“Somos índicos”: Questões de identidade e a representação dos indianos e do Índico na mundividência de Terra sonâmbula (Mia Couto, 1992)

May 26, 2017 | Autor: P. Martinho Ferreira | Categoria: Mozambique, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Identidades, Moçambique
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“Somos índicos”: Questões de identidade e a representação dos indianos e do Índico na mundivi Terra sonâmbula

Patrícia Martinho Ferreira Hispania, Volume 99, Number 4, December 2016, pp. 563-575 (Article)

Published by Johns Hopkins University Press DOI: https://doi.org/10.1353/hpn.2016.0103

For additional information about this article https://muse.jhu.edu/article/641983

Access provided by Brown University (3 Jan 2017 15:29 GMT)

“Somos índicos”: Questões de identidade e a representação dos indianos e do Índico na mundividência de Terra sonâmbula Patrícia Martinho Ferreira Brown University Resumo: Mia Couto tem sido um interlocutor importante no processo de construção da identidade

moçambicana, ao pôr em diálogo os diversos elementos étnicos, culturais e religiosos em presença no país. Este ensaio mostra de que forma a visão crioulista de Mia Couto é abordada no seu primeiro romance, Terra sonâmbula, publicado em 1992. Debruçamo-nos, em particular, sobre a representação do indiano na sociedade moçambicana pós-independência para entender de que forma esta figura problematiza os limites de um conceito de identidade que se restringe aos elementos africanos e europeus. Analisamos também o papel do Oceano Índico na construção dessa identidade moçambicana plural. Terra sonâmbula projeta uma ideia de moçambicanidade e de cidadania que se opõe à tendência para a homogeneização das experiências humanas. Mia Couto não apaga os conflitos nem nega a realidade histórica, mas privilegia, sim, a singularidade da natureza humana e o sentimento de fraternidade. Na nossa análise, fazemos uso de dois conceitos centrais para os Estudos do Índico: “fronteira” e “mestiçagem cultural”.

Palavras-chave: identity/identidade, Indian Ocean/Oceano Índico, Indians/indianos, moçambicanidade,

Mia Couto

Poema mestiço escrevo mediterrâneo na serena voz do Índico sangro norte em coração do sul na praia do oriente sou areia náufraga de nenhum mundo hei-de começar mais tarde por ora sou a pegada do passo por acontecer . . . —Mia Couto, A raiz do Orvalho e outros poemas (1999)

Introdução

S

er de “nenhum mundo”, como o escritor nos diz, é ser de muitos. O atual território de Moçambique foi e é maioritariamente negro, mas a diversidade étnica, cultural e linguística que o caracteriza é enorme. Quando os portugueses chegaram à costa oriental africana, todo aquele território era já um ponto de cruzamento entre diferentes culturas, por lá passavam e/ou se fixavam (sobretudo por razões económicas e geopolíticas) swahili, árabes, indianos, chineses, mauricianos, indonésios, entre outros grupos étnicos. A chegada dos portugueses, no século  XV, aos territórios da costa índica apenas reforçou a diversidade racial e cultural

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já existente nessa área, reforço que ocorreu em grande parte através da mestiçagem biológica (fenómeno do qual não se exclui a violência do europeu sobre a mulher africana). Foi, porém, no século XIX que a ocupação portuguesa se intensificou, com maior incidência nas zonas costeira e urbana, seguindo uma lógica imperial marcada pela subjugação das populações locais. Assim, qualquer reflexão sobre a identidade moçambicana terá necessariamente de apontar para a assinalável diversidade étnica, cultural, linguística e religiosa que se foi constituindo neste território por motivos histórico-geográfico-económicos. Mia Couto é uma das vozes literárias que mais importância tem dado a esta diversidade, criando personagens e situações ficcionais que dão conta da mistura de povos e imaginários que se deu, sobretudo a partir do século XVI, no solo moçambicano. O presente ensaio visa demonstrar de que forma a representação do indiano e do oceano Índico contribui para esta visão marcada neste romance por duas ideias que atravessam até hoje a obra literária do escritor: por um lado, a ideia de que as culturas são estruturas híbridas e dinâmicas e, por outro, a de que existe a possibilidade de um futuro a ser construído por cada indivíduo. Não escamoteando a incompreensão, a intolerância e a violência subjacentes ao encontro entre diferentes culturas, esta crença do escritor no devir baseia-se na força simbólico-cultural de um encontro fecundo dos povos que constituem a sociedade moçambicana atual. No romance Terra sonâmbula, publicado em 1992, tal como nos restantes livros do escritor, parece haver um objetivo claro de representar o lado positivo da diversidade da sociedade e cultura moçambicanas e, para tal, o escritor presta uma atenção especial à construção da identidade dos grupos minoritários, sejam os assimilados, os mestiços, os indianos, as mulheres e as crianças, sejam, como lembra David Brookshaw, os “grupos intermédios da hierarquia colonial”, como “as elites nativas durante o colonialismo”, “os colonos abandonados no rasto da colonização” (136), ou ainda os novos-ricos do período pós-independência. Para a representação da complexidade étnica e cultural da sociedade moçambicana, a figura do indiano é um elemento fundamental, não só porque a presença dos indianos em Moçambique é anterior à presença portuguesa, devido a trocas de longa data vinculadas ao comércio no oceano Índico, mas também porque, com a chegada dos portugueses, a sua presença no território se complexifica.1 Os estudos sobre a presença indiana no Moçambique pré-colonial, colonial e pós-colonial2 sublinham sobretudo a sua heterogeneidade e vulnerabilidade, decorrentes não apenas da diversidade de origens étnico-linguísticas, mas também das diferentes filiações religiosas. De facto, embora a administração portuguesa utilizasse genericamente o termo asiático para as populações de origem indiana, o certo é que estas populações eram extremamente heterogéneas, havia indianos hindus, muçulmanos e católicos; e havia também indo-portugueses, indo-britânicos e paquistaneses. Os termos pejorativos correntemente usados pela administração colonial davam conta justamente dessa heterogeneidade, assim, “monhé” era usado para identificar o indiano muçulmano, “baneane” para o indiano hindu e “goês” para o indiano católico.3 Outra característica marcante deste grupo populacional tão diverso é a ambiguidade do seu papel na sociedade colonial: os indianos eram simultaneamente, por um lado, aliados dos portugueses e colonizadores das populações nativas, por outro lado, concorrentes dos portugueses e colonizados por estes. Tradicionalmente mais interessados nas atividades comerciais (tanto no litoral como no interior do território africano), os indianos não investiam nos meios de produção, nem se organizavam para obter poder político,4 mas estabeleciam, quando útil aos seus interesses, relações privilegiadas e formas de associação com o poder colonial instituído—o qual, em vários momentos, não deixou de usar estratégias para diminuir a sua concorrência comercial. A falta de reconhecimento das relações e das dependências socioeconómicas dentro do sistema colonial entre o Governo Português e as elites indianas potencializou a existência de uma cultura colonial em negação e demonstra que a presença indiana era vista e sentida em termos de alteridade. A posição ambígua deste grupo populacional reflete-se no descompasso entre a prática corrente e a legislação colonial onde se encontra a ideia de que, no Estado da

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Índia e nas colónias de Macau e Cabo Verde, as respetivas populações não estão sujeitas nem à classificação de indígenas nem ao regime de indigenato, na sua aceção legal.5 Contudo, o que na prática acontecia era a intolerância social e as práticas de racismo que discriminavam todos os que não fossem brancos. Neste complexo puzzle de relações socioeconómicas, os indianos acabaram por problematizar os limites da identidade moçambicana (pelos menos os limites enunciados desde um ponto de vista urbano) e tal problematização continua presente ainda nos dias de hoje. Com efeito, em 2004, refletindo sobre Moçambique na contemporaneidade, Omar Thomaz defende que continua atual o debate em que se procura definir quais coletividades são legitimamente moçambicanas e quais constituem um incómodo para o corpo nacional. Leia-se: “Indianos, baneanes e monhês são categorias que surgem, no contexto atual, entre a ambiguidade suposta no cosmopolitismo da formação nacional e as suspeitas de que se trata de coletividades exógenas à nação” (281). De que forma esta problematização se manifesta na obra de Mia Couto e, em particular, no seu primeiro romance é a questão à qual este trabalho procura responder. De uma forma resumida, o romance é composto pela intercalação de duas narrativas: a primeira é escrita na terceira pessoa e diz respeito à história de dois sobreviventes da guerra civil moçambicana, o velho Tuahir e o jovem Muidinga, os quais encontram (no momento em que procuram um lugar para se refugiarem) uma série de cadernos nos quais se rememoram os dias passados durante a guerra; a segunda é narrada por Kindzu, o dono e autor dos cadernos encontrados por Muidinga. O encaixe das duas narrativas opera como uma história dentro da história, à medida que Muidinga faz a leitura em voz alta dos cadernos ao velho Tuahir. Enquanto Muidinga e Tuahir lutam pela sobrevivência e vivem a desolação da terra destruída, o relato de Kindzu segue revelando os enredos que levaram ao desfecho da guerra. A nossa análise insere-se nesta segunda instância narrativa, escrita na primeira pessoa. Nela, Kindzu conta a sua história: as vivências com os pais e o irmão num ambiente rural, a sua amizade com um comerciante indiano e a esposa (Surendra e Assma), a rivalidade de Antonino (jovem negro, empregado de Surendra), o seu gosto pela escrita e a sua relação com o professor Afonso, o rapto do irmão, a morte do pai e o adoecimento da mãe. A destabilização das relações familiares e comunitárias provocada pela guerra incitam Kindzu a iniciar uma viagem à procura dos naparamas, os guerreiros tradicionais que ele acreditava serem capazes de pôr fim ao conflito. Nessa viagem, acontecem diversas peripécias e Kindzu conhece várias pessoas, entre elas, Assane (um homem negro, secretário do administrador da cidade de Matimati, que, após o fim da guerra civil, se torna sócio de Surendra) e Farida (uma jovem negra que, por ter nascido gémea, é excluída da sua comunidade e posteriormente adotada por um casal de colonos portugueses, Virgínia e Romão Pinto; sabe-se também que o colono português a viola e dessa relação violenta nasce um filho mulato que acaba por desaparecer, o qual Farida não cessa de procurar até morrer).6

O espaço poético-político do Oceano Índico Na crítica literária, o Oceano Índico é frequentemente entendido como uma região tanto de contactos civilizacionais originais quanto de uma segregação e intolerância comunitária incontornáveis. No artigo “Índico e(m) Moçambique: notas sobre o Outro”, Nazir Can explica que a ideia de Índico tem sido tradicionalmente associada ao universo cultural e simbólico da Ilha de Moçambique, universo invocado ou descrito na produção poética de vários escritores moçambicanos. Porém, essa ideia de Índico raramente envolve uma reflexão sobre as margens deste oceano, isto é, sobre as realidades históricas, culturais e sociais que estão para lá da ilha, embora também não estejam explícitos nesses poemas os sentimentos de insularidade típicos da poesia cujo topos central é a ilha. O crítico literário sublinha igualmente a ideia de o Índico servir, nestes textos poéticos, sobretudo como motor de lirismo e como espaço simbólico de um Moçambique independente, estando ausente a ideia de travessia e do conhecimento do outro. Esta falta de reflexão sobre “o tal outro lado” tem sido recíproca, afirma Can, uma

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vez que Moçambique tende a ser situado “não tanto como um dos pólos centrais da ideia de ­transnacionalidade índica, mas apenas como uma porta de entrada para a África Negra; ou então como um resquício (muitas vezes não desejado) do passado escravagista” (97). Por conseguinte, conclui, “a realidade de outros espaços banhados pelo Oceano Índico acab[a] por ser incorporada apenas parcialmente, através da representação de personagens que, sendo nacionais e simultaneamente diaspóricas, fazem ecoar o tal outro lado” (97). A incompreensão e as imagens estereotipadas e essencialistas entre as margens acabam, deste modo, por colmatar enviesadamente a falta de reflexos neste cenário de espelhos de alteridade. Tendo-se debruçado sobre a representação do indiano na produção literária de vários autores moçambicanos, Can defende que os livros de João Paulo Borges Coelho criam a este respeito “um novo lugar no campo literário do país. Não somente por inserir abertamente o doxa para anunciar o paradoxo, mas, do mesmo modo, por privilegiar o fictício, recusando-se a uma exposição fatual da História, por introduzir personagens de origem indiana pouco domesticáveis e por conferir relevância ao não-dito” (99). Concordamos plenamente com a posição deste crítico porque, mais do que a presença do imaginário indo-oceânico, os indianos das narrativas ficcionais de Borges Coelho, e em particular no romance Crónica da Rua 513.2, sinalizam “as diversas fases e faces que pode experimentar esse outro nacional num determinado momento histórico” (117). No entanto, a nossa intenção neste ensaio é, ao não retirar a marca de excecionalidade que Can atribui à proposta de Borges Coelho, evidenciar que Mia Couto começa a trilhar esse trajeto de valorização da figura do indiano na sociedade moçambicana um pouco antes. Desde o seu primeiro livro, Vozes anoitecidas, um conjunto de contos publicados em 1987, que Mia Couto chama a atenção (ainda que superficialmente) para a figura do indiano e a presença do oceano Índico como elementos da mundividência moçambicana, chamada de atenção que se torna mais visível em Terra sonâmbula. A questão-chave para se entender a representação do indiano neste romance é fundamentalmente, cremos, o resgate das virtualidades poéticas do Oceano Índico. Com efeito, defendemos que neste livro, publicado num contexto político conturbado, existe uma convergência entre poético e político, cujo objetivo específico é, no caso da história do indiano Surenda Valá e da sua relação de afetividade com Kindzu, a denúncia de práticas de racismo e a rejeição de identidades construídas de forma essencialista.

“Somos índicos”: Fronteira e transculturalidade Tendo em conta o que se tem escrito sobre a biografia e obra literária do escritor, é lugar comum a enfâse na sua perspetiva crioulista, isto é, numa perspetiva que valoriza uma cultura crioula afro-euro-indiana a favor de um diálogo entre vários elementos identitários e contra a tendência da homogeneização das experiências. Deste modo, o que se destaca da proposta de Mia Couto—e que tem sido amplamente sublinhado pelos seus leitores e críticos—é a defesa de uma pluralidade cultural, só possível através de uma reflexão crítica tanto sobre as complexas relações sociais vigentes durante o colonialismo português, quanto sobre as relações de dominação e desigualdade que permaneceram no período pós-independência. Na introdução a Moçambique: Das palavras escritas, Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses explicam que refletir sobre Moçambique atual é “pensar um território pleno de antiquíssimas diversidades reflectidas num conjunto de tensões identitárias cuja cartografia está longe de ser linear ou sequer previsível, dada a sua dinâmica e plasticidade” (2008: 9). É nesta problematização de cartografias identitárias que a obra de Mia Couto adquire uma posição original. Com efeito, ao trabalhar os conceitos de fronteira e de mestiçagem cultural,7 Mia Couto mostra como as oposições binárias dos períodos colonial e pós-colonial, baseadas em fronteiras rígidas que opõem colonizadores a colonizados, civilização a barbárie, não são sustentáveis porque não há culturas puras e isoladas de contactos. A crítica sobre o conceito de fronteira enfatiza que este não deve ser visto de forma eufórica e acrítica, pois as noções de mestiçagem, transculturalidade e hibridez a si associadas surgem lado a lado com situações de tensão, exclusão e violência. Em Terra sonâmbula, Mia Couto

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constitui a fronteira como espaço de enriquecimento e ao mesmo tempo chama atenção para o insuportável peso da exclusão, impresso, por exemplo, no impasse entre os valores africanos e o legado ocidental presentes nos conflitos interiores de Kindzu e Farida, na loucura de Virgínia, a colona branca que permanece em Moçambique mesmo depois da independência, e no desenraizamento do casal de indianos Surendra e Assma.

Os índicos que somos: Surendra e Kindzu Centremo-nos nas vivências de Surendra, tentando responder às seguintes perguntas: como é que o indiano é representado nesta narrativa? E como é que ele problematiza os limites da identidade moçambicana? Surendra Valá é uma personagem secundária que, no entanto, adquire enorme centralidade na vida de uma das personagens principais, o negro Kindzu e, nessa medida, a sua importância é incontornável. Embora Kindzu (e o leitor) não chegue a conhecer a história pessoal de Surendra, este indiano pode perfeitamente funcionar como uma personagem-narrativa, para usar a expressão de Ana Mafalda Leite, isto é, uma personagem que existe porque tem uma história a partilhar, uma história que se encaixa na narrativa englobante e lhe serve de argumento. De facto, o que se conhece da sua vida é suficiente para concluir que, em traços gerais, Surendra remete para a experiência de um indiano na diáspora: Surendra é comerciante e dono de uma loja–como diz Kindzu, é “indiano de raça e profissão” (Couto, Terra sonâmbula 35)—sente-se desenraizado, contudo, acaba por permanecer em Moçambique no período pós-colonial, mesmo que os custos dessa permanência impliquem a perda da esposa, a sua própria alienação e a necessidade de se reajustar a um novo sistema de relações políticas e socioeconómicas. Ao contrário do percurso ficcional de Valgy, o indiano da Crónica da Rua 513.2, o qual adquire uma maior agência e complexidade ao longo da narrativa, a experiência de Surendra não funciona apenas em si mesma, pelo contrário, ela está, através de uma perspetiva poéticamítica, ao serviço da construção de uma identidade plural que Kindzu, uma das personagens principais, leva a cabo. Na verdade, é precisamente por meio da relação afetiva com Kindzu que a história de Surendra ganha relevância, na medida em que as interações entre os dois vão permitir subverter a configuração de uma conceção de identidade essencialista e homogénea, existente tanto no período colonial, como no período pós-independência.8 Ao afirmar que partilha a mesma raça com Kindzu—a raça índica—Surendra problematiza a ideia de identidade como um todo homogéneo e, por consequência, valoriza um conceito de identidade construído individualmente, a partir das interações pessoais de cada um. A ligação emocional entre estes indivíduos de dois grupos minoritários—um negro assimilado e um indiano—permite a Mia Couto inscrever neste romance a sua abordagem transcultural e a possibilidade de ultrapassar fronteiras rígidas e binárias através das emoções e dos afetos. Numa leitura mais abrangente, poder-se-ia até dizer que a identidade moçambicana neste romance se constrói miticamente, através do recurso a um espaço simbólico onde vários imaginários se cruzam—o Oceano Índico. Esta proposta ganha uma enorme relevância se nos lembrarmos de que o romance foi publicado no conturbado período do fim da guerra civil e da assinatura dos Acordos de Paz. Dito de outro modo, se tivermos em mente o contexto histórico em que se almejava a construção de um país sem guerra, entende-se melhor a necessidade do escritor perseguir a via do mito e da fantasia para veicular a possibilidade de convivência entre diferentes identidades e, por conseguinte, apontar para um futuro marcado por relações sociais pacíficas. Se na narrativa de Borges Coelho, publicada em 2006 (catorze anos depois de Terra sonâmbula), é Valgy que utiliza o capital simbólico da sua origem para abalar as relações sociais instituídas, no romance de Mia Couto, esse papel desestabilizador é exercido por Surendra de forma indireta, ou seja, através sobretudo do impacto emocional que este exerce em Kindzu, um jovem procurando referências e negociando a sua identidade de assimilado, no seio de uma família que o acusa de viver afastado das tradições africanas e que é antipática a tudo quanto lhe é externo.

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A relação afetiva entre Surendra e Kindzu, caracterizada na narrativa como uma ligação entre pai e filho, representa a crença na possibilidade de um diálogo entre elementos diferentes. Veja-se um excerto de uma das passagens narrativas mais emotivas no que diz respeito à interação entre estas duas personagens, referimo-nos especificamente ao momento em que a loja de Surendra é destruída e Kindzu se sente como um menino abandonado ao saber que o indiano decide partir da aldeia (note-se que Kindzu é o único habitante daquela comunidade que se solidariza com a perda material de Surendra e o único que sofre com a sua partida). O lirismo desta passagem decorre, principalmente, do tom confessional do diálogo, da plasticidade dos verbos “rasgar” e “afogar”, da afetividade inscrita no diminutivo “pequenito”, da expressividade das formas do mais-que-perfeito simples do Indicativo “passara” e “dera” e, ainda, da enumeração seguida da adversativa “Mas”, estruturas que, no seu conjunto, enfatizam o sentimento de perda de Kindzu: —Você é como o filho que Assma nunca me deu. E me olhou fundo, com serenidade que só a tristeza pode conceber. . . . Uma noite os bandidos atacaram a loja do indiano, roubaram os panos, queimaram o edifício. A notícia correu rápido. Ninguém dispensou nenhum sentimento pela desgraça de Valá. Ele era um de fora, nem merecia as penas. Eu corri para saber o que passara. Encontrei Surendra no pátio de sua velha casa, cheio de trouxas à volta. —Vou-me embora, Kindzu! Aquele anúncio me rasgou . . . a decisão dele me deixava em total angústia. Tantas infelicidades me tinham aleijado: o desaparecimento de meu irmão, a morte de meu pai, a loucura de minha família. Mas nada me afectou tanto como a partida do indiano. . . . Ainda insisti, subitamente pequenito, entregando ideias que meu peito não autenticava. Que aquela terra também era a dele, que todos cabiam nela. Só no falar senti o sabor salgado da água dos olhos: eu chorava, o medo me afogava a voz. —Que pátria, Kindzu? Eu não tenho lugar nenhum. Ter pátria é assim como você está fazer agora, saber que vale a pena chorar. (Couto, Terra sonâmbula 40–41; itálicos do original, negritos nossos)

A relação de amizade entre Surendra e Kindzu assenta em grande parte na necessidade de ambos transcenderem as contingências do seu dia a dia. Surendra vê em Kindzu o filho que nunca teve e este último vê no indiano uma fonte de inspiração que alimenta a sua capacidade de sonhar. Assim sendo, não é de espantar que as suas memórias de infância sejam marcadamente sensoriais e se relacionem com o espaço da loja do indiano. Destacam-se dois exemplos, o momento em que Kindzu fala do quanto apreciava as visitas à loja de Surendra: “Eu gostava de lhe visitar, receber suas conversas, provar os cheiros de sua casa. Ele me servia comidas bem cheias, dessas dos olhos salivarem na língua” (Couto, Terra sonâmbula 35) e o momento em que Kindzu se prepara para reencontrar Surendra—ao entrar no quarto que o indiano então habita, são os cheiros existentes na sua antiga loja que Kindzu nostalgicamente relembra: “me chegou o tal perfume da minha infância, os incensos da loja antiga” (183). Além disto, não é por acaso que é justamente na loja de Surendra que, pela primeira vez, Kindzu vê um naparama, um guerreiro e defensor da justiça que tanto o emociona e que acaba por se transformar no motor da sua viagem pela costa moçambicana. É relevante notar que apesar de o adivinho e os homens mais velhos da aldeia explicarem a Kindzu que “esses tais guerreiros não eram naturais” daquela zona (45) e que, portanto, ele deveria desistir de os procurar, Kindzu não desiste de embarcar em direção ao norte, pois a motivação de perseguir o seu desejo de encontrar os míticos guerreiros é mais forte. Numa leitura alegórica, este Kindzu-viajante acaba por funcionar como metáfora de um Moçambique que precisa de se descobrir num projeto comum que seja capaz de unir a diversidade dos seus habitantes. Podemos até ir mais longe e ler o desejo de Kindzu, um jovem do sul, de procurar os míticos guerreiros do Norte como uma forma de contacto cultural que é necessário estabelecer para a construção do país. Se assim for, este é mais um exemplo da identidade plural que Kindzu representa—africano, negro, do sul de Moçambique, assimilado, mantém ligações

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afetivas com Surendra, o elemento indiano, mas também com a herança colonial, como mostra a sua interação com a colona Virgínia e com o pastor Afonso, o professor português que o alfabetiza. É ainda curioso notar que, mesmo depois de os homens mais velhos da sua aldeia insistirem em dizer que os naparamas não eram dominados pelos seus poderes, Kindzu se refira a esta figura guerreira como um “vingador das tristezas da minha gente” (Couto, Terra sonâmbula 47, itálico nosso). Como assimilado, um ser divido entre dois mundos, Kindzu é o único na sua família capaz de aceitar a diferença, por isso, tanto a escola e a sua relação com o pastor Afonso, como a loja do indiano e a convivência com este ocupam no crescimento de Kindzu um lugar central, na medida em que ambos alimentaram o seu desejo de conhecer mundos novos pelos seus próprios olhos. Sobre a importância de Surendra na sua infância, declara Kindzu, “Eu sentia uma grande dívida para com ele, minha infância se abrira em mil horizontes foi na loja dele”. (190). Acrescente-se também que, de certa maneira, Surendra acompanha Kindzu ao longo da sua viagem pela costa, metonimicamente representado na mala que lhe ofereceu e onde este transporta os seus cadernos, isto é, a sua história. Aconselhado por um adivinho da sua aldeia a encetar uma viagem pelo mar ao longo da costa, Kindzu parte para se “transformar num outro homem” (Couto, Terra sonâmbula 46). A sua viagem não se constitui como uma espécie de fuga, mas sim como manifestação de uma vontade de reconstruir um novo país que não se referencie apenas na sua aldeia (como queria o seu pai), pelo contrário constitui-se na interação de elementos variados, sejam elementos do colonizador português, sejam elementos de outros grupos étnicos que também habitavam o território, como é o caso dos indianos (representados por Surendra e Assma). No discurso de Kindzu, esta consciência das múltiplas influências na sua construção identitária não é descrita euforicamente, contudo, pode ser caracterizada como pragmática e lúcida. Ao falar daquilo que o une a Farida, o jovem afirma: nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir.

A ideia da miscigenação cultural ganha forma no discurso de Kindzu no momento em que este dá conta, por exemplo, dos receios da família sobre o seu afastamento do “mundo original”. Repare-se que Kindzu desconstrói a opinião essencialista da família relativamente à influência negativa de elementos exteriores à medida que a enuncia, o que demonstra bem a sua capacidade de desvalorizar e relativizar os preconceitos da família em prol da valorização da sua experiência pessoal. Afastando-se dos preconceitos raciais e sociais, porque demasiado abstratos, Kindzu valoriza a sua amizade com Surendra e o facto de este, desinteressadamente, o fazer sentir especial e único. Leia-se a seguinte passagem: Minha família também não queria que eu pisasse na loja. Esse gajo é um monhé, diziam como se eu não tivesse reparado. E acrescentavam: —Um monhé não conhece amigo preto. Durante anos aquele homem tinha provado o justo contrário . . . Problema era eu. Minha família receava que eu me afastasse de meu mundo original. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre, o pastor Afonso. Suas lições continuavam mesmo depois da escola. Com ele aprendia outros saberes, feitiçarias dos brancos como chamava meu pai . . . Mas esse era um mal até desejado . . . Pior, era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade. Era verdadeiro, esse risco. Muitas vezes eu me deixava misturar nos sentimentos de Surendra, aprendiz de um novo coração . . . —Vês, Kindzu? Do outro lado fica a minha terra.

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 Hispania 99 December 2016 E ele me passava um pensamento: nós, os da costa, éramos habitantes não de um continente mas de um oceano. Eu e Surendra partilhávamos a mesma pátria: o Índico . . . — Somos da igual raça, Kindzu: somos índicos! Ele se ria, repetindo: não indianos mas índicos...eu me sentia promovido. Na troca de nossos nenhuns assuntos, Surendra se esquecia de atender os fregueses. Eu me confortava: nunca ninguém se havia esquecido de nada por causa de mim. (Couto, Terra sonâmbula 36–37; itálicos do original, negritos nossos)

O fascínio do jovem Kindzu pelo mundo de Surendra constrói-se linguisticamente neste episódio de várias maneiras. Primeiro, através de dois movimentos opostos, por um lado, a urgência em chegar e entrar na loja de Surendra (“eu me apressava para sua loja. Entrava ali como se penetrasse numa outra vida”) e, por outro lado, o abrandamento do tempo cronológico que se dá quando os dois amigos estão juntos (“Perdia as horas no estabelecimento, sentado . . . no morrer das tardes quando, sentados na varanda, ficávamos olhando as réstias do poente”); segundo, através de uma imagem de movimento associada à música—a imagem das “mãos comprimidas” de Surendra que, como as de um pianista sobre as teclas de um piano, correm leves pelos panos que vende na sua loja; terceiro, através da expressividade do neologismo “encaseirar” que contribui para maximizar o sentimento de conforto que Kindzu tem por se sentir especial aos olhos do amigo indiano; quarto, através de vocabulário eufórico como “adoração” e “paixão”; e, finalmente, através do termo “índicos” que, ao adjetivar a palavra “raça”, traz consigo um elemento poético inesperado, dado que o que está em causa não é a cor da pele mas a fluidez da água, o jogo de palavras “indiano”/”índico” acentua esse elemento poético e reforça o sentimento de partilha entre o indiano e o jovem negro. Num artigo publicado em 2013, Elena Brugioni convoca o debate crítico-teórico em torno dos estudos do índico para argumentar a favor de uma perspetiva literária que saliente as semelhanças, mas também as diferenças, o contraste e heterogeneidade que marcam o Índico como zona de contacto. Referindo-se especificamente ao universo literário moçambicano, a autora declara que “algumas obras literárias moçambicanas apontam para uma dimensão contextual que esbate as fronteiras do espaço nacional” (132). A nossa leitura de Terra sonâmbula vai exatamente ao encontro desta visão. Embora esta narrativa possa ser explorada sob diferentes pontos de vista, acreditamos que uma das questões centrais é a defesa de uma identidade cultural que vai muito para além dos elementos africanos. Ao afirmar que não gosta de pretos enquanto mantem uma relação de cumplicidade com o jovem Kindzu, Surendra entra numa profunda contradição que só se resolve através da rejeição de um conceito de raça baseado na cor da pele. Rejeição essa que é levada ao extremo quando o indiano nega a existência de raças para afirmar o indivíduo em si mesmo, leia-se o que diz Surendra: “Eu gosto de homens que não têm raça. É por isso que gosto de si, Kindzu” (Couto, Terra sonâmbula 42). Assim, ambos são índicos, embora um seja também indiano e o outro seja também africano. A subversão de um conceito essencialista de identidade realiza-se, deste modo, através da convocação de um espaço simbólico onde se destacam emoções e aspetos humanos concretos. No caso que aqui nos ocupa, o fascínio de Kindzu por Surendra e o sentimento paternal do indiano pelo jovem negro. A valorização poético-política do oceano é feita, nesta narrativa, estrategicamente por intermédio da omnipresença do elemento água. Kindzu viaja de barco ao longo da costa e, ora aproximando-se da terra firme ora afastando-se um pouco mais, a sua comunhão com o elemento líquido dá-se por osmose a ponto de Kindzu, num momento em particular, se transformar em peixe (Couto, Terra sonâmbula 64). O leitor acompanha a viagem de Kindzu seguindo tanto a sua voz, como as palavras que deixa escritas nos Cadernos e que são lidas, mais tarde, por Muidinga, um sobrevivente da guerra civil. Nesta viagem, o mar surge em vários momentos, os quais inscrevem no discurso as ideias de fluidez e de hibridismo determinantes na construção identitária que Kindzu faz ao longo da sua viagem de reconhecimento da terra moçambicana. Com efeito, é no oceano ou junto dele que Kindzu se sente melhor—dentro da água, sente-se “no à-vontade de gafanhoto em capinzal” (67). E, quando, frustrado por não ter conseguido

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salvar a sua amiga Farida, sente uma profunda necessidade de se isolar de tudo, Kindzu recusa abandonar os cadernos nos quais segue escrevendo a sua história e a imagem do oceano Índico que Surendra lhe legou: “Este é o último caderno. Depois, arrumo tudo na mala que me deu Surendra. No final, Surendra é o único de quem eu aceito companhia. O indiano mais sua nação sonhada: o oceano sem nenhum fim” (325).9

Somos múltiplos: Confronto com a diferença A narrativa de Mia Couto não descura a violência associada ao confronto entre fronteiras. A sua proposta de transculturalidade e de miscigenação cultural não ignora nem oculta a intolerância e a violência dos encontros, e é por isso que se entende a ênfase tanto no sofrimento de Farida, abusada sexualmente pelo colono português Romão Pinto, como no racismo de que Surendra é alvo. Sobre esta última questão, lembramos, a título ilustrativo, o momento da inauguração da loja que Surendra abre com Assane no período pós-independência, momento em que o indiano é propositadamente relegado pelo sócio para um segundo plano, ficando “em plano de traseiras” como um “subordinado” (embora todo o capital de entrada seja dele), e mesmo assim não conseguindo evitar que um conjunto de “assaltantes” pegue fogo às instalações com a intenção de matar o “muenhé” (Couto, Terra sonâmbula 194). A experiência de Kindzu é igualmente relevante neste contexto. Apesar de ser africano e negro isso não impede que, em algumas circunstâncias, seja considerado como sendo “de fora” no seu próprio país. Um exemplo desta problemática surge quando Quintino, um velho negro que Kindzu encontra, decide contar-lhe a história dos tempos em que trabalhava para o colono Romão Pinto e se dirige ao jovem chamando-o de “estrangeiro”. A reação de Kindzu a esta forma de tratamento é a assertiva enunciação do seu nome próprio, obrigando Quintino a emendar o que tinha dito antes: “Vou-te contar a minha história, estrangeiro. /—Kindzu, emendei. /—Kindzu, aceitou ele. E começou a narrar” (Couto, Terra sonâmbula 235; itálicos do original). Outro exemplo, mais óbvio, encontra-se na relação conflituosa entre Kindzu e Antoninho, o ajudante de Surendra e que, mais tarde, se torna ajudante de Assane. O conflito existente entre os dois jovens negros remete, em traços gerais, para um dos vários problemas decorrentes do colonialismo—a complexa vivência dos assimilados na sociedade colonial. O ressentimento que Antoninho guarda em relação a Kindzu, por este ter “modos do colonizador” e ser amigo de Surendra, é denunciado quando Kindzu se refere às mentiras do ajudante, de que ilustramos com dois exemplos, o primeiro sobre a indisposição geral do ajudante em relação à presença de Kindzu na loja do seu patrão: “O ajudante da loja, Antoninho, me olhava com os maus fígados . . . Parecia invejar-se de meu recebimento entre os indianos” (36); o segundo, sobre a reação de Antoninho quando a loja de Surendra é assaltada por um homem negro: “Fui eu quem viu que estava roubando. Avisei Surendra . . . Antoninho, o ajudante gordo, mentia dizendo que o homem estava inocente. Não queria trair um da sua raça, dar razão a um de outra pele” (38). Nestes dois excertos fica clara a tensão entre os dois jovens negros, denunciando-se quer a difícil convivência entre os assimilados e os não assimilados, quer a existência de situações em que a lealdade relacionada com a cor da pele se sobrepõe a valores ético-sociais, tais como a verdade e a honestidade. A antipatia de Antoninho por Kindzu despoleta neste último um profundo desconforto que é percecionado, num dado momento, ora como ofensa, ora como desconfiança. Todos estes sentimentos demonstram bem a complexidade das relações coloniais e a dificuldade de lidar com a diferença. Assane, ex-secretário do administrador da cidade de Matimati e sócio de Surendra no período pós-independência, é outra personagem de que Mia Couto se serve para expor a dificuldade de lidar com “o outro” e, uma vez mais, enfatizar a importância das relações interpessoais concretas. Assane representa o estereótipo do moçambicano que, no período pós-independência, é capaz de fazer alianças com elementos de uma comunidade de quem diz não gostar, em prol dos seus interesses económicos. Com efeito, Assane verbaliza a política

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oficial do governo pós-independência que repete, de certa maneira, algumas das práticas de exclusão socioeconómicas típicas do colonialismo. A este propósito lembre-se o episódio em que Kindzu alude à injustiça da política que, por ser demasiado abstrata, falha em dar conta da individualidade. Contrariado por não usufruir de vantagens político-económicas, o ex-secretário do administrador escuda-se retoricamente num plural (“queriam”) do qual assume não fazer parte, pretendendo assim desresponsabilizar-se face à discriminação geral que existia contra os “asiáticos”. O seu tom balofo é, no entanto, desconstruído por Kindzu que deixa de ouvi-lo e imediatamente pensa no que Surendra lhe costumava dizer sobre o assunto: “Surendra já me havia falado desse perigo. Pagaria por todos de sua raça, pelos erros e pela ambição dos outros indianos. Seria preciso esperar séculos para que cada homem fosse visto sem o peso da sua raça” (Couto, Terra sonâmbula 186). O final deste episódio é relevante, inclusive, na medida em que fica demonstrado novamente que até Kindzu—apenas porque era um nativo do sul do país—era visto como um outro, um estrangeiro vindo “de fora”, “um tribal”. Referindo-se ao sócio como “cabrão” ou “gajo” e inserindo-o pejorativamente no seu grupo étnico ao chamá-lo de “monhé”, Assane é incapaz se de afastar dos estereótipos essencialistas sobre a comunidade indiana. Essa incapacidade acentua-se inclusivamente quando questiona Kindzu acerca dos sentimentos que este nutre por este indiano em particular. Neste momento narrativo fica patente a denúncia das contradições, dos interesses económicos e do oportunismo de Assane, o qual é capaz de formar alianças calculistas, nas quais a afetividade dos relacionamentos interpessoais não tem lugar e não existem palavras de honra, já que o prometido não é devido, mas “de vidro” (Couto, Terra sonâmbula 184). Há, todavia, dois breves momentos em que o discurso de Assane é contrariado pelas suas próprias atitudes, parecendo mesmo ultrapassar os seus preconceitos contra os indianos. O primeiro ocorre quando Assma (a esposa do sócio), depois de maltratada na praia, é recolhida por Kindzu que cuida dela coadjuvado por Assane, sobre quem Kindzu diz o seguinte: “Assane se revelou, então, no estranho entrechocar dos sentimentos. Tratava dela com carinho, lhe guardava a melhor parte da comida. Servia-lhe a sopa na boca com uma colher” (190). O segundo acontece quando Assane mostra empatia perante a desgraça que se abate sobre Surendra—a destruição da loja e a morte da esposa no incêndio provocado por um grupo de homens fardados que queriam matá-lo. Observando o estado de catatonia em que Surendra se encontra, é Kindzu quem dá conta desse gesto de empatia que, no limite, exemplifica a possibilidade de ultrapassar as diferenças através dos afetos, leia-se: “Ficou cabisbaixo, emudecido. Entendera? Nem tive tempo de certificar. Assane chegava, se arrastando na cadeira. Se aproximou e, para minha surpresa, passou um braço sincero sobre as costas do indiano. Não era gesto de sócio mas de amigo. Deixei os dois, entregues à tristeza” (195). Estes gestos empáticos de Assane não o redimem das suas atitudes interesseiras e opiniões maniqueístas, mas ajudam-nos certamente a complexificar os comportamentos e os sentimentos humanos, assim como a rejeitar posições dogmáticas. Convém, por fim, analisar o trajeto ficcional de Assma, a esposa de Surendra. Embora nunca se tenha acesso à voz desta personagem, pelos comentários de Surendra e Kindzu, o leitor fica sabendo que esta mulher é um ser profundamente desenraizado e sem predisposição para a adaptabilidade. Alimentando-se de sons, cores e cheiros da Índia, o seu estado geral é o de uma total apatia e alienação. Ao contrário de Surendra, Assma vive na terra africana adotiva sofrendo com as saudades da sua terra de origem, saudades apenas momentaneamente aplacadas pela música indiana que lhe chega pela rádio e pelas cores e cheiros da mercadoria existente na loja. Como observador atento, Kindzu é o único capaz de se imaginar no lugar de Assma, conjeturando um possível pensamento da indiana (o uso do imperfeito do conjuntivo serve linguisticamente esse propósito): “Assma, a seu lado, punha um sorriso incapaz. Quem sabe ela visse outro cenário para além daquele ali, um cenário indiano em que nós, africanos, seríamos os mais estrangeiros?” (Couto, Terra sonâmbula 194). Ao observar os convidados da festa de inauguração da loja a partir da perspetiva de Assma e ao estabelecer que, na visão

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da indiana, os africanos poderiam ser considerados estrangeiros, Kindzu (incluindo-se nesse grupo) problematiza a questão da alteridade e demonstra como todas as categorizações são relativas ou, pelo menos, relativizáveis. A violência que recai sobre Assma quando é explorada na praia de Matimati é um exemplo evidente do choque entre fronteiras e das crueldades que os seres humanos são capazes de cometer para satisfazerem as suas necessidades e caprichos.10 Surendra lança-a ao mar, num gesto de profundo amor, com a esperança de que, desse modo, ela regressasse à sua Índia e concretizasse o seu desejo de voltar às raízes. Ao viver em total ausência na terra adotiva e ao demonstrar-se incapaz de construir nela qualquer tipo de raiz, Assma não amplia a sua identidade, nem a questiona e, por isso, não tem espaço na nova realidade moçambicana. O gesto de profundo amor que Surendra faz ao lançá-la ao mar atesta justamente essa impossibilidade. Por outro lado, o facto de ela regressar, transfigurada numa quase sereia, à mesma margem do Índico, poderá remeter para a ideia de que esta mulher também já não pertencia ao seu país de origem, à outra margem. Afinal, o seu estado de alienação teria completamente tomado conta da sua existência. Resgatada por Kindzu e alimentada por Assane, Assma recupera alguma vitalidade, mas Surendra não reage à notícia, a sua profunda tristeza e o seu estado de inércia impedem-no não só de reconhecer aquela mulher como sua esposa (para ele Assma estava quase a chegar à Índia), mas também de voltar a ser o indiano da infância de Kindzu, tal como o jovem refere várias vezes. A morte de Assma provocada pelo mesmo fogo que destrói a loja de Surendra e do seu novo sócio vem apenas confirmar que esta mulher jamais poderia sobreviver no contexto das novas alianças económicas. Surendra, mais pragmático, acaba por ficar em Moçambique e reajustar-se à possibilidade de novos negócios, é a capacidade de adaptabilidade que é destacada no final do romance, quando Kindzu toma conhecimento que Surendra viajara para a capital para “tratar dos negócios” (Couto, Terra sonâmbula 303).11

Somos múltiplos e únicos: Considerações finais Não ignorando a violência e os preconceitos subjacentes aos encontros culturais e à negociação de fronteiras baseadas em diferenças étnicas, linguísticas e religiosas, a proposta literária de Mia Couto valoriza os aspetos emocionais e afetivos das relações humanas independentemente dessas diferenças e, simultaneamente, aponta para a construção de uma identidade concebida de forma dinâmica e sempre relacional. Assim sendo, Mia Couto ilustra de forma clara a necessidade pós-colonial de imaginar outras formas de identidade que vão para além das fronteiras impostas pela consciência nacional, tal como Leela Gandhi também defende: “After colonialism, it is imperative to imagine a new transformation of social consciousness which exceeds the reified identities and rigid boundaries invoked by national consciousness” (124). No discurso literário de Mia Couto a cor da pele ou quaisquer outras diferenças exteriores são relegadas para segundo plano, porque se algo de essencialista existe é a “raça” que cada indivíduo tem no seu íntimo, tal como Surendra explica a Kindzu. A preocupação em desfazer a rigidez das fronteiras a fim de construir identidades mais fluídas e mais inclusivas está patente em vários textos do escritor. Outro exemplo incontornável surge no conto “A lenda da noiva e do forasteiro” (incluído em Cada homem é uma raça, publicado em 1990), no momento em que o jovem protagonista da história, referindo-se à mulher de quem gosta, mas que a família não aprova, enfatiza o interior em detrimento da aparência, ou seja, valoriza os afetos em vez da cor da pele: —A mãe sentou conversa com ele, no mais grave buscar de razões. Motivo dessa mulher é ser de outra raça. —Não é negra como nós . . . —Isso é só por fora. Por dentro ela tem outra raça. (139)

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A construção que Kindzu vai fazendo da sua identidade individual, no contexto marcado pelo fim de um devastador conflito armado num território com uma enorme diversidade linguística, étnica, racial e religiosa, pode ser vista como metáfora da construção de uma identidade moçambicana plural, pondo em diálogo os diversos elementos identitários em presença no país. Em suma, a obra de Mia Couto, e Terra sonâmbula em particular, projeta uma ideia de moçambicanidade e de cidadania que se opõe determinantemente a qualquer tipo de essencialismos e à tendência para a homogeneização das experiências humanas. Mia Couto não apaga os conflitos nem nega a realidade histórica, mas privilegia, sim, a singularidade da natureza humana e o sentimento de fraternidade. Afinal, ser de “nenhum mundo” é, ao mesmo tempo, ser múltiplo e único, é ser “mestiço” como o poema que serviu de epígrafe a esta reflexão.

NOTAS  Com efeito, a zona costeira de Moçambique, e em particular a Ilha de Moçambique, foi durante três séculos administrada pelo Estado da Índia Portuguesa com sede em Goa. Além disso, após a consolidação do Estado Colonial, no final do século XIX, ocorre (especialmente no sul de Moçambique) um grande fluxo de migração indiana, oriunda da União Sul-Africana e de outras regiões do Índico. Com o decorrer dos séculos XIX e XX, a presença de mulheres indianas (hindus e muçulmanas) foi crescendo e a emigração passou, então, a ser familiar, aumentando também o sentido de comunidade destes grupos. Nas décadas de 60 e 70 do século XX, com a eliminação do Estado da Índia, e a Revolução de Abril que derrubou a ditadura salazarista em Portugal e acelerou a descolonização, deu-se o fluxo migratório dos indianos para a Europa, embora alguns tenham ficado na ex-colónia, assumindo-se como moçambicanos ou portugueses, ou simplesmente como residentes estrangeiros (é preciso referir que as relações entre as elites indianas e a administração colonial se deterioram bastante a partir de 1961, ano em que centenas de indianos são expulsos de Moçambique). A saída de alguns moçambicanos de origem indiana e portuguesa durante os primeiros anos da independência deve-se, num primeiro momento, ao desconforto de serem “olhados como inimigos da revolução socialista (porque estavam e eram associados ao comércio e ao lucro)” (Brookshaw 131) e, mais tarde, já nas décadas de 80 e 90 quando a experiência socialista começou a desvanecer, ao receio de um novo exclusivismo baseado na raça ou etnia. É neste momento histórico caracterizado por relações sociais conturbadas que Couto publica Terra sonâmbula. 2  Refiro-me aqui tanto a estudos mais gerais sobre a colonização portuguesa em África (como os de C. Boxer, G. Boxer ou Newitt), quanto a estudos mais específicos sobre a presença indiana no atual território de Moçambique, tais como os de Costa e Silva, Dias Antunes, Ferreira, Ribeiro, Thomaz, Zamparoni, entre outros autores. 3  Genericamente, os indianos eram distinguidos tendo em conta quatro pontos de vista: o estatuto que lhes outorgava o colonizador (os goeses católicos e os outros); a pertença religiosa (hindus, muçulmanos shiitas e sunitas, católicos e parsis); as diferenças intracomunitárias (a hierarquia de classe entre os muçulmanos e o sistema de castas entre os hindus); e as diferenças intercomunitárias (os muçulmanos sunitas, ao contrário dos hindus e ismaelitas, eram considerados mais predispostos à miscigenação com os africanos, e os parsis mais abertos à miscigenação com os europeus). Acrescente-se ainda que os hindus eram vistos pela administração colonial como “inofensivos” contrariamente aos muçulmanos, e que o indiano goês era visto de forma positiva por ser o produto exclusivo do encontro luso-asiático. 4  Ressalve-se que Valdemir Zamparoni (num artigo publicado em 2008 e incluído na bibliografia) mostra, por meio de estudo dos protestos publicados na imprensa colonial em Lourenço Marques e em Goa, que a comunidade de asiáticos não era, como tradicionalmente se pensa, apolítica. 5  Apesar de não termos lido esta ideia nos documentos originais ela surge em vários artigos que consultamos, como por exemplo no de Paula Meneses incluído na bibliografia. 6  Em termos gerais, as temáticas históricas que surgem no livro são: os efeitos da colonização (na figura do colonizador Romão Pinto) e da guerra colonial (1961–74), a independência (na figura de Junhito, o irmão de Kindzu); a guerra civil (1976–92); os campos de refugiados; os bandos armados; a corrupção (exemplificada na figura de Assane), o contexto ideológico influenciado pelo marxismo (na figura do administrador) e a construção da identidade nacional. 7  São vastos os estudos críticos sobre o conceito de mestiçagem. Para uma definição e contextualização dos conceitos de mestiçagem biológica e cultural, e de hibridização veja-se, por exemplo, o trabalho do historiador francês Gruzinksi. Neste livro, o autor refere-se ao termo mestiço para designar a mistura que ocorreu nas Américas no século XVI, fenómeno que derivou do choque da conquista e da ocidentalização. 1

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Para uma reflexão em torno do debate teórico já existente sobre o conceito de fronteira e a sua aplicabilidade ao espaço da língua portuguesa, recomenda-se, por exemplo, entre outras, a leitura do artigo de Fonseca incluído na bibliografia. 8  Na verdade, o projeto de construção do “homem novo” proposto pela FRELIMO não se comprazia nem com as memórias do passado, nem com a diversidade do presente, tornando-se evidente a desarticulação entre a ideologia do partido e a complexa realidade que marcava o país recém-independente. 9  Nas errâncias de Muidinga e Tuahir, o mar também adquire um valor expressivo-simbólico relevante, pois representa tanto a capacidade de transcender as contingências do dia a dia e o poder de colmatar uma falta emocional (no caso de Muidinga, essa falta relaciona-se com o facto de desconhecer o seu passado: “O jovem nem sabe explicar. Mas era como se o mar, com seus infinitos, lhe desse um alívio de sair daquele mundo” (Couto, Terra 286); e quanto o culminar de uma longa vida-viagem que Tuahir protagoniza quando escolhe morrer no mar: “As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. . . . Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo” (Couto, Terra 317) 10  Refiro-me em particular ao pescador que, depois de resgatar Assma, se aproveita da sua fragilidade para exibir o seu exotismo e ganhar “altos tacos” (Couto, Terra 178). 11  É a capacidade de fazer novas alianças que ajuda o indiano a sobreviver no período pós-­ independência em Moçambique, assim, talvez não seja gratuito que os nomes da esposa e do sócio (Assma e Assane respetivamente) se assemelhem tanto.

OBRAS CITADAS Bender, Gerald J. Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality. Berkeley: U of California P, 1978. Impresso. Boxer, Charles. The Portuguese seaborne empire, 1415–1825. London: Hutchinson, 1969. Impresso. Brookshaw, David. “Indianos e o Índico: O pós-colonialismo transoceânico e internacional em O outro Pé da Sereia, de Mia Couto”. Moçambique: das palavras escritas. Ed. Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses. Porto: Afrontamento, 2008. 129–38. Impresso. Brugioni, Elena. “Narrando o(s) Índico(s). Reflexões em torno das ‘geografias transnacionais do imaginário’”. Diacrítica-Literatura 27.3 (2013): 121–36. Web. 20 maio 2015. Can, Nazir. “Índico e(m) Moçambique: notas sobre o outro”. Diacrítica-Literatura 27.3 (2013): 93–120. Web. 20 maio 2015. Couto, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Caminho, 2005. Impresso. ———. Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho, 2013. Impresso. Fonseca, Ana Margarida. “Between Centers and Margins: Writing the Border in the Literary Space of the  Portuguese Language”. Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Ed. Paulo de Medeiro. Utrecht: Portuguese Studies Center, Universiteit Utrecht, 2007. 41–61. Impresso. Gandhi, Leela. Postcolonial Theory: A Critical Introduction. Nova Iorque: Columbia UP, 1998. Impresso. Gruzinksi, Serge. The Mestizo Mind: The Intellectual Dynamics of Colonization and Globalization. Routledge: Nova Iorque, 2002. Impresso. Hall, Stuart, e Paul du Gay, eds. Questions of Cultural Identity. Londres: Sage, 1996. Impresso. Leite, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. Impresso. ———. “A narrativa como invenção da personagem”. Navegações 2.1 (2009): 7–11. Web. 20 maio 2015. Meneses, Paula. “O ‘indígena’ africano e o colono ‘europeu’: A construção da diferença por processos legais”. E-cadernos CES 7 (2010): 68–93. Web. 20 maio 2015. Moorthy, Shanti, e Jamal Ashraf. Indian Ocean Studies: Cultural, Social and Political Perspectives. Londres: Routledge, 2010. Impresso. Newitt, M. D. D. Portugal in Africa: The Last Hundred Years. London: Longman, 1981. Impresso. Ribeiro, Margarida Calafate, e Maria Paula Meneses, eds. Moçambique: Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. Impresso. Rita-Ferreira, António. “Moçambique e os naturais da Índia portuguesa”. Actas do II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa. Lisboa, Instituto de Investigação Cientifica Tropical/Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1985. 615–48. Impresso. Thomaz, Omar R. “Entre inimigos e traidores: Suspeitas e acusações no processo de formação nacional no sul de Moçambique”. Travessias 4.5 (2004): 269–94. Impresso. Zamparoni, Valdemir. “Vozes asiáticas e o racismo colonial em moçambique”. Lusotopie 15.1 (2008): 59–75. Web. 20 maio 2015.

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