentes. Esses medos provavelmente cresceram na proporção do aumento factual do poder das mulheres.

O segundo tema recorrente dessas canções obscenas é zombar dos homens efeminados e homossexuais. Uma das canções tradicionais nos círculos de rúgbi tem o seguinte refrão:

Juntos somos todos bichas, Com licença, agora vamos deitar. Sim, somos todos bichas, Por isso temos que aos pares andar. A função desse refrão parece ser defender-se da acusação antes de ela ser feita, e enfatizar e reforçar a masculinidade zombando não só das mulheres, mas também dos homossexuais. Nos últimos anos, na medida em que as mulheres ficaram mais

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poderosas e se tornaram capazes de desafiar sua condição de subordinação factual, se não sua objetificação simbólica, com pequeno mas crescente sucesso, cada vez mais torna-se norma padrões menos segregados de relações entre os sexos. Nessa situação, homens que se agarraram ao velho estilo e continuaram participando de grupos só de homens devem ter sido alvo de dúvidas quanto a sua masculinidade. Alguns talvez tenham até começado a duvidar de si próprios. Dúvidas desse tipo devem ter sido duplamente ameaçadoras numa situação social como aquela do clube de rúgbi, onde a principal função era a expressão da masculinidade e a perpetuação de normas tradicionais.

Os clubes britânicos de rúgbi não são mais domínios masculinos tão evidentes como costumavam ser. O afrouxamento das estruturas e ideologias que outrora mantiveram unidos os jogadores de rúgbi em grupos exclusivamente masculinos tem sido um processo complicado, mas se as hipóteses aqui apresentadas tiverem qualquer validade, assim como a emancipação das mulheres desempenhou um importante papel em seu desenvolvimento, também a continuação desse processo deu uma contribuição significativa ao enfraquecimento ocorrido posteriormente. Chegou-se agora a uma situação em que as mulheres são visitantes frequentes, e o que é mais importante, bem-vindas nos clubes de rúgbi. Em parte foram as contingências financeiras, mais particularmente a promoção de bailes para levantar fundos, que começaram a causar essa mudança. Mas esse fato econômico reflete mudanças mais amplas na estrutura social, especialmente na posição das mulheres dentro dessa estrutura.

Os bailes trouxeram as mulheres para o domínio masculino do rúgbi com aprovação oficial. Isso não significa que antes a presença delas não tivesse sido permitida. Pelo contrário, elas sempre foram bem-vindas – para fazer o chá, preparar e servir refeições e admirar e incentivar seus homens. Mas tradicionalmente sua presença só era tolerada se se contentassem em permanecer numa posição subalterna. As mulheres mais emancipadas que agora começam a entrar nos clubes, seja para frequentar os bailes ou simplesmente para beber com seus companheiros, estão, no entanto, cada vez menos dispostas a aceitar isso. Elas tendem a valorizar a

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independência, procurar a igualdade e perceber o poder que sua desejabilidade como parceira lhes dá em relação aos homens. Não estão dispostas a aceitar comportamentos que consideram intencionalmente agressivos, ou então elas próprias fazem uso de obscenidades como sinal de sua emancipação.

Uma vez que se trata de uma atividade em que as mulheres acompanham os homens num enclave social onde a atividade principal é masculina, certamente a dominação masculina continua existindo. No entanto, as mudanças que acabamos de discutir nos indicam até que ponto essa dominação tem sido contestada na sociedade britânica. É claro que, ao mesmo tempo, mostra o quanto as mulheres ainda precisam avançar para chegar a alguma coisa que se aproxime de uma plena igualdade com os homens. Pois uma das razões, nesse caso, de elas terem que seguir os homens é o fato de haver poucas atividades de lazer semelhantes disponíveis para as mulheres. Elas permanecem, em proporção muito maior que os homens, limitadas aos papéis doméstico e familial. A falta de instalações de lazer para mulheres reflete esse fato. E também quando vemos que ainda é difícil para as mulheres entrar em pubs sozinhas sem perda de status ou sem atrair a atenção indesejada dos homens. Isso, por sua vez, em grande parte é resultado de séculos de dominação masculina e de uma estrutura social global que continua, de um modo geral, a refletir e reforçar essa dominação. Também reflete a existência de padrões de socialização que acomodam as mulheres principalmente na esfera doméstica, preparando-as para o desempenho de papéis ocupacionais subordinados, e que limitam seus horizontes, não apenas no âmbito ocupacional, mas também no lazer.

As mudanças descritas aqui como tendo ocorrido em clubes britânicos de rúgbi são, parece razoável supor, sintomáticas de mudanças sociais mais geralmente associadas ao desenvolvimento do esporte moderno. Não há espaço suficiente neste ensaio para uma discussão detalhada das raízes sociais dessas mudanças. Basta dizer simplesmente que ocorreram como parte da emergência da Grã-Bretanha como um estado nacional urbano-industrial, e que esse processo envolveu, entre seus principais componentes interagentes, a emergência de uma estrutura social caracterizada por padrões de comportamento mais “civilizados” e maior igualdade

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entre os sexos. Há, no entanto, pelo menos uma aparente exceção a essa generalização: o fenômeno do “hooliganismo (vandalismo) no futebol”. Isso porque parece contradizer a hipótese de que as mudanças civilizadoras são parte essencial do desenvolvimento contínuo da Grã-Bretanha como um estado nacional urbanoindustrial.

5 Sociogênese da violência do hooliganismo no futebol De imediato, as características mais evidentes do vandalismo no futebol são as brigas e o comportamento agressivo entre torcidas rivais. As brigas assumem diversas formas e podem ocorrer em vários contextos diferentes, além do próprio estádio de futebol. Podem, por exemplo, assumir a forma de luta braçal entre dois torcedores rivais ou entre dois pequenos grupos. Qualquer que seja a escala da briga, às vezes armas como canivetes são usadas nesses confrontos, mas não invariavelmente. Essas brigas também podem tomar a forma de bombardeios aéreos, utilizando como munição projéteis que variam de objetos aparentemente inócuos, como amendoim e copos de papel, até outros potencialmente mais perigosos, como dardos, moedas, tijolos, blocos de concreto, fogos de artifício, bombas de fumaça e, como já aconteceu em uma ou duas ocasiões, coquetéis Molotov e sinalizadores de socorro.

O lançamento de objetos geralmente ocorre em estádios de futebol, embora também ocorra fora deles, especialmente quando uma forte presença policial impede o contato direto entre as torcidas rivais. Como consequência da política oficial de segregar torcidas rivais – uma política que foi introduzida no final da década de 1960 como uma esperança de combater o hooliganismo no futebol, embora, na prática, um de seus principais efeitos tenha sido deslocar o fenômeno e aumentar sua ocorrência fora dos estádios – as lutas corpo a corpo são relativamente raras nas arquibancadas, embora grupos pequenos de torcedores ocasionalmente consigam, por não usarem identificação, infiltrar-se no território de seus adversários para começar uma briga. Participar de uma “invasão” bem-sucedida é motivo de glória

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nos círculos de hooligans do futebol. Nos dias de hoje, porém, é mais comum as brigas ocorrerem antes do jogo, por exemplo, nos pubs do centro da cidade, ou nas imediações, ou então depois, quando a polícia está tentando escoltar os torcedores visitantes até a estação ferroviária ou rodoviária. É quando tendem a ocorrer os confrontos de maior proporção. Estes geralmente começam com uma “corrida”, isto é, com uns 200 ou 300 adolescentes e jovens adultos descendo a rua impetuosamente à procura de uma brecha nas defesas da polícia que lhes possibilitará fazer contato com o “inimigo”. Quando eles conseguem evitar o controle da polícia – hooligans “radicais” usam estratégias elaboradas para atingir esse fim –, o que costuma acontecer é uma série de escaramuças, espalhadas por uma área relativamente grande, cada uma envolvendo, digamos, de 20 a 30 jovens, e muitas vezes mais. Também ocorrem confrontos quando torcedores rivais se encontram acidentalmente em trens do metrô e em cafés nas estradas. Além disso, às vezes brigas acontecem dentro de determinados grupos de torcedores, sendo atraídos participantes rivais, talvez de diferentes conjuntos habitacionais ou diferentes áreas de uma cidade. Também existem os “grupos de luta”. Por exemplo, os torcedores de diversos clubes de Londres à vezes se reúnem em Euston ou em um dos outros principais terminais ferroviários da capital para se empenhar num ataque unificado contra torcedores visitantes do norte.

Durante a partida, grupos de torcedores rivais dirigem sua atenção uns para os outros tanto ou mais que para o jogo em si, cantando, gritando e gesticulando, como expressão de sua oposição. Suas canções e gritos têm como temas recorrentes desafios para a briga e ameaças de violência. Determinados grupos de torcedores tendem a ter seu próprio repertório de canções e gritos, que na verdade são variações locais de um conjunto de temas comuns. O mais importante aqui, como mostrou Jacobson , é o fato de que as letras são enfatizadas com palavras como “odiar” “morrer”, “lutar”, “chutar” e “render-se”, todas elas transmitindo imagens de batalhas e conquistas. Seguem duas delas, citadas por Jacobson, do repertório dos torcedores do Chelsea da década de 1970. Cantado como “Those were the days my friend”: Nós somos o Shed , meus amigos,

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Ficamos no Stretford End . Cantamos e dançamos e fazemos tudo de novo. Vivemos a vida que queremos, Brigamos e nunca perdemos. Pois nós somos o Shed, Sim! Somos o Shed.

Cantado como “I was born under a wandering star”: Eu nasci no Chelsea Shed Botas são feitas para chutar, Armas são feitas para atirar. Suba aqui no Chelsea Shed E vamos todos dar botinadas.

Além da violência, a desmasculinização dos torcedores rivais é outro tema recorrente das canções e gritos dos hooligans. Um exemplo é referir-se a eles e/ou ao time para o qual torcem como “boiolas” ou “punheteiros”, este último acompanhado por um gesto representando a masturbação masculina. Outro ainda é esculachar a comunidade de torcedores rivais como, por exemplo, na seguinte canção: Cantado como “In my Liverpool home”: Nos seus cortiços em Highbury, Eles procuram no lixo algo para comer. Encontram um gato [ou cachorro] morto e acham uma delícia,

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Nos seus cortiços em Highbury.

Como se pode ver dessa descrição, pelo menos uma porção significativa dos torcedores de futebol rotulados como “hooligans” parecem estar tão ou mais interessados em brigar do que em ver futebol. Para eles, o jogo serve principalmente para expressar seu machismo, seja factualmente, derrotando os rivais e os fazendo correr, ou simbolicamente por meio de canções e gritos de torcida.

Considerando isso e a discussão anterior, fica claro que um dos componentes centrais do hooliganismo no futebol é a expressão de uma determinada identidade masculina que poderíamos chamar de “estilo masculino violento”. As evidências atualmente disponíveis sugerem que a maioria dos hooligans radicais – mas nem todos eles – provêm dos segmentos mais “rudes”, menos “respeitáveis” da classe trabalhadora, e parece razoável a hipótese de que esse estilo masculino violento é gerado por aspectos estruturais específicos das comunidades da classe trabalhadora mais baixa. O sociólogo norte-americano Gerald Suttles cunhou o termo “segmentação ordenada” para descrever essas comunidades e argumenta que um de seus aspectos dominantes é o “grupo de iguais com pessoas do mesmo sexo” ou a “gangue de esquina”. Esses grupos, segundo ele, parecem “surgir logicamente a partir de uma forte ênfase na separação por idade, evitação entre os sexos, unidade territorial e solidariedade étnica . No entanto, ele documenta a ocorrência de conflitos intraétnicos entre esses grupos e reconhece que a diferenciação e a solidariedade étnica são contingentes e não fatores necessários em sua formação. Isto é, separação por idade, segregação sexual e identificação territorial parecem ser os determinantes estruturais internos cruciais. Numa comunidade onde esses [?] elementos são centrais na estrutura social, uma boa parte dos adolescentes do sexo masculino é deixada a fazer o que bem quiser, tendendo assim a se juntar em grupos, de um lado determinados pelos laços de parentesco e proximidade residencial e, de outro, pela ameaça de “gangues” similares de bairros adjacentes. Essas comunidades também tendem a ser internamente fragmentadas. Uma exceção parcial, argumenta Suttles, são as brigas de “gangues”, reais ou supostas, pois podem mobilizar a lealdade dos homens em toda a comunidade.

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Desenvolvendo posteriormente essa análise, Suttle introduziu o conceito da “vizinhança defendida”, sugerindo que os grupos de adolescentes de rua pertencentes a comunidades da classe trabalhadora podem ser vistos como “gangues vigilantes” que surgem graças à “incompetência das instituições formais que têm responsabilidade pela proteção da propriedade e da vida” . Essa é uma ideia interessante, em alguns pontos coerente com a teoria dos processos civilizadores de Elias, com sua ênfase no papel desempenhado pelo controle do estado em desenvolvimento na emergência de padrões sociais mais “civilizados”. Isto é, conforme Elias, seria de se esperar, mesmo num estado nacional urbano-industrial, níveis relativamente altos de violência em comunidades onde o estado e seus órgãos foram incapazes de, ou não se dispuseram a, exercer um controle efetivo. Não causa surpresa que a estrutura dessas comunidades leve à produção e reprodução da “masculinidade violenta” (embora não necessariamente ao caso específico do hooliganismo no futebol) como uma de suas características dominantes.

Na medida em que suas estruturas internas aproximam-se da “segmentação ordenada” e na medida em que não estão sujeitos ao controle efetivo do estado, as comunidades da classe trabalhadora mais baixa geram normas que, relativamente àquelas de outros grupos sociais”, toleram um alto grau de violência nas relações sociais. Correlativamente, essas comunidades exercem comparativamente pouca pressão em seus membros para que exercitem o autocontrole sobre suas tendências violentas. Vários aspectos de sua estrutura tendem a funcionar nesse sentido. Assim, a relativa liberdade em relação ao controle por parte dos adultos nas crianças e adolescentes da classe trabalhadora mais baixa significa que estes tendem a interagir de modo relativamente violento e a desenvolver hierarquias de dominação em que idade e força física são determinantes fundamentais. Esse padrão é reforçado pelas características dos adultos dominantes em comunidades desse tipo. Segregação sexual, dominação das mulheres pelos homens e a consequente falta de uma pressão feminina “amolecedora”, tudo isso opera na mesma direção. De fato, na medida em que as mulheres de tais comunidades crescem, elas próprias violentas e esperando um comportamento violento de seus homens, aumenta nestes a propensão à

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violência. Um reforço adicional vem das frequentes rixas entre famílias, vizinhos e, acima de tudo, das “gangues de esquina”. Em resumo, essas comunidades da classe trabalhadora mais baixa parecem caracterizadas por um tipo de “feedback cíclico positivo” que tende a maximizar o recurso à violência em praticamente todas as áreas das relações sociais, especialmente por parte dos homens.

Um dos efeitos desse ciclo é á atribuição de prestígio a homens que sabem brigar e que permanecem leais ao grupo nas situações de briga. Correlativamente, há uma tendência de esses homens passarem a gostar de brigas – ou seja, nem todos eles acabam gostando de briga – e vê-las como importante fonte de significado e gratificação na vida. A principal diferença entre as comunidades da classe trabalhadora mais baixa e as de suas contrapartes mais “respeitáveis” nas classes alta, média e trabalhadora parece ser que, entre os “respeitáveis”, a violência nas relações diretas tende a ser normativamente condenada, enquanto, entre a classe trabalhadora mais baixa, tende a ser tolerada e recompensada. Outra diferença é o fato de que há uma tendência, nos fragmentos de classe onde as pessoas se consideram “respeitáveis”, de a violência ser “empurrada para trás da curtina” e, quando ela ocorre, de assumir, considerando-se todos os aspectos, uma forma mais “instrumental” e resultar em sentimentos de culpa. Ao contrário, nas comunidades dos segmentos mais “rudes” da classe trabalhadora, a violência tende a ser expressa quase sempre em público e a assumir, considerando todos os aspectos, uma forma “expressiva” ou “afetiva”. Como tal, tende a ser associada em maior extensão aos sentimentos de prazer.

É razoável formular a hipótese de que esse “estilo masculino violento”, gerado dessa maneira nos segmentos mais “rudes” da classe trabalhadora, é aquele mesmo expresso nas brigas dos hooligans no futebol. Isso quer dizer que as evidências atualmente disponíveis sugerem que são os jovens desses segmentos da classe trabalhadora que formam o núcleo daqueles que se envolvem com mais persistência nas ações mais violentas que ocorrem no contexto do futebol. É claro que o futebol não é o único veículo de expressão desse estilo. É, porém, em muitos aspectos um cenário muito apropriado. Isso porque a própria partida de futebol é um jogo-luta

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cujo aspecto principal é a expressão da masculinidade, embora numa forma socialmente aprovada e geralmente mais controlada. O time de futebol também proporciona um foco para a identificação de jovens da classe trabalhadora, e estes passam a ver o estádio, mais particularmente as arquibancadas atrás do gol, como sendo a sua “praia”. Ao mesmo tempo, o futebol traz regularmente para seu território um “inimigo” facilmente identificável, os torcedores do time adversário, e estes são vistos como “invasores”. Finalmente, a grande multidão presente a uma partida de futebol proporciona um cenário onde o que oficialmente é percebido como ato “antissocial” pode ser perpetrado com relativo anonimato e impunidade, e a presença maciça da polícia permite uma excitação a mais ou atritos regulares com a lei.

6 Conclusão Neste capítulo, propus que as origens de vários “esportes de combate” modernos remontam a um conjunto de jogos populares cuja violência é indicativa de seu enraizamento numa sociedade que era mais violenta e, portanto, mais fortemente patriarcal que a nossa. Depois encontrei a modernização incipiente desses esportes nas escolas públicas, o que sugere que as mudanças civilizadoras ocorridas naquele contexto eram sintomáticas de um complexo de mudanças mais amplo. Um dos seus efeitos foi até certo ponto aumentar o poder das mulheres em relação aos homens. Alguns homens reagiram a esse deslocamento de poder criando clubes de rúgbi – que não foram, é claro, os únicos enclaves para esse fim – como domínios masculinos onde podiam simbolicamente menosprezar, objetificar e aviltar as mulheres, que agora, mais do que nunca, representavam uma ameaça ao status e à autoimagem desses homens. Hoje, a contínua emancipação das mulheres solapou substancialmente esse aspecto da “subcultura” do rúgbi. Finalmente, examinei a aparente contradição à minha tese representada pelo “hooliganismo no futebol” e sugeri que um de seus aspectos principais é um “estilo masculino violento” estruturalmente produzido e reproduzido entre segmentos específicos da classe trabalhadora mais baixa. De fato, o hooliganismo não constitui uma contradição à minha tese, mas indica a não uniformidade do processo civilizador e da formação do estado nacional, e o fato de que ainda existem nos dias atuais, na Grã-Bretanha,

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áreas de estrutura social que continuam a gerar a agressividade machista em formas mais ou menos extremadas.

Uma diferença fundamental entre o complexo do macho expresso no hooliganismo no futebol e, de modo mais geral, no estilo masculino violento dos segmentos mais “rudes” da classe trabalhadora, e aquele expresso no rúgbi, consiste no fato de que a violência física e a valentia dos jogadores de rúgbi tendem a ser canalizadas para o âmbito socialmente aprovado do jogo, enquanto a da classe trabalhadora mais “rude” tende a ser um compromisso de vida mais essencial. Vale observar, além disso, que, enquanto os jogadores de rúgbi, quando a subcultura de seu domínio masculino estava no auge, tendiam a menosprezar, objetificar e aviltar as mulheres simbolicamente através de rituais e canções, as mulheres raramente, se é que alguma vez, aparecem nas canções e gritos dos hooligans. Isso talvez seja indicativo do menor poder das mulheres nas comunidades da classe trabalhadora mais baixa e, consequentemente, do fato que elas são menos ameaçadoras para os homens. Em tais circunstâncias, elas são factualmente muito mais objetificadas e exploradas, e submetidas à violência explícita dos homens.

Provavelmente, a principal implicação da presente análise é o fato de o esporte aparentemente ter uma importância apenas secundária com respeito à produção e reprodução da identidade masculina. Mais significativos nesse caso parecem ser aqueles aspectos da estrutura social mais ampla que afetam as oportunidades relativas de poder dos sexos e o grau de segregação sexual que existe na necessária interdependência entre homens e mulheres. Tudo que o esporte parece fazer é desempenhar um papel secundário e de reforço. O esporte, no entanto, é crucial na sustentação de formas modificadas e mais controladas de agressividade machista numa sociedade em que somente alguns papéis ocupacionais, tais como os dos militares e da polícia, oferecem oportunidades regulares de luta, e em que todo o direcionamento da evolução tecnológica tem sido há muito tempo para reduzir a necessidade da força física. Obviamente, na medida em que as mulheres continuarem sentindo atração por homens machistas, os esportes, especialmente os esportes de combate, desempenharão um papel de certa relevância na perpetuação

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tanto do complexo do macho quanto da dependência de mulheres que fluem dessa fonte. Provavelmente, é inútil especular se esportes de combate continuariam existindo numa sociedade mais plenamente “civilizada” que a nossa. Uma coisa, porém, é certo: mesmo que a equalização tenda a aumentar a ocorrência de conflitos em curto e médio prazo, essa sociedade, em longo prazo, teria que incorporar uma proporção bem maior de igualdade entre os sexos, as classes e as “raças” do que foi possível até hoje.

Pós-escrito, 2007 Este capítulo baseia-se em parte num artigo de 1973 escrito em parceria com Ken Sheard , e que foi, pelo que sei, uma das primeiras tentativas sociológicas de examinar questões de esporte e gênero em termos explicitamente relacionais ou, mais propriamente, figuracionais – isto é, fundamentalmente como uma questão sobre o deslocamento do equilíbrio de poder entre os sexos. O valor e a validade das partes relacionais, se não figuracionais, daquilo que escrevemos foram reconhecidas por Susan Birrell em 1988, quando ela sugeriu que “Performance and meaning” de Paul Williss, em grande parte de inspiração marxista, e o artigo meu e de Ken Sheard sobre rúgbi “aparentemente eram tão avançados para o público americano que passaram despercebidos por cerca de dez anos” . Este pós-escrito é uma tentativa de reconhecer que, embora a opinião de Susan Birrell a respeito do avanço dos estudos britânicos sobre esporte e gênero comparado às contrapartes norteamericanas possa conter alguma verdade em meados e no final da década de 1980, obviamente não é mais ocaso quando nos aproximamos do fim da primeira década deste século XXI.

Outras fontes do artigo foram mais pessoais, ligadas a algumas profundas experiências que tive com o sexo oposto. Minha mãe, por exemplo, foi uma mulher muito independente que evidentemente se beneficiou das conquistas das suffragettes. Ela apoiou com determinação meu envolvimento com o esporte e, ingenuamente, a princípio supus que todas as mulheres deviam ser como ela! Foi um grande choque para mim, portanto, que minha segunda esposa, uma feminista e

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– como minha mãe – uma mulher forte e independente, tivesse se oposto veementemente a que eu continuasse a jogar críquete depois que nos casamos. Na época em que escrevi o artigo, estávamos nos divorciando e, enquanto o escrevia, esforcei-me por entender as dimensões racionais e emocionais de meu envolvimento com ela, com nossos filhos e no esporte. O que basicamente eu estava tentando fazer era aprofundar meu entendimento pessoal sobre os problemas mais amplos das relações de gênero, as bases e as consequências socais do então cada vez mais vibrante e bem-sucedido movimento feminista, além de algumas das complexidades do entrelaçamento de gênero e esporte. Foi nesse contexto que dolorosamente percebi que a participação masculina no esporte foi sempre sustentada por uma boa dose de exploração e desvalorização das mulheres.

Outra fonte para o artigo foi minha perplexidade com o fato de que, embora algumas feministas nas décadas de 1970 e 1980 salientassem o que chamavam de a violência essencial dos homens, eu havia internalizado profundamente o ideal de que um homem nunca deveria bater numa mulher. Meu pai era um homem tradicional em todos os sentidos, embora talvez em alguns aspectos “pós-patriarcal”. Ele havia lutado boxe profissionalmente quando esteve no exército na década de 1920 e mais tarde ensinou-me os rudimentos desse esporte. Ele nunca se cansou de enfatizar que o boxe é um esporte e que as habilidades que estava tentando passar para mim eram apenas para fins esportivos e de autoproteção. Seu exemplo me fez pensar que talvez nem todos os homens sejam tão fisicamente violentos como as feministas mais radicais tentavam retratar. Cheguei à conclusão que, embora não seja de maneira alguma universal nesses extratos sociais nem totalmente ausentes mais abaixo, o ideal do homem que não bate em mulher é principalmente um valor das classes alta e média e dos segmentos mais “respeitáveis” da classe trabalhadora.

Desde a década de 1980, os estudos feministas sobre esporte e gênero tiveram um avanço considerável, especialmente nos países de língua inglesa. Na linha de frente – e o que segue não é de modo algum uma lista exaustiva – estão acadêmicos como Susan Birrell, Cheryl Cole, Sharon Colwell, Kari Fasting, Jennifer Hargreaves, Katie Liston, Louise Mansfield, Margaret MacNeill, Liz Pike, Sheila Scraton,

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Jennifer Smith e Nancy Theberge. Os avanços realizados por essas e outras acadêmicas significavam que, quando reli o capítulo sobre esporte e gênero ao preparar esta edição de Quest for Excitement, tive uma forte impressão de que este capítulo em particular – e mais aquele sobre hooliganismo no futebol que eu decidira em todo caso reescrever – estava seriamente desatualizado. Discuti a questão com Stephen Mennell e ele me convenceu que, em vez de incluir uma das minhas mais recentes incursões naquilo que se tornou o atoleiro dos estudos sobre esporte e gênero , o melhor procedimento seria escrever este pós-escrito explicando como a área se desenvolveu nos últimos anos, e reimprimir o capítulo original com apenas pequenas correções. Segundo ele, essa era a abordagem correta porque nesse meio tempo o capítulo original atingira o status de um pequeno clássico. Isso talvez seja um exagero. Gosto de pensar, no entanto, que meu capítulo original possa ter tido alguma influência sobre especialistas norte-americanos da área como Mike Messner, Don Sabo, Alan Kelin, Kevin Young e David Whitson. Messner e Sabo, em particular, estabeleceram-se como líderes internacionais na área, especialmente com a publicação de sua excelente coletânea de textos .

Esse tour de force de Sabo e Messner foi rapidamente seguido por outro livro de textos, igualmente influente, editado por Susan Birrell e Cheryl Cole . Este pósescrito não é o lugar para citar todas as contribuições daquele excelente livro. Basta simplesmente destacar com menção especial o ensaio bastante original de Elizabeth Wheatley . Na minha opinião, ele ajuda a elevar toda a área de estudos sobre esporte e gênero a um nível ainda não alcançado quando Ken Sheard e eu entramos na discussão, ao mostrar como esportistas do sexo feminino na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Canadá vêm imitando suas contrapartes masculinas ao criarem subculturas inversas orientadas para o consumo de álcool, para menosprezar edifamar os homens, a masculinidade e a sexualidade masculina, e para a exaltação do lesbianismo. O ensaio de Wheatley, em particular, mereceria uma extensa discussão em qualquer versão refeita do Capítulo 11.

Falta mencionar mais uma questão. É o fato de a tolerância social da homossexualidade

tanto

masculina

quanto

feminina

ter

aumentado

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consideravelmente nos países ocidentais desde a década de 1980. O fenômeno sem dúvida causou impacto no esporte em vários aspectos sociologicamente ainda pouco investigados, e certamente teria merecido

alguma atenção num Capítulo 11

amplamente refeito. O Hooliganismo no Fubebol como um Problema Global Transcrito de um Capítulo apresentado na International House of Japan na quartafeira, 25 de julho de 2001

Neste capítulo, quero lhes contar algo sobre o que meu colega Patrick Murphy e eu descobrimos, por meio de pesquisa sociológica realizada desde o final da década de 1970, a respeito do hooliganismo. Uma das nossas premissas básicas tem sido que somente será possível elaborar estratégias e medidas eficazes contra os hooligans apoiando-se na pesquisa. Vejamos como isso funciona na prática.

Primeiramente, é preciso dizer que o “hooliganismo no futebol” é uma categoria construída por políticos e pelos meios de comunicação, mais especificamente jornais, televisão e rádio. Não é uma categoria construída por sociólogos, psicólogos ou qualquer outro cientista social ou do comportamento. O hooliganismo abrange todo um espectro de comportamentos que vai da violência verbal, através de expressões obscenas e intimidatórias – ou seja, “vou chutar essa sua cabeça de merda” – até a briga propriamente dita com ou sem armas. Quando se usam armas, estas podem variar de pedras e tijolos até moedas afiadas, canivetes, foguetes de sinalização e, especialmente, ao que parece, na Argentina, até armas de fogo.

Os confrontos ou as lutas travadas pelo hooligan não ocorrem apenas dentro dos estádios de futebol ou em dias de jogo. Tendo isso em vista, as autoridades precisam estar atentas tanto nos dias de jogo quanto nos outros dias, e em todas as áreas onde se juntam diferentes grupos de torcedores, isto é, em estações ferroviárias e rodoviárias, regiões onde se concentram hotéis e lugares de acampamento. É claro que os problemas não são inevitáveis, porém mais prováveis, quando grupos de

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torcedores com um histórico de confrontos, tais como os ingleses e os alemães, ficam muito próximos. Como já foi dito, penso que um diagnóstico sociológico adequado é uma precondição para enfrentar e, espera-se, impedir ou pelo menos limitar a ocorrência do hooliganismo no futebol. Então como explicar o que é isso e o que envolve?

Após a tragédia de Heysel na Bélgica, em 1985, quando 39 torcedores italianos foram mortos na final da Copa Europeia entre o time inglês, Liverpool, e o time italiano, Juventus – a então primeira ministra britânica, Margaret Tatcher, afirmou que os fenômeno é simples. Os hooligans são pessoas más, disse ela, e as pessoas boas devem pegar as pessoas más e puni-las. Isso é tudo que se tem que fazer. Mas, na verdade, o hooliganismo é uma questão complexa, de muitos matizes e níveis, e em muitos aspectos as diretrizes e as atitudes da sra. Tatcher tenderam a torná-lo ainda pior. Começarei a desembaraçar essas complexidades contando-lhes três piadas. Não são piadas muito boas, portanto talvez vocês nem achem graça. No entanto, cada uma delas exemplifica um importante aspecto do problema.

A primeira piada diz respeito ao tempo em que o regime do apartheid na África do Sul ainda estava intacto. É sobre um menino inglês de uns quatro anos de idade que percebeu o quanto o futebol era importante para o seu relacionamento com o pai. A mãe saiu, foi fazer compras ou participar de uma manifestação feminista. Ele está vendo televisão e o pai está na cozinha preparando uma bebida. Começa o noticiário com uma matéria sobre a polícia reprimindo tumultos raciais na África do Sul. O menino vê toda a briga e diz: “Papai! Papai! Vem depressa ou você vai perder o futebol!” Em outras palavras, o menino confundiu-se porque na Inglaterra da década de 1980 futebol e briga eram quase a mesma coisa. Havia o que os sociólogos chamam de “pânico moral”, quando se fazia as coisas parecerem piores do que realmente eram. Ao que parece, paradoxalmente, nas décadas de 1990 e 2000, predominou a situação oposta. Isto é, muitos na Inglaterra passaram a acreditar que nosso problema com o hooliganismo no futebol havia sido resolvido ou simplesmente saíra de moda.

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Tanto a exageração do problema nas décadas de 1960, 1970 e 1980 quanto a subestimação nas décadas de 1990 e 2000 eram perigosas. Durante os anos 60, 70 e 80, as autoridades e a polícia exageravam e pioravam as coisas, enquanto nos anos 90 e 2000 geralmente eram pegas de surpresa. Um exemplo dessa última situação ocorreu em Dublin, na República da Irlanda, em 1995. A Inglaterra jogava contra a Irlanda no estádio de Lansdowne Road e os hooligans ingleses causaram grandes danos ao estádio, resultando no cancelamento da partida. A Garda, a polícia irlandesa, acreditava que o problema com os ingleses havia sido resolvido ou simplesmente não existia mais. Portanto, estavam despreparados. Foi um verdadeiro tapa na cara.

A segunda piada envolve um grupo de hooligans de Londres que estão entre os mais notórios. São torcedores do Chelsea Football Club e se autodenominam os “Headhunters” (“Caçadores de Talento”). Um grupo de Headhunters estava num ônibus que os levaria para ver o Chelsea jogar contra o meu time, o Leicester City. O ônibus entrou em Leicester e eles puderam ver os torcedores do Leicester City com suas camisetas e cachecóis azuis e brancos dirigindo-se para o jogo. Nesse momento, um dos Headhunters foi até o motorista e disse: Pare o ônibus! Pare o ônibus! É urgente! Tenho que descer”. O motorista então parou o ônibus. O Headhunter desceu, aproximou-se de um torcedor do Leicester, deu-lhe um soco no queixo, derrubou-o no chão e chutou-lhe a cabeça. Ele então voltou para o ônibus com um sorriso de alívio e satisfação, e o motorista disse: “Tudo bem. Se alguém mais estiver desesperado, é melhor descer agora. Senão vamos chegar atrasados para o jogo”.

É claro que as pessoas costumam pedir para o motorista parar quando sentem necessidade urgente por uma coisa ou outra, e não para bater em alguém! Mas, naquilo que poderíamos chamar de futebol radical, os hooligans têm necessidade de brigar. Eles gostam da violência, isso lhes dá prazer. Trata-se de um aspecto importante do problema, como veremos detalhadamente mais adiante.

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A terceira piada diz respeito ao mesmo grupo de Headhunters do Chelsea. Dois deles estão vendo suas façanhas do sábado na capa do jornal The Sun do domingo seguinte, e um diz para o outro: “Nós ficamos seis semanas planejando aquelas brigas

em

Leicester

e

eles

chamam

isso

de

‘violência

irracional’”.

Sociologicamente, há duas questões nessa piada. A primeira – e mais simples – é que os hooligans ganham fama em seus próprios círculos graças à cobertura que a mídia faz de seus atos. A segunda está relacionada ao fato de que políticos e jornalistas costumam chamar o hooliganismo de “violência irracional” porque não conseguem entender por que alguém iria querer brigar num jogo de futebol. Pessoas que fazem isso, pensam eles, devem ser idiotas. Sua violência deve ser gratuita, sem sentido. Devem ter “perdido o juízo”. Sociologicamente, porém, a questão não é que eles perderam o juízo – mas que eles perderam o nosso juízo, o juízo dos grupos socialmente dominantes atualmente. Ou seja, os objetivos, motivos, razões e valores dos hooligans são diferentes dos valores que predominam na Inglaterra de hoje. Segundo as normas e valores ingleses, as pessoas não devem brigar em situações públicas só porque gostam de fazer isso. Mas é o que fazem esses hooligans. Brigar no futebol é um aspecto fundamental de suas vidas. Portanto, se você quiser fazer algo eficaz a respeito desse comportamento, se quiser curá-lo, impedi-lo ou limitálo, é preciso entrar na cabeça deles, investigar seus motivos e ver por que eles veem a si próprios se comportando dessa maneira. Avancemos nessa argumentação.

Na Grã-Bretanha e no resto da Europa, as diretrizes relativas ao hooliganismo no futebol são prejudicadas pelo fato de haver quatro mitos amplamente aceitos por parte de políticos, profissionais da mídia e mesmo por pessoas que se autodenominam “sociólogos”. O primeiro mito é que o hooliganismo é novo. Nas décadas de 1970 e 1980, eu e meu colega de Leicester, Patrick Murphy, abordamos o problema na Grã-Bretanha historicamente. Como fontes de dados, usamos jornais locais e nacionais que remontam até o século XIX. Também usamos registros da Football Association. Assim, tínhamos dois conjuntos de dados, podendo cada um deles ser cruzado com o outro. Descobrimos que, visto numa perspectiva de cerca de cem anos, o registro da incidência do hooliganismo no futebol seguia uma curva em

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forma de U. Ou seja, a incidência era alta antes da Primeira Guerra Mundial, diminuiu entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, permaneceu baixa até por volta de 1955, depois começou a aumentar, primeiro lentamente e depois rapidamente a partir de 1965 aproximadamente.

O registro da incidência do hooliganismo no futebol começou a crescer rapidamente em torno de 1965 em parte pelo fato de que 1966 foi o único ano em que os ingleses, os inventores do jogo, ganharam a Copa do Mundo ou puderam sediar a competição. Isso significou que, a partir de aproximadamente 1965, com a iminência de a Copa do Mundo ser sediada na Inglaterra, aumentou o interesse dos políticos e da mídia no comportamento dos torcedores. Como já foi dito, o registro da incidência de mau comportamento por parte de torcedores havia aumentado e os políticos e jornalistas da televisão e da imprensa escrita começaram a ficar preocupados que esse comportamento se repetisse durante a Copa, manchando assim a reputação internacional da Inglaterra como a terra da “esportividade”, do “fair-play” e do público pacífico. Como resultado, os jornais começaram a enviar repórteres aos estádios para que observassem os torcedores e não só o jogo. Foram atrás de maus comportamentos e, sem dúvida, encontraram. E seu padrão de reportagem anunciava aos jovens que: se você quiser ação, se quiser encrenca – jovens da classe trabalhadora na época usavam os termos “bovver” (de bother, problema) e “aggro” (de aggravation, com o sentido de agressividade) – o futebol é o melhor lugar. Darei um exemplo de como funcionava essa interação complexa entre político-mídia-hooligan.

Em novembro de 1965, o jornal The Sun fez uma reportagem sobre uma partida de futebol em Brantford, Londres, onde um torcedor do Millwall havia jogado uma caixa vazia de granadas de mão no campo, perto do goleiro do Brantford. Um bravo policial correu, pegou-a e enterrou-a na areia. Como não ouviram nenhuma explosão, foram olhar e viram que não havia nada dentro. O torcedor do Millwall havia feito uma brincadeira doentia. No entanto, sua atitude foi apresentada numa manchete em letras garrafais como Futebol Marcha para a Guerra, e “o artigo seguiu dizendo como os torcedores ingleses eram ‘doentios’, comparando-os aos sul-

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americanos, especialmente os argentinos. Inadvertidamente, o artigo divulgou o jogo de futebol para os skinheads, que então estavam começando a aparecer no lugar dos teddy boys, mods e outros maus elementos da moda, como um lugar para ir quando você quiser brigar. Em resumo, algumas reportagens podem piorar ainda mais um problema como o hooliganismo no futebol.

Só mais uma coisa sobre esse padrão histórico geral. Todo tipo de comportamento que as autoridades e a mídia hoje chamam de “hooliganismo”, nossos dados mostram que têm sido relatados ininterruptamente desde a década de 1880, período quando começou o futebol profissional. Isto é, em todas as décadas houve arremesso de objetos, ataques contra árbitros, bandeirinhas e jogadores adversários, e brigas entre torcidas rivais. No entanto, o relato das incidências dessas desordens não é uma constante histórica. O equilíbrio entre os diferentes tipos tem sofrido alterações ao longo do tempo. Mais particularmente, antes da Primeira Guerra Mundial, a maior parte do comportamento violento dos torcedores – que passou a se chamar “hooliganismo” depois da década de 1960 – era local. Os torcedores raramente viajavam para longe de casa e a maior parte da violência consistia em ataques contra árbitros, bandeirinhas e jogadores do time adversário. Tudo isso acontece hoje, mas atualmente as viagens para jogos fora de casa são comuns, e consequentemente o principal problema agora envolve o confronto entre grupos de torcedores rivais.

Este breve apanhado histórico mostra que, na Grã-Bretanha, o hooliganismo no futebol não é um problema inteiramente novo. Nem se pode dizer que seja tão somente britânico ou inglês. Esse é o segundo mito. Penso que se espalhou pelo mundo especialmente depois da tragédia de Heysel, na Bélgica, em 1985.

No entanto, a ideia do hooliganismo no futebol como uma “doença” caracteristicamente inglesa é um mito, o que pode ser verificado em dados publicados nos últimos anos. De fato, há registros de sua ocorrência em praticamente todos os países onde o futebol ou soccer é praticado . As duas exceções eram a Dinamarca – que desde então passou a ter seu show de

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hooliganismo – e a República da Irlanda, países onde os torcedores não parecem ter se envolvido regularmente em comportamento hooligan. Voltarei depois a essa questão. Agora há duas coisas que quero acrescentar. Dados disponíveis sugerem que houve um crescimento, a partir da década de 1960, tanto do próprio fenômeno do hooliganismo no futebol quanto do interesse da mídia em relatá-lo. Também faz sentido supor que esses dois aspectos afetaram um ao outro. Isso significa que o crescimento factual parece ter alimentado o crescente interesse em reportá-lo, e isso, por sua vez, contribuiu para um crescimento factual ainda maior desse comportamento.

Vejamos outro aspecto do problema. É muito provável que, se indagada, a maioria das pessoas diga que as 39 mortes da tragédia de Heysel em 1985 constituiram a pior tragédia relacionada a hooligans que já ocorrera até aquele momento. Os dados disponíveis sugerem, porém, que não foi. Essa honra duvidosa pertence ao assim chamado “tumulto de Lima”, ocorrido em 1964, no Peru, quando entre 287 e 328 pessoas foram mortas e mais de 400 saíram feridas num tumulto provocado por hooligans num jogo internacional. O motivo da incerteza das cifras é que a confusão dentro do estádio espalhou-se para o lado de fora e talvez tenha se juntado com um pouco daquilo que as autoridades interpretaram como políticas revolucionárias.

O jogo do tumulto de Lima foi entre Peru e Argentina. O tumulto começou quando o árbitro uruguaio anulou um gol do Peru. Por causa disso, torcedores peruanos, enraivecidos, jogaram sobre o campo centenas de garrafas de cerveja e assentos de cadeiras. Depois, um conhecido hooligan de Lima, apelidado de el Bomba, atravessou a cerca de arame que ali estava para impedir que os torcedores interferissem no jogo e tentou atacar o árbitro. No entanto, el Bomba foi retirado à força pela polícia, mas a multidão começou a dar vazão a sua ira contra os policiais, atirando-lhes garrafas de cerveja e atacando os cães com tochas feitas de papel. A polícia começou a disparar, a briga entre torcedores e policiais passou para fora do

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estádio e o resultado final dessa combinação de tumulto no futebol, protesto contra a polícia e pânico em massa foi um total de aproximadamente 300 pessoas mortas.

Já houve vários outros incidentes no mundo em que um grande número de pessoas morreu em situações de desordem no futebol envolvendo hooligans. Assim, 74 pessoas morreram numa partida de futebol na Argentina, em 1968, 44 na Turquia, em 1964, e 69 na União Soviética, em 1982.

Outros dados referentes a homicídios ligados ao futebol, relatados num levantamento feito em jornais ingleses entre 1996 e 1999, sugeriram que a Argentina é o país que

até agora teve a maior incidência de comportamento

homicida no futebol. O que acontece lá é que grupos organizados de torcedores, que eles chamam de barras bravas odeiam tanto uns aos outros que chegam a trocar tiros. Durante algum tempo na década de 1990, entendo que algo semelhante estava acontecendo também no Brasil.

O terceiro mito é que o hooliganismo somente ocorre no soccer e não no contexto de outros esportes mais violentos como o rúgbi, o futebol americano e o boxe. Na GrãBretanha, isso pode ser verdade, já que a incidência de violência de torcedores é bem maior que na Rugby Union ou na Rugby League. Há, porém, uma tradição bem estabelecida de brigas de torcedores da Rugby Union no sul da França. Além do mais, embora seja verdade que há muito pouco hooliganismo no soccer dos Estados Unidos, onde a modalidade masculina é esporte de uma minoria – ao contrário do que acontece com a modalidade feminina –, não é verdade que os torcedores americanos de um modo geral sejam invariavelmente pacíficos e bem-comportados. De fato – e isso também acontece no Canadá – eles têm uma tradição de se envolver no que se pode chamar de “tumulto comemorativo” depois que um de seus times vence o “Super Bowl” ou um “World Series”. Como seria de se esperar num país onde armas de fogo são portadas e usadas com mais frequência do que pelo menos em qualquer outra parte da Europa Ocidental, às vezes eles usam armas nessas situações. Não costumam ser usadas deliberadamente para matar, mas são

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disparadas no ar como parte do entusiasmo geral e do desejo de comemorar. Já vi relatos de mulheres sendo sexualmente atacadas por torcedores americanos em comemorações tumultuosas.

Entre outras coisas, fatos como esses mostram que o que poderíamos chamar de “teoria da catarse” , a ideia de que o grau de violência no comportamento de fãs de esportes ocorre na proporção inversa ao grau de violência que tem lugar no campo, simplesmente não é verdadeira. A teoria da catarse vai por esse caminho. O soccer é o menos violento, o mais “civilizado” de todos os jogos de futebol. Por causa disso, poucas oportunidades são oferecidas para que o público dê vazão aos seus impulsos violentos. Consequentemente, eles têm que proporcionar essas oportunidades para si mesmos e o fazem na forma de hooliganismo. Ao contrário, o futebol americano e o rúgbi são mais violentos em ambas as formas. Portanto, os torcedores dispõem de amplas oportunidades de descarga vicária da agressão. Daí seu comportamento mais pacífico. Mas não funciona assim. Seria mais verdadeiro dizer que, tudo o mais sendo igual, jogar e ver esportes violentos tende a tornar as pessoas mais violentas e não o contrário. Isso fica claro nas lutas de boxe na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, onde as brigas fora do ringue são comuns.

O quarto mito sobre o hooliganismo no futebol já foi tratado aqui. Segundo ele, os ingleses resolveram seus problemas e o hooliganismo já não existe mais desde a década de 1990. Essa é outra questão complexa e aqui só poderemos abordá-la brevemente.

Infelizmente, isso significará ignorar algumas dessas complexidades. Penso que o problema foi “despolitizado” e, assim, relatado com menos frequência. No final da década de 1980, Margaret Tatcher e seu governo tentavam lidar com o problema através do que chamaram de “Lei do Público de Futebol”. No centro da questão estaria um sistema de entrada computadorizada nos estádios. No entanto, em 1989 ocorreu uma tragédia numa partida de futebol na Inglaterra. Na semifinal da FA Cup entre Liverpool e Nottingham Forest, no estádio de Hillsborough, em Sheffield,

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Yorkshire, 97 pessoas morreram. A tragédia de Hillsborough não foi diretamente causada pelo hooliganismo. No entanto, as medidas tomadas para lidar com o problema e o medo do hooliganismo por parte da polícia foram fatores fundamentais. O que aconteceu na ocasião foi que, de um lado, torcedores do Liverpool, muitos deles embriagados e exaltados, mas não propriamente desordeiros, foram forçados pela polícia a entrar numa área cercada e superlotada. Do outro lado, os policiais, que não os deixavam passar pelo cercado, pois julgavam iminente uma invasão de hooligans no campo. Assim, cada vez mais pessoas, todas ansiosas para não perder o começo do jogo, foram empurradas para um espaço limitado, de onde não havia como escapar, resultando no esmagamento de 97 pessoas.

A Comissão de Inquérito conduzida por Lord Justice Taylor recomendou o abandono de partes centrais da Lei do Público de Futebol. Isso foi aceito pelo governo e proporcionou certo impulso no sentido de “despolitizar” a questão do hooliganismo. Ou seja, o hooliganismo no futebol começou a ser discutido com menos frequência pelos políticos e, assim, tornou-se um assunto de menor interesse para a mídia. Depois, em 1990, a Copa do Mundo foi sediada pela Itália. No começo, antes do abandono forçado da Lei Público de Futebol, o Ministro dos Esportes, Colin Moynihan, descreveu o futebol inglês como um “esporte de cortiço” e seus fãs, um “bando de criaturas” ou palavras desse tipo. Quando, porém, veio o abandono forçado da Lei do Público de Futebol, ele mudou o discurso e apontou para o fato de que havia também hooligans italianos, holandeses e alemães, e não só ingleses. O que ele não percebeu foi que os hooligans ingleses na Sardenha tinham agido com precisão militar e deram um baile na polícia italiana. Também não percebeu que houve manifestações de revolta por toda a Inglaterra na noite em que a seleção inglesa perdeu a semifinal para a Alemanha na disputa de pênaltis.

Na época, também ajudou no sentido da “despolitização” o desempenho da seleção inglesa, melhor do que o esperado, que chegou às semifinais. Isso resultou em certa euforia nacional. Reforçando esse fato, a Inglaterra ganhou o prêmio “Fair Play” da FIFA, o que motivou a especulação de que os valores tradicionais do país não

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haviam desaparecido como muitos temiam. Além do mais, a BBC Television apresentou o programa “Itália 90” de uma forma muito original. A sequência de abertura, particularmente quando filmagens de futebol e de estádios de futebol são combinadas com Luciano Pavarotti, Placido Domingo e Jose Carreras – os “tenores” – cantando óperas italianas, sugeria a ideia de que o jogo estava tendo uma “ascensão no mundo”, perdendo sua ligação com a classe baixa e as conotações de violência.

Naquele contexto geral, os profissionais de mídia parecem ter se convencido de que as coisas estavam melhorando. Consequentemente, deixaram de examinar o comportamento da multidão. Ao mesmo tempo, o governo apoiou o pedido da Football Association para que a UEFA (Union Européene de Football Association) readmitisse a presença de cidadãos ingleses às competições europeias (eles tinham sido banidos sine die após o evento de Heysel). Quando esse pedido foi aceito, removeu-se mais um motivo para analisar o comportamento da multidão. A falta de investigação da mídia logo foi seguida pela crença de que o hooliganismo no futebol inglês era coisa do passado. No entanto, toda vez que a seleção da Inglaterra ou um clube inglês jogava no exterior, na década de 1990, havia confusão envolvendo torcedores ingleses. Com isso surgiu a curiosa ideia de que o problema doméstico na Inglaterra tinha sido resolvido, e os hooligans ingleses somente causavam tumultos no exterior. É claro que não fazia sentido. Não era que os hooligans ingleses tinham deixado de se envolver em comportamentos de vandalismo em casa. O comportamento hooligan na Inglaterra é que estava sendo relatado com menos frequência.

Passemos para a questão da explicação. Existem cinco explicações sobre o hooliganismo no futebol que tendem a ser aceitos pela mídia e pelos políticos. A primeira é que o hooliganismo é causado pelo excessivo consumo de álcool. O exemplo, apresentado anteriormente, dos torcedores irlandeses e dinamarqueses mostra que isso simplesmente não é verdade. Torcedores irlandeses e dinamarqueses costumam beber além da conta em partidas de futebol e não se comportam violentamente. E nem todos os hooligans ingleses bebem. Hooligans radicais dirão:

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“Não bebemos antes de uma briga porque precisamos estar sóbrios, senão vamos apanhar dos torcedores rivais ou seremos facilmente pegos pela polícia”. É claro que alguns hooligans bebem para ter coragem. Outros usam drogas. Mas não se pode dizer que o consumo de álcool é a causa do problema porque, se fosse, os piores hooligans seriam dinamarqueses e irlandeses. Há, contudo, um aspecto em que o álcool está diretamente envolvido. Isso porque o hooliganismo no futebol tem tudo a ver com o teste ritualizado da “macheza”, e as normas de masculinidade dos hooligans enfatizam tanto a habilidade e coragem numa briga quanto a capacidade de “aguentar a bebida” para ser um “homem de verdade”

Outra explicação bastante comum é que o hooliganismo no futebol é causado pelos incidentes violentos que ocorrem dentro do campo, isto é, os jogadores são modelos de comportamento violento. Uma explicação semelhante identifica o hooliganismo como uma reação à arbitragem tendenciosa ou incompetente. O que essas explicações têm em comum é a ideia de que o hooliganismo no futebol está diretamente ligado ao jogo em si, é causado pelo que acontece dentro do campo. É claro que às vezes é isso, mas os incidentes com os hooligans geralmente ocorrem antes ou depois das partidas e não somente no decorrer do jogo. Também acontecem fora do estádio, frequentemente a uma considerável distância, por exemplo, nas estações ferroviárias e rodoviárias e nas portas dos cafés.

Uma terceira explicação, também muito comum, e que tende a ser aceita por pessoas da esquerda, é que o hooliganismo no futebol é causado pelo desemprego. Mais uma vez, é fácil mostrar a impropriedade dessa explicação. Por exemplo, na Inglaterra, na década de 1930, a taxa de desemprego era alta, mas a incidência do hooliganismo era baixa. Na década de 1960, quando começou a surgir o atual padrão de hooliganismo no futebol, a taxa de desemprego – incluindo, decisivamente, a taxa de desemprego entre os jovens – atingia o seu mínimo histórico. A situação nacional atual aponta na mesma direção. Quase todos os clubes profissionais de soccer na Inglaterra possuem uma minoria de seguidores hooligans. No entanto, a proporção daqueles que estão desempregados varia diretamente com a taxa local de

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desemprego. Ou seja, é baixa, por exemplo, em Londres, onde o desemprego é baixo, e mais alta, por exemplo, em Liverpool, onde a taxa de desemprego é alta. Um componente agonístico no comportamento dos torcedores é claramente exibido nesse sentido. Por exemplo, durante a década de 1980, torcedores londrinos costumavam agitar maços de notas de 5 libras e 10 libras para os torcedores do Liverpool, enquanto cantavam ao som de “Você nunca estará sozinho”, o hino do Liverpool FC, a paródia “Você nunca mais vai trabalhar”!

A quarta e quinta explicações são semelhantes e tendem a ser aceitas pela direita. Para elas, o hooliganismo no futebol é causado pela afluência material ou pela “permissividade”. Trata-se de um fenômeno de uma geração que tem acesso a muitas coisas e com grande facilidade, que não foi devidamente disciplinada, seja no lar, seja na escola. A explicação da afluência baseou-se em grande parte numa interpretação errônea da mudança nos estilos de vestuário ocorrido entre os hooligans ingleses no final da década de 1970 e começo da década de 1980. Até aquela época, a maioria dos hooligans ingleses era de skinheads. Mesmo que alguns fossem de uma escala social mais alta, a maior parte era da classe trabalhadora, e isso se refletia no estilo skinhead de cabeça raspada, macacão azul e botas pesadas. No final dos anos 70, torcedores mais jovens, incluindo hooligans, mudaram do estilo skinhead para um estilo “esporte” do tipo italiano, aparentemente mais caro, e os jornalistas e políticos começaram a dizer: “Pessoas de classe média alta agora estão se envolvendo no hooliganismo”. Mas eles não viram que, primeiro, uma pequena parcela dos hooligans sempre fora de classe média; e, segundo, que roupas esporte “caras” podiam ser roubadas ou que, por exemplo, etiquetas da Lacoste poderiam ser costuradas em suéters Marx e Spencer. Além disso, a “permissividade” talvez tenha diminuído em quase todos os aspectos da vida britânica durante o governo Tatcher, especialmente no futebol, que se tornou cada vez mais policiado e normatizado nos anos 60, 70 e 80.

Chega de explicações populares. E as explicações dos sociólogos? A primeira coisa que um sociólogo faz ao tentar explicar um fenômeno como o hooliganismo no futebol é olhar para as origens sociais e localidades das pessoas envolvidas.

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O que a maior parte da pesquisa sobre origem e localização social dos hooligans ingleses tem demonstrado – e com uma possível exceção, esse padrão mostra-se notavelmente estável desde a década de 1960 – é que, embora eles pertençam a todos os níveis da sociedade, a esmagadora maioria, entre 70 e 80 por cento, é da classe trabalhadora. Isto é, são homens que fazem trabalho braçal, especialmente em empregos não qualificados ou semiqualificados, que não requerem um alto nível de educação ou treinamento formal. Também vêm de famílias em que os pais pertencem ou pertenceram à classe trabalhadora. Às vezes a imprensa diz: “Veja, encontramos um hooligan que é médico ou gerente de banco”. Essas pessoas de fato às vezes se envolvem em comportamento hooligan no futebol, especialmente, talvez, aqueles que ascenderam da classe trabalhadora. No entanto, pessoas das classes média e alta envolvem-se continuamente nesse tipo de comportamento porque possuem formas de capital cultural que tornam a força física e a habilidade na luta algo que faz parte de suas vidas. Hooligans persistentes tendem a vir de estratos sociais onde a força física dos homens é valorizada em relação à luta e ao trabalho, e onde – embora isso tenha diminuído um pouco nos últimos anos – a força física masculina e a habilidade na luta recebem um amplo apoio por parte das mulheres, e também dos outros homens nesse nível da estrutura de classe. Portanto, o hooliganismo no futebol tem a ver com as normas e a masculinidade da classe trabalhadora, e isso tem permanecido estável ao longo do tempo. A única mudança possível – e isso é sugerido pelas cifras fornecidas por Gary Armstrong em 1987 – é que, em relação à mudança do estilo skinhead para o estilo esporte, pode ter havido um aumento no número de trabalhadores detidos.

A segunda atitude dos sociólogos quando estudam um problema como o hooliganismo no futebol é chegar o mais próximo possível das pessoas envolvidas e tentar descobrir por que elas pensam em agir daquela maneira, como elas veem o papel do hooliganismo ou seja lá o que for em suas vidas. Seguem-se quatro declarações de hooligans das décadas de 1960, 70 e 80. Apenas a terceira foi extraída diretamente da pesquisa de Leicester:

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Lembrando seus envolvimentos como hooligan nos anos 60, E. Taylor escreveu em 1984 que: . . . a emoção da batalha, a atividade acelerada do corpo e da mente enquanto a adrenalina disparava, o medo e o triunfo de superá-lo. Até hoje, quando começa um tumulto num jogo eu me animo e quase que me envolvo. Eu posso não me esquecer dos perigos de lesões físicas e processos criminais, mas eu os ignoro. (Guardian, 28 de março de 1984)

Sentimentos semelhantes foram expressos por um caminhoneiro de 26 anos entrevistado em 1974 no dia do jogo entre Cardiff City e Manchester United, uma partida para a qual sérios tumultos – que realmente aconteceram – haviam sido previstos. O caminhoneiro disse: Eu vou ver o jogo por uma razão apenas: a pancadaria. É uma obsessão. Não consigo evitar. Eu gosto tanto de dar pancada que quase tiro as calças . . . Eu percorro o país todo atrás disso. . . (Harrison, 1974: 602-4)

Veja o que diz “Howie”, um de nossos informantes de Leicester, em 1981: Se você conseguir confundir os tiras, você vence. Você tem que pensar como eles vão pensar. E quase sempre você sabe o que eles vão fazer, porque entra semana, sai semana, eles vão pelo mesmo caminho. Se puder imaginar uma maneira de enganá-los, você vai rir à toa; você vai ter um belo de um quebrapau.

Finalmente, quando entrevistado em 1984-5 para o programa Hooligan na Thames TV, um programa baseado em grande parte na pesquisa de Leicester, um membro da “Inter City Firm” (ICF), do West Ham United, uma das gangues de hooligans mais famosas na época, disse:

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Nós não – nós não vamos – bem, nós vamos com a intenção de brigar, você sabe o que eu quero dizer . . . Nós ficamos ansiosos . . . É ótimo. Sabe, tem 500 babacas querendo te pegar e, assim, você sabe que eles vão te esperar, então – é bom saber. É como ser jogador de tênis, sabe. Você fica, assim, animado pra jogar. Nós ficamos animados pra brigar . . . Eu acho que eu brigo, assim, pra ficar famoso. Eu espero que as pessoas, assim, me respeitem pelo que eu fiz.

Apesar do fato de cobrirem um período de mais de 20 anos, essas declarações são coerentes. O que elas revelam é que, principalmente para os homens jovens envolvidos, o hooliganismo no futebol basicamente está associado à masculinidade, à luta por território e à excitação. Para eles, hooligans, a briga relacionada ao futebol é fonte de ascensão, status e uma agradável excitação emocional.

Assim, Taylor falou da “excitação da batalha” e do “disparo da adrenalina”; o membro da ICF referiu-se notadamente ao movimento gerado na luta, mas também ao respeito que ele esperava obter de seus pares com seu envolvimento; e o motorista de caminhão falou das brigas dos hooligans (ou da “pancadaria”) como uma obsessão agradável, quase uma excitação erótica. Essa última referência foi confirmada quando Jay Allen, um membro importante dos “Aberdeen Casuals”, uma gangue escocesa de hooligans, escreveu sobre as brigas no futebol como sendo ainda mais prazerosas que sexo. Outra confirmação veio do fato de que membros da ICF na década de 1980 referiam-se às brigas como “avin it off” (“dar uma”), uma expressão londrina geralmente relacionada ao sexo. Não parece insensata a hipótese de que a capacidade dos hooligans radicais de obter um prazer puro e relativamente inocente do ato de brigar tenha origem na criação familiar e num ambiente comunitário onde o comportamento violento é recompensado e não condenado, por exemplo, através da atribuição local de um alto status, e não a condenação, àqueles que brigam.

Concluirei este artigo discutindo alguns aspectos do problema do hooliganismo no futebol que possivelmente são universais. Um desses aspectos é o patriarcado e a

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dominação masculina. Mais especificamente, pode-se dizer que o hooliganismo no futebol e, acima de tudo, sua percepção como problema social resultam de uma busca por excitação por parte de homens, muitos dos quais no passado tiveram envolvimento militar. No entanto, essa é uma questão complexa porque alguns hooligans ingleses pertencem ou pertenceram ao exército britânico, e sabe-se que soldados britânicos participaram de hooliganismo no exterior. Além do mais, na Grã-Bretanha das décadas de 1940 e 1950, quando havia o serviço militar nacional, era comum militares se envolverem em brigas, não no futebol, mas em clubes e bailes. O que pode ser dito com mais certeza sobre a questão da universalidade é que o hooliganismo no futebol tende a ser moldado ou “delineado” pelas “imperfeições” de determinadas sociedades. Na Inglaterra, isso significa desigualdades de classe social e regionais; Na Escócia e Irlanda do Norte, sectarismo religioso; na Alemanha, as relações entre Leste e Oeste e o cisma geracional; e na Espanha, os subnacionalismos linguísticos dos castelhanos, catalães e bascos.

Penso também que provavelmente é o caso de a composição social e sexual das multidões influenciar na maneira como elas se comportam. Tudo o mais sendo igual, quanto mais indivíduos da classe trabalhadora ou da classe baixa houver numa multidão, maior a possibilidade de violência. Quanto mais mulheres – e tudo o mais sendo igual – menor a probabilidade de violência, embora isso dependa, entre outras coisas, do grau em que as mulheres envolvidas foram socializadas nos papéis tradicionais de cuidar, agregar e apoiar. Penso também que o tamanho da população de um país e seu grau de homogeneidade e coesão social podem igualmente influenciar. Isso talvez explique por que os torcedores dinamarqueses e da República da Irlanda tendem a ser bem-comportados. Ambos são países pequenos, altamente coesos e, é claro, diferentemente da Grã-Bretanha, não têm uma história recente de imperialismo bem-sucedido. De fato, pode-se dizer que hoje os ingleses, com seus hooligans, são menos ameaçadores para os outros países do que eram naqueles “bons” tempos do Império Britânico, quando julgavam que governavam o mundo! Por hoje é só. Alguma pergunta?

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Notas 1. A palavra soccer vem de uma abreviação do termo “Association”. 2. Uma versão mais complexa da teoria da catarse é defendida por Norbert Elias e eu em nosso Quest for Excitement (1986). Ali enfatizamos que a participação e a presença nos esportes gera tensão em vez de, como muitos acreditam, reduzi-la. Referências __________________________

Norbert Elias e Eric Dunning (1986) Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process, Oxford, British Blackwell.

Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams (1988), The Roots of Football Hooliganism, London, Rockledge.

Eric Dunning (1999), Sport Matters: Sociological Studies of Sport, Violence and Civilization, London , Rockledge.

Reflexões Sociológicas sobre Figurações e Processos no Esporte e na Globalização: Algumas Observações Conceituais e Teóricas com Especial Referência ao Futebol (Soccer) Eric Dunning (Universidade de Leicester)

Parte 1

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Paz: uma precondição para o desenvolvimento e disseminação do esporte: Stokvis, p. 4

Este capítulo é composto de três partes distintas, por vezes apenas remotamente conectadas: na primeira, discutirei, de um ponto de vista figuracional, questões teóricas conceituais associadas aos processos da globalização; na segunda, tratarei mais concretamente da globalização do futebol do tipo soccer, até agora o esporte coletivo mais popular e bem-sucedido em todo o mundo; e na terceira, examinarei aquilo que muitas pessoas consideram “patologias” associadas à globalização do esporte.

Se tentarmos abordar o complexo ou a configuração das questões associadas à globalização e à globalização do esporte de um ponto de vista “eliasiano” figuracional ou dos processos, haverá pelo menos cinco exigências principais, a saber: I. O esporte e seus contextos sociais em parte devem ser vistos como processos e não estados constantes. Ou seja, é preciso ter cuidado para evitar a falácia que Elias chamou em 1978 de Zustandsredukton, isto é, reduzir processos a estados constantes; II. a história e o desenvolvimento do esporte, bem como os processos mais gerais da globalização têm de ser vistos de uma perspectiva de longo prazo, do ponto de vista daquilo que Anthony Giddens chamou em 1984 de “longue durée”; III. o foco principal tem de ser nas cadeias e redes de interdependência, emergentes ou em desenvolvimento, tanto dentro do esporte quanto na medida em que elas o afetam. Quanto a isso, as variações de equilíbrio entre as pressões centrífuga e centrípeta para as quais contribuem as cadeias interdependentes de diferentes extensões e graus de intensidade interacional, e mais os níveis e as formas correspondentes de formação do estado, também devem ser os focos centrais; IV. é preciso distinguir entre aqueles grupos e instituições que se beneficiam e aqueles que saem perdendo nos vários estágios desse processo. Dito de outra

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maneira, é preciso ser sensível aos modos em que a integração global emergente e as instituições selecionadas afetam as oportunidades de poder e as oportunidades de sobrevivência de grupos relacionados aos esportes, o que leva, com o passar do tempo, a formas de reclassificação entre eles no sentido de Durkheim; V. é preciso evitar o naciocentrismo e o que se poderia chamar de “eurocentrismo” ou “ocidentocentrismo” e, em vez disso, ver as figurações emergentes dos esportes no contexto de uma rede mais ampla e cada vez mais globalizada de vínculos de interdependência em que estão fixadas. Particularmente, ao mesmo tempo em que se reconhece os papéis desempenhados pela “anglicização”, “europeização” e “americanização” nesse contexto, deve-se procurar identificar as raízes e consequências da “asianização”, e acima de tudo toda a “niponização”

e

“sinecização” que pareceu ocorrer quando passamos dos séculos XIX e XX para o século XXI.

Essa abordagem procura antes de tudo evitar três conjuntos de problemas recorrentes: primeiro, o viés estático encontrado em muitos paradigmas e teorias sociológicos convencionais (por exemplo, em Talcott Parsons, 1951); segundo, é preciso evitar o que Elias (1987) chamou de “a retirada dos sociólogos para o presente”, isto é, a separação mais ou menos total da sociologia em relação à história; e terceiro, é preciso evitar a tendência a equiparar conceitos como “sociedade” e “sistema social” com a ideia de estados nacionais supostamente autossuficientes. Vou ser mais prático.

Penso que faz sentido dizer que muitas pessoas hoje tendem a ver a globalização como

um

processo

relativamente

recente,

associado

principalmente

ao

desenvolvimento do capitalismo no e após o século XIX, ou talvez tão recente quanto a Segunda Guerra Mundial. Do ponto de vista das figurações e dos processos , porém, é melhor ver o que aconteceu nesses contextos como representando apenas um estágio relativamente recente de um processo social muito mais arraigado e de longo prazo.Trata-se de um processo inerente ao fato de que o Homo Sapiens evoluiu biologicamente como uma espécie globalizante que depende, para a sua

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sobrevivência, muito mais da aprendizagem que das formas instintivas de comportamento, fato que explica a “globalização” da espécie no sentido da disseminação e de se tornar, com a possível exceção das bactérias, a espécie dominante no mundo. Os estoques de conhecimento social assim acumulados – o conhecimento pode, é claro, ser perdido ou ganho – incluem, entre outras coisas, o conhecimento registrado e também não escrito de como praticar as várias formas de esportes e jogos, e como construir tacos, bolas e outros implementos utilizados nesse contexto.

Dada a atual preferência entre os sociólogos pelo pensamento centrado no presente ou, como diria Joop Goudsblom, “hodiecêntrico” (Goudsblom, 1977), geralmente esquecemos que as sociedades dos estados nacionais da Europa Ocidental integraram-se, na época do Império Romano, como partes de uma única unidade, em grande medida com um controle central, e que continuam a exibir traços daquela experiência ainda hoje. É comum, obviamente, falar-se eurocentricamente da “Idade das Trevas” que se seguiu quando ruiu o poder imperial romano no Ocidente, no século V d.C. Também é comum ver esse período como de total desintegração, anarquia e desordem. Considerado, porém, de um ponto de vista das figurações ou processos, é melhor lembrar como as civilizações, incluindo o Império Romano do Oriente ou “Império Bizantino”, continuaram no Oriente Próximo, Oriente Médio e Extremo Oriente, e ver esse colapso local do domínio do estado romano como gerador não tanto de desintegração quanto da emergência de uma nova forma de integração, mais conflituosa e violenta, além de um deslocamento de equilíbrio na ordem social europeia entre pressões centrípetas e centrífugas, inicialmente a favor das pressões centrífugas (Elias, 1939b; 1978; 1982; 2000). Esse deslocamento foi crucial para estabelecer as precondições estruturais do dinamismo peculiar do Ocidente em relação ao Oriente Próximo e ao Extremo Oriente; isto é, foi crucial para os processos de longo prazo das lutas hegemônicas e de eliminação e na formação política do monopólio que contribuiu para o surgimento dos estados nacionais modernos e, correlativamente, da ciência moderna, da industrialização e – o mais importante de tudo no atual contexto – daquilo que Norbert Elias, em nosso livro Quest for Excitement, chamou de “esportização dos passatempos”. Também envolvidas no estabelecimento dessas precondições estavam as guerras e as batalhas

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comerciais entre os estados nacionais e entre as formas dinásticas e feudais das unidades de sobrevivência que os precederam. Esse complexo ou essa configuração de processos contribuiu para, e reciprocamente subordinou-se à, hegemonia global emergente do Ocidente, um padrão de dominação global que, começando nos séculos XV, XVI e XVII, durou de três a quatro séculos e que somente agora mostra sinais de possivelmente estar chegando ao fim com o deslocamento do poder global – para o Extremo Oriente. De fato, é possível que o que estamos testemunhando no presente sejam os primeiros estágios dos processos de “asianização” ou “sinização”. Esses processos, contudo, ainda não tiverem um grande impacto nos esportes, que continuam em grande parte nas formas europeias e americanas.

Escrevendo em 1992, o sociólogo holandês Ruud Stokvis (1992, 112) disse a respeito do nosso trabalho, meu e de Elias, sobre o esporte que, embora não discordasse totalmente de nós, nossa abordagem, segundo ele, tende a conduzir a pesquisa “com muita frequência para as questões da violência e seu controle, ao passo que áreas mais importantes para a pesquisa, como . . . a organização e padronização formal (do esporte), sua difusão nas sociedades nacionais e em todo o mundo, sua profissionalização e comercialização, ficam fora de alcance”. Trata-se de uma crítica um tanto estranha. Ignora o fato de que a comercialização, profissionalização e difusão do esporte estão entre os focos centrais do livro que escrevi com Ken Sheard em 1970, Barbarians, Gentlemen and Players (1970; 2005), e toma como certa a ocorrência de processos civilizadores no esporte e nas sociedades em geral, vendo questões tais como a organização, profissionalização e comercialização dos esportes como algo que pode ser considerado separadamente da violência e do controle da violência. É difícil, porém, imaginar como os esportes poderiam ter sido organizados nacionalmente e internacionalmente como o são hoje sem a prévia ocorrência de uma substancial unificação nacional, processos que empiricamente envolveram o desenvolvimento de uma infraestrutura de transporte e comunicações modernizada, e ainda a monopolização da violência sob controle do estado como consequências daquilo que Elias já em 1939 chamou de “lutas hegemônicas” ou “lutas de eliminação”, primeiro entre concorrentes pela “posição da realeza” e mais tarde, como consequência da democratização parcial “dos meios de governo”, pela parlamentarização e pelo controle do parlamento. Igualmente,

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embora os primeiros estágios de desenvolvimento do capitalismo moderno envolvessem o uso deliberado da força e da violência em maior extensão do que tende a ser o caso nos dias de hoje nas sociedades mais desenvolvidas, torna-se claro que uma das precondições para os processos de comercialização e comodificação que ocorrem atualmente no mundo dos esportes e em outras partes é a existência de espaços sociais pacificados onde pelo menos três coisas são necessárias: i. a produção e a distribuição de commmodities devem ocorrer regularmente e com poucas interrupções na maior parte do tempo; ii. as pessoas devem ter oportunidade de ganhar renda suficiente para comprar as commodities assim produzidas; e iii. as pessoas devem ter tempo e recursos para o lazer e não serem forçadas a dedicar a maior parte de seu tempo e energia simplesmente para continuar vivas.

De qualquer modo, a existência de regras globais do esporte pressupõe pelo menos certo grau de colaboração não violenta entre os representantes de diferentes nações. As organizações esportivas internacionais não foram formadas em tempos de guerra e competições internacionais como os Jogos Olímpicos e as Copas Mundiais de futebol, rúgbi e críquete tendem a ser suspensas nessas épocas. De fato, às vezes essas competições são ameaçadas quando ocorre uma escalada nas tensões entre grandes potências que quase resulta em guerra. Isso aconteceu no boicote às Olimpíadas de Moscou feito pelos Estados Unidos como resultado da ação soviética no Afeganistão. Finalmente, o seguinte – e um tanto longo – excerto extraído de um artigo de jornal de 1992, descrevendo os efeitos de uma guerra em dois atletas olímpicos da Bósnia, mostra em cores vivas como o esporte moderno depende fundamentalmente, para a sua existência, de espaços sociais pacificados: Presos em Sarajevo, dois membros desafortunados da equipe olímpica da Bósnia estão

tentando dar continuidade ao seu treinamento – apesar das distrações

nada esportivas da

artilharia sérvia, dos atiradores de tocaia e da desnutrição.

Ambos foram classificados

para os Jogos Olímpicos, mas temem não chegar a

Barcelona porque – estranho

escrever isto em 1992 – estão sitiados. Nenhum

outro corredor de longa distância no

mundo tem que suportar o medo de estar na

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mira de um atirador, mas a bósnia

muçulmana

tentando não deixar que isso a desanime. Ela ainda

Mirsada corre

Buric, pelas

complexo olímpico de Sarajevo, mas sua cidade natal não é mais

22,

está

ruínas

do

um

lugar

seguro para fazer exercícios. “Já atiraram em mim e quase fui bombardeada. Faço a maior parte do meu treino subindo e descendo escada – e também pulando

corda”,

disse ela, falando por meio de um intérprete em uma das poucas linhas de telefone da cidade devastada. Ela foi mantida como prisioneira das forças sérvias por 13 dias, junto com 350 vizinhos e familiares de sua vila perto de Sarajevo, então

invadida. Tal é a sua fama em Sarajevo que a deixaram sair para procurar

comida

para os outros.

Ela foi solta, mas agora não tem um teto . . . Outro

olímpico sitiado é Vlado Paragik, 25 anos, um campeão de judô que perdeu quase 4,5 quilos simplesmente porque ele, como os demais na cidade, não consegue o suficiente para comer. Sua dificuldade é que terá de derrubar seus adversários, se conseguir chegar à Espanha . . . O treinamento foi interrompido para que pudesse juntar-se a

uma força especial da polícia que patrulha a linha de frente, e para

se desviar de

granadas e balas. No começo da batalha, ele também havia sido

tirado de casa; mais um refugiado para as estatísticas. Os atiradores sérvios que controlam as montanhas em torno de Sarajevo recusaram-se a autorizar a passagem segura de Paragik e Busic; e as

forças das Nações Unidas não se

dispuseram a insistir no caso. Na última sexta- feira, a estrada secundária para escapar do bloqueio foi

tentativa de usar uma frustrada

quando

descoberta pelas forças sérvias, que não querem levantar o moral dos sitiados.

Ironicamente, atletas da Sérvia e de sua aliada, Montenegro, não terão dificuldades para competir em Barcelona, apesar da proibição de participar em competições esportivas, imposta pelas Nações Unidas, ao que restou da Iugoslávia. Eles participarão como competidores individuais, usando camisetas brancas e saudando a bandeira olímpica.

O argumento contra Stokvis pode ser levado mais adiante. Embora os esportes não sejam todos do mesmo modo intrinsecamente violentos, e as chances de interação violenta além dos níveis permitidos pelas regras provavelmente tendem a ser

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maiores em esportes de contato físico como o futebol e o rúgbi, e em esportes de combate como o boxe, todos os esportes são inerentemente competitivos e, portanto, contribuem para despertar sentimentos hostis e agressivos. Esses sentimentos podem levar a consequências violentas onde as normas que exigem autocontrole sobre os impulsos violentos não foram profundamente internalizadas pelos participantes. Em resumo, é razoável supor que o nível de violência, mesmo em esportes sem contato físico, provavelmente depende, ceteris paribus, dos níveis de civilização, primeiro dos competidores e, segundo, das sociedades (incluindo grupos sociais como classe e grupamentos étnicos), às quais pertencem. Pode até ser o caso, como sugere a pesquisa de Richard Sipes (elaborada em 1973), que quanto mais violenta e agressiva uma sociedade de um modo geral, maior a tendência de seus membros apreciarem esportes violentos e agressivos. Pensemos, por exemplo, na violência dos jogos gregos e romanos, especialmente os últimos, e pensemos no modo como os torneios e jogos populares da Idade Média europeia refletiam a natureza violenta da vida na sociedade medieval de um modo geral (Guttmann, 1978; 1986; Elias e Dunning, 1986; Sheard e Dunning, 1979; 2005). De fato, como sugeri anteriormente, parece razoável supor que uma das precondições subjacentes centrais para a atual e crescente popularidade e importância social cada vez maior dos esportes e, portanto, dos processos de comercialização e comodificação a que estão interdependentemente sujeitos, é o fato de, na Europa Ocidental e na maior parte do mundo ocidental, não termos vivenciado uma guerra doméstica por mais de 60 anos. A palavra-chave aqui, claro, é doméstica.

O romancista George Orwell, escrevendo em 1950, descreveu com perspicácia o esporte como sendo “a guerra menos os tiros”. É um insight útil, mas essa avaliação negativa do esporte não leva em conta a diferença manifesta envolvida , digamos, entre o tipo de movimento de grupos fortemente armados decididos a matar e destruir, que ocorreu em escala mundial entre 1939 e 1945 – refiro-me, é claro, à Segunda Guerra Mundial – e o movimento em ampla escala de homens – e cada vez mais de mulheres, também – que regularmente tem lugar no mundo inteiro com o propósito de participar de eventos esportivos e vê-los. De fato, pode-se dizer que, junto com a guerra e a religião, o esporte parece ser um dos meios mais bemsucedidos de mobilização coletiva inventado pelos humanos. Isso acontece por

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causa da combinação de funções representacionais e geradoras de emoção que o esporte apresenta (Murphy, Williams e Dunning, 1990). Podemos até dizer que, em aspectos fundamentais, o esporte é funcionalmente homólogo tanto à religião, conforme conceitualizada por Durkheim (1915), quanto à guerra. Talvez seja até o caso de estarmos testemunhando os primeiros estágios de um longo processo em que o esporte aos poucos passa a substituir a ambos. Embora ninguém possa afirmar com seriedade que o esporte é um campo de experiência onde questões teóricas fundamentais, como a origem do universo e da vida, possam ser tratadas, ele pode i. proporcionar uma fonte central de significado e de sentimentos de continuidade para as pessoas; ii. ser um foco para identificações coletivas e iii. oferecer experiências análogas à emoção gerada nas religiões e nas guerras primitivas.

O caráter inerentemente conflituoso e de soma zero do esporte significa, além do mais, que ele se presta a identificações do tipo “grupo nós” ou “grupo eles”. O sucesso do esporte nesses aspectos depende claramente de que, em suas formas modernas, os perigos físicos inerentes a qualquer mobilização de grupo para fins de conflito sejam minimizados por uma combinação de controles pessoais e sociais, ou o que Elias, em 1939, chamou de Selbstzwänge e Fremdzwänge. É claro que a ocorrência do hooliganismo no futebol – que também se tornou um fenômeno global na segunda metade do século XX – dá uma indicação do potencial de violência que permanece inerente aos esportes e sociedades mais “civilizados” de hoje. O mesmo acontece com a ameaça a eventos importantes por parte de grupos terroristas. No entanto, em ambos os casos a violência não é gerada principalmente no contexto dos esportes per se, mas envolve seu uso por grupos cujas tendências violentas são geradas do lado de fora. Sendo assim, pode-se argumentar que o hooliganismo no futebol e o terrorismo nos esportes fornecem uma medida do sucesso do esporte. Ou seja, hooligans e terroristas são atraídos para o esporte devido ao seu enorme sucesso global. Deixe-me agora voltar a atenção para minha segunda tarefa, uma

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discussão sobre o desenvolvimento do futebol como o esporte coletivo mais popular do mundo.

Parte II Sociogênese e Difusão do “Jogo dos Povos”: as Origens e a Propagação do Futebol (Soccer) Esta parte do capítulo é a respeito do “Jogo dos Povos” e não ao “Jogo do Povo” a que se referiu James Walvin em 1975. Essa diferença é significativa. A intenção é transmitir o fato de que, embora o Association Football tenha sido inventado na Inglaterra, no século XIX, desde então o futebol tornou-se um esporte global, um jogo de quase todos os povos do mundo. Em 1996, o jornalista Laurence Kitchin (The Listener, 27.10.1966), com antecipação e, na minha opinião, com precisão, referiu-se ao futebol num artigo no The Listener como “o único idioma global com exceção da ciência”. Pois aí está uma parte central da importância social do jogo. Tornou-se um fenômeno global e amplamente compartilhado, e não simplesmente um fenômeno nacional e em grande parte diferenciador. Como tal, apesar dos conflitos e tensões que continuam a ser gerados em relação ao futebol, e para os quais serve de foco de expressão – envolvendo um oscilante equilíbrio de tensões entre processos de integração e desintegração – e, se apropriadamente entendido e usado, esse esporte poderá ser de importância potencial para a paz e o entendimento mútuo em nosso mundo globalizado e turbulento.

Também é importante notar que, ao longo de seu desenvolvimento como esporte global, o futebol tornou-se um jogo de todos os povos em dois sentidos parcialmente independentes: primeiro, no sentido de que se tornou uma atividade de participação direta e espectatorial para pessoas do mundo inteiro, em grande parte independente de “raça”, credo ou cor. Ao dizer isso, estou fazendo uma declaração de fato que não pretende negar que as tensões “raciais” e religiosas permanecem como um grave e

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contínuo tormento para esse esporte; e, segundo, o futebol, tornou-se um jogo para todas as pessoas, no sentido de ser um esporte tanto para mulheres como para homens, embora, é claro, não em iguais proporções, fato que demonstra que continua sendo em grande medida um domínio masculino. Como irei sugerir mais adiante, o fato de o futebol continuar sendo principalmente um domínio masculino ajuda a explicar alguns dos problemas persistentes que ele enfrenta.

Permita-me agora fazer uma breve afirmação terminológica e outra sociológica. A terminológica é que o “soccer” é um neologismo do século XIX derivado da palavra inglesa “association”. O nome verdadeiro do jogo é “association football”, em oposição, por exemplo, a “Rugby football”, “American football”, “Australian rules football” (“futebol com regras australianas”), “Gaelic football” (“futebol gaélico”), etc. A afirmação sociológica é que o futebol do tipo soccer pode ser legitimamente descrito como uma das maiores “invenções coletivas” da humanidade, o que pretende expressar o fato de que as origens do jogo não podem ser atribuídas a um único indivíduo, como erroneamente se diz do rúgbi. (Refiro-me aqui à ideia mítica de que o rúgbi foi inventado por um estudante de Rugby [a escola e a cidade], William Webb Ellis, em 1832, quando então ele quebrou as regras da escola, pegando a bola com a mão e correndo com ela (Dunning e Sheard, 1979; 2005). O futebol – e também o rúgbi – são exemplos perfeitos de criações “sociais” ou “grupais” que começaram a assumir sua forma moderna no segundo e terceiro quartéis do século XIX. Apesar dos recentes argumentos em contrário apresentados pelo historiador John Goulstone em 2001 e Adrian Harvey em 2005, esse processo gerador inicial quase que certamente teve lugar principalmente em uma ou mais das escolas públicas inglesas mais importantes e nas universidades de Cambridge e Oxford, e não pode ser entendido independentemente da figuração formada por essas escolas e universidades ou da posição que ocupavam na sociedade britânica como um todo em meados e no final do século XIX.

Em 1953, o jornalista esportivo Geoffrey Green especulou que várias escolas públicas podem ter estado envolvidas nesse processo. Um ano depois, o ex-diretor de escola Morris Marples sugeriu que Chaterhouse e Westminster podem ter sido os

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principais centros sociais. Mais recentemente, numa afirmação absurda, não fundamentada em referências, sejam de fontes primárias ou secundárias, e em aparente ignorância de que ali os meninos jogavam com uma bola de formato estranho, que não era nem esférica nem oval, Richard Giulianotti elegeu Harrow: “os antigos alunos de Rugby [a escola] e de Eton”, informa ele – ou antes desinforma – ao leitor, “preferiam um jogo de botinadas em que também usavam as mãos, enquanto os de Harrow proibiam essas ações” (Giulianotti, 1999: 4). Na verdade, como Graham Curry procurou mostrar em 2002, a esmagadora maioria das evidências históricas sugere fortemente que o mais antigo protótipo de uso limitado das mãos, isto é, basicamente um jogo de chutes e sem botinadas, foi uma invenção principalmente dos meninos de Eton. Eles o chamaram de “Jogo de Campo”. Talvez tenham agido junto com alguns de seus professores, mas é certo que ex- alunos de Eton no Trinity College de Cambridge, alguns deles estudantes, outros membros da faculdade, não intencionalmente desempenharam um papel central em modificações que se mostraram significativas para o desenvolvimento mais amplo do jogo. Foram, de fato, as regras de Cambridge de 1863, que tiveram origem em Eton, aquelas adotadas, com apenas algumas pequenas mudanças, pela Football Association, quando esta foi formada mais tarde nesse mesmo ano. Em resumo, o jogo dos povos parece ter começado como uma atividade exclusiva dos estratos mais altos da elite social inglesa. Como pode ser explicada a disseminação desse jogo e sua transformação de uma atividade da elite social em uma atividade popular global?

A difusão do futebol do tipo soccer começou na Grã-Bretanha e na Irlanda. Desde o início foi um processo que envolveu uma disseminação geográfica bem como uma difusão para baixo na escala social. [

falta um pedaço do texto

]. Este

último processo inicialmente foi mais lento e de menor extensão dentro do Império Britânico, onde, com exceção do Canadá, que teve influência dominante dos Estados Unidos, o críquete e o rúgbi foram os principais esportes de exportação. Não foi isso o que aconteceu, porém, naquilo que o historiador Harold Perkin, em 1989, chamou de “Império Britânico informal”. Este envolvia soldados, marinheiros, comerciantes, engenheiros e outros profissionais britânicos que formaram clubes quando serviram ou trabalharam no exterior, em locais não colonizados onde os nativos copiavam os

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esportes jogados pelos britânicos, ou então envolvia estrangeiros que haviam estudado em escolas e universidades britânicas e que também criavam clubes quando voltavam para sua terra natal. Depois, o jogo começou a se espalhar rapidamente nos antigos domínios, especialmente na Austrália, com o patrocínio de imigrantes do sul e do leste da Europa. Como Wray Vamplew mostrou em 1988, isso levou australianos de descendência britânica, apegados às duas formas existentes de rúgbi, ou às regras australianas do jogo, a chamar o futebol ou soccer de “wogball”, um termo pejorativo e politicamente incorreto.

Os leitores devem ter notado que comecei referindo-me a “Grã-Bretanha” e “britânico” e não a “Inglaterra” e “inglês”. A razão é que homens de partes do Reino Unido e da Irlanda, que não a Inglaterra, logo começaram a ter importância no desenvolvimento do jogo. No primeiro exemplo, foi esse particularmente o caso dos escoceses, que por algum tempo foram fundamentais tanto na administração do futebol quanto na prática do jogo. Isso aconteceu na Inglaterra e também na Escócia. Por exemplo, Lord Kinnaird (Green, 1953: 44), um escocês ex-aluno de Eton e estudante do Trinity College de Cambridge, foi um dos primeiros presidentes da Football Association, enquanto a Football League, formada em 1888, foi uma criação de outro escocês, William McGregor. Os escoceses também foram os criadores do jogo de dribles e muito importantes entre os primeiros profissionais. Os mais conhecidos entre estes últimos foram James Love e Fergus Suter, de Partick, em Glasgow, que jogavam – e eram pagos para isso – no time de Lancashire, o Darwen, contra os Old Etonians na final da FA Cup de 1879. E também Peter Andrews e James Lang, que jogavam em Sheffield pelo Heeley Club aproximadamente na mesma época (Green, 1953: 96). Homens como esses eram chamados pejorativamente de “professores escoceses” pelos “altos sacerdotes” do amadorismo, talvez porque ensinavam o jogo aos ingleses, além do fato de que esses professores escoceses estavam sendo pagos de forma ilegítima.

No final do século XIX e começo do século XX, algumas iniciativas foram tomadas para formar organizações internacionais de futebol, mas, com sua típica arrogância imperial, os britânicos recusaram-se a participar, aparentemente não querendo

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acreditar que “meros estrangeiros” fossem capazes de administrar um jogo que eles (os britânicos) tinham inventado. A FIFA – Federation Internationale de Footbal Association – foi formada em Paris, em 1904, por delegados da Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça. Chamou atenção a ausência de representantes da Grã-Bretanha e da Irlanda. A FA inglesa por fim afiliou-se à FIFA em 1906. No entanto, retirou-se em 1914, voltou em 1924, saiu novamente em 1928 e só filiou-se permanentemente em 1945. O uso dos acrônimos parcialmente anglicizados FIFA e UEFA, os dois principais órgãos internacionais do futebol, é uma indicação de sua globalização. A outra é a disseminação organizacional e do domínio do jogo, primeiro fora da Grã-Bretanha e depois fora da Europa. Isso não significa negar o fato de que a riqueza e o poder europeu possibilitam que suas Ligas importem jogadores talentosos do mundo inteiro, tornando assim as Ligas europeias cada vez mais cosmopolitas e internacionais. No entanto, a prévia ocorrência da globalização do futebol per se foi, claramente, uma das precondições fundamentais para o que se poderia chamar de “internacionalização doméstica” das Ligas europeias. Como se pode explicar a emergência do futebol no século XX como o esporte coletivo mais popular do mundo? As razões para esse comparativo sucesso parecem ser dadas como certas por muitos sociólogos e historiadores do tema. No entanto, essas razões, penso, são inerentes à própria estrutura do jogo e não é difícil encontrá-las. Por exemplo, o futebol é um jogo que não requer muita coisa em termos de trajes ou equipamentos, sendo comparativamente um esporte barato. Suas “leis” ou regras – com exceção talvez da regra de impedimento – são relativamente fáceis de entender, e regularmente tornam o jogo rápido, fluido e aberto, e onde um bom equilíbrio pode repetidamente ser alcançado em meio a um complexo de polaridades interdependentes, como ataque e defesa, força e habilidade, jogo individual e coletivo. (Elias e Dunning, 1966; 1971; 1986; 2005; Dunning, 1999). É claro que as partidas podem ser maçantes. Também podem não atender às expectativas dos jogadores e do público. No entanto, a estrutura do jogo, conforme começou a ser formada da década de 1860 em diante – e assim como os desenvolvimentos sociais de um modo geral não seguiu um curso linear – permitiu a geração recorrente de níveis de significados e emoção que, frequentemente, satisfazem tanto os jogadores quanto o público, e que podem levar a discussões intermináveis sobre, para usar dois exemplos que refletem a globalização, por que o Chelsea de Hiddinck dava tanta ênfase à defesa ou por que o Arsenal de Wenger

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dava tanta ênfase ao ataque. No âmago dessa estrutura está o fato de que as partidas de futebol são embates competitivos, físicos, mentais e táticas entre dois grupos, jogados com uma bola e regidos por regras, rituais e controles que na maior parte do tempo enquadram o círculo entre as antinomias de rivalidade e amizade, e permitem o surgimento de paixões, mantendo-as, porém, na maior parte do tempo e na maioria das pessoas, dentro de limites “civilizados” considerados socialmente aceitáveis. Na medida em que são voluntariamente obedecidos e/ou aplicados, as regras e costumes do futebol também limitam os riscos de contusões graves para os jogadores, embora, é claro, não possam eliminá-los por completo. Nem tampouco o público está totalmente seguro, como demonstram as tragédias de Heysel e Hillsborough.

O futebol de alto nível também pode apresentar as características de um bailado. Isso e mais as cores dos uniformes dos jogadores e outros elementos de cunho dramático ajudam ainda mais a explicar a atração exercida sobre o público. É uma atração que poderá ser incrementada com elementos “carnavalescos” espontâneos, ou mesmo planejados, regularmente exibidos por torcedores. É claro que outros esportes possuem algumas das qualidades aqui enumeradas, mas, sem dúvida, somente o futebol tem todas elas, pelo menos na maioria das vezes. É por isso que indiscutivelmente tornou-se o esporte coletivo mais popular do mundo. Concluirei este capítulo com uma discussão sobre alguns dos aspectos mais problemáticos do futebol.

Parte III Alguns Aspectos Problemáticos do Futebol Atual Não é preciso ser um gênio para perceber que, apesar e provavelmente, até certo ponto, por causa de seu sucesso, o futebol não está isento de problemas. No contexto deste capítulo, apenas será possível tecer breves comentários sobre quatro desses problemas. Como sugeri anteriormente, uma característica comum a, pelo menos, dois, e possivelmente três deles, é o fato de o jogo ter sido em sua origem, e ser ainda agora, em grande medida um domínio masculino. O dinheiro também parece estar na raiz de três desses problemas. Os quatro problemas são:

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i. a crescente desigualdade, em todos os países onde o futebol é praticado, entre clubes capazes de competir regularmente em nível internacional e o resto; ii. a anomia experimentada por muitos jogadores de alto nível na ativa ou que se aposentaram; iii. o envolvimento de futebolistas de alto nível em escândalos sexuais e sua exposição especialmente em tabloides; e iv. obviamente, o flagelo do hooliganismo no futebol do mundo inteiro.

Vejamos um de cada vez.

A crescente desigualdade entre clubes é um fenômeno mundial que na Inglaterra se expressa pelo fato de quatro ou cinco clubes da Premier League terem de tal modo enriquecido, tanto em jogadores quanto em outros recursos, que cada vez é mais difícil, se não impossível, serem vencidos por clubes pequenos, ou mesmo por aqueles que estão mais próximos dos grandes. A desigualdade é, em parte, resultado da frequência da exposição na televisão, receita de patrocínio e o envolvimento de “magnatas” de todas as partes do mundo, mas também, mais uma vez, uma consequência da globalização do jogo. Parece que, neste momento, vivemos as primeiras etapas da formação de copas e ligas continentais, que simultaneamente resulta na desvalorização das ligas e copas nacionais. Esse processo poderá levar ao fechamento dos clubes menores ou forçá-los a se tornarem semiprofissionais e, em alguns casos, no longo prazo, amadores. Um corolário de curto prazo dessa situação tem sido a inclusão de mais um elemento de injustiça num jogo já em muitos aspectos injusto. E também, ao tornar o resultado de um grande número de partidas da liga doméstica cada vez mais previsível, com, no caso britânico, Arsenal, Chelsea, Liverpool e Manchester United quase sempre vencendo, essa situação poderia contribuir para diminuir, nos clubes pequenos, o interesse pelas “grandes partidas”, que antes lhes davam a chance de atrair atenção em escala nacional. E nesse sentido ainda reduzir o interesse do público, formando assim uma espiral descendente.

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O dinheiro é um elemento central dessa constelação de problemas que acabamos de ver. No entanto, há uma razão para acreditar que o segundo e terceiro problemas – anomia do jogador e escândalos sexuais amplificados pela mídia – têm como origem em parte o dinheiro. Jogadores de alto nível podem tornar-se anômicos porque suas vidas estruturam-se apenas minimamente em torno de compromissos profissionais e porque dispõem de excesso de tempo livre e de dinheiro. Isso pode despertar neles desejos ilimitados, e também sentimentos de superioridade e inviolabilidade, estes últimos estimulados pela adulação pública e seu status de celebridade. A pronta disponibilidade das “admiradoras”, algumas dispostas a explorar os jogadores vendendo histórias para a mídia, também faz parte desse arranjo.

Trata-se uma questão complexa, e nada mais se pode dizer exceto que, embora os frequentes relatos de abuso sexuais reais e/ou aparentes por parte de futebolistas pareça ser um fenômeno novo no Reino Unido, já existe no esporte de alto nível nos Estados Unidos pelo menos há uns 30 ou 40 anos. Minha suspeita é que estamos lidando aqui provavelmente com um problema muito antigo e que pode ser encontrado no mundo todo, e o que vem acontecendo no Reino Unido é mais um aumento no número de relatos do que de incidentes per se. Isso porque os acordos tácitos que antes havia entre jogadores, técnicos e jornalistas para que essas questões não fossem divulgadas romperam-se, muito provavelmente, e até certo ponto, por causa do feminismo e do crescente poder das mulheres.

Concluirei este capítulo com alguns comentários sobre o hooliganismo no futebol, outro problema ligado ao fato de que esse jogo continua sendo um domínio predominantemente masculino. O primeiro é que, apesar da relativa ausência da violência hooligan de inspiração inglesa em Portugal durante a Euro-2004, há pelo menos quatro razões para acreditar que, embora seus contornos, localização social e até certo ponto composição social de seus líderes tenha sofrido certa alteração, seria prematuro, por várias razões, descrever o hooliganismo no futebol como algo pertencente ao passado. Essas razões incluem fatos como:

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i. mais de 2.000 hooligans ingleses foram proibidos de viajar para a Euro-2004. Não fosse assim, provavelmente haveria mais confusão; ii. o hooliganismo no futebol continua sendo um problema no mundo inteiro; iii. incidentes envolvendo desordens com torcedores que haviam assistido às partidas na TV foram relatados em todo o país durante a Euro-2004, especialmente depois que a Inglaterra perdeu da França e de Portugal. De fato, esse tipo de desordem tem sido recorrente em cada torneio internacional importante de que participa a Inglaterra desde a Copa de 90 na Itália, especialmente quando os ingleses perderam na cobrança de pênaltis para os alemães; iv. filmes como The Football Factory e ID, e a publicação de livros sobre criminalidade no futebol, como os de Cass Pennant e Stephen Hickmott, são indicativos de um interesse contínuo e consistente no problema. Não se trata de algo, como creem os políticos, que vai desaparecer

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Em um livro instigante e, na minha opinião, importante publicado em 1995, Sociological Theory: What Went Wrong? (Teoria Sociológica: o que Deu Errado?), o sociólogo grego Nicos Mouzelis – que foi professor aqui no LSE – tratou do que chamou “a crise da sociologia moderna”, datando suas origens nas décadas de 1960 e 1970. Naquela época, o tema tornara-se – e ainda continua sendo – o que se pode chamar de “imensamente multiparadigmático”, isto é, profundamente dividido em bases epistemológicas/metodológicas e ontológicas/factuais. Uma importante consequência é que os praticantes de diferentes abordagens ignoravam e ignoram e interpretam mal o trabalho uns dos outros, e às vezes o distorcem mais ou menos inconscientemente.

Embora a maioria de vocês tenha uma boa ideia do conteúdo dos paradigmas oferecidos atualmente, acredito que será útil para o objetivo presente se eu os resumir conforme meu entendimento. Mais particularmente, são oferecidas agora: várias formas de funcionalismo (pro exemplo, “soft” e “hard”), de marxismo (por exemplo, “humanista”, “estruturalista” e “gramsciano”), de feminismo (por exemplo, “liberal”, “socialista”, “marxista” e “culturalista”), e mais a teoria weberiana, teoria do conflito, teoria da escolha racional, teoria

da ação,

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interacionismo

simbólico,

pós-estruturalismo,

pós-modernismo,

teoria

da

estruturação, sociologia figuracional e várias outras.

Os dois últimos paradigmas – teoria da estruturação e abordagem figuracional – são sínteses e, em ambos os casos, suas origens encontram-se em parte na Universidade de Leicester. Estou pensando aqui naqueles anos em que os fundadores desses paradigmas – Norbert Elias e Tony Giddens – passaram em Leicester. No caso de Elias, as décadas de 1950 e 1960; e para Giddens, os anos 60. Permitam-me, por alguns instantes, tomar um rumo diferente. Certamente, Nico Mouzelis tinha razão ao escrever sobre uma séria crise na sociologia das décadas de 1960 e 1970. No entanto, gostaria de dizer que os percalços e as dificuldades que acompanham o estabelecimento de um equilíbrio construtivo entre conflito e consenso, no que diz respeito aos fundamentos dessa nossa disciplina tão profundamente dividida, são muito mais antigos e arraigados do que Mouzelis sugeriu. Mais particularmente, acredito que a própria sociologia nasceu em crise, “nasceu decomposta”, parafraseando a descrição de Rolf Dahrendorf da nova classe média das sociedades capitalistas em 1959. De fato, essa “crise de decomposição” tornou-se claramente visível já na escolha do nome para a disciplina por Auguste Comte. O primeiro termo escolhido foi “física social”, que ele usou pela primeira vez em 1822; mas quando saiu um livro do estatístico belga pioneiro, Adolphe Quetelet, em 1835, com o nome de “Física Social” no subtítulo – o título completo era Sobre o Homem e o Desenvolvimento das Faculdades Humanas: Ensaio sobre Física Social – Comte, irritado, cunhou o termo, parte latino, parte grego, “sociologie”, numa tentativa, acima de tudo, de enfatizar que, na sua visão, a sociologia teria de ser uma disciplina comparativa e histórica, e não estatística. Em resumo, a própria sociologia começou com um grave desacordo; de fato, em seu âmago havia uma crise metodológica.

Em um livro de ensaios publicado em 2000, com o título de On Sociology: Numbers, Narratives and the Integration of Research and Theory (Sobre a Sociologia: Números, Narrativas e a Integração de Pesquisa e Teoria), o sociólogo de Oxford, John H. Goldthorpe apresentou um conjunto de argumentos pertinentes a essa questão. Goldthorpe, um graduado em história pelo University College London

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que começou, mas nunca concluiu, seu doutorado em sociologia na London School of Economics, iniciou a carreira de professor como Professor Assistente no Departamento de Sociologia de Leicestes em 1957. Mais uma ligação com Leicester! No entanto, o que é crucial para o presente propósito é que nessa época Elias estava lá, no auge, e Goldthorpe desde o começo discordou de sua visão da sociologia como uma disciplina orientada para o processo – e para a relação.

Por volta do ano 2000, Goldthorpe pôde expressar sua oposição, primeiro argumentando que Quetelet, e não Comte, deveria ser visto como o principal fundador de nossa disciplina, isto é, para justificar que sua disciplina seja chamada de “ciência”, os sociólogos deveriam aceitar o que Goldthorpe chama de “revolução probabilística” e tentar transformar a sociologia numa disciplina fundamentalmente estatística. Além disso, Goldthorpe defendeu uma variante daquilo que o filósofo Karl Popper chamou de “individualismo metodológico”, a ideia nominalista expressa pela primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, que a obteve da leitura feita por seu Ministro do Interior, Sir Keith Joseph de A Miséria do Historicismo (1957) e de O Caminho da Servidão, de Hayek (1944), segundo a qual “não existe algo chamado sociedade, apenas indivíduos e famílias”. Na visão de Goldthorpe, há uma combinação com elementos da teoria da “ação racional” e da “escolha racional”, destituídos das ideias psicológicas e sociológicas sobre o comportamento individual baseadas em pesquisas, mas derivados de uma “lógica da inferência” que torna a “ação individual inteligível ao colocá-la num contexto social” (Goldthorpe, p. 293). Penso que tudo isso ajuda a explicar por que, em sua carreira posterior, Goldthorpe ficou preocupado – pode-se até dizer obsecado – com a medida precisa da mobilidade social, preocupação que, no seu caso, seguiu indubitavelmente na direção, não da ciência, mas de uma metafísica comparável àquela dos escolásticos medievais, que debatiam questões como quantos anjos poderiam dançar sobre a cabeça de um alfinete.

Penso que se pode melhor entender os argumentos de Goldthorpe no contexto de desenvolvimentos mais amplos da sociologia britânica durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Até então, a tradição “revolucionária” da

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sociologia britânica, iniciada por Hobhouse e Spencer, e que em muitos aspectos era incompatível com o trabalho de Comte, fora sustentada aqui na London School of Economics, praticamente a única instituição na Grã-Bretanha onde a sociologia era praticada naqueles anos, por Morris Ginsberg. Era uma tradição compatível com a perspectiva sociológica de Elias, como pode ser visto num ensaio intitulado Recent Trends in Sociology (Tendências Recentes na Sociologia), que Ginsberg publicou em 1933, quando escreveu: Sobre o aspecto histórico e evolutivo da sociologia, um trabalho recente apresentou

certas distinções. Alfred Weber e (Robert) MacIver enfatizam a

distinção entre cultura e civilização, argumentando que a ordem de crescimento parece ser radicalmente diferente entre as duas esferas . . . Com respeito ao próprio processo da civilização, uma entre os processos cumulativos e

importante distinção é estabelecida por Thurnwald irreversíveis, por exemplo, a descoberta

tecnológica, e aqueles que por necessidade

alternam entre várias possibilidades

limitadas, por exemplo, as formas de matrimônio

ou os sistemas de parentesco

(Ginsberg, 1956: 120-121. Publicado pela primeira vez em

1933 e incluído num

livro publicado em 1947). Alfred Weber tinha sido, é claro, o orientador da Habilitação de Elias em Heidelberg, quando o tema escolhido por Elias foi o papel de Florença na transição das formas de pensamento pré-científicas. Finalmente, ele “habilitou-se” em Frankfurt, em 1933, escrevendo sobre as sociedades da corte, com Karl Mannheim como seu orientador. No entanto, o que interessa observar no momento é que a distinção cultura/civilização é o primeiro tópico examinado por Elias em Über den Prozess der Zivilisation e que Ginsberg, citando Thurnwald (1932), usou o termo “processo de civilização” antes de Elias. O livro mais importante de Elias tinha o seguinte título: Sobre o Processo de Civilização; em alemão, Über den Prozess der Zivilisation.

Uma noção da mudança que ocorreu na sociologia britânica após a Segunda Guerra Mundial – e até o final da década de 1950 e começo dos anos 60, a sociologia britânica restringia-se praticamente ao LSEW – aparece numa nota autobiográfica

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que “Chelly” Halsey incluiu no Prefácio de seu livro, Uma História da Sociologia na Grã-Bretanha, em 2004: . . . O ataque de Popper ao historicismo me impressionou muito. A tradição de Hobhouse de procurar leis do desenvolvimento social, embora nunca explicitamente

mencionada por Popper, era então tornada suspeita, e nós éramos

predispostos contra

ela e convertidos à versão de Popper do “positivismo”, e

também, com relutância, a uma engenharia social fragmentar. Nosso ativismo também nos levou a pesquisas

quantitativas. Aparentemente, Popper não era um

filósofo, mas um físico interessado

nos métodos das ciências sociais. Foi sua

conversão da filosofia em problemas

metodológicos que nos atraiu – tudo muito

abstrato, mas bastante convincente (Halsey,

2004: vii).

As notas de rodapé de Popper dão uma boa ideia de quem eram os alvos principais de sua crítica do “historicismo”: Auguste Comte recebeu 16 menções, Karl Marx, 9, e Karl Mannheim, o professor de Elias e um dos fundadores da sociologia do conhecimento, 10. Sobre O Homem e a Sociedade na Era da Reconstrução, de Mannheim, Popper escreveu: “Este livro é a exposição mais elaborada de um programa holístico e historicista que conheço e, portanto, destaco-o para crítica” (1957: 67). O que eu chamaria de “ortodoxia popperiana” tornou-se dominante na sociologia britânica a partir da década de 1950. Enquanto, na década de 1930, Ginsberg havia preservado a tradição de Hobhouse/Spencer – tradição em muitos aspectos compatível com a de Elias – agora ela era considerada um anátema, e Elias, o migrante recém-chegado, viu-se em grande medida isolado. Lembro-me de ter ido com Elias a uma conferência da Associação Sociológica Britânica em Sheffield, em 1962 ou 63. O tema era “desenvolvimento”, e quando Elias expressou sua opinião da plateia, foi impedido de falar por um proeminente graduado da LSE com gritos de “Hobhouse! Hobhouse!” Com exceção do historiador Eric Hobsbawm, que estava presente, parece que ninguém percebeu que, com sua nova síntese, Elias tinha seguido além de Hobhouse, Ginsberg e Popper, como agora tentarei mostrar. É fundamental considerar duas coisas: primeiro, que Elias tinha que lutar contra Goldthorpe, como já foi discutido, e de modo mais construtivo, no todo, contra Percy Cohens e Tony Giddens; e segundo, que uma sociologia do conhecimento

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parte comteana, parte marxista e parte mannheimniana era a base da maior parte do que Elias escrevia. Agora passo para uma discussão direta daquilo que entendo como as contribuições sociológicas de Elias.

Os seguintes aspectos da vida de Elias ajudam a explicar alguns dos traços mais característicos de sua abordagem sociológica: i. a experiência da Primeira Guerra Mundial sensibilizou Elias quanto ao papel da violência e da guerra na vida humana. Ele serviu no exército do Kaiser nas frentes oriental e ocidental e, durante as décadas de 1920 e 1930, testemunhou diretamente a ascensão dos nazistas e suas batalhas nas ruas contra os comunistas. Essas experiências também intensificaram sua percepção dos processos “descivilizadores” e “civilizadores” – ele descreveu a ascensão dos nazistas como um “colapso da civilização” – e reforçou sua visão de que os “controles civilizadores” raramente, se é que alguma vez, chegam a mais do que uma camada relativamente fina de verniz. Ele não foi, como às vezes se afirma – por exemplo, Randall Collins em sua análise de O Processo Civilizador Americano, de Stephen Mennell – um teórico da “evolução” ou do “progresso”. Seu trabalho não foi moralista, mas pragmático, realista e científico, no sentido mais estrito da palavra; ii. as repetidas interrupções em sua carreira em virtude de eventos importantes – a Primeira Guerra Mundial, a hiperinflação na Alemanha em 1923, a ascensão do nazismo dez anos depois, o exílio na França e depois na Grã-Bretanha, a prisão na Grã-Bretanha como “estrangeiro inimigo” no começo da Segunda Guerra Mundial nos campos de prisioneiros de Huyton, Lancashire e da Ilha de Man – tudo isso ajudou a sensibilizar Elias para a interação entre o “indivíduo” e o “social”, o “privado” e o “público”, o “micro” e o “macro”. iii. os estudos de medicina e também de filosofia até o nível de doutorado ajudaramno a problematizar aspectos fundamentais da filosofia ocidental, influenciando na sua escolha da sociologia; e as contribuições originais àquilo que veio a ser chamado de “sociologia do corpo” e “sociologia do esporte”, talvez possam ser mais bem entendidas nesse contexto; mas, também pertinente, é o fato de ele ter sido um boxeador amador na juventude. Foi numa luta de boxe que ele perdeu um olho, por

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exemplo. Acima de tudo, ele se opunha à dicotomia “mente-corpo”, sustentando que a “mente” são as funções materiais e corporais de um cérebro complexo. Tampouco aceitava o preconceito comum, talvez particularmente forte nos “círculos intelectuais”, de que o esporte é um fenômeno “físico” de valor inferior aos fenômenos ligados ao domínio da “mente”. A teoria dos “processos civilizadores” geralmente é vista como sendo a contribuição mais importante de Elias à sociologia. Ele, porém, fez outras contribuições, como a teoria das relações de grupo “estabelecidos-outsiders” (1965, 1994).

Os aspectos centrais da abordagem “figuracional” de Elias podem ser assim resumidas: i. a convicção de que, assim como o universo em geral, os indivíduos humanos e as sociedades que eles formam são processos; ii. a ideia de que os processos vivenciados pelas sociedades até agora tenderam a ser “cegos”, especialmente no longo prazo, no sentido de serem as consequências não intencionais de agregados de atos individuais intencionais. Elias às vezes usou a metáfora da história como um trem expresso para ilustrar esse ponto. Ele tinha a esperança de que o conhecimento sociológico nos ajudaria a manter o “trem” da história sob um maior controle consciente. Tinha plena consciência, é claro, que sua ênfase na relativa falta de controle vai de encontro ao amor próprio das pessoas que preferem acreditar que estão sempre no controle; iii. a ideia de que as sociedades humanas consistem em indivíduos radicalmente interdependentes. Nascemos como resultado de um ato de nossos pais interdependentes numa coletividade estruturada ou mundo social – um mundo de interdependências ou figurações – que nós mesmos não criamos e que ocupa uma determinada posição histórico-geográfica, isto é, uma determinada posição no tempo e no espaço; iv. o quarto aspecto da abordagem sociológica de Elias é o argumento de que o poder é uma propriedade universal das relações humanas em todos os níveis de integração social, desde grupos de duas pessoas até a humanidade como um todo. O poder, segundo Elias, é: (a) uma função de vínculos de interdependência. O seu

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poder sobre mim é fundamentalmente uma consequência do grau de minha dependência em relação a você; (b) uma questão de equilíbrios ou proporções lábeis e cambiantes; e (c) não pode ser explicado apenas com referência a fatores únicos como propriedade dos meios de produção ou controle dos meios de violência. Elias também levou em conta os recursos de poder individuais, como força física e força intelectual, e os recursos estruturais de poder de coletividades, como os graus de unidade e coesão de um grupo. v. como quinto aspecto de sua abordagem, Elias destacou a necessidade, em sociologia, de uma constante via de mão dupla entre teoria e pesquisa. Segundo ele, a teoria sem a pesquisa tende a ser abstrata e sem sentido; a pesquisa sem a teoria, árida e descritiva; vi. Elias argumentou que os sociólogos deviam preocupar-se principalmente com a construção de um conhecimento confiável. Era terminantemente contra a intrusão de ideologias políticas, religiosas e de qualquer outra natureza na pesquisa sociológica e sugeriu que, por exemplo, ao pesquisar um tema como o hooliganismo no futebol – escolhi esse exemplo porque passei um longo tempo estudando o assunto – devemos pretender, primeiramente por meio do que chamou de “desvio via distanciamento”, construir um quadro, “congruente com a realidade”, sobre o hooliganismo no futebol e o que ele realmente envolve, e como e por que é socialmente e psicologicamente gerado. Depois, através de um processo que ele chamou de “envolvimento secundário”, devemos usar nosso conhecimento congruente com a realidade e tratar o problema com políticas mais realistas e eficazes; vii. A teoria dos “processos civilizadores” de Elias constitui o que ele chamou de “teoria central”, por meio da qual se podem estudar uma variedade de fenômenos aparentemente diversos e separados. Em seguida, farei uma breve apresentação dessa teoria.

Ao contrário de um equívoco muito difundido, Elias não usou o conceito de “processo civilizador” de maneira moralista ou avaliatória. E para sinalizar isso, ele também costumava usar o termo “civilização” e seus derivados, “civilizado” e

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“civilizador”, entre aspas. “Processo civilizador” era, para ele, um termo técnico. Ele não queria dizer com isso que pessoas mostradas em um nível mais avançado do processo civilizador que outras, por exemplo, nós em relação ao povo da GrãBretanha feudal ou da América do século XVIII, fossem, em algum sentido, “melhores do que” ou “moralmente superiores a” povos medievais ou do começo da Idade Moderna. É claro que, quase sempre, é assim que as pessoas que chamam a si próprias de “civilizadas” se veem. Mas, perguntava Elias, como podem as pessoas se vangloriar quando são beneficiárias do acaso num processo cego ou não intencional para o qual não contribuíram pessoalmente de forma significativa? Fazer essa afirmação por certo não é negar que, como tende a ser o caso com os processos sociais de um modo mais geral, existem vítimas bem como beneficiários dos “processos civilizadores”. Por exemplo, a abolição da pena de morte na GrãBretanha, na década de 1950, para todos os crimes exceto o de traição geralmente é visto como um desenvolvimento “civilizador”. Os carrascos/executores, porém, acabaram por ser destituídos de seu trabalho e as famílias e amigos de vítimas de assassinato foram privados daquilo que muitas pessoas naquela situação consideravam ser a única maneira apropriada de lidar com seu compreensíveis sentimentos de raiva e desejos de vingança.

Ao contrário de um argumento recentemente apresentado pelo sociólogo irlandês Tom Iglis, a teoria dos “processos civilizadores” é teórica e empírica na mesma medida. Empiricamente, baseia-se num substancioso corpo de evidências, principalmente no que diz respeito às mudanças nas boas maneiras das classes superiores seculares – cavaleiros, reis, rainhas, aristocratas da corte, políticos e líderes empresariais, mas não em grande parte o alto clero – entre a Idade Média e os tempos modernos até a Segunda Guerra Mundial. Elias observa que desde aquele período, especialmente a partir da década de 1960, começaram os processos descivilizadores. No que diz respeito ao período pré-guerra, os dados de Elias indicam que, nas sociedades mais importantes da Europa Ocidental – o foco principal eram França, Alemanha e Inglaterra – teve lugar um processo social cego, não planejado e não intencional, de longo prazo, envolvendo cinco grandes componentes inter-relacionados e interagentes, a saber:

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i. elaboração e refinamento de padrões sociais; ii. um aumento da pressão social para que as pessoas exercitem um autocontrole mais rigoroso, contínuo e equilibrado sobre seus sentimentos, comportamento e funções corporais; iii. um deslocamento do equilíbrio entre restrições externas e autorrestrições a favor desta última; iv. nos níveis da personalidade e do habitus, a “consciência” ou “superego” torna-se mais importante como reguladora do comportamento. Padrões sociais passam a ser profundamente internalizados e operam não só conscientemente e com base na escolha, mas também abaixo dos níveis da racionalidade e do controle consciente; v. controle cada vez maior sobre a violência e a agressão dentro das sociedades, mas não na mesma extensão nas relações entre elas. Segundo Elias, esse controle da agressão ocorreu ao mesmo tempo em que declinava a capacidade de sentir prazer em causar sofrimento aos outros e em testemunhar atos de violência. Ele referiu-se a isso como uma redução da Angriffslust – literalmente a diminuição ou contenção da ânsia de ataque: isto é, o controle do desejo consciente de obter prazer atacando outras pessoas e vendo-as sofrer, além de uma redução, nos níveis da personalidade e do habitus, de sua capacidade de fazê-lo. De acordo com Elias, isso estava associado a uma identificação mútua cada vez maior, ou seja, à solidariedade e compreensão recíprocas.

Os termos “violência e “civilização” tendem a ser popularmente entendidos como antíteses. No entanto, os processos civilizadores da Europa Ocidental foram vistos por Elias como consequências não planejadas de lutas violentas pela supremacia entre monarcas e senhores feudais. Essas lutas levaram ao estabelecimento, dentro dos estados nacionais europeus emergentes – em diferentes épocas e de diferentes maneiras – , de monopólios estatais da violência e da tributação, relativamente estáveis e eficazes, o principal meio de governo em sociedades com economia monetária e acima do nível tribal. Esses modernos estados nacionais foram formados em grande medida com propósitos de guerra, mas seus monopólios da violência e da tributação ajudaram seus governantes não só em relação a ataques e

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defesas externos, mas também no que diz respeito à pacificação interna. À medida que se tornavam internamente mais pacificados, a estrutura da personalidade e do habitus da maioria das pessoas tornava-se mais pacífica e isso refletia-se em muitos outros aspectos, naquilo que por volta do século XIX começaram a chamar de “esportes”. A evidência sugere que nesse particular desenvolvimento da terminologia, instituições de habitus e lazer começaram a se formar primeiramente na Inglaterra.

Resumindo, e com o risco de supersimplificá-la, pode-se dizer que, de acordo com a teoria de Elias, o processo civilizador basicamente é uma consequência de cinco processos-partes interdependentes e interagentes. São eles: I. formação do estado; II. pacificação sob o controle do estado; III. diferenciação social crescente e aumento das cadeias de interdependência; IV. crescente igualdade nas oportunidades de poder entre as classes sociais, homens e mulheres e entre as gerações (velhos e jovens); V. crescimento da riqueza

Elias também mostrou como, no curso do processo civilizador, lutas abertamente violentas tendem a ser transformadas em lutas relativamente pacíficas por status, poder e riqueza, quando frequentemente e para a maioria das pessoas impulsos destrutivos são mantidos, na maior parte das vezes, abaixo do limiar da consciência e não são traduzidos em ação explícita. Essas lutas por status parecem ter desempenhado um papel importante no desenvolvimento divergente do futebol e do rúgbi (Dunning & Sheard, 1979, 2005).

Criticando e Testando Elias

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Provavelmente é justo dizer que no momento a sociologia, talvez especialmente no Reino Unido, é caracterizada pela predominância do que poderíamos chamar de cultura da discussão e da crítica sobre a cultura da pesquisa e da testagem. Essa situação parece ter surgido com a emergência da teoria social em oposição à sociológica, e os vários constituintes do que passou a ser conhecido por “estudos culturais”. Norbert Elias, obviamente, era totalmente favorável à discussão e à crítica, mas sempre insistiu que deveriam vir acompanhadas e, de fato, subordinadas à pesquisa e aos testes.

Ao enfatizar a necessidade de testar os conceitos e as teorias sociológicas, Elias não estava defendendo, no sentido de Comte, o inventor do termo, o que erroneamente veio a ser chamado de visão “positivista” da disciplina. Elias tinha uma visão abrangente dos métodos e referia-se à “metodologia” – a ideia de ciência do método – como invenção de filósofo. Em vez disso, ele insistia na necessidade do que chamou de uma “constante via de mão dupla” entre pesquisa e teoria. Uma consequência disso é que seus conceitos e teorias, como os das ciências naturais, estão mais permeados de observação factual, e daí serem menos abstratos, do que costuma ser o caso em sociologia. Uma grande parte do trabalho de Talcott Parsons imediatamente nos ocorre como exemplo de teorização abstrata.

A dependência dos fatos nos conceitos e teorias de Elias tem sido um dos motivos que os levaram a ser chamados de construtos puramente descritivos e “não exploratórios”. Apontando na mesma direção está o fato de que Elias argumentava contra a adequação de explicações que recorriam a causas, fatores e leis no nível de integração social humano. Tais explicações podem ser apropriadas, segundo Elias, no que diz respeito aos níveis físicos e químicos do universo observável, que são relativamente simples e de transformação lenta em termos estruturais. Ao contrário, nos níveis biológico e social humano, mais complexos e de rápida transformação, são necessárias explicações em termos de “estrutura-e-processo”. A teoria da evolução de Darwin é um exemplo. Outro exemplo são as teorias interconectadas dos processos civilizadores e da formação do estado de Elias (Elias, 1974; 1978; 2000).

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A insistência de Elias com a testabilidade de seus conceitos e teorias parece contradizer um julgamento muito disseminado. Por exemplo, Dennis Smith argumentou em 1984 que a teoria dos processos civilizadores “não é refutável” (Smith, 1984). Esse argumento foi reproduzido por Edmund Leach, o antropólogo, dois anos depois, ao sugerir que a teoria é impermeável a testes” (Leach, 1986). Outro antropólogo, Gary Armstrong, igualmente escreveu, em 1998, que a teoria de Elias “é uma fusão de generalizações não testáveis e descritivas” (Armstrong, 1998: 317), e o ex-pós-modernista, Richard Giulianotti, chegou a dizer em 1999 que Elias introduziu o conceito de “surtos descivilizadores” para “refutar . . . contraevidências” (Giulianotti, 1999: 45).

É fácil mostrar que esse tipo de argumento é oportunista e errôneo. É oportunista porque envolvem versões da falácia do espantalho sobre os conceitos e teorias de Elias construídas para dar suporte a pretensões exageradas quanto ao caráter inovador e à importância do trabalho do autor. Esses argumentos são errôneos porque desde o início a teoria de Elias era sobre os processos “descivilizadores” e também “civilizadores”. Ver, por exemplo, sua discussão sobre a “feudalização” (Elias, 2000: 195-236). Também é testável em vários níveis e de diferentes maneiras. Seguem alguns exemplos ilustrativos. Stephen Mennell (1985) tentou fazer um teste limitado da teoria por meio de um estudo comparativo do desenvolvimento de hábitos de paladar e alimentação na Inglaterra e na França. Depois ele se envolveu numa tarefa mais ampla de testar, modificar e expandir a teoria com referência à história e ao desenvolvimento social dos Estados Unidos (Mennell, 2007). Uma estratégia semelhante para testar e estender a teoria pode ser encontrada no texto de Johan Arnason sobre o Japão, Stauth sobre Cingapura (1997), Fred Spier sobre o Peru (1994), Rasing sobre os inuit (1994) e Helmut Kuzmics sobre a Áustria e a Inglaterra (2000). Exemplos de testagem e ampliações da teoria no contexto da história europeia são por demais numerosos para serem citados. Um exemplo mais antigo é nossa tentativa, minha e de Elias, de testar a teoria numa esfera limitada com nossos estudos sobre o desenvolvimento dos esportes (ver também Dunning et al., 2000). É claro que, como pai da teoria e um de

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seus alunos, pode-se argumentar que Elias e eu não teríamos o mesmo interesse em procurar exemplos desconfirmadores que o autor de uma teoria rival. No entanto, tentamos procurar evidências com a mente aberta e não sabíamos, antes das investigações, que nossos resultados seriam em grande parte coerentes com a teoria. Outros testes foram executados por Johan Goudsblom (1992) em relação ao controle humano do fogo; Jason Hughes (1996;2002) sobre o desenvolvimento dos hábitos tabagistas; Cas Wouters (1997; 1986; 1987; 1990; 1991; 1995; 1999) sobre a informalização; Wilbert Van Vree sobre encontros; Ivan Waddington (2000), Waddington e Patrick Murphy (1992) sobre esporte e drogas; e Joe Maguire (1999) sobre a globalização do esporte.

Para que possam ser considerados adequados, futuros testes da teoria de Elias terão que distinguir entre dois aspectos: suas conclusões a respeito da direção geral do processo civilizador europeu e suas conclusões sobre sociogênese e psicogênese. Quanto à questão da direção, a teoria de Elias seria refutada se pudesse ser mostrado que a tendência geral na Europa durante o período considerado – aproximadamente da Idade Média até uns vinte anos após a Primeira Guerra Mundial – foi num sentido descivilizador na Grã-Bretanha e na França. Ele começou a rastrear o desenvolvimento descivilizador da Alemanha em Über den Prozess der Zivilisation (1939) e aprofundou a análise em Studien über die Deutschen (1989) (Estudos sobre os Alemães). Os desenvolvimentos descivilizadores na Grã-Bretanha e na França desde aquela época não refutariam a teoria nem exigiriam que fosse substancialmente revisada, a não ser que se pudesse mostrar que esses desenvolvimentos haviam ocorrido como resultado de mudanças que, segundo a teorização de Elias, nos levassem a esperar consequências de natureza civilizadora. Em outras palavras, a demonstração da ocorrência, na Europa Ocidental, de transformações descivilizadoras de maior ou menor impacto durante e após a Segunda Guerra Mundial não constituiria, ipso facto, uma refutação de Elias.

Isso nos leva ao segundo aspecto. Para testar a teorização de Elias sobre a sociogênese e a psicogênese do processo civilizador europeu, será preciso prestar atenção ao modo como ele teorizou o complexo entrelaçamento, de um lado, dos

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desenvolvimentos sociais estruturais, como formação do estado, pacificação sob controle estatal, crescimento do comércio e da riqueza e a monetarização das relações sociais, alongamento das cadeias de interdependência e democratização funcional; e, de outro, desenvolvimento normativo e comportamental ao nível das boas maneiras e de habitus. Nesses aspectos, também se deve atentar para o equilíbrio de semelhanças e diferenças no desenvolvimento de áreas culturais, nações, classes, regiões, minorias étnicas, etc. Em resumo, o objetivo sempre deveria ser aprofundar o nível de conhecimento e compreensão além do que nos foi legado por Elias. Isso deveria envolver a investigação de áreas geográficas, culturais e históricas e problemas até aqui não explorados, e o desenvolvimento, se necessário, de novos conceitos e proposições explanatórias.

Falta discutir mais uma questão no contexto deste capítulo. Uma crítica recorrente de Elias e sua “escola” com o passar dos anos tem sido que somos, com efeito, uma “seita”, e que “adoramos” em primeiro lugar Elias, como uma figura carismática, e em segundo lugar seu trabalho, em vez de criticá-lo e testá-lo. Talvez existam, é claro, alguns “eliasianos” cujo comportamento às vezes é sectário, assim como há marxistas, parsonianos e foucauldianos sectários. Na minha opinião, porém, esse tipo de crítica origina-se, pelo menos em parte, da recusa do que se poderia chamar de “eliasianos radicais” em aceitar interpretações manifestamente falsas do trabalho de Elias, como o de Tonny Siddens, segundo o qual ele era um teórico da “evolução ou do “progresso” (Giddens, 1984; Horne e Jay, 1987; Williams, 1991), ou que a teoria dos processos civilizadores é simplesmente uma variante de teorias da “modernização” (Smith, 2001). Acrescenta-se a esse fato que os “eliasianos radicais” têm criticado regularmente aspectos do trabalho de Elias. Embora, em minha opinião, o núcleo de seu trabalho seja inovador, ocasionalmente ele cometia pequenos erros conceituais e factuais. Para concluir, vejamos alguns que eu mesmo encontrei.

Comecei a desenvolver uma crítica de Elias já em 1968-9, quando argumentei que deveríamos ter dado maios atenção, em nossos ensaios de 1969 e 1972, The Quest for Excitement in Leisure (A Busca por Excitação no Lazer) e Leisure in the

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Sparetime Spectrum (Lazer no Espectro do Tempo Livre) (1986; 2008) às questões de identidade e identificação, pois o envolvimento do ego e as identificações significativas são precondições essenciais para despertar a excitação prazerosa no contexto do esporte e de eventos de lazer. Para que haja excitação emocional, para “por em movimento as engrenagens da paixão”, é preciso haver interesse (ver também Dunning, 1999). Posteriormente, sugeri que, no Processo Civilizador, Elias trabalhou com um conceito de violência por demais genérico e não diferenciado, e que ele falhou em reconhecer que está implícita em seu trabalho a ideia de um contínuo que vai da violência expressiva, com alta carga afetiva, de um lado, até um tipo de violência mais impassível, racional e instrumental, de outro (Dunning em Elias e Dunning, 1986). Em meu livro Sport Matters (Esporte é Importante) (1999), também critiquei a discussão de Elias sobre o esporte como um antídoto para as “tensões do estresse”, e argumentei que tínhamos deliberadamente arquivado aquela questão espinhosa em nosso trabalho anterior porque um nível muito alto de estresse afeta negativamente o desempenho esportivo (dunning, 1999: 35). Finalmente, em nosso ensaio conjunto, On the Balance Between “Civilizing” and “De-civilizing” Trends in the Social Development of Western Europe: Elias on Germany, Nazism and the Holocaust (Sobre o Equilíbrio entre Tendências “civilizadoras” e “Descivilizadoras” no Desenvolvimento Social da Europa Ocidental: Elias sobre a Alemanha, Nazismo e Holocausto) (1998), Stephen Mennell e eu concordamos com a opinião do sociólogo figuracional austríaco, Helmut Kuzmics, quendo este sugeriu, sobre o estudo de Elias a respeito dos alemães, que: “Em alguns aspectos, a interpretação de Elias parece ter um viés prussocêntrico, ‘Kleindeutsch’ e protestante” (Kuzmics, 1994: 11, 12). E com essa questão, termino esta parte do meu capítulo e passo para uma análise de nossas tentativas, minha e de Elias, de contribuir para uma sociologia do esporte. Mennell e eu escrevemos: Tal julgamento é plausível e vale uma pesquisa. Poderia ajudar a explicar lacunas

no trabalho de Elias, como não procurar explicação para certos fatos, por

exemplo, o partido nazista ter se originado em Munique e seu líder ter sido um austríaco. A

plausibilidade do julgamento de Kuzmics é reforçada, em nossa

opinião, pelo fato de se desenvolvimento social e

basear no pleno conhecimento da história da Alemanha, no em fontes pertinentes. Emerge de pesquisa original

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e não expressa soluções paliativas essencialmente filosóficas/ideológicas . . . (Dunning e Mennell, 1998).

“Testando” Elias: Aspectos da Violência numa Perspectiva de Longo Prazo

Este capítulo baseia-se principalmente em fontes secundárias e se divide em partes que,

em alguns aspectos, encontram-se apenas remotamente relacionadas. Na

primeira parte, são exploradas algumas questões conceituais ligadas ao difícil problema de definir “violência” e o termo relacionado “agressão". Na segunda parte, minha discussão torna-se mais concreta e envolve uma aplicação teórico-empírica de algumas das distinções introduzidas na primeira parte, especialmente aquelas relacionadas às dimensões afetivas da violência e a questão da violência como um jogo. Mais particularmente, essas distinções são usadas para lançar alguma luz sobre aspectos das histórias de guerra, “genocídio”, crimes violentos, punições e violência relacionada aos esportes e ao lazer.1 Faço uso extensivo de citações das fontes secundárias utilizadas, e isso para possibilitar que outros julguem por si mesmos se usei corretamente ou não as fontes citadas.

É importante fazer duas advertências logo de início. A primeira é que, embora a guerra, o “genocídio”, o crime violento e o esporte tenham sido, ao longo da história, atividades predominantemente masculinas, as mulheres às vezes também estiveram envolvidas com destaque. Examinarei as dimensões de gênero na violência. Minha segunda advertência é que a lista de atividades pode parecer para alguns como uma mistura confusa de questões não relacionadas ou apenas parcialmente relacionadas. Procurarei mostrar, porém, que há semelhanças e talvez conexões entre algumas delas, que nem sempre foram reconhecidas, e que se tornarão mais claras se: (I) as questões forem vistas de uma perspectiva de longo prazo; (II) forem explorados os níveis e dimensões emocional/afetivo e não apenas racional/cognitivo;

142

(III)

a existência daquilo que, para alguns tipos de pessoas em condições

específicas, são formas divertidas e agradáveis de violência e agressão, tanto ao nível factual quanto da fantasia, for mais explicitamente reconhecida do que em contribuições ao estudo da violência realizadas no passado; e (IV)

as dimensões tecnológicas da violência e suas ramificações sociais e

psicológicas, como parte de um campo social, forem explicitamente enfatizados.

Do começo ao fim, a palestra tratará das implicações das questões relativas à teoria sociológica, especialmente a teoria dos “processos civilizadores” de Elias. Essa teoria e as premissas básicas em que se apoia formarão boa parte da discussão. De fato, conforme sugere o título, o capítulo pode ser visto como um “teste” da teoria de Elias num sentido não positivista. Começarei focalizando uma crença contemporânea profundamente arraigada.

Uma Crença Contemporânea Profundamente Arraigada Muitos acreditam que estejamos vivendo num dos períodos mais violentos da história. De fato, provavelmente é justo dizer que, pelo menos nas sociedades ocidentais, o medo de que possamos atualmente estar passando por um processo “descivilizador”, sobretudo de crescente violência, encontra-se profundamente impresso no Zeitgeist contemporâneo, uma das crenças dominantes de nosso tempo. No capítulo de abertura do recém-publicado International Handbook of Violence Research (Manual Internacional de Pesquisa sobre a Violência), por exemplo, os editores Heitmeyer e Hagan escreveram que: “Nas sociedades ocidentais, o sonho de uma era moderna não violenta choca-se com uma realidade que é maciçamente ofuscada, se não totalmente mergulhada nas trevas, por atos explícitos de violência e pelo potencial da destruição...” Coerentemente com o que foi dito, relatou-se o seguinte em The Observer, um jornal britânico, em 13 de novembro de 2005: Segundo . . . um dos principais especialistas em comportamento dos jovens, a cultura da violência na Grã-Bretanha é responsável por uma epidemia de bullying nas escolas que

está devastando as vidas de milhões de crianças. Em sua primeira

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grande entrevista como o novo Comissário para a Infância na Inglaterra, Al Aynsley Green . . . disse:

“Não tenho nenhuma dúvida de que as crianças

estão sendo criadas numa sociedade em que a violência é a norma em muitos aspectos. Aqui incluo a violência na televisão, no

local de trabalho e no lar”.

Crenças semelhantes têm se manifestado pelo menos desde a década de 1970. Por exemplo, os psicólogos Eysenck e Nias escreveram em 1978 sobre “uma série de fatos”

que, segundo eles, “ajudaram a convencer muitas pessoas de que a

civilização em que vivem pode estar correndo perigo de ser mergulhada numa enxurrada de crimes e violência” (Eysenck e Mias, 1978: 17). De um ponto de vista figuracional, é claro, a “civilização” sempre se defrontou potencialmente com o perigo do colapso. Controles “civilizadores” são aprendidos e constituem não mais que uma camada relativamente fina. É por isso que sociólogos figuracionais enfatizam a necessidade de melhor entender não somente os “processos civilizadores”, mas também os processos “descivilizadores.3

Argumentando de uma perspectiva psicológica diferente da de Eysenck e Nias, o sociólogo Peter Marsh declarou, também no final dos anos 70, que os então recentes desenvolvimentos sociais na Grã-Bretanha tinham levado a um declínio nas oportunidades para “a violência ritual socialmente construtiva” – que ele chamou de “aggro” – com a consequência do aumento da violência descontrolada e destrutiva. Usando uma variante da distinção feita por Erich Fromm entre agressão “benigna” e “maligna” (Fromm, 1977), Marsh argumentou que havia ocorrido um “desvio da violência ‘boa’ para a violência ‘má’”. As pessoas, disse ele, estão “tão violentas como sempre foram, mas a agressão, como sua expressão, torna-se menos ordenada, tem mais sangue como consequência” (Marsh, 1978a: 142). Como é possível, sem um estudo histórico, chegar à conclusão que a agressividade é uma quantidade historicamente fixada, é algo que Marsh não nos diz. Evidentemente, pelo menos nesse aspecto, ele desceu da ciência para a ideologia.

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Dose semelhante de ideologia alarmista repetiu-se num julgamento sobre esporte feito pelo jornalista australiano Don Atyeo, em 1979. Atyeo detectou fortes paralelos entre tendências no esporte moderno e tendências em suas contrapartes na Roma antiga. Ele argumentou que está ocorrendo uma tendência autodestrutiva no sentido de uma escalada da violência no esporte moderno, principalmente como resultado das demandas de espectadores em busca de sensações. O que ele escreveu permanece como uma das expressões mais claras de uma crença ainda muito comum. Por causa disso, vale a pena citá-la. Assim expressou Atyeo sua visão apocalíptica: O futuro dos esportes violentos parece assegurado. Os jogos ficarão mais duros e sanguinários para alimentar o apetite crescente de um público

que

ficará

cada vez mais farto e saciado de violência, e ele próprio cada vez mais violento, até que

talvez algo aconteça e tudo venha abaixo. Desta vez, porém, a

probabilidade é

que não serão hordas de bárbaros, golpeando os portões, que irão

destruir o Coliseu. Agora a dos muros do

violência será do próprio esporte e virá de dentro

próprio Coliseu (Atyeo,

1979: 377).

Um dos pontos que sustentarei nesta palestra será que, embora atualmente exista sem dúvida uma tendência cada vez maior à violência tanto no esporte como em outras áreas, diagnósticos como os de Eysenck, Nias, Marsh, Atyeo e Aynsley envolvem elementos de sensacionalismo e exageram a extensão e a seriedade da tendência em maior ou menor grau. Espero que uma discussão sobre algumas questões conceituais e teóricas ajudem a preparar o terreno para que se possa mostrar por que isso acontece.

Para uma Tipologia da Violência Humana Os tipos de violência em que os humanos se envolvem são diversos e complexos. Recentemente, De Haan e Spierenburg, por exemplo, defenderam abordagens que consideram a “violência”, respectivamente, como um “conceito basicamente contestado” (De Haan, 2005), mas que deveria restringir-se unicamente a “ataques físicos”, e que provavelmente não é aplicável a animais não humanos (Spierenburg,

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2005). Elementos residuais do dualismo metafísico “mente-corpo” estão presentes em ambas as abordagens, e podem de fato ser vistos quando De Haan, em sua conclusão, faz distinção entre violência “física” e “não física”, enquanto Spierenburg nos diz que está “defendendo uma definição restrita de violência, que basicamente se limita à invasão da integridade física de uma pessoa”. Embora ambos os autores provavelmente o negassem, de fato é inerente a suas abordagens, e trata-se de um pensamento muito moderno nessa área, a ideia de que fenômenos como a “violência verbal” e a “crueldade mental” de algum modo sejam “não físicos”. Isso levanta a seguinte questão: onde eles residem? No “reino do espírito”? No “céu”, como na teoria das formas de Platão? No éter? Vistas do ponto de vista científico, é claro, a “mente” e as “emoções” são funções do nosso corpo físico. Além disso, a produção e recepção de sons envolvem processos físicos, e as experiências “racionais” e “emocionais” dos indivíduos estão “incorporadas” e, portanto, também são “físicas”.

Embora Elias usasse os conceitos de violência e Gewalt de um modo geral e indiferenciado, quero sugerir que uma aplicação exaustiva de sua abordagem sociológica ou figuracional sobre processos, que trata de equilíbrios dinâmicos, gradações e graus, e não entra em choque com o “dualismo mente-corpo”, pode nos ajudar a entender melhor as questões envolvidas do que seria possível ao se procurar por uma definição de violência única e universal, ou uma estreita faixa de definições polêmicas. Mais particularmente, será dado, sem dúvida, um passo para uma compreensão mais abrangente da violência se estabelecermos distinções entre formas separáveis e dimensões da violência em termos dos seguintes critérios: (I) O meio empregado; (II) Os motivos e os valores dos atores; (III) Os estados psicológicos dos atores, especialmente seus níveis de excitação emocional psicofísica e os graus de intencionalidade, racionalidade e controle envolvidos em suas ações; e (IV) Os parâmetros sociais em que a violência ocorre. Esses parâmetros incluem: as normas, disposições de valor e ideologias características de grupos específicos e que

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operam em determinados ambientes sociais; o tamanho, as qualidades e os graus da integração e da organização dos campos sociais onde ocorre a violência, e finalmente, o grau em que é estabelecido um monopólio eficaz da força física em um nível societal. Na “realidade”, isto é, no mundo social empírico das experiências, essas formas e dimensões da violência, analiticamente separáveis, tendem a se fundir e a se sobrepor. Elas não são nem totalmente distintas nem “puras”. Consequentemente, na maioria dos casos, se não em todos, trata-se de uma questão de gradação ou grau, e não de simples dicotomias. Sendo assim, podem ser feitas, pelo menos provisoriamente, as seguintes distinções entre as formas e as dimensões da violência humana: 1. Se a violência é “efetiva”/”real” ou “simbólica”, isto é, se assume a forma de um ataque direto e explícito ou simplesmente assume uma forma verbal ou uma postura gestual/facial que intencionalmente ou não intencionalmente faz aumentar o medo dos recipientes ou vítimas. Vale observar que ataques físicos, por exemplo, em roubos ou guerras, geralmente são acompanhados de violência verbal, gritos e/ou berros e faces contorcidas por parte dos agressores. Expressões faciais recorrentes também se incorporam em nível de habitus, como mostrou Elias no caso dos guerreiros medievais (Elias, 2000: 161ff). É claro que em casos como atentados terroristas com bombas, bombardeios suicidas e crimes violentos como roubos a bancos, os autores geralmente precisam exercitar um extremo autocontrole sobre suas próprias ansiedades e tentar disfarçar suas intenções violentas até o momento do ataque. Eles não costumam se mostrar fisicamente agressivos. Ataques físicos violentos também podem vir acompanhados de sinais faciais e fisiopsicológicos de prazer e excitação.O grau em que um ataque físico e/ou verbal é experimentado como violento também depende, até certo ponto, da idade, da constituição física da vítima ou vítimas. Isso porque a tolerância das pessoas à dor física, violência verbal e ansiedade varia de uma pessoa para outra e ao longo da vida. Por exemplo, parece razoável a hipótese de que, ceteris paribus, crianças pequenas e idosos e pessoas que de outra forma são fisicamente fracas e/ou possuem egos fracos tenderão a ser mais propensos, do que pessoas fisicamente mais fortes e mais autoconfiantes, a experimentar investidas verbais e não somente “físicas” como algo intrusivo e destrutivo;

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2. Se a violência assume a forma de um “jogo” ou de uma “simulação”, ou se é “séria” ou “real”. Essa dimensão sobrepõe-se claramente à dimensão (1). Também poderia ser captada pela distinção entre “violência ritual” e “violência não ritual”, introduzida por Peter Marsh e colaboradores (1978b), embora seja preciso observar que, pace o que eles argumentam, tanto o ritual quanto a brincadeira podem, ambos, ser seriamente violentos na intenção e no conteúdo. Os hooligans radicais do futebol, por exemplo, os principais grupos que Marsh e seus coautores estavam considerando, invariavelmente procuram ferir fisicamente seus oponentes, e frequentemente são bem-sucedidos; 3. Se armas são usadas ou não, e onde elas estão; o nível de conhecimento e especialização tecnológica envolvidos em sua fabricação, p. ex., espadas, arcos e flechas em contraste com mísseis nucleares; 4. Onde armas são utilizadas, se os combatentes estão em contato direto. Relacionado a essa dimensão, está o grau de distanciamento físico entre combatentes que não se encontram em contato direto, e especialmente se são capazes de ver e/ou ouvir uns aos outros, ou não; 5. Se há animais envolvidos na violência, sejam como alvos/vítimas de agentes humanos ou como ajudantes treinados. Na caça à raposa, por exemplo, as raposas são os alvos/vítimas, enquanto os cães são os matadores treinados por instrutores humanos. Do mesmo modo, nas guerras das Idades Antiga, Média e Moderna, cavalos, e em alguns casos camelos e elefantes desempenhavam um papel crucial; 6. Se a violência é planejada e intencional ou uma consequência acidental de uma sequência de ações que no começo não eram intencionalmente violentas. Por exemplo, se gestos e linguagem pacificadores não forem prontamente expressados, uma colisão acidental entre duas pessoas que caminhavam pela rua ou jogavam uma partida de futebol poderá causar ações física e verbalmente violentas; 7. Se se trata de uma violência iniciada sem provocação ou em resposta retaliatória a um ato intencionalmente ou não intencionalmente violento, ou talvez a um insulto real ou percebido, uma expressão facial agressiva ou uma postura corporal ameaçadora;

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8. Se a violência é legítima, no sentido de estar de acordo com um conjunto de regras, normas e valores socialmente prescritos, ou se é não normativa ou ilegítima, no sentido de envolver contravenção de padrões socialmente aceitos. Uma subcategoria dessa dimensão envolve o uso ilegítimo da violência por parte de agentes oficialmente autorizados por um Estado, por exemplo, o uso da violência pela polícia ou por militares, num Estado democrático, para obter informação ou confissão. 9. Se a violência assume uma forma mais “racional” ou mais “emocional”, isto é, se é racionalmente escolhida como um meio para atingir um determinado objetivo ou meta, ou se é um “fim em si mesmo” que gera excitação, prazer e satisfação. Outra maneira de conceitualizar essa dimensão seria distinguir entre violência nas suas formas mais “instrumentais” e mais “expressivas”; 10. E, por fim, neste contexto, embora a violência possa ser autoaplicada, esteja a pessoa só ou em companhia, quase sempre a violência é dirigida aos outros e ocorre no contexto de um campo social caracterizado por cadeias ou redes de interdependência que variam em termos de extensão, densidade, graus de organização e do equilíbrio dentro delas entre pressões centrípetas e centrífugas.4

Seguindo Max Weber, alguns sociólogos chamariam essas distinções de “tipos ideais”, mas é preferível , de um ponto de vista figuracional, conceitualizá-los em termos de polaridades e equilíbrios interconectados. Farei uma breve discussão sobre o conceito de agressão.

Uma Visão Figuracional do Conceito de Agressão “Agressão” é um termo que vem da psicologia, e é possível usá-lo num sentido construtivo, enquanto “violência” é um termo popular que invariavelmente é usado com conotações negativas. Exemplos – ambos já mencionados – são a distinção feita por Erich Fromm entre agressão “benigna” e “maligna”, e a derivação de “aggro” de “agressão”, feita por Peter Marsh para se referir à violência, por exemplo, dos hooligans do futebol, que ele vê como ritualizada e socialmente

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construtiva.

No entanto, estou menos interessado em sutilezas terminológicas.

Prefiro discutir a ideia de autores como Freud e Lorenz de que os humanos têm um “impulso agressivo” ou instinto. Elias escreveu convincentemente sobre essa questão de um ponto de vista mais sociológico e, portanto, mais congruente com a realidade. A ideia de que os humanos possuem um impulso agressivo inato estruturalmente semelhante ao sexo e à fome, segundo Elias, é uma maneira falsa de apresentar o problema. O que de fato temos é um “potencial inato para dar uma diferente orientação a todo o (nosso) aparato físico se nos sentirmos ameaçados”. Esse é o assim chamado “mecanismo de luta ou fuga”, através do qual o corpo humano reage ao perigo com um ajuste automático que o condiciona para um “intenso movimento dos músculos esqueletais, como num combate ou fuga”. De acordo com Elias, porém, os “impulsos” humanos, tais como a fome e o sexo são liberados fisiologicamente, e “independem, até certo ponto, da situação real” em que as pessoas se encontram. Por outro lado, a orientação da economia do corpo “para a prontidão do combate ou da fuga é condicionada em grande parte por uma situação específica, seja presente ou recordada”. Essas situações podem ser “naturais”, por exemplo, um ataque de um animal selvagem, ou social, especialmente um conflito.5 Entretanto, numa oposição consciente a Freud, Lorenz e outros que atribuem um impulso agressivo às pessoas, semelhante ao impulso sexual, não é a “agressividade”, dizia Elias” que dispara os conflitos que “dão início à agressividade” (Elias em Keane, 1988: 177-8). Havia nisso, é claro, um grau de exagero retórico. Elias não teria negado que alguns conflitos resultam da perturbação de indivíduos agressivos. Ele também enfatizou a interdependência de diferentes impulsos humanos (Elias, 1939; 2000: 161). Em outras palavras, ele estava consciente da interligação entre sexo, fome e sede e a agressão, particularmente se a satisfação daqueles for frustrada. O que antes de tudo ele queria fazer era contrapor-se ao tosco reducionismo psicológico envolvido na noção de “instinto agressivo”. Resumindo, Elias era de opinião que se o “mecanismo de luta ou fuga” é dirigido a lutar ou fugir, isso é fundamentalmente uma questão de aprendizagem cultural e social. Mais particularmente, é uma questão do grau em que os valores da sociedade ou grupo onde o indivíduo nasceu ou do qual posteriormente se tornou um membro, p. ex., através da imigração, enfatizam o polo violento em oposição ao polo pacífico do contínuo entre os meios

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extremamente violentos ou totalmente pacíficos de tratar de tensões ou conflitos. Aplicando alguns dos tipos de distinções que discuti, vejamos agora a questão da guerra vista numa perspectiva de longo prazo.

Algumas Reflexões Sociológicas sobre a Guerra em uma Perspectiva de Longo Prazo Proponho que examinemos quatro importantes argumentos e questões: 1. O argumento apresentado com mais clareza recentemente pelo sociólogo alemão Hans Joas de que a teoria dos “processos civilizadores” de Elias está sujeita a duas interpretações contraditórias; 2. A antiga afirmação, que reaparece na sociologia, antropologia e arqueologia desde a década de 1960, de que é enganoso, como o fez Elias, referir-se aos “processos civilizadores” como algo que envolve “pacificação”, porque o oposto é verdadeiro. De acordo com os partidários dessa visão, longe de levar à pacificação, as civilizações constituem uma das principais causas, se não a principal causa, da violência e da guerra; 3. A visão de guerra “primitiva”, mais congruente com a realidade, especialmente entre os cheyennne, apresentada por Bryan Turner (2003) em seu ensaio sobre o “carisma do guerreiro”, um contexto em que ele também propõe uma crítica de Elias, em grande parte construtiva; e, em quarto lugar, a ideia de que a indubitável extrema violência das guerras modernas também refuta a teoria de Elias. Examinemos o livro de Hans Boas, War and Modernity (Guerra e Modernidade), publicado em 2003.

Interpretando Elias: Guerra e Modernidade de Hans Joas Sem sombra de dúvida, em todos os aspectos, menos um, Guerra e Modernidade (2003), de Hans Joas, apresenta importantes contribuições ao campo dos estudos sobre a violência. A exceção está relacionada a sua interpretação de Elias. Joas

151

argumenta convincentemente que “a guerra e a violência fazem parte da modernidade e não só de sua pré-história” (Joas: 43). Obviamente que isso contradiz a crença de precursores da sociologia, como Comte e Spencer. Para Joas, a crença numa modernidade pacífica não morreu com os assim chamados “pais fundadores”, mas continua a ser sustentada, de modo mais ou menos explícito, por defensores contemporâneos da “teoria da modernização”. Segundo ele:

Antes de tudo, a teoria da modernização supõe, de modo mais ou menos explícito, que a

modernidade é pacífica. A transição da luta violenta para um

modo pacífico de lidar

com conflitos, dentro das sociedades, tem sido essencial

para essa definição de

sociedade moderna. Mas não apenas as soluções pacíficas

para os principais conflitos

que ocorrem dentro dos Estados, por meio de

procedimentos políticos não violentos, são

consideradas modernas; acredita-se

também que o crime individual mudou de atos espontâneos de formas emocionalmente controladas, por exemplo, nos

violência para

crimes relacionados à

propriedade.6 A teoria da civilização de Norbert Elias, com sua

afirmação de

que o aumento no controle das emoções coincidiu com o crescimento da complexidade das relações sociais, é um exemplo (Joas, 2003: 45).

Isso envolve uma distorção comum de parte da argumentação de Elias. O que este realmente sugeriu, com base no estudo comparativo de um vasto corpo de dados de várias nações, foi que, em primeiro lugar, no começo do século XX, membros da classe alta secular das sociedades dominantes da Europa Ocidental – Inglaterra, França e Alemanha – sofreram pressões sociais cada vez maiores para exercitar um autocontrole mais rígido, equilibrado e contínuo de seus sentimentos e comportamento à medida que a sociedade se transformava de Estados feudais, passando por Estados dinásticos, em Estados nacionais urbano-industriais . . . Mais tarde essas pressões espalharam-se, de modo mais ou menos irregular, descendo na escala social. Joan continua e sinaliza que, até certo ponto, está ciente da natureza problemática desse aspecto do seu argumento, adicionando em nota de rodapé que:

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Tenho consciência de que, ao contrário de minha forte ênfase na linearidade das suposições de Elias quanto a uma crescente complexidade nas relações sociais e um

controle cada vez maior das emoções, há interpretações que se

concentram nas

constelações internacionais e suas contingências (Joas, 2003:

202).

O foco nas constelações e nas “contingências” internacionais, no sentido de “processos cegos”, cujas consequências – pelo menos no atual nível de compreensão – não podem ser previstas, mas que podem ser explicadas retrospectivamente, sempre fez parte da argumentação de Elias (1978: 158ff; 2000: 436ff). Qualquer interpretação que argumente de outra maneira simplesmente está errada. Mais adiante em seu texto principal, Joas muda de tática e nos diz que:

. . . o trabalho clássico [de Elias] sobre os processos civilizadores afirmava um processo linear da monopolização da violência e o aumento do controle efetivo na estrutura da

personalidade. No entanto, seu trabalho posterior permite uma

interpretação bem

diferente, já que segue na direção de uma reflexividade do

processo civilizador, a

substituição

da

mera

compulsão

interna

por

responsabilidade e reflexividade (Joas, 2003: 167).

É completamente razoável supor que o pensamento de Elias amadurecesse ou pelo menos mudasse na medida em que ele envelhecesse. No entanto, se isso aconteceu, quaisquer mudanças após a publicação inicial de Über den Process der Zivilisation em 1939 foram relativamente marginais. Elias estava na casa dos 40 quando escreveu o livro; este, portanto, não era nenhum trabalho “inicial” ou dos tempos da “juventude”, no sentido que Joas poderia ter sugerido. Além do mais, a primeira e a segunda descrição de Joas, acima citadas, carecem de qualquer referência ao controle da violência e à formação do Estado, enquanto na terceira falta qualquer referência à “complexidade estrutural” ou, mais propriamente, ao aumento e à crescente densidade e complexidade das cadeias de interdependência. Ambos – pacificação sob a égide de Estados cada vez mais poderosos, e o correlativo

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aumento e crescente densidade e complexidade das cadeias de interdependência, que cada vez mais assumiram formas monetárias, e também outras formas –, segundo Elias, contribuíram vigorosamente para as mudanças ao nível de “estrutura da personalidade” ou Habitus (o termo original de Elias em alemão) experimentadas como “civilizadoras” e “racionalizantes”, no sentido de envolver uma pressão social cada vez maior sobre as pessoas para que exercitem a prudência e o autocontrole. No

entanto,

embora

ele

pensasse

esses

“processos

cegos”

como

não

intencionalmente “direcionais”, no sentido, por exemplo, de envolver mudanças para maiores ou menores níveis de “civilização” ou maiores ou menores níveis de complexidade estrutural, Elias não os via como “lineares” e certamente não como “não lineares”, pelo menos num sentido simples e constantemente “progressivo”. No presente texto, será suficiente apresentar um único exemplo para mostrar como isso acontecia.

Em O Processo Civilizador, Elias escreveu o que ele chamou de “Excurso sobre algumas Diferenças Na Trajetória do Desenvolvimento da Inglaterra, França e Alemanha” (2000: 261-268). Isso parece que não foi notado por comentadores como Joas, mas por si só é suficiente para mostrar que, mesmo na década de 1930, Elias pensava em termos multilineares. Uma das afirmações de Elias nesse “Excurso” é que o extenso território ocupado por povos de fala alemã, bem como o tamanho e a diversidade sociocultural de sua população, levou-os a encontrar maiores dificuldades em relação à centralização e unificação do Estado do que os ingleses e os franceses, cujos territórios e populações eram menores. Isso resultou em tendências centrífugas mais acentuadas e um padrão de história e desenvolvimento social mais descontínuo, no caso alemão. Uma das consequências para o que originalmente eles chamaram de “Sacro Império Romano-Germânico” ou “Império Romano-Germânico” (Reich) foi que nenhuma “sociedade cortesã”, como a que emergiu na França, e nenhuma “grande Sociedade”, como a que vicejou na Inglaterra centralizada em Londres e no parlamento, pôde surgir e “cortizar”, “domar” e “democratizar” a aristocracia alemã. Como resultado, a aristocracia alemã reteve um ethos militarista por mais tempo do que as aristocracias da França e da Inglaterra. Aqueles, isto é, os aristocratas alemães, também excluíram a classe média das diversas cortes espalhadas pelo território, assegurando que as elites da

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classe média da Alemanha obtivessem pouca experiência de participação no governo. Segundo Elias, essa foi uma das raízes do ethos originalmente humanista da classe média alemã, grupos que até certo ponto tornaram-se eles mesmos militarizados quando os prussianos militaristas conseguiram unificar o país nacionalmente na década de 1870 (Elias, 1996).

Essa discussão deve bastar para o presente propósito de mostrar que, como eu disse anteriormente e, pace Joas, o pensamento de Elias já era multilinear quando ele escreveu Über den Prozess der Zivilisation. Interessante é que a perspectiva sociológica de Joas em alguns aspectos é surpreendentemente próxima da de Elias. Assim como Joas, Elias censurava os paradigmas dominantes por negligenciarem a violência, a guerra e as relações internacionais. Assim como Joas, Elias criticava severamente as teorias da “modernização”. Entretanto, ele foi além, questionando não só a adequação do conceito de modernização per se, mas também enfatizando o caráter multilinear, multidimensional e multinivelar dos processos sociais de longo prazo. Os dois acadêmicos enfatizam a necessidade de um equilíbrio entre “comprometimento”/”envolvimento”

(Engajamento)

e

“distanciamento”

(Distanzierung) na pesquisa e na teoria social (Elias, 1987; Joas, 2003: 85). Além disso, assim como Joas, Elias repetidamente referiu-se àquilo que Joas chamou de “a cegueira histórica de muitos textos emanados de pesquisas sociais empíricas e a falta de teoria em muitas análises históricas . . .” (Joas, 2003: 89; Elias, 1969). As similaridades e convergências não terminam aqui. Façamos agora um exame crítico do que se poderia chamar de visão “rousseauniana” em oposição a “hobbesiana” da guerra primitiva.

O Mito do “Bom Selvagem” Referi-me anteriormente a um argumento que nos últimos anos ressurgiu em alguns círculos sociológicos, antropológicos e arqueológicos. Qual seja, que é enganoso falar, como fez Elias, de “processos civilizadores” envolvendo pacificação. Segundo os defensores dessa visão, longe de conduzir à pacificação, na verdade as civilizações e os Estados são uma das principais causas da violência e da guerra, se

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não forem as principais. Chega-se à conclusão que Elias assume uma postura “hobbesiana”, ao passo que uma postura “rousseauniana” é mais adequada ao objeto, mais correta. Segundo os defensores dessa visão, nas sociedades que os ocidentais tendem a rotular de “primitivas”, “selvagens” ou “incivilizadas”, isto é, aquelas sociedades “estruturalmente mais simples”, “pré-letradas”, “não letradas, “tribais” ou “pré-estatais” de ontem e de hoje, a guerra não existe ou não existia, é ou era uma ocorrência rara ou trivial, um negócio ritualizado e quase-esportivo, em que poucas pessoas saíam feridas ou perdiam a vida. O sociólogo americano William Graham Sumner parece ter sido um dos primeiros a adotar essa postura “rousseauniana”. Assim, em 1911 ele escreveu que “o homem primitivo poderia ser descrito como um ‘animal’ pacífico que ‘teme’ a guerra” (citado em Keeley, 1996: 8). Mais recentemente, essa visão recebeu um forte apoio do psicólogo social inglês Peter Marsh, no livro Aggro (1978a), que citei anteriormente. É um livro em que Marsh nos conta o que ele pensa ser a guerra entre um povo guerreiro, os dani da Nova Guiné. A exposição de Marsh do caso “rousseauniano” é expressa com muita clareza. Vale ser citada por extenso. O fato de os dani se considerarem guerreiros, sugere Marsh, fortalece o seu argumento. As guerras entre os dani são frequentes, ele nos diz, e começam pela manhã com os guerreiros de uma tribo lançando um desafio para os guerreiros da outra tribo. Esses desafios geralmente são aceitos, mas não o serão se os guerreiros julgarem que provavelmente choverá ou se não houver tempo para comer as batatas doces ritualísticas que são fundamentais na tradição guerreira dos dani.

Quando aceitam um desafio, os guerreiros dani pintam-se e colocam cocares de guerra. Depois, num estado de excitação crescente, eles seguem para o campo de batalha previamente escolhido. Chegando lá, os dois grupos param a uma distância de aproximadamente 500 metros. Então, cada um avança e para, sucessivamente, até chegar a uma distância de uns 50 passos um do outro. Nesse ponto, ambos os lados atiram lanças e recuam. Flechas também são disparadas, mas lhes falta alcance, fato que Marsh interpreta como resultante não de ignorância tecnológica, mas como uma forma primitiva de controle de armas. Marsh também compara os guerreiros dani aos atuais hooligans do futebol inglês.7

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Segundo Marsh, o número de mortos em um ano de luta geralmente varia de 10 a 20 guerreiros de cada lado. “Em tribos em que o combate proporciona um importante foco de atividade”, escreve Marsh, . . . “em que as batalhas são essenciais para a manutenção de todo o tecido social, mais pessoas morrem de gripe comum do que dos golpes das lanças e flechas dos guerreiros rivais” (Marsh, 1978a: 49). “Evidências” desse tipo levam Marsh a concluir que é enganoso falar em “guerra” entre os guerreiros das planícies da Nova Guiné porque:

. . . essas batalhas não são guerra no sentido em que a conhecemos hoje. Parecem mais

com “escaramuças” ou “raides” . . . A violência dessa natureza

não tem a mesma lógica apavorante associada à luta pela sobrevivência num mundo de escassez e necessidades.

Ela surge como uma solução para o

problema da agressão – algo que dá coesão a uma

tribo porque é dirigido para

fora. Ao canalizar a hostilidade competitiva para fora, na

direção da tribo que

vive do outro lado da montanha, os vínculos sociais dentro do próprio reafirmados e mantidos. Demonstrações de caráter no campo de

grupo batalha

são são

convertidas em recompensas tangíveis oferecidas pela comunidade, onde exibições de coragem e solidariedade são valorizadas. O guerreiro recebe aprovação dentro da hierarquia de dominação que é estabelecida como parte do tecido social em que ele vive. A estrutura pode parecer ilógica, mas funciona. E ela lida de modo mais

eficaz com a agressividade dos homens do que

estruturas sociais aparentemente mais civilizadas própria sociedade. A agressividade é

as

que encontramos em nossa

reconhecida e administrada – e essa é uma

abordagem racional (Marsh, 1978: 49, 50).

Não me oponho totalmente ao argumento aqui apresentado por Marsh. O padrão de relacionamento “grupo interno/grupo externo”, “grupo nós/grupo eles” ou “nós/eles” (Elias, 1978) que ele descreve é um padrão comum em sociedades de todos os níveis de desenvolvimento social (no sentido de níveis de complexidade estrutural). O que considero problemático é o modo como Marsh explicitamente

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compara a guerra dos dani com o hooliganismo do futebol moderno, argumentando que ambos são válvulas de escape socialmente construtivas para a agressividade masculina. Os “primitivos” dani, Marsh sugere, são mais sábios do que nós do mundo ocidental moderno porque reconhecem e administram a agressividade. Os ocidentais supostamente a negam e tentam eliminá-la, em parte, argumenta Marsh, como resultado de mal-entendidos feministas. Marsh, porém, não leva em conta que: (I) os povos “primitivos” – ou melhor, os membros de sociedades estruturalmente mais simples – como os dani justificam a guerra em termos mágicomíticos, isto é, em termos de deuses e espíritos, e não racionalmente como sugere Marsh; e (II) ele não leva em consideração que não é o hooliganismo no futebol, mas esportes como o futebol que, se as regras forem seguidas e aplicadas, assumem o caráter de uma luta simulada, tendo se desenvolvido nas sociedades “modernas” como um meio importante de canalizar agressividade.8 Embora possa conter elementos ritualísticos no sentido a que se refere Marsh, o hooliganismo no futebol é uma sobreposição potencialmente perigosa e destrutiva àquilo que realmente envolve formas de agressão ritualizada, a saber, os esportes “modernos” altamente regulamentados.

Que eu saiba, um dos primeiros a tentar se opor a essa visão rousseauniana foi o antropólogo Bronislaw Malinowski. Em 1941, ele escreveu que “a antropologia tem feito mais mal do que bem . . . ao retratar os ancestrais humanos vivendo numa época de ouro de paz perpétua” (Citado em Keeley, 1996: 8). Os argumentos de Wrangham e Peterson (1997), e de Keeley (1996), todos baseados em dados, são, porém, bem mais danosos para o caso de Marsh do que o de Malinowski ou as minhas próprias sugestões anteriores. Wrangham e Peterson, por exemplo, citam uma “avaliação global” das etnografias de 31 sociedades caçadoras-coletoras que constatou que “64% delas se envolviam em guerras uma vez a cada dois anos, 26% faziam guerra com menos frequência e somente 10% guerreavam raramente ou nunca” (Ember, 1978, citado em Wrangham e Peterson [1997: 75]. Wrangham e Peterson também nos informam que:

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Em algumas ocasiões antropólogos puderam obter estatísticas sobre guerras entre povos

independentes sem a intervenção de tribos mais poderosas ou

governos. A violência foi

responsável pelas mortes de aproximadamente

19,5% dos homens adultos entre os huli das terras altas da Nova Guiné; entre os mae enga e os dugum dani, também dos

altiplanos da Nova Guiné, a guerra

produziu taxas de mortalidade adulta masculina de

25%

e

28,5%,

respectivamente. Para os murngin da Austrália, os números foram 28% (Changnon, 1988: 986; e Eibl-Eibesfeldt, 1989: 417; ambos citados em Wrangham e

Peterson, 1997: 77).

Como já sugeri anteriormente, os argumentos de Lawrence Keeley também trazem sérios prejuízos ao caso de Marsh. Keeley primeiramente argumenta que, embora uma perda de 20 pessoas por ano na guerra possa parecer um número muito pequeno, por exemplo, para os britânicos que têm uma população de aproximadamente 60 milhões, é uma quantidade considerável – uns 7-10% do total – num grupo tribal de duas ou três centenas de pessoas. Também é necessário, segundo Keeley, considerar o fato de que batalhas formais em grande escala, do tipo que acontecem nas guerras de povos “civilizados”, tendem a ser menos frequentes na guerra “primitiva” do que pequenos raides e emboscadas. Estas, diz Keely, . . . geralmente envolvem um punhado de homens que entram furtivamente no território inimigo para matar uma ou algumas pessoas por meio de tocaias mais elaboradas. É comum matar mulheres e crianças nesses raides . . . Uma técnica comum (utilizada por grupos tão diversos quanto os esquimós do estreito de Bering e os mae enga da Nova Guiné) consistia em cercar silenciosamente as casas dos inimigos pouco antes do amanhecer e matar seus ocupantes atirando lanças através das paredes delgadas, disparando flechas pela porta de entrada e orifícios por onde sai fumaça, ou abrindo fogo quando as vítimas deixam a estrutura que antes havia sido incendiada (Keely, 1996: 65).

É claro que a simples demonstração de que a guerra primitiva é mais feroz e, em termos quantitativos, mais letal do que sustentam os defensores da visão rousseauniana, não prova nada no que diz respeito à afirmação de que foi o contato

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com a civilização ocidental que tornou os povos assim chamados “primitivos” belicosos e violentos.

A “barbarização” como resultado do contato com o Ocidente provavelmente ocorreu com certa frequência. No entanto, apesar desse fato evidente, não só Chagnon, EiblEibesfeldt e Wrangham e Peterson tiveram dúvida sobre isso, como foi mostrado em minha discussão anterior, mas Keely, na minha opinião, refutou categoricamente a ideia. Ele o fez porque, como arqueólogo, pôde provar de forma conclusiva que povos tribais pré-estatais do mundo inteiro travaram guerras violentas antes da era moderna e do contato com o Ocidente. Ele também mostra de forma conclusiva que, embora possa não ser algo universal, guerras violentas ocorreram frequentemente entre os membros da nossa espécie desde os tempos mais remotos. No contexto deste capítulo, bastará citar a conclusão de Kelly. Segundo ele, “Os fatos recuperados por etnógrafos e arqueólogos...”

. . . indicam inequivocamente que a guerra primitiva e pré-histórica foi tão terrível e real

quanto a versão histórica e civilizada. A guerra é o inferno, seja

ela travada com lanças

de madeira ou com napalm. Sociedades pré-estatais

pacíficas eram muito raras; a guerra

entre elas era muito frequente, e a maioria

dos homens adultos desses grupos participava de combate várias vezes durante a vida . . . Os raides mortais, as emboscadas e os ataques de surpresa nas aldeias eram as formas de combate preferidas pelos guerreiros

tribais. A guerra civilizada é

menos letal, mas suas batalhas são mais complicadas. De

fato,

a

guerra

primitiva era muito mais letal do que aquela conduzida entre Estados civilizados, seja pela maior frequência dos combates, seja pela maneira mais impiedosa como era travada . . . Ao nível tático, a guerra primitiva, bem como a guerra de guerrilha, também tem sido superior à variante civilizada. A guerra civilizada é que é

estilizada, ritualizada e relativamente menos perigosa. Quando soldados

enfrentam guerreiros (ou guerrilheiros), são precisamente essas táticas e parafernálias civilizadas “decorativas” que devem ser abandonadas pelos primeiros se quiserem derrotar estes

últimos (Keeley, 1996: 174-5).

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Essa referência à necessidade de abandonar as “normas civilizadas” e as formas “civilizadas” de guerra para combater guerrilheiros ajusta-se à experiência norteamericana no Vietnã, e mais recentemente à dos norte-americanos, britânicos e aliados no Iraque e no Afeganistão. Mas, se a guerra “primitiva” e a guerrilha realmente são tão letais quanto Keely sustenta, como é que povos que se consideram “civilizados” conseguiram regularmente conquistar e colonizar povos pré-estatais e tribais que eles percebem como “bárbaros” e “primitivos”? Segundo Keely, a resposta é que, embora possam perder algumas batalhas, o excedente econômico, o tamanho da população, as tecnologias de transporte e o planejamento e capacidade logística dos povos “civilizados” lhes possibilitam a vitória na guerra. Em resumo, os povos “civilizados” podem não ser tão bons guerreiros, mas a “civilização” lhes dá homens, material e os recursos gerais para travar longas campanhas. Vejamos agora o ensaio de Bryan Turner sobre o “carisma da guerra”, publicado em 2003.

O Carisma da Guerra e a Espiritualização da Violência O ensaio estimulante e original de Bryan Turner primeiramente tenta demonstrar que, em seu estudo do “processo civilizador”, Norbert Elias negligenciou quase completamente a natureza histórica e comparativa da cultura religiosa, do sagrado, da classe sacerdotal e da Igreja na história da sociedade ocidental” (Turner, 2003: 96). A ideia de que Elias negligenciou a religião não é nova. Franz Borkenau apresentou basicamente o mesmo argumento em suas análises dos dois primeiros volumes alemães de O Processo Civilizador, assim como Martin Albrow (1969) em sua análise da primeira tradução inglesa do volume I. Essa opinião recorrente não está, é claro, totalmente errada. Não é tanto o caso, porém, de que Elias tenha negligenciado a religião quanto que ele tenha tratado as diversas crenças como um recurso de poder entre outros, e como um importante “meio de governo nas primeiras civilizações dominadas pelos sacerdotes, com seu baixo nível de congruência com a realidade e compreensão científica, quando comparadas à nossa” (Goudsblom em Goudsblom, Jones e Mennell, 1989). Elias também conceitualizou

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as religiões como “meios de orientação” e referiu-se a elas em Envolvimento e Distanciamento (1987) como uma das principais formas de pensamento “mágicomítico”, isto é, de pensamento com conteúdo afetivo relativamente elevado combinado a um nível relativamente baixo de “adequação ao objeto” ou “congruência com a realidade”. No entanto, ele nunca procurou negar o poder e a importância das instituições e crenças religiosas.

Mais importante para os nossos propósitos aqui, porém, é o fato de que Bryan Turner parece desconhecer a distinção feita por Johan Goudsblom em 2003 entre as tradições “agostiniana” e “lucreciana” de abordagem e compreensão da religião. Segundo Goudsblom:

As tradições agostiniana e lucreciana veem o processo civilizador de ângulos opostos.

Isso leva a diferentes impressões, com diferentes ênfases. Se a tradição

agostiniana

superestima a importância da religião no processo civilizador, a

tradição lucreciana é

anticlerical e pode subestimá-la. Não há dúvida de que

aquilo que agora classificamos como forças religiosas por vezes exerceu forte pressão sobre a autorrestrição

socialmente induzida. Essa pressão deve ser vista,

porém, no contexto de pressões sociais e ecológicas mais amplas. Qualquer que tenha sido a influência da religião,

sempre esteve sujeita a circunstâncias

históricas. A religião nunca foi o único fator

civilizador. E em muitas ocasiões

ela impulsionou surtos descivilizadores como as guerra civil e, como tem sido chamada em nossos dias,

cruzadas, a

perseguições, “limpeza

étnica” (Gloudsblom, 2003: 36).

O fato de Bryan Turner parecer não estar familiarizado com o argumento de Goudsblom não diminui a força do argumento central de Turner, baseado em dados, e que diz respeito às implicações das práticas guerreiras dos “índios das Planícies”, especialmente os cheyenne, para a teoria de Elias. Aqui, a primeira coisa digna de nota é que Turner não se deixa levar pelo “mito do bom selvagem”, mas, em vez

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disso, apresenta uma descrição franca e honesta do carisma do índio guerreiro das Planícies e a violência desse guerreiro em toda a sua – do ponto de vista dos valores “civilizados” hegemônicos das atuais sociedades ocidentais – “ferocidade”, “selvageria” e falta de “decoro civilizado”. Assim Turner apresenta o problema:

Entre os índios das Planícies norte-americanas, . . . o carisma do guerreiro estava associado a transições para a idade adulta, quando os ritos de passagem da tribo produziam experiências de possessão, transe e visão. O carisma surge na sociedade humana, não obstante, no contexto dos rituais religiosos e das instituições de transição luminal. A transformação histórica do carisma do guerreiro é, assim, um importante desafio à validade geral da tese de um processo civilizador. Embora o treinamento do cavaleiro inculque normas de postura corporal, virtuosidade e disposições cavalheirescas, corpos estremecentes, em convulsão e vibrantes marcam a presença do carisma. O processo civilizador e a eliminação do guerreiro requerem a supressão dessas formas primitivas de psicogênese? (Turner, 2003: 99).

Embora eu me queixasse dessa versão moderna de reificação funcionalista que conceitualiza um “processo cego” como tendo um “requerimento”, minha resposta a essa questão é um enfático “sim”: a supressão dos guerreiros por meio da “cortização” (Verhöflichung) e de outras formas, e a sujeição de longo prazo dos guerreiros ao controle civil, processos que obviamente podem ser, e invariavelmente são, revertidos por períodos maiores ou menores, constituem componentes importantes de um “processo civilizador”. Ao levantar essa questão e chamar atenção para o carisma do guerreiro, Bryan Turner apontou caminhos adicionais aos estudos de Elias sobre os guerreiros da Europa medieval e suas transformações. Penso, também, que Turner vem acrescentar à nossa compreensão dos “processos civilizadores” nos Estados Unidos quando se refere ao estudo de Rojek (2001) sobre as “celebridades”. Segundo Turner, os “extraordinários” índios das Planícies da década de 1870

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. . . – Touro Sentado, Cavalo Doido, Nuvem Vermelha, o Pequeno Grandão e Faca Cega

– tornaram-se lendas do encontro entre a civilização e a

selvageria. Consequentemente, os cheyenne e os sioux foram rapidamente envolvidos na cultura emergente do

entretenimento

da

sociedade

moderna.

Guerreiros que haviam aterrorizado os colonos brancos na década de 1870, eles tornaram-se personagens da cultura popular nos anos 1880. Podermos dizer que o carisma do guerreiro foi finalmente transformado na

fotografia, no palco e no

cinema em celebridade (Turner, 2003: 102).

Tenho apenas mais uma crítica a fazer. Turner não menciona o papel desempenhado pelo uso do tabaco e de outras drogas nos rituais e na guerra dos americanos nativos (Hughes, 2003).

Algumas Reflexões Figuracionais sobre a Guerra Moderna A primeira coisa digna de nota a esse respeito é que Norbert Elias compartilhava o ódio e o horror que grande parte da esquerda nutre pela guerra. No entanto, ele também expressava repulsa em relação àqueles na esquerda que glorificam a “revolução” porque, como ele disse, “revoluções” são um tipo de guerra. Ou seja, elas também tendem a envolver pessoas matando umas às outras e resultam em múltiplas consequências não intencionais e geralmente violentas. No entanto, Elias não era de forma alguma um pacifista. A violência, ele argumentou, é necessária quando, por exemplo, o grupo dominante ou “establishment” e um grupo ascendente, que pode ser uma classe social, um grupo étnico ou até então um gênero subordinado, agarram-se num “clinch imobilizante” porque o grupo dominante recusa-se a fazer concessões (Elias, 1969).

Pelo menos em um sentido, a crença de que no século XX houve uma tendência cada vez maior à violência apresenta bases sólidas. Mais particularmente, como um acompanhamento do ritmo e do alcance cada vez maiores das mudanças sociais, o século XX foi o primeiro em que as guerras foram literalmente “guerras mundiais”.

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Também foi um século em que a violência e a eficácia da tecnologia de destruição em massa atingiram níveis até então sem precedentes, fato evidenciado principalmente pelas armas nucleares e o arsenal para guerras químicas e biológicas. A capacidade de produzir e entregar armas como essas obviamente é uma consequência da aplicação dos avanços do conhecimento científico, o que sem dúvida, por sua vez, em parte é consequência de um “processo civilizador”. Mais particularmente, um dos aspectos do “processo civilizador” envolve um avanço na capacidade das pessoas para o autodistanciamento (Elias, 1984), o que lhes permite ir além das visões de mundo mágico-míticas, assumindo perspectivas mais distanciadas, mais “congruentes com a realidade” e que facilitam um maior controle. Para apreciar essa questão, é claro que o leitor deve seguir uma abordagem relativamente distanciada.

A capacidade de exercitar um elevado nível de autocontrole, outra consequência do “processo civilizador”, também é necessária para utilizar muitas das armas complexas modernas. Além disso, boa parte da guerra moderna consiste em matar à distância por meio de disparos de foguetes e bombas despejadas sobre pessoas que não podem ser vistas ou ouvidas. Pessoas que se consideram “civilizadas” geralmente não gostam de ver o sangue derramado dos combates face a face e precisam passar por um treinamento que se torna um processo “descivilizador”, com o objetivo de preparar o soldado para a batalha. Esses indivíduos e aqueles que são “descivilizados” pela experiência direta da guerra costumam representar certa ameaça à sociedade quando retorna a paz. Os problemas causados por veteranos da Coreia e do Vietnã são um exemplo (Joas, 2003: 111ff).

Também é importante notar que houve numerosas guerras violentas e destrutivas desde 1945. No entanto, em sua maior parte foram guerras locais, restritas, com as recentes exceções das guerras associadas à dissolução da antiga Iugoslávia e da exUnião Soviética, principalmente aos antigos países coloniais do Terceiro Mundo. Sem querer diminuir a trágica realidade dessas guerras para as pessoas diretamente envolvidas, para não dizer das consequências horríveis, por exemplo, dos terrenos minados, no entanto, é sem dúvida pertinente apontar para as muitas regiões do

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mundo, especialmente no Ocidente, que têm desfrutado até agora de níveis sem precedentes de paz e prosperidade desde a Segunda Guerra Mundial. Essa paz e prosperidade não podem, é claro, ser entendidas independentemente das formas de dominação e exploração neocoloniais que derivam dos diferenciais de poder inerentes ao nosso mundo globalizado. Escrevendo no final da década de 1980, pouco antes do fim da “Guerra Fria”, Norbert Elias assim comentava sobre essa paz, mas não sobre a prosperidade:

Quando se examina o problema da violência física, geralmente se pergunta como é possível que pessoas ataquem ou matem outras, de modo que se tornem, por exemplo, terroristas, sejam homens ou mulheres. Seria mais . . . produtivo se a questão fosse formulada de modo diferente. Deveria ser: como é possível que tantas pessoas possam normalmente viver juntas em paz sem medo de serem atacadas ou mortas por grupos mais fortes – tão pacificamente quanto costuma ser o caso nas grandes sociedades reguladas pelo Estado na Europa, América, China ou Rússia contemporâneas? Geralmente se esquece que nunca antes na história da humanidade tantos milhões de pessoas viveram juntas tão pacificamente – isto é, com a considerável eliminação da violência física – como ocorre nos grandes Estados e nas grandes cidades do nosso tempo. Isso se torna evidente somente quando se percebe quão mais violentas e perigosas foram as épocas anteriores (Elias, em Keane, 1988: 178).

Isso foi escrito por Elias anos antes da assim chamada “guerra contra o terror”, declarada pelo segundo presidente Bush. Os “terroristas homens ou mulheres” que Elias tinha em mente eram grupos como a “Brigada Vermelha” e o “BaaderMeinhof”. Eles se viam como antifascistas e não se pode entendê-los fora do contexto da cultura, política e tensões da época da “Guerra Fria”. A guerra de Bush “contra o terror” é pós-Guerra Fria, mais internacionalizada e, em parte, com origem primeiro na divisão “Primeiro Mundo/Terceiro Mundo e na dependência e cobiça do Primeiro Mundo por petróleo, e segundo numa versão moderna do conflito Cristianismo versus Islã que começou na Idade Média. Isto é, os combatentes de ambos os lados, e mais particularmente alguns de seus líderes, são adeptos de

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formas monoteístas do pensamento mágico-mítico, embora um dos lados – o lado cristão – seja geralmente mais poderoso, um pouco mais secular e mais avançado tecnicamente. A guerra de Bush “contra o terror” sem dúvida baseava-se mais numa interpretação politicamente errada e dirigida pela mídia de massa, e numa amplificação altamente emocional dos níveis de perigo envolvidos, do que numa escalada maciça dos níveis de violência e perigo per se. É claro que isso poderia mudar se os “terroristas” e fundamentalistas religiosos, sejam cristão ou muçulmanos, do Ocidente ou do Oriente, conseguissem apoderar-se das armas de destruição em massa. Isso porque há indicações de que eles não hesitariam em usálas.9 Estou pensando em Bush e Blair e aqueles que estão sob seu comando, e não simplesmente nos terroristas muçulmanos ou em suas contrapartes mais diretas no Ocidente, como o grupo Baader-Meinhof ou o IRA, isto é, o Exército Republicano Irlandês.

Um Estado mundial, com legitimidade comparável à dos Estados nacionais ocidentais

mais

bem-sucedidos

e,

como

eles,

baseado

em

monopólios

interdependentes da violência e da tributação, ainda não existe, e talvez nunca existirá. Por causa disso, armas nucleares e biológicas, com seu imenso poder de destruição, provavelmente implicam o fim do processo de formação do Estado envolvendo violentos combates de eliminação do tipo que Elias mostrou terem ocorrido na “civilização” da Europa Ocidental. Se tais armamentos fossem utilizados exaustivamente, a humanidade destruiria a si própria ou no mínimo viveríamos numa idade das trevas pós-nuclear. Se isso acontecesse, realmente teria chegado a “pós-modernidade”, no sentido literal! Em resumo, a formação de um Estado mundial, se ocorrer, provavelmente será mais a longo prazo e mais pacífico, no sentido de não envolver o recurso direto ao uso das armas mais destrutivas, exceto como ameaça. Se essas armas não permanecerem “confinadas em quartéis”, isso poderá implicar o fim da humanidade. Supondo que tal versão do “Armagedom” não ocorra, será que o que está acontecendo na Europa neste momento, com o desenvolvimento da UE, é um precedente para o que poderá acontecer em nível mundial no futuro? Para expressá-lo metaforicamente e metafisicamente, “só o tempo dirá”. Vejamos agora o tema genocídio.

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O Genocídio no Processo da Civilização A primeira coisa a ser destacada é o fato de que nos últimos anos o “genocídio” passou a ser um conceito contestado e talvez usado em excesso. É por isso que neste ensaio utilizo o termo entre aspas. “Genocídio” refere-se a uma tentativa, geralmente por parte de um grupo mais poderoso, de erradicar intencionalmente um grupo de pessoas menos poderoso que aqueles definem socialmente como “raça”. Por exemplo, mesmo que neste caso houvesse, sem dúvida, uma tentativa mais de controlar e explorar que exterminar, D. E. Stannard (1992) referiu-se à eliminação em grande escala dos “americanos nativos” durante a conquista do “Novo Mundo” por descendentes de europeus não só como um “genocídio”, mas também como um “holocausto americano”. Esta última expressão é questionável. Outro exemplo contestado é a definição de “genocídio” para o massacre de 1,5 milhão de armênios pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial e ao longo da dissolução do Império Otomano (Brannigan e Cassis em Levinson (ed.), Vol 1, 2002: 769-76). Talvez também problemática seja a definição de “genocídio” para o assassinato de 2 milhões de oponentes por Pol Pot e o Khmer Vermelho no Cambodja, na década de 1970 (Power, 2002: 86-154). Ambos os casos envolveram “massacres”, mas foram politicamente e ideologicamente motivados, sendo incerto que tenham envolvido intenções raciais e de extermínio. O mesmo em relação ao uso do termo “genocídio” aos milhões que morreram em consequência mais ou menos direta da política de Stalin na antiga União Soviética.

A matança em Ruanda, em abril de 1994, de cerca de 800 mil pessoas de descendência tutsi por parte dos hutus, bem como vários eventos anteriores dessa natureza ocorridos naquele país e em seus predecessores coloniais, foi mais claramente um “genocídio”. Tratou-se de um massacre intencional, motivado por racismo e com o objetivo de eliminar todo um grupo (Power, 2002: 328-389). Outra matança envolvendo povos tribais e com envolvimento apenas indireto de colonos ocidentais, se é que houve algum, pode ter sido o extermínio da tribo owuqeo pelos

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cheyenne, que Moore (1999: 113, citado em Turner, 2003: 102) descreveu como um “genocídio tribal”. Dois outros exemplos sem ambiguidade que Alison Palmer (1994) descreveu como “genocídios coloniais” foram o extermínio dos “aborígenes” de Queensland, Austrália, por pessoas de origem britânica, e o massacre racista, pelos soldados alemães durante a Primeira Guerra Mundial, dos herreroes no sudoeste da África (ver também Richard J. Evans, 2003: 12).

No entanto, sem dúvida, o “genocídio” mais óbvio dos tempos modernos foi o “Holocausto” nazista. Certamente é o mais bem documentado e, apesar dos esforços malignos dos assim chamados “negadores do Holocausto” (Limpstadt, 1993), não há dúvida sobre sua ocorrência ou de que tenha sido um “genocídio”, isto é, uma tentativa de erradicar todo um grupo de pessoas (os judeus) que os nazistas definiam socialmente como uma “raça”, no sentido de lhes atribuir uma constelação de traços biogeneticamente determinados.

Certamente é justo dizer que uma atitude muito disseminada no século XX em relação ao indescritível horror do “genocídio” envolveu a ideia de que se trata de um fato especificamente e totalmente moderno enquanto fenômeno social. Uma versão mais sofisticada da mesma crença é a ideia de que a tentativa nazista de exterminar os judeus foi especificamente moderna porque dependia de aspectos da “modernidade” como organização burocrática e tecnologia industrial, uma ideia proposta mis recentemente por Zygmunt Bauman, em 1984, em seu livro A Modernidade e o Holocausto.10 De um ponto de vista figuracional, porém, embora a “modernidade” tenha provavelmente ajudado a aumentar a escala e a eficiência dos “genocídios”, não é tanto o “genocídio” per se que é especificamente moderno quanto a repulsa cada vez maior contra ele. De qualquer forma, essa era a visão de Norbert Elias. Escrevendo não apenas sobre o Holocausto, mas também sobre a violência mais geral dos alemães em relação aos grupos conquistados durante a Segunda Guerra Mundial, ele sugeriu que, no século XX,

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. . . a chacina de grupos conquistados pelo nazistas alemães . . . provocou repulsa em

quase todo o mundo . . . O choque foi ainda maior porque muitas pessoas

tinham vivido

a ilusão de que, no século XX, essas barbaridades não mais

aconteceriam. Tacitamente

supunham que os homens tinham se tornado mais

“civilizados”, “moralmente melhores” como parte de sua natureza. Orgulhavam-se em ser menos selvagens que seus

antepassados ou que outros povos . . . sem

nunca encarar o problema que seu próprio civilizado suscitava – por que . . . seu

comportamento relativamente mais

comportamento e seus sentimentos haviam

se tornado um pouco mais civilizados? O

episódio dos nazistas serviu como

alerta; era um lembrete de que as restrições contra a

violência não são sintomas

de uma natureza superior das nações “civilizadas”, nem

características eternas

de sua constituição racial ou étnica, mas aspectos de um tipo específico desenvolvimento social que resultou num controle social mais

de

diferenciado e

estável dos meios de violência e num tipo correspondente de formação de consciência. Evidentemente, esse tipo de desenvolvimento social pode ser revertido . . .

(Elias em Dunninf [ed.] 1971: 106-107; e em Elias e Dunning,

1986: 143).

Elias afirmou ainda que o sentimento quase universal de repugnância contra o “genocídio” observado no século XX indica que as sociedades humanas passaram por um “processo civilizador”, incluindo uma ampliação dos limites de identificação com seres humanos de grupos linguisticamente, culturalmente e fenotipicamente diferentes, “por mais limitado e instável” que se mostrem os resultados desse processo. Isso fica claro, segundo ele, quando comparamos com o mundo antigo. Para Elias, mais particularmente,

Na antiguidade grega e romana, o massacre de toda a população masculina de uma

cidade derrotada e conquistada, e a venda das mulheres e crianças como

escravas, embora pudesse despertar pena, não provocava condenação. Nossas fontes são incompletas, mas mostram que casos de chacinas eram comuns naquele período. Às

vezes, a fúria de um exército há muito ameaçado e frustrado

desencadeava um massacre

generalizado dos inimigos. A destruição de todos

170

os sibaritas que estivessem ao alcance

por parte dos cidadãos de Crotona, sob a

liderança de Milon, o famoso lutador, é um

exemplo. Às vezes, o “genocídio”

era um ato calculado, com o objetivo de destruir o

poder militar de um Estado

rival. A destruição de todos os homens de Argos como um

potencial

Esparta é outro exemplo. O massacre da população masculina de

rival

Melos

de por

ordem da Assembleia dos cidadãos de Atenas em 415 . . . resultou de uma configuração muito semelhante àquela que levou os russos a ocuparem a Tchecoslováquia em 1968 . . . . Os atenienses mataram os homens, venderam as mulheres e as crianças atenienses.

como escravas, e povoaram a ilha com colonos

Alguns gregos

normal entre cidades-estados,

consideravam a guerra como uma relação que podia ser interrompida por tratados de duração

limitada. Os deuses, através de seus sacerdotes e escritores, podiam desaprovar massacres desse tipo. Mas o nível

de “repugnância moral” contra o que agora

chamamos de “genocídio” e, de um

modo mais geral, o nível de inibições

internalizadas contra a violência física eram decididamente sentimentos de culpa ou vergonha associados a decididamente mais

baixos,

os

essas inibições

fracos, do que nos Estados nacionais industriais

século XX (Elias em Dunning (ed.), 1986:

mais

do

1971: 107-108; e em Elias e Dunning,

144-145).

Penso que não seria nenhum exagero sugerir que os registros históricos, não apenas do mundo antigo, mas também anteriores e posteriores, estão cheios de exemplos de massacres e “genocídios”. De fato, pode-se até dizer que a eliminação de pessoas percebidas como inimigas, seja em bases realistas ou não, envolve um tipo e grau de “racionalidade”, pelo menos no que diz respeito a pessoas que vivem em nível de subsistência, ou próximo disso, e sem uma economia monetária. Quando escreveu sobre a classe dominante no início da Europa feudal, Elias sugeriu que:

Surtos de crueldade não excluíam a pessoa da vida social . . . O prazer de matar e

torturar os outros . . . era um prazer socialmente permitido. Até certo ponto, a

estrutura social pressionava seus membros nessa direção, fazendo parecer necessário e

praticamente vantajoso comportar-se dessa maneira. O que, por

171

exemplo, deveria ser

feito com os prisioneiros? Havia pouco dinheiro nessa

sociedade. Com respeito a

prisioneiros que podiam pagar e que, além do mais,

fossem membros da mesma classe

que o vencedor, este se permitia certo grau

de restrição. Mas e os outros? Para mantê-

los

era

Devolvê-los significava aumentar a riqueza e o poder de

preciso

alimentá-los.

combate do inimigo,

pois os súditos (isto é, trabalhadores, servos e soldados) faziam

parte

da

riqueza da classe dominante . . . Portanto, os prisioneiros eram mortos ou enviados de volta tão mutilados que estavam inaptos para qualquer serviço e trabalho

(Elias, 2000: 163).

Aqui a referência de Elias à morte e à tortura de outros como um “prazer socialmente permitido” aponta para um aspecto geralmente negligenciado dos “genocídios”, massacres, assassinatos e muitas outras formas de violência, a saber, a socialmente aceitável, e até certo ponto autorizada, “caça a seres humanos” (Leyton, 1986) ou o que se poderia chamar de “genocídio por prazer”. Se bem o entendo, Slavoj Zizek chegou próximo desse conceito em sua crítica de Os Carrascos Prestativos de Hitler: Os Alemães Comuns e o Holocausto (Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust) (1996), de Daniel Goldhagen. Para Zizek:

A insistência de Goldhagen de que os carrascos, como regra, não sentiam nenhuma “vergonha” do que estavam fazendo é . . . equivocada: seu argumento, obviamente, é

que a ausência de vergonha mostra até que ponto a tortura e o

assassinato de judeus

estavam integrados em sua consciência ideológica como

algo totalmente aceitável. Uma leitura atenta dos depoimentos que aparecem no livro, no entanto, demonstra como os

carrascos vivenciavam seus feitos como

uma espécie de atividade “transgressiva, um

tipo de atividade “carnavalesca”

pseudo-bakhtiniana em que as restrições da vida

cotidiana

“normal”

eram

momentaneamente suspensas – era precisamente esse caráter transgressivo . . . o responsável pelo “prazer a mais” que se tinha em torturar

excessivamente

vítimas. Assim, o sentimento de vergonha . . . de modo algum prova que

as os

carrascos não estavam “totalmente corrompidos”, que “persistia um mínimo de

172

decência”: pelo contrário, essa vergonha era um sinal inequívoco do excesso de

prazer que eles tinham com seus atos (Zizek, 1997: 57).

Embora despreze o fato de que esse comportamento “carnavalesco” era condenado por ser considerado “não germânico” por líderes nazistas como o Kommandant de Auschwitz, Rudolf Hess, o ponto de vista de Zizek é bem aceito (Hoess, 1959). Ou seja, o Holocausto nazista estava longe de ser apenas o “genocídio” racionalburocrático, e nesse sentido “moderno”, retratado por Zygmunt Bauman (1984), embora o fosse em parte. De fato, como mostrou Elias (1996), também ocorreu, em vários níveis, um “colapso da civilização”. Às vezes também se argumenta que a chacina (principalmente) de judeus nas câmaras de gás e nos vagões de gás a partir de 1942 foi decidida e planejada na Conferência de Wannsee, em Berlim, em janeiro daquele ano, e que substituiu os tiros e outras formas de eliminação porque era menos desconfortável para os matadores (ver, p. ex., Roseman, 2002; e Goldhagen, 1996: 157). Isso é implausível. A Conferência de Wannsee estava mais preocupada em facilitar e sistematizar um processo planejado que tivera início com a invasão da Polônia em 1939 e que já estava em execução. O Einsatzgruppen, o Einsatzkommandos e o Ordnungspolizei já tinham matado a tiros cerca de 2 milhões de pessoa na época em que ocorreu a Conferência de Wannsee. Poucos assassinos mostravam sinais de repulsa ou arrependimento. Nem tampouco os guardas dos campos de extermínio, campos de trabalhos forçados e campos de concentração. O uso de gases foi introduzido principalmente como um suplemento mais eficiente, mas as execuções a tiros nunca cessaram, para não dizer das “marchas da morte” de 1944 em diante (Goldhagen, 1996). Além do mais, embora existam algumas evidências de que alguns matadores (Goldhagen, loc cit) tiveram colapso nervoso, isso foi comparativamente raro, fossem os matadores alemães, poloneses, lituanos ou de qualquer outra nacionalidade. E a ideia de que a tecnologia das câmaras de gás fosse de algum modo mais impessoal do que a execução a tiros também não procede. Algumas vítimas resistiam em entrar ou lutavam para que seus filhos ficassem do lado de fora (Hoess, 1959: 149-50). Seja como for, os matadores tinha que olhar através das janelas para ver se as vítimas estavam mortas ou não. Seus gritos e choros também eram claramente audíveis para aqueles que estavam do lado de fora, mesmo em alguns quarteirões da vizinhança. Hans Joas faz uma crítica a

173

Bauman sobre uma questão relacionada; mais particularmente, por não ter prestado a devida atenção ao “papel da violência espontânea e individual no dia-a-dia dos campos de concentração” (Joas, 2003: 166). Joas também compartilha com Elias a ideia de que é preciso enfatizar, em oposição a Bauman, que o Holocausto aconteceu durante a guerra (Joas, 2003: 168; Elias, 1996: 311). Vejamos agora as questões relativas ao crime, à punição e ao esporte. Tratarei delas em conjunto e com brevidade.

Aspectos Relativos ao Crime, à Punição e ao Esporte na “Civilização” do Ocidente Pode parecer estranho para algumas pessoas que eu julgue pertinente incluir nesta discussão de temas ostensivamente “sérios” como guerra, “genocídio”, crime e punição, uma consideração sobre o tema aparentemente “trivial” do esporte. No entanto, assim como certamente algumas formas de esporte podem estar envolvidas em atos “genocidas”, guerra, punição e crime, também é o caso que violência grave e crimes de diversos graus e formas podem acompanhar os esportes e os jogos. Nos últimos anos, o esporte tornou-se nitidamente mais importante nas hierarquias sociocultural,

socioeconômica

e

sociopolítica,

e

tendências

semelhantes

“civilizadoras e descivilizadoras” sem dúvida são evidentes também em todas essas áreas. Tentarei demonstrá-lo com respeito ao crime e à punição.

Embora não pareça ainda ter penetrado no mainstream da criminologia e da sociologia do crime, ambos com tendência a permanecer predominantemente centrados no presente, há um crescente consenso entre historiadores do tema de que os índices de violência caíram nos países ocidentais de modo mais ou menos constante desde o fim da Idade Média até as décadas de 1960 ou 1970. Numa análise abrangente da literatura, que serve como prelúdio para uma demonstração de como tal padrão se ajusta ao caso da Irlanda, o criminologista irlandês Ian O’Donnell convincentemente resume a tendência da seguinte maneira:

174

A evolução das sociedades modernas é caracterizada por níveis cada vez menores de fontes históricas e

violência letal entre os indivíduos. Em análise . . . detalhada de contemporâneas, Gurr mostrou como as tendências

homicidas de um modo geral

descrevem “uma curva dilatada em forma de U”.

Com isso ele queria dizer que

os

níveis de homicídio tiveram um declínio

constante desde o início do século XIX, antes de começar um súbito crescimento na década de 1960. Essa elevação manteve-se

até o final da década de 1970,

quando Gurr concluiu seu estudo. O padrão de declínio

do século XIX foi

encontrado onde quer que se coletassem os dados. Desvios da tendência declinante eram temporários e explicados como consequência da guerra, mudanças demográficas, prosperidade ou declínio econômico e dos primeiros estágios da rápida urbanização e industrialização. O aumento a partir da década de 1960 foi comum, mas não universal (O’Donnell, 2002: 56).

Observando o problema de uma perspectiva de mais longo prazo ainda, Ted Gurr (1981: 296) descreveu a Inglaterra do século XIV como “uma sociedade em que os homens (mas raramente as mulheres) eram facilmente incitados à violência, atacando seus oponentes com brutalidade incontida.” Comentando sobre os índices de assassinato desde o século XIII, o historiador britânico Lawrence Stone concluiu que: “Parece que os índices de homicídio na Inglaterra do século XIII eram aproximadamente duas vezes maiores que os dos séculos XVI e XVII, e que estes eram de cinco a dez vezes maiores que os de hoje” (Stone, 1983: 25).

Em recente análise de pesquisas pertinentes feitas na Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça, Itália e países escandinavos, o criminologista Manuel Eisner concluiu que a aparente tendência geral era real e não um artefato metodológico ou consequência de dados inadequados. Segundo ele:

A notória imprecisão dos dados populacionais, as deficiências nas fontes, alterações na

definição legal de homicídio, mudanças na estrutura etária, bem

como o aprimoramento das possibilidades clínicas, certamente devem ser levados

175

em conta. Mas as evidências

são tão consistentes, o declínio secular tão regular,

e as diferenças de nível tão grandes,

que parece difícil refutar a conclusão de um

declínio real e notável (Eisner, 2001: 628).

Para explicar esse “declínio real e notável”, Eisner segue Gurr (1989) ao invocar a teoria de Elias dos processos civilizadores. De fato, com tal argumentação esses autores eram parte de um consenso emergente de que a teoria de Elias oferece um maior poder de explicação do problema que as teorias de “modernização” ou as explanações convencionais cujas raízes remontam a Toennies, Durkheim e a Escola de Chicago.Em seu livro de 1996, A Civilização do Crime (The Civilization of Crime), por exemplo, Eric A. Johnson e Eric H. Monkkonen apontaram para o que consideram ser quatro implicações do trabalho de Elias que se opõem ao que costumavam ser suposições hegemônicas

entre historiadores e sociólogos nas

décadas de 1950 e 1960, e que ainda estão longe de ter perdido sua força. Essas implicações são:

I. Primeiro, que as cortes reais emergentes desempenharam um papel fundamental no controle do comportamento violento nos Estados nacionais ocidentais em desenvolvimento, em seus estágios iniciais; II. Segundo, que o comportamento tende a ser mais “civilizado” em áreas urbanas que em áreas rurais; III. Terceiro, que níveis de violência impulsiva tendem a ser maiores entre pessoas que vivem em áreas onde os sistemas estatais ainda não penetraram; IV. E quarto, que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, os níveis gerais de violência têm declinado.

Johnson e Monkkonen continuam:

176

Essas e muitas outras implicações do trabalho de Elias é que podem ter impedido sua

aceitação . . . pois o que ele dizia contrariava uma sequência teórica

diferente e mais convincente. Esse argumento, originalmente associado aos teóricos da sociologia

clássica como Toennies e Durkheim, e mais tarde

detalhado por Park e Burgess . . . ,

sustentava que, com a desagregação da

família e da comunidade ou Gemeinschaft e a emergência da sociedade de massa ou Gesellschaft, especialmente através da

urbanização, industrialização e o

alinhamento de classe das sociedades capitalistas, o

crime aumentou. Já que o

crime de fato aumentou um pouco (pelo menos nos Estados

Unidos)

Segunda Guerra Mundial, e de modo notável depois de 1968, essa outra

após

a

linha

de teoria sociológica fazia muito sentido. As discussões de Elias sobre o controle dos impulsos violentos nas sociedades “civilizadas” pareciam desinformadas. Assim,

para os historiadores do crime, a crescente convicção de que o crime vem

diminuindo, e

não aumentando, ao longo dos séculos; que o campo costumava

ser perigoso, e não

seguro; que, como disse Barbara Hanawalt, o “crime do

colarinho branco” era uma

grande ameaça – tudo isso mudou o status de Elias,

da curiosidade para o pensador presciente (Johnson e Monkkonen, 1996: 4-5).

Um quadro semelhante vale para a punição do crime. Como mostraram Spierenburg (1984), Pratt (2002) e, de forma menos clara, Garland (1990), pace Foucault (1986), a “civilização” da punição na Europa Ocidental foi menos um processo relativamente rápido associado ao declínio da monarquia do que um processo de longo prazo ligado à formação do Estado e a mudanças de sensibilidade ao nível do habitus social das pessoas. Um estudo que realizamos em Leicester na década de 1980 aponta na mesma direção geral (Dunning et al., 1992; Dunning et al. Em Dunning e Mennell (eds.), 2003). Utilizando o jornal local de Leicester, The Leicester Mercury, como principal fonte de dados, documentamos o fato de que os relatos de violência na Grã-Bretanha entre os anos de 1900-1975 seguiram uma tendência principalmente de queda. Mais particularmente, os relatos foram relativamente numerosos antes da Primeira Guerra Mundial, diminuíram entre as guerras e aumentaram após a Segunda Guerra Mundial, especialmente depois da década de 1960, mas sem se aproximar dos níveis anteriores a 1914.

177

Um dos aspectos inovadores desse estudo consistiu no fato de distinguirmos quatro “esferas” de violência: “esfera política”; “esfera industrial”; “esfera da comunidade”; e “esfera do esporte e do lazer”. A violência criminal per se não fazia parte do nosso foco. O que encontramos foi (1) uma tendência geral de queda nos relatos de violência política na Grã-Bretanha do século XX; (2) uma tendência relativa à violência industrial que era em grande parte semelhante, exceto que, neste caso, o nível de violência relatada permaneceu alto até a Greve Geral de 1926; e (3) uma queda constante na incidência de violência na comunidade. A única esfera na vida social britânica onde os relatos de violência aumentaram mais ou menos constantemente, durante o século XX, foi no esporte e no lazer.

O que, de fato, parece ter acontecido é que uma tradição da classe trabalhadora, de brigas de rua e nos pubs, associada à “masculinidade agressiva” e há muito estabelecida, começou a declinar em consequência, por exemplo, de deslocamentos de residência, crescente afluência e a incorporação cada vez maior de pessoas da classe trabalhadora aos padrões ou valores sociais dominantes. Enquanto isso acontecia, cada vez mais um número comparativamente pequeno de homens que ainda se apegavam à tradição de brigas de rua e nos pubs utilizava os esportes e o lazer, e depois da década de 1960 especialmente o futebol, como contexto para expressá-la. Essa invasão de um esporte nacional por parte de gangues da classe trabalhadora num país que até então se orgulhava de seu público esportivo pacífico, e que

era aclamado internacionalmente por isso, foi desproporcionalmente

amplificada pela mídia em relação ao que realmente estava ocorrendo, contribuindo para a impressão de uma sociedade em que a lei e a ordem estavam prestes a entrar em colapso. Entretanto, se levarmos em consideração o quadro geral, fica claro que, na maior parte do século XX, os relatos – e provavelmente a realidade factual – de violência na Grã-Bretanha tinham diminuído, e o aumento ocorrido na década de 1960 e depois foi relativamente pequeno. Mesmo o aumento do hooliganismo associado ao futebol pode ser em grande parte explicado como um tipo de transferência das tradições violentas da comunidade, do pub e das ruas para o

178

esporte e o lazer. Resumindo, nossas descobertas foram e são amplamente coerentes com aquelas de pesquisadores de tendências de longo prazo. Conclusão: as Tendências da Violência e a Tese de Elias Como conclusão, quero propor que – e esta pequena crítica de modo algum pretende diminuir a importância de seu trabalho –, ao contrário de Johnson e Monkkonen (1966), Elias via a “civilização” como um “processo sem começo” e nunca afirmou que “com o tempo, a violência diminuiria”. De fato, ele via um futuro mais incerto e sugeria que, no atual nível de conhecimento, tudo que podemos fazer é investigar por que ocorreram determinadas sequências passadas, e não outras plausíveis e possíveis (Elias, 1978: 158 ff). Não podemos, porém, prever o futuro e, embora fosse otimista, Elias certamente não descartava a possibilidade de guerra nuclear como parte do processo em que seres humanos aprendem maneiras melhores de viver junto (Elias, 1991: 146).

Ted Gurr (1981) foi um dos primeiros acadêmicos a reconhecer que o aumento do relato de crimes violentos em muitos países ocidentais, que ocorre a partir das décadas de 1960/1970, antes sustenta que refuta Elias. Esse aumento, argumenta Gurr, “parece ser uma pequena perturbação, proporcionalmente menor do que as oscilações ascendentes ocorrida no período elizabethano e durante as guerras napoleônicas – oscilações que se mostraram temporárias”. Todo grande “aumento súbito de crimes violentos”, segundo ele, foi consequência de “deslocamentos sociais fundamentais”. Entre outras coisas, isso acabou separando estratos inteiros – e agora estou citando Gurr – das “instituições civilizadoras que instilam e reforçam as injunções ocidentais básicas contra a violência interpessoal”. Essas forças deslocadoras “podem ser migrantes, veteranos desmobilizados, uma população crescente de jovens desiludidos, para quem não há qualquer nicho social ou econômico, ou jovens negros sem instrução confinados em guetos decadentes de uma sociedade afluente”. Gurr enfatiza que “os episódios mais devastadores de desordem pública” parecem coincidir com colapsos da civilização, “mudanças de valores que legitimam a violência”, geralmente transmitidas através da cultura popular. Por essa razão, a instabilidade das famílias de baixa renda e a destruição da compaixão institucionalizada por meio do Estado do bem-estar social do pós-guerra,

179

em resposta às exigências neoliberais, podem ter repercussões “descivilizadoras” deletérias no longo prazo (Gurr, 1981: 338-340, 343, 346; ver também Leyton, 1995: 251). Esse é um argumento convincente. No presente contexto, apenas é necessário acrescentar que os atuais processos aceleradores da globalização que – por estarem ambos associados, numa relação causal e de consequência, à presente dominância

das

doutrinas

neoliberais

ou

da

“Nova

Direita”



estão

fundamentalmente alimentando a erosão dos Estados do bem-estar social e a tendência a uma violência crescente podem fazer essa tendência “descivilizadora” durar mais tempo de foi o caso nos períodos elizabethano e napoleônico. Se isso for verdadeiro ou não, se as análises e argumentos que apresentei neste capítulo tiverem alguma substância, uma interpretação de Elias baseada numa leitura atenta e precisa de seus textos principais, e não em interpretações ideológicas equivocadas do que ele escreveu, nos proporciona uma base sobre a qual será possível ampliar nossa compreensão sobre a estrutura e a dinâmica dos processos “civilizadores” e “descivilizadores” além do nível alcançado até agora. Espero que a tipologia, os dados e os argumentos e “testes” a respeito de Elias que esbocei neste capítulo sejam úteis.

Notas ___________________________________________________________________ ___

1. Uma omissão óbvia desse conjunto de tópicos são as várias formas de terrorismo. Também haveria razões para discutir mudanças de longo prazo em padrões de violência contra crianças. De fato, as representações da violência e seus efeitos por parte da mídia de massa talvez devessem ter sido incluídos, também. 2. Apenas para mencionar um exemplo infame e horrível, havia umas 150 mulheres entre os guardas do campo de extermínio de Auschwitz. Uma delas, Ilse Greser, era particularmente conhecida por seu sadismo. Foi enforcada depois da guerra.

180

3. O conceito de “processo des-civilizador” refere-se a um processo civilizador invertido. Quanto ao “processo dis-civilizador” refere-se a um regime “civilizado” que cria e mantém compartimentos de destruição e barbarismo em meticuloso isolamento, quase invisível e praticamente não mencionável. É como se o processo civilizador continuasse com os mesmos meios, mas de um modo diferente: ou seja, tornou-se um “processo discivilizador” (de Swaan, 2003: 141). Resumindo, esse conceito é elaborado para identificar o fato de que a formação do Estado não produz necessariamente consequências civilizadoras, e que os monopólios da violência por parte do Estado podem ser usados para finalidades “bárbaras” e “não civilizadas”. 4. Mesmo quando as pessoas estão sós, elas geralmente fazem parte de um campo social. Podem, por exemplo, viver sozinhas, mas têm vizinhos; ou podem ficar no seu quarto, mas na casa e na vizinhança há outras pessoas. As únicas exceções parciais são os eremitas que conseguem ser bem-sucedidos em evitar completamente a companhia de outros. Graus de individualização/solidão como ter seu próprio quarto são, de fato, uma das propriedades variáveis de todos os campos sociais. 5. É claro que é “natural” para os seres humanos ser “social”. Isso quer dizer que evoluímos biologicamente como uma espécie dependente de artefatos sociais como a linguagem e subsídios internos para a sociabilidade, como o sorriso e a risada. Os adultos podem, obviamente, aprender a usar o sorriso, a risada e a linguagem também de maneira “antissocial”, mas isso é igualmente uma variedade do “fato social” 6. Aqui Joas refere-se ao trabalho de Helmut Thome. Ver “Gesellschaftliche Modernisierung und Kriminalität”, de Thome, em Zeitschrift für Soziologie, 21 (1992), pp 165-80. 7. Ver em O Esporte é Importante (Sport Matters) (1999), de Eric Dunning, uma discussão sistemática sobre essa questão. 8. Segundo Elias, as ideias mágico-míticas tendem a permanecer como um substrato no pensamento humano, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, e a ressurgir em situações muito críticas. 9. O presidente George W. Bush, bem como alguns de seus colegas, incluindo talvez Tony Blair, poderia ser descritos como um “fundamentalista religioso”.

181

Sendo assim, se o que eu escrevi neste capítulo tiver alguma substância, eles provavelmente hesitariam menos em usar armas nucleares do que muitos de seus antecessores. 10. De um ponto de vista “eliasiano”, o conceito de “modernidade” é um termo bem abrangente que obscurece muitas das diferenças relativas ao conteúdo, trajetórias e timing detectáveis na emergência do Estado nacional urbano-industrial.

Capítulo 1

A “teoria central” de Elias: os processos “civilizadores” ocidentais e algumas de suas principais variações

Elias considerava sua teoria do “processo civilizador” como exemplo daquilo a que costumava se referir como uma “teoria central”. Até onde sei, jamais pôs isso no papel, mas sei, a partir de suas aulas e de conversas que tivemos, que desenvolveu o conceito de uma “teoria central” em parcial consonância com a postura crítica assumida por C. Wright Mills (1959) em relação ao que este chamava de “grandes teorias”. Assim as descrevia Mills:

A causa fundamental da grande teoria é a opção inicial por um nível de pensamento tão genérico que seus praticantes não são logicamente capazes de sequer considerar a observação. Como grandes teóricos, jamais descerão das altas generalidades para os problemas em seus contextos históricos e estruturais. Essa ausência de uma firme noção de problemas genuínos, por sua vez, contribui para a irrealidade tão marcante em suas páginas (Mills 1959: 42 ).

182

A obra do norte-americano Talcott Parsons (1951) e, mais recentemente, os esforços de síntese de Anthony Giddens (1984) são exemplos de “grandes teorias” nesse sentido. Elias compartilhava com Mills a oposição à generalidade, à abstração e ao caráter não-empírico da maioria dos textos de autores como Parsons e insistia na necessidade de um “constante trânsito de mão dupla” entre a teoria e a observação, no qual a nenhuma delas fosse permitida a ascendência sobre a outra. Esse era um pré-requisito decisivo, acreditava ele, para uma sociologia que fosse vibrante, frutífera e gerasse conhecimento “incongruente com a realidade”, quer dizer, conhecimento duro, factual, que fosse útil num sentido prático e orientado pela realidade. Elias também rejeitava “livros sobre livros” e compartilhava a ênfase de Mills sobre a sociologia como uma matéria histórica dedicada às estruturas. Por isso é que a teoria dos processos civilizadores, como já havíamos começado a ver, envolve, de um lado, o estabelecimento de conexões entre as minúcias dos padrões sociais em desenvolvimento e os hábitos sociais e, de outro, estágios de formação estatal, cadeias de interdependência, democratização funcional e graus de pacificação sob controle estatal. Nessa conexão, é provavelmente digno de nota que, na Alemanha, Elias havia trabalhado com Alfred Weber, irmão de Max. Alfred Weber colaborou com Mills quando este foi para os EUA. Em sua introdução à edição de 1968 de Über den Prozess der Zivilisation, Elias comparou sua própria obra com a “grande teoria” de Parsons nos seguintes termos:

Aquilo que, com ajuda de extensa documentação empírica, neste livro se demonstra ser um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz retrospectivamente (…) a estados. Em lugar de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções – mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva –, Parsons sugere uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva, que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de sociedades, como quantidades diferentes de substâncias químicas. Ao reduzir a dois diferentes estados aquilo que se mostrou empiricamente, em O processo civilizador, ser um processo e que se interpretou teoricamente como tal, Parsons priva-se da possibilidade de descobrir como as peculiaridades características das distintas sociedades às quais se refere devem ser

183

efetivamente explicadas. Do que se pode depreender, ele sequer levanta a questão da explicação. Os diferentes estados denotados pela antítese das “variáveis-padrão” são, ao que parece, simplesmente dados. Nesse tipo de teorização, desaparece a sutilmente articulada mudança estrutural na direção de um maior e mais uniforme controle de emoções que pode ser observado na realidade. Fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como desenvolventes (em evolução) e desenvolvidos (tendo evoluído) (Elias 1968; 2000: 454 [1990: 219]).

Assim, segundo Elias, o trabalho de Parsons envolvia “processo” ou “redução a estado”, quer dizer, Zustandsreduktion ou a redução de processos a estados. Explicações sociológicas, sustenta Elias, devem ser baseadas em dados e históricoevolutivas em sua essência. Robert K. Merton (1957) compartilhava algo da oposição de Mills e Elias às “grandes teorias” e, em lugar delas, advogava em favor daquilo que chamava de “teorias de escala intermediária”. Na medida em que uma “teoria de escala intermediária” soa como se tratasse de algo similar a uma “teoria central”, é essencial esclarecer o que Merton e Elias tinham em mente com seus conceitos assaz distintos. De acordo com Merton,

seria razoável supor que a sociologia avançará na medida em que sua preocupação primordial seja com o desenvolvimento de teorias de escala intermediária e será frustrada se sua atenção se concentrar sobre teoria em larga escala. Eu acredito que, hoje, nossa tarefa precípua é desenvolver teorias especiais aplicáveis a escalas limitadas de dados – teorias, por exemplo, de dinâmicas de classe, de pressões conflitantes de grupo, do fluxo de poder e do exercício de influência interpessoal –, ao invés de buscar, de um só golpe, a estrutura conceitual “integrada”, da qual seja possível derivar todas essas e ainda outras teorias (…). Estou sugerindo que a estrada para esquemas conceituais efetivos na sociologia será mais bem construída por meio do trabalho dedicado a teorias especiais e que ela acabará por permanecer como um plano irrealizado caso continuemos, no estágio atual, a tentar construí-la diretamente (Merton 1957: 9 ).

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Elias certamente teria saudado o aroma processual da analogia de Merton entre a construção de teorias e a construção de estradas. No entanto e a despeito da aparente semelhança sugerida pelos termos “intermediário” e “central”, ele (Elias) se opunha vigorosamente ao caráter ad hoc do conceito de Merton. Isso se devia à sua convicção de que a estratégia de Merton, ainda que munida de um valor potencial indubitável na satisfação da necessidade de uma sociologia baseada num tráfico de mão dupla entre pesquisa e teoria, acabaria por contribuir para que pouco ou nada fosse feito para fazer frente à fragmentação que está enraizada no caráter multiparadigmático da disciplina. Algo que seria válido apenas para certas fases do desenvolvimento da sociologia e não seria tão proeminente no período atual. Por isso, Elias ressaltou a necessidade de teorias centrais, ou seja, de teorias baseadas na observação empírica meticulosa, detalhada e minuciosa, assentada em um nível de síntese suficientemente alto para que seja aplicável a uma gama de tópicos, mas ao mesmo tempo suficientemente calcada na realidade para que seja claramente relacionada às experiências da vida real dos humanos e relevante para elas. Que Elias obteve uma boa medida de sucesso nessa conexão é algo que é sugerido pelo fato de que a teoria do processo civilizador foi utilizada para contribuir para o progresso do conhecimento relativo a assuntos aparentemente tão discrepantes quanto – e serão mencionado aqui fora de qualquer ordem específica – tempo e temporalidade, esporte e lazer, o consumo de alimentos a tabaco, guerra e violência, agonia e morte, elites científicas, música nas sociedades cortesãs e burguesas, além de tantos outros aspectos da vida humana. Passemos a um olhar mais aprofundado sobre a teoria central de Elias.

A teoria dos processos “civilizadores” É comum que críticos de Elias tratem a teoria dos processos “civilizadores” como se fosse uma teoria eurocêntrica, “evolucionista”, “unilinear” do “progresso inevitável e retilíneo” que celebrasse a supremacia do Ocidente. Nada mais distante da realidade. Trata-se de uma tentativa sóbria e realista de lançar luz sobre, entre outras coisas, a ascensão do Ocidente à dominação global nos séculos XVIII, XIX e XX. Dedica-se a explorar e explicar o fato indisputável, mas ainda assim longe de ser permanente, do predomínio ocidental, não a glorificá-lo. Elias via-o em termos

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processuais. Como sugeria ele, tratava-se, na época em que escrevia, isto é, na década de 1930, do último estágio numa série de relativamente descontínuas “lutas de integração”, que tenderam, ao longo de extenso períodos históricos e com numerosos “arranques e contra-arranques” (Elias 2000: 438), a se tornar sempre mais globais em seu escopo. Em seus escritos tardios, Elias passou cada vez mais a destacar como possibilidade não apenas uma maior unificação e pacificação globais sob o controle estatal global, mas também que a humanidade poderia destruir-se a si mesma por meio da guerra nuclear ou do aquecimento global ou, senão tanto, ao menos catapultar-se de volta a uma nova “Idade das Trevas”. Era uma de suas esperanças que a sociologia pudesse ser de alguma utilidade na conquista da primeira dessas possibilidades e no afastamento da segunda e da terceira delas. Exploremos, pois, a teoria dos processos “civilizadores” em maior detalhe.

O problema de Elias As primeiras palavras de Elias no prefácio de O processo civilizador foram:

Este livro tem como tema fundamental os tipos de comportamento considerados típicos do homem civilizado ocidental. É muito simples o problema que coloca. O homem ocidental nem sempre se comportou da maneira que estamos acostumados a considerar como típica ou como sinal característico do homem “civilizado”. Se um homem da atual sociedade civilizada ocidental fosse, de repente, transportado para uma época remota de sua própria sociedade, tal como o período medievo-feudal, descobriria nele muito do que julga “incivilizado” em outras sociedades modernas. Sua reação em pouco diferiria da que nele é despertada no presente pelo comportamento de pessoas que vivem em sociedades feudais fora do Mundo Ocidental. Dependendo de sua situação e inclinações, sentir-se-ia atraído pela vida mais desregrada, mais descontraída e aventurosa das classes superiores desta sociedade ou repelido pelos costumes “bárbaros”, pela pobreza e rudeza que nela encontraria (Elias 2000: ix [Elias 1990, vol. 1: 13]).

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Entre as implicações desta passagem estão o fato de que Elias reconhecia que havia modos de “ser civilizado” além da variante ocidental e que, no Ocidente, na época em que escrevia, não havia apenas um único, totalmente unificado habitus social ou cânone comportamental. Assim, Elias escreveu que uma pessoa “civilizada” de sua época acabaria por se sentir ou bem atraída em diferentes graus ou bem repelida em diferentes graus pela vida das classes superiores medievais. Do mesmo modo, nas passagens pertinentes de seu texto, Elias colocou entre aspas termos tais como “civilizado” e “incivilizado”, pois os considerava valorativamente carregados e altamente problemáticos. Sua intenção era mostrar que é um fato social indisputável que a maioria das pessoas em sociedades ocidentais se considerem atualmente “civilizadas”, mas que hesitariam em aplicar o mesmo adjetivo a muitas pessoas vivendo em sociedades tribais ou em países do “terceiro mundo”. Contudo, também é um fato social, de acordo com elias, que a maioria das pessoas no Ocidente contemporâneo não considerariam como “civilizados” nem mesmo seus próprios antepassados, pessoas que, por exemplo, tivessem vivido durante o período “medievo-feudal” da história ocidental. Poderiam apreciar o relativamente alto grau de liberdade daquele período, em especial a liberdade desfrutada pelas classes superiores. Poderiam, por outro lado, experimentar aversão diante da rudeza e da miséria, como, por exemplo, o cheiro de estrume de cavalo e excrementos humanos nas ruas. Porém, quase certamente, julgariam tudo isso praticamente da mesma maneira como julgariam atualmente as condições de vida num país do “terceiro mundo”, ou seja, como “atrasadas”, “brutais” e “incivilizadas”. Em resumo, pode-se dizer que as sociedades ocidentais passaram por um “processo civilizador”, uma série de transformações por meio das quais suas estruturas sociais e os habitus de seus membros se tornaram aquilo que são hoje. Isso levanta, segundo Elias, um grande número de questões. De modo mais específico, cito suas palavras:

Como ocorreu realmente essa mudança, esse processo “civilizador” do Ocidente? Em que consistiu? E quais foram suas causas ou forças motivadoras? É intenção deste estudo contribuir para a solução dessas principais questões (Elias 2000: x [1990, vol. 1: 13]).

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Dessa forma, Elias estava tentando contribuir para a compreensão sobre como e por que esse processo “civilizador” do Ocidente ocorreu. Ele não apresentou O processo civilizador como uma resposta final, definitva, algum tipo de “grande teoria”, “metanarrativa” ou “resposta totalizante”. Como o próprio Elias deixou claro numa passagem posterior do texto:

Este estudo, por conseguinte, coloca e desenvolve um problema de ramificações muito extensas. Mas não finge solucioná-lo. Delimita um campo de observação que até agora só escassamente foi visitado e empreende os primeiros passos na busca de um a explicação. Outros terão que ser dados (Elias 2000: xiii-xiv [1990, vol. 1: 18]).

Isso é coerente com a visão de Elias, que concebe o acervo social de conhecimento como algo intergeracional e coletivo. A acumulação de conhecimento, diz ele, é como uma corrida de revezamento, na qual uma geração “passa o bastão” ou “a tocha” para as mãos da próxima. Por certo, ele não ignorou o fato de que, em corridas de revezamento, algumas vezes o bastão é derrubado, isto é, o conhecimento por vezes se perde da mesma forma como é ganho. Elias também deixou claro, logo de saída, que a motivação por trás de seu estudo tinha tanto um caráter prático quanto acadêmico. Foi sugerido por Stephen Mennell (1989: 26) que Elias jamais se envolveu na política partidária. É verdade que, mesmo depois de obter a cidadania britânica, admitiu jamais ter sido membro de qualquer partido político e nem sequer votado em eleições. As pessoas que destacam isso como algo negativo, porém, parecem ignorar o engajamento bastante prático de Elias, não apenas no ensino e no desenvolvimento da sociologia, mas também, enquanto compunha o quadro permanente de professores em Leicester, na política universitária (em parte, na condição de assessor de Ilya Neustadt) e, após sua aposentadoria, igualmente na política estudantil. Durante as revoltas estudantis em todo o Ocidente em 1968, por exemplo, insistiu para que Dunning o acompanhasse em visitas a estudantes que ocupavam a biblioteca e o edifício da administração de Leicester. Estava interessado nas razões que os moviam e nos experimentos em

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torno de “novos modos de viver”, que engajavam membros das gerações mais jovens na década de 1960. Também se esforçou para se manter a par dos progressos na política mundial. Na sala dos professores de Leicester, por exemplo, era um leitor assíduo de periódicos como Time Magazine e International Herald Tribune. Além disso, ouvia regularmente no rádio o BBC World Service. Ao longo da década de 1940 e início da década de 1950, envolveu-se praticamente na promoção da psicoanálise de grupo na Grã-Bretanha. O objetivo principal de seu engajamento nessa esfera – em grande medida, de modo similar a Erich Fromm e outros membros da “Escola de Frankfurt”, que perseguiam algo que se aproximasse de uma perspectiva marxista – era contribuir para o desenvolvimento de formas de política e psicoterapia mais sociologicamente informadas do que aquilo que existia anteriormente. De fato, é possível dizer que, por meio de seu recurso a aspectos do trabalho de estudiosos como Mannheim, Simmel e os dois Webers, Elias obteve mais sucesso que Fromm e seus colegas, superando-os até, na busca de uma síntese entre os trabalhos de Marx e Freud. Algo que se apresentava, na época, como algo próximo à busca pela “pedra filosofal” ou pelo “Santo Graal” por parte dos cientistas sociais na primeira metade do século XX. Uma pequena amostra daquilo que Elias tinha em mente foi capturada na passagem a seguir:

as questões colocadas por este livro têm origem não tanto na tradição erudita (…) como nas experiências a cuja sombra todos vivemos, experiência das crises e transformações da civilização ocidental até agora, e na simples necessidade de compreender o que realmente significa essa “civilização”. Mas não fui orientado neste estudo pela ideia de que nosso modo civilizado de comportamento é o mais avançado de todos os humanamente possíveis, nem pela opinião de que a “civilização” é a pior forma de vida e que está condenada ao desaparecimento. Tudo o que se pode dizer hoje é que, com a civilização gradual, surge certo número de dificuldades específicas civilizacionais. Mas não podemos dizer que já compreendemos por que concretamente nos atormentamos desta maneira. Sentimos que nos metemos, através da civilização, em certos emaranhados desconhecidos de povos menos civilizados. Mas sabemos também que esses povos menos civilizados são, por seu lado, atormentados por dificuldades e medos dos quais não mais sofremos, ou pelo menos não no mesmo grau. Talvez tudo isso possa ser visto com

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um pouco mais de clareza se for compreendido como realmente operam esses processos civilizadores. De qualquer modo, foi este um dos desejos com que comecei a trabalhar neste livro. É possível que, com uma compreensão mais clara deles, possamos, algum dia, tornar acessíveis a um controle mais consciente esses processos que hoje ocorrem em nós e a nossa volta de uma forma não muito diferente dos fenômenos naturais, processos que enfrentamos da mesma maneira que o homem medieval enfrentava as forças da natureza (Elias 2000: xiv [1990, vol. 1: 18-9]).

Até que ponto se pode dizer que Elias alcançou esses objetivos simultaneamente modestos e ambiciosos? Nossa avaliação é a de que, em grande medida, alcançouos. Permitam-me que apresente mais elementos para substanciar essa avaliação. Elias dividiu seu estudo em quatro partes principais, assim chamadas:

1. Da Sociogênese dos Conceitos de “Civilização” e “Cultura” 2. A Civilização como Transformação Específica do Comportamento Humano 3. Feudalização e Formação do Estado 4. Sinopse: Sugestões para uma Teoria de Processos Civilizadores.

Über den Prozess der Zivilisation [Sobre o processo da civilização] (1939, 1968) foi originalmente publicado em dois volumes, assim como a primeira tradução para o inglês. Porém, no caso da edição em língua inglesa, receberam dos editores títulos distintos daqueles dados pelo próprio Elias. O volume 1 foi chamado The Civilising Process: the History of Manners [O processo civilizador: a história dos costumes] (1978) e o volume 2 recebeu, no Reino Unido, o título de State-Formation and Civilisation [Formação do Estado e Civilização], e nos EUA, Power and Civility [Poder e civilidade]. Ambas as traduções inglesas do volume 2 foram publicadas em 1982. Elias apresentou severas objeções à utilização tanto de “A História dos Costumes” como de “Poder e Civilidade” como, respectivamente, subtítulo e título,

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mas sua oposição foi desconsiderada por Urizan, os editores da primeira edição traduzida. Ele se opunha a “História dos Costumes” porque se tratava de uma formulação menos precisa e, em decorrência, potencialmente enganosa como caracterização dos conteúdos do primeiro volume, sobretudo se comparada com a formulação proposta pelo próprio autor, “Changes in the Behaviour of the Secular Upper Classes in the West” [Mudanças no comportamento das classes superiores seculares no Ocidente], um subtítulo capaz de tornar explícito o fato de que ele estava, afinal, deliberadamente deixando de fora de qualquer escrutínio sistemático o papel desempenhado pelas elites religiosas nos processos “civilizadores” europeus. “Poder e Civilidade” é igualmente enganoso, na medida em que não contém qualquer referência aos processos de formação estatal e situa em posição de indevido destaque a “civilidade”, um conceito que, como procurarei demonstrar adiante, Elias demonstrou ter uma posição secundária na série tripartite “cortesia”, “civilidade” e “civilização”, por meio da qual sucessivas classes dirigentes ocidentais expressaram sua autoimagem. No século XIX, conforme o Ocidente como um todo se tornava uma espécie de “classe dirigente global”, “civilização” passou a ser um termo “nacional”, que expressava a autoimagem de grupos relativamente “integrados” nos países ocidentais de um modo geral. No final do século XIX e início do século XX, isso dizia respeito, em primeira instância, à França e à Inglaterra e, posteriormente, cada vez mais também àquela nação que outrora havia sido uma ramificação colonial desta última, os EUA. Voltemo-nos agora para aquilo que Elias chamava de “sociogênese dos conceitos de 'civilização' e 'cultura'”.

A sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura” Com o termo “sociogênese”, Elias pretendia expressar as noções de “formação social”, “produção social”. Nessa acepção, ele não teria acatado, no entanto, termos como “construção social”, que se haviam popularizado na década de 1960 a partir do trabalho de autores como Berger e Luckman (1966) e que continuam a ser amplamente utilizados até o presente. A razão para essa recusa estaria no fato de Elias considerar tais termos como excessivamente voluntaristas e racionalistas, enquanto ele próprio, por seu turno, estava tanto mais preocupado com o

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estabelecimento do equilíbrio mais preciso possível entre a escolha e a determinação ou a compulsão nas origens e no desenvolvimento de conceitos, práticas e estruturas sociais. Elias escreveu não somente a respeito da sociogênese, mas também da “psicogênese”. Com este termo, pretendia indicar o papel desempenhado pela “psicodinâmica” nos processos sociais, isto é, processos ocorridos na esfera da psique, da personalidade ou do habitus e que têm tenazes ramificações pessoais e sociais. Passemos à exploração daquilo que Elias escreveu especificamente sobre a sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura”. O que ele elaborou foi, na verdade, um ensaio sobre a sociologia do conhecimento e compreendê-lo é crucial para perceber a adequação e o valor da teoria dos processos “civilizadores” como uma contribuição para o entendimento sociológico. Em seu esforço, é possível afirmar que Elias antecipou muitos dos argumentos posteriormente apresentados por escritores como o egípcio Edward Said (1978) a respeito do tema. Portanto, não há fundamentos para acusá-lo de qualquer inclinação “eurocêntrica”. O conceito de “civilização”, segundo Said, pode ser usado para se referir a uma ampla variedade de fatos: ao estágio de avanço tecnológico de uma sociedade; ao habitus e aos costumes de seu povo; às suas práticas e aos seus ideais religiosos; aos padrões de limpeza corporal e higiene; à forma como praticam seus esportes; aos níveis de seu conhecimento científico; aos padrões de suas relações de classe, gênero e “raça”; às maneiras como preparam sua comida; e a tantas outras coisas. Na verdade, praticamente não há o que, nas vidas sociais dos seres humanos, não possa ser descrito como mais ou menos “civilizado” ou mais ou menos “incivilizado”. Isso torna o conceito de “civilização” difícil de definir. No entanto, não é tão difícil, de acordo com Elias, determinar a função geral do termo. O que esse conceito propiciou, escreveu, foi a expressão da autoconsciência das pessoas no Ocidente, especialmente de seus grupos dominantes. Trata-se, por conseguinte, de um conceito que está intrinsecamente vinculado às diferenças de poder e aos sentimentos e percepções intergrupais. Nas palavras de Elias:

esse conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional (dos cidadãos de suas principais nações). Ele

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resume tudo aquilo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais (Elias 2000: 5 [1990, vol. 1: 23 ]).

Talvez seja digno de nota e oportuno ressaltar que o Elias da década de 1960 em diante teria tentado evitar a reificação presente nessa passagem por meio de uma referência expressa às crenças dos membros das sociedades ocidentais. Contudo, essa pequena correção tem menos importância para nossos propósitos do que o fato de que Elias prosseguiu sugerindo que existem diferenças no sentido que o conceito de “civilização” assume para os membros de diferentes nações ocidentais, sobretudo para franceses e ingleses, de um lado, e para alemães, de outro. Mesmo nessa fase relativamente precoce em sua carreira, Elias estava pensando em termos daquilo a que outros estudiosos alemães passaram a chamar de Sonderweg, o “caminho peculiar”

ou parcialmente isolado da Alemanha. Enquanto para franceses e

ingleses, mais especificamente, “civilização” e suas derivações são termos que denotam valores do mais alto escalão, para os alemães, “civilização” pode ser utilizada como um termo apologético, mas geralmente acaba sendo utilizada para denotar unicamente valores de segunda ordem. Em alemão, o termo “civilização” também pode ser usado em sentido pejorativo, para significar “superficialidade” e “falta de solidez e profundidade”. Como expõe Elias, “a palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur (Elias 2000: 6 [1990, vol. 1: 24]), ou seja, “cultura”. Uma série de questões complexas se levantam nessa discussão. Para os propósitos do presente trabalho, devo-me concentrar sobre uma delas apenas. Elias sugere que, se o conceito de “civilização” é um termo universalista, que se assenta sobre características humanas comuns que ou bem são de fato ou bem podem ser potencialmente mais ou menos compartilhadas, Kultur é, por oposição, um termo

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particularista, que reforça a diferença. Aquilo que Elias disse a respeito desse tópico vale ser citado integralmente:

Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo. Manifesta a autoconfiança de povos cujas fronteiras nacionais e identidade nacional foram tão plenamente estabelecidos, desde séculos, que deixaram de ser tema de qualquer discussão, povos que há muito se expandiram fora de suas fronteiras e colonizaram terras muito além delas. Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disso, o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma significação muito além da área linguística alemã e da situação em que se originou o conceito. Mas essa situação é aquela de um povo que, de acordo com os padrões ocidentais, conseguiu apenas muito tarde a unificação política e a consolidação e de cujas fronteiras, durante séculos ou mesmo até o presente, territórios repetidamente se desprenderam ou ameaçaram se separar. Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: “Qual é, realmente, nossa identidade?” A orientação do conceito alemão de cultura, com sua tendência à demarcação e ênfase no detalhamento de diferenças entre grupos, corresponde a esse processo histórico. As perguntas “O que é realmente francês? O que é realmente inglês?” há muito deixaram de ser assunto de discussão para franceses e ingleses. Durante séculos, porém, a questão “O que é realmente alemão?” reclamou sempre resposta. Uma resposta a essa pergunta – uma entre várias outras – reside em um aspecto peculiar do conceito de Kultur (Elias 2000: 7 [1990, vol. 1: 25]).

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Elias escreveu isso na década de 1930, numa época em que o Império Britânico aparentava, ao menos na superfície, manter-se em grande medida intacto. Agora que esse Império e sua “Commonwealth” virtualmente deixaram de existir como tais e que o Reino Unido se tornou uma sociedade multiétnica, “multicultural”, que faz parte da União Europeia, a questão sobre o que “realmente significa ser inglês” surgiu novamente, junto com as questões sobre o que significa ser “britânico”, “escocês”, “galês”, “irlandês do norte”, “hindu”, “sikh”, “anglo-muçulmano”, ou um cidadão inglês/britânico de ascendência africana, afrocaribenha ou chinesa de Hong Kong. Em grande medida, o mesmo vale para os franceses. Entretanto, de acordo com o Elias que escrevia na década de 1930, o conceito de “civilização”, em francês e inglês, havia se tornado naquela altura um termo laudatório, expressando a autoconsciência nacional de dois povos colonizadores que haviam desfrutado de fronteiras nacionais seguras e de um correspondente sentido de identidade nacional por séculos. De mãos dadas com isso, seguia a tendência a desejar “civilizar os bárbaros”, algo que, na verdade, representava pouco mais que uma justificação ideológica para sua exploração colonial. Tudo isso se colocava, porém, em franca harmonia. Em contraste, o conceito alemão de Kultur, o equivalente germânico para o termo laudatório, é um conceito que reflete a autoconsciência de uma nação que sempre foi privada de fronteiras seguras e de uma identidade nacional estável e que não foi capaz de embarcar numa expansão colonial de tal modo contínua e bem sucedida como a de franceses e ingleses. Finalmente, Zivilisation pode ser um termo apologético de segunda ordem em seu emprego na língua alemã, ao mesmo tempo, porém, que também representa um termo carregado de sentido derrogatório. Como é possível explicar esse desenvolvimento linguístico global? Conceito matemáticos, afirmava Elias, podem ser separados dos grupos que os utilizam. É possível explicar triângulos ou retângulos sem qualquer referência a circunstâncias socioespaciais, sócio-históricas ou socioculturais. Eles são os mesmos na Irlanda, Inglaterra, Austrália e no Curdistão. São hoje os mesmos que foram nos séculos IX, XII, XVI, XX e XXI. No entanto, conceitos sociais, tais como “civilização” e “cultura”, não podem ser compreendidos independentemente dos grupos que os inventaram

e

que

os

utilizam.

Tampouco

podem

ser

compreendidos

independentemente das histórias desses grupos. São termos que carregam a marca

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de povos inteiros, ou talvez apenas de algumas de suas classes constitutivas. Antigamente, essas eram via de regra as classes dirigentes, mas mais recentemente, na medida em que a democratização começou a ocorrer, grupos mais amplos começaram a ser contemplados. A origem de um dado termo que tenha sido inventado pode ser retraçada e atribuída ao indivíduo que o criou. Pode ter sido “feito por um homem”, em lugar de “feito pelo homem”, ou “feito por uma pessoa”, em lugar de “feito pelas pessoas”, ou seja, resultado de uma “invenção individual”, ao invés de uma “invenção coletiva”. Entretanto, o fato de que um certo termo se torne corrente indica, de acordo com Elias, que ele atendeu “demandas coletivas” e não somente “demandas individuais”. Como Elias explica a emergência da antítese entre Kultur e Zivilisation no emprego que têm na língua alemã? E como foi que essa antítese tomou forma e deitou raízes? Segundo Elias, a interação entre um combinado de três processos parciais ajuda a responder essa questão. Mais especificamente, sugere:

(i) a sociedade alemã não passou por um processo de unificação nacional até um período comparativamente tardio, muito mais tarde que os franceses e ingleses; (ii) as classes dirigentes cortesãs na Alemanha eram mais socialmente exclusivas que suas equivalentes francesas e inglesas e não possuíam confiança suficiente para integrar agrupamentos burgueses em seus círculos sociais no mesmo grau em que os ingleses, mais seguros e autoconfiantes, haviam feito; e (iii)

as classes dirigentes na Alemanha dos séculos XVIII e XIX falavam

francês em lugar do alemão e baseavam suas atitudes em grande medida em seus pares na França. Na verdade, utilizavam os termos franceses civilisation e civilisé para descrever seu próprio comportamento e diferenciá-lo do de seus compatriotas mais abaixo na escala social, incluindo os membros da burguesia. O filósofo Leibniz, diz Elias, o único alemão a obter amplo reconhecimento nos círculos cortesãos europeus desse período “escrevia e falava em francês ou latim, raramente em alemão” (Elias 2000: 11 [1990, vol. 1: 30]). E Frederico, o Grande, rei da Prússia, publicou um livro em 1780, intitulado De la Littérature Allemande (Da literatura alemã), no qual afirmava sobre o alemão: “Considero-a uma língua

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semibárbara, que se fraciona em tantos dialetos diferentes como a Alemanha tem províncias” (Elias 2000: 12 [1990, vol. 1: 31]). Elias procurou explicar essa antítese emergente da seguinte maneira:

No topo, por quase toda a Alemanha, situavam-se indivíduos ou grupos que falavam francês e decidiam a política. No outro lado, havia uma intelligentsia de fala alemã que de modo geral nenhuma influência exercia sobre os fatos políticos. De suas fileiras, em essência, saíram os homens por conta dos quais a Alemanha foi chamada de terra de poetas e pensadores. E deles, conceitos como Bildung e Kultur receberam seu cunho e substância especificamente alemães (Elias 2000: 15 [1990, vol. 1: 33-4]; grifo do autor).

Nas sendas da antítese entre Kultur e Zivilisation, escreveu Elias, reside a “relativa indigência” da Alemanha como um todo, que decorria da frangmentação pósmedieval do país e da frequência com que estava envolvido em guerras. Isso, sugeria ele:

levava os nobres a se isolarem, utilizando a prova de ancestralidade como o instrumento mais importante para lhes preservar a existência social privilegiada. Por outro lado, bloqueava à classe média alemã a principal rota pela qual, nos países ocidentais, ascendiam os elementos burgueses, casavam-se com egressos da aristocracia e por esta eram recebidos: através do dinheiro (Elias 2000: 19 [1990, vol. 1: 38]).

Elias admitia que, por vezes, o sentido de Kultur para os alemães se aproximava daquele atribuído a civilisation pelos franceses e ingleses. Por exemplo, um autor chamado Meyer escrever um 1897 que “(c)ivilização é o estágio pelo qual tem que passar um povo bárbaro a fim de atingir uma Kultur mais alta em indústria, arte, ciência e atitudes” (Elias 2000: 517-8 [1990, vol. 1: 252 n. 2]). A ideia de

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Zivilisation como termo de segunda ordem todavia persistia. Era “uma manifestação de afirmação da Alemanha contra os países ocidentais” (Elias 2000: 518 [1990, vol. 1: 252 n. 2]) e tinha seu correlato na crença das pessoas que habitavam esses países segundo a qual haviam travado a Primeira Guerra Mundial contra a Alemanha para defender a “civilização”. Elias não poderia ter tido mais que uma leve suspeita disso na época em que escrevia, mas 1939, o ano em que Über den Prozess der Zivilisation foi publicado, era também o ano em que uma segunda “cruzada” contra a Alemanha em nome da “civilização” estava por começar. Naquela época, a Alemanha experimentava os estertores de um “colapso da civilização” e membros dos “aliados” vitoriosos sentiram-se plenamente justificados em partir para a guerra contra os “bárbaros” alemães uma segunda – ou, no caso dos franceses, terceira – vez.

“Civilização” como uma transformação específica do comportamento humano Já sugeri anteriormente que Elias via a “civilização” com o último termo numa série tripartida – “cortesia”, “civilidade” e “civilização” – por meio da qual, no contexto de sociedades que experimentaram aquilo que hoje reconhecemos ter sido uma acelerada transformação social, membros das classes superiores seculares expressavam sua autoconsciência e sua percepção de superioridade social. Elias não tratou esses conceitos, porém, na mesma ordem em que emergiram. Preferiu começar pelo termo do meio, “civilidade”, uma expressão utilizada pela primeira vez, se os registros atualmente disponíveis estão corretos, pelo humanista Erasmo de Roterdã em um livro chamado De civilitate morum puerilium (Da civilidade no comportamento das crianças), publicado em 1530. Teve mais de 130 edições e reedições, 13 das quais em data tão recente como o século XVIII. Foi traduzido para todas as principais línguas europeias (Elias 2000: 47 [1990, vol. 1: 68]), um fato que indica que veio de encontro a uma necessidade amplamente sentida pelas classes dirigentes seculares à medida em que a Idade Média se aproximava do fim e a “modernidade” entrou em ascensão. Elias tratou primeiramente dos “códigos de civilidade” porque o livro de Erasmo permite que os leitores “vejam”, por assim dizer, “em ambas as direções”, para

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aquilo que, no século XVI, era ao mesmo tempo o passado e o futuro. Tratava-se, de modo bastante literal, de um texto de transição. Recomendava maneiras de bem se comportar para meninos que estavam enraizadas simultaneamente em tradições feudais e modernas. Nesse sentido, era indicativo da “civilização” como processo. Acompanhemos o texto de Erasmo ao abordar a “linguagem corporal”, de início sobre o modo como as pessoas usam seus olhos. Dizia que:

o olhar esbugalhado é sinal de estupidez, o olhar fixo sinal de inércia; o olhar dos que têm inclinação para a ira é cortante demais; é vivo e eloquente o dos impudicos; se seu olhar demonstra uma mente plácida e afabilidade respeitosa, isso é o melhor. Não é por acaso que os antigos dizem: os olhos são o espelho da alma (Elias 2000: 49 [1990, vol. 1: 69]) .

Os sentimentos expressos ali não são motivo de choque nem de surpresa para aqueles que possuem o habitus ou a compleição afetiva de pessoas que se consideram “civilizadas” nos dias de hoje. Pouco adiante, contudo, Erasmo prosseguiu escrevendo que “não deveria haver ranho nas narinas (…) Um camponês assoa seu nariz em seu chapéu e casaco, um fabricante de salsichas em seu braço e cotovelo” (Elias 2000: 49 [1990, vol. 1: 69]) . Mais adiante, disse: não exponha “as partes a que a Natureza conferiu pudor”, a não ser que lhe seja necessário. Algumas pessoas recomendam, diz ele, que os meninos devem “reter os ventos, comprimindo a barriga. Mas dessa maneira pode-se contrair uma doença”. Em outra passagem: “Os tolos que valorizam mais a civilidade que a saúde reprimem sons naturais” (Elias 2000: 51 [1990, vol. 1: 71]) . Isso evidencia claramente a “cabeça de Jano”, a ambivalência que caracteriza esse estágio no desenvolvimento das regras de comportamento no Ocidente. Por outro lado, Erasmo não hesita em utilizar a palavra “ranho”, que a nós contemporâneos nos soa embaraçosa. Ademais, ele utiliza circunlóquios ao invés de se referir diretamente aos genitais ou de recorrer a palavras que ainda hoje são em grande medida tabu na sociedade bem criada, tais como “arrotar” e “peidar”. Isso leva Elias a sugerir que:

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recuando do conceito de civilização para seu ancestral civilité, descobrimo-nos de repente na pista do próprio processo civilizador, da mudança concreta no comportamento que ocorreu no Ocidente. E um dos sintomas do processo civilizador é ser embaraçoso para nós falar ou mesmo ouvir muito do que Erasmo diz. O maior ou menor desconforto que sentimos com pessoas que discutem ou mencionam suas funções corporais mais abertamente, que ocultam ou restringem essas funções menos que nós, é um dos sentimentos dominantes no juízo de valor “bárbaro” ou “incivilizado”. Tal, então, é a natureza do “barbarismo e de seus desgostos” ou, em termos mais precisos e menos valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura de emoções, o diferente padrão de repugnância ainda hoje encontrado em numerosas sociedades que chamamos de “incivilizadas”, o padrão de repugnância que precedeu o nosso e é sua precondição (Elias 2000: 51 [1990, vol. 1: 72]).

Isso levanta a questão, disse então Elias, sobre como e por que as sociedades ocidentais se distanciaram efetivamente de um padrão na direção de outro, como se tornaram “civilizadas”. Na procura por respostas, escreveu, sensações de desconforto (Unbehagen), embaraço e superioridade inevitavelmente serão despertadas em nós. A geração dessas sensações, argumentava Elias, já antecipando um dos pilares centrais e mais frequentemente incompreendidos em seu tratado sobre “engajamento e distanciamento”, é parte valiosa do exercício. É necessário, no entanto, procurar controlar essas sensações, “tentar suspender todos os sentimentos de embaraço e superioridade, todos os juízos de valor e críticas associadas aos conceitos de “civilização” ou “incivilizado” (Elias 2000: 52 [1990, vol. 1: 72]). Eles se referem a um processo “sem começo” e que ainda está em curso. É bem possível que nossos descendentes também se sintam embaraçados por aspectos de nosso comportamento. É possível que nos considerem como parte de uma era “feudal” ou “medieval” que se tenha prolongado, ou então, como chegou a formular Elias posteriormente, como “bárbaros tardios” (1991). Consideremos algo da evidência que formou a espinha dorsal daquilo que pode ser chamado de a base

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“microssociológica” da teoria de Elias e que foi enganosamente caracterizado como “a história dos costumes”.

“Cortesia”, “civilidade” e “civilização” como estágios de um processo “Cortesia”, “civilidade” e “civilização” são, como vimos, uma série temporal. Isto é, “cortesia” surgiu primeiro, no período medievo-feudal. “Civilidade” emergiu depois, na era que os historiadores, dependendo se querem enfatizar aspectos religiosos ou seculares, convencionaram chamar de “Reforma” ou “Renascimento”. Foi um tempo em que “a sociedade cavalheiresca e a unidade da Igreja Católica estavam se desintegrando” (Elias 2000: 47 [1990, vol. 1: 67]). “Civilização” veio a seguir. Assim como “civilidade”, pode ser retraçada a um indivíduo específico, no caso, Mirabeau, o pai, na França da década de 1760 (Elias 2000: 34 [1990, vol. 1: 54]). “No momento de sua formação”, disse Elias, fora “um claro reflexo de ideias reformistas”, propagadas pelos “fisiocratas”, os precursores dos economistas modernos, uma clique cortesã (aquém ainda da configuração de um partido político, como no sentido inglês do termo), que pretendia que os monarcas se tornassem “ilustrados” e governassem de acordo com princípios “racionais” assentados sobre o entendimento da dinâmica demonstrável da “civilização” que acreditavam ter descoberto (Elias 2000: 39 [1990, vol. 1: 59]). De acordo com Elias, duas ideias se haviam fundido no conceito de “civilização”. Por um lado, conformou um “contraconceito” para um estágio anterior de desenvolvimento, o “barbarismo”. Por outro lado, foi percebido como um processo que tinha de ser levado adiante. Este último aspecto, afirmou Elias, era uma expressão dos interesses da classe média ascendente. Nesse sentido, o termo refletia “o fado social específico da burguesia (francesa) exatamente no mesmo grau que o conceito de Kultur refletia o de sua correspondente alemã” (Elias 2000: 43 [1990, vol. 1: 63-4]). Dessa forma, o conceito de “civilização” iniciou sua “vida” como uma arma da classe média. À medida que as classes médias foram adquirindo mais poder, contudo, passou a expressar a autoimagem nacional e a servir como um instrumento para justificar aspirações francesas (e inglesas) à expansão nacional e à colonização.

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Por exemplo, quando Napoleão se lançou rumo ao Egito, em 1798, admoestou suas tropas com as seguintes palavras: “Soldados, estais iniciando uma conquista de consequências incalculáveis para a civilização” (Elias 2000: 43 [1990, vol. 1: 64]). A partir daquele ponto, advertiu Elias, os franceses, assim como os ingleses contra quem lutavam, passaram a considerar seu próprio processo de civilização como acabado. E prosseguiu:

a consciência de sua própria superioridade, dessa “civilização”, passa doravante a servir pelo menos às nações que se tornaram conquistadoras de colônias e, por conseguinte, um tipo de classe superior para grandes porções do mundo não europeu, como justificativa de seu domínio, no mesmo grau em que, antes, os ancestrais do conceito de “civilização” (…) haviam servido à classe superior cortesano-aristocrática como uma justificação do seu (Elias 2000: 43 [1990, vol. 1: 64]).

Referir-se aos termos “cortesia”, “civilidade” e “civilização” como uma série temporal, expressando estágios em um processo, não implica dizer que, a cada vez que um novo termo emergia, o anterior ou os anteriores caíam em desuso. Todos os três continuaram a ser usados (juntamente com sinônimos, tais como “polidez”) até os dias atuais. Isso se assemelha à evolução biológica, na qual, a despeito de terem sido extintas espécies de hominídeos como Australopithecus, Neanderthal e outros hominídeos remotos, como o Homem de Pequim e o Homem de Java, nem por isso hominídeos mais recentes, os grandes primatas não humanos e humanos, continuam a coexistir. Terá o “processo civilizador”, de acordo com Elias, sido meramente uma mudança linguística? A resposta para essa questão é um sonoro “não”. Utilizando uma variedade de fontes literárias e pictóricas, mas sobretudo livros de boas maneiras voltados às classes superiores seculares, aos fidalgos, aos cortesãos e à burguesia, Elias demonstra – em minha opinião, com bastante sucesso – a incidência, no longo prazo, de uma tendência – repleta de descontinuidades de curto e médio prazo, “arranques civilizadores” e “descivilizadores”, assim como períodos que foram

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vividos na época como estase, mas durante os quais as dinâmicas inerentes conduziam rumo à transformação no longo prazo –, mais particularmente na seguinte direção: a crescente elaboração e o crescente refinamento dos costumes e da etiqueta, junto com um aumento na pressão social sobre as pessoas para praticarem um autocontrole mais rígido, mais contínuo, mais

uniforme, mais

moderado e mais nuançado sobre cada vez mais aspectos de seus sentimentos e comportamento em cada vez mais situações sociais. São significativos os comparativos nesse caso e todos os cinco adjetivos são necessários. Isto é, a tendência envolvia pressão conducente a um autocontrole mais rígido, mais contínuo, mais uniforme, mais moderado e mais nuançado em um número maior de situações sociais. No nível da personalidade e do habitus, isso resultou numa internalização mais profunda de normas e tabus, ou seja, na emergência de uma consciência que opera automaticamente e num registro “inconsciente”, bastante similar

à

noção

freudiana

de

“superego”.

Por

exemplo,

ruborizamos

automaticamente ao violarmos em público um tabu arraigado. Instância exemplar disso seria um homem em um ônibus ao ser informado que sua braguilha está aberta ou ao se dar conta de que seu pênis está ereto. Junto com a emergência de uma tal consciência, ocorreu aquilo que Elias chamava de uma elevação do “limiar de repugnância” (Peinlichkeitsschwelle) e de um avanço das “fronteiras da modéstia e da vergonha”. Isso significa que as pessoas de hoje estão propensas a experimentar sensações de asco e a sentirem-se embaraçadas mais facilmente em relação, por exemplo, a funções corporais do que era o caso com pessoas da Idade Média. A evidência também sugere que as pessoas medievais eram mais propensas que nós a experimentar súbitas e extremas variações de humor. Um psiquiatra dos dias de hoje seria mesmo capaz de diagnosticá-las como “maníaco-depressivas”. Como vimos, os padrões do “bom comportamento” na Idade Média europeia foram expressos por meio do conceito de “cortesia”. Este, mais claramente que termos posteriores, “civilidade” e “civilização”, representava uma posição social definida. Significava: é assim que as pessoas se comportam nas cortes de reis e de outros grandes senhores feudais. Não representava, segundo Elias, um estágio inicial ou o degrau mais baixo na “escada da civilização” (Elias 2000: 54 [1990, vol. 1: 75]). Elias ignorou as diferenças nacionais triviais que havia nos códigos de cortesia e em

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sua disseminação para estratos mais amplos e preferiu destacar sua simplicidade. Sugeriu:

como em todas as sociedades em que as emoções são manifestadas mais violenta e diretamente, as nuances psicológicas e as complexidades são menos numerosas no repertório geral de ideias. Há amigo e inimigo, desejo e aversão, gente boa e má (Elias 2000: 55 [1990, vol. 1: 76]).

Para ilustrar a tendência de longo prazo e sua ordem sequencial, darei a seguir alguns exemplos de costumes que se transformaram. Considero O processo civilizador um dos livros de sociologia mais ricos em termos empíricos que já foram escritos. O que teremos adiante não é mais que uma pequena seleção em meio à massa de dados apresentados por Elias. Seguindo sua prática, nossa série temporal se inicia com alguns poucos itens de maneiras à mesa. É importante lembrar, nesse caso, que a camada dirigente cortesã na Idade Média era composta por líderes guerreiros que tomavam partido diretamente das batalhas que eram travadas. Com muito mais frequência do que hoje, um animal inteiro, peixe ou ave, incluindo sua cabeça, era destrinchado sobre a mesa. Pegavam porções de carne com os próprios dedos de dentro de uma vasilha comum. A faca era o principal instrumento para conduzir a comida até suas bocas. Contrastando esses líderes guerreiros medievais com seus subordinados cortesãos, Elias escreveu:

O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não se havia desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível de emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é frequentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa e que se manifesta como embaraço à mera vista de muitas funções corporais de outrem e, não raro, à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha, quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e de modo algum somente nessas ocasiões (Elias 2000: 60 [1990, vol. 1: 82]).

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Exemplos selecionados de código de “cortesia”, “civilidade” e “civilização”

Século XIII “O homem que limpa a garganta pigarreando quando come e o que se assoa na toalha da mesa são ambos mal-educados, isso vos garanto” (Elias 2000: 74 [1990, vol. 1: 97]).

“Não limpes os dentes com a ponta da faca, como fazem algumas pessoas. Isso é um mau hábito” (Elias 2000: 74 [1990, vol. 1: 98]).

“Não é educado enfiar os dedos nas orelhas ou nos olhos, como fazem algumas pessoas, ou introduzi-los no nariz, quando estiveres comendo. Esses três hábitos são feios” (Elias 2000: 74 [1990, vol. 1: 99]).

“Não escarres por cima da mesa nem sobre ela Não escarres na bacia quando estiveres lavando as mãos” (Elias 2000: 129 [1990, vol. 1: 155]).

Século XV “Não reponhas em seu prato o que esteve em tua boca” (Elias 2000: 75 [1990, vol. 1: 99]).

“Não ofereças a quem quer que seja um pedaço que já mordeste” (Elias 2000: 75 [1990, vol. 1: 100]).

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“É indelicado assoar o nariz na toalha da mesa” (Elias 2000: 110 [1990, vol. 1: 148).

Século XVI “Antes de sentar-se, certifique-se de que seu assento não foi emporcalhado” (Elias 2000: 109-10 [1990, vol. 1: 135]).

“Não se toque por baixo das roupas com as mãos nuas” (Elias 2000: 110 [1990, vol. 1: 135]).

“É indelicado cumprimentar alguém que esteja urinando ou defecando (…) A pessoa bem educada sempre deve evitar expor, sem necessidade, as partes as quais a natureza atribuiu pudor” (Elias 2000: 110 [1990, vol. 1: 136]).

“(N)ão fica bem a um homem decoroso e honrado preparar-se para se aliviar na presença de outras pessoas, nem erguer as roupas, depois, na presença delas (…) (N)ão é hábito refinado, quando se encontra alguma coisa repugnante na rua, como às vezes acontece, virar-se imediatamente para o companheiro e lhe chamar a atenção para isso. É ainda mais incorreto segurar a coisa malcheirosa para que o outro a cheire (Elias 2000: 111 [1990, vol. 1: 136-7]).

“O indivíduo não deve, como rústicos que não frequentaram a corte ou viveram entre pessoas refinadas e respeitáveis, aliviar-se, sem vergonha ou reserva, na frente de senhoras ou diante das portas ou janelas de câmaras da corte ou de outros aposentos” (Elias 2000: 111 [1990, vol. 1: 137]).

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“Que ninguém, quem quer que possa ser, antes, durante ou após as refeições, cedo ou tarde, suje as escadas, corredores ou armários com urina ou outras sujeiras, mas que vá para os locais prescritos e convenientes para se aliviar” (Elias 2000: 111 [1990, vol. 1: 137]).

Século XVII “Não permitas que teus membros íntimos sejam expostos à vista: é mui vergonhoso e execrando, detestável e rude. Não segures a urina ou os gases que incomodam teu corpo; desde que o faças em segredo, não te perturbes por isso (Elias 2000: 112 [1990, vol. 1: 137]).

“O cheiro do lodaçal é horrível. Paris é um lugar horroroso. As ruas cheiram tão mal que não se pode sair de casa. O calor extremo está provocando o apodrecimento de grande quantidade de carne e peixe, e isto, juntamente com a multidão de pessoas que fazem … na rua, produz um cheiro tão detestável que não pode ser suportado” (Elias 2000: 112 [1990, vol. 1: 138]; reticências na fonte original).

“(À mesa,) assoar abertamente o nariz no lenço, sem se ocultar atrás do guardanapo, e enxugar o suor com ele (…) são hábitos sujos que dão a todos desejo de vomitar (…) Evite bocejar, assoar o nariz e escarrar. Se for obrigado a proceder assim (…), use o lenço, ao mesmo tempo virando o rosto e ocultando-se com a mão esquerda, e não olhe para o lenço depois (Elias 2000: 124 [1990, vol. 1: 150]).

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Século XVIII “À mesa, você deve usar guardanapo, prato, faca, colher e garfo (…) É errado usar o guardanapo para enxugar o rosto e mais ainda limpar os dentes com ele, e seria uma das mais graves ofensas à civilidade usá-lo para assoar o nariz” (Elias 2000: 81-2 [1990, vol. 1: 105]).

“Faz parte do decoro e do pudor cobrir todas as partes do corpo, com exceção da cabeça e das mãos. Deve-se tomar cuidado para não tocar com as mãos nuas qualquer parte do corpo que não seja habitualmente deixada descoberta (...) É muito mais contrário à decência e à propriedade tocar ou ver em outra pessoa, principalmente do sexo oposto, aquilo que os Céus proíbem que você olhe em si mesmo. Quando precisar urinar, deve sempre se retirar para um local não frequentado. E é correto (mesmo no caso de crianças) cumprir outras funções naturais em locais onde não possam ser vistas. É muito grosseiro soltar gases do corpo quando em companhia de outras pessoas, seja por cima ou por baixo, mesmo que isso seja feito sem ruído, e é vergonhoso e indecente assim proceder de maneira que possa ser escutado por outras pessoas. / Nunca é correto se referir a partes do corpo que devem ficar cobertas, nem de certas necessidades corporais a que a natureza nos sujeitou, nem mesmo as mencionar (Elias 2000: 112-3 [1990, vol. 1: 138]).

“É muito indelicado esgaravatar as narinas com os dedos e ainda mais insuportável por na boca o que se tirou do nariz (…) É vil limpar o nariz com a mão nua ou se assoar na manga ou nas roupas (…) Você deve usar sempre usar seu lenço” (Elias 2000: 124-5 [1990, vol. 1: 150-1]).

“Você não se deve abster de escarrar e é muito grosseiro engolir o que deve ser cuspido. Isso pode causar repugnância nos outros. Ainda assim, não se deve

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acostumar a escarrar com demasiada frequência (…) Quando estiver na presença de pessoas bem-nascidas (…), é educado escarrar dentro de seu lenço, ao mesmo tempo virando-se levemente de lado” (Elias 2000: 131 [1990, vol. 1: 157]).

Século XIX “Os garfos foram indubitavelmente uma invenção posterior aos dedos, mas uma vez que não somos canibais, sinto-me inclinado a pensar que os garfos foram uma boa invenção” (Elias 2000: 85 [1990, vol. 1: 108]; grifo no original).

“(N)enhum epicurista jamais cortou maçã com faca e (…) a laranja deve ser descascada com uma colher” (Elias 2000: 106 [1990, vol. 1: 131]).

“Escarrar a todo momento é um hábito repugnante (…) Além de grosseiro e atroz, é muito ruim para a saúde” (Elias 2000: 132 [1990, vol. 1: 158]).

O uso feito por Elias de bibliotecas e outras fontes Apesar de os manuais de etiqueta constituírem sua principal fonte de dados sistemáticos para as séries temporais, Elias não contou unicamente com eles em sua tentativa de lançar luz sobre o “processo civlizador” ocidental. Utilizou em grande medida também fontes literárias e pictóricas. Tomemos, por exemplo, o que atualmente chamamos de “sexo” e “relações de gênero”, isto é, respectivamente, os aspectos biológicos inatos e os aspectos sociais adquiridos das relações entre homens e mulheres. Os sentimentos de vergonha que cercam as relações sexuais, diz Elias, tornaram-se notadamente mais intensos ao longo do processo civilizador. Isso “se manifesta de modo particularmente evidente quando se fala dessas relações com as crianças” (Elias 2000: 142 [1990, vol. 1: 169-70]). Sobre aspecto, um exemplo é o livro Colóquios, de Erasmo, uma obra que se voltava, assim como De civilitate morum puerilium, à instrução de meninos. O livro foi dedicado a seu afilhado de seis ou oito anos de idade. Nele, Erasmo descreve um jovem que corteja uma garota,

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uma mulher que se queixa do comportamento do marido e uma discussão entre um jovem e uma prostituta. Um influente pedagogo alemão do século XIX, chamado Von Raumer, vituperou a obra, dizendo que, nela, “Erasmo retrata o desejo carnal da forma mais baixa”, e prossegue, perguntando: “Como pôde um livro como esse ser adotado em inúmeras escolas? O que crianças têm a ver com esses sátiros?” (Elias 2000: 143 [1990, vol. 1: 170]). Esse exemplo daquilo que as pessoas na GrãBretanha atual poderiam chamar de “moralidade vitoriana” oferece uma ilustração da distância social e psicológica que se alargou entre adultos e crianças. Algo que também é marcado pelo prolongamento crescente da dependência e da socialização infantil e adolescente e por circunstâncias tais como o fato de que as vestimentas de adultos e crianças costumavam ser muito menos distintas na Idade Média e no início da era moderna do que o são hoje em dia. Apesar de isso ter, em certa medida, mudado recentemente, em consequência da assim chamada “revolução permissiva” da década de 1960 – um termo mais adequado poderia ser “a era da informalização” (ver Wouters 1977; 1986; 2008) –, sexo, sexualidade e nascimento costumavam ser ocultados dos olhares infantis e tratados verbalmente sobretudo por meio de circunlóquios. Igualmente apontando na direção de inibições mais estritas e um padrão distinto do nosso de pudor em relação ao corpo e à sexualidade, podem ser destacados os costumes matrimoniais das classes superiores. Nas cortes da Alta Idade Média, por exemplo, havia uma procissão dirigida pelo padrinho conduzindo ao leito nupcial. A noiva era despida por suas damas de honra e o noivo devia deflorá-la na presença de testemunhas, do contrário o casamento era anulado. “Só na cama é que se casa” decretava um velho ditado. Com o passar do tempo, esse costume foi abandonado e passou a ser aceito que o casal se deitasse vestido no leito nupcial. Contudo, mesmo nas cortes absolutistas francesas dos séculos XVII e XVIII, persistiu esse costume, com o casal sendo conduzido ao leito nupcial pelos convidados, despidos e presenteados com suas camisolas (Elias 2000: 149-50 [1990, vol. 1: 177-8]). Representantes da aristocracia cortesã com frequência viam a restrição das relações sexuais ao casamento como algo tipicamente “burguês” e, de acordo com Elias, as mulheres experimentavam, nesse contexto, um grau de liberdade que foi posteriormente perdido na sociedade burguesa do século XIX. O que estava

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implicado nisso era uma equilíbrio cambiante entre liberdade e coerção. Nos termos empregados por Elias:

“(A) burguesia como um todo está livre das pressões da estrutura social absolutistaestamental. Tanto homens burgueses quanto mulheres burguesas se haviam libertado das amplas limitações que estiveram sujeitos como pessoas de segunda classe na hierarquia dos estamentos. Havia aumentado o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes havia conferido o poder para se libertarem. Mas, nesse aspecto, as constrições sociais exercidas sobre os indivíduos eram ainda mais fortes do que antes. O padrão de autocontrole imposto às pessoas da sociedade burguesa por meio de suas atividades profissionais era, em muitos aspectos, diferente do padrão imposto à vida emocional pelas funções da sociedade cortesã. Em diversas facetas da “economia emocional”, as funções burguesas – sobretudo, a vida empresarial – exigem e produzem maior autocontrole do que as funções cortesãs (Elias 2000: 156 [1990, vol. 1: 185]).

Outras coisas que apontam no sentido de ter havido uma postura mais relaxada com relação ao sexo e ao corpo na Idade Média e no início do período moderno são as atitudes a respeito da prostituição, da filiação ilegítima e da nudez em público. Tomemos o caso da prostituição. Era uma ocupação à qual se atribuía um baixo status, mas era vista com muito mais abertura do que hoje. Uma ilustração eloquente é oferecida pelo fato de que, em 1434, o Imperador Sigismundo “agradeceu publicamente o magistrado da cidade de Berna por haver colocado o bordel à disposição dele próprio e de seus acompanhantes por três dias” (Elias 2000: 149 [1990, vol. 1: 177]). De modo similar, filhos “ilegítimos” das classes superiores na Idade Média com frequência admitiam ser chamados de “bastardos” ou se chamavam a si mesmos “deliberada e orgulhosamente” com esse atributo (Elias 2000: 154-5 [1990, vol. 1: 183]). No entanto, um estágio em certa medida mais avançado do sentimento de vergonha se evidencia, como diz Elias, no fato de que, no século XVIII, a Marquesa de Châtelet, amante de Voltaire, era capaz de se sentar nua e despreocupada em sua banheira, acompanhada de seu criado, e ainda censurálo por não verter da forma apropriada a água quente sobre seu corpo. Devido ao seu

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baixo status, ela não o considerava como um homem em qualquer sentido sexualizado (Elias 2000: 118; nota 526 [1990, vol. 1: 143]). Nas cortes absolutistas, a circunstância de uma pessoa embaraçar-se ou não estava evidentemente relacionada, em grande medida, à posição social. Mudanças nos padrões relacionados à violência e à agressão apontam na mesma direção. Nas nações “civilizadas” do Ocidente, afirma Elias, a agressividade – ele se referia essencialmente, mas não exclusivamente, à agressividade do sexo masculino – havia sido limitada,

“mesmo em ações diretamente relacionadas à guerra, pelo estágio avançado da divisão de funções e pela decorrente maior dependência dos indivíduos uns em relação aos outros e destes em relação ao aparato técnico. Ela foi confinada e domesticada por incontáveis regras e proibições que se haviam convertido em autolimitações” (Elias 2000: 161 [1990, vol. 1: 190]).

Durante a Idade Média, por outro lado, mesmo que o período sequer chegue perto de representar um marco zero de padrões neste ou naquele sentido, “rapina, batalha, caça de pessoas e animais”, todas faziam parte dos prazeres da vida para as classes dirigentes fidalgas. “A única ameaça, o único perigo que podia instilar medo era o de ser vencido em batalha por um adversário mais forte (Elias 2000: 163 [1990, vol. 1: 192]). Cavaleiros medievais viviam para a batalha. Haviam sido treinados para isso desde a mais tenra idade. Muitos, talvez a maioria, sentiam prazer em torturar e matar outros. Na verdade, as condições sociais em grande medida os impeliam nessa direção. Segundo Elias:

O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, pertenciam à mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros? Conserválos vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a riqueza e o

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poder de luta do inimigo. Isso porque os súditos (isto é, os que trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas representavam a maior parte da propriedade, isso também servia para enfraquecer o inimigo (Elias 2000: 163-4 [1990, vol. 1: 193]).

Dada a relativa instabilidade de suas vidas, os cavaleiros medievais eram emocionalmente menos estáveis, mais propensos a repentinas mudanças de humor, do que costuma ser o caso de seus equivalentes nos dias atuais. Estavam sujeitos a súbitas oscilações entre extremos de júbilo e tristeza, amor e ódio, ira e compaixão pelos outros. A partir do século XV, a desabrida e pura alegria que experimentavam na batalha começou a ser temperada por sentimentos em relação a seus companheiros de guerra que acabariam corporificados no código da cavalaria (Elias 2000: 189 [1990, vol. 1: 211]), assim como por crenças na justiça de uma causa. Ainda mais tarde, já nos séculos XVIII e XIX, ideologias nacionalistas e a crença segundo a qua lutar e morrer pela própria nação era um valor supremo passaram a ocupar cada vez mais a posição primordial. De acordo com Elias, padrões similares prevaleceram em meio à burguesia nascente. A discórdia, a beligerância, o ódio, a alegria sentida ao torturar outras pessoas, todos esses eram vividos com muito mais desinibição pelos representantes do “terceiro estado” do que acabou por se tornar o caso mais tarde. Ecoando Karl Marx a respeito disso, Elias sugeriu que não foi apenas “a arma do dinheiro que fez o burguês ascender. O roubo, a luta, a pilhagem, rixas familiares – tudo isso desempenhava um papel de importância não menor na vida da população urbana do que na da classe guerreira” (Elias 2000: 166 [1990, vol. 1: 196]). Prosseguiu, com presciência, ao comentar o já tão examinado papel desempenhado pela religião nesse aspecto, utilizando os seguintes termos:

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Grande parte do que nos parece contraditório – a intensidade da religiosidade, as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força incontrolável do ódio e da beligerância –, tudo isso, assim como as rápidas mudanças de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de personalidade. Os instintos e as emoções eram liberados de forma mais livre, mais direta, mais aberta, do que mais tarde. É apenas para nós, em quem tudo é mais controlado, moderado e calculado e em quem tabus sociais penetram muito mais fundo na trama de nossa economia instintiva e assumem a forma de autocontrole, que a manifesta intensidade dessa devoção, beligerância ou crueldade parece contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou recompensadora de Deus, nunca teve em sim um efeito “civilizador” ou de repressão de emoções. Muito ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” quando a sociedade ou a classe que a sustenta (Elias 2000: 168-9 [1990, vol. 1: 198]).

Em resumo, a tendência global das mudanças microssociais e psicogenéticas no habitus, nas normas e no comportamento documentadas por Elias apontava na seguinte direção:

(i) “privatização” ou “empurrão para os bastidores” da execução das principais funções corporais. Elas, assim como as partes do corpo a elas associadas, passaram a ser vistas como algo repulsivo. Nessa esfera, Elias descreveu a “elevação do limiar de repugnância” e os avanços nos “limites do recato e do pudor”. Também ligado a isso, as pessoas começaram a se sentir incomodadas com a visão do sangue e, em decorrência, animais que seriam devorados passaram a ser mortos em abatedouros e açougues. A satisfação das necessidades fisiológicas passou a ser confinada ao banheiro e a edifícios públicos destinados especialmente para isso, assim como o sexo e o sono se restringiram em grande medida ao quarto. Ao longo da Idade Média e do início da era moderna, execuções eram um espetáculo público presenciado por multidões numerosas e animadas. Como parte da mesma tendência global, elas passaram a ser, a partir do século XIX, realizadas por trás de portas fechadas e, a partir da segunda metade do século XX, amplamente abolidas. Os

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Estados Unidos representam uma peculiar exceção neste último aspecto em particular;

(ii) também como parte desse amplo complexo de mudanças, o garfo e a colher se tornaram os principais instrumentos auxiliares da ingestão de alimentos, os únicos aceitáveis para a condução de carne, vegetais e demais alimentos do prato para a boca. Paralelamente, a faca passou a ser crescentemente cercada de proibições completamente desproporcionais em relação ao perigo real que pudesse representar. Isso se deveu, explicou Elias, ao fato de que as facas não eram apenas instrumentos auxiliares da alimentação, mas também armas e, portanto, símbolos da agressividade e da violência que estavam sendo cada vez mais sujeitas a formas de controle;

(iii)

as cortes de reis, rainhas, príncipes, duques e por aí afora eram os

principais centros modelares nos quais os padrões de bom comportamento associados aos códigos de cortesia, civilidade e civilização foram desenvolvidos e a partir dos quais eventualmente se espalharam, por meio de processos de difusão do topo para a base. Segundo Elias:

o que começou a se constituir aos poucos, no final da Idade Média, não foi apenas uma sociedade cortesã aqui e outra ali. É uma aristocracia de corte que abraça toda a Europa Ocidental, com seu centro em Paris, dependências em todas as demais cortes e afloramentos em todos os outros círculos que alegavam pertencer à “Sociedade”, notadamente o estrato superior da burguesia e até, em certa medida, em camadas da classe média (Elias 2000: 189-90 [1990, vol. 2: 17-8]).

Essa “sociedade de corte europeia” foi caracterizada por algo que poderia, utilizando um termo apenas aparentemente contraditório, ser chamado de “integração conflituosa”. Quer dizer, a despeito das diferenças políticas entre elas e das numerosas guerras que travaram umas contra as outras, seus membros estavam unificados por uma linguagem comum, o francês, por um código comum de

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comportamento, procedente de Paris. Por muito tempo, os padrões de distância social e comunicação seguidos por aqueles no interior dessa sociedade cortesã europeia eram mais próximos do que aqueles que os ligavam aos representantes de suas respectivas classes baixas nacionais. É válido destacar que uma das maiores diferenças entre o entendimento de Elias sobre o desenvolvimento social europeu e o de Karl Marx consistiu precisamente no fato de que, enquanto aquele considerava essa sociedade cortesã como um estágio crucial de transição, este foi incapaz de reconhecer sua importância, dado o pendor economicista de seu pensamento, e preferiu pensar em termos de uma transição direta do feudalismo ao capitalismo. Anthony Giddens foi um dos poucos sociólogos “não eliasianos” a concordar com Elias quanto a isso;

(iv)livros de etiqueta para os adultos das classes superiores na Idade Média e no início do período moderno incluíam instruções sobre regras comportamentais que os adultos no Ocidente hoje em dia assumem como algo natural, pois lhes foram firmemente instiladas, até mesmo de forma indelével, enquanto crianças. Uma das implicações disso é que o período de socialização primária foi estendido nos países ocidentais ao longo de seus processos civilizadores. Isso significa que, neles, a fase da dependência infantil também foi prolongada e que a distância social e psicológica entre adultos e crianças se expandiu de forma correlata.

Voltemos nossa atenção agora para os níveis “macrossociais” da teoria de Elias, ou seja, para parte do que ele tinha a dizer sobre a formação do Estado, sobre a pacificação sob o controle estatal, sobre a expansão das cadeias de interdependência e sobre outros processos “macrossociais” relacionados. Nem de longe tenho a pretensão de detalhar, naquilo que se segue, a totalidade de sua exposição do tema.

Formação do Estado e a extensão das cadeias de interdependência: os níveis “microssociais” do “processo civilizador” no Ocidente

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Nas palavras de Elias: “A questão sobre por que o comportamento e as emoções das pessoas mudam é basicamente a mesma que a questão sobre por que mudam suas formas de vida” (Elias 200: 172 [1990, vol. 1: 202]). Mais especificamente, a argumentação de Elias sustentava que a etiqueta, as personalidades e habitus das pessoas na Europa Ocidental mudavam num “sentido civilizador”, em conjunção com as seguintes transformações macrossociais: formação estatal, em especial a formação dos monopólios estatais da violência e da tributação. Segundo ele, esses eram “os principais instrumentos de governo” em sociedade com uma economia monetária, produção, comércio e riqueza crescentes. Elias concebeu a todos esses elementos como um complexo de processos que interagiam entre si e que envolviam uma expansão e concentração das cadeias de interdependência, isto é, uma crescente diferenciação social e divisão do trabalho, a ampliação das cidades e o crescimento das populações. Outra forma de colocar isso seria dizer que, segundo Elias, os “processos civilizadores” da Europa Ocidental ocorriam de modo correspondente com a emergência dos estados nacionais capitalistas, urbanos e industriais e que tais unidades sociais foram inicialmente formadas por meio da guerra e voltadas para a guerra. Em resumo, os “processos civilizadores” eram arranjos conflitivos que envolviam “lutas por hegemonia” no interior de estados emergentes e “lutas por integração” entre eles. Outra das linhas de argumentação de Elias defendia que aquilo que chamamos “sociedades” seria mais bem concebido como “unidades de sobrevivência” ou “unidades de defesa e ataque”. São termos autoexplicativos, por meio dos quais Elias buscou capturar simultaneamente as funções militares e econômicas que são desempenhadas pelas sociedades humanas (Elias 1978). Essas unidades abarcam um espectro histórico que vai dos agrupamentos clânicos e tribais, passando pelas cidades-estados e pelos estados feudais, até chegar aos estados absolutistas e aos estados nacionais. As fases da história europeia sobre as quais se concentra Elias em Über den Prozess der Zivilisation envolvem uma passagem dos estados feudais aos estados absolutistas e destes aos estados nacionais. Ainda mais importante para nossos propósitos aqui, porém, é que essas “unidades de sobrevivência” são todas “bifrontes” com relação à violência. Isso significa que, ao mesmo tempo em que implicam em geral uma tentativa de limitar a violência interna, a violência contra “elementos externos” tende a ser desculpada e, especialmente em tempos de guerra,

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tende mesmo a ser considerada como algo legítimo e louvável (Elias 1978). Como vimos, Elias também argumentou que o poder é um atributo de todas as relações sociais. Isso implica dizer que as relações sociais sempre envolvem um elemento de conflito externo e competição. De modo correspondente a isso e implicitamente seguindo os passos de Kurt Lewin (1952) e antecipando Pierre Bourdieu (1984) em cerca de cinquenta anos, Elias sugeriu, sem jamais se utilizar explicitamente desses termos, que as sociedades humanas podem ser também concebidas proficuamente como “campos sociais” ou “campos de forças”. Segundo Elias, o equilíbrio das pressões competitivas numa sociedade pode oscilar entre extremos nos quais se mostram dominantes tanto tendências “centrífugas”, ou seja,

disruptivas,

desunificadoras

e

descentralizadoras,

quanto

tendências

“centrípetas”, isto é, integradoras, unificadoras e centralizadoras. No segundo volume de O processo civilizador , são discutidas as tendências centrífugas sob o título de “feudalização”, uma espécie de “processo descivilizador” que foi dominante na Europa Ocidental em seguida ao declínio do Império Romano do Ocidente no século V EC. Tendências centrífugas mantiveram-se dominantes até meados do século XI (Elias 2000: 230 [1990, vol. 2: 66]). Desde então, até os dias de hoje, e a despeito de flutuações, tendências centrípetas têm-se mantido em ascendência. Elias discutiu a dominação das tendências centrípetas sob os títulos do “mecanismo monopolista” e do “mecanismo régio”, termos sobre os quais ele mesmo posteriormente lança dúvidas. Ele procurou desassociar-se desse aspecto de seu trabalho por ser mecanicista. Mas isso queria dizer que uma dominação central relativamente estável praticada por monarcas e, posteriormente, por parlamentos passou a se torna a regra geral. De acordo com Elias, contudo, o governo central estável não emergiu como parte de um processo contínuo e linear. Ou seja, descontinuidades e diferenças de temporalidade estiveram envolvidas. Senão vejamos em maior detalhe. Antes de mais nada, é preciso examinar como Elias lidou com esse arcaico “processo descivilizador” ou “colapso da civilização”. Um de seus argumentos centrais defendia que tendências recorrentes rumo à “feudalização”, isto é, rumo à autossuficiência econômica local e ao governo local independente (“autarquia” econômica e política) eram inerentes à estrutura das sociedades da Alta Idade Média. Contrariamente à perspectiva marxista, ele sugeriu que, nesse aspecto,

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processos econômicos e políticos funcionavam de modo independente uns dos outros. Nenhum deles era dominante. Dito em outras palavras, o que ocorria era o seguinte. Em seguida às ondas de invasão tribal vindas do leste e do norte e o correspondente colapso do controle romano no oeste – Elias não via um como “causa” e o outro como “efeito” –, dinheiro, comércio e cidades praticamente desapareceram da Europa Ocidental. Não desapareceram inteiramente, porém, e no longo prazo isso ajudou a acelerar e a disseminar a “recuperação” que teve início a partir do século XI. Entre os séculos V e XI, pressões centrífugas eram predominantes. Na verdade, pressões centrípetas chegaram a “desfrutar” de curtos períodos de predomínio, como se tornou aparente durante o reinado de Carlos Magno (788-814). Ele fora o fundador da dinastia “Carolíngia” e o governante mais bem sucedido durante a assim chamada “Era da Trevas” que se sucedeu ao declínio do Império Romano do Ocidente. Em seu auge, o império de Carlos Magno abarcou amplas porções do que atualmente conhecemos como França, Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Áustria, Itália e Espanha. Finalmente se converteu em “Sacro Império Romano”, quando Carlos Magno foi coroado pelo Papa em Roma, em 800 EC. Considerando os meios de transporte e comunicações existentes na época, o Sacro Império Romano era enorme. Devia sua existência em grande medida ao carisma guerreiro de Carlos Magno e a seu sucesso na guerra. Autarquia econômica, no entanto, significava que ele não possuía rendas tributárias à sua disposição em um nível que permitisse o estabelecimento de um serviço civil e de um exército permanente, prerrequisitos essenciais para governar um estado de uma extensão de tal modo considerável. Como vimos, segundo Elias, os monopólios da tributação da e da violência são os mais importantes “instrumentos de governo” em sociedades com uma economia monetária. Sociedades estatais estáveis são também governadas geralmente a partir de um centro único, por exemplo, Londres, Paris ou Berlim. Carlos Magno e seu séquito, porém, tinham de viajar constantemente de um para outro de seus domínios em busca dos meios para se sustentarem e para assegurar o controle sobre eles. O Imperador possuía uma corte “peripatética”. Carlos Magno também teve de se apoiar em parentes e amigos para governar porções remotas de seu império e territórios recentemente conquistados. Contudo,

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esses “vassalos”, apesar de haverem prestado “juramentos de fidelidade” a seu respectivo suserano, tendiam recorrentemente a perceber as terras imperiais como suas próprias de direito. Tendo em vista tudo isso, quando Carlos Magno morreu, o império começou imediatamente a se fragmentar. Em 843, no contexto de uma feroz batalha pela sucessão, o império foi dividido em três pelo Tratado de Verdun. Tampouco isso foi capaz de resolver a questão e, em 870, um tratado ulterior – o Tratado de Meerssen – passou a ser considerado necessário em meio àquilo que provou ser uma vã tentativa de fortalecer o império que se desagregava. Pressões centrífugas crescentemente incisivas impunham-se mais uma vez como força predominante. Ao procurar explicar o que aconteceu a partir desse contexto, Elias enfocou fundamentalmente os “francos ocidentais”, destinados a se tornarem o povo que chamamos atualmente de “franceses”. Iniciou destacando como, na época, pressões centrífugas eram mais débeis nas porções orientais do que havia sido o império de Carlos Magno, com a decorrência de que os antepassados daqueles que chamamos hoje de “alemães” eram consideravelmente mais poderosos na Idade Média do que os predecessores de franceses e ingleses. A força dos alemães fora forjada nas batalhas mais ou menos constantes que tiveram de travar contra as tribos invasoras do norte e do leste. Foi apenas com a Reforma Protestante e com o início do que enganosamente consideramos hoje em dia como “modernização” que o império medieval germânico (o segundo e mais reduzido “Sacro Império Romano”, que havia sido consagrado pelo Papa no século X) começou a desmoronar. Nessa altura, os franceses e ingleses que, inicialmente, estavam numa posição mais débil, já haviam consolidado sua trajetória ascendente. Naquele período inicial, por cotna de sua localização geográfica, os francos ocidentais não enfrentavam quaisquer ameças externas comparáveis àquelas que mantinham seus homólogos germânicos do leste em constante alerta (com a possível exceção, é claro, da ameaça representada pelos normandos; porém, a exiguidade de espaço e de tempo me impede de tratar desse aspecto em maior detalhe). Uma das principais consequências disso foi que os governantes francos ocidentais, com menos oportunidades de conquistar novos territórios, eram compelidos a recompensar a lealdade de seus vassalos oferecendo a eles parcelas de seus próprios domínios territoriais, desse modo enfraquecendo seu próprio poder e fortalecendo o

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de seus vassalos. Tomemos o caso de Luís IV (936-954), um dos últimos reis carolíngios e ainda considerado nominalmente na época Rei de França. Ao herdar a coroa, era chamado de “o rei de Monloon”, por conta de lhe haver restado, dentre todos aqueles que haviam sido os vastos domínios de sua família, pouco mais que tão somente o castelo de Laon (Elias 2000: 202 [1990, vol. 2: 30]). Ele era, para todos os efeitos, apenas um senhor feudal entre outros, numa sociedade com uma estrutura celular de unidades em grande medida autogestionadas e economicamente autossuficientes, contando cada uma delas com poder mais ou menos equivalente ao de todas as outras. A situação de Luís VI (1108-1137; conhecido como “Luís, o Gordo”) oferece uma comparação interessante. Sob muitos aspectos, sua situação era similar à de Luís IV, mas era instrutivamente diversa sob tantos outros. Após uma prolongada disputa, a dinastia carolíngia havia sido sucedida pelos “Capetos”, descendentes de Hugo Capeto (987-996), duque de Frância (a “Île de France”), que viriam a ser, por sua vez, sucedidos posteriormente pelos Valois e pelos Bourbons. “Na pessoa de Luís VI”, conta Elias, “a casa dos Capetos lutou contra as casas de Montmorency, Beaumont, Rochefort, Montlhéry, Ferté-Alais, Puiset e muitas outras” (Elias 2000: 258

[1990, vol. 2: 88]). Num tal contexto, o castelo da família Montlhéry

demonstrou ser de importância decisiva, pois comandava a principal rota entre Paris e Orleans, as duas partes mais importantes dos domínios capetianos. Luís VI se sentiu compelido a lançar uma série de expedições contra a fortaleza, até que fosse finalmente capturada, já no final de seu reinado. Montlhéry encontra-se a apenas 24km de Paris. Ele precisou de outras três expedições adicionais para subjugar a família mais poderosa no distrito de Orleans e outros 20 anos lhe foram necessários para estabelecer seu domínio sobre as casas de Rochefort, Ferté-Alais e Puiset e para anexar suas respectivas possessões. Dessa forma, Luís VI se tornou mais do que apenas o rei nominal, mas também o governante de facto de seu território. Ele não poderia ter sabido, mas estava dando os primeiros passos no sentido de consolidar aquilo que viria a se tornar a França. Segundo Elias:

Concentrando suas forças na pequena área de Frância, estabelecendo hegemonia no espaço restrito de um território, Luís VI lançou os alicerces para a subsequente

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expansão de sua Casa. Criou um centro potencial para a cristalização da área maior da França, embora possamos dizer com segurança que ele não teve qualquer visão profética de tal futuro (2000: 256 [1990, vol. 2: 90]).

Na raiz do poder dos monarcas absolutos da Europa Ocidental reside o controle monopolista que obtiveram sobre aquilo que Elias, construindo sobre as bases do que havia sido originalmente uma inovação conceitual de Max Weber, descreveu como os principais “instrumentos de governo” em sociedades com uma economia monetária e um nível de complexidade estrutural superior ao de clãs e tribos. Como vimos, eram esses seus monopólios sobre a tributação e sobre a força militar. Tais “instrumentos de governo”, sugeriu Elias, operavam de forma interdependente: o monopólio tributário assegurava aos governos centrais os meios financeiros para pagar e equipar poderosos exércitos, e isso, por sua vez, permitia aos governantes desarmar nobres, isto é, evitar que estes mantivessem seus próprios exércitos. Isso também permitia que os governantes se dedicassem à pacificação generalizada da população e à manutenção das condições sociais que levariam a um governo mais racional, ao planejamento de longo prazo, a incrementos na produção material e à garantia dos fluxos comerciais. Ao mesmo tempo, os monopólios sobre a violência exercidos pelos governos centrais lhes permitiam sustentar seus monopólios sobre a tributação e, à medida em que a produção, o comércio e a riqueza se acumulavam, também se expandiam as receitas tributárias arrecadadas pelos governos centrais. Além disso, o costume de (principalmente) homens portarem armas em público foi abandonado e estas começaram a ser licenciadas pelo Estado. Forças especializadas de “polícia” também surgiram e, na Grã-Bretanha, patrulhavam as ruas munidas no mais das vezes apenas com um apito e um cassetete. Pelo menos três consequências decorreram dos monopólios estabelecidos sobre a tributação e a força:

(i) apesar de não ter sido um processo simples e nem ter sempre ocorrido num sentido progressivo, tendo passado por diversos estágios retrocesso, normalmente

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desencadeados em conexão com revoltas internas e/ou guerras internacionais, ainda assim cada vez mais pessoas começaram a ser contempladas pelas condições alcançadas de paz relativa. Isto é, num nível intrassocial ou doméstico, mas não internacionalmente, a violência se tornou um elemento menos frequente das vidas de contingentes populacionais crescentes. As pessoas se tornaram menos temerosas de serem atacadas fisicamente de forma violenta por outros. Tais processos de pacificação refletiram-se na emergência de um habitus coletivo dominante, no qual a violência era cada vez mais vista com repugnância nas esferas da lei, dos costumes, da consciência individual e dos sentimentos e foi sendo, assim, crescentemente impelida rumo “aos bastidores”. Conforme se consumava esse processo, governantes e grupos socialmente dominantes em geral moveram-se numa direção mais “civilizadora”, em especial nas camadas que se converteram de guerreiros em cortesãos e, posteriormente, em políticos, burocratas e empresários. Igualmente implicada, de acordo com Elias, foi a passagem da propriedade privada dos instrumentos de governo para modalidades mais públicas. Isto é, a partir de uma situação na qual o aparato de governo havia sido a propriedade pessoal de um monarca, formas mais públicas e afinal mais democráticas de governo gradualmente emergiram;

(ii) conforme se consolidava a pacificação, a previsibilidade das atividades sociais teve um incremento correspondente. O mesmo ocorria com as possibilidades de planejamento prospectivo e racional. Isso, por sua vez, contribuiu para o surgimento de formas mais racionais e menos emocionalmente carregadas de governo e para a emergência de formas mais racionais e mais efetivas de conduzir o comércio e a produção material. Ao mesmo tempo, expandiam-se e adensavam-se as cadeias de interdependência, que eram em grande medida mas não inteiramente econômicas – por exemplo, padrões de amizade também estavam implicadas. Ou seja, mais e mais pessoas passaram a viver em vilas e cidades densamente povoadas;

(iii)

em conjunto com isso, o poder dos grupos burgueses aumentou

gradualmente, enquanto decrescia na mesma medida o poder da nobreza terratenente. Na verdade, a burguesia estava destinada a se estabelecer, no longo

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prazo, como a classe dominante e, no século XX, havia sinais de governantes sendo recrutados também em meio à outra classe industrial, a classe trabalhadora ou “proletariado”. De início, porém, os processos inter-relacionados de formação estatal e de “civilização” favoreceram os grandes senhores – os duques, barões, condes e outros com as possessões mais amplas – e os governantes centrais, levando afinal à vitória destes, que, diferente do que havia ocorrido com Carlos Magno sete ou oito séculos antes, tinham à sua disposição receitas tributárias, aparatos administrativos e meios de transporte e de comunicação que lhes permitiam transmitir seus territórios a seus sucessores de forma relativamente intacta. Foi assim que os estados nacionais ocidentais com os quais estamos tão familiarizados hoje em dia foram gradualmente emergindo. Atualmente, eles demonstram sinais de fundirem-se em unidades maiores, supranacionais, ao mesmo tempo em que avançam processos de globalização que podem conduzir eventualmente à sua falência. Entretanto, não haveria aqui espaço ou tempo suficientes para dedicar a essa temática a atenção que ela merece.

Além de permitir que os governantes centrais dispusessem dos meios para impedir que outros nobres mantivessem exércitos privados, o poder crescente dos monarcas também lhes possibilitou, como vimos, trazer os nobres mais importantes para suas cortes, onde pudessem ser mantidos sob estrita vigilância. Numa tal configuração, os talentos, a experiência e as conexões dos nobres podiam também ser explorados na gestão dos negócios do Estado. Elias chamou esse processo de “die Verhöflichung der Krieger” - “a cortização dos guerreiros” –, uma expressão que significa a gradual transformação nos componentes das cortes reais de “cavaleiros” em “cortesãos”. Nas cortes reais, representantes da aristocracia feudal se tornaram menos capazes de utilizar a violência impulsiva para assegurar seus objetivos, proteger seus interesses e expressarem-se do que havia sido o caso até então. Foram submetidos a um controle mais efetivo “de cima para baixo” e, consequentemente, foram forçados a se dedicar a esquemas mais “racionais” de mais longo prazo de conspiração, dissimulação e intriga. Suas maneiras e comportamento também se tornaram mais sofisticadas e polidas, e os códigos de “civilidade” e “civilização” paulatinamente ocuparam o lugar dos códigos de “cortesia”. De acordo com Elias, porém, a “racionalidade de corte” continuou por muito tempo a ser diferente da

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“racionalidade burguesa”, sendo mais orientada pelo status e por considerações honoríficas do que pelo dinheiro. Segundo Elias, como vimos anteriormente, emergiu gradualmente, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, uma “sociedade de corte” de alcance continental por toda a Europa, para a qual a corte francesa foi o principal “centro modelar” e em cujo seio a etiqueta francesa era seguida de modo geral. Apesar de representantes dessa sociedade de corte continuarem a se envolver em cisputas dinásticas e cada vez mais em disputas nacionais que as opunham umas às outras, seus membros compartilhavam uns com os outros muito mais traços comuns do que com representantes das classes médias e baixas de seus estados nacionais emergentes. Outra marca desse processo global foi a gradual transformação das residências dos governantes de castelos fortificados em palácios e mansões campestres. Um processo paralelo foi o paulatino desaparecimento das muralhas urbanas, ambos representando marcos ulteriores da pacificação doméstica. Uma linha subjacente que acompanhou esse processo evolutivo em toda a sua duração foi o fato de que, no longo prazo, a pacificação social interna favoreceu muito mais os grupos burgueses rendários e detentores de capital do que aqueles aristocratas que se mantiveram dependentes, em primeira instância, de habilidades guerreiras e atributos típicos de seus antecessores medievais e, em segunda instância, de recursos fundiários fixos, cuja transferência era muito mais difícil. Isso contribuiu ainda mais para os processos de democratização que já estavam implícitos no prolongamento e no incremento da densidade das cadeias de interdependência e que estavam fazendo com que pressões crescentes “vindas de baixo” incidissem sobre os governantes. Em termos mais específicos, os governantes começaram a se tornar cada vez mais dependentes, primeiro de seus “súditos” da classe média e posteriormente, conforme aumentava a renda nacional e esta, em certa medida, “gotejava” para as camadas mais baixas, também de seus “súditos” da classe trabalhadora. Dependiam que eles pagassem os tributos que pagavam para que pudessem votar e, em períodos definidos como tempos de “necessidade nacional “, dependiam que ambos os grupos prestassem serviços militares. Como já disse anteriormente, isso levou a uma mudança da propriedade privada dos instrumentos de governos para modalidades mais públicas de governo e, de modo correlato, à transformação de “súditos” em

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“cidadãos”, um processo que, sob alguns aspectos, avançou em ritmo mais lento no Reino Unido do que na maioria dos países ocidentais. Elias tinha muito mais para dizer sobre esses temas, mas, tendo em vista as limitações de espaço, devemos concluir esse capítulo com uma discussão sobre a posição que assumiu a respeito da espinhosa questão sobre o caráter desses processos, se seriam “unilineares” ou “multilineares”. Como procuraremos demonstrar, seus pontos de vista sobre esse e outros assuntos relacionados eram mais complexos do que aqueles defendidos pela maioria de seus críticos. Também acreditamos que eram mais “avançados”, na medida em que envolveram representações mais adequadas de processos ocorridos no mundo “real” e observável.

Processos sociais: unilineares ou multilineares? Uma leitura da teoria de Elias sobre os “processos civilizadores” sustentada sob diferentes roupagens por críticos como Armstrong (1998), Bauman (1979), Giddens (Giddens & Mackenzie 1982), Giulianotti (2005), Goody (2002) e Williams (1991) envolve projetar falsamente sobre ela um caráter abstrato e genérico. Esses críticos parecem não ter lido Elias com o devido cuidado, pois consideram que tivesse lidados unicamente com uma mudança simples, unilinear e irreversível, supostamente para melhor, partindo de um “estado” social, o “barbarismo”, rumo a outro, a “civilização”. Mais ou menos explicitamente, segundo esses críticos, Elias considerou que esse processo como algo que ocorreu ao mesmo tempo, no mesmo ritmo, do mesmo jeito e com exatamente as mesmas “causas” e consequências em todos os países da Europa Ocidental. Em resumo, esses autores veem Elias como alguém que propôs uma simples teoria da “modernização” e do “progresso”, uma teoria eurocêntrica, pouco mais que um hino de ouvor ao Ocidente e uma expressão do “triunfalismo ocidental”. Aos seus olhos, a teoria de Elias consiste na repetição de um dos temas que abordamos anteriormente, um “recuo” para as supostamente falsificadas e desacreditadas teorias “evolucionistas” e “progressistas” dos séculos XVIII e XIX, que surgiram como justificativas para o imperialismo e expansão colonial ocidentais.

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O título Über den Prozess der Zivilisation e talvez sua tradução inglesa The Civilising Process – “sobre o processo de civilização” talvez tivesse sido melhor – certamente dão uma impressão de unilinearidade. Como mostramos anteriormente, contudo, o estudo de Elias é solidamente baseado em dados históricos e, portanto, não poderia estar mais distante de algo abstrato. Ademais, é fácil demonstrar que Elias adotou, ao longo de todo o trabalho, noções como multilinearidade e reversibilidade. Por exemplo, deu a uma das seções naquele que era originalmente o segundo volume de O processo civilizador o título de “Excurso sobre algumas diferenças nas trajetórias de desenvolvimento da Inglaterra, França e Alemanha” (Elias 2000: 261-267 [1990, vol. 2: 91-6]). Também lidou com essas e outras diferenças assemelhadas em notas de rodapé e em diversas passagens no texto propriamente dito. É claro que, na época em que escrevia, Inglaterra, França e Alemanha eram ainda grandes potências independentes no estágio mundial e Elias, tendo nascido na Alemanha, vivia na Inglaterra e tinha acabado de passar quase dois anos na França. Em resumo, sua percepção do equilíbrio de semelhanças e diferenças de estruturas sociais e habitus entre esses três países foi formada in vivo e não lhe sobreveio unicamente a partir dos livros. Examinemos brevemente o que ele escreveu sobre franceses, ingleses e alemães – especialmente estes dois últimos – antes de encerrarmos este capítulo com uma sucinta discussão de algumas das hipóteses desenvolvidas por Elias em O processo civilizador sobre “civilizações” não ocidentais. Segundo ele, dos três países, a França foi a única – sob Luís XIV – em que se desenvolveu a forma mais robusta do absolutismo monárquico. Em consonância com isso, tornou-se também o principal centro difusor de modas para toda a Europa, em tudo o que dizia respeito à etiqueta cortesã. A Inglaterra, por outro lado, das três nações, foi a que experimentou a fase mais curta de “absolutismo de corte”. Foi também a primeira em que surgiu uma população rural de camponeses mais ou menos livres e na qual se desenvolveu, juntamente com uma classe de nobres terratenentes, “uma classe de terratenentes desprovidos de títulos, uma classe de meros 'cavalheiros'” (Elias & Dunning 1971: 129 ). Elias também discutiu com algum vagar a arcaica noção segundo a qual muitos dos traços do habitus coletivo ou “caráter nacional” dos ingleses/britânicos poderiam ser explicadas pelo fato de que a Grã-Bretanha se situa numa ilha. Mas isso merece alguma elaboração.

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Se o habitus nacional dos ingleses/britânicos é simplesmente consequência do fato de que habitam uma ilha, disse Elias, “então todas as outras demais nações insulares teriam que apresentar características semelhantes e nenhum povo mais se aproximaria dos ingleses em caráter e habitus do que, por exemplo, os japoneses” (Elias 2000: 547-8, nota 23

[1990, vol. 2: 293, nota 152]). Essa foi uma

comparação oportuna, pois, no momento em que foi redigida, os japoneses estavam envolvidos em sua conquista do Sudeste Asiático, um contexto no qual os valores e tradições militares de sua nação estavam sendo colocados em franca evidência. Na Inglaterra/Grã-Bretanha, contudo, segundo Elias, a nobreza já estava “relativamente pacificada” desde havia muito, tendo uma coalizão de grupos aristocráticos e burgueses sido bem sucedida na limitação do controle do monarca sobre o monopólio estatal da violência, e os militares desfrutavam de um prestígio menor do que seus homólogos no Japão e no continente europeu. Elias elaborou sua argumentação a respeito disso nos seguintes termos:

O quão estreitos são os vínculos que existem entre certos aspectos do superego inglês (…) e a estrutura do monopólio de força física é algo que fica evidente (…) na liberdade de manifestação concedida na Inglaterra ao “objetor de consciência” (…) Provavelmente (tampouco) estaríamos errados em supor que (…) organizações não conformistas conseguiram permanecer fortes e vigorosas (…) na Inglaterra apenas porque a Igreja Anglicana, oficial, não era apoiada por um aparato policial e militar na mesma medida em que o foram, por exemplo, as Igrejas nacionais nos Estados protestantes da Alemanha. De qualquer modo, o fato de que, na Inglaterra, a coação externa exercida pelo poder militar sobre o indivíduo fosse, desde época muito remota, muito menos forte do que em qualquer dos grandes países (da Europa) continental, teve estreita ligação com outro fato, a saber, que o controle que, na Inglaterra, era esperado que o indivíduo exercesse sobre si mesmo, especialmente em tudo aquilo que estivesse relacionado com assuntos de Estado, tornou-se mais forte e mais abrangente do que nas grandes nações continentais. Dessa maneira, como um dos elementos da história social, o caráter insular e toda a natureza do país exerceram realmente, de uma grande variedade de maneiras, uma influência formadora sobre o caráter nacional (Elias 2000: 548 [1990, vol. 2: 293-4, nota 152]. O parágrafo aqui citado corresponde à tradução oferecida pelo autor,

228

diretamente do original alemão, da passagem respectiva. Para a passagem original (em alemão), ver Elias 1969, vol. 2: 484-5).

O principal argumento de Elias em seu “Excurso sobre as diferenças nas trajetórias de desenvolvimento da Inglaterra, França e Alemanha” sustentava que a facilidade com que os Estados centralizados surgiram na Europa Ocidental e, por decorrência, o ritmo desses processos de formação estatal dependeram, em grande medida, da extensão física dos territórios em que tiveram lugar, assim como do tamanho de suas populações e da amplitude das diferenças geográficas e socioculturais que continham, em especial as de caráter linguístico. Em sua formulação:

A tarefa implicada na luta pela dominação, isto é, pela centralização e pelo controle do governo, diferiu (…) na Inglaterra e França da que ocorreu no Império RomanoGermânico (…) (E)sta última formação política era bem maior em território que as duas outras, como também eram (…) maiores as suas divergências geográficas e sociais. Isso dava às forças locais, centrífugas, uma energia (…) superior e tornava incomparavelmente mais difícil a tarefa de conquistar a hegemonia e implantar a centralização. A casa reinante teria necessitado de uma área territorial e de poder bem mais extensos do que na França ou Inglaterra para dominar as forças centrífugas atuantes no Império Romano-Germânico e forjá-las em um todo duradouro. Há boas razões para supor que, dado o nível de divisão do trabalho e integração, assim como das técnicas militares, de transporte e administrativas da época, era provavelmente insolúvel o problema de manter permanentemente sob controle as tendências centrífugas numa área tão vasta (Elias 2000: 261 [1990, vol. 2: 91]).

Elias prosseguiu mostrando como o “Sacro Império Romano” ou “Império RomanoGermânico” foi por séculos esfacelado em suas fronteiras, um processo apenas parcialmente compensado pela expansão para o leste:

229

Se ignorarmos as irregularidades e levarmos em conta apenas a tendência geral desse movimento, formamos uma impressão dos atritos (…) constantes do Império, acompanhados por uma lenta mudança na direção da expansão e pelo deslizamento do centro de gravidade do oeste para leste (Elias 2000: 265 [1990, vol. 2: 95]).

Em 1800, numa época em que Grã-Bretanha e França já eram estados nacionais com um grau relativamente elevado de unificação, o Sacro Império Romano consistia num agregado de mais de 400 unidades autônomas ou semiautônomas. Duas delas, no entanto, as das dinastias Hohenzollern e Habsburgo, isto é, Prússia e Áustria, eram maiores e mais poderosas que o resto. O Sacro Império Romano foi substituído por uma Confederação no início do século XIX, mas revelou-se incapaz de acomodar as tensões causadas pelas rivalidades regionais dos Hohenzollern e Habsburgo. Isso levou àquilo que os alemães passaram a chamar de kleindeutsche Lösung (a solução da Alemanha menor), quer dizer, uma divisão entre a Alemanha e a Áustria. Houve ainda uma diminuição ulterior, após 1918, em consequência das perdas territoriais sofridas pela Alemanha após sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Em um de seus últimos livros, Os Alemães, Elias mostrou como uma das principais consequências da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial foi a continuação dessa tendência: mais uma divisão ocorreu, desta vez entre as Repúblicas Federal e Democrática. Elias argumentava, na época, que o amplo território ocupado por falantes do alemão e o tamanho e heterogeneidade sociocultural de sua população levaram-nos a encontrar dificuldades muito maiores no que dizia respeito à centralização estatal e à unificação do que as que foram enfrentadas por britânicos e franceses, cujos territórios e populações eram consideravelmente mais reduzidos. Isso acarretou tendências centrífugas e um padrão mais descontínuo de desenvolvimento histórico e social. Uma marca desse diferencial é o quão recente foi o estabelecimento de Berlim como capital se for comparada com Londres e Paris, que cresceram de forma relativamente contínua por algo em torno de um milênio. Viena e Praga serviram algumas vezes como capitais do Sacro Império Romano; Berlim somente se tornou capital com a ascensão da Prússia. Outra marca da descontinuidade era o caráter fragmentado das classes médias alemãs, cujas chances relativas de acesso ao poder

230

político em detrimento da aristocracia eram, consequentemente, menores que aquelas desfrutadas por suas correspondentes na Inglaterra e na França. Segundo Elias, a debilidade das classes médias alemãs foi intensificada pelo fato de que ao velho império faltava uma capital amplamente reconhecida que pudesse ter servido como um foco para a ação revolucionária. Como consequência, elas foram facilmente derrotadas na revolução de 1848. A fragmentação do Sacro Império Romano também acarretou que não fosse possível que uma “sociedade de corte” surgisse, como havia ocorrido na França, ou que uma “alta sociedade” emergisse, como ocorreu na Grã-Bretanha, com seu centro em Londres, e que algo do tipo fosse capaz de “cortejar” a aristocracia alemã. Como resultado, esta reteve um espírito militarista por mais tempo do que as aristocracias da Grã-Bretanha e da França. Assim, elas também foram capazes de excluir as classes médias de suas cortes dispersas, assegurando que as elites de classe média tivessem pouca oportunidade de adquirir experiência na participação da administração do Estado. Isso foi, sugeriu Elias, um dos fundamentos do espírito originalmente humanista das classes médias alemãs, cuja orientação se voltou para a filosofia, as ciências e às artes, em lugar da política e da economia. Ao longo de todo o século XX, a imagem dominante dos alemães no exterior retratou-os como um povo belicoso. No entanto, desde o século XVI até o século XIX, eles tendiam a ser vistos como avessos ao militarismo e mesmo débeis. Madame de Staël, por exemplo, escreveu a respeito deles em 1814 que: “a nação é, por natureza, literária e filosófica; (…) o domínio dos mares pertence aos ingleses; o domínio da terra aos franceses; o domínio do ar aos alemães” (De Staël 1985: 28-9 ). Com o “domínio do ar”, ela pretendia se referir à filosofia, à ciência e às artes, não à dominação dos céus pelos Zeppelins, Messerschmitts, foguetes V2 e “bombas voadoras”! A Alemanha viveu uma imensa perda de poder no século XVI, quando, sobretudo em decorrência das guerras entre príncipes católicos e protestantes, o império medieval começou a se decompor. Como resultado, no século XVII – lembrado por ingleses e franceses sobretudo como um século de conquistas gloriosas –, a Alemanha se tornou o “ringue de luta da Europa” (Elias 1996: 322 ). Ela foi profundamente marcada pela devastaora “Guerra dos Trinta Anos”, na qual se

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estima que a Alemanha tenha perdido um terço de sua população humana, assim como 90% de seus cavalos. No final do século XVII, a Alemanha foi invadida por Luís XIV, o que foi repetido por Napoleão no início do século XIX. Em consequência, segundo Elias, os alemães se tornaram vividamente conscientes de seu status inferior na hierarquia classificatória dos Estados europeus e muitos desenvolveram dúvidas crônicas quanto ao seu próprio valor como povo e como nação. A Alemanha não se tornou um estado nacional unificado até a segunda metade do século XIX. Esse processo ocorreu por meio de uma série de guerras travadas sob a liderança do rei da Prússia e da casta militar. Ao longo dele, para setores cada vez mais amplos das classes médias, o equilíbrio entre a adesão a valores “humanistas” e “anti-humanistas” começou a oscilar decisivamente em favor destes últimos. De acordo com Elias, a vitória da Alemanha em 1871 na Guerra Franco-Prussiana desempenhou um papel crucial nessa mudança de valores e na unificação nacional alemã. A burguesia (Bürgertum) liberal nos séculos XVIII e XIX havia aspirado à obtenção da unificação nacional por meios pacíficos. O fato de que, ao ser finalmente alcançada, o fosse por meio da guerra e sob a liderança da classe guerreira deixou uma impressão de tal modo indelével na maioria dos alemães de classe média que os valores militaristas cada vez mais passaram a permear suas fileiras. Como expressou Elias de forma cogente: “a vitória dos exércitos alemães sobre a França foi ao mesmo tempo uma vitória da nobreza alemã sobre as classes médias alemãs (Elias 1996: 145 ). Nos séculos XVIII e XIX, a cultura da classe média alemã era ilustrada pelo trabalho de gente como Goethe, Kant e Schiller; após 1871, foram os trabalhos de autores como Nietzsche e Ernst Jünger, que glorificavam a violência e os valores militaristas, que passaram a exprimir o ponto de vista dominante. Elias descreveu o Segundo Reich alemão, mais unificado – o Primeiro havia sido o Sacro Império Romano e o Terceiro o Reich de Adolf Hitler –, como uma sociedade satisfacionária (satisfaktionsfähige Gesellschaft), um termo que dificilmente encontra tradução direta, mas que se refere a uma sociedade orientada por um rígido e inflexível código de honra, no qual ocupam posições de primeira monta a demanda e a oferta de “satisfação” em duelos. Segundo Elias, a unificação da Alemanha envolveu, portanto, uma “brutalização” de setores de elite das classes médias. Uma

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manifestação disso se encontra no fato de que, enquanto na França e na Inglaterra a incidência de duelos declinou durante o século XIX, seu número aumentou na Alemanha. As fraternidades estudantis nas universidades desempenharam um importante papel nesse processo de brutalização. Assim como as escolas públicas, na França, e as universidades de Oxford e Cambridge, na Inglaterra, as universidades alemãs eram instituições nas quais tinha lugar uma uniformização parcial entre a aristocracia e as classes médias. Tornar-se membro de uma fraternidade se tornou precondição para ser considerado satisfacionário – digno de ser desafiado para um duelo – e, assim, ser admitido às “altas sociedades” locais por todo o Segundo Reich. Nesse contexto, de acordo com Elias, as classes médias foram ainda mais “brutalizadas” do que seus governantes aristocráticos, pois estes últimos estavam ainda sujeitos a certas limitações adicionais estipuladas pelo espírito honorífico de seu código guerreiro. O argumento de Elias sustentava que esse espírito de satisfacionaridade havia sido uma das precondições para a ascensão do nazismo. Em sua formulação:

Tratei a expansão de modelos militares em setores da classe média alemã (...) porque acredito que o nacional-socialismo e o violento surto descivilizador que ele encarnou não podem ser completamente entendidos sem referência a esse contexto. (...) Acima de tudo, (...) o recurso desenfreado a atos de violência como o único veículo realista (...) da política, que estava no centro da doutrina de Hitler e foi a estratégia já usada em sua ascensão ao poder, só pode ser explicada contra esse pano de fundo (Elias 1966: 15 [1997: 27]).

Outro dos argumentos de Elias defendia que, se a ascensão dos nazistas, por um lado, de modo algum foi algo inevitável, era muito mais provável, por outro lado, que um tal processo ocorresse na Alemanha do que na França ou na Grã-Bretanha. Examinemos brevemente algumas das passagens escritas por Elias a respeito dos processos que ocorriam fora da Europa.

A teoria dos processos “civilizadores”: uma teoria eurocêntrica?

233

Como vimos anteriormente, uma das críticas mais frequentes à teoria de Elias sustenta que esta era “eurocêntrica”, um tributo ao poder global e ao “progresso” do Ocidente, ao invés de uma contribuição científico-social para o entendimento daquilo que descreve. Trata-se, por certo, de uma teoria “eurocêntrica” na medida em enfoca a Europa e procura contribuir para a compreensão sobre como e por que a França e a Grã-Bretanha se tornaram poderosas o suficiente para estabelecer impérios globais, ao mesmo tempo em que se equiparavam, ao longo desse processo, com a “civilização”, enquanto a Alemanha se manteve como uma “retardatária”, assumindo, apenas tardiamente, uma posição de “motor principal”, promovendo sua tentativa de consumar o genocídio burocrático-industrial dos judeus, no que ficou conhecido como “o Holocausto”. Se é verdade, porém, que a teoria de Elias está primariamente centrada na Europa, isso não quer dizer que ela seja “eurocêntrica” no sentido de constituir uma ilustração do “triunfalismo” europeu ou ocidental. Pelo contrário, trata-se de uma teoria baseada na observação e que se dedica, não a apresentar juízos de valor desse tipo, mas a formular e a explicitar um entendimento sobre os processos abordados. Para tornar isso ainda mais claro, Elias citou um artigo de 1935 sobre “evolução social”, publicado na Enciclopédia de Ciências Sociais

por Alexander

Goldenweiser, um antropólogo americano que sustentou o seguinte:

Se existe uma evolução social, qualquer que seja, ela não mais é aceita como um processo que possa ser contemplado, mas como uma tarefa que precisa ser realizada por um deliberado e articulado esforço humano (1935, vol. 5: 656 e segs.; citado em Elias 2000: 544, note 2 [1990, vol. 2: 289, nota 130]).

Isso reflete o pendão empiricista da sociologia ocidental, ao qual nos referimos anteriormente, e instigou Elias a responder que:

(seu) estudo do processo civilizador difere desses esforços pragmáticos na medida em que, suspendendo todos os desejos e exigências a respeito do que deveria ser,

234

tenta estabelecer o que foi e o que é, e explicar de que maneira e por que se tornou o que fora e o que veio a ser. Pareceu-nos mais apropriado fazer o tratamento depender do diagnóstico do que o diagnóstico do tratamento (Elias 2000: 544, nota 2 [1990, vol. 2: 289, nota 130]).

Ao utilizar-se de uma linguagem que revela seu treinamento médico e seus interesses psicoanalíticos, não era a intenção de Elias reivindicar que sua teoria fosse perfeita ou completa, uma teoria que explicava tudo o que havia para saber sobre formação estatal e “civilização” e que podia ser usada com propósitos terapêuticos fosse no âmbito individual ou na esfera social, mas sim estabelecer que ele havia lançado os fundamentos sobre os quais esperava que outros fossem capazes de construir, possivelmente de uma entre pelo menos quatro maneiras diferentes:

(i) testando, aprofundando e sofisticando sua teoria por meio de estudos ulteriores sobre a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha;

(ii) estudando processos “civilizadores” e de formação estatal em outros países ocidentais (por exemplo, Austrália, Canadá e EUA), tanto não europeus quanto europeus;

(iii)

estudando processos dessa mesma natureza em outros contextos não

ocidentais, asiáticos, sul-americanos ou em outras regiões;

(iv)enriquecendo o repertório de conhecimento por meio de estudos sobre assuntos como comida, fogo, fumo, lazer e esporte.

235

Passemos à conclusão deste capítulo, examinando brevemente a terceira dessas maneiras como Elias esperava que outros pudessem construir sobre as bases que havia estabelecido. Um olhar de relance sobre o índice de O processo civilizador mostra que Elias considerava haver oferecido naquele livro apenas o primeiro daquilo que esperava que se tornasse uma série abrangente de estudos processuais comparativos, igualmente teóricos e empíricos, que afinal pudessem abarcar a história da humanidade como um todo. Sobre esse aspecto em particular, ele se refere, com distintos graus de elaboração, mas invariavelmente de modo introdutório, à China, à Etiópia (Abissínia), aos incas e ao Japão. Etiópia e Japão eram, claro, tópicos candentes no final da década de 1930, tendo em vista a invasão italiana da primeira e a invasão do Sudeste Asiático promovida pelo último. O que Elias escreveu sobre a China e o Japão e, mais genericamente, sobre a necessidade de estudos comparativo-processuais, reveste-se do maior interesse para nossos propósitos aqui. Elias começou por comentar sobre o quão surpreendente era que, dada a simplicidade dos meios disponíveis de transporte e comunicação, os impérios chinês e

inca

pudessem

ter

se

mantido

relativamente

estáveis

por

períodos

comparativamente tão longos. Sobre esse aspecto, ele defendeu que seriam necessárias em tais contextos “análises histórico-estruturais” sociogenéticas precisas e detalhadas da interação entre tendências e interesses centrífugos e centralizadores para explicar a relativa coesão de aglomerações tão vastas. Prosseguiu desenvolvendo a seguinte hipótese com relação aos chineses:

A forma chinesa de centralização, comparada com a que se desenvolveu na Europa, é certamente muito peculiar. No caso chinês, a classe guerreira foi erradicada relativamente cedo e de forma muito radical por uma forte autoridade central. A erradicação – como quer que tenha acontecido – esteve vinculada a duas grandes peculiaridades da estrutura social chinesa: a transferência de controle da terra para as mãos dos camponeses (o que, no Ocidente, encontramos num período antigo apenas em alguns lugares, como, por exemplo, na Suécia) e o preenchimento de cargos na máquina governamental por uma burocracia que sempre foi recrutada em parte entre os próprios camponeses e, de todo modo, inteiramente pacífica. Mediada

236

por essa hierarquia, formas cortesãs de civilização penetraram profundamente nas classes mais baixas (...): transformadas de muitas maneiras, lançaram raízes no código de conduta da aldeia. O que (…) se denominou o caráter “não belicoso” do povo chinês (…) (r)esultou do fato de que a classe da qual o povo extraiu muitos de seus modelos, por meio de contatos constantes, já deixara, havia séculos, de ser uma classe de guerreiros, uma nobreza, tornando-se um pacífico oficialato erudito. É principalmente a situação e a função dessa classe que se manifesta no fato de que, na tradicional escala de valores chinesa – ao contrário da japonesa –, a atividade e a bravura militar não ocupam lugar muito alto. Por diferente que, em seus detalhes, o sistema de centralização chinês tenha sido daquilo que ocorreu no Ocidente, em ambos os casos o fundamento da coesão de domínios mais vastos foi a eliminação de guerreiros terratenentes que competiam livremente entre si (Elias 2000: 540, nota 79 [1990, vol. 2: 285, nota 79] )

Não se situa em nossa esfera de competência avaliar se essas sugestões apresentadas por Elias com relação ao padrão chinês de desenvolvimento se sustentavam na época em que foram escritas ou se acabaram por se revelar obsoletas, tendo sido há muito superadas pelo avanço do conhecimento. Nossa preocupação é sobretudo demonstrar que Elias era um autor imaginativo, que escreveu principalmente a respeito de sociedades europeias por conta das limitações no acesso aos dados. Portanto, não é razoável que seja acusado de ter sido etnocêntrico ou o proponente de uma teoria sobre a inerente “superioridade” do Ocidente. Outros de seus argumentos em O processo civilizador apontam na mesma direção. Por exemplo, na formulação de um de seus argumentos (Elias, 2000: 548-9, nota 27 [1990, vol. 2: 295, nota 155]), defendia que não possuíamos ainda uma compreensão satisfatória sobre por que os graus daquilo que chamava de “pressão social” – isto é, a pressão que pessoas interdependentes exercem umas sobre as outras – variavam de sociedade para sociedade, de “área cultural” para “área cultural” e de período histórico para período histórico. Sugeriu, por exemplo, que o nível de pressão social e, portanto, de tensões sociais era muito maior na configuração dos Estados europeus do as existentes entre os Estados das Américas Central e do Sul, mas acaba por concluir que não contamos ainda com instrumentos conceituais adequados para explorar questões dessa natureza. Contudo, o que é certo quanto a isso, disse Elias, é

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que tais problemas são mai bem abordados em termos processuais, comparativos, dinâmicos e relacionais. Ademais, as pressões e tensões sociais não são geradas simplesmente “de forma endógena”, isto é, não apenas no interior de sociedades específicas, mas também em decorrência das posições ocupadas por essas sociedades em constelações intersociais e internacionais.

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238

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O desenvolvimento do futebol

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A primeira questão que precisa ser discutida ao se examinar o desenvolvimento do futebol é a origem e o significado desses dois termos: football e soccer. Isso porque, em praticamente todos os países do mundo, é usual se referir simplesmente a football ou à tradução desse termo inglês na língua local. Assim, temos Fussball em alemão, voetbal em holandês, futebol em português, fútbol em espanhol e fotball em sueco. A única exceção de que tenho conhecimento está na Itália, onde a expressão gioco del calcio – jogo do chute – é usada da mesma forma como football, refletindo a pretensão do país a ter sido o berço do jogo moderno, uma pretensão que, em minha opinião, é quase certamente falsa. Apesar de não ser tão amplamente utilizada como football, o termo soccer é amplamente entendido na Inglaterra. Seu alcance, porém, não é tão amplo na Europa continental ou nas Américas do Central e do Sul. Na verdade, os principais países nos quais o termo soccer é usado são aqueles situados na América do Norte, isto é, EUA e Canadá, assim como a Austrália, onde seu uso se tornou necessário em decorrência do fato de que americanos, canadenses e australianos utilizam football para se referir aos jogos praticados por seus cidadãos de origem europeia. Essa discussão pode parecer desnecessariamente pedante, o tipo de debate inócuo em que nós, professores, frequentemente nos vemos envolvidos inadvertidamente. Porém, trata-se de algo essencial, senão por outra razão, porque geralmente se acredita que, com a exceção de australianos, canadenses e americanos, o termo football pressupõe um jogo de chutar no qual apenas ao goleiro é permitido tocar a bola com a mão enquanto ela ainda esteja em jogo. Uma tal pressuposição é, contudo, em minha opinião, errônea, por duas razões principais. A primeira é que, ao passo que o termo football pode ter sua origem retraçada ao ano de 1314 com algum grau de certeza, a variante soccer do jogo, que virtualmente proscreve o manuseio da bola, é um produto da segunda metade do século XIX, como pretendo demonstrar neste capítulo. Football, por outro lado, é um termo genérico, que se refere atualmente a toda uma categoria de jogos de bola, sendo a mais popular dentre todas as modalidades associadas certamente o association football, isto é, soccer, mas incluindo também o rugby football (do qual existem duas variantes, union e league), American football, Canadian football, Australian football e Gaelic football. Soccer é uma corruptela do termo inglês association e se refere à forma

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“associada” de jogar, extremamente específica, cujas origens remetem a 1863, o ano em que a “Football Association” foi fundada. Isso pode ser afirmado com absoluta certeza. Acredita-se que o termo soccer, propriamente dito, tenha tido sua origem no final do século XIX na Universidade de Oxford, quando um estudante, chamado Charles Wreford-Brown – um “velho cartuxo” (Old Carthusian), isto é, um ex-aluno ou veterano da escola pública de Charterhouse – foi inquirido certo dia por um colega de faculdade durante o café da manhã: “Diga-me, Charles, você vai jogar rugger (quer dizer, rúgbi) após o café da manhã hoje?” “Não”, teria respondido Wreford-Brown, “Vou jogar soccer”. A prática de acrescentar a terminação “er” às abreviações era aparentemente moda entre as classes altas e médias inglesas naquela época. No entanto, a história é provavelmente apócrifa, ou seja, um mito. Mas se não for, representaria uma das raras ocasiões na história do esporte em que a introdução de uma prática específica pode ser legitimamente atribuída a um indivíduo também especificado, nomeado e conhecido. A palavra-chave quanto a esse aspecto é “legitimamente”, pois existem inúmeros relatos míticos que atribuem as origens dos esportes aos atos inovadores de indivíduos específicos, mas que não veem necessidade de verificar a veracidade de seu teor ou de estipular a localização social desses indivíduos. Existem, na verdade, duas grandes categorias de relato mítico sobre as origens dos esportes: aqueles que atribuem as origens de uma modalidade esportiva às ações de um indivíduo específico e aqueles que as atribuem a um grupo. Aquele que provavelmente seja o mais famoso exemplo de uma origem individual é o que remete o surgimento do futebol rúgbi à suposta ruptura das regras na atuação desviante da Escola de Rugby em 1823. William Webb Ellis, um aluno da escola, é considerado o primeiro a ter colhido a bola com as mãos e corrido com ela pelo campo, supostamente infringindo as regras. A primeira menção do fato de que se tem notícia, no entanto, ocorreu somente em 1857, isto é, 34 anos após a suposta ação de Webb Ellis. Thomas Hughes, o ex-aluno de Rugby que escreveu o célebre livro “Tom Brown's Schooldays”, afirmou nunca ter ouvido falar o que quer que fosse a respeito desse acontecimento. Sendo assim, acredito ser seguro afirmar que a história é mítica. Porém, a maior parte das tentativas de explicar as origens do futebol são antes matizes da modalidade coletiva do que da vertente individual. Por exemplo, era comum se

241

acreditar em Kingston upon Thames, no condado britânico de Surrey, que o esporte local tradicionalmente praticado toda Terça-Feira de Carnaval tinha sua origem numa derrota imposta pelos saxões aos invasores dinamarqueses nos primórdios da Idade Média. A cabeça do comandante dinamarquês derrotado, dizia-se, teria sido decepada e chutada pelas ruas em comemoração, e o jogo teria tido seu desenvolvimento a partir dali; ou seja, o domínio da bola seria um indicador de superioridade simbólica. Uma crença igualmente implausível era professada em Derby, só que ali se dizia que o jogo havia originado da derrota de invasores romanos diante dos nativos bretões no século III EC. Tais crenças são míticas porque não existe qualquer evidência que as sustente que tenha sido preservada das épocas quando os supostos eventos originários teriam ocorrido. Outra forma de mito da origem coletiva sustenta que o futebol seria um derivado mais ou menos direto de uma das seguintes práticas lúdicas, atléticas ou cerimoniais: o velho jogo chinês de cuju, uma espécie de versão coletiva da prática de “embaixadas” (“keep-ups” ou “keepie uppie”, para os anglófonos); o kemari japonês, que era basicamente o mesmo que o cuji; o harpastum ou harpustum dos antigos romanos; o episkyros dos gregos antigos; ou o italiano gioco del calcio, o jogo de chutar que mencionei anteriormente. Outros ainda afirmam que sua origem remonta a um jogo francês chamado la soule ou la choule, ou então que sua origem é celta. Em nenhum desses casos, contudo, com a possível exceção parcial do calcio, existe qualquer evidência que permita traçar uma genealogia definitiva. Tendo isso em mente, acredito que o mais razoável seja supor que as variantes do futebol tiveram múltiplas origens, tendo sido jogadas de diferentes maneiras em todas as partes do mundo, ou pelo menos na maioria delas, onde as pessoas tivessem a habilidade técnica para fabricar os tipos apropriados de bola e a liberdade da escassez material e da ameaça militar para desfrutar do ócio necessário para se dedicar às várias formas de jogar com essas bolas. Entretanto, todas as evidências efetivamente existentes comprovam que as variantes soccer e rugby do futebol foram ambas inventadas na Inglaterra do século XIX e que foram estabelecidas concorrentemente, isto é, inventadas por grupos que estavam envolvidos em clara competição em torno do estabelecimento de um jogo nacional unificado. As modalidades americana, australiana e gaélica de futebol são todas descendentes

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dessas duas e de outras variações britânicas delas. Passemos à exposição de todas as provas que se encontram atualmente disponíveis. Como disse no início, a primeira referência certa e razoável de um jogo chamado football vem de uma proibição decretada pelo Lorde Chanceler do rei Eduardo II:

Em razão de haver muito ruído na cidade, causado pelas rusgas em torno de grandes bolas de pé nos campos públicos, donde podem surgir vários males de que possa Deus nos livrar: ordenamos e proibimos, em nome do rei, sob pena de prisão, que doravante tal jogo seja usado na cidade.

Disse dessa referência que era apenas “razoavelmente certa” porque a proibição foi decretada não em inglês, mas em anglo-francês. Em sua versão original, não se lê literalmente a expressão hustling over large footballs, traduzida e aqui mencionada como “rusgas em torno de bolas de pé”, mas sim ragaries de grosses pelotes de pee, que poderia ser mais bem traduzida como “doidices por bolas de pé”. Todavia, esteja eu correto ou não a respeito disso, o que é certo é que essa foi apenas a primeira ocorrência registrada de uma série de proibições que foram decretadas pelas autoridades centrais e locais da Inglaterra e da Escócia, começando no século XIII e chegando até o século XVII. O fato de que as autoridades tivessem de repetir essas proibições sugere que, de modo bastante similar com o que acontece em torno do hooliganismo hoje em dia, as autoridades não dispunham de poder suficiente para tornar suas proibições efetivas. Mas, para além disso, o que pode ser dito a respeito da estrutura desses jogos? As próximas passagens procurarão dar uma ideia sobre como se configuravam e se eram praticados em campo aberto da mesma forma que nas ruas das cidades. As formas modernas de futebol descendem de um tipo de jogos populares medievais que eram conhecidos por nomes os mais diversos, um dos quais era “football”. Outros eram “hurling”, “knappan” e “camp-ball”. Representavam, por assim dizer, uma matriz comum a partir da qual nossos jogos modernos se desenvolveram.

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Nesses jogos, a bola podia ser carregada, arremessada e golpeada com bastões, assim como chutada, e as partidas eram disputadas, como já foi indicado, tanto ao longo das ruas das cidades quanto em campo aberto. Um número variável de pessoas entrava no jogo, algumas vezes mais de 1.000 ao mesmo tempo. Não havia equalização de efetivos entre os lados e as rudimentares regras eram definidas oralmente e variavam enormemente conforme a localidade. Isto é, não eram escritas, nem padronizadas e muito menos aplicadas por uma entidade reguladora nacional ou mundial como a FA ou a FIFA. Por vezes, havia jogadores que participavam a cavalo, assim como a pé. As partidas também eram com frequência ocasiões para beber em demasia e muitos dos participantes estavam ostensivamente em busca de oportunidades de se envolver em brigas. Eram batalhas simuladas, mas consideravelmente mais próximas de lutas verdadeiras, batalhas reais, do que costuma ser o caso com nossos jogos de hoje em dia. Como se desenvolveram os jogos que conhecemos atualmente? A primeira coisa que precisa ser destacada quanto a isso é que essas formas tradicionais de futebol não se extinguiram completamente. Continuam a ser jogadas ainda hoje por toda a Grã-Bretanha, como, por exemplo, em Ashbourne, no condado de Derbyshire, toda Terça-Feira de Carnaval, e também entre os povoados de Hallaton e Medbourne, no condado de Leicestershire, toda Segunda-Feira de Páscoa. Há muitos outros exemplos da continuidade desses jogos tradicionais. Contudo, por mais que não tenham desaparecido, as formas populares arcaicas do jogo foram superadas em termos de popularidade pelas novas formas assumidas pelo futebol que se desenvolveram na Inglaterra ao longo do século XIX, em especial – e sublinho 'em especial' porque havia outras – aquelas variantes praticadas nas escolas públicas e universidades. É para esse processo que devemos voltar agora nossa atenção. Para tornar ainda mais claro o que ocorreu sob esse aspecto, ser-me-á necessário dizer algo sobre a época inicial da história das escolas públicas. Houve sete escolas públicas nas quais essa evolução ocorreu, todas elas de regime integral. Eram, em ordem alfabética, Charterhouse, Eton, Harrow, Rugby, Shrewsbury, Westminster

e Winchester.

Estabelecidas

inicialmente

como

instituições de caridade para a educação de “escolares pobres e carentes” ou como escolas primárias de província, as escolas públicas foram transformadas, ao longo do século XVIII e início do século XIX, em escolas integrais, ou internatos, para

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estudantes oriundos de famílias das classes altas e médias altas – e é o que continuam a ser até hoje. Pelo menos três consequências decorreram desse apossamento pelas classes altas e médias altas. A primeira delas foi que a diferença de classe entre professores e estudantes – inerente à estrutura desse tipo de escola, em que docentes de classe média tentavam atender às necessidades educacionais de meninos que, em sua maioria, vinham de estratos sociais mais altos que os seus – significava que os professores eram incapazes de controlar com facilidade os estudantes ou impedir que surgissem entre eles formas autônomas de gerir o cotidiano. Ou seja, os meninos dispunham de um alto grau de independência estrutural que derivava da riqueza e do alto status de seus pais. A segunda consequência foi que essa discrepância de poder e status entre professores e alunos levou a uma crônica falta de disciplina e, não raro, a episódios de franca rebelião movida pelos alunos. Isso ainda foi reforçado pela importância adquirida por alunos veteranos que passaram a desempenhar funções auxiliares e a contribuir pesadamente para um favorecimento desproporcional dos meninos. A seguir, teremos a chance de considerar uma seleção de alguns dos mais marcantes episódios de rebelião estudantil nessas instituições. De modo algum há exagero no uso do termo “rebelião” para descrever esses distúrbios. Por exemplo, a revolta em Winchester, em 1818, somente pôde ser debelada pela milícia com o uso de baionetas e, em 1793, há relatos – e cito a partir deles – que descrevem como os meninos de Winchester, “em preparação para um cerco, aprovisionaram o colégio saqueando lojas em busca de suprimentos”. Também “se armaram com espadas, rifles e porretes e (…) vestiram o barrete vermelho da liberdade e da igualdade”. De fato, era a época da Revolução Francesa e, em 1798, conta-se que uma tropa de alunos de Eton marchou pela margem do Tâmisa até Datchet empunhando a bandeira tricolor francesa e gritando, em francês, o slogan revolucionário: “liberté, egalité, fraternité”. Também em Rugby, em 1797, a porta para a sala do diretor foi explodida com uma carga de dinamite, as janelas de seu gabinete estilhaçadas e seus livros atirados em uma fogueira. Assim como tinha ocorrido em Winchester em 1793, a ordem somente pôde ser restaurada com o auxílio de forças militares.

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A bravata juvenil provavelmente desempenhou seu papel nessas rebeliões. Como já foi sublinhado, aquelas que ocorreram na década de 1790 foram, sem dúvida alguma, também influenciadas pelos sucessos revolucionários de então na França. De um ponto de vista sociológico, todavia, fica evidente que esses distúrbios recorrentes eram sintomáticos de uma prolongada disputa pelo poder entre professores e alunos, na qual, durante muito tempo, nenhum dos grupos foi capaz de estabelecer um controle efetivo sobre o outro. O resultado foi a paulatina consolidação de um sistema de controle dual que posteriormente veio a ser formalmente conhecido como sistema de “sujeição ao monitor” (prefect-fagging). Era um sistema por meio do qual à autoridade dos professores era conferido um certo grau de legitimidade na sala de aula em troca de seu reconhecimento recíproco do direito dos “monitores” – os líderes em meio aos alunos mais velhos – de exercer seu domínio sobre o corpo discente em tudo o que dissesse respeito às atividades extracurriculares, incluindo as atividades esportivas. O elemento de “sujeição” do sistema surgiu como parte do mesmo processo. O fato de que os professores fossem, por todos os meios, incapazes de controlar os alunos mais velhos implicava dizer que eram igualmente incapazes de direcionar, fosse em qual sentido fosse, seu comportamento em relação aos colegas mais jovens. Consequentemente, estabeleceu-se uma hierarquia entre os alunos que era determinada em grande medida pelas diferenças relativas de idade e força física: os alunos mais velhos e/ou fisicamente mais fortes tiranizavam e intimidavam aqueles que fossem mais jovens e/ou fisicamente mais fracos. Quem leu Tom Brown's Schooldays (Tom Brown na escola), de Thomas Hughes, reconhecerá de imediato nesses papéis Flashman e seus colegas. Os calouros eram forçados a desempenhar o papel de “pajens” (fags), ou seja, a prestar serviços braçais e possivelmente também sexuais para seus veteranos. Não estou certo sobre este último ponto, mas é possível que esteja aí a origem para o termo norte-americano para designar pejorativamente o homem homossexual, isto é, fag. Mas agora retornamos ao âmago da questão. É possível dizer que o sistema de sujeição ao monitor teve uma importância crucial no desenvolvimento inicial do futebol. Em cada escola pública, o jogo era um dos meios pelos quais os alunos mais velhos impunham seu domínio sobre seus colegas mais jovens. Um dos deveres habituais que se impunham aos pajens era aquilo que passou a ser chamado no

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futebol, por associação, “interceptação” (fagging out). Também no críquete havia a interceptação. Isso significava que eram obrigados a jogar, mas ao mesmo tempo tinham sua atuação restrita quase integralmente ao papel defensivo, de proteção do gol, ou seja, eram dispostos em massa ao longo das linhas defensivas. Por exemplo, relatos da época indicam que, em Westminster, no início do século XIX – cito aqui a partir de uma fonte contemporânea –, “os meninos menores, os mequetrefes (duffers) e a perrengada (funksticks) eram os goleiros, 12 ou 15 de cada lado”. “Fiapagem” (dowling), o nome dado ao futebol em Shrewsbury, era o mesmo que usavam para designar o sistema de sujeição (fagging). Era supostamente derivado da palavra grega para “escravo”. Em Winchester, no início do século XIX, pajens, um de cada lado, eram até mesmo usados no lugar das traves, e a bola tinha de passar por entre suas pernas abertas para que um gol fosse marcado. Também em Winchester, pajens alinhados eram usados em lugar do giz para marcar inclusive os limites do próprio campo. Assim como em seus antecedentes populares, o futebol das escolas públicas era regido, nesse estágio de seu desenvolvimento, por regras orais. Isso significava que a natureza do jogo e o local onde era disputado variavam de escola para escola. Todas as variantes do futebol da escola pública também eram, nessa altura, brutais. Nas “escaramuças” que aconteciam durante as partidas de futebol “dos claustros” (cloisters), em Charterhouse, por exemplo, existem relatos de que – e cito novamente uma fonte contemporânea – “os magrelos eram chutados feito sacos de pancada; os casacos e outros itens de vestuário eram praticamente esfarrapados; e os pajens eram esmagados de tão pisoteados”.

Diz-se que, em Westminster, “o

adversário passava-lhe uma rasteira, dava-lhe um calço, dava-lhe um encontrão com o ombro, derrubava-o e sentava em cima de você – na verdade, era capaz de chegar à beira do assassinato para lhe arrancar a bola”. E no futebol “de campo” (field), em Charterhouse, foi relatado que “havia um bom número de magrelos arrebentados, pois a maioria dos colegas tinha ponteiras de ferro em seus sapatos reforçados e alguns se gabavam abertamente de terem batido mais do que apanharam”. Sapatos com ponteira de ferro também eram usados em Rugby, onde eram conhecidos como “escavadeiras” (navvies). Segundo um veterano de Rugby, relembrando seus tempos de aluno na década de 1920, as “escavadeiras” tinham “um solado grosso, cujo recorte na biqueira mais parecia o aríete de um encouraçado”, ou seja, de uma nave

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de guerra. Dar e levar chutes com “escavadeiras” era evidentemente uma fonte de orgulho masculino! As formas modernas de futebol derivaram fundamentalmente dessas modalidades praticadas nas escolas públicas. Foi um processo que ocorreu entre as décadas de 1830 e 1860. Em resumo, o que parece ter acontecido foi o seguinte. A industrialização e a urbanização – isto é, o crescimento da indústria e das cidades – levou industriais, empresários e profissionais liberais como médicos, advogados e professores a se tornarem mais poderosos enquanto parcelas da classe dirigente e da classe média. Ao mesmo tempo, grupos de proprietários de terras começaram a ver seu poder diminuir gradualmente. Nesse contexto, aumentou a pressão pela reforma das escolas públicas. Essa pressão se concentrou sobre o sistema de sujeição ao monitor e sobre as práticas de futebol associadas a ele. Diversas tentativas de reforma foram feitas desde o início do século XIX, mas a primeira reforma bem sucedida ocorreu em Rugby, sob a direção de Thomas Arnold. Tendo sido diretor entre os anos de 1820 e 1842, o que fez foi basicamente transformar o sistema de sujeição em um sistema de controle indireto, por meio do qual utilizaria os monitores para gerir a escola de acordo com seu plano de produzir “cavalheiros cristãos”, aptos a cumprir seu papel na administração e na manutenção do Império Britânico em expansão. Trata-se de um erro comum acreditar que Arnold tenha sido o primeiro diretor de escola pública a usar o esporte como uma ferramenta educacional. Entretanto, não existe qualquer evidência direta capaz de sustentar essa suposição. Ele não se opunha ao esporte, mas tampouco era explicitamente favorável a ele. Em vez disso, o que ele parece ter efetivamente feito foi desempenhar um papel crucial na criação, em Rugby, de um ambiente que pudesse facilitar a realização de um tal objetivo, qual fosse, a utilização do esporte como ferramente educacional. Mas teria sido H. E. L. Cotton – o professor que serviu de modelo para Thomas Hughes, em seu Tom Brown's Schooldays, ao criar o personagem do professor assistente em Rugby, e que se tornou posteriormente diretor em Marlborough – quem primeiro recorreu explicitamente ao esporte como uma ferramenta educacional, convencendo os estudantes mais destacados, em primeiro lugar, das propriedades que supostamente teria o esporte na formação do caráter e, em segundo lugar, da natureza excessivamente violenta do futebol que ali

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era praticado e da necessidade de reformulá-lo para que fosse consistente com o plano de formação de “cavalheiros cristãos”. Foi uma “Confraria de Ultimanistas” (Sixth Form Levee), como era chamada, em Rugby, a assembleia de veteranos que se reunia antes do início das aulas, que criou as regras escritas do futebol, em 1845, a mais antiga série de regras escritas do futebol a ter sobrevivido. Entre muitos outros aspectos, elas estipularam os limites para a prática da “intrusão” (running in), que consistia em carregar a bola nas mãos, definiram as metas com traves em forma de H e proibiram o uso de “escavadeiras”. O fato de as provas disponíveis apontarem Rugby como tendo sido a primeira escola pública a realizar uma reforma efetiva do sistema de sujeição ao monitor e, ao mesmo tempo, a primeira a reduzir suas regras de futebol à forma escrita representa uma forte indicação de que ambos os processos estiveram associados. Além disso, existem razões para acreditar que, para além da didática carismática de Arnold e Cotton, a circunstância de que a reforma disciplinar efetiva tivesse sido alcançada primeiro em Rugby estava conectada a duas contingências: em primeiro lugar, a de que essa escola havia sido estabelecida como escola pública apenas recentemente – fora uma escola primária provincial até a década de 1790 – e, em segundo lugar, a de que seus alunos vinham na maioria de camadas relativamente inferiores das classes alta e média em comparação com aqueles que iam, por exemplo, para Eton ou Harrow. As diferenças de status entre professores e alunos teriam sido, portanto, menores em Rugby e essa proporção reduzida de alunos de origem aristocrática teria feito com que a escola fosse mais fácil de reformar e controlar. Ainda outra vez, se a evidência disponível for indicação suficientemente confiável, a segunda escola pública a reduzir à forma escrita suas regras de futebol foi Eton, localizada nas proximidades de Windsor, a cerca de 30km de Londres e com estreitos vínculos com a corte real. Na verdade, havia mesmo sido fundada por um monarca, Henrique VI. Três dentre as 34 regras escritas definidas em Eton, em 1847, despertam um interesse especial. São as seguintes:

8) as traves do gol devem estar a sete pés do chão: um gol é marcado quando a bola é chutada por entre elas, desde que não passe por cima de seu limite superior;

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22) as mãos somente poderão ser usadas para deter a bola ou tocá-la enquanto estiverem para trás; a bola não deve ser carregada, arremessada ou golpeada com a mão;

29) considera-se um jogador invasor quando apenas três, ou menos de três, do lado adversário estiverem posicionados à sua frente e estará impedido de chutar a bola.

As duas primeiras dessas regras estavam em diametralmente oposição àquelas estabelecidas em Rugby. Assim como a regra 29, que se referia à “invasão” (sneaking), o evocativo termo de Eton para definir o “impedimento” (offside). Por conseguinte, pode-se depreender daí que o Jogo de Campo de Eton (Eton Field Game) foi provavelmente o mais precoce protótipo do futebol moderno. Por que teriam os rapazes de Eton querido criar um tal jogo? Sob a direção de Arnold, a fama da Escola de Rugby e de sua maneira de jogar futebol já havia começado a se difundir. De modo similar, não seria de todo improvável que, ao desenvolver uma forma de praticar o futebol que era tão contrastante e, em aspectos cruciais, diametralmente oposta à modalidade praticada em Rugby, os rapazes de Eton estavam tentando colocar os “novos-ricos” de Rugby em seu lugar e fazer frente ao desafio lançado ao prestígio de Eton como a escola pública dominante em todos os campos. As mãos estavam entre os atributos corporais mais importantes dos seres humanos e, ao estipular um tabu praticamente absoluto em torno de sua utilização num jogo, os alunos de Eton estavam exigindo que os jogadores aprendessem a fazer uso de um nível mais elevado de autocontrole. Em um país em que hoje em dia se pratica o futebol, onde as crianças aprendem desde a mais tenra idade a chutar a bola, ao invés de usar as mãos, isso pode afinal nem parecer uma exigência particularmente difícil. Todavia, quando foi introduzida pela primeira vez, deve ter sido algo parecido com exigir de alguém que equilibrasse ervilhas nas costas de seu garfo. De fato, há relatos de que, quando os rapazes de Eton e outros tentaram pela primeira vez introduzir o jogo sem-manejo para um público da classe trabalhadora, foi exigido dos jogadores que entrassem em campo segurando nas mãos uma

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prenda, que poderiam levar para casa se com ela mantivessem as mãos ocupadas e chegassem ao final da partida sem as haverem usado. Em outra ocasião, foram convencidos a jogar calçando luvas brancas e tinham de mostrar, no fim da partida, que continuavam imaculadas por não terem tocada a enlameada. Começando em 1859, os jogos embrionários de futebol (soccer e rugby) começavam a se difundir das escolas públicas e universidades para a sociedade britânica em geral. Dois processos sociais mais amplos sustentaram essa expansão: um crescimento contínuo do poder das classes médias e médias altas; e uma transformação educacional que ficou conhecida como o “culto aos jogos da escola pública”. Não há espaço aqui para analisar em maior detalhes esses desenvolvimentos mais amplos. No contexto deste trabalho, terá de ser suficiente apenas destacar que o culto aos jogos ajudou a criar o ambiente social que viabilizou a difusão do futebol em suas formas modernas embrionárias. Acima de tudo, desempenhou um papel decisivo na transformação daquelas modalidades esportivas que estavam destinadas a se tornar o futebol e o rúgbi em prestigiosas atividades destinadas a cavalheiros adultos. Foi nesse contexto, por exemplo, que a ideia da “formação do caráter” e do valor “civilizador” dos jogos de equipe, inicialmente sustentada por educadores como Cotton, que havia sido assistente de Arnold em Rugby entre as décadas de 1830 e 1840 – começou a ser articulada como uma ideologia explícita, e os jogos e seus jogadores – os chamados “bambas” (bloods) – começaram a dominar as escolas públicas e universidades. Ser um dos “azuis” (blue) de Oxford ou Cambridge, por exemplo, tornou-se mais importante que um bom diploma como critério na seleção de professores para as escolas públicas; e os monitores começaram a ser escolhidos quase exclusivamente dentre as fileiras dos melhores jogadores. Foi nesse contexto, marcado por aquilo que podemos chamar de crescente centralidade cultural do esporte, que começou a ser amplamente percebido o caos criado pela falta de um conjunto de regras claras do futebol nacional. Até então, as partidas tinham de ser jogadas entre times formados dentro de cada escola ou de cada clube; ou então – e isso não era algo que ocorresse com qualquer regularidade ou frequência – as partidas tinham de ser disputadas de acordo com regras estabelecidas ad hoc, definidas para cada competição específica. Por razões óbvias, esse era um arranjo por demais insatisfatório e, em decorrência disso, até mesmo a

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constituição de um “parlamento do futebol” foi sugerida em uma carta enviada ao jornal The Daily Telegraph em setembro de 1863. Nesse mesmo mês, um conjunto preliminar de regras para um jogo similar ao soccer, ou seja, pautado por regras que impediam carregar a bola ou interceptar com as mãos o adversário, foi esboçado por um comitê de estudantes que jogavam futebol na Universidade de Cambridge. De modo bastante significativo, o comitê foi dominado por egressos de Eton, fazendo com que as regras propostas fossem bastante similares àquelas utilizadas no “Jogo de Campo” de Eton. Pouco tempo depois, os encontros inaugurais da Football Association (FA) foram realizados em Londres. No primeiro desses encontros, parecia provável que um jogo nacional similar ao rúgbi, envolvendo carregar a bola e a possibilidade de interceptação do adversário com as mãos, acabaria sendo privilegiado. Porém, no quarto encontro, um grupo que poderia ser chamado de uma incipiente “facção do futebol” trouxe à atenção do comitê o conjunto de regras recentemente estabelecido em Cambridge, e elas foram aceitas, o que levou a enfurecida “facção do rúgbi” a abandonar a Associação. Diziam que as novas regras acabariam por emascular o jogo, enquanto a facção do futebol argumentava que era necessário que o jogo fosse “civilizado”, para aumentar seu apelo entre os adultos da classe média. É interessante que, quando a Rugby Football Union foi fundada em 1871, um de seus primeiros atos foi abolir a possibilidade de carregar a bola ou interceptar o adversário com as mãos, a prática em torno da qual todo o conflito se havia instalado. Em outras palavras, um “processo civilizador” esteve em marcha ao longo desse desenvolvimento inicial. Um “processo civilizador” esteve implicado também no desenvolvimento inicial do futebol americano, ou “futebol gridiron”. Teve início no final do século XIX, quando as prestigiosas universidades da assim chamada “Ivy League” adotaram a prática de uma versão de rúgbi, a partir da modalidade praticada na Universidade McGill, no Canadá. As partidas rapidamente se tornaram muito violentas e competitivas. Foi nesse contexto que formações planejadas, tais como a infame “cunha voadora” (flying wedge), foram introduzidas. Essa tática envolvia duas linhas de jogadores conjugadas para formar a letra V, cada um dos jogadores, com a exceção do mais adiantado, agarrando-se àquele diretamente à sua frente, permitindo que o grupo todo avançasse, atacando com força e velocidade totais, enquanto o jogador que detinha a bola se mantinha protegido no centro da formação.

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Somente no ano de 1905, ao que tudo indica, nada menos do que 18 jogadores universitários foram mortos e outros 159 foram gravemente feridos, em decorrência, sobretudo, dessa e de outras táticas igualmente violentas. O presidente Theodore – ou “Teddy”, como era conhecido – Roosevelt interveio a ameaçou abolir o esporte caso não houvesse uma mudança nas regras. Como resultado, a cunha voadora e outras táticas similares foram abandonadas e houve uma mudança da regra do passe, dos passes em recuo, típicos do rúgbi, para os passes adiante, que se tornaram a marca distintivas das diversas modalidades do futebol gridiron atual. Seja em qual for de suas variantes, futebol, rúgbi e futebol americano são todos esportes de alcance mundial atualmente, mas o futebol é, de longe e sem qualquer dúvida, o mais popular de todos. É evidente que somente isso já seria um fator suficiente, mas tanto mais se considerado junto com o fato de que se tornou quase universalmente reconhecido como um jogo primordialmente ligado às classes populares, para gerar pressões que geraram um aumento da brutalidade e da violência associadas ao esporte, levando no sentido da “descivilização” amplamente reconhecida como traço típico da segunda metade do século XX.

Referências bibliográficas Thomas Hughes, Tom Brown na escola: romance - Biblioteca dos rapazes n°. 30. Portugália: Lisboa, sd [ed. brasileira em quadrinhos: Thomas Hughes, “Tom Brown na escola”, Edição Maravilhosa 153. Ebal: Rio de Janeiro, 1957]. Capítulo 3

A história e o desenvolvimento do esporte moderno

Darei início a este capítulo com uma breve discussão da evolução da própria palavra “esporte” (sport). Trata-se, na verdade, de um termo utilizado amplamente em todo o mundo nos dias de hoje e só isso já é, em si mesmo, um indicador de que um grande número, talvez mesmo a maioria, das formas modernas de esporte tenham

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tido sua origem na Grã-Bretanha, e sobretudo na Inglaterra. Por exemplo, a palavra em alemão para esporte é der Sport e, em francês, le sport. A pronúncia pode variar levemente, mas a grafia é a mesma: 's', 'p', 'o', 'r', 't'. Prova de que sport começou sua vida como uma palavra inglesa é oferecida pelo fato de que um aristocrata alemão, chamado Príncipe (Fürst von) Pückler-Muskau, foi capaz de escrever, em 1810, que: sport é uma palavra tão intraduzível quanto gentleman. Na França, foi até mesmo feita uma tentativa, no século XIX, de deter uso do termo, sob a justificativa de que tais importações verbais estariam corrompendo a língua francesa. Mas essa tentativa de banir a palavra falhou. A palavra sport descende, na verdade, de um termo anglo-francês, desporter. Não podemos esquecer que a Inglaterra foi governada por uma classe dirigente militar franco-normanda por cerca de dois séculos após a Conquista Normanda, em 1066. Desporter significava “distrair-se” ou “deixar-se levar pelo prazer e pelo deleite” e, tendo passado pela forma transitória dis-port ou disport, finalmente se tornou sport, no sentido moderno que conhecemos, nos séculos XVII e XVIII. De fato, começou a ser usada por representante da aristocracia e da pequena nobreza britânicas como um substantivo que se referia a quatro atividades específicas: corridas de cavalos, críquete, boxe e caça à raposa. No século XVIII, caçadores de raposas começaram a fazer uso da expressão: “a raposa nos proporcionou bom esporte esta manhã”, quer dizer, uma boa e empolgante perseguição. A palavra emergiu, portanto, como um termo genérico que cobria toda uma série de atividades de lazer e esse permanece entre seus sentidos ainda hoje. É interessante notar que a caça à raposa e o boxe, mas especialmente a caça à raposa, são atividades que muitas pessoas hoje em dia discordariam que fossem considerados esportes, precisamente porque uma delas acarreta a morte de um animal como seu objetivo primário, enquanto a outra implica fundamentalmente em causar dor e danos cerebrais em outro ser humano. Quer dizer, a caça à raposa e o boxe passaram a ser vistos atualmente, em grande medida, como atividades “incivilizadas” e ambas são objetos de amplas polêmicas. Inúmeras pessoas buscam impedir que sigam acontecendo. A caça à raposa, por exemplo, foi banida pela promulgação de uma lei, ou Ato do Parlamento, e o boxe chegou a ser condenado pela Associação Médica Britânica. No entanto, quero demonstrar neste capítulo que, por mais “incivilizados” que possam parecer a muitas pessoas hoje, tanto o boxe como a caça à raposa podem ser mais bem compreendidos se

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conseguirmos perceber como sua emergência e sua evolução na direção das formas que assumiram na atualidade são parte de algo que poderia ser chamado de um “processo civilizador”. Isso significa dizer que a emergência do termo sport nos séculos XVII e XVIII correspondeu a uma importante mudança da estrutura e do sentido para os quais o era utilizado: o esporte se tornou um jogo e os elementos violentos começaram a ser mais controlados. Nas palavras de Norbert Elias – se nos puder ser perdoado de antemão o recurso a esta amostra do jargão bárbaro pelo qual nós, sociólogos, somos famosos, ou “infames” seria um termo mais adequado – a “esportização dos passatempos” foi um processo que ocorreu juntamente, ou de modo correlato com a “parlamentarização” do conflito político. Trataremos de apreciar as dimensões desse ideia enganosamente simples. A despeito de os torneios já haverem passado por um “processo civilizador”, como vimos no primeiro capítulo, e a despeito de haverem sinais do desenvolvimento de formas de esporte mais contidas e reguladas na Inglaterra, pelo menos desde o final do século XVI e início do século XVII, o surgimento inicial do esporte moderno foi um processo que ocorreu mais tarde, fundamentalmente em dois estágios principais sobrepostos: um estágio ocorrido no século XVIII, quando o envolvimento de representantes da aristocracia e da pequena nobreza era predominante; e outro estágio que teve lugar no século XIX, quando representantes das classes médias industriais, empresariais e profissionais em ascensão se juntaram às classes terratenentes na vanguarda do processo. A partir de então, mesmo os líderes de grupos da classe trabalhadora começaram a também se verem envolvidos. Como já foi indicado anteriormente, o século XVIII viu a emergência de formas mais civilizadas de boxe, caça à raposa, corrida de cavalos e críquete, enquanto o século XIX marcou o surgimento de formas mais reguladas de competição atlética, esportes de montanha e esportes aquáticos – como, por exemplo, natação e remo –, mas o que, acima de tudo, teve lugar ao longo do século XIX, foi o desenvolvimento inicial de jogos de bola mais civilizados, tais como futebol, rúgbi, hóquei e tênis. O crescente predomínio de jogos de bola e formas não violentas de competição atlética, em detrimento dos esportes de campo, nos quais a presa era sacrificada, representa indiscutivelmente e já em si mesmo, um desenvolvimento “civilizador” de certa importância. Da mesma forma como o fato de que, com o passar do tempo,

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os esportes modernos – ao menos nos países não totalitários, isto é, um processo que não ocorreu na Alemanha nazista, nem na Rússia soviética, nem na China comunista – passaram a ser justificados menos como um treinamento para a guerra e mais como saudáveis, divertidos e socialmente valiosos “fins em si mesmos”, quer dizer, como fundamentos do condicionamento físico, da saúde e da diversão. É claro que a medida exata do quão saudáveis e do quão divertidos são realmente, em especial nas arenas de alta competitividade, permanece como algo questionável. Basta pensarmos nas lesões acarretadas e na utilização crescente de drogas para melhorar o desempenho. Mas isso é outro assunto. Retornemos, por agora, à história e ao desenvolvimento do esporte moderno. Por que os esportes modernos começaram a se desenvolver na Grã-Bretanha e, sobretudo, na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX? Uma hipótese óbvia para explicar essa emergência inicial do esporte moderno seria relacionar esse processo ao fato de que a Grã-Bretanha tivesse começado a se tornar, no século XVIII, a primeira nação industrializada do mundo, ou seja, sugerir que existe uma conexão entre a “revolução industrial” e aquilo que poderíamos chamar de “revolução esportiva”. Acredito que haja algo a explorar nessa ideia, mas ela não nos levará muito longe. O estudioso americano Allen Guttmann foi um pouco mais fundo ao examinar a questão, sugerindo que haveria uma conexão entre a emergência da ciência moderna na Inglaterra do século XVII – Sir Isaac Newton e sua teoria da gravitação universal vêm de imediato à mente – e o surgimento, naquele contexto, não apenas da indústria moderna, mas também do esporte moderno. Com eloquência e, em minha opinião, com precisão, Guttmann indica a importância das medições e registros de espaço e tempo no esporte moderno, da mesma forma como na ciência moderna. Porém, meu velho mestre, Norbert Elias, incluiu um importante elemento adicional na equação geral, sugerindo que o desenvolvimento político desempenhou um papel igualmente crucial, sobretudo o fato de que a Inglaterra tenha vivido, no século XVIII, o nascimento da primeira democracia parlamentar do mundo e o surgimento correlato de noções tais como “jogo limpo” (fair play). Em resumo, a primeira nação científica, industrial e democrática do mundo também se tornou a primeira nação esportiva do mundo. Passemos aos desdobramentos dessa ideia, que talvez pareça algo complexa, mas que é, na verdade, bastante simples e direta. Busquemos provêla com algo dos dados factuais que a sustentam.

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A evidência disponível atualmente sugere que um ou dois elementos daquilo que hoje reconhecemos, restrospectivamente, como formas modernas de esporte começaram a se desenvolver, na verdade, durante os reinados da rainha Elizabeth I e do rei James I. Eram, contudo, os primeiros passos, consideravelmente rudimentares, em sua evolução. Em 1602, por exemplo, um homem chamado Sir Richard Carew publicou um livro intitulado “O estudo da Cornuália” (The Survey of Cornwall). Era o primeiro ano do reinado de Elizabeth e, na obra, Carew descrevia duas modalidades de um jogo chamado “arremesso” (hurling): “arremesso através dos campos” (hurling across country), um jogo violento, desprovido de muitas regras e que era jogado por um número indeterminado de participantes, e “arremesso aos gols” (hurling to goales), uma variante mais bem regrada na qual times com números equivalentes de jogadores – 15, 20 ou 30 de cada lado – consumavam seus arremessos num campo com limites bem demarcados. Carew também escreveu sobre as regras (lawes) às quais tinham de se submeter os praticantes desse jogo. Cabe destacar, a propósito, que não se tratava de uma variante local do mais conhecido jogo de arremesso irlandês (Irish hurling), mas de um jogo córnico inteiramente diferente. Segundo Carew:

Os arremessadores são obrigados a seguir muitas regras, como a (que estabelece) que devem arremessar de homem a homem, e não dois se lançarem sobre um homem de uma só vez; que o arremessador que persegue a bola não deve golpear (o oponente), nem o agarrar abaixo da cintura; que aquele que esteja com a bola deve golpear os outros apenas no peito (…) A menor das infrações dessas regras é vista pelos arremessadores como justificativa para se atracarem pelas orelhas, mas usando apenas os punhos; nem tampouco deverá qualquer dentre eles procurar vingar-se por tais faltas ou ferimentos, mas sim voltar a jogar (Carew 1769 [1602]: 74 [grifos do autor])

Carew definiu “golpear” (butting) como “dar um empurrão contra o peito do oponente” com o “punho fechado”, isto é, aquilo que nós chamaríamos hoje em dia de “socar” ou “esmurrar” alguém. Isso implica reconhecer que “arremesso aos gols” era, assim como sua versão “através através dos campos”, um jogo brutal. Também

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era jogado segundo regras definidas de modo costumeiro, ao invés de regras escritas, e essas regras incluíam um tabu em torno dos golpes baixos ou das tentativas de atingir um oponente “abaixo da linha da cintura”, ou seja, nenhum jogador poderia segurar ou apertar as áreas sensíveis do quadril. Não havia árbitros ou juízes – nem de campo, nem de linha e muito menos de contato – que fossem capazes de controlar os jogadores. Infrações às regras eram simplesmente resolvidas por meio de brigas de punhos nus entre os participantes ou, nos termos da pitoresca descrição de Carew, “atracando-se pelas orelhas”, mas invariavelmente usando apenas os próprios punhos. Em outras palavras, uma forma inicial do que passamos a chamar de boxe estava mesclada com vários elementos dessa espécie de luta livre córnica. Trata-se de algo importante e, penso, peculiarmente inglês. Aos arremessadores córnicos não era permitido chutar, morder ou utilizar quaisquer armas, e concordavam em não permitir que qualquer rancor surgisse em consequência das disputas, nem que qualquer lance mais bruto ou violento de uma partida transbordasse para fora dos limites do campo e para dentro da vida cotidiana. Ou, pelo menos, era esse o ideal professado. Outras evidências indicam o surgimento, na Inglaterra, já no início do século XVII, de uma forma tradicional de luta corporal que utilizava apenas os punhos. Ao que tudo indica, parece ter sido apreciada por homens de todas as classes e ter contado com altos níveis de popularidade também entre as mulheres. Também fora considerada digna de nota por visitantes estrangeiros. Misson de Valbourg, um viajante e cronista huguenote, isto é, protestante, que, fugindo da perseguição na França, refugiou-se na Inglaterra em 1685, ofereceu uma vívida descrição das lutas de rua que afirmava ter testemunhado em Londres, contrastando-as com as práticas que, segundo, seriam correntes na França da época:

Se dois meninos começam a se desentender na rua, os passantes formam uma roda à volta deles em questão de instantes e lançam um contra o outro, até que comece a troca de socos (…) Durante a luta, a roda de espectadores encoraja os combatentes com grande deleite e jamais os separa enquanto estiverem lutando de acordo com as regras. E esses espectadores não são apenas outros meninos, carregadores ou gente da ralé, mas todos os tipos de homens apresentáveis (…) Os pais e as mães dos

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meninos deixam que lutem, da mesma forma como o resto, e animam àquele que tenha ido ao chão ou que tenha levado a pior. Esses combates são menos frequentes entre homens crescidos do que entre as crianças, mas tampouco são raros. Se um cocheiro tem uma disputa em torno da tarifa com o cavalheiro que o contratou e este se oferecer para uma luta para decidir a questão, o cocheiro consentirá de coração aberto. O cavalheiro porá sua espada de lado, em algum canto junto com sua bengala, luvas e gravata, e boxeará (…) Vi certa vez o recém-falecido Duque de Grafton numa troca de socos em plena rua com um sujeito que ele acabou por tosquiar da forma mais horrível. Na França, puniríamos tais sujeitos com nossas bengalas ou, por vezes, com o lado cego da espada; mas na Inglaterra, isso nunca se faz. Não utilizam nem espada e nem vara contra um homem que esteja desarmado e, se algum estrangeiro desavisado (…) porventura sacar sua espada contra alguém que não tenha também a sua, terá de se ver com uma centena de pessoas que se amontoarão sobre ele no mesmo instante (Misson 1719: 304-6; parênteses do autor)

As descrições de Carew e Valbourg são duas entre tantas outras evidências textuais históricas que atestam o desenvolvimento pioneiro na Inglaterra de noções de “jogo limpo” (fair play), um dos ingredientes básicos do esporte moderno. De um ponto de vista sociológico, o que esteva implicado nesse processo foi que as pessoas submeteram a um código específico, um conjunto de regras de equiparação na disputa que obrigava as pessoas mais poderosas a aceitar abrir mão das vantagens que porventura adviesse do uso de uma arma mortífera como uma espada. De acordo com Elias, contudo, foi no século XVIII que aquilo que poderíamos chamar de “largada para o esporte moderno”, com a incidência de todas essas regras de equiparação, começou efetivamente a ocorrer de modo significativo. Para poder entender por quê, temos de retroceder para um panorama da política britânica dos séculos XVII e XVIII. O que estava implicado nessa transição é mais bem compreendido tendo em conta os correspondentes ciclos de intensificação e, finalmente, de recuo da violência. Durante o século XVII, a Grã-Bretanha se viu aprisionada

em

um

ciclo

contínuo

de

violência

revolucionária

e

contrarrevolucionária. Até os dias de hoje, na Escócia e na Irlanda do Norte, os eventos desse período ainda geram repercussões. O ciclo de violência esteve

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associado sobretudo com as tentativas dos primeiros reis da dinastia Stuart, James I e Carlos I, de restaurar o poderio do catolicismo, que havia sido severamente enfraquecido por Henrique VIII, e de reivindicar “poder absoluto” para a monarquia, seguindo no rastro do que Luís XIV havia realizado na França. Outro elemento central nesse contexto foi a tentativa de Carlos I de recolher tributos à revelia do Parlamento. Isso resultou num sério desafio à autoridade do Estado e uma estourou uma guerra civil, que o Parlamento, sob a liderança de Oliver Cromwell, foi capaz de vencer. O rei foi decapitado e a “Commonwealth” foi estabelecida. Mesmo depois que a monarquia foi restaurada, com a coroação de Carlos II, o século XVII continuou a ser turbulento. Sobreveio, por exemplo, a assim chamada “Revolução Gloriosa”, que depôs James II e encerrou a dinastia dos Stuart. Foram sucedidos por William e Mary, da casa holandesa de Orange e, em última instância, por Jorge I, da casa de Hannover, a mesma família da rainha atual, apesar de terem mudado o nome da linhagem para Windsor, quando teve início a Primeira Guerra Mundial. Não foi sem grande resistência que, naquele tumultuado século XVII, os Stuart tentaram contornar as tentativas de deposição e, mesmo mais tarde, até meados do século XVIII, houve uma obstinada tentativa de reavivar sua pretensão ao trono britânico, com o chamado Levante Jacobita. Ao longo desses dois séculos, porém, a efetividade do Estado britânico e a aceitação da legitimidade de seu monopólio da violência pôde ser mais ou menos restaurado e houve um declínio gradual dos níveis de violência. O monopólio estatal foi restabelecido, no entanto, sob condições que permitiram aos grupos da aristocracia e da pequena nobreza – constituída esta , à diferença daquela, por proprietários de terra sem título nobiliárquico – desfrutar de uma autonomia ainda maior do que aquela de que dispunham seus homólogos na França absolutista. Os aristocratas e cavalheiros ingleses não eram obrigados a frequentar a corte real como seus pares franceses. Tampouco estavam sujeitos a serem vigiados e espionados na mesma medida que ocorria nas cortes absolutistas. A liberdade de associação que lhes era assegurada foi de importância crucial para o desenvolvimento do esporte moderno: permitiu à aristocracia e à pequena nobreza que formassem clubes e associações independentes. Também lhes era permitido organizar grandes reuniões em seus domínios. Grandes assembleias convocadas com finalidades esportivas não eram vistas como ameaças pelos monarcas e seus ministros. Nesse contexto geral, as

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paixões começaram a se acalmar e os primeiros partidos políticos, os Whigs e os Tories, começaram a se estabelecer. Isso desencadeou, pela primeira vez na história europeia moderna – tinha havido apenas um precedente distante na Grécia Antiga –, algo extraordinário e inteiramente distinto de qualquer coisa que tenha existido até aquele momento: a solução das lutas políticas por meio de debates e votações e não pela violência e pela força das armas. Foi nesse contexto, de uma sociedade cada vez mais pacificada e submetida a formas sempre mais efetivas de governo parlamentar, que, de acordo com Elias, começaram a surgir formas reconhecidamente modernas de prática esportiva, baseadas em regras escritas e em procedimentos mais efetivos de controle. A existência de uma forte vinculação entre esses processos é sugerida pelo fato de que havia estreitos paralelos entre os rituais parlamentares emergentes e os rituais emergentes do esporte moderno. Consideremos o rito contemporâneo de questionamento do primeiro ministro: trata-se de uma forma de “jogo sério”. Ambos, contextos esportivos e contextos políticos, como chegaram a se desenvolver na Inglaterra do século XVIII, começaram a envolver modalidades menos violentas de gestão das disputas do que aquelas que até então haviam prevalecido. Em outras palavras, os grupos dirigentes na Grã-Bretanha daquela época – as classes terratenentes, a aristocracia e a pequena nobreza – começaram, ainda que modestamente a princípio, a reduzir o nível de violência, em comparação com seus predecessores em séculos anteriores, tanto nas esferas políticas como nas esferas de lazer de suas vidas, o que significa dizer que seus “habitus sociais” ou “coletivos”, suas personalidades e seu comportamento experimentaram um “salto civilizador”. Nas palavras de Norbert Elias:

A destreza militar deu lugar às aptidões para o debate, a retórica e a persuasão, (…) o que demandava maior autocontrole em geral e caracterizava essa mudança (…) claramente como um salto civilizador. Foi essa mudança, a maior sensibilidade com relação ao uso da violência, que, com reflexos nos hábitos sociais dos indivíduos, também encontrou expressão no desenvolvimento de seus passatempos. A “parlamentarização” das classes terratenentes da Inglaterra teve sua contrapartida na “esportização” de seus passatempos (Elias 1986: 34 )

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O fato de que o lado correspondente ao lazer nesse processo tivesse envolvido “esportes civilizadores” emerge de modo particularmente claro a partir da consideração do desenvolvimento do boxe e da caça à raposa, ambos marcado pela violência ostensiva e, no caso da caça à raposa, pela morte. Como dissera no início, ambos encontram-se sob ataque ainda hoje. Elias teve a oportunidade de comentar a fase inicial da “esportização” do boxe, nos seguintes termos:

Como muitas outras disputas corporais, a luta com punhos nus assumiu o caráter de um esporte na Inglaterra, onde, pela primeira vez, fora submetida a um conjunto mais rígido de regras (…) O aumento da sensibilidade se fez evidente na introdução de luvas e, conforma passava o tempo, no estofamento dessas luvas e na introdução de diversas classes de tamanho dos boxeadores, o que assegurava maior equivalência de chances. Na realidade, foi somente com essa vinculação ao desenvolvimento de um conjunto mais meticuloso e (…) rígido de regras e com a maior proteção dos competidores em relação à possibilidade de ferimentos graves que se seguiu (…) que uma forma popular de luta pôde assumir as características de um “esporte” (Elias 1986: 21 )

Como passarei a expor a seguir, a ideia de que luvas de boxe pudessem oferecer proteção diante dos riscos de ferimento não é assim tão simples e evidente, como Elias, no entanto, parecia ter acreditado. Na verdade, ele parece ter se confundido ligeiramente com relação à ordem cronológica dessas inovações. Ora, as evidências disponíveis sugerem que as luvas – eram sugestivamente chamadas de “amortecedores” na época, pois se esperavam que “amortecessem” ou atenuassem os golpes e reduzissem seu impacto. Mas a luvas somente foram introduzidas depois que as primeiras regras escritas tivessem sido estipuladas. Ambas, luvas e regras, foram introduzidas, ao que tudo indica, na década de 1740, num anfiteatro londrino dirigido por um homem chamado Jack Broughton, para onde buscava atrair uma ampla clientela, em grande medida “elegante”, que ali iam para realizar apostas em competições de luta e/ou para serem instruídos na prática do boxe. O que passou a

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ser conhecido como as “regras de Broughton” foram “aceitas por vários dos cavalheiros que estiveram presentes no Anfiteatro de Broughton, situado na Tottenham Court Road, em 16 de agosto de 1743”. A maior parte dessas regras se referia fundamentalmente a um esforço para regular as apostas vinculadas ao boxe e a limitar e controlar a possibilidade de disputas relacionadas às apostas. Contudo, também foram formuladas tendo em vista uma tentativa de limitar a violência. Em específico, buscavam:

(i) regular o início das lutas de uma forma justa e equitativa, estipulando que nenhum dos lutadores deveria desferir um golpe até que ambos fossem devidamente introduzidos ao quadrado inicial que era desenhado a giz no centro do ringue;

(ii) evitar que outras pessoas ajudassem ou prejudicassem os lutadores envolvidos diretamente em cada luta específica por qualquer outro meio além dos estímulos verbais positivos para seu favorito ou negativos para seu adversário;

(iii) criar um controle justo e equitativo, definindo a necessidade de que dois árbitros decidissem conjuntamente todas as disputas, com a possibilidade de invocar a opinião de um terceiro, caso os dois primeiros não chegassem a um acordo;

(iv) limitar o alvo dos golpes à porção superior do corpo, ou seja, proibir golpes dirigidos às áreas “abaixo do cinturão”; e

(v) evitar que os boxeadores golpeassem adversários que estivessem prostrados.

Um “propósito civilizador” também informa a primeira introdução de luvas ou “amortecedores”. Esse esforço está documentado em um anúncio publicado por

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Broughton em um jornal chamado Daily Advertiser, em fevereiro de 1747, nos seguintes termos:

O Sr. Broughton propõe (…) abrir uma academia (…) nas dependências do Haymarket, para a instrução daqueles que estejam dispostos a serem introduzidos ao mistério do boxe, ocasião em que serão integralmente ensinadas e explicadas toda a teoria e toda a prática dessa arte genuinamente britânica, com todas as paradas, golpes (…) etc. que possam incidir sobre os lutadores; e, para que pessoas de fino trato e distinção não sejam impedidas de tomar parte dessas aulas, serão tratadas com a maior delicadeza e todo o respeito será conferido à fragilidade da constituição do aluno, razão pela qual lhes serão oferecidos amortecedores, que os protegerão efetivamente da inconveniência dos olhos roxos, mandíbulas partidas ou narizes sangrentos (Sheard 1992: 125 ).

Além de evitarem a dor, os “distintos” boxeadores ingleses não queriam ver suas faces marcadas ou carregar cicatrizes pelo resto da vista. Nesse aspecto, eram muito diferentes dos representantes da classe dirigente alemã, para quem ter os lados da face marcados por cicatrizes adquiridas em razão de duelos travados nas fraternidades universitárias eram altamente cobiçados como marcas de elevado status social, uma tendência que se manteve até o início da Primeira Guera Mundial e, sob certos aspectos, mesmo além. De volta à Inglaterra, porém, a introdução das regras de Broughton marcou somente o estágio inicial em um processo de longo prazo que se mostrou repleto de altos e baixos. Foi somente em 1865 que o autor das regras de Queensberry, nas quais o boxe moderno se baseou, procurou limitar o número e a duração dos rounds. Essas regras foram também as primeiras a mencionar expressamente as luvas. É interessante que, como vimos, Elias tenha descrito a introdução das luvas de boxe como um sinal de crescente sensibilidade e que o anúncio de Broughton, de 1747, no qual “amortecedores” eram mencionados, tenham demonstrado que tinha razão. Porém, o que Elias não percebeu foi que, ao mesmo tempo que as luvas de boxe podem ter sido concebidas para proteger, em certa medida, a pele e as feições faciais

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daquele que sofre os golpes, elas também protegem as mãos daquele que os desfere, permitindo assim que golpes mais duros sejam desferido com mais frequência e em sucessão mais rápida do que havia sido o caso até então nas lutas de punhos nus. Portanto, as luvas de boxe quase certamente contribuir para uma maior incidência de lesões cerebrais e, em decorrência, foram, por sua vez, um fator decisivo em opor extensos segmentos da classe médica contra prática do boxe. Se os ativistas médicos fossem bem sucedidos e o boxe fosse legalmente proscrito, minha previsão seria que, longe de o erradicar, acabaria por simplesmente se converter numa prática clandestina. Isso foi o que, de fato, aconteceu com a tentativa de proibir as lutas profissionais de punhos nus no século XIX> Na realidade, a luta de punhos nus continua a ser praticada até hoje em contextos específicos por todo o mundo. Em muitos países, por exemplo, diversos grupos na comunidade “cigana” ou “viajante” continuam a preservá-la. Encerremos, pois, este capítulo com uma breve discussão do caso, similar em alguns aspectos, da caça à raposa. Como foi dito no início, a caça à raposa é outro esporte amplamente considerado “incivilizado” atualmente. Foi confrontado por uma oposição muito mais bem organizada do que o próprio boxe, como temos tido a oportunidade ver mais recentemente nos exemplos da atuação dos “sabotadores da caça” e também de parlamentares trabalhistas. Na verdade, foi declarada ilegal por um ato legislativo do parlamento há cerca de 10 anos. Não quero, porém, como sociólogo, comentar sobre a moralidade da caça à raposa ou da promulgação do ato legislativo. Minha preocupação maior é com a aplicação da lei que estabeleceu a proibição. A caça conta com tamanho apoio que se tem provado impossível proibi-la. Algo ainda mais importante para nossos propósitos aqui, entretanto, é que para muitos deve parecer absurdo que um sociólogo sugira que se possa afirmar, sobre uma atividade que atualmente é considerada por tantas pessoas como algo “bárbaro”, que tenha passado por um processo “civilizador” e se tornado mesmo expressão desse processo. No entanto, era precisamente isso que o sustentava meu velho mestre, Norbert Elias. Para compreender um fenômeno dessa natureza, disse ele, é necessário considerá-lo, não meramente a partir da perspectiva atual, mas acima de tudo de uma perspectiva histórica, isto é, em relação a seus antecedentes, às formas de caça que a precederam. No caso da caça à raposa, isso abrangeria as modalidades de caça praticadas pelas classes altas na Idade Média, nomeadamente a caça ao

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veado e a caça ao javali. Essas, sugeriu Elias, eram todas mais espontâneas, menos elaboradas, menos organizadas e mais belicosas do que a caça praticada em contextos mais modernos. E tanto mais diferente da caça à raposa, a presa era então morta e devorada. Elias prosseguiu em sua tentativa de compará-las e contrastá-las:

Um olhar sobre as formas mais antigas de caça mostra as peculiares da caça à raposa inglesa (…) Era uma forma (…) na qual os caçadores impunham a si mesmos e a suas mãos uma série de restrições altamente específicas. A organização como um todo (…), o comportamento dos participantes e o treinamento para a caça à raposa passaram a ser governados por um complexo código, segundo o qual:

1. os cães são treinados para caçar e matar apenas raposas, nenhum outro animal que porventura encontrem pelo caminho; 2. são treinados para caçar apenas a primeira raposa que encontrarem; 3. os caçadores não portam armas; atirar nas raposas é considerado uma grande gafe ou transgressão; 4. os humanos não tomam parte na matança; 5. os cães “matam em lugar dos humanos”, sendo estes meros espectadores; 6. analogia sexual: ênfase é colocada no prazer preliminar da perseguição, ao invés de no clímax da matança; 7. a raposa não e caçada para virar comida, mas pelo prazer da perseguição (Elias 1986, cf. Dunning 1999: 60; grifos do autor). As razões, todavia, para o estabelecimento desse código estavam longe de serem óbvias. Por que os cães eram treinados para não seguirem o rastro de qualquer outro animal além da raposa e, até onde fosse possível, de nenhuma outra raposa exceto a primeiro que encontrassem? O ritual da caça à raposa exigia que os caçadores não utilizassem quaisquer armas. Por que era considerado uma grande transgressão atirar nas raposas e algo indigno de cavalheiros caçar raposas utilizando armas de

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qualquer natureza? Os cavalheiros engajados na caça à raposa matava, por assim dizer, apenas de forma indireta, delegando a tarefa da matança aos seus cães. Por que o código de conduta da caça à raposa proibia a morte do animal caçado pelas mãos dos próprios caçadores? Nas modalidades anteriores de caça, enquanto as próprias pessoas desempenhavam o papel principal na caçada, aos cães era reservado apenas um papel subordinado. Por que, na caça à raposa inglesa, o papel principal era reservado aos cães, enquanto os seres humanos se limitavam ao papel secundário de seguidores ou, no máximo, controladores dos cães? O argumento de Elias indicava que essas regras e ritos surgiram conjuntamente com o desenvolvimento da caça à raposa como um “esporte” moderno. Foi, na verdade, como já sugerimos anteriormente, uma das primeiras atividades à qual o termo “esporte”, em sua acepção moderna, se viu associado. Se, por um lado, a maior parte das regras parecem em si mesmas arbitrárias, sua função social primordial é bastante clara: produzir, prolongar e finalmente consumar o prazeroso par tensão-entusiasmo ocasionado pela perseguição. A circunstância de que uma “civilização do esporte” esteve implicada no processo é algo que é demonstrado sobretudo pelo fato de que tanto senhoras como cavalheiros engajados na caça à raposa “matavam indiretamente”; eram, por assim dizer, participantes da caçada, mas unicamente espectadores da matança. Sua consciência se mantinha limpa. Recorrendo à analogia sexual de Elias, poderíamos dizer que sua ênfase estava antes no estendido prazer preliminar da perseguição do que na consumação climática da matança – e isso é algo que ainda se sustenta, se aplicado aos caçadores dos dias de hoje –, pois, sobre eles, ainda não incidiu uma repugnância generalizada contra o sacrifício e o morticínio em si mesmos – isso é ainda característica exclusiva dos citadinos que sustentam a opocição à caça à raposa –, mas tão somente contra seu envolvimento direto com a violência. Alguns ativistas dos direitos dos animais não se importam com a possibilidade de ferir humanos. Mas, com todas essas nuances e complexidades, esse seria ainda mais um bom exemplo do caminho ao longo do qual ocorre o processo civilizador.

Referências bibliográficas

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Henri Misson (de Valbourg), M. Misson's Memoirs and observations in his travels over England. With some Account of Scotland and Ireland. D . Browne: Londres, 1719. [original francês: Mémoires et observations faites par un voyageur em Angleterre, sur ce qu'il y a de plus remarquable. Henri van Bulderen: A Haia, 1698]. Richard Carew, The Survey of Cornwall: An Epistle concerning the Excellencies of the English Tongue. E. Law & J. Hewett: Londres, 1769 (1602). Norbert Elias & Eric Dunning. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Basil Blackwell: Oxford, 1986 [2a. ed. revista como Volume 7 de The Collected Works of Norbert Elias (ed. Eric Dunning). University of College Dublin Press: Dublin, 2008. Eric Dunning. Sport Matters: Sociological Studies of Sport, Violence and Civilization. Routledge: Londres, 1999.

Capítulo 4

Uma discussão dos antecedentes do esporte moderno nos mundos europeus antigo e feudal

Muitos esportes modernos enfrentam problemas de violência envolvendo seus jogadores ou suas torcidas, problemas que chegam mesmo a comprometer o fundamento dessas modalidades. Em alguns casos, enfrentam problemas em ambas as frentes simultaneamente, jogadores e torcida. Na Europa e de modo talvez particularmente brutal na Inglaterra, vivenciamos o hooliganismo no futebol. Os americanos, por sua vez, experimentaram sérios problemas de multidões descontroladas – basta pensar, por exemplo, em um dos tantos “distúrbios comemorativos” que costumam se seguir ao encerramento do Super Bowl. Comentando o fascínio exercido pelo gridiron (em especial, o futebol americano), o historiador do esporte Allen Guttmann escreveu o seguinte:

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As regras do jogo permitem aos jogadores bloquear e obstruir um ao outros de formas que claramente pretendem não somente intimidar os oponentes, mas também infligir-lhes intensa dor física. Os jogadores se gabam de sua destreza em lesionar e até mutilar seus oponentes (…) Os treinadores (…) instruem rotineiramente suas equipes em técnicas de violência física. Na Universidade de Ohio (Ohio State University), (o treinador) “Woody” Hayes era um mestre de seu ofício. “Ensinamos nossos rapazes a estocar e eviscerar”, gabava-se. “Queremos que finquem seus capacetes bem embaixo do queixo do outro cara (…) Quero que aquela máscara (de proteção) fique cravada no pescoço do oponente” (Guttmann 1978: 120 [cit. cf. Morton Sharnik & Robert Creamer. “A Rough Day for the Bear”, Sports Illustrated 17, 26.11.1962: 16] )

Em suma, no futebol americano, o capacete, que deveria ser um dispositivo de proteção, acabou se tornando uma arma defensiva. Isso converge com aquilo que o ensaísta e romancista inglês George Orwell – célebre por seus livros 1984 e A revolução dos bichos (Animal Farm) – escreveu sobre o esporte em um de seus ensaios:

O esporte genuíno nada tem que ver com o jogo limpo. Está intricado com o ódio, o ciúme, a arrogância, o desdém por todas as regras e o prazer sádico em presenciar a violência: em outras palavras, é a guerra sem os tiros (Orwell 2000 [1945]: 42 )

Acredito que haja uma boa chance de que, entre os leitores, alguns possam ter assistido, seja ao vivo ou pela TV, pelo menos algumas das partidas da penúltima Copa do Mundo, realizada em 2006 na Alemanha. Se assistiram, provavelmente se recordarão da onda de condenação deslanchada sobre o jogador inglês, Wayne Rooney, após ter sido expulso da partida das quartas de final por ter pisoteado – como se deveria formular o objeto da frase aqui? – uma parte delicada da anatomia de Ricardo Carvalho, um dos adversários portugueses. Pouco depois, foi a vez de acumularem-se as condenações sobre o capitão francês, Zinedine Zidane, após sua expulsão da final contra a Itália, por ter dado uma cabeçada contra o peito do

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zagueiro italiano Marco Materazzi, que aparentemente teria insultado sua mãe e sua irmã. Atos de considerável violência, somos todos capazes de concordar, e que parecem servir de confirmação daquilo que havia dito Orwell em 1945. Muitas outras pessoas constataram algo semelhante, embora talvez sem a elegância de Orwell. Porém, não me parece possível concordar inteiramente com ele ou com elas. Não se pode negar que haja algo no argumento de Orwell. Ele captura parte do pensamento. Todavia, guerra sem os tiros é melhor, em minha opinião, que guerra com os tiros. Acredito, entretanto, que também seja plausível que o argumento de Orwell esteja mais focado no presente e acabe por revelar uma falta de conhecimento sobre a história do esporte. Gostaria de mostrar neste capítulo que a maioria dos esportistas e dos espectadores modernos, até mesmo os hooligans britânicos e os mais violentos entre os jogadores de futebol americano, são na verdade coroinhas se comparados a seus homólogos nos mundos antigo e feudal. Mas o que esses termos, “antigo” e “feudal”, querem indicar neste contexto? Tratemos de algumas definições preliminares. A expressão “mundo antigo” é mais adequadamente compreendida se tomada como um referencial para um período que teve início com a ascensão das primeiras civilizações na Mesopotâmia e no Egito por volta de 3.500 AEC. Considera-se normalmente seu fim com a queda do Império Romano do Ocidente, no século V EC. É importante recordar, contudo, a propósito dessa datação, que o Império Romano do Oriente continuou a existir por cerca de outros mil anos. Tendo sua capital em Constantinopla – antes que se tornasse Istambul –, passou a ser chamado de “Bizâncio” ou “o Império Bizantino”. Tratava-se, todavia, de uma continuação direta do Império Romano.

Menciono isso porque haverá uma palavra ou duas a serem ditas a respeito da prática de esportes em Bizâncio, no Império Romano do Oriente. Devemos nos concentrar, no entanto, sobretudo com dois outros períodos: a época da ascensão das cidades-estados helênicas como Atenas e Esparta, nos séculos VI, V e IV AEC; e, em seguida, a época da “Pax Romana”, o longo período de domínio militar incontrastado do Império Romano sobre toda a região mediterrâneo, que se seguiu à vitória de Roma sobre Cartago, ocorrida no século I AEC e que marcou a transição de Roma, da República ao Império. A partir de então, as famílias dinásticas

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passaram a exercer um domínio contínuo sobre o Senado. O Império perdurou até o colapso do poder romano no Ocidente, um processo cuja culminação geralmente se atribui ao episódio do saque de Roma por Alarico, rei dos Godos, em 410 EC. Por razões que, espero, possam ficar claras ao longo do argumento, deveremos começar antes com os romanos e só então abordar o período helênico. Em seguida, então, trataremos da Europa feudal. Antes de mais nada, porém, consideremos um breve elemento geral de comparação. Ao lidar com esses contextos, confrontamo-nos com o que poderia ser descrito como um dos maiores paradoxos do mundo contemporâneo, qual seja, o fato de que, a despeito de uma ampla tendência, em todo o espaço ocidental, desde a década de 1960, para que os níveis de violência se intensificassem, é possível demonstrar que as pessoas que vivem atualmente nos países ocidentais industrializados são, coletivamente, os seres humanos menos violentos que jamais povoaram comunidades políticas na história, ao mesmo tempo em que, por outro lado, dispõem de um tal arsenal de armas de destruição massiva que contêm em si o maior potencial autoaniquilação jamais alcançado pela humanidade. Tanto na literatura acadêmica quanto na mitologia popular, prevalece atualmente uma tendência a olhar para os assim chamados “esportes” da Grécia Antiga como uma representação do ápice das realizações humanas. Isso se reflete de modo particularmente

claro

na ideologia propagada pelo

movimento

olímpico

contemporâneo. Em contraste, os “jogos” da Roma Antiga são geralmente vistos como um recuo na direção do barbarismo. Pensemos, por exemplo, em filmes como “Spartacus” ou, mais recentemente, “Gladiador”. Mesmo a despeito da inclinação de Hollywood para rechear com sensacionalismo e glamour seus filmes, nesses casos específicos, na realidade, até onde podemos verificar, estamos diante de representações bastante fiéis daquilo que ocorria na época. Os “jogos” da Roma Antiga não eram de modo algum similares àquilo que reconheceríamos como “jogos” atualmente, pelo menos se pudermos acreditar nos registros que nos foram transmitidos. Não eram modalidades de jogo no mesmo sentido que atribuímos ao termo: eram sangrentos e, do ponto de vista de pessoas que, como nós, se consideram “civilizadas”, eram espetáculos, com o perdão da palavra, bárbaros.

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“Gladiador” significa “espadachim”, aquele que luta com o gládio, uma espada curta de dois gumes, e os combates gladiatórios eram normalmente lutas mortais entre matadores profissionais treinados especialmente para isso. Digo “normalmente” porque, se um gladiador derrotado fosse popular junto à multidão, fosse porque, por exemplo, tivesse lutado com particular bravura e destreza, a multidão com frequência clamaria para que o vencedor não o matasse. Então, como se acreditava e como foi celebrizado no cinema, o imperador ou alguma outra figura de relevo faria o sinal de clemência, com o polegar para cima, ou de aval para a execução, com o polegar para baixo. Porém, alguns estudiosos têm questionado a acuidade dessa interpretação. Já foi repetidamente sugerido, por exemplo, que o gesto costumeiro do imperador consistia, na verdade, em bater repetidamente o polegar contra o próprio peito, indicando visualmente a ordem para “trespassar” o derrotado. Infelizmente, as fontes disponíveis não permitiram ainda que o sentido de todos esses ritos fosse estabelecido com plena certeza. Os gladiadores eram recrutados em meios às hostes de escravos, prisioneiros de guerra e criminosos. Eram eles próprios escravos, apesar de que lhes fossem providas regularmente alimentação à saciedade e escravas para a cópula. Alguns deles se tornaram celebridades, correspondentes ao que seriam o David Beckham, o Wayne Rooney, o Michael Jordan ou o Tiger Woods da Roma Antiga. Alguns conseguiram chegar mesmo a acumular fortuna suficiente para comprar a própria liberdade. Ao que tudo indica, as mulheres se encantavam com eles. Eram adorados, celebridades do mundo antigo. Indo a Pompeia, é possível ver grafites retratando-os nas paredes das casas. Contudo, a maioria dos gladiadores viviam vidas extremamente curtas e morriam mortes terríveis na arena. Além das lutas gladiatórias, simulações de combates mortais eram encenadas no Coliseu, batalhas navais, assim como batalhas terrestres, e havia os tão conhecidos massacres de cristãos e de outros grupos que eram atirados aos leões ou mortos por outros animais. O imperador Nero costumava até mesmo iluminar a arena à noite recorrendo à crucificação de cristãos, ateando fogo, em seguida, a seus corpos agonizantes besuntados de óleo. Antes, em 10 EC, o imperador Augusto – o primeiro dos regentes da Roma imperial – gabava-se de haver liquidado 10.000 homens em apenas oito espetáculos.

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Tudo isso causa assombro. Particularmente atroz, do ponto de vista de nossa sensibilidade contemporânea, pareceria a prática de embeber jovens escravas núbis em excreções hormonais de fêmeas ferinas – leoas, por exemplo – e atá-las na arena para que os machos ferozes as subjugassem e currassem. Os homens responsáveis pelo treinamento dos animais eram chamados de “bestiários” (bestiarii). Consideremos o seguinte relato, oferecido por Apuleio, descrevendo um “evento” que aconteceu no Coliseu durante o reinado do imperador Domiciano. Narra o rito de execução de uma mulher condenada por assassinato. Perdoem-me a crueza do trecho e seu conteúdo repugnante, mas se trata de um relato histórico que pode ilustrar significativamente as práticas que eram correntes na época:

Uma mulher, que havia envenenado cinco pessoas para se apossar de suas propriedades, fora condenada a ser lançada às bestas selvagens na arena, mas antes, como punição e desgraça adicionais, ela deveria ser currada por um jegue. Um leito foi disposto no centro da arena, ornado com cascos de tartaruga e recoberto por um colchão de penas e por uma colcha de bordado chinês (sic). A mulher foi atada sobre o leito com as pernas abertas. O jegue havia sido treinado para dobrar os joelhos ao se inclinar sobre o leito, do contrário a empresa não seria bem sucedida. Quando o espetáculo foi concluído, animais selvagens foram soltos na arena e rapidamente puseram fim ao sofrimento da mulher desgraçada

(Mannix 2001

[1958]: 80 ).

Como é possível explicar a popularidade de “jogos” e “esportes” desse tipo? Sobre que tipo de público exerciam seu apelo? Em termos sociológicos, gostaria de sugerir que são, na verdade, indicativos de atitudes com relação à vida, à morte e ao sofrimento alheio que em muito diferem das atitudes que passaram a se tornar preponderantes no Ocidente contemporâneo. Consideremos por um instante tudo o que era mobilizado, levando-se em conta que se tratava de espetáculos que chegavam a se estender por semanas a fio, a tecnologia e o planejamento necessários para encenar cada uma das apresentações, a destreza envolvida na organização, na logística e no transporte, na condução de todos os animais, de todos os gladiadores, de todas as vítimas a serem massacradas, e por aí afora, todos ao Coliseu e todos

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sem atraso, sem mencionar a necessidade de manter todos bem alimentados e de, no que dizia respeito às vítimas e aos gladiadores, conseguir que, chegado o momento, colaborassem efetivamente para que o próprio suplício fosse divertimento para o público. Consideremos todos os riscos envolvidos nos jogos e tampouco deixemos de lado as considerações sobre as dificuldades em se desembaraçar de tamanha quantidade de corpos humanos e carcaças animais. Todo esse empenho representava mesmo algo extraordinário e demonstra com muita clareza que não existe qualquer correlação simples e imediata entre “civilização” e progresso tecnológico. Se hoje podemos nos referir a nós mesmos, com um mínimo grau de credibilidade, afirmando que sejamos um pouco mais civilizados do que eram os antigos romanos – e acredito que possamos afinal –, não se trata apenas de uma diferença decorrente do avanço nos conhecimentos técnicos. Qual seria, então, a resposta à pergunta que se impõe: por que os romanos faziam algo assim? O que ganhavam com isso? Em um certo nível, a resposta é bastante simples: as famílias nobres, a classe dirigente patrícia, precisavam que os jogos existissem, e “a plebe”, o proletariado urbano, queriam que eles ocorressem. Há, porém, na verdade, dois níveis para essa resposta, ambos vinculados ao fato de que Roma era uma sociedade escravista, em sua base estava uma economia escravista. Grande parte da população não era composta por pessoas, no sentido legal do termo, mas por objetos, disponíveis para a exploração e que podiam ser comprados e vendidos em mercados de escravos. Seus senhores tinham poderes de vida e morte sobre eles. Num tal contexto social, não era de se esperar que houvesse altos níveis de identificação recíproca entre as pessoas. Deleite com o sofrimento alheio era algo acessível e abundante. Lembremos, contudo, que, na Inglaterra e em outros países europeus, imensas multidões costumavam se aglomerar para acompanhar as execuções públicas até meados do século XIX. Os jogos romanos não eram muito diferentes, exceto por haver um elemento mais abrangente de divertimento cruel e sádico envolvido. Há ainda um outro sentido no qual o fato de Roma ser uma sociedade escravista está implicado na resposta à questão proposta. Isso se deve a que a escravidão, como uma instituição social – que teve um efeito similar sobre as sociedades do sul dos EUA –, conduz a um rebaixamento do prestígio atribuído ao trabalho manual, que se torna ou passa a ser reconhecido como esfera exclusiva do trabalho escravo: homens

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livres não o realizam, está abaixo de sua estatura. Isso, por sua vez, leva involuntariamente à formação de um proletário ocioso e desprovido de propriedades, que, para sua sobrevivência, depende principalmente de subvenções estatais: a assim chamada “plebe”, que aparece recorrentemente nas peças romanas de Shakespeare e cuja principal fonte de poder contra seus governantes estava em sua capacidade de provocar distúrbios. A plebe romana, por exemplo, saiu furiosa às ruas e provocaram tumultos ininterruptos por duas semanas inteiras durante o reinado de Nero. Do ponto de vista da classe dirigente, a única solução para deter os distúrbios seria dar à ralé aquilo que mais desejavam: panem et circenses, isto é, pão e jogos. Na verdade, as famílias dirigentes viram-se enleadas em um processo de crescente competição na realização dos maiores e melhores jogos e também daqueles que se estendessem por mais tempo. Isso também implica dizer que se tornaram crescentemente destrutivos com o passar do tempo. É evidente que havia outras pessoas, além das classes dirigentes e do proletariado, que se beneficiavam dos jogos. Já não eram poucos os que eram economicamente beneficiados, como, por exemplo, os caçadores que capturavam os leões, elefantes, rinocerontes, hipopótamos e por aí afora. Apreendiam-nos na África e em seguida transportavam-nos até Roma. Havia aqueles que dirigiam as escolas de gladiadores e também aqueles que nelas trabalhavam como instrutores. Havia, evidentemente, fabricantes de armas e armaduras. E, finalmente, havia vendedores de comida e bebida no interior e nos arredores do Coliseu e do Circo Máximo. Isso sem falar das prostitutas e de outro sem número de atividades que prosperavam em decorrência da popularidade dos jogos. Na verdade, se deixarmos de lado a centralidade assumida pela violência, pelo sofrimento e pela morte, os jogos romanos não eram muito diferentes do esporte moderno. Ou seja, o esporte atual passou a contar, de modo similar, com uma ampla e complexa ramificação econômica em um imenso número de países ao redor do mundo. É fato inegável que os jogos romanos desempenharam uma influência socialmente estabilizadora, mas para tanto, como pudemos destacar, teve de ser muito mais violento do que nossos equivalentes modernos. Mas o que dizer, por sua vez, do comportamento dos espectadores na Roma Antiga? Até onde sei, há pouca evidência de violência envolvendo as multidões de espectadores presentes aos jogos. A história muda inteiramente, no entanto, se considerarmos as multidões que assistiam às corridas de bigas. Eram bastante

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populares por todo o Império, talvez até mesmo mais populares que os jogos: há relatos de que multidões de até cerca de 385.000 pessoas compareciam ao Circo Máximo em Roma; os contemporâneos falavam de “hipomania” – loucura por cavalos. As corridas eram controladas por quatro corporações, chamadas de “os Brancos”, “os Vermelhos”, “os Azuis” e “os Verdes”, conforme as cores das túnicas vestidas pelos cocheiros. Fãs espalhados por todo o império torciam por uma ou outra dessas facções. Por razões que desconhecemos, os azuis e os verdes eram as mais populares dentre essas equipes. O estudioso clássico Alan Cameron estabeleceu uma conexão entre elas e os hooligans do futebol britânico dos dias de hoje. Porém, se Edward Gibbon, o célebre historiador do império romano que viveu no século XVIII, estava correto em seu Declínio e queda do Império Romano, as equipes romanas eram incomparavelmente mais sanguinárias. A respeito delas, escreveu o seguinte:

(O)s azuis pretendiam despertar terror por meio de uma vestimenta peculiar e bárbara (…) Durante o dia, eles escondiam seus punhais, mas à noite, reuniam-se audaciosamente (…) em bandos numerosos, preparados para todo tipo de ato de violência e rapinagem. Seus adversários da facção verde, ou mesmo cidadãos inofensivos, eram (…) frequentemente assassinados por esses ladrões noturnos (…) Nenhum lugar estava a salvo (…) de suas depredações; em busca de satisfazerem fosse a cobiça ou fosse a vingança, eles derramavam profusamente o sangue dos inocentes; igrejas e altares eram profanados por (seus) abomináveis assassinatos (Gibbon 1906 [1776]: 17-8 ).

É claro que é bem possível que Gibbon tenha exagerado a violência das facções do circo para sustentar sua tese de que “o declínio e queda” de Roma ocorreu em consequência de uma maré montante de imoralidade e depravação. Qualquer que seja o caso, porém, nesse contexto, a pesquisa de Alan Cameron fundamenta a tese de que, julgados pelos padrões atuais, o comportamento dessas facções era, com frequência, extremamente violento. Em quatro oportunidades diferentes, por exemplo, eles atearam fogo ao hipódromo de Constantinopla – em 491, 498, 507 e

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532 EC –, levando o imperador Justiniano a seguir o que havia muito já se tinha estabelecido como modelo em Roma e investir na construção de um estádio de mármore. As evidências disponíveis indicam que aquele que foi, de longe, o pior desses distúrbios circenses foi o que aconteceu em 532 EC, quando, ao que tudo indica, azuis e verdes juntaram forças, libertaram os prisioneiros que, como era habitual, seriam executados publicamente antes do início das corridas e somente puderam ser contidos pela força militar mobilizada contra eles a um custo de 30.000 vidas. As 39 mortes ocorridas antes do início da partida final da Copa da Europa, no Estádio Heysel de Bruxelas, em 1985, e mesmo o número de vítimas fatais – estimado entre 287 e 328 – dos confrontos ocorridos durante a partida eliminatória para os Jogos Olímpicos de 1964, disputada entre Peru e Argentina no Estádio Nacional de Lima, a pior tragédia de hooliganismo relacionado ao futebol já registrada em tempos modernos, são cifras que, se comparadas com aquelas decorrentes do que aconteceu em Constantinopla em 532, assumem uma dimensão bastante distinta da que assumiriam para nós se fossem consideradas unicamente com base em padrões que tomam o presente como referência. A vida era certamente barata na Roma Antiga. O que dizer dos “esportes” da Grécia Antiga? Eram, de fato, como insiste em sustentar a mitologia atualmente corrente do movimento olímpico, menos violentos do que seus correspondentes na Roma Antiga? Juízos comparativos dessa natureza são difíceis de fazer, mas a evidência que nos foi transmitida demonstra com clareza que os “esportes” da Grécia Antiga eram consideravelmente mais violentos que nossas modalidades modernas. Tomemos por exemplo o caso do pankration, o evento mais popular dos jogos olímpicos da Antiguidade e que pode ser descrito como uma fusão de elementos que costumamos associar ao boxe, à luta livre e ao judô. Era uma forma de luta sem regras, uma variante daquilo que hoje em dia chamamos de ultimate fighting, artes marciais mistas ou vale-tudo, mas ainda mais violento e muito menos controlado. Vejamos como o velho mestre Norbert Elias o descrevia:

(O)s competidores lutavam com todas as partes do corpo (…) Era(-lhes) permitido arrancarem os olhos uns dos outros (…) pisotear os oponentes, torcer seus pés,

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narizes e orelhas, deslocar seus dedos e braços e sufocá-los (pela aplicação de gravatas). Se um lutador conseguisse derrubar o outro, era-lhe permitido sentar sobre o adversário caído e golpeá-lo na cabeça, na face e nos ouvidos; poderia também chutá-lo e pisoteá-lo. Nem é preciso mencionar que os combatentes nessa competição brutal sofriam por vezes os ferimentos mais assustadores e que não raro homens eram mortos! O pancration dos epheboi (adolescentes) espartanos era provavelmente o mais brutal de todos. Pausânias conta-nos que os competidores lutavam literalmente com unhas e dentes, e mordiam os olhos uns dos outros até arrancá-los das órbitas (Elias & Dunning 1986: 136-7; grifo do autor, assim como a opção pela grafia latinizada do termo pankration)

O boxe grego eram igualmente brutal. Não havia categorias de peso e, assim como no kick-boxing e no savate, sua variante francesa, os lutadores podiam usar tanto seus pés quanto suas mãos. Os golpes podiam ser desferidos com os dedos esticados – os boxeadores costumavam deixar os dedos mergulhados em vinagre para enrijecer as unhas – e as esquivas e fintas, especialmente se envolviam movimentos para trás, eram consideradas sinais de covardia. Os boxeadores da Grécia Antiga simplesmente se colocavam frente a frente e botavam para quebrar. Prova adicional da violência dos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga é oferecida pelo fato de que os dirigentes dos jogos – os chamados hellanodikai – empregavam duas categorias de assistentes: os “chicoteadores”, ou mastigophoroi, e os “caceteadores”, ou rabdouchoi. Era incumbência dos rabdouchoi manter tanto competidores como espectadores sob controle. A necessidade de recorrer a agentes armados como esses parece assinalar que participantes e plateia eram com frequência indisciplinados e que estes somente reagiriam se fossem tomadas as mais robustas medidas de coerção física ou se pelo menos houvesse indicação suficientemente plausível de que seriam tomadas. Uma medida do quão indisciplinados eram os espectadores da Grécia Antiga é dada pelo fato de que a brutalidade provocada por espectadores bêbados havia chegado a níveis tão insuportáveis que, nos Jogos Píticos de Delfos, os espectadores passaram a ser proibidos de levar vinho aos estádios. Evidentemente, a proibição de bebidas alcoólicas nas partidas de futebol na

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Inglaterra, imposta na década de 1980, não consistia propriamente em uma novidade. Como pode ser explicado o alto nível de violência dos “esportes” da Grécia Antiga? Assim como no caso de Roma, existem, na minha opinião, dois níveis de explicação. O primeiro consiste no fato de que os “esportes” gregos estavam assentados no ethos de uma aristocracia guerreira, uma classe dirigente de muitos modos similar aos cavaleiros da Europa medieval. Isso significa dizer que os jogos helênicos estavam baseados antes em uma tradição assimétrica de honra do que em uma tradição simétrica de equidade (fairness), tal como a que hoje vemos viger. O nível de violência dos esportes helênicos também estava relacionado com a frequência com que as cidades-estados iam à guerra, tanto umas contra as outras como contra estrangeiros, como os persas. Em todo caso, a ordem social nas cidades-estados gregas era, em grande medida, assegurada sobretudo por meio de um mecanismo tradicional de rixas familiares, muito parecida com a que costumamos associar à máfia siciliana, ao invés do recurso a uma força policial como viria a acontecer nos estados nacionais modernos. Em decorrência disso, a vida nas cidades-estados helênicas era, de modo geral, mais violenta e insegura do que veio a se tornar a regra de normalidade para a maioria das cidades ocidentais em que vivemos. Na verdade, uma das principais justificativas oferecidas para a prática de “esportes” na Grécia Antiga era que funcionariam como uma espécie de treinamento para a guerra. O filósofo Filóstrato, por exemplo, escreveu que as pessoas consideravam, simultaneamente, os jogos como um treinamento para a guerra e a guerra como um treinamento para os jogos, indicando, assim, uma conexão simbólica entre disputas militares e disputas esportivas muito mais estreita do que aquela constatada nos estados nacionais da era moderna – com a possível exceção marginal do caso histórico da Alemanha nazista. Passemo agora a uma breve discussão sobre os equivalentes dos esportes modernos na Idade Média europeia. Compreendiam basicamente quatro categorias: torneios; caçadas e outras atividades que envolviam o tratamento brutal de animais, tais como ursos; concursos de arco e flecha; e jogos populares (folk games). Os torneios e as caçadas eram atividades reservadas exclusivamente a cavaleiros e escudeiros; os

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concursos de arco e flecha eram restritos principalmente aos estratos urbanos de classe média; e os jogos populares, juntamente com passatempos como assédio ao urso (bear-baiting), briga de galo e luta de cães, estavam voltadas sobretudo à “gente comum”. Restringiremos a abordagem aqui aos torneios e aos jogos populares. Os jogos romanos, como procurei demonstrar, tornaram-se mais violentos com o tempo. Em termos sociológicos, pode-se dizer que passaram por um processo de “descivilização” ou de “barbarização”. Os torneios, entretanto – e gostaria de destacar que isso é uma característica dos esportes modernos de um modo geral –, tornaram-se menos violentos com o tempo: pode-se dizer deles que, utilizando o sentido atribuído por Elias à expressão, passaram por um “processo civilizador”. Para compreende as implicações disso no que diz respeito aos torneios, porém, devemos ter em conta que a imagem típica de Hollywood para esse cenário, mostrando uma disputa na qual apenas dois cavaleiros tomavam parte de cada vez e, na arena, investiam com suas lanças um contra o outro, como se essa fosse a regra dos torneios realizados na época de Robin Hood, dos reis João Sem-Terra e Ricardo Coração-de-Leão, ou seja, no século XIII, essa imagem consiste num grande anacronismo. Isso é o que os torneios vieram a se tornar, no século XVI, mas não como eles começaram, no século XIII. Os registros mais antigos que puderam ser preservados datam sua origem ainda antes, no século XII, e são uma boa indicação de que consistiam num tipo muito violento de “esporte”. O típico torneio primitivo era, na verdade, uma refrega composta por partidas de cavaleiros que, lutando todos simultaneamente, buscavam capturar uns aos outros em busca não apenas de glória, mas do resgate pago pela libertação daqueles que fossem capturados. As refregas normalmente aconteciam nas imediações exteriores das muralhas dos castelos e demonstram claramente o quanto os cavaleiros – a classe dirigente da Alta Idade Média – amava a guerra e vivia para ela. Eram treinados para isso desde a mais tenra idade e, quando não tinham uma guerra, precisavam de um substituto ou de um simulacro: um torneio. Era precisamente isso que era o torneio: um substituto para as guerras. Contudo, entre os séculos XII e XVI, os torneios passaram por um processo civilizador, ao longo do qual foram transformados cada vez mais em espetáculos ou festivais envolvendo violência “simulada” em lugar da violência “real”; ou seja, passaram a se concentrar sobre as dimensões de espetáculo e

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exibição envolvidas e, à medida que esse processo avançava, o papel dos espectadores, especialmente das mulheres das classes superiores, adquiriu importância cada vez maior. Os jogos passaram por um processo civilizador e a razão fundamental para isso foi que, na Europa ocidental, diferente do que havia ocorrido na Antiguidade, as classes dirigentes foram incapazes de estabelecer a escravidão como uma instituição de contenção. Consequentemente, sempre houve protestos e lutas, o que também explica muito do dinamismo que foi constantemente assegurado nessas sociedades.

Referências bibliográficas Allen Guttmann. From ritual to record: The nature of modern sports. Columbia University Press: Nova York, 1978. George Orwell. “The Sporting Spirit”, in Sonia Orwell, Ian Angus & George Orwell (org.). The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell, vol. 4 – In front of your nose, 1946-1950. Nonpareil: Boston, 2000: 40-3 [publicado originalmente em Tribune (dezembro de 1945), Londres; repr. Shooting an Elephant and other Essays. Secker & Warburg: Londres, 1950]. William Smith. Dictionary of Greek and Roman Antiquities. John Murray: Londres, 1875. Daniel P. Mannix. Those about to die. Ballantine: Nova York, 1958 [republicado como The Way of the Gladiator. I Books: Nova York, 2001]. Edward Gibbon. The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, vol. 7. Fred de Fau: Nova York & Co., 1906 (1776). Norbert Elias & Eric Dunning. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Basil Blackwell: Oxford, 1986 [2a. ed. revista como Volume 7 de The Collected Works of Norbert Elias (ed. Eric Dunning). University of College Dublin Press: Dublin, 2008.

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