Sujeito oculto - texto integral

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Descrição do Produto

© Cristiane Costa, 2014 edição HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA projeto gráfico CUBÍCULO designer assistente IGOR POSTIGA revisão FLÁVIA MIDORI consultoria cultural SANDRA HELENA PEDROSO

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C871s Costa, Cristiane Sujeito oculto / Cristiane Costa - 1. ed. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2014. 156 p.: il.; 23 cm. ISBN 978-85-7820-111-1 1. Ficção brasileira. I. Título. 14-15499

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

Todos os direitos desta edição reservados à Aeroplano Editora e Consultoria Praia de Botafogo, 210 / sala 502 Botafogo – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22.250-040 TEL: (21) 2529-6974 TELEFAX: (21) 2239-7399 www.aeroplanoeditora.com.br [email protected] www.facebook.com/Aeroplano.Editora www.twitter.com/Ed_Aeroplano

PETROBRAS CULTURAL

To Kelvin Ussher, forever and ever

Primeira parte

Não posso fingir que você não existe, que não me observa a distância. Não olhe em volta. É com você mesmo que estou falando.

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Primeiro depoimento Posso começar? A verdade é que, quando ela morreu, pensei que seria possível desaparecer com todos os seus vestígios. As roupas, eu dei para a empregada, que, depois de encher muito o meu saco e me arrancar uma grana a mais, aceitou dormir lá em casa para tomar conta das crianças nas noites em que saio por aí. Aquela anta da Felicidade também herdou a maquiagem, os cremes e os perfumes, embora eu duvide que ela saiba a diferença entre uma alfazema comprável em qualquer farmácia e um daqueles franceses carésimos. Mas vidros bonitos e letras douradas exercem o mesmo fascínio em mulheres cultas e ignorantes. É como o amor: importa menos o efeito do que a promessa. No fundo, é tudo perfumaria, concorda? Uma a uma, tirei as fotos dela dos porta-retratos espalhados pela casa. Sumi com os álbuns e as fitas de vídeo em que seu rosto aparecia. Escondi tudo no alto de um armário no quarto de empregada, sem ao menos dirigir um último olhar, caso um dia nossos – meus – filhos queiram rever seu sorriso. Lá, na última prateleira, estão as fotos que mostram aquele olhar petulante da juventude, quando ela achava que faria grandes coisas, e que se transformou lentamente, foto a foto, no sorriso amargurado da última viagem. Os bilhetes, as cartas de amor, eu rasguei sem ler. E depois taquei fogo. De tudo eu me livrei. Menos dos livros. Livros não são objetos pessoais, achava eu. Todo mundo pode entrar numa livraria e comprar um livro igual. E, quem sabe, ainda vão servir aos nossos filhos. Se não fossem tantos, eu teria queimado tudo, doado para uma biblioteca qualquer ou jogado pela janela – confesso – porque não suporto nada, absolutamente nada, que me faça lembrar aquela mulher. Se penso nela? Todos os minutos do meu dia. Como era minha mulher? Nem eu sei. Sem as fotos, mal consigo lembrar o seu nariz, os seus olhos, a sua boca. Penso em algo disforme, como uma nuvem, quando lembro dela. Se lentamente esqueço os traços do rosto, os da personalidade estão bem marcados, embora eu sempre tenha achado que fosse seu lado mais fraco. Minha mulher se preocupava tanto em combinar as roupas, sapato com bolsa, colar com brinco, tinha horror de chamar atenção, de ser extravagante. Tudo bege, tudo cinza, tudo preto. E, agora percebo, se no armário era tudo igual, naquelas estantes abarrotadas de livros nada combina com nada. É verdade. As coisas mais diferentes a interessavam: a introdução da escrita na Grécia, as relações de parentesco entre os índios da Amazônia, a vida dos santos, romances

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vitorianos – era capaz de ir da psicanálise lacaniana à autoajuda. Não vejo ligação entre nenhum destes livros, talvez ela visse. Mas o que aconteceu há algum tempo me assustou. Foi quando apareceram os cupins. Não foram alguns; foram muitos, milhares, milhões. Passei por uma estante e ouvi um ruído. Era como se os livros estivessem vivos e falassem numa língua estranha. Maluquice, disse para mim mesmo. Fui até a cozinha pegar uma cerveja e, quando passei por ali de novo, o mesmo barulho. Chamei a imbecil da Felicidade e perguntei se ela estava ouvindo. Ela olhou para a minha cara como se eu tivesse endoidado de vez, mas esticou as orelhas – juro, ela é tão burra que é capaz disso – e disse: — Nossa senhora. — O que foi? — É cupim. Merda. Não acredito. Eu sem um tostão no bolso, cartão de crédito estourado, limite do cheque especial ultrapassado, e essa idiota vem me dizer que a minha casa está tomada de cupim. — Olha essa bolha aqui na parede, Seu Carlos, vem do chão até as estantes. Ih, os bichos estão fazendo ninho atrás dos livros... — Merda. Merda. Merda. Para me certificar, peguei um livro qualquer. Dei de cara com um filme de terror, aquelas larvas brancas entravam e saíam das páginas, as beiradas já comidas. Dava vontade de vomitar, e deixei cair a porcaria no chão. Indiferentes, os bichos faziam o seu trabalho, devorando palavras e mais palavras. — Não mexe que senão o cupim espalha. — E eu vou deixar esses bichos aí, Felicidade, um bando de monstros se reproduzindo e se alimentando, até quando? Até eles assassinarem a casa toda? — Chama logo a firma. — Que firma? — A firma de dedetização, ora. Os homens só chegaram na hora do almoço. E cobraram uma fortuna para acabar com os cupins. Os livros, não podiam garantir. Prometeram ver o que dava para fazer. Tá certo. Só não aguento mais pagar conta. Primeiro foi o enterro, direto do IML. Caixão, sepultura... Não tinha a menor ideia de como essas coisas eram caras. E olha que já mandei muita gente para o inferno. Acho que os sacanas da funerária me deram uma volta. Se eu soubesse que era mais barato, tinha cremado o corpo. Ia ser até mais bonito, cheguei a imaginar se jogaria as cinzas dela numa ár-

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vore, no mar, no ar, do alto de uma montanha ou, quem sabe, guardar num cofre, transformá-la em minha propriedade para sempre. Pelo menos até eu virar um saco de cinzas também. O pó dela misturado com o meu, que bobagem romântica. Só que não deu, ninguém se lembrou disso na hora, e eu, obviamente, optei pela solução mais cara: pagar caixão bonito, buraco no cemitério, lápide, essas coisas. E logo agora que a gente está cheio de dívida. A gente estava. Agora, estou eu. Agora estou eu sozinho, com duas crianças para sustentar, fora aluguel-luz-gás-telefone-condomínio-empregada-supermercado-feira e o que mais? Sempre tem mais. Só não tem mais ninguém para dividir o peso de viver. Covarde! Você, que pensava em tudo, não pensou nisso?

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Segundo depoimento Desculpa, onde é que eu parei mesmo? Ah, os livros. O livro. Foi no mês passado que mexi pela primeira vez neles. Logo no primeiro levei um choque. Não, não havia mais cupins. O que mais me intrigou foi a epígrafe, circulada com uma caneta vermelha. O senhor certamente sabe, epígrafe é a... Isso mesmo, uma frase que estava a título de epígrafe. Não, não era título, era epígrafe, aquela frase metida a besta, tirada de outro livro, que o autor usa para mostrar que é sabido ou, sei lá, para adiantar o que vai dizer com as palavras dos outros. Não, não quis ofender. Desculpe, estou nervoso. Posso fumar? Tudo bem, deixa para lá. Enfim, era uma frase que alguém publicou na primeira página de um livro qualquer, eu já nem lembro mais o título, só o autor, não do livro, mas da frase.

Como assim o senhor já leu esta frase antes? Não, não copiei isso de lugar nenhum, não. Ainda não fui contaminado pela doença dela. Vai ver não passa de um clichê.

Se não posso curvar os céus a meu desejo, devo mover o inferno. Não, não foi ela quem escreveu, já lhe disse, era uma epígrafe: foi Virgílio. Como eu sei? O nome dele estava entre parênteses, na linha de baixo. É um desses caras antigos que todo mundo cita, nunca tive paciência para ler. Sou médico, trabalho em hospital público, dou um monte de plantões. Quando chego em casa, só quero cama, entende? Mas minha mulher tinha mania de colecionar essas citações. Até as que saem na revista Caras, acredita? Uma vez, quando a gente estava numa clínica esperando para ver o primeiro bebê no ultrassom, não é que ela tirou um caderninho e começou a copiar uma frase que estava escrita na revista? — Tem vergonha, não, meu bem? Eu perguntei só para implicar. Ela me mostrou a língua, como uma criança, e continuou escrevendo. Onde está esse caderno? — Acho que sei onde — disse Felicidade. Eu já tinha enterrado tudo, tudo, tudo. E, de repente, vieram os cupins, o livro, a citação e a maldita ideia. Aquela frase foi uma mão apontada para fora de uma cova rasa. O resto do esqueleto encontrei vasculhando as páginas dos outros livros, o caderno de frases feitas, as folhas soltas guardadas numa gaveta trancada à chave, dentro de uma bolsa velha, entre as linhas burocráticas de uma agenda, num caderno azul em que ela anotava sonhos. Peças dispersas de um quebra-cabeça impossível de ser montado.

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Posso ir lá fora fumar?

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Prometo que volto logo.

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Obrigado. Pode parecer que eu estou dando voltas, mas é preciso explicar tudo, ou o senhor não vai confiar em mim. O que aconteceu é que acabei ficando muito intrigado. O que teria levado minha mulher a marcar esta frase em vermelho? Que inferno era esse? No que ela transformou minha vida? Ou para onde ela foi, ao me deixar? No dia em que encontrei este livro, fiquei chapado na minha cadeira o resto da tarde de folga, ouvindo o movimento dos cupins, zunidos fantasmas que talvez saibam mais do que eu mesmo sobre essa pessoa que viveu comigo durante sete anos. No chão, vários livros com anotações que eu não queria ler. Nas mãos, um caderno com frases feitas que relutei o máximo que pude em abrir. Temia ver na letra dela o que diziam aqueles olhos tristes, ouvir sua voz me dizer, com palavras roubadas de outros, coisas que nunca teve coragem de me contar. Por quê? Meu Deus, por que você teve de ir de encontro ao inferno a mais de 100 quilômetros por hora? Por quê? Essa pergunta não sai da minha cabeça. Depois disso minha vida virou uma longa e repetida indagação. Uma lamentação. Porque eu a perdi? Não, não apenas. Porque com ela morreram todos os meus sonhos. Os cupins devoraram tudo. O que era bom no passado, com o tempo, se tornou amargo e rançoso. Como o amor, como uma fruta que apodrece. Preciso de um intervalo, preciso sair agora. Por favor, não dá mais para esperar.

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Não, não vou mais chorar. Eu já chorei o bastante para um homem. Mesmo um homem numa situação tão desesperada quanto a minha. Vamos ao que interessa: eu buscava uma resposta para o acidente – sim, eu realmente acho que foi um acidente –, mas folheando aquela droga de livro encontrei apenas outro enigma. Uma coisa meio grandiloquente, bem ao gosto da minha mulher, que era dada a essas frases de efeito. Irritantemente artificial. Por que você não podia ser igual aos outros e viver no mundo real? O que precisava tanto botar para fora, meu amor, como um grito que lhe sufoca o peito? O que você queria me dizer e se calou? É claro que desconfiei que tivesse amantes. Que homem nunca teve este temor secreto? Ela sempre jurou que não. Mas ela jurou tanta coisa. Era algo que não deveria nunca acontecer e pronto. Acho que, como a maioria das mulheres casadas, ela sabia que uma vez ou outra eu transaria com alguém diferente, só para espantar o tédio, mas jamais me envolveria. Um casal deve se bastar. Até o fim da vida. Até que a morte nos separe. Na alegria e na tristeza, ela jurou que sim. Mas ela jurou tanta coisa. Sim, foi oficial, igreja, véu e grinalda. Eu não queria casar, muito menos assim com toda pompa e circunstância. Nem minha mulher, pelo menos era o que dizia. Jurava que, por ela, pegava a mala, levava para a minha casa, e pronto. Até porque metade das roupas já estava lá. Mas os pais, católicos, do interior de Minas, jamais voltariam a falar com a gente se não nos casássemos pelo menos no civil. — Civil? — disse a mãe, com uma voz que oscilava entre a histeria e o choro, quando fui pedir a mão da filha em casamento. É, teve isso, sabe como é família mineira. Lá fui eu, todo confiante, crente que estava abafando, pelo menos me oferecia para casar de verdade, de papel passado e tudo. — Sabe, meu filho, eu já estou velho. A única coisa que queria fazer antes de morrer é levar minha filha ao altar, igualzinho a todos os outros pais, igualzinho. Quem teria coragem de cortar o coração do futuro sogro, ainda mais com três pontes de safena? Mas tem de ser uma festinha bem simples, implorei. — Como? Deixar de chamar minha irmã? E os primos todos, onde já se viu uma desfeita dessas? No final é bom porque vocês ganham mais presente. Assim, graças à minha agora falecida mãe e seus parentes, aos pais e aos parentes da minha mulher, e aos nossos amigos ínti-

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mos, que, depois descobrimos, passavam de cem, a mudança de apenas uma mala de roupas virou um casamento para duzentos convidados-crianças-velhos-vestido de noiva-fraque-igreja-coro-padre-flores-bolo-champanhe-festa-vídeo-fotógrafo-lista de presentes-noite de núpcias-lua de mel e o escambau. Enfim sós. Mas logo vieram filhos-berço-fralda-batizado-escola. E nunca mais sós. Vou mostrar uma coisa que achei no bloquinho de frases feitas. Não, não sei a data. Deve ter sido bem depois da festa, da lua de mel, de os filhos nascerem. Deve ter sido perto do fim. Para falar a verdade, não sei nem se foi ela quem escreveu ou simplesmente copiou. Não me consta que fosse fã de poesia. Leia isto.

Depois que disse sim ao ideal dos padres, nunca mais a vertigem do primeiro toque, do primeiro beijo, das primeiras noites. O coração parecendo desmanchar em brasas. Só o frio do já acontecido. O eterno retorno do mesmo. Aquilo me pôs em alerta. Saí a vasculhar tudo. Na última página em branco de um livro aparentemente inócuo, encontrei algo que me deixou ainda mais perturbado. O livro em si era interessante, gosto de História, é melhor do que essas baboseiras inventadas que a gente lê por aí ou assiste nas novelas. Este dizia que até o século XII o amor não existia. Imagine só, uma palavra até gasta de tão usada. Então falavam sobre o quê? Sim, as pessoas transavam, se casavam por vários motivos, talvez se apaixonassem, mas esse desejo não era nem de longe especial. Animais também cruzam, é ou não é? Por isso, os artistas que inventaram essa baboseira de amor tiveram de buscar no vocabulário dos padres e dos guerreiros as palavras que iriam usar para tentar explicar este maldito sentimento: adoração e conquista, por exemplo. O que isso tem a ver com as palavras que minha mulher rabiscou neste livro? Nada, tirando que eu a adorei mais do que tudo o que conquistei na vida. Trouxe aqui na minha pasta para o senhor ver se estou maluco. Olhe bem o que achei anotado com a letra dela na última página e me diga:

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Será possível passar os anos desejando aquele corpo que vai envelhecendo, engordando, tornando-se flácido? Será que neste desejo não está implícita uma suave gratidão por estarem fazendo o mesmo por nós? O conforto de estar com alguém cujos caminhos são conhecidos, as arestas arredondadas (será por isso que engordamos?) também despertam uma espécie de desejo. Claro que sim. Claro que não. A mão tão conhecida que penetra a blusa e toca o seio parece não causar mais nenhuma reação. O roçar de corpos, de línguas, tem um ritmo tão monótono que, quando se vê, já estamos voando em divagações, esquecidos do corpo que trabalha automaticamente. Não mais uis nem ais, a não ser forçados, amplificados na esperança de causar algum efeito. Às vezes, brinco de pensar que aquela boca que me beija não é a sua. Um amante, outro homem é quem beija meus lábios e me invade com a língua. Passo a prestar atenção nos detalhes. Concentrada. De repente, me vejo ali inteira e, por oposição, quão longe eu estava. Vejo que seu beijo, o mesmo, o do outro, é bom e me dá tesão.

O que essa filha da puta pensava da vida? Que eu também não tinha desejos secretos? Que eu não sonhava com uma, duas mulheres, uma suruba inteira, enquanto ela dormia? Depois de muitos anos, o amor serena, o casamento fica morno, todo mundo sabe. O senhor é casado? Tente compreender o que estou falando. Quando a paixão esfria, dá certa preguiça de transar. Mas isso não é totalmente ruim. Eu, que agora experimento uma mulher por noite – não todas as noites, claro, porque não sou de ferro e tenho os plantões, mas muitas vezes rola mesmo é durante os plantões –, sinto falta daquela sensação boa de abraçar um corpo conhecido em seus mínimos detalhes, sentir o cheiro da pele dela no meu travesseiro, ouvir sua voz me dando “bom dia” todos os dias e dizendo “durma bem, meu anjo” todas as noites. Eu não sou um anjo, nunca fui. Mas tem hora que a gente percebe que morno é bom. Não é frio como dormir sozinho numa noite chuvosa. Nem tão quente que possa queimar todos os seus sonhos, planos, navios de uma hora para a outra. Já fiz muita merda no hospital por causa de uma noite ardente, quase matei um paciente, não há santo que resista a passar a noite em claro. E olha que eu era jovem quando conheci aquela que jurava ser a mulher da minha vida, não tinha nem 25 anos. Era um bobalhão. Desculpe, eu estou divagando, eu sei. É por isso que eu não gosto de pensar nela. O problema, acho que já disse isso, é que eu penso nela todos os dias. Mas minha esposa não pensava como eu. O idiota aqui dormia como uma pedra ao lado de uma mulher em chamas e nem percebia. Onde é que eu estava quando ela escreveu isso? Em algum plantão ou exausto nas poucas noites que podia dormir a seu lado? O pior é que nem tenho certeza se ela copiou ou escreveu esse negócio por conta própria. Ela se disfarçava, eu sei. Só não sabia quanto. Dá para entender? Mexer nos seus livros velhos foi como abrir uma caixa-preta depois da queda de um avião. Ver pouco a pouco as nuvens negras se aproximando, as reações ensandecidas, os erros que levaram ao desastre. Voltar os ponteiros do relógio até o ponto em que tudo começou, sem saber ainda que uma brisa leve daria origem a uma tempestade, uma frase banal a uma tragédia. E se, por uma pequena mudança de curso, um breve atraso, um telefonema dado, um beijo mais longo, um pouco mais de compreensão, ela não tivesse morrido?

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Terceiro depoimento Bem, acho que nada do que disse até agora interessa ao senhor. Não vou mais fazê-lo perder tempo. Sejamos práticos: não, ainda não vi a cor do dinheiro. Posso levar tudo em dobro, porque foi um acidente, não morte natural, mas também posso não receber nem um tostão. A seguradora não quer me pagar. Suspeita de suicídio. Suspeita de que ela tenha feito uma apólice altíssima exatamente um mês antes da batida já pensando em receber o pagamento logo adiante. Receber, isso soa como brincadeira. Como ela pode receber algo para o qual teria que morrer? Que tipo de pessoa faria uma coisa assim? Uma mulher com um marido e dois filhos para criar? Acho difícil. Já deu para ver que ela não pensava muito em nós. Então para que o sacrifício? Sim, nós tínhamos muitas dívidas. Ah, me diga quem não tem? Ainda mais pessoas que começaram de baixo, como nós. Minha família não tem grana, nunca teve, minha mãe morreu e não deixou nada. A dela muito menos. Gente do interior. Meu salário é uma merreca, eu dou plantão num monte de hospitais para pagar as contas. Enquanto isso, o aluguel aumenta, o supermercado aumenta, o colégio aumenta, até o salário da anta da Felicidade aumenta. Não vou ficar aqui chorando miséria. Mas que tem horas em que penso em desistir, tem. Agora a companhia de seguros está empenhada em provar que foi suicídio. Os técnicos avaliaram o carro, sem marcas de batida, problemas no freio ou na direção. Viram o asfalto, nenhum sinal de freada. Examinaram a posição do corpo dela, sem o menor esboço de reação, nem aquele reflexo instintivo para proteger o rosto que todo mundo, ainda mais uma mulher, tem. Ela não tinha tomado remédios nem bebido, os exames mostraram. Nenhum problema no coração ou no cérebro, uma isquemia ou um aneurisma. Então os técnicos concluíram que encarou uma árvore agarrada ao volante a mais de 100 quilômetros por hora porque quis. Bem, certamente porque a árvore passou correndo na frente dela é que não foi. Não, eu não acredito que tenha sido suicídio, não posso acreditar nisso. Acho, com todas as minhas forças, que ela dormiu. Tudo bem, eu sei, era no final da tarde, um horário improvável. Ela não tinha doenças neurológicas nem narcolepsia. Mas ela pode ter cochilado ao volante. Por que não? Sabia vagamente que ela tinha um seguro de vida, mas para falar a verdade nem pensei nisso no dia do acidente. Teria economizado o que gastei com o enterro usando o tal auxílio-funeral. Só

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lembrei depois, foi a empregada quem me avisou. Minha mulher deve ter comentado com ela. A Felicidade é burra, mas tem uma memória de elefante. — Filha da puta! Escrota! Desgraçada! — O senhor me desculpe, mas não devia falar assim dela. A patroa era um anjo, uma santa. Deixou o que tinha e o que não tinha para a família. — Que história é essa, Felicidade? — O seguro. — Que porra de seguro é esse? Onde está isso? — Deve estar naquela pasta de papelada importante que ficava lá no alto do armário. Quer que eu procure? Ela achou rapidinho. A Felicidade é uma rata, cavuca tudo até achar. Ela nunca desiste. Eu não tinha a menor ideia de que era um seguro tão alto. Não, também não sabia que a conta dela no banco estava de novo para lá de estourada – a gente desistiu de ter conta conjunta no ano passado, quando ela arrebentou o limite e perdemos o cheque especial. Não, também não tinha a menor ideia de que o cartão de crédito tinha sido cortado e o nome dela tinha ido parar no SPC. É, o senhor deve estar pensando, eu não sabia de nada. Mas nada disso é motivo para alguém se matar, ou é?

Preciso ir lá fora fumar. Um pequeno intervalo, pelo amor de Deus.

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SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS Agora que você já tem, pode viver mais tranquilo ao lado de quem você ama. Caro(a) cliente, Antes de mais nada, queremos dizer que é um prazer para nós receber você como nosso segurado. Com um seguro de Acidentes Pessoais, agora você e sua família podem contar com toda tranquilidade e segurança que merecem.

Voltando ao assunto: a primeira coisa que vi foi a carta da seguradora. Dava vontade de rir. Achei que era sacanagem desse gerente, ou vice-presidente, vá lá, um burocrata bunda-mole qualquer. “Agora você pode viver mais tranquilo ao lado de quem você ama.” O cara escreveu isso para gozar com a minha cara, só pode ser. “Agora você e sua família podem contar com toda tranquilidade e segurança que merecem.” Como, se não há mais você, não há família, não há tranquilidade possível? Não há mais nada, está tudo acabado. Olhe, aqui está escrito:

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Atenciosamente, Vice-presidente de Seguros

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Claro que tenho interesse em receber o dinheiro do seguro. Fiquei horas sonhando com o valor. Quanto seria necessário para pagar todas as dívidas, comprar uma casa bacana e jogar fora todos aqueles objetos que me paralisam minuto a minuto, na lembrança de algum momento dividido entre nós? O senhor não pode imaginar: desde que minha mulher morreu, um prato não é mais um prato, é a memória de um almoço qualquer em que, confiantes no futuro, fazíamos planos sobre o nosso primeiro filho; uma mesa não é mais uma mesa, são nossas idas a várias lojas, as horas que levamos para escolher, as dívidas malucas que fizemos porque acreditávamos que merecíamos o melhor. Depois que ela se foi, eu ainda a sinto presente, crescendo a cada dia, encantadora, enorme, magnífica. Meu amor, sem o desgaste da rotina, ganha um milhão de vezes a sua força. Ela se faz ver pela ausência, pelos objetos paralisados no mesmo lugar onde estavam, como rastros que ficaram sobre a terra. Pode parecer um absurdo, mas eu tenho saudade até dos sacrifícios que fizemos juntos para comprá-los. Mesmo que tenha sido para nada. Entende por que eu preciso jogar tudo fora? Com esse dinheiro, eu finalmente poderia deixar essa história para trás e começar uma vida nova. Talvez até abrir um consultório para deixar de ser escravo de hospital público. Comprar um carro daqueles grandes e sumir para um montanha bem longe. Se daria para tudo isso? Bem, eu li umas cinco vezes a apólice e o “Manual do Segurado”. É um tal de dentro dos limites das cláusulas, consoante com o que foi definido no item x ponto y ponto z posterior. Ou no item y ponto x ponto y anterior. Páginas e mais páginas e nada do que eu queria saber: quanto valia a minha mulher? Sinistro. O manual me dizia que tinha ocorrido um sinistro. E me listava uma porção de documentos para apresentar. Cópia autenticada disso e daquilo, certidão, laudo, inquérito. Riscos excluídos: o quinto, em algarismos romanos, suicídio. É por isso que estou aqui: para provar que ela não tinha motivos para se matar.

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Pode perguntar o que quiser.

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Sim, nós estávamos mal de grana, não vou negar. Desde que nosso segundo filho nasceu, minha mulher passou a trabalhar em casa, como tradutora. Tinha época que pintava trabalho, tinha época que não. Mas nem era com ela. Parecia que ganhava milhões, ou que era casada com um daqueles executivos de multinacionais para quem trabalhou durante anos, tudo caro, dos sapatos aos brincos, presentes para as crianças, viagem, carro. Eu deixava rolar, tinha mais o que fazer do que controlar cartão de crédito dos outros. E confesso que gostava daquela boa-vida, de morar em prédio de bacana, de usar camisa de loja chique, de me encostar em móveis de design, até obra de arte na parede a gente tinha, umas gravuras, é bem verdade, mas assinadas e numeradas. Era uma forma de ela se livrar do passado, das amigas que a esnobavam na escola de ricos. Eu, que nunca tive nada, minha família sempre foi fodida, achava tudo ótimo. Mas não sei por quê, não sei a partir de que ponto, não sei por culpa de quem ou mesmo de que governo, fomos andando para trás, regredindo, dando errado. Sem meio de nos segurarmos, caímos no abismo. E depois soltamos nossas mãos. Sim, estávamos atolados em dívidas. Não, não acho que ela seria capaz de vender sua alma ao diabo para nos tirar dessa. Então, numa folha solta da apólice de seguro, encontrei o que eu queria. Cifrões, muitos cifrões. Mais zeros do que eu jamais tinha visto. Contei várias vezes. Não estava enxergando bem. Como minha mulher podia valer tanto? É uma grana preta, que vai resolver a minha vida e resolveria, tenho certeza, a de muita gente neste país de pobretões muito piores do que eu. Devia estar vibrando, não acha? Então por que estou desse jeito, pode me explicar? Sei que posso nunca ver a cor do dinheiro. E tudo isso não passar de uma ilusão idiota, que ainda me dá alguma esperança de voltar a viver. Se duvidar, podem até dizer que eu fui culpado de tudo, que eu atazanava tanto a vida dela que não teve escolha a não ser se matar. Ou, até pior, inventar que fui eu quem teve a ideia de dar um golpe e pegar o seguro. Quer saber? No fundo, sou indiferente. Sei que não há prêmio de consolação para mim. Vou confessar: o que toda esta história fez foi destampar a lâmpada de Aladim e deixar sair um gênio do mal, aquele que desfaz um a um seus sonhos em vez de realizá-los. No mundo real não tenho sonhos, só pesadelos. As contas do novo mês estão próximas de bater. O aluguel atrasado, o salário da empregada também, talvez seja o caso de não pagar o colégio das crianças de novo. No cartão de crédi-

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to, tem uma dívida enorme que não para de crescer. Pior que a minha, só a dela, somada ao empréstimo que fez para pagar as antigas. Mas foda-se o nome dela no SPC, quem se importa? Morreu, babau. O que importa é hoje: a conta da dedetização, a conta do supermercado, o pré-datado que bate esta semana e eu tinha me esquecido. O dinheiro não dá, o dinheiro nunca vai dar. O fato é que mal recebo o pagamento e a grana já foi embora. E aí fico esperando o mês passar correndo para receber a ração de novo. Com o senhor também é assim? Percebe que é um absurdo torcer para o tempo ir mais rápido? Quando a gente dá por si, já não tem mais 25 anos, nem mesmo 35, e não conquistou absolutamente nada. Cumpre as tarefas e não sobra tempo. Paga as contas e não sobra nem um tostão. E lá se foi embora a juventude, ajudada pela pressa em ver o dia do pagamento chegar. Deve ser por isso que meus colegas que se especializaram em cirurgia plástica estão ricos, e eu aqui, nessa pindaíba. Eles estão preocupados em fazer o tempo parar. Isso, sim, dá dinheiro. Cheios da grana, carrão importado, peruas saradas e esticadas a tiracolo, quando não uma mocinha... Não precisam rezar para o fim do mês chegar logo. Minha especialidade? Sou clínico geral. Mas hoje me sinto como um médico legista. Vasculho cadáveres.

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Quarto depoimento Acompanhe meu raciocínio. Quando a gente é jovem, os sonhos são grandes e as exigências bem baixas. Você ainda não tem milhões de contas na caixa do correio, nem um padrão de vida para manter. “Burguesão”, era assim que a gente chamava na época da faculdade o sujeito que só pensava em dinheiro. Mas, ao contrário do que você acredita aos 20 anos, a vida não nos dá muitas oportunidades. Vacilou, dançou. A coisa mais fácil do mundo é virar looser. E um belo dia a gente descobre que nossa vida é apenas uma sucessão de minutos depois de uma decisão errada. Sem direito a voltar atrás. Uma das frases que ela sublinhou num livro resume muito bem isso: “A arte de perder não é difícil de aprender.” É verdade, eu até decorei. Também perdi tudo. E, no entanto, não estou aqui falando com o senhor sobre o dinheiro que posso ganhar, ou talvez perder, sem jamais ter colocado a mão nele? Só quando se tem casa e filhos para manter é que você percebe que está sempre em dívida com você mesmo. Não dá para simplesmente viver. A gente paga para respirar, a gente paga para comer, a gente paga para morar. A menos que entre para um monastério ou um presídio. Deve ser por isso que tantos saem e voltam com o rabo entre as pernas — são os únicos lugares em que você não paga para viver. Certo, ninguém trabalha porque gosta, mas porque precisa. Se não fosse assim, não pagavam a gente, não é mesmo? Mas minha mulher achava que não, estava em busca de “realização”, de “expressão”, veja só, eram as palavras que ela mais sublinhou em seus livros. Sublinhou, não, circulou-assinalou-copiou-decorou, repetiu milhares de vezes olhando nos meus olhos, enquanto falava dos projetos que nunca chegaria a realizar. Eram as coisas mais importantes do mundo para ela. Nem o dinheiro que chegou a ganhar e torrou, nem eu nem nossos filhos, nada foi suficiente. Eternamente insatisfeita. E olha que eu dei tudo, tudo o que tinha e o que não tinha, para aquela mulher. Lembro que os primeiros meses depois que deixou o emprego foram pura festa. Nunca esteve tão feliz. Depois veio a espiral vertiginosa de decadência, falência e ruína em que me encontro. A derrocada. Vender o que se tem, contar as moedas no ponto de ônibus, dias e mais dias fazendo cálculo, saldo devedor extrapolando qualquer limite do pagável. Uma conta que não fecha, um buraco que só cresce. Enquanto isso, ela anotava seus pensamentos, como se eles fossem valiosos. E, por valerem alguma coisa, merecessem ser registrados.

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Eu não vi na época, mas isso foi o começo de uma bola de neve: raspar o limite do cartão de crédito para pagar a fatura do mês anterior. Não deu este mês? Raspa o limite do cheque especial. Pega dinheiro na financeira. Aí vêm os juros. E juros sobre juros. Vende o carro. Desiste do financiamento do apartamento na planta, perde o dinheiro de entrada. A arte de perder não é difícil de aprender. Na minha vida, o saldo é sempre negativo. Já devia ter me acostumado. Encontrei um livro na biblioteca dela que falava disso. Até sublinhei. Olhe aqui, trouxe para o senhor ver.

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Claro, a vida é toda ela um processo de derrocada, mas os golpes que, somados, formam o lado dramático dessa obra de decomposição – os grandes e súbitos golpes que vêm, ou parecem vir de fora –, aqueles de que nos recordamos e pelos quais lançamos a culpa às coisas, aqueles que, em momentos de fraqueza, confiamos aos nossos amigos, não revelam seus efeitos no mesmo instante em que nos atingem. Há outra espécie de golpes que vem de dentro – que só sentimos quando já é muito tarde para fazer alguma coisa, quando acabamos por perceber que nunca mais seremos aquilo que fomos. A primeira espécie de derrocada parece ocorrer depressa; a segunda acontece quase sem nos darmos conta, mas é percebida subitamente.

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Assim como o cara que escreveu este livro, um dia percebi que minha vida sustentara-se de recursos que eu não possuía; eu estivera apenas hipotecando-me física e espiritualmente até a raiz do cabelo. Depois que vi tudo se esfacelar, fiquei revoltado; pior, amargurado, invejoso, cruel. Quer saber mais? Ressentido, sim, essa é a palavra exata. Como esse escritor que conseguiu botar em palavras bonitas a dor que eu sentia, dormia agora sobre o lado do coração, pois sabia que, quanto mais cedo o cansasse, mesmo um pouco que fosse, mais depressa chegaria à hora abençoada do pesadelo. É quando sonho com minha mulher. Este livro tem cheiro de guardado, como se tivesse sido comprado num sebo. Mesmo assim, coloquei-o na mesa de cabeceira. Queria ter conhecido o autor. Entre vivos e mortos, é o único sujeito com quem conseguiria conversar hoje em dia. Ele me deu uma boa dica, vou ler para o senhor:

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A cura normal para alguém que está por baixo é observar os que são vítimas de sofrimento físico ou da mais completa miséria — uma panaceia universal para a depressão, em geral, e um conselho bastante salutar para o cotidiano de qualquer pessoa.

Concordo. É o que eu faço dia após dia. Chego a ficar com vergonha de falar na minha miséria quando vejo aqueles infelizes chegando àquele hospital fedido, jogados nos bancos, à espera de senhas-remédios-macas-camas-aparelhos-médicos, de qualquer coisa que diminua sua dor, até uma amputação. Meu sofrimento não passa de drama de classe média perto do deles. Não tem como pagar o cartão, Dr. Carlos? Ah, coitadinho. A verdade é que eu posso até ter pena dessa gente, mas ela nunca terá de mim. Nasci entre eles, mas nunca para ser um deles. Mesmo assim, botei esse livro na minha cabeceira. Assim como ele, os livros lá de casa têm cheiro de mofo. E ainda têm o veneno que os dedetizadores jogaram. Sei lá, devo ter alergia a livros. Meu nariz coça, meus olhos ardem. O anti-histamínico me tira o sono. Ou me enlouquece, como se estivesse febril. É um efeito colateral previsto para a pseudoefedrina, como médico eu estou cansado de saber. Mas é um inferno. Não durmo. Deliro, num estado entre o sono e a vigília, tenho pesadelos cinematográficos e tento mudar de canal. Imagino estar acordado, mas as imagens se embaralham sem controle, como um filme que passa rápido demais. Minha mulher aparece, numa maca, ela vai dar à luz nossa filha mais velha, mas eu não vejo a criança, só sangue, sangue, a maca cheia de sangue, ela numa piscina de sangue. Corta. Ela agora está num campo, nosso filho menor no colo, um cachorrinho se aproxima, ela brinca com ele, que pula sobre a criança, ela empurra o cão enquanto suspende o bebê. Corta. Ela grita comigo e chora convulsivamente porque lhe dei de presente um vestido sexy e ela odeia o seu corpo, nunca gostou, ela se acha gorda e flácida. “Você não me vê como eu sou?”, me pergunta aos berros. “Você nunca vai me conhecer?” Só de manhã consigo afundar no sono e desperto com falta de ar, como se tivesse mergulhado a uma profundidade perigosa e voltado sem fazer descompressão. O peito queima, uma mancha de dor se forma à altura do coração. Com os olhos abertos, o ar volta a entrar pela traqueia, esta espécie de mancha no peito se liquefaz, e eu vejo que minha mulher não está mais ao meu lado. É por isso que não durmo mais. Sim, eu estou tomando ansiolíticos-antidepressivos-remédios para dormir-cerveja-cachaça-vodca, o escambau. Já nem sei mais quem sou fora desse estado alterado, meio zumbi, em que vivo anestesiado. Não me importo com mais nada. Não estou nem aí, para falar a verdade. Minha indiferença em relação ao mundo que me cerca virou uma doença.

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Sei que realmente tenho de sair dessa se quiser seguir com a minha vida. Tenho as crianças para cuidar. Ainda sou relativamente jovem, posso me casar de novo, quem sabe? Não, não tenho ninguém em vista. Não tenho futuro, só o agora. Agora eu tenho muitas mulheres, uma para cada dia, se possível, evito repetir. Elas se apegam, grudam, cobram. Não quero mulher nenhuma, na verdade o sexo me basta. Para mim ficou claro: qualquer esperança é um grande engano. Estou fora. O pior é que de vez em quando me vejo, como ela, usando palavras dos outros para dar forma ao que permanece mudo em mim. É um vício. Folheio a pilha de livros ao acaso. Não me importa quem escreveu ou quando. Só me importa se é útil. Quando criança, minha mãe, que era carola, me ensinou esse truque: quer fazer uma pergunta a Deus? Pegue a Bíblia ao acaso. Passeie os dedos nas páginas, de olhos fechados, e pare quando sentir que é a hora. Nos livros da minha mulher, voltei a praticar essas velhas técnicas de quiromancia literária em busca de alguma resposta. Confesso que nunca funcionou, a Bíblia não tem muita utilidade para um garoto mais interessado em questões do corpo do que na metafísica da alma. Mesmo assim ainda mantive essa superstição. As pessoas não fazem perguntas às cartas, aos búzios, ao I Ching? Pelo menos os livros respondem com palavras, e não ideogramas idiotas. Hoje mesmo encontrei uma frase interessante na Bíblia, que sublinhei e anotei no caderno onde tento reunir os fragmentos sem sentido deixados pela minha mulher. Aqui está: Deuteronômio, XXXII, 35. “Minha é a vingança e a recompensa.” O problema é que não acredito em recompensa, nem em acaso, nem em destino, nem em coincidências significativas, nem em sorte, nem em Deus. Para falar a verdade, nem em inconsciente eu acredito. Então, o que tanto pergunto a esses milhares de livros que me encaram dia após dia? Que respostas eles podem me dar que eu já não saiba de antemão, como o marido que suspeita ser traído e manda grampear o telefone da mulher? O senhor conhece algum caso em que um coitado como esse não tenha descoberto o que mais temia encontrar? Até agora não encontrei nenhum indício nos livros. Apenas uma frase misteriosa no final de uma agenda sem telefones: “Para enganar com elegância, é preciso rodear-se de verdades parciais.” Se foi o que ela fez, não sei. Na descrição de sua rotina, nos meses e dias que antecederam o acidente — sim, eu insisto que foi um acidente —, não há nada além de telefonemas de trabalho a serem dados, listas de compras que a empregada deveria fazer, horário do

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médico dos meninos, datas limites de contas que deveriam ser pagas. Não encontrei nada. São justamente as lacunas que me incomodam. O que não foi dito. O que minha mulher tinha pra fazer em 6 de fevereiro de 1985, quando escolheu o caminho errado e encontrou o fim da linha? Por que a página está em branco? Para onde ela ia quando pegou a estrada errada? Não contente, fui procurar todas as agendas e cadernos de telefone que, desde os tempos de solteira, ela guardava não sei para quê. Ler essas páginas já amareladas, marcadas com a letra dela, foi como ver fotos antigas de uma época em que eu estranhamente ainda não existia. Quem eram Ana Claudia, Alva, Antonio, Aurora, Andréa, André Luis, Dra. Angela? Quem é esse tal Alberto, que mora ou morava na rua Rainha Guilhermina, 275/205? E Bia, que morava na rua Santa Clara, 192/103? De onde vieram e para onde foram essas pessoas que cruzaram com minha mulher, em algum momento de suas vidas? Beth, Bruno, Carlos Antonio, Carmem, Cássia, Claudia, Christine, Chang, Darci, Enewton, Eleanor, Flavio, Fernanda, Fábio, Graça, Gabriel, Horácio, Ieda, Isabel, Juca, Julia, José Carlos, Jane, Jorge, Juliana, Joyce, quem são? Não conheço nem nunca ouvi falar dessas pessoas que de alguma forma fizeram parte da vida de uma mulher que eu julgava minha. Pensei em ligar um por um, talvez se lembrassem de alguém que há vários anos tivesse cruzado com eles, em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, e ganhado tal intimidade que chegaram a trocar telefones. Ou, quem sabe, houvesse entre todos estes nomes, sem qualquer marca especial de caneta, algum amor não correspondido, uma paixão malresolvida, ou até mais do que isso. Alguém que pudesse explicá-la para mim. Maria Alice, Marcio, Marcelo, Marina, Marcos André, Maria Clara, Paul, Paula, Patrícia, Priscila, Ricardo, Rogério, Renata, Roberto, Silvia, Sonia, Silvio, Tânia, Tony, Viviane, Zé. Não adiantava ligar, são telefones de sete números, envelhecidos, certamente trocados ao longo dos anos, que de nada valiam. E, também, o que eu iria dizer? Acho que, se não encontrei nada, deve ser porque não fiz a pergunta certa aos livros. Hoje pouco me importa saber se fui ou não traído. O que me tortura é não saber se fui amado. Não, talvez a pergunta também não seja esta. O que eu quero saber é onde a derrocada começou, qual o exato minuto, qual a palavra errada, que gesto inadvertido precipitou o fim? Busco aquele efeito retroativo dos vídeos capaz de me levar até o ponto que deu início à contagem regressiva.

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Preciso traçar um mapa, uma linha do tempo. No fundo, esta é a minha obsessão: achar as coordenadas do caminho secreto tomado por minha mulher. Como um cego, tocar com meus dedos a verdade.

Podemos voltar a conversar outro dia? Já tomei muito do seu tempo e tenho hora.

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Quinto depoimento Desculpe se cheguei tarde. Mas quando se pode dizer que é tarde demais? Que eu saiba, as dimensões do tempo são passado, presente e futuro. Mas tarde demais é outra coisa. Tarde demais é isso: um ponto do qual não há retorno. De repente para mim ficou tarde demais. Ela morreu. E eu? E eu? Por acaso sobrevivi? Se não fosse tarde demais, eu daria meus sonhos e meu orgulho em troca da redoma de vidro em que eu vivia e foi rachada em mil pedaços por um pontapé. Quero de volta minha alma e junto minha fé de que tudo ia dar certo, a certeza de que eu seria feliz. Mas sei que não existe review nem rewind na vida real. Não existe passo atrás, porque o caminho se perdeu tão logo foi pisado. Ainda não sei por que não inventaram uma máquina do tempo, não para conhecer o futuro, mas que funcione como um relógio que ande ao contrário, que nos permita apagar os erros, corrigir as escolhas passadas. E se... e se... pergunto o tempo todo. Coisas ruins não deveriam acontecer às pessoas boas, dizem. Sempre fui uma boa pessoa. Ninguém tem o direito de desconfiar de mim só porque posso ficar rico com a morte da minha mulher. Tirando alguns erros médicos bobos, ninguém é perfeito, nunca fiz mal a ninguém, muito pelo contrário. Ajudo o próximo, salvo vidas, sem cobrar nada em troca. Só não fui capaz de salvar a dela. Nem a minha. Hoje eu sou um homem destruído, meu amigo. Arruinado. Perdido. Nada pode me salvar. Se ao menos eu pudesse voltar a última fita de vídeo em que aparecemos juntos, saberia o que eu fiz para merecer um sofrimento assim. Eu achava que era uma pessoa boa. Mas nunca passei de um fraco. Quer deixar o trabalho? Conte comigo, meu bem. Quer ser artista? Conte comigo, meu amor. Eu ali, numa cadeira perto da janela, sorria. Finalmente o brilho infinito do meu amor seria reconhecido, em vez de todos os meus defeitos, cotidianamente apontados, com o dedo em riste. Eu disse a ela: “Seu destino é ser uma grande mulher.” Por quê? Como? Não me pergunte, mas eu sabia disso desde a primeira vez que a vi. Será que estava superestimando seu valor? E se ela estivesse muito aquém do que eu imaginava? Na hora, cedi tudo o que tinha, todos os frutos do meu trabalho, nossa mísera poupança, sem pensar em nada. Não queria cortar o seu barato, incomodá-la ainda mais com as dificuldades da vida real. Disse a ela que não precisaria mais se responsabilizar por seu sustento. Eu seria uma espécie de pai e a manteria. Nós seríamos um só, uma só conta. Não haveria o meu e o seu. Mas o meu não era

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o bastante, qualquer um que soubesse somar um mais um saberia que a coisa toda era maluquice. Não a avisei, pensei que ela soubesse, que para dar este salto no escuro teria de renunciar aos grandes e pequenos prazeres, às roupas caras, ao apartamento no bairro chique, ao carro, às coisas que sustentavam sua autoconfiança e àquela certeza de que não era mais a menina pobre do colégio. Aquela que não era tão bonita quanto as outras, nem se vestia tão bem, nem tinha motorista, nem era sócia do clube, nem tinha fazenda, casa bacana ou viajava para o Rio nas férias. Excluída das patotinhas, das paqueras, dos passeios. A garota que passava o recreio sozinha, caminhando rápido pelos corredores como se alguém a esperasse em algum lugar, apenas para disfarçar sua solidão; que só falava com outras meninas tão curvadas quanto ela. Mas que ainda assim intimamente se julgava superior. Lá no fundo sabia que sofrimento era a matéria-prima com que construiria sua grande obra. Por isso, ela dizia, acabou gostando de literatura, “a mais pobre das artes”. Bastava um papel e uma caneta. Mais tarde, uma máquina de escrever ou um computador. Ela se deliciava vendo cada uma das letras marcando a folha em branco. Toc, toc, toc. Adorava aquele som. Mas o fantasma da folha em branco também a torturava. Ansiava pelo momento de estar a sós com ela tanto quanto temia não ter nada de significativo a dizer. Acabou arrumando um emprego de datilógrafa. Inteligente, sabia inglês, foi subindo, subindo, subindo. Atendia a telefonemas, organizava agendas, administrava problemas, manipulava chefes autoritários. Cada vez mais eficiente. Cada vez mais fria. O senhor acredita que uma secretária executiva ganha mais do que um médico? Pois é verdade, o salário dela era quase o dobro do meu. Não tínhamos problemas com isso. Todos os dias essas faculdades de merda despejam no mercado centenas de médicos tão medíocres quanto este que vos fala. Mas uma executiva que se disponha a ser secretária de algum idiota não é fácil de achar por aí, não. E ela logo percebeu isso. Só que isso não era simples. Minha mulher sempre se sentiu privada de alguma coisa, amarelando sob as luzes fluorescentes do escritório. E foi então que teve a grande ideia de tentar ser alguém, de expressar sua verdade interior e toda essa bobagem que dizem os artistas. Respirar, escrever. Para ela, as duas coisas eram sinônimas. Mas quando digo escrever, não me refiro a qualquer coisa. Ela tinha grandes expectativas. Queria escrever algo que colocasse em palavras o sentimento do mundo. Mas essa inutilidade que é a lite-

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ratura só lhe deixou mais gorda, mais pobre, mais frustrada. No fim, sacrificou o que tinha e não alcançou o que queria. Sentia falta de ar porque não escrevia. E não escrevia por quê? Porque era uma gata borralheira presa a tarefas sem fim, impedida de ir ao baile que mudaria sua vida para sempre por uma madrasta que arrumava mil trabalhos para ela. Quem a visse falar, julgava que sofria mais do que Sísifo, condenado a levar montanha acima uma pedra que, no dia seguinte, estaria no mesmo lugar de partida. Trabalhar de 9h às 6h, 7h, 8h, 9h, 10h; cuidar dos dois filhos, fiscalizar Felicidade, cuidar da casa – já nem digo cuidar de mim, que eu era a última de suas preocupações – pareciam tarefas hercúleas, ditadas por algum tirano (no caso, eu), com o único objetivo de obrigá-la a dar conta do impossível. Ela se atormentava – e me atormentava – com a ideia de que a vida escorria de suas mãos enquanto se via obrigada a cumprir as prosaicas obrigações cotidianas de qualquer mulher. Mas essa alma artística, que se julgava sensível demais para viver no mundo das pessoas comuns e banais, com seus falsos problemas e dissabores, também apreciava as mínimas condições de segurança, um salário no fim do mês, uma casa, uma família. E não percebia que era esse desejo que limitava a tão sonhada arte. Queria o casamento, mas odiava viver casada. Nunca soube fazer escolhas, abrir mão das coisas. Queria tudo, sem se dar conta de que na vida ninguém saca a descoberto. Tudo tem seu preço. A liberdade também tem um preço. E para alguns ele pode ser alto demais. Sempre achei que quem liberta seus sonhos deve estar preparado, porque vai soltar junto seus piores pesadelos. Só fiquei com medo de avisar e ela ir embora. Mas nem a mais forte das prisões pode encerrar o desejo para sempre. E um belo dia minha ambiciosa mulher resolveu dar fim ao longo período em que se viu obrigada a reprimir seus sonhos sem encontrar satisfação alguma. Ela, que não tinha a menor vocação para trapezista, resolveu dar um salto sem rede. Comprou livros de autoajuda para artistas bloqueados, manuais de como escrever romances, chegou a se inscrever num curso de desenho com o lado direito do cérebro, para soltar a criatividade. Mas, quando o bicho pegou, qual a vantagem de continuar martelando frases otimistas e promessas fantásticas? Palavras não pagam conta, meu bem. Nem o universo conspira a nosso favor.

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Como já disse, ela tinha uma coleção dessas frases, tiradas de horóscopos ou desses livros motivacionais que se acostumou a ler quando ainda trabalhava para executivos que precisavam de constantes empurrões para vender, a única coisa que, no fundo, esses caras sabem fazer. Guardei tudo aqui nesta pasta preta que o senhor está vendo, está tudo aqui. Colei os recortes de jornais que ela separou para fazer deste mosaico um retrato de minha mulher.

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Toda vez que você duvida da possibilidade de se dar bem, na verdade confia muito mais na de se dar mal, até aposta a favor dessa perspectiva, a despeito disso fazer com que sua alma sofra, mordendo-se de ansiedade.

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Uma teia de ilusões empata seu progresso. Uma bola de chumbo não deixa você decolar.

Sua meta é encontrar a trilha, estabelecer o ritmo da caminhada e iniciar a escalada. As paisagens criativas que se abrem o animarão rapidamente. 44

Mudanças radicais operam-se de cima para baixo, de dentro para fora, por isso são inevitáveis. Ninguém está a salvo de transformar-se. Por isso, quanto mais você facilitar esse processo, melhor aproveitará as circunstâncias.

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Ou você demonstra na prática a que veio, ou tudo continuará sendo teoria, uma linda história até, mas teórica, algo que nunca poderá se provar verdadeiro; ficará como uma lenda a ser transmitida aos descendentes.

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Leve à prática seus sonhos, ouse realizá-los. Sua alma passou tempo demais falando sobre o que faria se não fosse isso ou aquilo. Agora começa o tempo da prática, no qual só valerá a obra consumada.

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Enquanto você se lamenta pelas dificuldades de tudo, o céu continua aberto e disponível para que sua alma deslanche aqueles grandes voos com que sonha desde sempre. Esta não é uma forma sábia de administrar a própria vida.

Sonhar não é problema, mas solução. O problema começa a partir do momento em que sua mente se recusa a elaborar as devidas estratégias de realização, entregando-se a uma injusta e sofrida indolência. 48

As coisas permaneceram tempo demais em estado de suspensão, como se tudo estivesse prestes a acontecer, mas nunca acontecia. Isso, com certeza, não poderia durar para sempre, e agora as comportas da vida se abrem escancaradamente.

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Um recorte me chamou a atenção. Não sei de qual data era este horóscopo, o que teria me ajudado muitíssimo a descobrir qual a conjunção astral que a levou a se afastar de mim. Dizia assim:

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Relacionamentos tendem a tomar outro rumo. Pode ser o dia ideal para cortar de vez uma relação que humilha, frustra e só o entristece. Se a alegria foi embora, se não dá mais para confiar, por que continuar? Perceba como as pessoas se amedrontam diante do tempo. Você não, você confia.

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Deve ter sido pouco antes deste outro:

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Rompimentos nem sempre significarão perdas irreparáveis. Pense assim; às vezes é necessário limpar o panorama de pessoas e objetos antigos, para que o universo preencha esse vazio com novidades e surpresas. 53

O drama é esse: quando a gente é jovem, bonito, acha que tem um futuro de comercial de margarina pela frente. Depois dos 30 anos descobre que vida assim só existe na tevê. Minha mulher queria tudo: lar, filhos, respeito, prosperidade, reconhecimento e algo que nunca soube explicar direito. Uma vez me disse que sentia falta de silêncio e solidão. E que vivia muito aquém dos seus sonhos – fantasias, eu diria. Nossa vidinha de classe média a exasperava, a madame queria mais, muito mais. Assim, de grande amor eu me transformei, de repente, no carrasco. Por mais que tivesse dado força para ela largar o emprego em tempo integral e vendido uma a uma as coisas mais valiosas que tinha em casa para completar o orçamento durante o último ano, ela me via como a pedra no seu sapato. No fundo, acho que a minha presença incomodava porque lembrava o tempo todo o seu fracasso. A julgar pelo que diziam os astros, eu tinha me tornado sua maior amarra.

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Romper com o passado, conquistar alguém, deixar sua marca na história, apostar na fertilidade de ideias, tudo pode servir de inspiração para que você dê passos largos em direção ao que dá sentido à sua vida.

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Só faltava o primeiro passo. Aí ela descobriu um problema básico: não tinha sobre o que escrever. Uma burrice tão grande quanto um empresário abrir uma firma e não ter ideia do que vender. Ela não sabia. Tinha tido uma vida tão desinteressante e igual a todo mundo até então que de nada valeria como matéria-prima. Onde estavam os grandes amores, as grandes dores, de que são feitos os romances? Para piorar, percebeu que faltava imaginação para criá-los. Crises, aventuras, paixões impossíveis, que escritor ou personagem sobreviveria sem eles? Então resolveu experimentar por conta própria. Ou será que tudo aquilo que sublinhou, os trechos que escreveu nas páginas brancas dos livros dos outros, era pura ficção, não tinha nada a ver com a realidade, e eu cometi um grande erro?

Por que o senhor quer ler as coisas que ela escreveu? Só interessam a mim e a mais ninguém!

Vamos terminar por hoje.

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Sexto depoimento Sabe qual é o oposto do reconhecimento? Não, não é o anonimato, é o ressentimento. Mas quem tem culpa pelo nosso fracasso, por termos sido completamente esmagados, a não ser nós mesmos? Em vez de investir numa carreira que lhe compensasse todas as humilhações da infância, dinheiro para consumir tudo o que lá no fundo queria, minha mulher fez o caminho oposto. Ela renunciou a qualquer tentação mundana em troca de reconhecimento. Mas por ter feito o quê? Para ser escritora seria preciso que ela conseguisse escrever, produzir alguma coisa. Como, se ela tinha perdido a voz, se descobriu, assim que se viu livre das amarras – desculpas, eu diria – que a impediam de escrever? Acho que só conseguia falar com as palavras dos outros. Não foi à toa que não deixou obra nenhuma, só livros sublinhados e algumas frases e fragmentos soltos. Também não era à toa que passava a maior parte do tempo traduzindo, traduzindo, traduzindo enlouquecidamente para ver algum dinheiro entrar. Sem sucesso, recuou impotente. No fundo, tinha medo de se pôr à prova, covarde e cúmplice da própria derrota. Tinha medo de se expor ao fracasso. E se eu não for um gênio? E se for uma merda? E se, simplesmente, nada acontecer? Era o tipo de pergunta que martelava na cabeça dela. Temia a decepção em relação a uma certeza antecipada, a de que tinha algum talento especial. “Tudo o que você podia ser”, dizia a música que ouvia em sua cabeça. “Ou nada.” Tudo ou nada: na vida real não é bem assim. Ela se torturava. Um artista é um cara meio narcisista, que quer sobressair, fazer algo especial de si mesmo, se superar. E o que ela estava fazendo da sua vida? Nada. E por quê? Não conseguia escrever porque não tinha vivido de verdade até então. Nosso amor, nossos filhos, nossas pequenas derrotas e vitórias não contavam, eram banais, acreditava. Era preciso mais. Para ganhar o jogo, é preciso entrar em campo para valer. Ela não me contou nada disso. Deixava sua vida interior muito bem-guardada em alguma gaveta fechada à chave, junto com as folhas em branco que não conseguia preencher. Não se abria comigo nem com ninguém. Apenas mantinha as aparências. Chorava trancada no banheiro, onde ninguém podia ouvi-la. Amordaçava a toalha e depois colocava um colírio. E estava tudo bem. Só fui descobrir isso ao folhear os livros. Não, nunca soube se ela tinha ido às vias de fato ou ficado só na imaginação. Pode ser que tenha me traído, vivido uma paixão tórrida com algum desconhecido, só para exercitar as emoções, ex-

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citá-las, inflá-las. Estava de saco cheio das coisas simples, dos sentimentos cotidianos, queria o tumulto, o furacão. “Que venha a tempestade”, ela sublinhou. Disse isso e os cacos voaram por toda parte. Podia ser seu epitáfio.

Desculpe, eu prometi não chorar. Mas não consigo.

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Às vezes eu tenho vontade de gritar: QUE SACO! POR SUA CULPA EU ME SINTO UM MONSTRO DE RESSENTIMENTO. Vivo preso a uma incapacidade crônica de esquecer ou superar. Então me rendo, derrotado, às vozes que gritam dentro da cabeça. Não sou um carrasco, sou uma vítima. Ninguém pode me culpar, afinal, eu não estava no carro, não pisei naquele acelerador, não fiz a curva errada que o jogou contra uma árvore. Toda essa ladainha não é uma expiação, não é! Juro que não é!!! A verdade é que não tenho responsabilidade nenhuma pelo meu sofrimento. Foi ela quem botou tudo a perder. Se alguém teve culpa, não fui eu, foi a literatura. Ela venderia a alma uma, duas vezes, pela literatura. Mas me explique: que droga de desejo é este que não pode ser contido nem saciado? Por que eu não consigo simplesmente esquecer? Apenas uma teimosa recusa em encarar o óbvio? Por que eu me sinto para sempre ligado a esta mulher que me abandonou e cuja perda é tão irreparável que me faz odiá-la e odiar a mim mesmo, todos os dias e todas as noites? Talvez o luto seja o preço que pagamos pelo amor, por termos aceitado compromissos em nossas vidas. Quanto maior o amor, maior a dor ao perdê-lo para sempre. Para falar a verdade, a perda nem é da pessoa em si, mas de algo que nunca mais vai se repetir. Não sei dizer, mas é algo do campo da pureza, da crença ilimitada, da esperança que em algum momento se concretiza nos braços de outra pessoa. É por isso que o fracasso do primeiro amor, daquela paixão em que investimos todas as fichas, marca a perda das ilusões. Depois dele, nos tornamos pessoas amarguradas, com o pé atrás, descrentes. Desaparece o olhar confiante. E o sorriso franco. Mesmo que as feridas não estejam mais abertas, hoje mal posso me olhar no espelho, tamanhas as cicatrizes. Tento não me torturar, carregar todas as dores do mundo, mas conheço bem as minhas. Vira e mexe elas latejam. E aí me sinto pequeno de novo, pobre de novo, oco, com o nervo exposto. Como os mutilados, sinto dor num membro perdido. Quando conheci minha mulher, ela era meu ideal de beleza. Nem tanto pelos traços. Tinha um brilho misterioso no olhar, mas aquele lampejo foi afundando lentamente na lama movediça da desesperança. Por mais que parecessem duas pessoas diferentes, acho que a mulher desiludida que bateu na árvore naquela tarde não era outra senão uma garota triste na infância, ainda que ela tenha se disfarçado tão bem com tailleurs, sorrisos falsos e poses bem estudadas. Ela mesma me deu a chave, numa frase sublinhada de um

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livro que só me lembrava de ter lido no colégio – e detestado: uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. Se eu me sinto culpado? Repito, se alguém teve culpa, foi a literatura. Quem mandou vender a alma ao diabo? Arriscar tudo o que possuíamos em troca de algumas palavras? Nós tínhamos uma vida em comum, filhos, e isso deveria bastar. Mas ela preferiu viver sob o domínio de exigências tão românticas quanto desenfreadas. Era duro conviver com acusações silenciosas de que a compensação por se anular tinha sido insuficiente. Não sei se sua pior decepção foi com a arte ou comigo. Por acaso ela não esperava que um casamento tivesse os laços esgarçados com o tempo, nós difíceis de desfazer e feridas invisíveis? Não, eu nunca meti a mão nela, nunca a maltratei ou abusei dela fisicamente. Sim, nós brigávamos com frequência cada vez maior. Sou um sujeito muito ciumento, devo reconhecer que sou controlador, ela me chamava de paranoico das pequenas causas. Tenho uns acessos de fúria em que me descontrolo por coisas insignificantes, mas passam tão rápido quanto vêm. Se ela não ficasse magoada por qualquer coisa, não viveria tão deprimida. Mas ela bem que gostava de se fazer de vítima. E talvez eu pegasse pesado de vez em quando. Mas a raiva também é uma forma de amor, ou não é? Diariamente, no hospital, atendo mulheres com o olho roxo ou o braço quebrado. Nunca cheguei nem perto de fazer uma coisa dessas. Nossas brigas eram mais complexas, eu muitas vezes a apunhalava apenas com palavras. E ela ia a nocaute fácil, era mole atingir sua autoestima, bastavam alguns golpes baixos para derrubá-la. O casamento às vezes é uma autêntica luta livre, o senhor sabe. Estamos em lados opostos, até na cama. Não gosto de ser contrariado, nem nas pequenas coisas, mas dar alguns gritos é diferente de insinuar que destruí a mulher que eu amei. Quem está insinuando isso? O senhor, com este olhar. No mais, ela conseguiu. Agora estou impossibilitado de me vingar, de feri-la com minhas palavras. Logo agora que eu teria tanto a dizer. Só me resta este papel passivo a que fui relegado até o resto dos meus dias. Minha raiva se volta para mim mesmo quando leio esses livros todos marcados com palavras fortes. Eventualmente eu questionei seu talento. Mas isso não é a mesma coisa que humilhar. Eu só queria que ela se mexesse, largasse essa bobagem de literatura e encarasse a vida real. Dizia as coisas que todo marido diz quando está irritado, eventualmente a xingava com algum palavrão, mas não passava disso. Só queria que ela

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fizesse o que eu sabia que era certo. Isso é bem diferente de manipulação, não é? Era certo cuidar de mim, das minhas roupas, da minha comida, dos meninos. Mas ela deixava tudo no automático, por conta da idiota da Felicidade, que sempre foi a verdadeira dona da casa. Não sabia nem o que a gente ia comer no almoço ou no jantar. Jamais se preocupava se a camisa que eu queria usar estava passada ou não. Tudo bem que, quando me casei com ela, não sonhava com nenhuma Amélia. Sempre achei certo minha mulher trabalhar, ter um emprego fixo, para que pudéssemos ter uma vida mais confortável, viajar, nos vestir bem, investir na educação dos meninos. Era certo cuidar e ser fiel a mim. Ciúmes? Tinha, sim, confesso. Sentimento de posse? Quem não tem? Não se pode confiar no outro. Esse negócio de cara a cara, de o traidor contar tudo para o traído, só existe nos livros. Na vida real, as pessoas mentem muito. Depois de uma separação toda amigável, vamos nos dar bem em nome dos filhos e do amor que se foi, aquela baboseira toda, é que o sujeito vai descobrir que estava sendo enganado. É sempre assim. Quero conhecer o homem que está preparado para ver a mulher com quem subiu ao altar aos beijos com outro num restaurante. Ou ter seus herdeiros, seus genes, sua cara, sangue do seu sangue, criados por este outro. Tenho uma teoria: quando um casamento termina, um homem não perde só a mulher que escolheu. Perde tudo. A casa, os filhos, a fatia da sua vida que lhe coube construir. O amor é o de menos, nesses casos. Perde-se, principalmente, um lugar. É por isso que a maioria dos divórcios é pedida por mulheres. Elas perdem, no máximo, alguém que as sustente ou divida as contas. Nós, os homens, perdemos tudo quando fazemos uma bobagem dessas. Por isso praticamos o adultério lato sensu, como diz um amigo meu, para não praticar a infidelidade stricto sensu. Explico: de saco cheio de transar sempre com a mesma mulher, a gente trai a esposa com qualquer uma que nos lance um olhar mais receptivo, pode até ser uma puta de rua, desde que nada aconteça. Com “nada aconteça” quero dizer envolvimento. Este amigo meu, um pouco mais cínico do que o normal, não entendia por que eu me recusava a transar com uma puta. Eu dizia que não ia pagar, já que tem tanta mulher sobrando no mundo. Aí ele me disse: “Eu não pago para transarem comigo, idiota. Eu pago para elas irem embora.” Acho que isso não era da própria lavra, o babaca não tinha essa originali-

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dade toda, deve ter copiado de algum lugar ou visto em algum filme, com certeza. A pessoas se repetem. Por essas e outras que, no fim das contas, prefiro que ela tenha morrido. O senhor pode me achar um monstro por dizer isso. Afinal, era a mãe dos meus filhos e o grande amor da minha vida. Mas pior ainda seria ser despejado da minha própria casa. Ela ficaria com tudo o que era meu, as crianças, meus objetos, meu lar. E eu na rua da amargura, como um mendigo, só com a roupa do corpo e uma mala debaixo do braço. Isso é injusto, não acha? Perder tudo o que foi construído tão lentamente, passo a passo, de uma hora para outra. Tenho amigos que já passaram por isso. Eu não resistiria. Foi melhor assim. Uma morte é um luto do qual não se tem vergonha. Uma separação é um pequeno terremoto. De qualquer forma, ninguém se livra daquela maldita dor que atinge a todos. Sim, somos irremediavelmente sós. Se o casamento também é uma forma de solidão, ser abandonado é muito pior. Uma vez ela ameaçou me deixar. Foi uma crise feia. Ela, com a eterna frustração: nada era bom o bastante, nada era suficiente, cheia de cobranças internas e externas; eu, com o comodismo: para falar a verdade, depois de um plantão, só quero chegar em casa e descansar. Nunca tive vontade de discutir relação. Não vi que talvez ela estivesse entrando em depressão profunda, achei que um remedinho curaria. Algumas vezes falei mais grosso, dei uns ataques, pensando que resolveria aquele mimimi. Talvez tenha sido muito estúpido. Ela me olhava de um jeito que misturava ódio e desprezo. Não, talvez o desprezo fosse apenas um disfarce para o ódio. Eu tinha vontade de levantar o braço para ver se cheirava mal, sabe como é o cheiro de um hospital público, aquilo entranha em você, pelos seus poros, pela sola do seu sapato. Um cheiro de pobreza, de mijo, de morte. O desprezo dela, especialmente na hora da cama, me fazia sentir como se eu tivesse mau hálito, verrugas, cê-cê e chulé, tudo ao mesmo tempo. Distante, ela se negava e me renegava. Passou a economizar seu coração, parou de se entregar em minhas mãos. Chegou a dizer que não sentia mais vontade de transar comigo, que o meu cheiro a incomodava, que a minha pele a feria, que o meu pau parecia coberto de areia quando entrava nela. Quando eu insistia, ela fazia tudo de forma mecânica, como se estivesse pensando nas compras do supermercado; saía da cama assim que eu acabava e ostentava longos minutos se lavando no banheiro. Era nojo o que

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ela sentia, nojo de mim, da minha voz, do meu suor, do meu esperma. Mas nunca abriu a boca para dizer isso com todas as letras. Descobri um pequeno texto manuscrito, não sei mais no final de que livro, em que talvez falasse sobre isso. Ou teria sido outra pessoa que escreveu e ela apenas copiado? Nunca sei. “Toda vez que eu penso em te deixar, sofro a tua falta. Mas essa dor não se reflete na tua presença ou no desejo por teus beijos e teus abraços, discreta e imperceptivelmente recusados.” “Imperceptivelmente” para quem? Pois saiba que eu me lembro muito bem do jeito com que se virava para olhar bem nos meus olhos quando me encontrava, como eles brilhavam, dos abraços, do cheiro que exalava das nossas noites de amor, do mel que entrava na minha boca. Das fantasias secretas que me contava, quando eu era seu principal confessor. De treparmos alucinadamente, Alice. Por várias vezes achei que, se eu não estava mais ocupando este espaço, alguém tinha roubado a chave. Sim, ela deixou algumas pistas, não sei se verdadeiras ou falsas. E é isso que me mata. Veja a parte sublinhada aqui neste livro que encontrei ontem:

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Só em parte somos sãos: só uma parte nossa ama o prazer e um dia mais prolongado de felicidade, só uma parte quer viver até os 90 anos ou mais e morrer em paz, numa casa que construímos e que abrigará os que vierem depois de nós. Nossa outra metade é quase louca. Prefere o desagradável ao agradável, ama a dor e seu sombrio desespero noturno e quer morrer numa catástrofe que mandará a vida de volta ao começo, nada deixando de nossa casa, senão os alicerces calci65 nados.

O que isso quer dizer? Que ela premeditou tudo? Mas isso vale como confissão na Justiça, por acaso? Não, eu sei que não. Uma coisa é alguém escrever uma declaração dessas e depois acontecer o que aconteceu. Outra é destacar num livro, sabe-se lá quando e por quê. Não há provas e é isso que eu estou tentando provar. Suicídio é apenas uma questão de grau, todos nós nos matamos um pouco todos os dias. Por sinal, não me consta que a verdadeira autora destas palavras que minha mulher destacou tenha se matado.

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Sétimo depoimento Vou lhe contar um segredo: minha mulher podia até ter talento, quem sou eu para julgar, mas não tinha imaginação. Se tivesse, teria escrito vários livros no tempo em que ficou sem trabalhar, em vez de roubar frases feitas. Para escrever, ela precisava VIVER e não simplesmente viver. Por quê? Talvez porque o que lutava para dizer não pudesse ser inventado – precisava acontecer. Mas, para isso, seria preciso que ela falasse, dissesse as coisas com suas próprias palavras, não que as deixasse travadas na garganta. Do jeito que conhecia a vida, apenas como leitora, jamais seria uma autora de verdade. Ela uma vez me escreveu um bilhete, ainda no início do namoro: “Não posso ficar passeando por livrarias. Fico lírica, melancólica, nostálgica de mim mesma. Vejo aqueles livros que eu poderia ter escrito. Se eu conseguisse, seria alguém, pelo menos um pouquinho.” Eu não entendia; para os meus olhos, ela já era alguém. Sempre foi alguém. Mas ela ambicionava ir mais longe. “Além de certo ponto não existe retorno, este é o ponto que precisa ser alcançado”, ela sublinhou. Qual seria este maldito ponto? A paixão, eu diria. Todo mundo sabe que o melhor do amor é o começo. E isso eu não poderia nunca mais oferecer a ela. Se é que um dia, pelo menos no início, ela me amou de verdade. Talvez nosso casamento tenha sido um engano, como quando alguém compra uma roupa que ficava ótima no manequim da vitrine, mas, na hora de experimentar, vê que não cai bem. Quanto maior o preço que pagou por ela, maior a sensação de decepção. Depois, o que nos resta senão pendurar a roupa no armário e deixar lá, por anos a fio, até mesmo tentar usá-la eventualmente, apesar do desconforto que provoca na nossa autoimagem? O preço foi tão alto que simplesmente não dá para jogar fora. Depois que a conheci de verdade, vi que minha mulher secretamente acreditava ser melhor viver intensamente do que ser feliz. Talvez seu desejo insaciável de experimentar uma vida menos ordinária fosse mais importante do que toda a tristeza que causaria. Daí para o precipício da paixão é um pulo. Afinal, o início e o fim de uma relação são muito mais dramáticos e grandiosos do que aquela longa planície central em que vivíamos havia muitos anos. Em seus olhos, sentia uma espécie de tristeza antecipada. Como uma mulher madura, sabia que a paixão, mesmo a mais avassaladora, é apenas fogo. Ela nos faz ver sua morte de frente, porque percebemos que um dia vai acabar, que é intrinsecamente efêmera. Por mais encantado que estivesse, eu sabia que não ia ficar apaixonado daquela forma a vida inteira, nem suportaria. Eu oscilava en-

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tre a euforia e a extrema depressão, entre ver o mundo colorido e não encontrar mais graça nenhuma no dia a dia. Quem aguentaria viver assim? Sou um médico, conheço bem os sintomas de uma paixão aguda. Sabe aquele nó na garganta ou no coração? Quer uma descrição científica? É apenas o sistema nervoso sendo invadido por uma descarga de drogas altamente viciantes. Em resumo, a paixão é isso: adrenalina, serotonina e dopamina. A adrenalina acelera os batimentos do coração. A serotonina mexe no humor, no apetite, no sono. A dopamina nada mais é do que um neurotransmissor ligado ao prazer. Tudo isso é muito parecido com o que acontece com os obsessivo-compulsivos e com os dependentes de drogas. Em resumo, a paixão é uma droga. Comi muita residente bobinha contando essa história. Mas se a paixão acaba, o amor nunca acaba, dizem. Pelo menos o verdadeiro amor. Ele deveria sobreviver ao esfriamento do desejo. O prazer de viver ao lado da pessoa amada, isso não deveria se esgotar. Senão, como viveríamos? De paixão em paixão? Construindo nossos castelos em solo movediço? Quanto mais difícil o mundo lá fora, mais precisamos de um companheiro leal. Só para termos um amigo tão íntimo é que assinamos um contrato “até que a morte nos separe”. Se não fosse por um motivo muito bom, que idiota iria se meter num contrato por tempo indeterminado? O nome disso é compromisso. E quem não conhece a palavra não sabe nada de amor. Minha mulher, se conhecia, tratou de esquecer. Não deixou que nem eu nem ninguém fôssemos qualquer impedimento para viver o que precisava viver. Preferiu a montanha-russa. E pulou fora quando o carro chegou àquele trecho longo e horizontal em que parece que mais nada vai acontecer. Não sei quando se deu a coisa, apenas desconfio. Não sei quem foi o sacana, o que me mata. Talvez por isso tenha me afastado de todos os meus amigos homens. Mas pode ser também que tenha sido só literatura. O senhor acha que eu deveria dar a ela o benefício da dúvida? Bom, essa é a sua opinião, não a minha. Ainda me lembro de uma frase que tenho medo de ser dela, só dela, anotada em algum livro: “Para escrever, preciso de tempo e sangue. É preciso que se atinja o estado de nervo exposto, para que tudo se torne matéria. Meu cio te assombra? E minha luz?” Eu estava lá. Eu via a forma distante como me tratava dia após dia. O jeito saudoso com que olhava as paredes, os objetos da casa, até os nossos filhos. Nossos dias estavam contados, era o que ela parecia dizer. Ela estava se tornando outra, irredutivelmente outra. Algumas vezes seus olhos brilhavam como os de um psicopata.

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Outras, perdidos em devaneios, traíam uma melancolia infinita. Não se iluda. As pessoas dizem que querem mudar. Mas mudança é aquilo que elas mais temem. É preciso se sentir muito frustrado, muito derrotado, muito perdido, para largar o passado e tentar o futuro. Tem uma hora que a gente sabe que o casamento foi por água abaixo. Começa a tentar consertar, limpar a casa que está desmoronando, tapar os buracos, os vazamentos, as infiltrações, que fatalmente se instalaram com o tempo. Os cupins começam a comer tudo. Eu pressentia o fim. E esperei por ele silenciosamente, em vez de me rebelar, de fazê-la ver o quanto a amava. Eu me segurei. Não é o meu feitio, mas foi o que fiz, pelo menos num primeiro momento. Mas não adiantou. Depois, o ódio cresceu, cresceu, até arrebentar. Ela jurou inocência, que era tudo literatura. Talvez não suportasse me deixar, a mim e aos meus filhos, porque eu deixei claro que jamais abriria mão deles. Ou talvez não suportasse seu fracasso, a impossibilidade de escrever sua história sem expor o segredo de sua traição. Isso explicaria porque não deixou nenhuma obra para trás, nenhum papel que pudesse denunciá-la. Por que o senhor insiste tanto em ver as coisas que ela escreveu? Já lhe disse que não há nada lá sobre isso, são só suposições da minha mente.

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Para aplacar essas vozes que ficam discutindo na minha cabeça, estou sempre em movimento. Ou dopado. O pior é quando a noite vem e não tenho uma companhia descartável. Odeio esses dias. Por isso saio com uma mulher diferente sempre. Há enfermeiras e pacientes para todos os gostos. Casar novamente? Nem morto. O segundo casamento, como dizem, é uma vitória da esperança sobre a experiência. Eu não espero mais nada. Mas sou obrigado a reconhecer que, de volta para casa, a solidão da cama vazia me angustia. Costumo chegar tarde, quando as crianças já estão dormindo há muito tempo. Ligo a televisão, o som, qualquer coisa que faça barulho. Preciso ouvir vozes o tempo todo, para silenciar as que gritam na minha cabeça, ou então enlouqueço. Bem, tenho os garotos. Uma menina de 7 anos e um menino de 5. Sei que deveria me dedicar a eles, que perderam a mãe de forma estúpida. Mas a angústia que sinto não permite que eu fique em casa muito tempo ou possa me concentrar nas crianças. Felicidade cuida delas, mando sempre os dois para a casa da minha mãe no fim de semana e para a da sogra nas férias. Vão em janeiro e só voltam depois do Carnaval. Trabalho muito e saio muito. Meu filho vive reclamando: “Pai, você tá sempre cansado, nunca quer brincar ou jogar bola.” De fato não tenho vontade de me levantar da cama ou do sofá. Quando estou em casa, passo os dias prostrado, lendo e relendo. Aí boto um videogame na mão do Miguel e deixo. Parecemos dois autistas, cada qual em seu mundo. Ele chorou muito quando a mãe morreu. Agora já se acostumou. Parece que esqueceu. Com Catarina é mais ou menos a mesma coisa. Ela já se cansou de tentar me fazer brincar de boneca. Mas exige companhia. Então fica lá sentada, de frente para a casinha em que tudo é miniatura de um lar que não existe mais, conversando com as bonecas – não, dando voz a elas, porque as bonecas dialogam entre si e a ignoram. De vez em quando ela muda a brincadeira e diz: “Eu sou a mãe e você é o pai.” Aí tenho que improvisar diálogos idiotas, ventríloquo de um boneco mais idiota ainda nas mãos, numa história sem pé nem cabeça, que sempre tem uma briga no meio e termina com os dois se abraçando e se beijando, sentados de mãos dadas, no sofá. Às vezes, ela pede que eu conte uma história. A que minha mulher mais gostava, ou a que mais a torturava, era a da Menina dos Fósforos. No exemplar que ela nos deixou, não há nada sublinhado, mas algumas manchas que podem ser de lágrimas confirmam que esta história dos irmãos Grimm era a que mais a tocava. A menina pobre que morre congelada porque vende seus fósforos,

Pausa, por favor.

Preciso esticar as pernas.

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um a um, sem nunca produzir a grande fogueira que a aqueceria de vez, bem que poderia ser uma versão infantil dela. Em vez de ler, prefiro inventar. Tenho vários personagens, como um certo Sr. Toupeira. Sabia que as toupeiras são cegas? Elas cavam túneis para proteger suas famílias dos predadores. Alguns são tão longos que ninguém chega lá, nem a luz. É tão escuro e silencioso que os olhos e as orelhas das toupeiras acabam se tornando desnecessários. Nada acontece. Sabe-se lá por que eu criei esse personagem, acho que foi depois de um programa de tevê que falava de animais estranhos. O que eu sei é que as crianças riem muito das aventuras do Sr. Toupeira. Como não escrevi nem uma linha, posso inventar uma versão a cada vez. Gosto dessa brincadeira.

Último depoimento Hoje, quando abri os olhos, tive uma sensação estranha. De repente, não doía mais. Vi a mesma paisagem, um pouco cinza talvez, pela janela do apartamento. O mesmo horizonte sem horizontes, os mesmos móveis, mais bagunçados talvez, os mesmos quadros nas paredes, os mesmos livros na estante. Felicidade abriu a porta. Imediatamente ouvi meus filhos, que entravam correndo e tagarelando. Por um momento tive a ilusão de que nada tinha acontecido. Como se eu não tivesse passado os últimos meses preso por um encantamento qualquer, na terra dos mortos-vivos, dos enlouquecidos, dos desesperados. Foi quando o senhor entrou e me deu essa notícia bomba.

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Segunda parte

O amor é sempre inédito

Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha. Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é. Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebracabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá. Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar, para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira? Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itáli-

co, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear. Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da inocente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio. Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que tenha julgado comprometedoras. De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim? Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, da mesma forma que estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Aí este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que entram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral.

Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vivemos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que é isso que falam da gente? Depois do escândalo que envolveu seu nome, os encontros ruidosos nos bares frequentados por jovens escritores na Vila Madalena ficaram para trás. Suas mesas continuam apinhadas de publicitários e jornalistas de todo o Brasil que vão parar em São Paulo em busca de uma chance e algum dinheiro. Mas Catarina não é mais quem era – a jovem estrela que ganhou o maior prêmio do país e ainda por cima desfilava nos braços de um dos deuses da USP. Hoje ninguém mais a inveja ou reverencia, embora seu nome seja eventualmente citado em acaloradas discussões sobre ética e arte. As chaves da casa de Catarina ficaram comigo quando ela deixou o Brasil com rumo desconhecido, numa reclusão solitária ao interior de sua própria pele, tão chamuscada. Tudo o que sei dela é que há um ano concentra-se em colar os cacos, lamber as feridas e estancar o sangue, buscando uma trégua em sua guerra particular. Vez por outra se anestesia com uma garrafa de vinho ou alguma droga mais pesada como o calor de outro corpo, conforme resume nos raros informes aos amigos. Fora do Brasil, pode se dar ao luxo de se passar por outra pessoa, reescrever o passado e, talvez, o futuro. Nunca nos

disse para onde foi ou onde está. Não sabemos nem a atual cor dos cabelos dela. Tive uma pista, que pode muito bem ser falsa, quando usou as palavras de um heterônimo de Fernando Pessoa, naturalmente embaralhando os versos usurpados, na infantil ilusão de que eu não o reconheceria. “Nada sou, nunca serei. Não posso querer ser mais nada. Falhei em tudo. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Decididamente não está curada. Sem seu testemunho ou confissão, só me resta refazer seus passos em busca de uma resposta para o enigma que Sujeito oculto acabou se tornando com o tempo. Por isso, sou obrigado a entrar em seu labirinto. Abro a porta com cuidado. O apartamento de Catarina é pequeno, mas não sua biblioteca, que toma as paredes da sala, do único quarto e até do banheiro. Passar meus dedos por estas estantes empoeiradas, retirar os livros empilhados sem capricho, folheá-los ao acaso, é uma forma de juntar os fragmentos desta escritora assassinada prematuramente pela crítica. Sob as capas, há toda uma vida subterrânea que vasculho em busca de alguma palavra reveladora. Assim como um analista, em tese, pode ler os sonhos dos pacientes como uma forma de chegar ao inconsciente deles, tento descobrir nestes livros reflexos da vida interior de quem os marcou. Percebo que as pistas não estão somente nas frases que Catarina publicou como autora, mas nos trechos que selecionou como leitora. É aí que o sujeito oculto se revela. Não é uma tarefa fácil fazer um levantamento completo das fontes desse livro para finalmente organizar sua bibliografia, embora meu objetivo seja ainda mais ambicioso. Tiro um volume ao acaso da prateleira. Assim como quaisquer obras que já tivessem passado pelas mãos de Catarina, como eu já havia percebido desde os tempos da faculdade, o exemplar está dilapidado, as páginas que mereceram destaque, marcadas com as detestáveis orelhas que eu tanto criticava. No final, não é raro encontrar um índice particular, apontando correlações entre temas e páginas cujo sentido muitas vezes me escapa. Nem Catarina se lembrava de quando tinha começado o vício. Confessava que tinha um prazer especial em pegar um livro que lhe parece novo e descobri-lo desvirginado por suas próprias anotações. A verdade é que seu raciocínio se processava por rasuras e usava as marcações para cobrir a falta de imaginação, tanto quanto as de memória. “Escrevo porque leio. E porque esqueço o muito que li”, anotou ao final de um exemplar bastante machucado dos Ensaios, de Montaigne.

Para ela, a leitura era uma espécie de escrita feita tanto com os olhos quanto com as mãos. Impossível encontrar qualquer livro virgem em sua biblioteca. Nem mesmo o capítulo mais entediante das Meditações metafísicas, de Descartes, escapou dos sublinhados e comentários, que muitas vezes cobriam todas as partes brancas da página, com uma caligrafia horrorosa que transformava tudo em hieróglifos quase incompreensíveis. São fragmentos que exigem do leitor um esforço de investigação para adquirir algum sentido. Cada prateleira parece ter a própria alma, com livros agrupados por afinidades que posso intuir, mesmo na ausência do proprietário. Em minha peregrinação por esse universo particular, tento identificar um método na biblioteca anotada deixada por Catarina Guerra. Suas marcações mais comuns não passam de simples sinais de atenção, um sublinhado, uma seta, um asterisco, um ponto de interrogação ou exclamação, uma provável reação emocional ao que estava lendo. Marcas de uma vida de leituras que poderia ser desperdiçada, se nunca ganhasse corpo nas páginas de Sujeito oculto. Catarina variava entre o uso da caneta e do lápis, resta saber se por um objetivo consciente de transformar algumas marcas em perenes e deixar outras que pudessem ser apagadas, ou se, por acaso, simplesmente porque canetas e lápis estavam lá, ao lado de sua cama, como até hoje. Não sentia culpa por escrever nos próprios livros ou nos dos outros, ignorava solenemente o tabu que transforma a rasura num crime contra uma obra de arte fechada. Todos os livros que emprestava vinham com suas marcas. Os que tomava emprestado também, para desespero dos amigos. Não tinha pudor de se expor, de mostrar suas reações mais impulsivas de forma nua e crua, de permitir que o próximo leitor penetrasse em seus pensamentos mais íntimos. Ou de perverter os propósitos do autor cometendo verdadeiras heresias em relação ao pensamento original. Anotadores compulsivos, como Catarina Guerra, em geral são também leitores compulsivos. Mas nem todos os apaixonados se permitem este tipo de violação do objeto amado. Anotações nas páginas de um livro são a marca típica de um leitor especial, um leitor que escreve. Para um bibliófilo, como eu, trata-se de um defeito de caráter tão grave quanto uma perversão. Mas a raça dos anotadores não é tão conservadora; eles se divertem subvertendo a relação natural entre autor e leitor – eu escrevo, você lê –, que está longe de ser uma regra imutável para eles. Quando revi os originais de Sujeito oculto, avisei a Catarina que seria melhor usar aspas e notas de rodapé para se livrar das acusações de plágio, pelo menos uma bibliografia. Mas ela fugia disso desde os

tempos do mestrado, quando se emaranhou em referências que já não sabia identificar e literalmente entrou em pânico. Dizia-se vítima de criptomnésia. Esquecera-se de anotar as fontes do que leu e a memória embaralhou tudo, incorporando indiscriminadamente experiências, ideias e conceitos alheios, apagando as pegadas dos autores originais. Passado o desespero de não saber mais o que era seu, começou a tomar gosto pela coisa. Deu para escrever reciclando trechos, desapropriando palavras a blocos inteiros de seu contexto. O trabalho maior era dar lógica e coerência a tudo, lixar e pintar por cima, para não chamar a atenção para o paciente trabalho de bricolagem. Depois da defesa da dissertação, confessou, rindo, que transcreveu parágrafos inteiros da tese de doutorado de seu orientador, sem que nem ele percebesse, apenas suprimindo algumas palavras e acrescentando outras. E garantia que mesmo os autores mais zelosos como deus em pouco tempo esqueciam o que tinham escrito, quanto mais o que tinham lido. Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha. Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é. Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebracabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá. Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar, para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso

repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira? Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itálico, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear. Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da inocente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio. Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que tenha julgado comprometedoras. De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho

que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim? Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, da mesma forma que estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Aí este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que entram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral. Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vivemos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que é isso que falam da gente? Depois do escândalo que envolveu seu nome, os encontros ruidosos nos bares frequentados por jovens escritores na Vila Madalena ficaram para trás. Suas mesas continuam apinhadas de publicitários

e jornalistas de todo o Brasil que vão parar em São Paulo em busca de uma chance e algum dinheiro. Mas Catarina não é mais quem era – a jovem estrela que ganhou o maior prêmio do país e ainda por cima desfilava nos braços de um dos deuses da USP. Hoje ninguém mais a inveja ou reverencia, embora seu nome seja eventualmente citado em acaloradas discussões sobre ética e arte. As chaves da casa de Catarina ficaram comigo quando ela deixou o Brasil com rumo desconhecido, numa reclusão solitária ao interior de sua própria pele, tão chamuscada. Tudo o que sei dela é que há um ano concentra-se em colar os cacos, lamber as feridas e estancar o sangue, buscando uma trégua em sua guerra particular. Vez por outra se anestesia com uma garrafa de vinho ou alguma droga mais pesada como o calor de outro corpo, conforme resume nos raros informes aos amigos. Fora do Brasil, pode se dar ao luxo de se passar por outra pessoa, reescrever o passado e, talvez, o futuro. Nunca nos disse para onde foi ou onde está. Não sabemos nem a atual cor dos cabelos dela. Tive uma pista, que pode muito bem ser falsa, quando usou as palavras de um heterônimo de Fernando Pessoa, naturalmente embaralhando os versos usurpados, na infantil ilusão de que eu não o reconheceria. “Nada sou, nunca serei. Não posso querer ser mais nada. Falhei em tudo. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Decididamente não está curada. Sem seu testemunho ou confissão, só me resta refazer seus passos em busca de uma resposta para o enigma que Sujeito oculto acabou se tornando com o tempo. Por isso, sou obrigado a entrar em seu labirinto. Abro a porta com cuidado. O apartamento de Catarina é pequeno, mas não sua biblioteca, que toma as paredes da sala, do único quarto e até do banheiro. Passar meus dedos por estas estantes empoeiradas, retirar os livros empilhados sem capricho, folheá-los ao acaso, é uma forma de juntar os fragmentos desta escritora assassinada prematuramente pela crítica. Sob as capas, há toda uma vida subterrânea que vasculho em busca de alguma palavra reveladora. Assim como um analista, em tese, pode ler os sonhos dos pacientes como uma forma de chegar ao inconsciente deles, tento descobrir nestes livros reflexos da vida interior de quem os marcou. Percebo que as pistas não estão somente nas frases que Catarina publicou como autora, mas nos trechos que selecionou como leitora. É aí que o sujeito oculto se revela. Não é uma tarefa fácil fazer um levantamento completo das fontes desse livro para finalmente organizar sua bibliografia, embora meu objetivo seja ainda mais ambicioso. Tiro um volume ao acaso da

prateleira. Assim como quaisquer obras que já tivessem passado pelas mãos de Catarina, como eu já havia percebido desde os tempos da faculdade, o exemplar está dilapidado, as páginas que mereceram destaque, marcadas com as detestáveis orelhas que eu tanto criticava. No final, não é raro encontrar um índice particular, apontando correlações entre temas e páginas cujo sentido muitas vezes me escapa. Nem Catarina se lembrava de quando tinha começado o vício. Confessava que tinha um prazer especial em pegar um livro que lhe parece novo e descobri-lo desvirginado por suas próprias anotações. A verdade é que seu raciocínio se processava por rasuras e usava as marcações para cobrir a falta de imaginação, tanto quanto as de memória. “Escrevo porque leio. E porque esqueço o muito que li”, anotou ao final de um exemplar bastante machucado dos Ensaios, de Montaigne. Para ela, a leitura era uma espécie de escrita feita tanto com os olhos quanto com as mãos. Impossível encontrar qualquer livro virgem em sua biblioteca. Nem mesmo o capítulo mais entediante das Meditações metafísicas, de Descartes, escapou dos sublinhados e comentários, que muitas vezes cobriam todas as partes brancas da página, com uma caligrafia horrorosa que transformava tudo em hieróglifos quase incompreensíveis. São fragmentos que exigem do leitor um esforço de investigação para adquirir algum sentido. Cada prateleira parece ter a própria alma, com livros agrupados por afinidades que posso intuir, mesmo na ausência do proprietário. Em minha peregrinação por esse universo particular, tento identificar um método na biblioteca anotada deixada por Catarina Guerra. Suas marcações mais comuns não passam de simples sinais de atenção, um sublinhado, uma seta, um asterisco, um ponto de interrogação ou exclamação, uma provável reação emocional ao que estava lendo. Marcas de uma vida de leituras que poderia ser desperdiçada, se nunca ganhasse corpo nas páginas de Sujeito oculto. Catarina variava entre o uso da caneta e do lápis, resta saber se por um objetivo consciente de transformar algumas marcas em perenes e deixar outras que pudessem ser apagadas, ou se, por acaso, simplesmente porque canetas e lápis estavam lá, ao lado de sua cama, como até hoje. Não sentia culpa por escrever nos próprios livros ou nos dos outros, ignorava solenemente o tabu que transforma a rasura num crime contra uma obra de arte fechada. Todos os livros que emprestava vinham com suas marcas. Os que tomava emprestado também, para desespero dos amigos. Não tinha pudor de se expor, de mostrar suas reações mais impulsivas de forma nua e crua, de permitir que o próximo leitor penetrasse em seus pensamentos mais ínti-

mos. Ou de perverter os propósitos do autor cometendo verdadeiras heresias em relação ao pensamento original. Anotadores compulsivos, como Catarina Guerra, em geral são também leitores compulsivos. Mas nem todos os apaixonados se permitem este tipo de violação do objeto amado. Anotações nas páginas de um livro são a marca típica de um leitor especial, um leitor que escreve. Para um bibliófilo, como eu, trata-se de um defeito de caráter tão grave quanto uma perversão. Mas a raça dos anotadores não é tão conservadora; eles se divertem subvertendo a relação natural entre autor e leitor – eu escrevo, você lê –, que está longe de ser uma regra imutável para eles. Quando revi os originais de Sujeito oculto, avisei a Catarina que seria melhor usar aspas e notas de rodapé para se livrar das acusações de plágio, pelo menos uma bibliografia. Mas ela fugia disso desde os tempos do mestrado, quando se emaranhou em referências que já não sabia identificar e literalmente entrou em pânico. Dizia-se vítima de criptomnésia. Esquecera-se de anotar as fontes do que leu e a memória embaralhou tudo, incorporando indiscriminadamente experiências, ideias e conceitos alheios, apagando as pegadas dos autores originais. Passado o desespero de não saber mais o que era seu, começou a tomar gosto pela coisa. Deu para escrever reciclando trechos, desapropriando palavras a blocos inteiros de seu contexto. O trabalho maior era dar lógica e coerência a tudo, lixar e pintar por cima, para não chamar a atenção para o paciente trabalho de bricolagem. Depois da defesa da dissertação, confessou, rindo, que transcreveu parágrafos inteiros da tese de doutorado de seu orientador, sem que nem ele percebesse, apenas suprimindo algumas palavras e acrescentando outras. E garantia que mesmo os autores mais zelosos como deus em pouco tempo esqueciam o que tinham escrito, quanto mais o que tinham lido. Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha. Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito

mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é. Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebracabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá. Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar, para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira? Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itálico, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear. Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da ino-

cente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio. Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que tenha julgado comprometedoras. De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim? Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, da mesma forma que estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Aí este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que entram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral. Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vive-

mos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que é isso que falam da gente? Depois do escândalo que envolveu seu nome, os encontros ruidosos nos bares frequentados por jovens escritores na Vila Madalena ficaram para trás. Suas mesas continuam apinhadas de publicitários e jornalistas de todo o Brasil que vão parar em São Paulo em busca de uma chance e algum dinheiro. Mas Catarina não é mais quem era – a jovem estrela que ganhou o maior prêmio do país e ainda por cima desfilava nos braços de um dos deuses da USP. Hoje ninguém mais a inveja ou reverencia, embora seu nome seja eventualmente citado em acaloradas discussões sobre ética e arte. As chaves da casa de Catarina ficaram comigo quando ela deixou o Brasil com rumo desconhecido, numa reclusão solitária ao interior de sua própria pele, tão chamuscada. Tudo o que sei dela é que há um ano concentra-se em colar os cacos, lamber as feridas e estancar o sangue, buscando uma trégua em sua guerra particular. Vez por outra se anestesia com uma garrafa de vinho ou alguma droga mais pesada como o calor de outro corpo, conforme resume nos raros informes aos amigos. Fora do Brasil, pode se dar ao luxo de se passar por outra pessoa, reescrever o passado e, talvez, o futuro. Nunca nos disse para onde foi ou onde está. Não sabemos nem a atual cor dos cabelos dela. Tive uma pista, que pode muito bem ser falsa, quando usou as palavras de um heterônimo de Fernando Pessoa, naturalmente embaralhando os versos usurpados, na infantil ilusão de que eu não o reconheceria. “Nada sou, nunca serei. Não posso querer ser mais nada. Falhei em tudo. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Decididamente não está curada. Sem seu testemunho ou confissão, só me resta refazer seus passos em busca de uma resposta para o enigma que Sujeito oculto acabou se tornando com o tempo. Por isso, sou obrigado a entrar em seu labirinto. Abro a porta com cuidado. O apartamento de Catarina é pequeno, mas não sua biblioteca, que toma as paredes da sala, do único

quarto e até do banheiro. Passar meus dedos por estas estantes empoeiradas, retirar os livros empilhados sem capricho, folheá-los ao acaso, é uma forma de juntar os fragmentos desta escritora assassinada prematuramente pela crítica. Sob as capas, há toda uma vida subterrânea que vasculho em busca de alguma palavra reveladora. Assim como um analista, em tese, pode ler os sonhos dos pacientes como uma forma de chegar ao inconsciente deles, tento descobrir nestes livros reflexos da vida interior de quem os marcou. Percebo que as pistas não estão somente nas frases que Catarina publicou como autora, mas nos trechos que selecionou como leitora. É aí que o sujeito oculto se revela. Não é uma tarefa fácil fazer um levantamento completo das fontes desse livro para finalmente organizar sua bibliografia, embora meu objetivo seja ainda mais ambicioso. Tiro um volume ao acaso da prateleira. Assim como quaisquer obras que já tivessem passado pelas mãos de Catarina, como eu já havia percebido desde os tempos da faculdade, o exemplar está dilapidado, as páginas que mereceram destaque, marcadas com as detestáveis orelhas que eu tanto criticava. No final, não é raro encontrar um índice particular, apontando correlações entre temas e páginas cujo sentido muitas vezes me escapa. Nem Catarina se lembrava de quando tinha começado o vício. Confessava que tinha um prazer especial em pegar um livro que lhe parece novo e descobri-lo desvirginado por suas próprias anotações. A verdade é que seu raciocínio se processava por rasuras e usava as marcações para cobrir a falta de imaginação, tanto quanto as de memória. “Escrevo porque leio. E porque esqueço o muito que li”, anotou ao final de um exemplar bastante machucado dos Ensaios, de Montaigne. Para ela, a leitura era uma espécie de escrita feita tanto com os olhos quanto com as mãos. Impossível encontrar qualquer livro virgem em sua biblioteca. Nem mesmo o capítulo mais entediante das Meditações metafísicas, de Descartes, escapou dos sublinhados e comentários, que muitas vezes cobriam todas as partes brancas da página, com uma caligrafia horrorosa que transformava tudo em hieróglifos quase incompreensíveis. São fragmentos que exigem do leitor um esforço de investigação para adquirir algum sentido. Cada prateleira parece ter a própria alma, com livros agrupados por afinidades que posso intuir, mesmo na ausência do proprietário. Em minha peregrinação por esse universo particular, tento identificar um método na biblioteca anotada deixada por Catarina Guerra. Suas marcações mais comuns não passam de simples sinais de atenção, um sublinhado, uma seta, um asterisco, um ponto de inter-

rogação ou exclamação, uma provável reação emocional ao que estava lendo. Marcas de uma vida de leituras que poderia ser desperdiçada, se nunca ganhasse corpo nas páginas de Sujeito oculto. Catarina variava entre o uso da caneta e do lápis, resta saber se por um objetivo consciente de transformar algumas marcas em perenes e deixar outras que pudessem ser apagadas, ou se, por acaso, simplesmente porque canetas e lápis estavam lá, ao lado de sua cama, como até hoje. Não sentia culpa por escrever nos próprios livros ou nos dos outros, ignorava solenemente o tabu que transforma a rasura num crime contra uma obra de arte fechada. Todos os livros que emprestava vinham com suas marcas. Os que tomava emprestado também, para desespero dos amigos. Não tinha pudor de se expor, de mostrar suas reações mais impulsivas de forma nua e crua, de permitir que o próximo leitor penetrasse em seus pensamentos mais íntimos. Ou de perverter os propósitos do autor cometendo verdadeiras heresias em relação ao pensamento original. Anotadores compulsivos, como Catarina Guerra, em geral são também leitores compulsivos. Mas nem todos os apaixonados se permitem este tipo de violação do objeto amado. Anotações nas páginas de um livro são a marca típica de um leitor especial, um leitor que escreve. Para um bibliófilo, como eu, trata-se de um defeito de caráter tão grave quanto uma perversão. Mas a raça dos anotadores não é tão conservadora; eles se divertem subvertendo a relação natural entre autor e leitor – eu escrevo, você lê –, que está longe de ser uma regra imutável para eles. Quando revi os originais de Sujeito oculto, avisei a Catarina que seria melhor usar aspas e notas de rodapé para se livrar das acusações de plágio, pelo menos uma bibliografia. Mas ela fugia disso desde os tempos do mestrado, quando se emaranhou em referências que já não sabia identificar e literalmente entrou em pânico. Dizia-se vítima de criptomnésia. Esquecera-se de anotar as fontes do que leu e a memória embaralhou tudo, incorporando indiscriminadamente experiências, ideias e conceitos alheios, apagando as pegadas dos autores originais. Passado o desespero de não saber mais o que era seu, começou a tomar gosto pela coisa. Deu para escrever reciclando trechos, desapropriando palavras a blocos inteiros de seu contexto. O trabalho maior era dar lógica e coerência a tudo, lixar e pintar por cima, para não chamar a atenção para o paciente trabalho de bricolagem. Depois da defesa da dissertação, confessou, rindo, que transcreveu parágrafos inteiros da tese de doutorado de seu orientador, sem que nem ele percebesse, apenas suprimindo algumas palavras e acrescentando outras. E garantia que

mesmo os autores mais zelosos como deus em pouco tempo esqueciam o que tinham escrito, quanto mais o que tinham lido. Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha. Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é. Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebracabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá. Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar, para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira?

Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itálico, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear. Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da inocente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio. Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que tenha julgado comprometedoras. De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim? Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, da mesma forma que estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Aí este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que en-

tram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral. Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vivemos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que é isso que falam da gente? Depois do escândalo que envolveu seu nome, os encontros ruidosos nos bares frequentados por jovens escritores na Vila Madalena ficaram para trás. Suas mesas continuam apinhadas de publicitários e jornalistas de todo o Brasil que vão parar em São Paulo em busca de uma chance e algum dinheiro. Mas Catarina não é mais quem era – a jovem estrela que ganhou o maior prêmio do país e ainda por cima desfilava nos braços de um dos deuses da USP. Hoje ninguém mais a inveja ou reverencia, embora seu nome seja eventualmente citado em acaloradas discussões sobre ética e arte. As chaves da casa de Catarina ficaram comigo quando ela deixou o Brasil com rumo desconhecido, numa reclusão solitária ao interior de sua própria pele, tão chamuscada. Tudo o que sei dela é que há um ano concentra-se em colar os cacos, lamber as feridas e estancar o sangue, buscando uma trégua em sua guerra particular. Vez por outra se anestesia com uma garrafa de vinho ou alguma droga mais pesada como o calor de outro corpo, conforme resume nos raros in-

formes aos amigos. Fora do Brasil, pode se dar ao luxo de se passar por outra pessoa, reescrever o passado e, talvez, o futuro. Nunca nos disse para onde foi ou onde está. Não sabemos nem a atual cor dos cabelos dela. Tive uma pista, que pode muito bem ser falsa, quando usou as palavras de um heterônimo de Fernando Pessoa, naturalmente embaralhando os versos usurpados, na infantil ilusão de que eu não o reconheceria. “Nada sou, nunca serei. Não posso querer ser mais nada. Falhei em tudo. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Decididamente não está curada. Sem seu testemunho ou confissão, só me resta refazer seus passos em busca de uma resposta para o enigma que Sujeito oculto acabou se tornando com o tempo. Por isso, sou obrigado a entrar em seu labirinto. Abro a porta com cuidado. O apartamento de Catarina é pequeno, mas não sua biblioteca, que toma as paredes da sala, do único quarto e até do banheiro. Passar meus dedos por estas estantes empoeiradas, retirar os livros empilhados sem cap Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha. Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é. Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebracabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá. Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar,

para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira? Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itálico, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear. Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da inocente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio. Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que tenha julgado comprometedoras. De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta

positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim? Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, da mesma forma que estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Aí este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que entram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral. Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vivemos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que é isso que falam da gente?

Terceira parte

Frases feitas a título de posfácio

Não foi nada. Pode voltar a fechar os olhos.

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De alguma forma, meu pai e meu irmão encontraram aquilo e ficaram sabendo o que ela tanto tentou esconder. Minha mãe me odiava. Se tivesse ficado só na lembrança, ninguém nunca teria sabido. Mas estava escrito, escondido ali, fadado a ser descoberto. E, um dia, muito tempo depois, foi.

Terceira Parte

Só acordei agora porque tive um sonho muito, absurdamente estranho. Estava na minha casa antiga, no pequeno apartamento onde eu morava quando criança. Meu pai e meu irmão xingavam minha mãe, batiam nela, jogavam coisas nas suas costas. Tentava tirá-la dali, mas, em vez de ficar do meu lado, ela vinha para cima de mim com raiva, me agredindo, dizendo que eu era a culpada de tudo. E apontava um velho armário, que nem existe mais. Lá no fundo, havia uma pilha de papéis, manuscritos. Neles, eu contava com a minha letra confusa tudo o que tinha visto, mas que deveria ter sido esquecido: seu segredo.

Quando Sujeito oculto foi publicado, sua autora passava por um momento difícil. A morte súbita do pai, um médico e empresário dono de várias clínicas de estética, deixou Catarina Guerra ao mesmo tempo rica e desamparada. Vivia um relacionamento longo e monótono com um ex-colega da faculdade, enquanto mantinha um romance com um professor que tinha o dobro da sua idade. Não foi a primeira e nem seria a última a se apaixonar por “deus”. Era assim, com letra minúscula, como gostava de frisar, que a jovem autora se referia ao orientador, renomado crítico literário. Um orador brilhante, com sua voz de barítono e cabelos grisalhos, cobiçado por dez entre dez de suas alunas, ou qualquer mulher que se sentasse em sua plateia. Era a este homem que ela tentava desesperadamente impressionar. Antes de Sujeito oculto, não há registro de que Catarina Guerra tenha escrito nada digno de nota. Apenas algumas páginas esporádicas, de uma pobreza vocabular típicas de adolescente, em cadernos e diários, além de trabalhos acadêmicos sem grande destaque, como uma dissertação de mestrado (mais uma) sobre Dom Casmurro. Artisticamente, sua carreira era nula. Por isso a surpresa quando a estudante de pós-graduação em Letras ganhou o principal prêmio literário do país. O fato de seu orientador ter muitos amigos na comissão julgadora foi obviamente comentado nos corredores acadêmicos. Mas o que provocou toda a movimentação em torno do nome de Catarina Guerra ao longo dos anos não foram os elogios ou as fofocas, mas as sucessivas acusações de plágio. Não foi nem de longe o primeiro caso na história da literatura. O próprio Shakespeare já sofreu acusações do tipo, encabeçando uma lista que vai de Freud e Nabokov a Yann Martel e J.K. Rowling. Poucos anos depois de Sujeito oculto ter sido lançado, outra autora, Helene Hegemann, viveu experiência semelhante. Assim como Catarina Guerra, a jovem de 17 anos só foi desmascarada a partir do próprio sucesso, quando a mistura inusitada de letras de punk rock e frases pinçadas da obra do filósofo Maurice Blanchot chegou à lista de mais vendidos da Der Spiegel, a principal revista da Alemanha. Curiosamente, seu livro Axolotle atropelado é, assim como Sujeito oculto, a história de uma orfandade. Os críticos mais conservadores ficaram escandalizados. No entanto, os dois livros acabaram se tornando “clássicos”, incensados pelos defensores da cultura do copy and paste. Helene Hegemann nunca negou a cópia, e definiu seu trabalho criativo como um “sampling ”, exportando para o cenário da literatura a linguagem dos DJs das boates que frequentava em Berlim. Já Catarina Guerra se recusou a dar entrevistas depois que o escândalo estourou, nem ao menos enviou uma nota à imprensa justificando a fraude como uma proposta estética. A autora fechou todos os seus

perfis nas mídias sociais, parou de responder a e-mails e telefonemas e saiu do país, depois de ser obrigada a suprimir toda a segunda parte do livro, ironicamente intitulada “O amor é sempre inédito”, com base na Lei Federal 9.610/1998.

Sujeito Oculto

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Terceira Parte

Se na primeira metade de Sujeito oculto somos confrontados com o monólogo de Carlos, um médico viúvo e amargurado, na segunda quem narra a história é Leonora, sua jovem e inexperiente segunda esposa, cerca de uma década depois. Foi esta parte, suprimida das novas edições (inclusive desta) devido às acusações de plágio, que gerou a maior controvérsia nos meios culturais. Durante meses, o esporte de certo blogueiro com pretensões literárias foi ler com lupa cada uma de suas palavras e frases, buscando a fonte original e postando tabelas comparativas que jamais deram a Catarina o benefício da dúvida. Surpreendentemente, o escândalo fez o romance, que até então só tinha recebido a atenção da crítica especializada, se tornar um bestseller. Desde 2010, quando foi lançado, Sujeito oculto vem tendo sucessivas reimpressões. Já no ano seguinte, todas tiveram a segunda parte expurgada por força de processos movidos pelos “verdadeiros” autores. Embora a própria Catarina Guerra tenha tentado barrar a publicação de novas edições de sua controvertida obra de estreia, o inesperado êxito comercial tornou sua editora irredutível. O livro, mesmo mutilado, continua vendendo bem. A edição integral virou objeto de colecionador, embora a versão com a parte expurgada possa ser baixada em alguns sites gratuitamente. Quando a edição original (palavra que, no caso deste livro, não deixa de ter certa ironia) é encontrada em sebos, alcança valores estratosféricos. Enquanto isso, corre um processo movido pelo patrocinador do prêmio literário para a devolução do vultoso valor recebido pela autora. A tecla sempre repetida do plágio pode ter ofuscado os méritos implícitos do romance, mas a curiosidade que despertou abriu caminho para a lista dos mais vendidos. De repente, as mídias sociais foram tomadas por detetives literários, muito embora na rede seja mais comum o fenômeno inverso: a atribuição de pensamentos e textos próprios a autores consagrados, cuja assinatura lhes daria uma suposta autoridade. Apesar de os processos de plágio se concentrarem em “O amor é sempre inédito”, é possível identificar também na primeira parte de Sujeito oculto uma série de pistas de que frases, personagens e até mesmo trechos intei-

100

A arte de roubar

ros foram usurpados de outros livros (ver as notas comentadas no fim desta edição). No entanto, talvez esta seja uma questão menor. Alguns críticos certamente vão discordar, mas lanço a hipótese de que Sujeito oculto não seja exatamente um plágio, mas um livro sobre o plagiarismo, que radicaliza a questão da autoria, antecedendo discussões sobre apropriação, remix e mashup que se tornariam recorrentes nos anos seguintes. É, ainda, uma obra que acrescenta elementos contemporâneos à tão propalada morte do autor. Talvez aqui a palavra “suicídio” seja mais pertinente. Basta observar como o drama familiar e a escrita de Catarina se entrelaçam. Se o enredo de Sujeito oculto trata de temas como morte, filiação e origem, o mesmo se pode dizer deste ensaio que escrevo na tentativa de elucidá-lo. Mas, afinal, de que sujeito estamos falando, quando sabemos apenas que ele é oculto? Em “A morte do autor”, Roland Barthes afirma enigmaticamente que “a escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto e branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve”. Mais precisamente, uma “imitação perdida, infinitamente recuada”. Ao contrário do que prega a história da literatura, as biografias dos escritores e eles mesmos, em suas entrevistas e palestras, para Barthes a obra não seria a expressão de uma subjetividade, de uma vida interior. E aquele a que chamamos de autor nada mais seria do que a soma de suas influências, o remix dos DNAs de seus pais espirituais. Todas as suas ideias seriam, consciente ou inconscientemente, de segunda mão. “O texto é um tecido de citações”, pregava. Catarina Guerra acreditava piamente nisso. No entanto, a tese que desenvolvo aqui vai além. O corta e cola de frases e trechos inteiros realizado no romance teria sido proposital: o objetivo seria embaralhar conceitos como autenticidade e originalidade, ficcional e real. A “autora” manejou habilmente essas referências a textos alheios para exacerbar a impressão de que se tratava de uma obra de ficção. Com isso, conseguiu disfarçar o fato de que o enredo é claramente calcado em sua história de vida, o que seria a morte para uma legítima barthesiana, como ela. Que não seja um gênio original, mas uma exímia jogadora de quebra-cabeças, diz muito sobre quem era Catarina Guerra. Que não tenha tido coragem de dizer com todas as letras aquilo que sugere com palavras alheias, também.

Sujeito Oculto

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Terceira Parte

Seria a literatura um campo autônomo ou sensivelmente contaminado pelas experiências vitais do artista? Podemos compreender a obra traçando um paralelo com a biografia do autor? É o tipo de discussão que parecia ultrapassada para a crítica literária contemporânea até ser desafiada por uma onda de autoficção. Não tenho o que Pierre Bourdieu chamou de ilusão biográfica, sei que toda identidade é uma construção que se narra e que toda crítica é também uma engenhosa obra de ficção. Como dizia Paul Valéry, “não há teoria que não seja um fragmento de uma autobiografia”. Mesmo sabendo dos riscos que corro, neste ensaio tomo coragem de assumir a voz em primeira pessoa para dar um depoimento que busca elucidar, senão todo, pelo menos boa parte do imbróglio que cerca a obra de Catarina Guerra. Tomarei o cuidado de me abster de qualquer comentário estético sobre o livro, assumindo minha falta de isenção crítica, dada a convivência íntima com Catarina desde a juventude. De qualquer forma, espero que minhas credenciais acadêmicas e literárias me redimam. E que, explicitando a amizade que nos uniu e nos une desde a graduação na faculdade de Letras até hoje, possa me ver livre para lançar novas luzes sobre a história deste romance singular, chamado Sujeito oculto, e sua jovem autora, Catarina Guerra. Há muito mais de verdade nele do que pode parecer à primeira vista. E minha tese é de que se trata, antes de mais nada, de um livro-denúncia. Sigamos suas pistas. Assim como em Sujeito oculto, o pai de Catarina se chamava Carlos e era médico. O fato de que estas seriam as mesmas características de Charles, o marido de Emma Bovary, em quem a figura da endividada Alice estaria calcada, durante muito tempo escondeu o jogo de espelhos criado pela autora. Não tenho dúvidas de que Catarina Guerra conscientemente optou por realçar esta pista, ao chamar de Felicidade a empregada da casa e fazer o narrador se perguntar várias vezes de onde teria vindo um nome tão esdrúxulo. Trata-se de uma referência explícita a outro conto de Gustave Flaubert, “Um coração singelo”. A empregada rebatizada no romance como Felicidade tinha um nome bem mais prosaico, Marilda, e foi quem tomou conta de Catarina e do irmão Miguel quando a mãe deles morreu num acidente de carro. Exatamente como a protagonista, que só é nomeada uma única vez na primeira parte de Sujeito oculto, a mãe da autora se chamava Alice e teve dois filhos. Também ela deixou um seguro de vida, cujo valor foi duplicado por se tratar de um acidente e não de “morte natural”. Seria preciso uma investigação mais profunda para confirmar se o nível de endividamento dos Guerra à época do acidente era de fato real ou também espelhado em Madame Bovary. Não é possível confiar comple-

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Ficção e autoficção

tamente no relato de Catarina, mesmo que tenha repetido várias vezes sua versão sobre a origem trágica da fortuna do pai. Com o tempo, ela se mostrou uma das narradoras menos confiáveis de que se tem notícia. O fato é que, após ficar viúvo, por volta dos 30 anos, com uma pequena fortuna nas mãos, Carlos Guerra construiu um império em clínicas de estética. Pai e filha tinham relações de amor e ódio, que iam da frieza à passionalidade em questão de segundos. Ele não aceitava ser contrariado. Ela tinha prazer em levá-lo às cordas. Imprevisível, Carlos Guerra era mestre em inverter o jogo das expectativas. Tanto que não se casou com a bela cirurgiã plástica com quem desfilava pelos restaurantes mais caros de São Paulo, mas com a recepcionista de sua rede de clínicas e, assim mesmo, muitos anos depois de ficar viúvo. Foi claramente inspirada nesta personagem real que Catarina desenhou a narradora de “O amor é sempre inédito”. Na segunda parte de Sujeito oculto, a jovem inexperiente que aceita o repentino pedido de casamento do patrão ganha o nome de Leonora, uma referência mais do que óbvia a uma das noivas de Barba Azul. O conto de Charles Perrault, não tenho dúvidas, é a linha secreta que costura este romance em meio a um labirinto de referências literárias e reais. A verdadeira Leonora se chamava Ângela e era dois anos mais nova do que Catarina. Uma jovem bonita, mas sem traquejo social ou sofisticação. O emprego na clínica do futuro marido foi conseguido com a ajuda de seu namorado na época, um reles auxiliar administrativo. Isso é tudo o que consegui saber de sua história, contada pela própria Ângela, numa tarde à beira da piscina dos Guerra, um mês antes de a segunda esposa do pai de Catarina deixar a mansão em que morava havia apenas um ano e meio, fugindo sabe-se lá do quê. Até então, as duas mulheres nunca tinham sido amigas. Catarina mal trocava cinco palavras com a madrasta, a quem esnobava, como todos os que giravam à volta de seu pai. Já não morava na mesma casa de Carlos desde que completara a maioridade e a visitava apenas esporadicamente para rever o irmão e levar os amigos para antológicas festas na piscina. De preferência quando “o doutor” estivesse viajando. Foi, portanto, com surpresa que acompanhei sua reação ao desaparecimento da madrasta, e sua insistência de que a história estava malcontada. Vi seu estado mental se deteriorar com o tempo. O ódio ao pai tomou grandes proporções, embora inicialmente não parecesse mais do que uma retardatária crise de adolescência. Catarina se recusava terminantemente a vê-lo e a confortá-lo em sua solidão. Não pronunciou mais o nome de Carlos Guerra até a morte dele, no ano seguinte, num ataque fulminante do coração, ou isquemia coronariana, como certamente “o doutor” preferiria dizer.

Sujeito Oculto

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Terceira Parte

Se a casca de Leonora é, sem dúvida, inspirada em Ângela, seu recheio foi sugado de outras fontes. Assim como Madame Bovary, Ana Karenina, Capitu e Luiza, de O primo Basílio, pertencem a uma mesma família, a de romances protagonizados por adúlteras cuja tentação parece ser menos o sexo do que as fantasias despertadas pela literatura, o mesmo pode ser dito de outro grupo de protagonistas femininas, de quem Leonora é claramente aparentada. Complexos de inferioridade social como o seu também movem a narradora sem nome de Rebecca, o romance de Daphne Du Maurier magistralmente adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock, e mesmo a caipira Marina, de A sucessora. Ecos deste complexo podem ser observados também em Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Sem falar na própria Leonora, de família muito pobre, que aceita se casar com o velho Barba Azul em troca de uma vida de fausto. Todas pertencem a um mesmo ramo, senão a uma mesma árvore genealógica. Sobre o parentesco entre as personagens de Daphne Du Maurier e Carolina Nabuco, restam poucas dúvidas. Em 2002, o New York Book Review publicou um artigo apontando as estranhas coincidências entre A sucessora e Rebecca. As histórias são fascinantes e também envolvem acusações de plágio. Best-seller no Brasil, o livro da filha de Joaquim Nabuco foi publicado em 1934. Em seguida, fora vertido para o inglês e o francês e enviado por um influente agente literário para editores internacionais. Como teria ido parar nas mãos de Daphne Du Maurier? Parecerista de uma grande editora americana, a escritora poderia muito bem ter acesso aos originais, copiado o enredo, as situações e até os diálogos e publicado seu livro em 1938. E, de fato, qualquer um que leia os dois livros vai encontrar coincidências. Mas não há no livro de Du Maurier o elemento central de A sucessora , o retrato da primeira mulher. É ele que permite uma espécie de diálogo entre a esposa morta e aquela que a substituiu (como também é o caso da biblioteca sublinhada de Alice em Sujeito oculto). Já a governanta que atormenta a sucessora de Rebecca é um personagem central do romance da escritora inglesa, mas não existe em A sucessora. As narradoras dos dois romances estão longe de ser a mesma pessoa; não seriam sequer aparentadas na vida real. Por outro lado, é curioso pensar que tanto Carolina Nabuco quanto Daphne Du Maurier poderiam ser acusadas de plágio por José de Alencar, que, no romance Encarnação, publicado postumamente em 1893, narra uma história bem semelhante. No livro de Alencar, em vez de um quadro, há estátuas de cera com a silhueta da falecida. Assim como em Rebecca, seu quarto fica fechado por ordem do viúvo, mesmo quando

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A segunda narradora

ele se casa novamente com uma moça bem mais jovem. A governanta ciumenta é substituída por um mordomo. E até mesmo o plot do incêndio se repete. Carolina Nabuco não foi a única a ver seus genes na obra de Daphne Du Maurier. Num caso raro em que duas autoras se consideram copiadas no romance de uma terceira, a americana Edwina McDonald também assinalou 46 paralelos entre seu livro Black windows e Rebecca. Numa jogada de mestre, Daphne Du Maurier surpreendeu a todos ao afirmar que seu romance foi inspirado, sim, na obra de outra escritora: o molde para a narradora de Rebecca seria Jane Eyre, de Charlotte Brontë, de 1847. E, de fato, os paralelos são muitos: duas empregadas se casam com viúvos ricos, o fantasma da primeira esposa (no caso de Jane, ainda viva no sótão) assombra o casal, há um incêndio que destrói a mansão e um final feliz, mesmo que a mocinha tenha consciência de que o marido cometera um crime (assassinato de uma grávida, no caso de Rebecca; cárcere privado, em Jane Eyre). Depois de tantas semelhanças, cabe perguntar: não seria a própria sombra da primeira esposa um clichê, em vez de roubo? É no mínimo interessante que uma exímia plagiadora, como Catarina Guerra, tenha optado por uma narradora tão reconhecível dentro da literatura feminina, retomando a história de uma pobre e inexperiente moça perseguida pelo fantasma da primeira esposa, que tantas genitoras teve no passado. Ela certamente sabia que estava pisando num terreno minado. Se não foi pela ingenuidade imperdoável numa doutoranda em Literatura Comparada, por que seria? Minha hipótese é que a autora deixou todas as pistas à mostra para ser descoberta. Catarina não se importava em ser vista como falsificadora porque assim encobriria a verdadeira natureza de seu romance. Uma espécie de plagiomania invertida. Na síndrome de usurpação mais comum, o autor se assemelha a um paranoico, que delira ao imaginar que suas palavras, personagens e ideias estão sendo roubadas por outros. No caso de Sujeito oculto, a autora não só rouba como parece desejar que seu crime seja descoberto e, por isso, deixa rastros explícitos. Age como um criminoso que prefere ser culpado por um crime menor para assim encobrir outro maior. Apenas não previu a repercussão que este crime ganharia na rede e nas páginas dos suplementos literários. Mas se Ângela apenas deu corpo à segunda narradora de Sujeito oculto, de onde teria vindo sua voz tão poderosa? Qualquer pessoa que a tenha conhecido sabe que jamais teria saído de sua boca frases lapidares como “uma pessoa não pode viver dentro do círculo mágico cria-

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Terceira Parte

do por outra, como um prisioneiro encantado”. Obcecado, levei meses pesquisando os arquivos e a biblioteca de Catarina até deparar com a carta que o poeta Ted Hughes enviou a seu filho, falando dos ciúmes doentios da mãe, a escritora suicida Sylvia Plath: “One person cannot live within another’s magic circle, as an enchanted prisioner.” Fascinada por Sylvia Plath, não foi surpresa que Catarina tenha roubado a imagem de Hughes. Mais uma vez a convivência com a autora é fundamental para dar as pistas sobre a fonte de inspiração da segunda parte de Sujeito oculto. Na época em que escreveu seu único romance, a própria Catarina se via às voltas com uma paixão desenfreada por um homem com idade para ser seu pai. Ela se sentia em posição inferior, mas a distância não era econômica – embora fizesse questão de jamais ostentar, ela era uma moça rica, ao contrário de seu orientador, um livre docente em fim de carreira. O que não quer dizer que a assimetria não existisse. Ela amava aquele homem brilhante, cujo nome, por respeito à privacidade dos envolvidos, não citarei, embora o caso seja de domínio público. Mais do que amar, ela literalmente o idolatrava. “Um milagre aconteceu: deus hoje olhou para mim”, foi o que disse quando o conheceu na primeira aula de Semiologia ainda na faculdade. Não era a única. Todos o endeusávamos e nos arrastávamos aos pés daquele mestre. Mas, para suas jovens alunas, conquistar um scholar internacionalmente renomado como ele era uma espécie de atestado de maioridade intelectual, um feito para se marcar no currículo, como as belas mulheres exibidas como troféus por homens muito ricos. É como diz o irônico ditado repetido nas universidades: atrás de um grande homem, há sempre muitas mulheres. Catarina parecia não se importar de ser mais uma na sua enorme corte, desde que alcançasse um lugar de destaque. Leonora, mais do que qualquer personagem, reflete aspectos da personalidade complexa de sua autora. Apaixonada por um homem mais velho, poderoso e, ainda por cima, casado, Catarina experimentava em sua vida pessoal uma nova versão de A sucessora. Jamais estaria à altura de “deus” – não ela, uma mortal que carregava o pecado de ser jovem demais, insegura demais, brilhante de menos. Acredito que sentia, desde criança, o peso que a memória de Alice ainda exercia sobre seu pai. O verdadeiro Carlos pouco falava a respeito da primeira esposa. Talvez por isso Catarina possa ter criado a imagem de uma mulher inesquecível e a recheado com características e ambições que talvez digam menos do personagem do que de sua autora. Ou, quem sabe, talvez seja exatamente o contrário. Poucas coisas influenciam mais os filhos do que a vida não vivida de seus pais. Portanto, não me surpreenderia se os sonhos frustrados de Alice descritos na primeira parte do livro tivessem sido herdados por Catarina, assim como sua guerra interior.

É difícil julgar quanto da imaginação da autora fora influenciada pelos romances à la Jane Eyre no momento de escrever a própria história de amor e morte, culpa e transgressão. Não vemos as coisas como elas são, mas a partir do que nós somos. Assim como não lemos nos livros as palavras do autor, mas seu eco em nossa vida, o reflexo de nossos próprios fantasmas. E a pobre Ângela se encaixava perfeitamente nos moldes que já vinham sendo desenhados na mente de Catarina pelos livros. Daí, talvez, o pouco interesse da autora em usar a imaginação para criar uma narrativa autêntica, preferindo apenas recriar um quadro vivo a partir de peças pré-moldadas e objetos surrupiados de seu contexto original. A jovem madrasta deixa uma pergunta no ar ao desaparecer de uma hora para outra. A mesma pergunta deixada pela mãe de Catarina ao morrer tragicamente. É esta pergunta que Sujeito oculto tenta responder. Para investigá-la, Catarina vai de certa forma se colocar no lugar de Leonora e tomar as rédeas de uma história que até então só tinha sido contada pela boca do pai. Sugestivamente, foi só a partir do momento em que o verdadeiro Carlos morreu que ela começou a escrever seu único livro. Garantindo para si o poder absoluto da narrativa, pôde dispor das histórias sobre os outros do jeito que bem quis, bastando apenas disfarçá-las de ficção. Podemos quase ver os dedos de Catarina puxando as cordas de Leonora. Despejou na pobre moça a timidez e o complexo de inferioridade intelectual, a subserviência à beira da vassalagem a um homem poderoso, a impotência, o masoquismo. Mais ainda: como um ventríloquo, ela colocou na boca de Leonora uma acusação que nunca teve coragem de fazer. Para si, reservou um papel secundário, o da filha cujo nome mal é citado na primeira ou na segunda parte do livro. Mas, arrebatados pela história, até agora poucos leitores notaram: o estranho sonho que abre “O amor é sempre inédito”, reproduzido no início deste posfácio, não é de uma esposa, mas de uma filha. O motivo de Catarina ter usado a máscara de sua jovem madrasta, em vez de narrar ela mesma as dúvidas que tinha sobre o acidente fatal de Alice, pode estar relacionado à necessidade de usar as palavras dos outros e não as próprias. Faltou-lhe coragem de afirmar algo que talvez só existisse em sua cabeça? Lembranças de algo que nunca aconteceu? Reflexo de algum trauma? A hipótese que lanço aqui é a de que a autora realizou um hábil bordado para dizer com todas as letras o que nunca teria audácia de afirmar publicamente: a mãe se matou e o pai era o grande culpado.

As camadas de um romance

Usando a voz rouca de Leonora, é como se a autora confessasse:

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Terceira Parte

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As palavras estão aqui dentro, mas não saem. Sinto-me como uma criança que conhece as letras mas não consegue formar palavras. Mal se esboçam, elas se esvaem. Sua fumaça engasga na garganta. Se por um impulso as palavras mais fortes ainda perseguem o ar, esbarram na muralha de dentes cerrados e na língua acorrentada. Por último, me sobra a toalha no banheiro, que eu mordo com ódio, para conter as lágrimas de quem não sabe sentir raiva de ninguém, a não ser de si mesmo.

Por falta do devido instrumental, vou me furtar de qualquer tentativa de análise psicanalítica, mais uma das tantas camadas possíveis de interpretação neste romance singular, cujo título já renderia uma sessão. Questões como projeção, luto, recalque e trauma parecem óbvias. Outras são mais intrigantes, como a “lembrança” que reaparece na consciência da autora e vai inocular o personagem. Aparentemente, é por causa deste sonho que Leonora sai em busca dos restos imortais da primeira esposa. Vasculha a casa, mas não encontra rastro de fotos, cartas ou objetos pessoais. Pergunta para a velha empregada. Nada. Entediada, entra no escritório do marido, que ocupa todo o último andar da mansão, onde Carlos costumava se trancar quando queria ficar sozinho. Ao ligar o computador, descobre que há uma chave de segurança e experimenta várias palavras, sem sucesso. Ao digitar seu nome, a tela se abre. Mas não há nada ali para Leonora, por mais que procure. Ou, melhor, há de tudo um pouco. O marido se mostra um homem sem mistérios, um livro aberto, um tédio. Pelo menos, é assim que se mostra o conteúdo disponível para ser aberto exatamente por aquela senha. Mas isso Leonora não percebe de imediato: podem existir várias chaves, com nomes diferentes, para cadeados que ela desconhece. Na falta do que vasculhar, resolve abrir um livro retirado ao acaso da estante em frente. Ali finalmente encontra as pistas que procurava. Dia após dia, Leonora espera o marido sair para voltar ao sótão. Refaz, livro a livro, o processo descrito na primeira parte do romance por um homem que descobre por meio de frases soltas e sublinhadas a vida secreta da mulher que perdeu para sempre. Mas as marcações que a nova narradora descreve em “O amor é sempre inédito” são completamente diferentes. Ou pelo menos a leitura que faz delas. Com isso, a jovem iletrada vai descobrindo os segredos da mulher mais velha a quem sucedeu, ao mesmo tempo que é iniciada nos mistérios da literatura. Os livros que pertenceram a Alice têm sua marca inconfundível – as palavras e frases sublinhadas sem capricho são pura tentação. “Lembrou-se das heroínas dos livros que havia lido, e a legião lírica dessas mulheres adúlteras punha-se a cantar em sua lembrança”, foi a frase profética que encontrou marcada em Madame Bovary. De Sade a Henry Miller, os clássicos do erotismo são apresentados à sucessora por Alice. Ou seriam as tentações do adultério? Vez por outra, Leonora tem a sensação de que alguém a observa pelo buraco da fechadura, coloca os livros de volta, corre até a porta, mas não encontra nada. Nem mesmo Felicidade.

Uma porta fechada, qualquer coisa que espreita, atrás. Ela não se abrirá se eu não me mexer. Não mexer. Parar o tempo e a vida. Mas eu sei que mexerei. A porta se abrirá lentamente e eu verei o que tem por trás. É o futuro. A porta do futuro vai se abrir. Lentamente. Implacavelmente. Estou no limiar. Só existe esta porta e o que espreita atrás dela. Tenho medo. E não posso chamar ninguém por socorro.

As coisas deixam de ser pura imaginação quando Leonora encontra numa velha agenda um papel amarelado pelo tempo. As abas com os furos foram caprichosamente recortadas, mas seus sinais irregulares permaneciam. A letra inchada, com muita tinta, e meio falha, das impressoras antigas, também denuncia que aquela carta tinha sido escrita muitos anos atrás. Provavelmente há mais de dez. Está muito amassada, como se alguém tivesse planejado jogar no lixo, mas arrependera-se na última hora. Não estava assinada, mas parecia ser de um homem que se dirigia a Alice. Também este homem tinha o hábito das citações. Um verso de Cole Porter funcionava como título, o que era estranho para uma carta. Seria mesmo uma carta?

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Papéis secretos

Terceira Parte

A própria Leonora não entende por que se sente tão amedrontada ao fazer algo aparentemente inofensivo como abrir um livro em sua própria casa. No entanto, fareja o perigo que se esconde naquelas páginas. Por que ela, que detestava livros desde o colégio, era agora absorvida por eles? Mais do que nas histórias em si, concentra-se em percorrer o trajeto de leitura de Alice, suas marcações, as frases soltas nas bordas e as anotações nas páginas finais. Seu objetivo é muito claro: descobrir quem era a pessoa por quem Carlos se apaixonou antes dela, provavelmente com mais entrega. Há um grau de perversão na cena de sexo explícito em que a jovem esposa fantasia que não é nela que o marido penetra, quando estão juntos na cama. Como numa experiência fora do corpo, Leonora observa a cena do alto e vê uma mulher que imagina ser Alice sob as costas de Carlos, entre suas pernas, dentro de seus braços. Chega a acreditar que é aquela outra, tão verdadeiramente desejada, a quem ele beija quando a beija. Tem ainda mais certeza quando, nesta que é uma das cenas mais eróticas do livro, a frieza dos beijos de Carlos se transforma num ardor até então desconhecido, e ele, sem perceber, troca seu nome.

Every time we say goodbye C. Porter

Querida, quando não leres esta não estarei longe e tampouco perto. Te escrevo da distância do nosso desamor, de nossos ressentimentos remoídos, de nossa paciente solidão. Te escrevo, enfim, para dizer que não moro mais aqui, em mim, que meu novo pouso é incerto, não sabido. Falo de um lugar onde só me salvo na escrita, de cartas que jamais enviarei, como esta, e de relatórios minuciosos de meu dia a dia. Desculpe-me, por isso, a formalidade. Escrevo-lhe, reitero, para dizer que não conseguiremos nos livrar do amor que estrangula, que aperta com maestria a laçada do dia após o outro, doce armadilha com que nos acostumamos há tempos e que ainda sentiremos muito tempo depois, como se sente, dizem, uma perna amputada. Escrevo-lhe para constatar, agora no papel, que não fazemos mais jus ao que fomos e que, ao dizer teu nome, Alice, ainda digo um tempo de inaugurações, descobertas mútuas, decepções miúdas e espantos compartilhados. Agora que já consigo dizer teu nome, agora sim te perdôo por não adivinhar a beleza de nossas manhãs, resultado de noites em que a alegria roubava o sono em nosso canto tranqüilo, nosso canto na serra, como você dizia, fazendo as malas para a primeira temporada que passaríamos juntos, os sábados arrastados do primeiro sexo e a alegria de cada reencontro. Escrevo-lhe para mostrar que, enfim, conquistei minha voz, que vivo aqui a teu lado, mas não mais. Queria dizer, querida, que quando não abrires esta, estarás perdoada por me quereres tão bem, por me amares tanto, ao ponto de calar em mim o entusiasmo. A vontade.

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Terceira Parte

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Como uma mensagem deixada numa garrafa recolhida não por uma criança na praia, mas por uma mulher adulta numa estante décadas depois, as duas páginas traziam uma mensagem do passado. Estavam escondidas numa agenda com informações aparentemente banais, mas que trazia no verso das páginas uma sucessão de confissões, meticulosamente escritas dia após dia. Para Leonora, que a descobre anos depois, é como ouvir a conversa de alguém consigo mesmo.

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MAIO

zid em êcov ,odatnacne uotsE otiper ,adatnacne uotsE emon mu sonem oa odahca odneT .ossi odut arap

Levar e buscar crianças no colégio Supermercado Banco Carne para o jantar

06 OIA M

Estou encantado, você me diz Estou encantada, repito Tendo achado ao menos um nome para tudo isso.

oigéloc on saçnairc racsub e raveL odacremrepuS ocnaB ratnaj o arap enraC

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— Ligar para Patrícia .r— edrFeira ep es iav otnematnacne esse mébmaT — Encanador o e rous o étA .aid mu res ed áraxied oduT étA—.sPanqueca airf sãhnade m sfrango a mavacrahcne euq ozog arucuol somaváus euq me sairf sãhnam sa alep odagart áres ossi oduT .sorop solep somav euq O .adiv me et rom levároxeni oicífide mu somíurtsnoc es ,oãtne ,rezaf rahnimaC ?roma od açidevom aiera a erbos mébmat odnauq oãxiap me oãxiap ed someriugesnoc euq áreS ?rabaca es atse ?somsem són a siéif oãt sonem oa res

MAIO

IA M

60 aicírtaP arap ragiL — arperder. ieF — Também esse encantamento vai se r o d a n a c nE e—o Tudo deixará de ser um dia. Até o suor ognaas rf emanhãs d aceuqn aP —Até gozo que encharcavam frias. as manhãs frias em que suávamos loucura pelos poros. Tudo isso será tragado pela inexorável morte em vida. O que vamos fazer, então, se construímos um edifício sobre a areia movediça do amor? Caminhar de paixão em paixão quando também esta se acabar? Será que conseguiremos ser ao menos tão fiéis a nós mesmos?

07

MAIO

Levar e buscar crianças no colégio Falar com a professora

Manicure sotomerret soneuqeP Oculista :missa odnezid êcov a oãçerid me ogis uE rama et uov oãn ue ejoH rama et uov oãn ue ejoH Bolo de chocolate rama et uov oãn ue ejoH ,mif o é acnun eS ?atnaida euq ed E siam zev adac é ,oirártnoc olep :odnezid oias ue E .ortnec o iema ue ejoH iema ue ejoH adama iuf ue ejoH

OIA M

70 oigéloc on saçnairc racsub e raveL arosseforp a moc ralaF

08

MAIO me uortne odnauq samirgál ed marehcne es sohlo sueS .iv ue ,– sairpórp sahnim sad aovén a ertne – iv uE .mim

erucinaM Pequenos terremotos atsilucO Eu sigo em direção a você dizendo assim: Hoje eu não vou te amar Hoje eu não vou te amar etalocohc ed oloB Hoje eu não vou te amar E de que adianta? Se nunca é o fim, pelo contrário, é cada vez mais o centro. E eu saio dizendo: Hoje eu amei Hoje eu amei Hoje eu fui amada

Pedir para Felicidade levar e buscar crianças no colégio Banco

Dentista Catarina Pizza

Peixe para o jantar

ocnaB

anirataC atsitneD

Seus olhos se encheram de lágrimas quando entrou em mim. Eu vi – entre a névoa das minhas próprias –, eu vi.

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azziP

euq roiam ,etneg a euq roiam racif éta recserc asioc a es E ,otam ,otam ,otam ue ossid setnA ?odnum o euq roiam ,odut .edadiledif ed oãsrev ahnim a é assE .roma esse otam

oigéloc on saçnairc racsub e ravel edadicileF arap rideP

Levar crianças ao cinema

80 OIA M

MAIO

E se a coisa crescer até ficar maior que a gente, maior que tudo, maior que o mundo? Antes disso eu mato, mato, mato, mato esse amor. Essa é a minha versão de fidelidade.

OIA M

90 MAIO

10 Ligar para tia Ana

amenic oa saçnairc raveL

ratnaj o arap exieP

ale euq on ,atlaf aus an é euq êv oãn êcoV racsub uov ue euq ,levát ropusni siam ed met Ver saldo .oãn uO .otlas ednarg o rad arap saçrof Fazer lista de compras da semana

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Aniversário Carlos Ligar para Patrícia

MAIO

Bolo de carne

OIA M

01 anA ait arap ragiL

Você não vê que é na sua falta, no que ela tem de mais insuportável, que eu vou buscar odlas reV forças para dar o grande salto. Ou não. anames ad sarpmoc ed atsil rezaF

a ocrep ue euq saroh meT megasiap a ojeV .megaroc odal ortuo od aliüqnart oãt sues me sederap sa ,alenaj ad ,sievóm so ,seragul sodived on odut ,saossep sa ,socsid so oãN .erpmes ed ragul omsem iav ocuop a iuqad euq otiderca euq e oãcaruf mu ila rop rassap .emon uem met oãcaruf etse

OIA M

solraC oirásrevinA aicírtaP arap ragiL

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enrac ed oloB

Tem horas que eu perco a coragem. Vejo a paisagem tão tranqüila do outro lado da janela, as paredes em seus devidos lugares, os móveis, os discos, as pessoas, tudo no mesmo lugar de sempre. Não acredito que daqui a pouco vai passar por ali um furacão e que este furacão tem meu nome.

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.atlov ed adiv ahnim ád eM ,sianrevni sedrat sahniM mu ,oicam moderde uem assop edno oriessevart aicnêicsnoc amu radnufa serous mes ,aliüqnart ,ainôsni mes ,sonruton ád eM .saisatnaf ed aiehc euqrop ,otiComprar rípse ed zNescau ap idrep ahnit ue euq aleuGuaraná qa ,ot rep ieugehc odnaBiscoito uq oreuQ .êcov ed ,ot rep otium mu ed açnaruges a atlov ed adiv amU .ortuo o sópa aid .sohnos mes ,saritnem mes

MAIO

OIA M

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Me dá minha vida de volta. Minhas tardes invernais, meu edredom macio, um travesseiro onde possa afundar uma consciência tranqüila, sem suores noturnos, sem insônia, cheia de fantasias. Me dá porque uacspaz eN rde arpespírito, moC que eu tinha perdi ánaraaquela uG cheguei perto, otiocsquando iB muito perto, de você. Quero de volta a segurança de um dia após o outro. Uma vida sem mentiras, sem sonhos.

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Dia da libertação dos escravos!

MAIO

Levar crianças para casa dos primos Café acabou Comprar maçã euq é meuQ .asac airpórp ahnim me zirta amu uoS sotseg zaf E ?aracne em ohlepse od odal ortuo od oãn ue euq sasioc zid ,sacob e sarac ,sonecsbo oçrofse em ue euq sasioc zaf ,rezid ed zapac uos ?!”oma eT“ zid et euq é meuQ .rednocse arap

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OIA M

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!sovarcse sod oãçat rebil ad aiD

arap saçnairc raveL somirp sod asac uobaca éfaC Sou uma atriz em minha própria casa. Quem é que ãçam rarpmoC do outro lado do espelho me encara? E faz gestos obscenos, caras e bocas, diz coisas que eu não sou capaz de dizer, faz coisas que eu me esforço para esconder. Quem é que te diz “Te amo”!?

MAIO

euq ,sêcov rop é orrom oãn eS .rerrom oreuq uE moc ,maived oãn euq sasioc satnat a maritsissa od oiem on ,asem ad oxiabme sodalagerra sohlo Pedir Felicidade buscar crianças no colégio setneviverbos ,maritsiser omoc ies oãN .oietorit arap reviv levíssop áreS .arreug amu ed oiem on esserrom ue eS ?odaçadepsed oãçaroc o moc erpmes ?odnum odot arap rohlem aires oãn ,aroga Comprar presente de aniversário Miguel Comprar batom Comprar mochila Catarina

OIA M

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Eu quero morrer. Se não morro é por vocês, que assistiram a tantas coisas que não deviam, com olhos arregalados embaixo da mesa, no meio do oigéloc on saçnairc racsub edadicileF rideP tiroteio. Não sei como resistiram, sobreviventes no meio de uma guerra. Será possível viver para sempre com o coração despedaçado? Se eu morresse agora, não seria melhor para todo mundo? leugiM oirásrevina ed etneserp rarpmoC motab rarpmoC anirataC alihcom rarpmoC

?sasse oãs sedarg euQ ?ía uocoloc sa meuQ ?ragul on métnam sa meuQ ,adarepseseD .rodamod od sohnirac so otieca ,adapod ,adaisetsenA Telefonaropara tieridmãe raripser mes Mandar consertar oçort mu orefogão t uov ue e o ventilador de teto ratam em uov uo ratam et uo

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Que grades são essas? Quem as colocou aí? Quem as mantém no lugar? Desesperada, aceito os carinhos do domador. Anestesiada, dopada, eãmdireito arap ranofeleT sem respirar o ã g o f o r a t r esnoc radnaM eu vou ter um troço tetmatar ed rodalitnev o e ou vou ome

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ou te matar

osicerp É .arobme uov edrat atsE euq setna ,ossi moc ogol rabaca asac atsed riaS .arrom són ed mu e sona solep ,opmet olep adimocrac ratnuJ .racif oãtne uO .sodiucsed solep ed osicerP .odut ramrofer e saçrof asioc amu arap ohnet oãn E .megaroc odnuforp onos mu otniS .artuo men odiram uem ojeV .rodeceprotne e .ojesed o esauq e odnamurra es .rad ehl a adan siam áh oãn saM .romA ed omahc o adnia ,otnatne on ,E et uov ejoH“ :ele a rezid omoC atluco aicnâtsbus amuglA ?”raxied mecerap soslup sueM .eceprotne em me uo rimrod me osnep ós ,sodat roc ,açemocer adiv a ãhnama saM .rerrom O .sairáid sanitor saus moc los o oãn uE .odabaca ret iav oledasep .iet roc áj uE .soslup so rat roc osicerp

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MAIO

Esta tarde vou embora. É preciso

OIA M acabar logo com isso, antes que

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um de nós morra. Sair desta casa carcomida pelo tempo, pelos anos e pelos descuidos. Ou então ficar. Juntar forças e reformar tudo. Preciso de coragem. E não tenho para uma coisa nem outra. Sinto um sono profundo e entorpecedor. Vejo meu marido se arrumando e quase o desejo. Mas não há mais nada a lhe dar. E, no entanto, ainda o chamo de Amor. Como dizer a ele: “Hoje vou te deixar”? Alguma substância oculta me entorpece. Meus pulsos parecem cortados, só penso em dormir ou em morrer. Mas amanhã a vida recomeça, o sol com suas rotinas diárias. O pesadelo vai ter acabado. Eu não preciso cortar os pulsos. Eu já cortei.

Daí para a frente, todas as páginas estão em branco. Não há mais anotações, nos dias que ainda restariam até o ano acabar. Mas, após uma página rasgada, já na parte final da agenda, reservada para as anotações atemporais, Leonora encontra as últimas pistas que remetem ao sonho que abre a segunda parte do livro.

Nas páginas finais desta agenda que marca o último ano de Alice, Leonora reconhece duas anotações distintas. Pela primeira vez, encontra letras e marcas de caneta produzidas por um mão masculina. Os traços mais fortes são de Carlos – Leonora imediatamente identifica o movimento nervoso de sua caligrafia. Os de Alice são sempre tênues, como se não quisesse deixar vestígios. Tudo indica que, em algum momento, Carlos abriu a agenda, leu a carta escrita por outro homem para sua mulher e descobriu os segredos escondidos no verso de suas inocentes descrições dos afazeres cotidianos. E, escrevendo na mesma página em que ela termina sua trajetória, deixou uma mensagem.

Não acredito que escrevi sobre isso. Não acredito que deixei a prova do crime aqui, bem ao lado da cama, ao alcance de um gesto, de uma pequena desconfiança. Tenho que sumir com tudo.

Vá. Desapareça de nossas vidas! Isso não é uma prisão e eu não serei seu carcereiro.

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Terceira Parte

É a única vez, desde que assume a voz de Leonora, em que Catarina dá o benefício da dúvida ao pai. Passo a passo, o leitor é levado a crer que a morte de Alice não foi acidental, esquecendo-se de que tudo se passa na imaginação da autora. Percebemos que a história é outra quando Carlos deixa de ser o único com poder de contá-la. Não são as suas desculpas que ouvimos, num longo e ressentido monólogo, mas as críticas de alguém obrigado a viver com outro Carlos. A narrativa de Leonora apresenta o mesmo personagem da primeira parte de Sujeito oculto sob um ângulo diferente. Não só porque quando “O amor é sempre inédito” começa já teriam se passado dez anos, e ao longo deste tempo o personagem tenha enriquecido e envelhecido. A mudança vai além das aparências. Pintar as barbas de Carlos de azul parece estar desde o início nos planos da autora. Se o verdadeiro Carlos era alguém destrutivo ou não, é difícil dizer. Tudo pode ter se passado apenas na mente de Catarina, traumatizada pela perda da mãe e desconfiada do súbito enriquecimento do pai após o desastre que tirou sua vida. Assim, pode muito bem ter tirado da cartola um monstro de barbas azuis para dar a própria versão dos fatos. Escondida nas saias da jovem madrasta, poderia dizer o que bem entendesse, sem ter de provar nada, nem parecer louca. E assim acusar o pai em alto e bom som. O retrato de Leonora é traçado no livro como o de uma vítima que escolheu cuidadosamente seu algoz e resiste em perdê-lo, aceitando o fracasso de seu projeto de vida. Um pouco como a própria Catarina, regava um sentimento morto. Já Carlos é pintado como um especialista em achar o ponto fraco das pessoas, onde a vaidade as deixava mais vulneráveis. E que pessoa mais frágil poderia encontrar para se vingar do sentimento de frustração que a morte súbita de Alice e a descoberta de seus deslizes lhe trouxe? O passado de pobreza da mulher era a carta branca para fazer o que quisesse. A seu favor, tinha o poder que

o dinheiro concede a seu proprietário. Ele não pediu Leonora em casamento. A mulheres como ela, não pedia nada. Apenas colocou um anel em seu dedo anular como quem fecha uma algema. Mas sem saber qual o seu crime, como Leonora poderia se defender? Apesar da prosperidade conquistada, vivia à beira do abismo, ansiosa por um pequeno tropeço que a derrubasse. O médico visivelmente manipula a inexperiência de sua mulher, sua inabilidade para o confronto. Como resultado, ela tenta lhe agradar cada vez mais, oferecendo uma fidelidade canina e submissa. Mas com o tempo percebe que nunca fazia as coisas certas porque, para Carlos, simplesmente não existia a maneira certa. A tensão entre o casal é crescente. As agressões de Carlos não geram hematomas, seus ataques de fúria são abafados pelas cortinas; o choro de sua mulher, pelos travesseiros.

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Ao terminar o trecho, Leonora tem a impressão de estar de pé num trampolim, olhando para baixo. Não temer o abismo já é o primeiro passo. É na mesma biblioteca de Alice que encontra uma boia para não se afundar no pântano onde inadvertidamente construiu seu castelo. Encontra outro livro, desta vez com apenas alguns discretos sublinhados a lápis, posteriormente apagados, como se o anotador quisesse passar o mais desapercebido possível. O título a intriga: Feridas invisíveis. Só aí descobre a verdade: o homem com quem se casou nunca amou ninguém. Também Alice trazia no corpo feridas invisíveis. Mas ela reage, transgride, abandona o modelo de esposa perfeita para tentar viver a paixão novamente. Este é o segredo que compartilha com Leonora. Segredo que também a leva a escrever, pela primeira vez, numa página de um livro tirado a esmo, com sua letra redonda, tão diferente dos traços pontiagudos e oscilantes de Alice: “O amor é uma fraude imperdoável!”

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Embora arranhe seu corpo para sufocar o ódio, masoquista talvez não seja a definição certa para um personagem como Leonora. Havia uma grande diferença entre se submeter ao abuso e desejá-lo, ela aprendeu lendo os livros de Alice, com os olhos de Alice. Na literatura, Leonora aprende a arte da fuga. Remexendo a esmo a biblioteca, descobre uma pavorosa experiência para testar o reflexo condicionado dos cães. Como se alertasse sua sucessora, Alice deixou assinalado um trecho que descreve o momento em que um pesquisador prende os animais em gaiolas, aplicando choques sempre que buscam saída. Contrariando seus instintos, eles logo compreendem que não haveria fuga e param de tentar. O cientista finalmente abre as portas. Mas os cães não fazem mais nenhuma tentativa e permanecem acuados no fundo de

De tanto olhar as grades seu olhar esmoreceu e nada mais aferra. Como se houvesse só grades na terra: Grades, apenas grades para olhar.

Terceira Parte

Deitados lado a lado indiferentes. Dia após dia. Noite após noite. Sábado é o dia de meu marido lembrar que eu existo. Mas como acariciar uma pessoa depois de uma semana de ódios profundos, de farpas trocadas, de palavras que nunca são ditas? Como beijar quem se odeia? A gente não faz amor, faz crueldade. Ele não me dá mais de três minutos. Eu não lhe dou qualquer reação. Tranco minha voz entre os dentes, penso em nada, nos malditos afazeres do dia seguinte, na última briga. E depois me levanto rapidamente, como quem diz: ‘Já acabou?’ E vou para o banheiro me livrar de tudo aquilo, como quem grita: ‘Está vendo como detesto isso? Diga alguma coisa, não finja que não percebeu!’ Você me pergunta o que foi. E eu tenho vontade de dizer: ‘Vou ao banheiro, para não ter que vomitar em cima de você.’

suas prisões. No fim do livro há um poema copiado por Alice, que identifiquei como sendo uma citação de Rilke:

Marginais e marginália

E de fato a história de Sujeito oculto parece desde o início fadada a ser uma fraude. Não se pode ao mesmo tempo ser original e cópia. Depois de abandonar o primeiro projeto que tinha esboçado, Catarina e seu orientador discutiram vários temas para sua tese de doutorado, sem chegar a um acordo. Após uma noite juntos, aproveitando um congresso fora da cidade, ela lhe contou o sonho assustador que acabara de ter, reproduzido no início deste posfácio. E lembrou-se da biblioteca da mãe, toda sublinhada, que tanto lhe atraía quando garota. Foi aí que ele lhe falou empolgado sobre a teoria da marginália, da dificuldade de interpretação das marcas que os leitores deixam nos livros, do valor das edições anotadas, da possibilidade de reconstituir a experiência emocional de uma pessoa em determinado momento, seus códigos verbais e não verbais, como sublinhados e setas, formulando um discurso paralelo ao da obra em si. E ela disse que finalmente tinha um tema. Para sua tese de doutorado, ele pensou. Para um romance, ela escondeu. Nunca esteve tão animada quanto no ano e meio em que escreveu e publicou seu primeiro e único livro. O mundo parecia lhe sorrir, assim como deus quando entrava na sala e lhe dirigia um olhar especial. Pas-

desmanchava em pétalas, deflorada, como se dizia antigamente. Vivi uma espécie de comoção com toda aquela delicadeza. Onde foram parar minhas garras?

saram a se encontrar com mais frequência, duas ou três vezes por semana em seu gabinete, almoçavam juntos nos restaurantes perto da faculdade, eram vistos cochichando na biblioteca, indo embora do campus no carro dela. Passou a acompanhá-lo a todos os eventos acadêmicos, uma espécie de groupie intelectual, a líder incontestável do séquito de estudantes que o seguia com a devoção de um guru ou astro de rock, gravando e anotando suas falas. Assinou um paper com ele numa coletânea internacional. Entrou oficialmente em seu fechadíssimo grupo de pesquisa. Tornou-se a sua preferida. Pelo menos durante alguns poucos semestres. O romance foi a oferenda a seu deus, um agradecimento por suas bênçãos, por fazê-la finalmente se sentir especial e poderosa. A vontade de impressioná-lo não tinha limites. Vivia o prazer de frequentar ambientes reservados para os iniciados, de aprender sua linguagem cifrada, encontrar-se no espelho com seu próprio ideal. Um delírio que não resistiria à prova da realidade. Aquele não era o lugar dela. Como alguém que reserva o melhor quarto de hotel para um fim de semana, mas que jamais teria condições de pagar por aquele luxo a vida inteira, sabia que não seria para sempre. “Estou infinitamente maior do que eu mesma”, reconheceu, em um dos e-mails mais comoventes que guardei, antes de perceber que se tratava de uma frase roubada de Clarice Lispector e compartilhada exaustivamente na internet.

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Até um coração tão seco amolece em Sevilha, como as ameixas secas quando colocadas em água. E eu, que sempre fui tão seca, quando senti na pele aquele toque suave – logo eu, acostumada ao sexo selvagem dos caras da minha idade – de um homem educado em outro tempo, tive a impressão de que me

Por isso, vivo cada minuto ao lado dele como um presente, que mais dia, menos dia me será tirado. Como uma viciada, quero mais e mais e mais e mais. Deus, não me tire este homem, porque eu nunca amei nem vou amar alguém assim. Deus, por que é tão difícil amar a deus, por que deus não pode ser só meu como agora? Terceira Parte

Dizem que o amor é sempre inédito. Mas o que sinto por ele se parece com uma reverberação, um eco. De um passado? De um sonho? Não sei dizer. Só sei que não é uma descoberta, como quando se lê um livro pela primeira vez, mas uma redescoberta. É como encontrar um rosto numa plataforma de trem de um país distante. Um rosto que você reconhece mesmo de olhos fechados. Eu reconheci o amor, mesmo sem nunca tê-lo experimentado antes, pelo menos não neste grau. Eu o reconheci por aquele perfume de laranja amarga que exalava do corpo dele e me lembrava vagamente as ruas de Sevilha, que me lembram João Cabral.

Nos braços dele eu levitava. Ia ao céu e voltava. Ia ao céu e voltava. Ia ao céu e voltava. No escuro daquele quarto, uma nuvem nos envolvia, me fazendo sentir coisas que nunca sequer imaginara. Algo transcendente tocou minha pele. E eu ia e ia, mesmo sabendo que mais cedo ou mais tarde toda aquela paixão podia se evaporar. Só sei que, por ora, estou infinitamente maior do que eu mesma e não caibo mais em mim.

Mas sei que deus me amará e depois me apagará da vida dele, como uma vela que queimou por algumas horas. Acho que é da natureza das velas elas serem trocadas, assim como é da natureza do amor e das chamas eles se esvaírem em fumaça. Por mais que o incense, nunca terei deus só para mim, eu sei. Não sou digna de entrar em sua morada. Quando acabar – porque eu sei que tudo isso vai acabar –, não passarei de uma fiel sem deus. Catarina entendia, sem precisar ouvir qualquer explicação, que ela e seu deus jamais se amariam da mesma maneira, que o desejo dela seria sempre maior, assim como seria enorme o vazio que a esperava quando ele a trocasse por outra aluna talentosa no semestre seguinte. Era literalmente devorada por um amor sem amor. Por isso, seria capaz de tudo para ter sua aprovação. No entanto, sabia que as palavras que escreveu não seriam suficientes para se fazer amada por aquele que idolatrava. Com o tempo, ela deixaria de ser novidade, ele perderia a fome. Mas rezava toda noite por mais um dia, apenas um dia, ao lado daquele homem. Não mais fascinada por seu brilho ou encantada por sua voz, mas viciada

paixão juvenil. Minha adoração por este homem é tão grande que daria para encher meu corpo e o dele. E é deste sentimento monstruoso, apenas dele, que se alimenta o que chamamos de “nosso amor”.

nos efeitos que o corpo dele produzia em contato com o seu. Já não tinha mais pele, sentia a carne viva quando era tocada por deus. Sua angústia diante da paixão por um homem comprometido a levou a escrever um e-mail, e que reproduzo aqui, como exemplo da intertextualidade que atravessa toda a obra de Catarina Guerra. Trechos desta correspondência jamais enviada ao verdadeiro destinatário aparecem na voz de Leonora em “O amor é sempre inédito”, numa prova de que Catarina não só copiava os outros, como se copiava. Tudo, até a descrição de sua conturbada vida amorosa, era matéria-prima para a literatura.

Até então, eu não tinha ideia de que amar poderia ser tão terrivelmente doloroso. Corrijo. O amor pode ser a melhor coisa do mundo. Desde que você não o esteja procurando, tentando desesperadamente mantê-lo ou precise superar a dor de perdêlo, como eu agora. Este tipo de amor ainda era inédito para mim, mas agora vivo as três fases torturantes do amor com o mesmo homem.

Eu escrevo sem esperança de que alguma palavra minha altere o rumo de nossas vidas. Não posso obrigá-lo a me amar. Mas não recusaria essa possibilidade, se me fosse dada. Queria ser uma bruxa para enfeitiçá-lo e mantê-lo acorrentado a mim. Daria minha alma por este poder. Mas quem quer comprar minha pobre alma, com tantas à venda?

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Foi por essa mulher que ele se apaixonou pela primeira vez, foi a ela, e unicamente a ela, que ele lutou para conquistar. Por causa dela ele nunca me amará, apenas achará sedutora a ideia de ser amado novamente. Na vida dele, ela é a original e nós apenas cópias daquela

Terceira Parte

Sei que não começamos pelo começo. Para mim já era amor antes de ser. Uma mulher nunca deve ser a primeira a dizer eu te amo, e eu cometi este erro básico. Ali, naquele exato momento, eu vi que estava perdida. Talvez isso seja apenas uma superstição minha. A verdade é que, quando nos conhecemos, ele estava envolvido com outra pessoa. Sempre esteve. Nós, as outras, passaremos como os anéis. Ela, sim, tem seus dedos, sua mão, seu braço direito, seu corpo e sua alma. Nós, suas alunas amantes, somos jovens e pequenas como crianças de colo. Ela, sim, é do tamanho dele, da idade dele, entende cada uma das referências políticas, estéticas, filosóficas que ele generosamente distribui quando fala. Claro, ela conhece sua história, porque foi a protagonista. Ela até completa suas frases. Quem sou eu perto de uma mulher assim?

Nas palavras de Leonora:

Quando perguntei, olhando nos seus olhos, se me amava, percebi que você mentia. Quando nos conhecemos, você ainda estava envolvido com outra mulher. Sempre esteve. Pouco importa se ela está viva ou morta. Ela vai ficar para sempre entre seus dedos, é o corpo dela que sua mão busca quando você dorme, é o nome dela que você chama quando goza. Ela foi seu primeiro e único amor, a protagonista da sua história. Quem sou eu perto de um mulher assim? Catarina transportou a queixa para seu livro, como uma mensagem cifrada, na esperança de ter seu grito de socorro ouvido por um leitor em especial. Temia precipitar o fim da relação com qualquer coisa que lhe parecesse cobrança. Preferiu continuar no papel de doce e meiga pupila, aquela que nada pede e de nada reclama. Continuou escrava da aprovação de deus, ao ponto de se tornar alguém que não era nem nunca foi, de roubar para parecer mais rica, complexa, profunda. Depois disso, como tirar a máscara, se já estava pregada na sua cara? “Eu te odeio”, tentava dizer para aquele homem cujo único crime era não amá-la. Mas, mesmo que a amasse e estivesse disposto a terminar um longo casamento, não bastaria. Como ele poderia amar alguém que não existe, que apenas finge ser autora das frases que lhe saem pela boca? Catarina manipulava suas falas para que deus conhecesse apenas seu lado bom, jamais seus demônios. Todo “sim” que lhe dizia era desonesto, representava um “não” para si mesma. Era uma atriz, não uma autora. Criou um personagem e nele insistiu até o fim, mesmo sabendo que o papel de protagonista já havia sido ocupado por outra.

Guardei um e-mail em que a própria Catarina fala sobre seu projeto, talvez o único documento comprovando que tinha consciência de suas escolhas e que o plágio tinha sido uma aposta deliberada. As palavras denunciam o entusiasmo de quem percebe instintivamente estar diante de uma grande ideia e se anima com o enorme desafio que tem pela frente, sem imaginar o abismo para onde caminha.

Hoje eu encontrei o que tanto buscava sem saber. Uma caixa cheia de cadernos de frases feitas e trechos de poemas e romances, com a letra da minha mãe. Algumas máximas qualquer um pode identificar. Já de outras nem que eu procure mil anos vou descobrir

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Pode parecer estranho, mas acho que estou finalmente conhecendo a mulher que por acaso foi minha mãe. É como jogar um quebra-cabeças. O único problema é que eu nunca sei se estou colocando a peça na posição certa. Se aquilo é um olho ou um enfeite da blusa, uma boca ou uma unha. Talvez o quadro nunca fique completo. Ou seja totalmente equivocado, sei lá.

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Gênese de um vício

o autor. Achei curioso que ela não só sublinhasse, como eu já tinha percebido tantas vezes, frases e trechos inteiros de livros. Não, ela fazia muito mais: ela copiava! Ou será que algumas das belas frases que li foram escritas por ela e disfarçadas em meio a falsas citações? É difícil saber o que é original e o que não é.

Terceira Parte

Seu medo de perder não era pequeno nem injustificado. Aquele amor fora a sensação mais próxima da transcendência que já experimentara. Por isso, vivia cada minuto com medo de que fosse o último. “Meu cálice transborda”, repetia, bêbada de alegria, intimamente temendo derramar tudo com um único gesto. Mas ela mesma tinha plantado as sementes de sua destruição. E até estranhou que nem deus nem ninguém tivesse punido seu vício secreto, sua cleptomania. Chegou a pensar que podia enganar todos para sempre. Foi então que uma série de denúncias começaram a estourar. Como uma bola de neve, as postagens do tal blogueiro foram reproduzidas nas redes sociais e repercutiram em jornais e revistas de grande circulação. Repórteres não paravam de telefonar. Comentários ofensivos de gente que nunca tinha lido o livro proliferaram nos sites. Durante uma semana, só se falou no “escândalo literário” que era a premiação de um livro que não passava de plágio. Onde os jurados estavam com a cabeça quando compactuaram com aquela fraude? Que críticos eram esses que não notaram a semelhança de certas frases com as de tantos autores consagrados e mesmo contemporâneos? Poucos a defenderam. Até deus a abandonou. Desde então o mundo nunca mais seria um lugar feliz para Catarina Guerra. O escândalo revelou sua fragilidade emocional e intelectual. Retraiu-se, perdeu suas esperanças e ambições. Perdeu até mesmo o objeto do seu desejo. Não só aquele homem que endeusou, mas a máquina narcísica dos intelectuais que giravam em torno dele. Uma velha ferida se reabriu. Não soube ou não quis se defender. Ninguém entendeu que tudo aquilo tinha um propósito maior.

Tenho um projeto de escrever um texto novo a partir desses fragmentos reunidos numa ordem puramente aleatória. Simplesmente cortar e colar de forma que eles ganhem novo sentido. Samplear, como na música. Manipular, como nas artes gráficas. Customizar, para usar uma palavra da moda. Se as palavras pertencem ao nosso repertório em comum, quem poderia ser condenado por fazer uso delas ao seu bel-prazer, não é mesmo? Bom, certamente há a questão dos direitos autorais. Copiar a obra dos outros é plágio, você vai dizer. Eu sei! Mas e se eu embaralhar tudo a ponto de ninguém reconhecer? Pensando bem, não dá um livro, claro que não. Para haver um livro é preciso enredo, personagens, é preciso que coisas aconteçam. Um escritor deve saber usar suas próprias palavras. Mas ele as inventa? Claro que não! Então quem é dono das palavras? Talvez nem mesmo o autor que as escreveu as reconheça quando misturada a outras tantas, de outros tantos autores, parceiros à revelia. Afinal, quem é o autor aqui, senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando da brincadeira?

Não, pessoas de fora do nosso métier como ela desconhecem as regras da arte. Não têm ideia de que, assim como estes concursos públicos que reúnem milhares de pessoas, também o meio artístico está abarrotado de candidatos por vaga. Todos se acotovelando para conseguir que um editor leia seus originais, na ilusão de que, apenas por seu valor literário, decida publicá-los, indiferente ao fato de o autor ser um joão-ninguém. Então este pobre livro, de um pobre autor, de uma pobre editora, vai ser empurrado e esmagado nas prateleiras das livrarias, para o desespero dos pobres leitores que não sabem como se localizar em meio a uma floresta de árvores abatidas à toa. E só estamos falando daqueles leitores puros-sangues, que entram nestes templos dedicados ao livro para fazer alguma coisa que não tomar um café, comprar um CD ou um caderno espiral.

Você agora me conhece muito bem e sabe que eu não penso. Não tenho este nível de originalidade. Só junto coisas. Corto e colo. Gilettepress. Bricolage. Mas, se eu não avisar, botar aspas, usar o itálico, demarcar o que é de quem, ninguém vai perceber, nem o próprio autor, garanto. Nem mesmo você que acaba de publicar um livro do qual roubei uma frase que escrevi aqui neste e-mail. Tente encontrar, se for capaz. Moral da história: roubar de um é plágio, roubar de vários é arte, my dear.

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De qualquer forma, acho que, se ela sonhou com isso, nunca pensou seriamente em publicar, assinar seu nome num maço de centenas de papéis, mandar para uma editora, esperar durante meses a resposta, se preparar para ouvir vários nãos, esperar talvez anos para que o sim se transformasse em algo mais concreto que uma mera resposta positiva, tocar o livro com as mãos e olhá-lo como se olha um filho que acaba de nascer, com o máximo de estranhamento. Então era você que estava dentro de mim?

Terceira Parte

Minha mãe obviamente lia, lia, lia. E gastou o último ano de sua vidinha assim. Se um dia quis ser escritora, parece que nunca conseguiu. Pode ser que nem ao menos tenha esboçado, presa por algum bloqueio ou uma angústia de influência que não soube descrever. Não descarto que o paranoico do meu pai tenha queimado todas as páginas que julgara comprometedoras.

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Com certeza uma pessoa sem pudores de roubar a própria mãe, assumindo como seu textos que não escreveu, também não veria problema em desapropriar trechos inteiros de outros autores. No entanto, mais do que um roubo, Catarina considerava o livro que pretendia escrever uma grande homenagem à mulher que mal conheceu e de quem teria herdado a paixão pelos livros. Mas, ao contrário da inocente Alice, Catarina entendia muito bem os meandros da vida literária, seus jogos de poder, sua economia de prestígio.

Não vendeu? Não teve crítica positiva em suplemento cultural? Não teve boca a boca? Não entrou na lista de best-sellers? Não ganhou nenhum prêmio? Duas ou três semanas depois o bichinho já saiu dali, expulso com o rabo entre as pernas, para dar lugar a outro livro de autor mais famoso, uma biografia de uma celebridade, ou apenas as memórias de uma putinha francesa, italiana ou brasileira, contando as barbaridades que faz entre quatro paredes. Bem, estas pelo menos fazem seus leitores felizes. Pior são os outros, esse bando de literatos medíocres como eu vivo tentando ser – sim, você já percebeu que herdei o vírus da minha mãe –, que ficam escarafunchando as dores e os desamores com palavras bonitas. Isso quando não passam a vida nos bares, discutindo os livros que jamais vão terminar, exatamente como eu e você vivemos até agora. “Será que vocês não podem nunca escrever alguma coisa alegre, para cima?”, perguntam os leitores, a maioria mais medíocre ainda. “Algo útil como um livro de autoajuda (por isso nós os compramos), e

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Terceira Parte

Depois do escândalo que envolveu seu nome, os encontros ruidosos nos bares frequentados por jovens escritores na Vila Madalena ficaram para trás. Suas mesas continuam apinhadas de publicitários e jornalistas de todo o Brasil que vão parar em São Paulo em busca de uma chance e algum dinheiro. Mas Catarina não é mais quem era – a jovem estrela que ganhou o maior prêmio do país e ainda por cima desfilava nos braços de um dos deuses da USP. Hoje ninguém mais a inveja ou reverencia, embora seu nome seja eventualmente citado em acaloradas discussões sobre ética e arte. As chaves da casa de Catarina ficaram comigo quando ela deixou o Brasil com rumo desconhecido, numa reclusão solitária ao interior de sua própria pele, tão chamuscada. Tudo o que sei dela é que há um ano concentra-se em colar os cacos, lamber as feridas e estancar o sangue, buscando uma trégua em sua guerra particular. Vez por outra se anestesia com uma garrafa de vinho ou alguma droga mais pesada como o calor de outro corpo, conforme resume nos raros informes aos amigos. Fora do Brasil, pode se dar ao luxo de se passar por outra pessoa, reescrever o passado e, talvez, o futuro. Nunca nos disse para onde foi ou onde está. Não sabemos nem a atual cor dos cabelos dela. Tive uma pista, que pode muito bem ser falsa, quando usou as palavras de um heterônimo de Fernando Pessoa, naturalmente embaralhando os versos usurpados, na infantil ilusão de que eu não o reconheceria. “Nada sou, nunca serei. Não posso querer ser mais nada. Falhei em tudo. Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Decididamente não está curada. Sem seu testemunho ou confissão, só me resta refazer seus passos em busca de uma resposta para o enigma que Sujeito oculto acabou se tornando com o tempo. Por isso, sou obrigado a entrar em seu labirinto. Abro a porta com cuidado. O apartamento de Catarina é pequeno, mas não sua biblioteca, que toma as paredes da sala, do único quarto e até do banheiro. Passar meus dedos por estas estantes empoeiradas,

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não essas perversões, esta bobagem a que dão o nome de literatura contemporânea com a boca cheia de si. Se ao menos a gente pudesse entender o que vocês escrevem, ainda lhes dava alguns trocados, seu bando de joões-ninguém. Mas não, vocês estão preocupados em mudar a ordem das coisas, retorcer tudo, transformar o simples no difícil, o comum no diferente, seus filhinhos de Joyce que nem mesmo conseguem ler o sujeito até o fim.” Você duvida que seja isso que falam da gente?

retirar os livros empilhados sem capricho, folheá-los ao acaso, é uma forma de juntar os fragmentos desta escritora assassinada prematuramente pela crítica. Sob as capas, há toda uma vida subterrânea que vasculho em busca de alguma palavra reveladora. Assim como um analista, em tese, pode ler os sonhos dos pacientes como uma forma de chegar ao inconsciente deles, tento descobrir nestes livros reflexos da vida interior de quem os marcou. Percebo que as pistas não estão somente nas frases que Catarina publicou como autora, mas nos trechos que selecionou como leitora. É aí que o sujeito oculto se revela. Não é uma tarefa fácil fazer um levantamento completo das fontes desse livro para finalmente organizar sua bibliografia, embora meu objetivo seja ainda mais ambicioso. Tiro um volume ao acaso da prateleira. Assim como quaisquer obras que já tivessem passado pelas mãos de Catarina, como eu já havia percebido desde os tempos da faculdade, o exemplar está dilapidado, as páginas que mereceram destaque, marcadas com as detestáveis orelhas que eu tanto criticava. No final, não é raro encontrar um índice particular, apontando correlações entre temas e páginas cujo sentido muitas vezes me escapa. Nem Catarina se lembrava de quando tinha começado o vício. Confessava que tinha um prazer especial em pegar um livro que lhe parece novo e descobri-lo desvirginado por suas próprias anotações. A verdade é que seu raciocínio se processava por rasuras e usava as marcações para cobrir a falta de imaginação, tanto quanto as de memória. “Escrevo porque leio. E porque esqueço o muito que li”, anotou ao final de um exemplar bastante machucado dos Ensaios, de Montaigne. Para ela, a leitura era uma espécie de escrita feita tanto com os olhos quanto com as mãos. Impossível encontrar qualquer livro virgem em sua biblioteca. Nem mesmo o capítulo mais entediante das Meditações metafísicas, de Descartes, escapou dos sublinhados e comentários, que muitas vezes cobriam todas as partes brancas da página, com uma caligrafia horrorosa que transformava tudo em hieróglifos quase incompreensíveis. São fragmentos que exigem do leitor um esforço de investigação para adquirir algum sentido. Cada prateleira parece ter a própria alma, com livros agrupados por afinidades que posso intuir, mesmo na ausência do proprietário. Em minha peregrinação por esse universo particular, tento identificar um método na biblioteca anotada deixada por Catarina Guerra. Suas marcações mais comuns não passam de simples sinais de atenção, um sublinhado, uma seta, um asterisco, um ponto de interrogação ou exclamação, uma provável reação emocional ao que estava lendo. Marcas de uma vida de leituras que poderia ser desperdiçada, se nunca ganhasse corpo nas páginas de Sujeito oculto.

blicada num paper difundido numa obscura revista acadêmica chamada Aemulatio, sobre o processo histórico que deu origem às notas de rodapé no século XVII. Tinha consciência de que não somos donos de nada, nem de nossas próprias palavras. Por isso, recusava-se a usar aspas. Afinal, que importa quem fala? Diante de um impasse de tal envergadura, decidiu deixar a escrita acadêmica de lado e partir para a ficção. Brincava que só um escritor que não soubesse ler poderia aspirar ser original. No mais, qualquer autor estaria fadado a traduzir sentimentos e ideias a partir de um dicionário de citações, num jogo de espelhos infinitamente recuado. Na margem horizontal de um livro, encontro esboçada com sua letra uma questão intrigante:

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Se um personagem não passa de um jogo de palavras, sem carne ou osso, será que também não estamos nos enganando quando nos apalpamos e dizemos ‘Penso, logo escrevo’?

Terceira Parte

Catarina variava entre o uso da caneta e do lápis, resta saber se por um objetivo consciente de transformar algumas marcas em perenes e deixar outras que pudessem ser apagadas, ou se, por acaso, simplesmente porque canetas e lápis estavam lá, ao lado de sua cama, como até hoje. Não sentia culpa por escrever nos próprios livros ou nos dos outros, ignorava solenemente o tabu que transforma a rasura num crime contra uma obra de arte fechada. Todos os livros que emprestava vinham com suas marcas. Os que tomava emprestado também, para desespero dos amigos. Não tinha pudor de se expor, de mostrar suas reações mais impulsivas de forma nua e crua, de permitir que o próximo leitor penetrasse em seus pensamentos mais íntimos. Ou de perverter os propósitos do autor cometendo verdadeiras heresias em relação ao pensamento original. Anotadores compulsivos, como Catarina Guerra, em geral são também leitores compulsivos. Mas nem todos os apaixonados se permitem este tipo de violação do objeto amado. Anotações nas páginas de um livro são a marca típica de um leitor especial, um leitor que escreve. Para um bibliófilo, como eu, trata-se de um defeito de caráter tão grave quanto uma perversão. Mas a raça dos anotadores não é tão conservadora; eles se divertem subvertendo a relação natural entre autor e leitor – eu escrevo, você lê –, que está longe de ser uma regra imutável para eles. Quando revisei os originais de Sujeito oculto, avisei a Catarina que seria melhor usar aspas e notas de rodapé para se livrar das acusações de plágio, ou pelo menos uma bibliografia. Mas ela fugia disso desde os tempos do mestrado, quando se emaranhou em referências que já não sabia identificar e literalmente entrou em pânico. Dizia-se vítima de criptomnésia. Esquecera-se de anotar as fontes do que leu e a memória embaralhou tudo, incorporando indiscriminadamente experiências, ideias e conceitos alheios, apagando as pegadas dos autores originais. Passado o desespero de não saber mais o que era seu, começou a tomar gosto pela coisa. Deu para escrever reciclando trechos, desapropriando palavras a blocos inteiros de seu contexto. O trabalho maior era dar lógica e coerência a tudo, lixar e pintar por cima, para não chamar a atenção para o paciente trabalho de bricolagem. Depois da defesa da dissertação, confessou, rindo, que transcreveu parágrafos inteiros da tese de doutorado de seu orientador, sem que nem ele percebesse, apenas suprimindo algumas palavras e acrescentando outras. E garantia que mesmo os autores mais zelosos como deus em pouco tempo esqueciam o que tinham escrito, quanto mais o que tinham lido. Não era apenas uma questão de indisciplina. Catarina Guerra desenvolveu toda uma teoria para justificar sua rebeldia contra as aspas, pu-

Racionalmente sou capaz de embarcar neste jogo mental. No entanto, não é fácil nos sentarmos, eu e você, diante de uma biblioteca como a de Catarina Guerra e pensar que nenhum daqueles grandes e mesmo os mais medíocres autores sejam verdadeiramente originais. Que todos construíram mosaicos de outros textos, escondendo com maquinações de estilo a argúcia de seu encaixe, como ela mesma tentou fazer, com relativo sucesso. Que a genialidade literária não passe de uma encenação, um truque de mágica que esconde um ideal de originalidade impossível. Que nenhum daqueles livros seja uma obra-prima no sentido literal. Mas talvez seja exatamente isso que faça com que não sejam letras mortas em restos de árvores secas, ruínas do que foram. Se não morreram, vivem até hoje. Quem lê suas palavras decididamente não é um homem morto, mas alguém que resgata cacos aqui e acolá na tentativa de reconstruir um mundo próprio, que, na falta de outro nome, chamamos de arte. Motivo de muitos de nossos embates, Catarina Guerra não acreditava no artista como criador, assim como não acreditava totalmente num Deus com letra maiúscula, que tudo vê e tudo pode, inclusive reescrever o final da nossa história caso usemos as palavras certas em nossas orações. Assim, a única coisa que conseguiu produzir foi uma heresia literária chamada Sujeito oculto, que arruinou a sua vida. Não tirou tudo da cabeça, como tradicionalmente se espera, mas também não produziu uma mera cópia, como acusa o processo que mutilou seu livro. Mesmo contaminado pelo ceticismo de Catarina, sigo desesperadamente tentando arrancar um EU disso tudo. Num momento de crise, espalho centenas de livros à minha volta e me pergunto de onde eles

vêm. Não das grandes máquinas que os produziram, mas dos cérebros que os criaram. Sob as capas, enxergo toda uma vida subterrânea. De onde saíram essas histórias? Quem as dita? Por que até mesmo o mais iletrado dos homens sonha todas as noites narrativas mirabolantes em que tem a chance de experimentar outras vidas? Durante muito tempo, julguei ser minha tarefa como crítico literário lançar luzes sobre o que o leitor e o próprio autor desconheciam, buscar nas entrelinhas a ideia reveladora. E agora, com Catarina ausente, a pretensão de decifrar sua obra e dar-lhe algum sentido me parece totalmente inútil. Caminhando sobre os livros da mulher que amei em silêncio durante mais de uma década, eu me pergunto como pode se estabelecer uma relação de propriedade entre algo tão imaterial quanto as palavras e um nome. Por acaso, estas que derrubei da estante num acesso de loucura não podem ser todas dela? Ou minhas, agora que ocupo seu lugar?

Julio Paz São Paulo, 10 de abril de 2014

Este livro foi composto em Parable e Zwo e foi impresso em papel jornal pela Grafitto em setembro de 2014.

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