Sousândrade e os hispano-americanos: o americanismo do Guesa

June 6, 2017 | Autor: André Fiorussi | Categoria: Poesía latinoamericana, Poesia Brasileira, Sousândrade, Guesa
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Universidade de São Paulo, Brasil Em 1890, Ricardo Palma publica uma carta de elogio ao autor de Tabaré, Juan Zorrilla de San Martín, contendo a seguinte observação: «[...] la Araucana, de Ercilla, O Guesa Errante de Souza Andrade y Tabaré son los poemas que, en mi concepto, satisfacen más cumplidamente el ideal del americanismo literario» (PALMA R. 1900: 129). Esse pequeno cânone da poesia americana deve ter surpreendido os leitores da época, e provavelmente ainda intrigará os de hoje: o que faz um desconhecido Guesa errante entre a grande epopeia quinhentista da resistência araucana contra os conquistadores espanhóis e o poema nacional uruguaio, celebrado em ambos os lados do Atlântico imediatamente após sua primeira publicação? O Guesa Errante ou simplesmente O Guesa é um poema extenso como a epopeia de Ercilla, tangencialmente épico como o de Zorrilla, de temática americana como ambos, mas difícil e estranho como nenhum. Seu autor é Joaquim de Sousa Andrade, brasileiro do Maranhão, conhecido como Sousândrade, nascido em 1832 e morto em 1902. Composto de doze cantos e mais um canto epílogo, o poema foi publicado em partes ao longo da vida do autor, a partir de 1868, e teve duas edições principais no século XIX, com muitas variantes: a primeira em Nova York, entre 1874 e 1877, e a definitiva em Londres, entre 1884 e 1888, ano do Tabaré e também de Azul..., de Rubén Darío. Sua sintaxe complicada por inversões e elisões violentas, seus frequentes enjambements, suas abundantes referências, citações e alusões e a dificuldade de estabelecer conexão entre seus episódios, descrições e meditações sustentam sua reputação de poema obscuro ou até mesmo ilegível. Ao mesmo tempo, considera-se que suas melhores passagens, que não são poucas, estão entre as melhores de toda poesia já escrita no Brasil; a agudeza de sua verve crítica e o encanto produzido por seus quadros e descrições garantiram sua sobrevivência ao longo de décadas de relativo esquecimento. Reproduzo a seguir os versos iniciais de O Guesa, que invocam os trabalhos da imaginação poética sobre uma visão estupefaciente dos Andes:

«Eia, imaginação divina! Os Andes Volcanicos elevam cumes calvos, Circumdados de gelos, mudos, alvos, Nuvens fluctuando – que espectac’los grandes! Lá, onde o ponto do kondor negreja, Scintillando no espaço como brilhos D'olhos, e cae a prumo sobre os filhos do lhama descuidado; onde lampeja da tempestade o raio; onde deserto, O azul sertão formoso e deslumbrante, Arde do sol o incendio, delirante Coração vivo em céu profundo aberto!» (SOUSÂNDRADE J. 1979: 3) O poema narra a peregrinação do Guesa, personagem baseada numa tradição dos índios muíscas da Colômbia que Sousândrade conheceu através de relatos de Humboldt (Vues des Cordillères) e Famin (Colombie et Guyanes). O Guesa era um jovem indígena destinado ao sacrifício, que deveria trilhar o Caminho do Suna (antes percorrido pelo deus Bochica) até ser morto a flechadas aos quinze anos. Sousândrade “estende” o caminho do Suna no tempo e no espaço: seu Guesa, que ele faz representar alegoricamente a si próprio, viaja por toda a América e vai também à Europa e à África, contemplando e meditando sobre episódios da história da América desde os tempos pré-colombianos até os confrontos civis das novas repúblicas e as falcatruas Immaginario e memoria: studi culturali

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mais recentes da bolsa de valores de Nova York. Entre quadros da paisagem natural e referências a acontecimentos históricos do passado e do presente, surgem reflexões poéticas, evocações da grandeza dos Incas, fragmentos de experiências vividas pelo poeta e duras críticas ao regime imperial e escravocrata brasileiro, à cobiça dos homens, à corrupção das sociedades, e ao nascente capitalismo financeiro. A alegoria do jovem índio destinado ao sacrifício num mundo hostil e a expressa orientação pan-americana e indianista do poema despertaram o interesse de seus primeiros leitores. Silvio Romero, em sua vasta História da Literatura Brasileira, de 1888, chama atenção para a escolha da matéria: «[...] de nossos poetas é, creio, o único a ocupar-se de assunto americano estranho ao Brasil, um assunto colhido nas repúblicas espanholas» (ROMERO S. 1903: 405). Mas as dificuldades do Guesa pareceram incompatíveis com os critérios expressivos que orientavam a recepção da literatura então produzida no Brasil. Surgiram acusações de incongruência formal, contradição ou falta de acabamento(1), o que ocasionou o menosprezo e o esquecimento do Guesa até meados do século XX. O próprio Silvio Romero julgava, em 1888, que Sousândrade era «um poeta de forte elevação de ideias; mas de forma muitas vezes áspera e rude e quase ininteligível» (ROMERO S. 1903: 405); por outro lado, acrescentava: «Uma coisa, porém, é preciso que se diga: o poeta sai quase inteiramente fora da toada comum da poetização de seu meio; suas ideias e linguagem têm outra estrutura» (ROMERO S. 1903: 406). Ainda hoje, quase cento e cinquenta anos depois da publicação de suas últimas versões, O Guesa permanece infenso aos rótulos e aos dispositivos descritores da historiografia literária brasileira, e, além disso, exige tanto esforço do leitor como deve ter exigido em seu tempo – ou provavelmente mais, dado o perecimento de suas muitas referências a acontecimentos contemporâneos. Nas décadas de 1950 e 60, a poesia de Sousândrade passou por intenso processo de revalorização no Brasil, destacando-se a intervenção de Augusto e Haroldo de Campos com seu livro ReVisão de Sousândrade. Porém, a opção pela valorização dos elementos excepcionais e inusitados dessa poesia – intimamente conectada ao projeto da vanguarda concretista, como mostra Librandi (LIBRANDI M. 2002) –, favorecida por uma atenção quase exclusiva a apenas dois trechos de O Guesa (batizados então de Tatuturema e Inferno de Wall Street), sustentou a interpretação do poeta como um antecipador e precursor do modernismo, das vanguardas, de Ezra Pound e do concretismo, e deixou praticamente inexplorada a importante questão do relacionamento da escrita de Sousândrade com as poéticas de seu tempo. Dado tratar-se de um poema de temática americana escrito por um brasileiro que dominava a língua espanhola e viajou por diversos países hispano-americanos, é de esperar que sua leitura demande algum grau de conhecimento da literatura hispano-americana do século XIX e das questões mais recorrentes em sua discussão. Esse trabalho de aproximação entre O Guesa e a literatura hispano-americana, no entanto, segue sem realizar-se, e encontra-se apenas indicado em trechos de alguns dos principais estudos publicados sobre o poeta até hoje. Nesta apresentação, pretendo reunir os dados mais relevantes já obtidos a respeito do tema e sugerir alguns caminhos para sua expansão.

O Guesa, poema americano Os primeiros românticos brasileiros, em sua empreitada nacionalista patrocinada pelo imperador Pedro II, haviam escrito suas poesias americanas, que, apesar do rótulo, versavam exclusivamente sobre os índios e a natureza selvagem do Brasil, em busca da composição de tipos altamente idealizados que pudessem representar virtudes ancestrais dos homens e da terra. (A melhor e mais conhecida dessas séries de poesias americanas é a de Gonçalves Dias, poeta conterrâneo de Sousândrade a quem ele dedica um trecho de exaltação em O Guesa). Assim, ao tomar matéria de outras partes da América como eixo temático de seu poema, sem deixar de dar atenção a temas brasileiros, Sousândrade claramente rompia com uma tendência dominante nas letras de seu país, o que não passou despercebido por nenhum de seus críticos. Esse rompimento é, inclusive, anunciado no próprio poema, por exemplo num fragmento do “Inferno de Wall Street” em que os patrióticos artistas da corte imperial são acusados de formar um coro dos contentes. O próprio imperador Pedro II, reiteradamente atacado ao longo do poema, é associado ao Fomagata do mito muísca – o mais temível dentre os demônios que perseguem o Guesa no trecho final do caminho do Suna. Neste caso, fica claro que é a orientação republicana que rege os confrontos ao regime monárquico do Brasil independente, com os quais a voz narrativa confronta os benefícios da opção pela República em outros Estados americanos, como o Peru, o Chile e o México. De fato, quando passa por esse último país, o Guesa se aproveita de uma circunstância histórica – a vitória das forças republicanas contra o imperador Maximiliano na batalha de Querétaro em 1867 – para, exaltando Benito Juárez, atacar o Império do Brasil:

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«Nação existe lá, que vezes dorme supersticiosa vã e a opprobrio endura; Vezes desperta, e turbulenta e enorme, Similhante ao seu golfo, então recobra E mais brilhante o já perdido indulto – Tormenta! E nave imperial sossobra, E em Queretaro um rei tomba insepulto! [...] Cora, Brazil, do reconhecimento Teu ao dominio do invasor extranho No continente nosso; e em teu momento Pensa, no error estolido e tamanho! Mas, ás festas do sangue e dos espolios Dos lobos d'além-mar veem os jaguares – São-lhes proprias montanhas, capitolios; Era Guatimozin... mas é Joárez!» (SOUSÂNDRADE J. 1979: 181-182) Por passagens como essa, percebe-se que Sousândrade usa a descrição das repúblicas hispano-americanas como termo de comparação para atacar o regime imperial do Brasil. Porém, o interesse do assunto estrangeiro não se esgota aí. Em boa parte de sua vasta extensão, o poema de Sousândrade consiste numa sucessão de quadros paisagísticos, lendários e históricos da América, intercalados por meditações sobre a conquista, a colonização, a reorganização pós-independências e o futuro dos Estados e povos americanos. Haroldo de Campos mostrou como muitas descrições de paisagens seguem de perto a forma dos quadros poéticos de Humboldt; já Claudio Cuccagna, atento à representação de episódios históricos concernentes à relação dos europeus com os indígenas, acusou a presença de Bartolomé de Las Casas e William Prescott como principais fontes para as narrativas de Sousândrade, sem destacar a do Inca Garcilaso de la Vega. Desses três autores, Las Casas é o único mencionado no poema: seu nome aparece quatro vezes, sempre associado à defesa dos índios contra os invasores; além disso, uma passagem em que a voz narrativa comenta o assassinato de três famosos caciques da Hispaniola (Guacanagari, Caonabó e Anacaona) guarda estreita semelhança com a narrativa da Brevísima relación de la destrucción de las Indias. Podemos supor, é claro, que Sousândrade tivesse conhecimento de outras fontes para a história americana. Por exemplo, o episódio da morte do conquistador Valdivia no Chile não reproduz a versão dada por Ercilla em La Araucana, mas outra, muito mais rica poeticamente, segundo a qual os mapuches fizeram o espanhol beber ouro derretido. Segundo Cuccagna, essa outra versão circulava em crônicas não citadas no Guesa, como a Crónica del Reino de Chile(2), que Sousândrade poderia ter conhecido. O périplo do Guesa engloba diversas partes do continente, desde a Patagônia até Nova York, e inclui descrições e relatos detalhados da vida atual em certos pontos da América Hispânica, especialmente Lima, Valparaíso e Santiago, o que faz supor que o poeta tenha conhecido pessoalmente esses lugares. Não obstante, pouco sabemos das viagens reais de Sousândrade pela América Hispânica. Certas informações de que dispomos, como a de que visitou «a Colômbia, o Equador, o Peru, o Chile, o Uruguai e a Argentina até a Patagônia» (CAMPOS A. e H. 2002: 547), carecem de documentação e foram aparentemente extraídas diretamente da narrativa de O Guesa. O certo é que Sousândrade mobiliza uma grande variedade de conhecimentos sobre a história e as culturas da América, inscrevendo claramente O Guesa num âmbito de legibilidade que excede a questão da literatura nacional. Mais do que um poema brasileiro sobre a América, é um poema americano, se se permite essa distinção. O Guesa menciona explicitamente três obras literárias hispano-americanas do século XIX: Silva a la agricultura de la zona tórrida, de Andrés Bello, La victoria de Junín – Canto a Bolívar, de José Joaquín Olmedo, e Tradiciones peruanas, de Ricardo Palma, além da anterior La Araucana, de Ercilla. Essa pequena eleição parece bastante significativa, pois repete um cânone já então estabelecido do americanismo literário e, ao mesmo tempo, oferece um âmbito para que o leitor avalie a emulação levada a cabo por Sousândrade em seu grande poema. Assim, para além de reconhecer que ele destoa da literatura brasileira de seu tempo, parece que seria fundamental investigar suas relações com a literatura americana.

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Um caminho possível seria a avaliar a questão do americanismo literário na segunda metade do século XIX. Na mencionada carta ao autor de Tabaré, Ricardo Palma escreve o seguinte a respeito: «El poema de usted que he leído con cordial deleite, viene a poner de nuevo sobre el tapete de la discusión el eterno tema del americanismo en literatura. Con lengua, religión, costumbres y hasta instituciones genuinamente españolas, con urdimbre que no es de nuestra propiedad esclusiva, mal podemos aspirar a una originalidad absoluta. Pero si por americanismo en literatura queremos significar lo especial del colorido para pintar fielmente la exhuberancia vital de nuestra naturaleza, que en poco o nada se asemeja a la de los viejos pueblos europeos y asiáticos; las aspiraciones de razas y sociedades nacientes, y las idealidades, no diré si patrióticas o patrioteras, que nuestra condición democrática encarna, el problema queda resuelto, y a usted corresponde parte en la solución» (PALMA R. 1900: 129). Observe-se que Palma acusa em Tabaré não o surgimento, mas a revalorização dessa espécie de americanismo, cujas raízes remontam, segundo Max Henríquez Ureña, ao romantismo do Rio da Prata (UREÑA M.H. 1954: 33). Os poemas de Bello e Olmedo mencionados acima, ambos publicados em 1826, respondiam a uma demanda de celebração da grandeza americana, ensejada pela batalha de Junín; mas eram tradicionais na forma, em sua emulação neoclássica das autoridades dos gêneros. Na introdução à edição de 1876 do Guesa, Sousândrade escreve este pequeno programa para uma poesia americana, em tudo confluente com o trecho citado de Palma: «Deixemos os mestres da forma – se até os deuses passam! É em nós mesmos que está nossa divindade. Não é pelo velho mundo atrás que chegaremos à idade de oiro, que está adiante além. O bíblico e o ossiânico, o dórico e o jônico, o alemão e o luso-hispano, uns são repugnantes e outros, se o não são, modificam-se à natureza americana. Nesta natureza estão as suas próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas montanhas; ela, à sua imagem, modelou a língua dos seus Naturais – e é aí que beberemos a forma do original caráter literário qualquer que seja a língua diferente que falarmos» (SOUSÂNDRADE J. 2003: 485). Essa declaração de Sousândrade também compartilha elementos com o nacionalismo romântico de autores brasileiros como José de Alencar, que dizia, por exemplo, preferir a descrição do Brasil ao Brasil da descrição, no sentido de deixar de repetir os lugares-comuns da convenção literária em favor de uma invenção poética romanticamente sincera de flores americanas colhidas com as próprias mãos. Porém, a observação final de Sousândrade sobre «as línguas diferentes que falamos» explicita sua pretensão a um americanismo supranacional. O tempo de Sousândrade não é o de Bello e Olmedo, mas o de Palma e Zorrilla de San Martín; aquele que Pedro Henríquez Ureña classificaria como Período de Organização (1860-1890) (UREÑA P.H. 1994: 141), caracterizado pela atividade de escritores e intelectuais que ele chama de lutadores e construtores, como Blest Gana, Montalvo, González Prada, Pérez Bonalde, Justo Sierra e Machado de Assis. Associar Sousândrade a esse grupo me parece bastante mais eficaz do que dizer, como se faz eventualmente no Brasil, que ele pertence à segunda geração romântica brasileira, ao lado de poetas tão diferentes dele, como Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu. É um tempo em que a exaltação interessada da beleza americana cede lugar à intervenção cívica e a propostas de reformas institucionais; mas é também o tempo em que se gesta uma profunda redefinição do lugar do escritor na sociedade, com a expansão, por exemplo, das atividades da imprensa, conforme descreveu Ángel Rama (RAMA A. 1985). Antes questão de cor local e vocabulário exótico, a busca de uma originalidade americana quer incluir a representação de um novo mundo em construção, e isso se dá intensamente na forma e na linguagem. José Martí, em seu elogio de 1887 a Walt Whitman, deixa clara essa associação: «El lenguaje de Walt Whitman, enteramente diverso del usado hasta hoy por los poetas, corresponde, por la extrañeza y pujanza, a su cíclica poesía y a la humanidad nueva, congregada sobre un continente fecundo con portentos tales, que en verdad no caben en liras ni serventesios remilgados» (MARTÍ J. 1978: 274). Immaginario e memoria: studi culturali

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A linguagem de Sousândrade, incontenível nas formas rígidas da tradição, e que extravasa pelos constantes enjambements o próprio limite do metro, parece buscar as qualidades descritas por Martí; e, não fosse a mínima circulação de O Guesa no século XIX, poderíamos vê-lo ocupando o lugar vazio do poeta de América de que falava José Enrique Rodó ao defender Rubén Darío por não o ser, com o argumento que leio a seguir: «Confesémoslo: nuestra América actual es, para el Arte, un suelo bien poco generoso. Para obtener poesía, de las formas, cada vez más vagas e inexpresivas de su sociabilidad, es ineficaz el reflejo; sería necesaria la refracción en un cerebro de iluminado, la refracción en el cerebro de Walt Whitman. Quedan, es cierto, nuestra Naturaleza soberbia, y las originalidades que se refugian, progresivamente estrechadas, en la vida de los campos. Fuera de esos dos motivos de inspiración, los poetas que quieran expresar, en forma universalmente inteligible para las almas superiores, modos de pensar y sentir enteramente cultos y humanos, deben renunciar a un verdadero sello de americanismo original» (RODÓ J.E. 1899: 6-7). O próprio Rubén Darío escreveria anos mais tarde sua própria justificativa: «No se tenía en toda la América española como fin y objeto poéticos más que la celebración de las glorias criollas, los hechos de la independencia y la naturaleza americana: un eterno canto a Junín, una inacabable oda a la Agricultura de la zona tórrida, y décimas patrióticas. No negaba yo que hubiese un gran tesoro de poesía en nuestra época prehistórica, en la conquista y aun en la colonia, mas con nuestro estado social y político posterior llegó la chatura intelectual y períodos históricos más a propósito para el folletín sangriento que para el noble canto» (DARÍO R. 1948: 75). Deixo aqui apenas esboçadas outras possíveis relações entre a prática de Sousândrade e dos hispanoamericanos do século XIX. O episódio do Canto XI que se refere ao assassinato do presidente peruano Balta e à posterior vingança da população contra os assassinos (os irmãos Gutiérrez) aplica uma técnica muito semelhante à do conhecido relato El matadero, de Esteban Echeverría, em que um assassinato com motivação política é espelhado em uma vívida descrição da morte de um animal, sugerindo uma contiguidade e uma homologia entre ambos os atos de violência. Outros trechos de O Guesa compartilham, ainda, matérias e técnicas com textos hispano-americanos de seu tempo; por exemplo, a descrição do Niágara, tratada antes por José María Heredia e depois por Juan Antonio Pérez Bonalde, em um poema celebrizado por um ensaio marcante de José Martí; e a ode ao ouro no Canto X, semelhante em muitos aspectos à Canción del oro de Rubén Darío. Fora de O Guesa, Sousândrade traduziu um poema do chileno Eduardo de la Barra e publicou um texto crítico sobre um poemário de Pérez Bonalde; deve ter conhecido a ambos escritores, respectivamente, em Valparaíso e em Nova York. Vale, ainda, incluir nesta relação dois registros negativos. O primeiro é que Sousândrade não menciona nenhum dos romances, poemas e discursos que hoje integram a bibliografia fundamental dos escritos de temática indígena do século XIX, como as Fantasías indígenas, de José Joaquín Pérez, Una excursión a los indios ranqueles, de Lucio V. Mansilla, ou Nuestros indios, de Manuel González Prada. Pode-se depreender dessas ausências que Sousândrade não identificava o indigenismo ao americanismo literário como eventualmente fazemos, ainda que sua defesa do índios vivos da Amazônia no Canto II do Guesa mereça integrar hoje o corpus indigenista. O segundo registro negativo é que não se encontrou até hoje indício de que Sousândrade e José Martí tenham se conhecido ou sequer lido um ao outro, apesar das estreitas afinidades temáticas e ideológicas que se conservam entre suas obras (CUCCAGNA C. 2004: 186).

Conclusão Em 1877, Sousândrade queixou-se: «Ouvi já por duas vezes, que o Guesa Errante só será lido cinquenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes» (SOUSÂNDRADE J. 2003: 489). Ainda hoje, bem mais de cinquenta anos depois, o poema segue aguardando leituras. É um texto difícil, com muitas passagens obscuras ainda carentes de qualquer interpretação, e mesmo a sua porção mais legível tem sido pouco trabalhada. Na introdução, o autor adverte que se trata simplesmente de um poema narrativo e que Immaginario e memoria: studi culturali

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não tem nada de épico, lírico nem dramático; cumpre acrescentar que não tem nada de didático: sua narração não informa o leitor do que ele ainda não sabe, mas sempre reconta, colore, comenta, repinta e, não raro, melhora o que ele já sabe, ou o que ele terá que buscar saber se quiser continuar. Não há sequer uma nota esclarecedora do poeta, daquelas que abundam nos rodapés dos poemas longos desde a Henriade de Voltaire, e que aparecem até em Byron. E, ainda assim, não podemos contar até hoje com uma edição crítica do poema. São, por fim, muito poucas e parciais as suas traduções a outras línguas, entre as quais quero destacar uma tradução do Canto XII, de assunto chileno, feita por estudantes da Universidad de Santiago de Chile e publicada sob coordenação da professora Adriana Casarotti. Pelas razões expostas nesta comunicação, e também pela alta qualidade poética do Guesa, parece-me que enfrentar essa leitura com mais frequência e amplitude de interesses poderia ser algo extremamente enriquecedor para os estudos americanos. Afinal, se há coisas americanas que revelam sua grandeza mesmo quando vistas rapidamente e de longe, como os Andes ou a Floresta Amazônica pela janela do avião, há outras, como os quipus dos Incas, que requerem paciência, calma e dedicação. O Guesa parece ser uma destas.

Notas (1) A principal reunião de textos críticos do século XIX sobre O Guesa foi publicada pelo próprio Sousândrade na introdução às edições em livro do poema. (2) Escrita originalmente por Pedro Mariño de Lobera, reelaborada no século XIX pelo jesuíta Bartolomé de Escobar e publicada apenas em 1865 (CUCCAGNA C. 2004: 112-117).

Bibliografia CAMPOS Augusto e Haroldo de, 2002, ReVisão de Sousândrade, Perspectiva, São Paulo. CUCCAGNA Claudio, 2004, A visão do ameríndio na obra de Sousândrade, Hucitec, São Paulo. DARÍO Rubén, 1948, Obras completas, Anaconda, Buenos Aires. MARTÍ José, 1978, Obra literaria, Biblioteca Ayacucho, Caracas. PALMA Ricardo, 1900, Cachivaches, Imp. Torres Aguirre, Lima. RAMA Ángel, 1985, La ciudad letrada, Ediciones del Norte, Hanover. RODÓ José Enrique, 1899, Rubén Darío: su personalidad literaria, su última obra, Dornaleche y Reyes, Montevideo. SOUSÂNDRADE Joaquim de, 1979, O Guesa, SIOGE, São Luís, Maranhão. SOUSÂNDRADE Joaquim de, 2003, Poesia e prosa reunidas de Sousândrade, Edições da Academia Maranhense de Letras, São Luís, Maranhão. SOUSÂNDRADE Joaquim de, 2012, O Guesa, Ponteio, Rio de Janeiro. UREÑA Max Henríquez, 1954, Breve historia del modernismo, Fondo de Cultura Económica, México, D.F. UREÑA Pedro Henríquez, 1994, Las corrientes literarias en la América hispánica, Fondo de Cultura Económica, Bogotá.

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