Tá Rindo de Quê? Preconceito Racial em Programas Humorísticos de Televisão

July 4, 2017 | Autor: Kellen Julio | Categoria: Media Studies, Television Studies, Race and Ethnicity, Ethnic and Racial Studies
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL JORNALISMO

TÁ RINDO DE QUÊ? Preconceito racial em programas humorísticos de televisão

KELLEN CRISTINA XAVIER JULIO Niterói Julho /2007 Projeto Experimental em Jornalismo GCO 09196

Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) Curso de Comunicação Social

TÁ RINDO DE QUÊ? Preconceito racial em programas humorísticos de televisão

Projeto Experimental apresentado por Kellen Cristina Xavier Julio matrícula 203.300.97-1 como requisito obrigatório para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – habilitação Jornalismo – sob a orientação do(a) Prof. Dr.Felipe Pena.

IACS/UFF Niterói Julho/2007

Curso de Comunicação Social – Jornalismo Niterói, 2007 FOLHA DE APROVAÇÃO

NOME DO (A) ALUNO(A): ______________________________________________ TÍTULO DA MONOGRAFIA: ____________________________________________ LOCAL E DATA DA APROVAÇÃO: ______________________________________ COMISSÃO DE AVALIAÇÃO FINAL: Nome dos professores:

Assinatura

Prof. ___________________________ (Presidente)

___________________________

Prof. ___________________________ (Examinador) ___________________________ Prof. ___________________________ (Examinador) ___________________________

Dedico este trabalho aos meus pais.

Agradecimentos

Primeiramente, agradeço a Deus por toda ajuda e suporte nos momentos mais difíceis da minha vida e da minha carreira. Sem dúvida não seria ninguém sem Seu apoio. Meus pais que foram perfeitos em minha criação. Obrigada por todo sacrifício para financiar minha educação e minha vida. Vocês foram minha fonte de inspiração em cada minuto que me esforcei para ter mais conhecimento. Admiro vocês por tudo que fizeram por mim e tudo que aprendi na vida. Yahn Wagner pela eterna compreensão e dedicação. Sua contribuição emocional e intelectual foram fundamentais para minha vida. Isabel Monsanto, por me apoiar e estar presente em todos os momentos. Ao querido e amigo professor Felipe Pena, pelos conselhos construtivos e inteligentes. Você foi fundamental para a realização do meu trabalho. Sua sensibilidade e flexibilidade me fizeram aprender e enxergar minhas próprias idéias de maneira clara.

SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO............................................................................................................8 1.1 O trabalho....................................................................................................................8 2.UMA DISCUSSÃO SOBRE PRECONCEITO: ALI KAMEL X EDWARD TELLES ..........................................................................................................................10 3. PIADAS E PRECONCEITOS: FREUD E OS ATOS FALHOS............................18 4. ESTUDO DE CASO....................................................................................................28 4.1. O discurso do humor..................................................................................................26 4.2 Dois programas humorísticos de televisão: um estudo de caso sobre TV Pirata e Casseta e Planeta Urgente!................................................................................................28 5.CONCLUSÃO..............................................................................................................36 6.BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................38

RESUMO

A compreensão da miscigenação brasileira e seus reflexos no território são fundamentais para o entendimento dos problemas sociais e raciais no país. Apesar da interação e fluidez entre as raças, comprovada através de casamentos inter-raciais e convívio harmônico, o preconceito continua velado e presente no inconsciente da população, tornandose público principalmente através dos atos falhos, conceito estudado nesta monografia a partir de uma leitura primária de Sigmund Freud. Para analisar esta discriminação, abordaremos dois programas humorísticos de TV. Acredita-se que a televisão seja um significativo termômetro social. Ela concentra importantes vícios de tratamento e comportamento, e principalmente confirma estigmas e preconceitos enraizados no cotidiano dos indivíduos.

Palavras-chaves: Raça. Miscigenação. Segregação. Humor. Televisão.

1. INTRODUÇÃO A variedade de culturas e histórias presentes no território brasileiro sempre chamou a atenção para os reflexos da miscigenação. Brancos, pardos, negros, índios e mulatos. São inúmeras as nomenclaturas utilizadas para discernir, classificar e discriminar a população. Não se pode negar que as relações raciais no Brasil são marcadas pela interação e fluidez. Contudo, a discussão sobre a existência de um preconceito vertical (entre classes sociais distintas) e horizontal (entre indivíduos de mesma classe), abordado pelo sociólogo Edward Telles em seu livro “Racismo à brasileira”, será fundamental no entendimento e na construção da parte teórica deste trabalho para, posteriormente, mostrarmos como o preconceito recalcado se apresenta através de casos humorísticos. A maneira de organização do território brasileiro tanto no que diz respeito às relações raciais quanto sociais torna necessária uma análise diferenciada. Outros países da América Latina e do mundo, com passado histórico semelhante, têm um tipo de estrutura racial parecida, mas não igual. Na realidade, minha a intenção é pesquisar como nossas relações combinam os modos de outras nações, aliados a um estilo próprio de condução e manifestação social, buscando no humor indícios que confirmem essa discriminação. 1.1 O trabalho Meu trabalho encontra-se dividido em três capítulos intitulados de “Uma discussão sobre preconceito: Ali Kamel x Edward Telles” (capítulo 1), “Piadas e preconceito: Freud e os atos falhos” (capítulo 2) e “Estudo de caso” (capítulo 3). O primeiro capítulo pretende discutir as premissas do preconceito racial no Brasil traçando um paralelo com a realidade dos Estados Unidos, mostrando que o nosso cotidiano não é tão distante - e nem mesmo tão igual - à norte-americana. Sobre as relações raciais, o capítulo concentrará esforços para mostrar que a realidade das duas nações sempre foi dividida em conceitos bipolares. Uma era a segregacionista e marginalizava os negros afastando-os dos brancos física e socialmente. A outra permitia miscigenação e interação entre as raças, primordialmente entre pessoas da mesma classe social. Exporemos as dificuldades do próprio processo de construção de estudos sobre as relações raciais, que quase em sua totalidade mantiveram seus argumentos – todos bastante dis-

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tintos entre si – concentrados nestas duas correntes que acreditam na existência de uma separação ou “plena” harmonia entre as raças. Este estudo é exposto através da argumentação do jornalista e sociólogo Ali Kamel e do pesquisador norte-americano Edward Telles. Kamel concentra suas críticas na aplicação dos modelos de tratamento e observação do racismo americano no país, alegando que temos passado por uma transformação maléfica que tem absorvido o ponto de vista de “segregação” dos Estados Unidos. Para ele, o que antes era uma “admirável” característica brasileira tem se tornado um problema aos olhos de muitos. Políticas governamentais e a própria atuação do movimento negro tentam separar as raças e criar privilégios desnecessários. Telles, contudo, apresenta um pensamento diferente e declara que apesar de considerar a miscigenação como uma característica marcante do país, ela não está concentrada em todas as camadas sociais, já que a maioria mais favorecida economicamente no país é branca. As misturas ocorrem entre indivíduos de mesma classe e não atingem toda esfera social. No segundo capítulo, buscamos relacionar o preconceito racial com o processo de formação dos chistes e do ato falho, a partir dos estudos freudianos. De maneira simples e inicial, tentaremos mostrar que o pensamento involuntário e a censura nos levam a cometer “erros” que mostram pensamentos escondidos e camuflados pelo nosso inconsciente, inclusive o preconceito. Sabemos que a discriminação não é bem vista, e por isso, quando a temos, tentamos escondê-la. O ato falho revela o pensamento ou algum valor consciente que por questões morais ou sociais precisou ser recalcado. Tentamos mostrar mecanismos parecidos com o chiste, no que diz respeito à censura, para mostrar (ao longo dos capítulos, principalmente após a exposição do terceiro) como o discurso racista se mantém embutido no imaginário da população. No último capítulo, apontaremos através de exemplos como os atos falhos confirmam o discurso racista no cotidiano. O foco específico para ratificar esta idéia é o uso dos chistes, e para isto, um estudo de caso de programas humorísticos de televisão, especificamente a TV Pirata e o Casseta e Planeta Urgente! será realizado. Os programas de humor se desprendem de censura e inibição para criar o cômico e com isso se “ausentam” de certas responsabilidades que o cidadão “comum” deve ter para viver em sociedade. No caso dos programas estudados, eles mostram exatamente os problemas que a sociedade renega ou “não consegue resolver” de maneira irônica e crítica. Contudo, para isto eles exageram alguns fatos da realidade, inclusive o racismo, para chamar a atenção do telespectador. Eles não criam o ato falho, mas repetem aqueles que a própria população faz. 9

2. UMA DISCUSSÃO SOBRE PRECONCEITO: ALI KAMEL X EDWARD TELLES A existência de paradigmas tão concretos e simultaneamente tão abstratos sobre o racismo no Brasil e no mundo, chama a atenção para a manutenção de desigualdades ligadas intimamente ao passado histórico e cultural de algumas nações. Particularmente neste trabalho, para criar uma análise consistente sobre o racismo, serão utilizados os Estados Unidos como principal fonte de comparação no que diz respeito aos modelos de supressão e conservação de um sistema de desigualdade racial. A própria utilização da nomenclatura “raça” para denominar padrões étnicos e físicos diferentes é uma questão discutida entre diversos autores. Apesar de ter ciência que não existem sub-raças dentro da raça humana, e que o conceito criado para “raça” é social, não possuindo nenhuma ligação com a biologia, utilizaremos este termo como um indicador da diferença de cor entre brancos, pardos e negros. Por mais que se utilize o termo “etnia” suprimindo o conceito social que a palavra “raça” adquiriu com o tempo, pode-se dizer que a mesma não apresenta o mesmo valor semântico que a outra, já que “etnia” significa um grupo de indivíduos com valores culturais e lingüísticos semelhantes, o que não, necessariamente, ocorre com indivíduos brancos ou negros que habitam o mesmo território. A utilização da expressão raça se faz necessária para demonstrar algumas características físicas semelhantes entre um grupo de indivíduos na ausência de uma conotação social e semântica apropriada para tal. Alvo de grande discussão no Brasil, a discriminação racial tem sido bastante debatida no âmbito político, social e intelectual nas últimas décadas. As possíveis e reais comparações com o modelo norte-americano trazem acalorados debates sobre a realidade racial no país. Historicamente, no Brasil “os colonizadores europeus e seus descendentes escravizaram e importaram 11 vezes mais africanos do que os colonizadores da América do Norte” (Telles, 2006:16), o que promoveu ao longo dos anos na sociedade brasileira uma maior interação entre brancos e negros - além da criação de outras diversas “cores”, como os pardos e mulatos. Já no final do século XIX e no início do século XX, os dois países receberam milhares de imigrantes europeus (suíços, espanhóis, portugueses, italianos e alemães) que visavam satisfazer as necessidades da lavoura cafeeira e posteriormente do processo industrial. Com a lei Eusébio de Queiroz, decretada em 1850, o tráfico negreiro ficou proibido e as teorias racistas que assolavam a Europa cooperaram para que os negros fossem ainda mais excluídos da sociedade, mesmo com o processo abolicionista. Conseqüentemente, a mão-de10

obra negra que era utilizada nas lavouras foi substituída pela européia criando um vazio social na estrutura de classes brasileira. Este foi um dos grandes marcos históricos brasileiros que iniciaram a estratificação da sociedade usando a raça como critério de avaliação. Historicamente, os Estados Unidos e o Brasil possuem muitas semelhanças no processo de composição racial, mas cada país delimitou a maneira de lidar com isso. As comparações entre essas nações compõem um dos maiores dilemas sobre o estudo racial no Brasil. Muitos dos estudiosos classificam o preconceito racial em dois pólos: o que é igual ao americano e o que é completamente o oposto. Pelos EUA terem sido grandes pioneiros nos estudos sobre preconceito racial já na década de 60, suas ideologias e políticas foram passadas para diversas partes do mundo como um início para a percepção e a análise do preconceito. Em cada país, teóricos de diversas áreas de atuação concentraram seus esforços e delimitaram o problema de raça brasileiro e americano caracterizando-os pela miscigenação e segregação, respectivamente. No caso norte-americano, “a distância física e social entre negros e brancos, aliada às fortes normas sociais que asseguram essa distância, é responsável pelos altos índices de desigualdade racial” (Telles, 2006:20). A partir deste comentário, poderia se dizer que sem este isolamento a discriminação tenderia a diminuir até se extinguir. Apesar de lógica na prática, esta associação não é verdadeira, já que o caso brasileiro mostra que isto não ocorre. Nos EUA, por exemplo, o excesso de segmentações entre as etnias deslocou o foco do preconceito social dos negros e incluiu outros grupos. “Como se sabe, não existem mais americanos. Lá as pessoas são euro, afro, latino, nativo, asiático-americanas” (Carvalho, 2007:24) comenta o professor de História José Murilo de Carvalho em seu artigo na Revista de História da Biblioteca Nacional. Os americanos, para preservar uma espécie de “pureza” da nação, classificam em variadas divisões os habitantes do território, impedindo a fluência da diversidade e promovendo, consequentemente, a discriminação. Os problemas que atualmente o país sofre com a imigração legal e ilegal intensificam a exclusão, e principalmente aprisionam as etnias em guetos. É certo que a riqueza e prosperidade norte-americana são um atrativo populacional, mas o sentimento xenófobo que assola países como Estados Unidos, França e Rússia, impede uma integração entre as culturas. Segundo reportagem publicada no site do jornal a Folha de São Paulo, atualmente moram ilegalmente nos EUA cerca de 12 milhões de pessoas (Folha Online, 2007).

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Ao contrário do modelo americano, o Brasil paulatinamente incorporou a cultura imigrante e permitiu, conscientemente ou não, o agrupamento de valores estrangeiros. Apesar disso, os afro-descendentes ainda sofrem, em ambos os países, o preconceito de ter vivido um passado escravo. Atrelado à miscigenação e segregação, diversos autores lançam uma série de conceitos que compõem suas análises sobre as relações raciais. O jornalista, Ali Kamel, em seu livro “Não Somos racistas – Uma reação aos que querem nos transformar em uma nação bicolor” cita o racismo de marca e de origem para explicar a principal diferença do racismo entre os países em estudo. Segundo ele, o problema que assola os EUA é bem diferente do que atinge o Brasil. Na América do Norte, o simples fato de um indivíduo ter ascendência africana já o deixa estigmatizado e segregado, mesmo sendo de pele clara. A origem importa muito mais do que a aparência física. Já no caso brasileiro, a cultura da miscigenação tornou quase inevitável que as pessoas brancas não tenham parentes ou contato com negros, pardos ou mulatos. Aqui o que realmente importa e classifica é o fenótipo, independentemente de sua origem. Para ele, o preconceito racial não é traço dominante na sociedade brasileira já que “as relações de amizade inter-raciais, os casamentos mistos, a inexistência de barreiras institucionais contra negros e a ausência de conflito e de consciência de raça”. O que Kamel não prevê é que segundo sua teoria, a miscigenação deveria se extinguir ou acabar com o racismo por si só, sem a necessidade de criação de políticas específicas. A integração sem conflitos ou tensões, como muitos alegam existir plenamente no Brasil, deveria ser um processo que chegaria a um final concreto e permanente de aceitação (inclusão). Ou seja, ela seria inevitável e aconteceria de qualquer jeito em uma sociedade. A grande problemática dos países latino - americanos é que além de ter seu racismo concentrado em indivíduos de mesma classe, ele extrapola este limite e se expande para outras camadas. No livro “Racismo à brasileira”, do americano Edward Telles, é explicado este tipo de preconceito alegando a incomparabilidade do racismo entre as nações, já que cada uma tem aspectos muito singulares na construção da ideologia social e racial. No caso dos países latino – americanos, existem duas dimensões que denominam relações sociais de preconceito: “vertical e horizontal” (Telles,2006:20) e para ele, apresentam a seguinte definição: “Entende-se por relação racial horizontal a sociabilidade inter-racial, especialmente entre pessoas da mesma classe social. Por sua vez, as relações verticais são aquelas entre diferentes classes sociais que implicam de poder sócio-econômico.” (Telles, 2006:303)

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Para Telles, o estudo do racismo no Brasil se concentrou principalmente em duas correntes opostas, que mesmo em épocas distintas, encontraram adeptos fervorosos para carregar alguns conceitos através das décadas. A chamada “primeira geração” de pesquisadores sociais, agrupados dos anos 30 aos 60, quis exibir as maravilhas da miscigenação brasileira, apoiados em uma idéia descrita por Gilberto Freyre. Para ele, apesar de todo processo discriminatório e excludente, havia uma superação da diferença comprovada através da mestiçagem e da integração entre as culturas, o que excluiu o caráter sócio-econômico do problema. Os acadêmicos da “segunda” geração desde o princípio dos anos 50 caracterizaram o problema racial no Brasil excluindo e refutando a miscigenação brasileira. Ali Kamel se enquadra ideologicamente na primeira geração pela hipótese da experiência comparativa com os Estados Unidos, tendo como base a teoria de que a ausência de segregação (distância e falta de interação entre as diferentes raças) comprova baixa tensão social nas relações raciais. Para ele, a principal diferença entre o racismo norte-americano e o brasileiro é que “o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor” (Kamel, 2006:20). A idéia de Kamel, discutida nas últimas linhas do parágrafo anterior, coloca o racismo brasileiro em um patamar que por conseqüência temporal extinguiria este sistema da sociedade. Para estes pensadores, os níveis de casamentos inter-raciais e a segregação espacial (residencial) eram fatores fundamentais para mensurar até que ponto os negros eram aceitos pelos brancos. As distâncias entre eles eram atribuídas ao período de escravidão recente. Comparado aos Estados Unidos, percebe-se que o Brasil possui uma distância horizontal bem menor entre grupos sociais. As diferenças raciais têm significado distinto para norteamericanos e brasileiros. Os casamentos inter-raciais, por exemplo, merecem ser analisados com cuidado. No Brasil, a cor “branca” possui um status e até existe uma idéia difundida na população de que o “branqueamento social” é desejado por pessoas negras ou pardas como forma de ascender socialmente. Costuma-se dizer que o negro quando tem melhora significativa na sua situação econômica opta por se relacionar somente com pessoas brancas. A grande questão a ser discutida é a idéia da “fluidez racial” que defende a primeira geração. A mesma insiste em uma convivência pacífica e harmônica entre as raças como se as uniões inter-raciais e a convivência física entre pessoas de cores diferentes fosse o único símbolo que, por si só, demonstrasse a “paz” racial na qual o país habitaria.

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“De repente, nós que éramos tão orgulhosos da nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.” (Kamel, 2006)

A concepção de Kamel reflete uma postura inverossímil. A mestiçagem é uma “virtude de vitrine” que é exportada pelo Brasil a outros países e difundida em território nacional. A idéia da brasilidade mestiça, que permite a convivência das raças em equilíbrio absoluto parece única no Brasil, apesar desta heterogeneidade ser comum em inúmeros países do mundo. Segundo a crítica conjunta do sociólogo francês Pierre Bourdieu e do antropólogo Loïc Wacquant (Bordieu & Wacquant, 1998) a intervenção etnocêntrica dos Estados Unidos ganha particular nitidez nos estudos sobre as desigualdades “etno-raciais”. Como dito anteriormente, a influência cultural, hegemonia econômica e primazia nos estudos sobre racismo envolvendo afro-descendentes permitiram outros países se “contaminassem” por algumas idéias norte-americanas. Com o tempo, as necessidades e a própria política promovida por cada estado se encarregaram para que cada um tivesse sua “personalidade”, mas no caso do Brasil a miscigenação e segregação coexistem. A identidade racial dos indivíduos é, por exemplo, outro fator que chama atenção no estudo do preconceito brasileiro. Aqui existe uma dificuldade de qualificação racial por parte das pessoas. José Murilo de carvalho comenta em seu artigo que a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatística) de 1998 mostrou que pessoas classificadas como pardas pelo entrevistador – segundo os critérios de avaliação da época: branco, pardo e negro – quando deixadas livres para se autoclassificarem, se disseram “morenas” e “morenas claras” em 60% dos casos. Apesar desta dificuldade notada em 1998, os dados oficiais divulgados pelo IBGE em 2000 mostram um panorama interessante. Em 2000, pelas declarações fornecidas pela população, 91.298.042 (53,7%) consideraram-se brancos, 10.554.336 (6,2%) pretos, 761.583 (0,5%) amarelos, 65.318.092 (38,4%) pardos e 734.127 (0,4%) indígenas. E ainda, segundo os números dos censos, a proporção de pessoas que se declararam brancas declinou de 1940 (63,5%) até 1991 (51,6%), e em 2000 essa proporção apresentou ligeiro crescimento (para 53,7%). A proporção da população preta, que vinha caindo também desde 1940 (14,6%), apresentou um crescimento na sua extensão, passando de 5%, em 1991, para 6,2% em 2000. Em contrapartida, a dimensão da população de pardos, que vinha cres-

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cendo desde 1940 (21,2%), atinge, em 1991, a proporção de 42,4% e cai para 38,4% em 2000. A proporção da população indígena passou de 0,20%, em 1991, para 0,43% em 2000. (IBGE) As alterações dos números das pesquisas refletem uma mudança na maneira de ver do brasileiro. As pesquisas (raciais) não são consideradas “totalmente concretas”, já que um indivíduo entrevistado oferece a classificação racial de todos os membros de sua família (residência), o que pode ou não refletir como cada integrante se autoclassifica. Poderíamos afirmar que a alteração dos dados mostrados acima indica uma maior conscientização populacional sobre sua própria cor, o que justifica o aumento do número de brancos e negros. Porém, esta conclusão pode ser arriscada, pois a negação dos pardos pode significar a anulação da miscigenação existente no Brasil que deve ser considerada. Para Telles, os sociólogos raramente questionam os dados das estatísticas porque acreditam que a determinação de raça é essencial ou fixa, ou seja, algo tão concreto quanto ser homem ou mulher. A idéia da ambigüidade no conceito de raça é raramente incorporada à análise sociológica. Com a evidência das pesquisas e as cobranças do movimento negro, o estado começou a agir para tentar corrigir alguns problemas raciais. As principais pressões foram feitas no final da década de 70 e início de 80, que gerou uma mudança significativa na constituição. Anteriormente, o racismo era considerado apenas contravenção penal e a partir da Constituição de 1988 “a prática do racismo constituiu um crime sem direito a fiança e sem prescrição de pena, sujeito a pena de prisão” (Maluf, 2007). No campo das ações afirmativas, o governo tomou uma grandiosa decisão ao instituir em 2001 a adoção de cotas para pardos e afro-brasileiros em uma universidade pública, a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Apesar de inúmeras críticas e simultaneamente elogios que a iniciativa teve, esta ação abriu portas para a criação do projeto de lei 1

(PL3627/04) que visa implantar a reserva de vagas para os afro-brasileiros nas universidades

federais brasileiras. Atualmente 18 universidades públicas têm cotas no Brasil.2 Outra ação interessante foi a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), sob a responsabilidade da ministra Matilde Ribeiro em 21 de março de 2003. A principal tarefa designada à SEPPIR foi promover a igualdade e proteção

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http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=498 MACULAN, Nelson. Entrevista. In: Advir, nº 19. Rio de Janeiro: ASDUERJ, setembro de 2005, pp. 87.

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dos direitos dos indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra3. Para Ali Kamel “os negros brasileiros não precisam de favor” (Kamel, 2006:95), já que para ele estas medidas grotescamente importadas dos Estados Unidos não possuem nexo com a política local. Segundo o jornalista e sociólogo, somente a educação é capaz de diminuir as disparidades que afetam maciçamente o Brasil. É bem nítido que a falta de educação cria e agrava problemas políticos, sociais e culturais gravíssimos no Brasil, e que seu fortalecimento é vital para a construção de uma sociedade mais justa e igual. Contudo, em um país onde somente a elite branca tem acesso à educação de qualidade, só ela ingressará nas melhores escolas, inclusive no ensino superior público. Para os críticos das cotas, a entrada na universidade pública é por mérito, quando na realidade se dá pela capacidade financeira de pagar cursinhos preparatórios. “A admissão à universidade parece, então, ser muito mais uma ‘testocracia’ do que ‘meritocracia’” (Telles, 2006:287). Ali Kamel concentra seus estudos na crítica à importação e aplicação de valores e idéias americanas para o tratamento da desigualdade social no Brasil isolando nosso país de qualquer semelhança com os norte-americanos, ou com qualquer outro. A idéia da soberana mestiçagem anula os conflitos e tensões raciais reais existentes no território brasileiro. É fato que existe um movimento que tenta bipolarizar as raças, classificando-as em brancas e negras, mas isto é um dos fatores comparativos que mostram uma semelhança com os anglo-saxões. Para Telles, a análise das relações raciais no Brasil merece atenção especial já que as condições históricas, políticas e econômicas são bem diferenciadas do resto do mundo, mas com algumas semelhanças. A miscigenação realmente existe, mas ela não foi suficiente para tornar tênue ou inexistente o preconceito no Brasil. Segundo ele, o que torna difícil a compreensão do racismo é a coexistência de uma inclusão, com exclusão. Pessoas da mesma classe social tendem a ser menos racistas umas com as outras, do que pessoas de classes diferentes, o que já mostra a interferência de aspectos financeiros neste estudo. Um prova concreta disso é a análise das uniões inter-raciais. Na grande parte elas ocorrem somente na mesma classe social. As relações horizontais são mais harmoniosas que as verticais.

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http://www.planalto.gov.br/seppir/

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3. PIADAS E PRECONCEITO: FREUD E OS ATOS FALHOS Devido à polêmica do tema central deste trabalho e à própria iniciativa de discuti-lo através da análise de uma das teorias de Freud, torna-se necessária uma abordagem inicial sobre as suas reflexões. Contudo, este capítulo conterá apenas minhas primeiras análises pessoais das teorias freudianas sobre o inconsciente e sua relação com o cotidiano. Um estudo sobre a atuação da mente nos discursos sociais é necessário para uma pesquisa que pretenda falar dos aspetos políticos, sociais e psicológicos que envolvem a problemática do preconceito racial. No caso do estudo em questão, a atuação da mente está relacionada com os processos involuntários e voluntários que ela pode provocar nas relações entre os indivíduos no que diz respeito à linguagem, especificamente os chistes e o jogo de idéias e palavras que o antecede e o cerca. As piadas, por definição, são sempre apresentadas como um discurso indireto, ou seja, o locutor nunca é o “responsável” pelo seu conteúdo, ele apenas passa o que lhe foi dito para outro indivíduo, sem a intenção de difundir alguma crença ou preconceito. Fica a cargo do interlocutor (ouvinte) interpretar o conteúdo da piada e manifestar o prazer que ela proporcionou através do riso. Oswald Ducrot aborda em seu livro “O dizer e o dito” o pensamento que traduz a responsabilidade da fala. “(...) é saber como se pode dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a responsabilidade de têla dito, o que, com outras palavras, significa beneficiar-se da eficácia da fala e da inocência do silêncio. [...] A significação implícita, por sua vez, pode, de certo modo, ser posta sob a responsabilidade do ouvinte: este é tido como aquele que a constitui por uma espécie de raciocínio, a partir da interpretação literal da qual, em seguida, ele tiraria, por sua conta e risco, as conseqüências possíveis” (Ducrot, 1987:20).

O minucioso estudo do uso da linguagem, especificamente das palavras, e sua relação com os indivíduos é de extrema importância quando se avalia a estrutura psicológica de uma sociedade. O estigma racial, que atinge a sociedade brasileira, hierarquiza e classifica um grupo específico de pessoas demarcando relações sociais com atos de linguagem, assim como ofensas, ridicularizações ou produzindo e distribuindo papéis e vínculos sociais. Em seu artigo “Democracia racial - o não-dito racista”, Ronaldo Sales Jr. conclui que a “estigmatização pelo não-dito (piadas, injúrias, trocadilhos, provérbios, ironias...) são resultantes de uma espiritualização da crueldade – racismo espirituoso”, que na verdade é uma forma sutil de manifestar uma opinião sem que seja notoriamente percebido, na maioria das 17

vezes. Este conceito dentro do que foi expresso no capítulo anterior se relaciona com a idéia da estratificação racial, não no que diz respeito à presença e participação social, mas sim com sua confirmação em uma esfera que invade o âmbito da linguagem. A presença dos chistes e do cômico na linguagem, conforme praticado em nosso país, também deve ser analisado para a composição de um estudo sobre as relações raciais que, particularmente, neste trabalho, abordará no capítulo seguinte (estudo de caso) a questão do preconceito no que diz respeito ao humor na mídia. No livro “Os Chistes e sua relação com o inconsciente” Freud faz uso do conceito de Theodor Lipps para definir chiste como “qualquer evocação consciente e bem-sucedida do que seja cômico, seja a comicidade devida à observação ou à situação” (Lipps apud Freud, 1996:17). A este conceito está ligada a idéia da técnica de exposição do cômico de maneira consciente, através da repetição ou da exposição intencional de um pensamento que possa gerar o prazer da comicidade. Além deste conceito, Lipps também afirma que o cômico serve para deixar claros alguns assuntos que antes estavam obscuros, tornando-os óbvios. O capítulo a seguir tentará mostrar, como os programas humorísticos, em especial os televisivos, utilizam este artifício para denunciar e criticar problemas sociais e políticos.4 Freud em seus estudos procurou mostrar os processos psicológicos que envolvem o processo de formação, desenvolvimento e recepção do chiste para demonstrar quanto sua criação e percepção estão ligadas a processos inconscientes. Para tornar claro sua intenção de não banalizar esse estudo, ele prefere primeiro mostrar as conseqüências do processo cômico para, depois, esclarecer a complexidade de sua formação. Para a análise desse processo, neste trabalho trataremos dos assuntos que envolvem a criação consciente e inconsciente da formação do chiste para poder, tentar elucidar o quão representativo eles são para denunciar ou confirmar algumas características comuns entre um grupo de indivíduos. Quando se diz “chiste consciente e inconsciente” fala-se exteriorização de pensamentos no formato cômico. Esta exposição se revela intimamente ligada à forma que os indivíduos mostram uns aos outros seus pensamentos, críticas e observações. Para Freud, a comicidade não deve ser reduzida ao chiste, já que “o tipo do cômico mais próximo dos chistes é o ingênuo. Como o cômico em geral, o (cômico) ingênuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste” (Freud, 2006:172). O ingênuo ocorre, pois alguém desrespeita a censura ou inibição completamente em si mesmo sem nenhum esforço. “Rimo-nos dela, mas não nos in4

Muitas vezes, as piadas “trazem à luz” algumas dificuldades sociais e políticas através do exagero e do grotesco. A ridicularização da gravidade do problema visa chamar a atenção da sociedade para o que parece não estar funcionando em diversas esferas da população.

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dignamos” (ibid). Pelos mecanismos de repressão social encontrado nos adultos, não é surpresa que este aspecto do cômico seja encontrado na maioria das vezes em crianças. Outro resultado interessante que ele incita em seus estudos sobre os chistes é a relação de “contraste de idéias” e “desconcerto e esclarecimento”. Para ele, o primeiro se relaciona com a idéia do significado e do nonsense, como se atribuíssemos a um comentário que nos aparece como chiste “uma significância notada de necessidade psicológica e tão logo tenhamos feito isso, de novo o refutamos” (ibid:20).Para que o cômico se processe, o contraste precisa se manifestar para criar o jogo de palavras e idéias do chiste. Um exemplo clássico deste conceito é a coluna dominical de humor-crítico “Agamenon”, do jornal O Globo. No final do texto aparece o título “Pensamento do Dia (quer dizer, do Globo)”. Nesta frase, se o autor apenas tivesse falado “pensamento do dia” e tivesse exposto sua idéia, a frase seria comum a todos os leitores e não teria a menor idéia cômica. Contudo, quando ele fala “quer dizer, do Globo” ele faz uma piada que ironiza o nome do jornal concorrente (O Dia), como se quisesse dizer que a frase só poderia ser do jornal O Globo, já que os leitores estavam sob a posse desse jornal. A relação entre o “desconcerto e o esclarecimento” é de reconstruir uma idéia a partir de uma pré-existente, ou seja, tornar o cômico primeiramente não inteligível, e depois, provocar o riso pelo esclarecimento do que foi dito anteriormente. Freud cita um exemplo de Heymans que mostra o desconcerto sendo sucedido pelo esclarecimento. “Hirsch-Hyacinth, o pobre agente de loteria, vangloriar-se de que o grande Barão Rothschild o tenha tratado bem como a um igual seu: bastante ‘familionariamente’” (Freud, 2006:20). A princípio esta palavra parece incompreensível, ininteligível, por isso provoca o desconcerto, o questionamento pessoal sobre seu significado. O cômico acontece quando o sentido da palavra é desvendado: O agente quis dizer que o Barão o tinha tratado como alguém de sua família, que é milionária. A comicidade, então, está a cargo da segunda pessoa que está com a responsabilidade de interpretar o chiste. A conceituação de “contraste de idéias” e “desconcerto e esclarecimento” será de grande valia para o estudo dos chistes, sobretudo quando serão exemplificados os casos chistosos de preconceito no capítulo seguinte. Freud se interessou pelo estudo dos chistes por causa das inúmeras possibilidades de entender este assunto que tanto influi no cotidiano dos indivíduos e, principalmente, que pouco havia sido pesquisado com profundidade até então. Marta Rosas, autora do livro “Tradução de humor: transcriando piadas” comenta brevemente estudos e registros sobre o humor: 19

“Excetuando-se as poucas e brevíssimas referências à arte da comédia constantes na Poética (Aristóteles 1966), os primeiros registros conceituais do humor no sentido que hoje lhe damos remontam data muito próxima dos nossos dias; de fato, o riso não encontrou senão na virada do século XX, com Bergson (1983), a sua primeira teoria mais ambiciosa.” (Rosas, 2003)

Com relação ao estudo do preconceito, principalmente no Brasil, foi mostrado anteriormente como o brasileiro omite ou disfarça seu racismo. Por mais que se admita que apesar de miscigenado o Brasil ainda possua como forte traço social a discriminação racial, no imaginário da maioria da população isso não é claro, o que por conseqüência, tenta burlar os sistemas sociais aparentes para se manifestar sem extremo conflito. No próximo capítulo, o grande destaque para o processo chistoso é a ocorrência do exagero para manifestar comentários aparentemente espirituosos. Agora, concentraremos esforços em descrever o processo inconsciente que envolve o cômico e os chistes, para, depois, mostrar como o processo humorístico se aproveita do ocultamento desta realidade para criticar o cotidiano de preconceito do país. Em diversos estudos anteriores, Freud mostrou uma preocupação nas tensões que envolviam o homem e seu meio. Segundo ele, o homem sempre tentava concentrar seus esforços para ser o mais racional possível e, apesar disto, de maneira inevitável, freqüente e natural, as pulsões interferiam em nossos pensamentos, ações e sonhos, trazendo à luz os sentimentos mais enraizados em nosso inconsciente. A intensa pressão na qual o meio onde vivemos nos impulsiona, seja ela sexual, social ou cultural, nos faz reprimir desejos ocultos para que sejamos aceitos na sociedade. Para descrever este processo do inconsciente, em 1900, Freud publicou o “Interpretação dos sonhos”, que se propôs a esclarecer e decifrar os processos que envolviam - e o que ocorre - durante o sono (procedimento comum a todos os indivíduos). Para enfatizar seu interesse sobre os processos involuntários do inconsciente, em 1905 ele lança “Os chistes e sua relação com o inconsciente” que apresentam influências de seu estudo anterior sobre os sonhos. Os processos que envolvem a manifestação dos desejos e pensamentos inconscientes encontram-se incrivelmente parecidos no processo de formação do sonho e do chiste, por isso faremos um breve comentário a cerca dos sonhos.

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“ Assim, a falar grosseiramente, haveria ao todo três estágios a ser distinguidos na formação do sonho: o primeiro, o transplante dos resíduos diurnos pré-conscientes ao inconsciente, no qual devem operar as condições que governam o estado de sono; depois, dá-se a elaboração onírica propriamente dita no inconsciente; e em terceiro lugar, a regressão do material onírico, assim revisto, à percepção onde o sonho torna-se consciente.” (Freud, 2006:156)

Para ele, este processo traduz a transformação bruta dos atos cotidianos em “elaboração onírica”. No caso dos adultos, “um desejo reprimido” é o material que irá formar os sonhos, e a “ação deste desejo inconsciente sobre o material conscientemente racional dos pensamentos oníricos produzo sonho” (ibid., 153). Freud acredita que a “censura” presente no cotidiano não esteja completamente ausente durante o sono. O sonho tenta romper, acima de tudo, esta inibição e tensão para descarregar seus impulsos na elaboração onírica. E é esta falta de inibição e rompimento com os paradigmas morais que cercam a sociedade que o chiste também procura se ausentar. Por isso, que esse se assemelha tanto com o sonho. Freud traduz este pensamento quando fala que a principal característica do chiste é de ser “uma noção que nos ocorre involuntariamente”. Ele não é antecedido de pressentimentos ou premonições, sabemos apenas que precisamos fazer o jogo de palavras para que o seja bem sucedido. Na infância, este processo encontra-se bem mais aguçado, já que as crianças possuem um pudor extremamente reduzido em relação aos adultos, e falam o que realmente lhes é possível. O pensamento do involuntário e da censura nos leva a um outro termo abordado pelo autor: o ato de raciocínio falho. Neste conceito apoiaremos a idéia do chiste no que diz respeito ao preconceito racial na esfera mais natural do indivíduo: o inconsciente. Para ele o “ato de raciocínio falho”, ou ato falho, se apóia na idéia da censura e repressão na quais os indivíduos se organizam. A moral e a convivência coletiva, com o passar dos anos, elaboraram regras para que as pessoas possam conviver em sociedade de maneira harmoniosa, atenuando as diferenças e tornando comuns alguns valores. Em poucas palavras, o ato falho simboliza algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que em algum momento fomos obrigados a reprimir. Particularmente, acredito que eles são pulsões inconscientes de verdade, que podem revelar segredos íntimos. A iniciativa de analisar os atos falhos que geram chistes, por exemplo, veio da idéia de que o sonho é um dos primeiros caminhos de comunicação do inconsciente com o consciente.

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Durante o sono, a censura e a repressão “diurna” se tornam mais fracas e permitem que haja um deslocamento de desejos, para que possam vir à tona com menores pudores e repressões. No livro “Mundo de Sofia” há um exemplo significativo que diz respeito à censura e ao ato falho. A história conta que certo dia, um bispo foi visitar a família de um pastor que era pai de três meninas. Este bispo tinha um nariz enorme e por conta disso o pai pediu para suas filhas não comentarem sobre o nariz do bispo, já que crianças geralmente começam a rir quando notam qualquer coisa que chame muito sua atenção (mecanismo de censura não se encontra plenamente formado). Quando bispo chegou, as meninas se esforçaram ao máximo para não rirem ou fazerem qualquer comentário a respeito do notável nariz, mas quando a irmã mais nova foi servir o café, ela disse: “- O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?”. Este é um puro exemplo de ato falho, proveniente de uma reprimida vontade ou desejo. Para o professor de Filosofia Fernando Aguiar, “a censura permite criar formações substitutivas como uma espécie de alusões a coisas que ela quer manter ocultas”, afirma em seu artigo “O Humor analítico”. As idéias e pensamentos outrora reprimidos são deslocados para uma espécie de “zona de isolamento inconsciente” e através dos atos falhos tornam a realidade. (Aguiar, 2006:35) No ocidente, por exemplo, a discriminação e ódio racial são práticas repreendidas pela sociedade para que as diversas etnias e raças possam coexistir. A espontaneidade e naturalidade da vida cotidiana muitas vezes revelam o preconceito não-dito e velado que, como foi falado anteriormente, se manifesta através de injúrias, trocadilhos, provérbios e chistes. Ousemos dizer que a categoria de análise racial na qual o ato falho está mais presente é na forma de insulto. No artigo, “Democracia racial: o não-dito racista”, Ronaldo Sales Jr. dialoga com o caráter oculto deste tipo de discriminação.

“O insulto racial visa (re)marcar a fronteira, a distância social (identidade, status), que aqui, no entanto, se vê ameaçada de ser apagada, rasurada, transposta, enfim, transgredida. O insulto, assim como o discurso espirituoso, significa a violação de um tabu, ou seja, consiste na expressão de nomes, atos ou gestos socialmente interditos, que expressam a opinião depreciativa de uma pessoa ou de um grupo” (Sales, 2006) Dadas algumas situações de conflito, um indivíduo se apropria dele para criar uma situação de desconforto para o ouvinte. A questão racial que envolve o insulto e o ato falho se revela quando percebemos que na maioria das vezes o falante não tem “intenção” consciente de manifestar opiniões racistas, seu propósito único é ofender. Contudo, seu inconsciente pre22

conceituoso revela a discriminação oculta. Xingamentos como, “negro sujo”, “macaco” e “preto safado”, são alguns exemplos utilizados para expor o racismo. No próximo capítulo, trataremos destes exemplos de racismo em dois programas de televisão para compor um estudo de casos sobre o preconceito.

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4. ESTUDO DE CASO 4.1 O discurso do humor

Este último capítulo irá abordar dois programas humorísticos de televisão, que farão parte de um estudo de caso sobre a questão racial. Quando tratamos do humor, seu sentido, contexto, interpretação e recepção são fatores fundamentais para a análise. Quando se fala em interpretar, pretende-se comentar sobre os fatores primordiais que influem no entendimento e compreensão humorística, como cultura, língua, fatores sociais, históricos e econômicos. No prefácio de “Chistes e sua relação com inconsciente”, o editor deixa clara a dificuldade de traduzir em outras línguas alguns exemplos de piadas que foram expostas em alemão, já que cada cultura possui elementos característicos singulares para exprimir suas idéias.

“Os problemas que afetam os estudos da tradução do humor decorrem principalmente da veiculação de ambos os domínios da linguagem – e a linguagem, meio que o homem utiliza para construir sua relação com o mundo, é uma forma individual de expressão, por mais que também seja social e coletiva” (Rosas, 2006)”

Marta Rosas comenta essa idéia alegando que a compreensão do chiste além de depender de aspectos coletivos, demanda principalmente do entendimento individual. Cada indivíduo possui um tipo de relação com o mundo, e percebe as diversas formas de manifestações culturais, intelectuais e políticas de maneira particular. No caso do humor que se relaciona com o preconceito racial, o que chama mais atenção para o tipo de estudo que estamos fazendo, é como esta linguagem é utilizada para a própria construção da piada e o contexto que ela é inserida. Assim, podemos analisar qual foi o intuito do emissor do chiste e quais reflexos ele provoca, consciente ou inconscientemente, no ouvinte. O riso, ou como diria Freud “o discurso espirituoso” serve para a liberação do prazer e da energia, vinda como reflexo do cômico. A piada racista sofre processos diferenciados em sua construção, passando também pela condição de “figurada” (figuras de linguagens propriamente ditas) para ser exposta. Estas figuras são usadas na língua como recurso estilístico para expressar uma idéia em código. As mais usuais no contexto de discriminação são a metá-

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fora, metonímia, eufemismo, ironia, humor e pergunta retórica. Ronaldo Sales Jr. mostra a idéia através de alguns exemplos:

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“Metáfora: “macaco”, “tição”, “carvão”, “grafite”, “cabelo ruim”, “dia de branco”, “cabelo de bombril” Metonímia: “escuro”, “preto” Eufemismos: “boa aparência”, “escuro”, “moreno”, “afro-brasileiro”, “pessoa de cor”, “simpatia”, “cor do pecado” Ironia: “só podia ser...”, “pra variar...”, “mas como é bonitinho...” Pergunta retórica: “desde quando negro é gente?” (Aguiar:2003)

Nas frases contidas acima, nem todos os exemplos se caracterizam como chistes. Mesmo assim, é necessário citar os mais importantes deles, já que as piadas e discursos “abertamente”5 racistas, na maioria das vezes, envolvem figuras de linguagem em seu jogo de palavras. A piada propriamente dita não deveria ser danosa à integridade dos que riem, diferentemente dos insultos ou outras agressões verbais. Contudo, a anedota racista possui algumas idéias mais profundas - conscientes ou não - que reforça através da repetição (disseminação através dos falantes) o preconceito velado que tanto é alegam não existir no Brasil. Outro fator que aumenta a dificuldade de mensurar, detectar e quantificar o preconceito presente nas piadas e nos falantes que a expõem é o próprio conteúdo chistoso. Para Freud, no processo de repetição do chiste, o emissor e ouvinte estão ausentes da construção de seu conteúdo. Apesar disso, no caso da piada racista, ambos são responsáveis pela perpetuação do um discurso discriminação. As figuras de linguagem supracitadas mostram como o próprio discurso racista já se apropriou da linguagem para embutir e confirmar o preconceito. Para Aristóteles, “a metáfora consiste em doar a uma coisa o nome que pertence à outra coisa. Transferência que pode realizar-se de gênero para espécie, espécie para o gênero (...) ou com base numa analogia” (1952:21). Esta definição mostra como o discurso do racismo se apropriou de algumas nomenclaturas para colocar o negro em um patamar inferior na sociedade. A comparação com animais ou a redução a insignificância, carregam um preconceito que foi embutido no imaginário da população desde a época da escravidão. Abaixo mostraremos uma seqüência de piadas ditas racistas que circulam pela população citadas no texto de Aguiar:

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Quando se diz “abertamente” racista, queremos falar sobre o discurso preconceituoso que não utiliza nenhuma artimanha de disfarce. 25

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“Sabe quando negro é gente? Quando está no banheiro, pois diz: tem gente! Negro quando não caga na entrada caga na saída. Cabelo de bombril. Nariz de bujão. Negro safado! Macaco! Qual a diferença entre uma mulher preta grávida e um carro com o pneu furado?. Nenhuma. Ambos esperam um macaco. Qual a diferença entre um preto e um câncer? É que o câncer evolui. Qual a diferença entre poluição e solução? Poluição é jogar um preto no mar e a solução é jogar todos” ( AGUIAR: 2003)

É certo que se questionarmos um grupo de pessoas em qualquer lugar do país, todas dirão que algumas expressões mostradas acima são de seu conhecimento. É necessário dizer que esta análise minuciosa sobre o discurso racista e sua percepção não é notória em todas as camadas da população. Aqui, mantemos a distância necessária para a análise acadêmica, mas nem todos os indivíduos a fazem no cotidiano, seja por desinteresse ou por falta de instrução (escolaridade) necessária para reparar esses artifícios. Apesar disto, ou por isto, a anedota, assim como tantas outras formas de discurso, continua perpetuando e massificando no inconsciente o racismo. 4.2 – Dois programas humorísticos de televisão: Um estudo de caso sobre TV Pirata e Casseta e Planeta Urgente! Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2005 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 92% das casas brasileiras possuem pelo menos um aparelho de TV. Isto significa que todas as classes sociais brasileiras têm acesso à linguagem televisiva e seu conteúdo. Por este motivo, o humor especificamente televisivo foi escolhido para mostrar o estudo de caso que este capítulo propõe fazer. Os programas humorísticos Casseta e Planeta Urgente! e TV Pirata foram escolhidos para compor o estudo de caso deste trabalho devido a grande repercussão que tiveram (e têm) em suas respectivas épocas de transmissão, além de estarem presentes na maior emissora de televisão brasileira, a Rede Globo. A TV Pirata foi um programa humorístico exibido de 1988 a 1990 e em 1992, às terçasfeiras. Seu humor baseado nas sátiras e no nonsense foram os responsáveis pela fórmula de sucesso que ridicularizava os problemas da sociedade. Ele foi criado pelo diretor Guel Arraes e pelo roteirista Cláudio Paiva. O programa reunia uma equipe de roteiristas que incluía Luís 26

Fernando Veríssimo, os quadrinistas Laerte e Glauco e os integrantes do Planeta Diário6 e da Casseta Popular7,que mais tarde se fundiriam e formariam o Casseta e Planeta Urgente! Os quadros de humor mostrados pela TV Pirata tinham como grupo original de atores Cláudia Raia, Débora Bloch, Marco Nanini, Maria Zilda Bethlem, Ney Latorraca, Cristina Pereira, Luís Fernando Guimarães e Regina Casé, e carregava influência de programas ingleses e americanos que continham esquetes aleatórios ou quadros fixos. Ele se consolidou como programa humorístico de sucesso em sua época por não ter temas únicos e repetitivos. A piada era feita em todas as áreas: futebol, política, economia, celebridades e outros. Como dissemos anteriormente, o humor não foge dos processos de transição da sociedade, e até mesmo seu discurso sofre influências e mudanças de acordo com os processos que a sociedade passa. A década de 80 marcou o fim da ditadura militar e, conseqüentemente, a restauração da ordem civil. As mudanças econômicas, sociais e políticas estavam tão patentes que o humor da TV Pirata traduzia este sentimento nas telas da televisão. No que diz respeito ao racismo, a sociedade brasileira estava passando por um processo mais concreto e visível de afirmação da identidade do negro, fazendo-os participar da temática humorística do programa por diversas vezes. Como mostrado no esquete abaixo, cuja ironia é uma forma de crítica ou preconceito velado. “Filho: Pai, eu queria levar um papo com você. Pai: Pode falar meu filho. Filho: Eu estive pensando e resolvi assumir. Sabe, eu cheguei a conclusão que na verdade eu sou um negro. Pai: O que você está dizendo? Enlouqueceu. As paredes têm ouvido...O que os vizinhos vão dizer? Mãe: O que está havendo? Pai: Nada! Filho: Não ,mãe! Você precisa saber! Eu sou um negro. Mãe: Não fale assim com sua mãe! Filho: Mas eu não posso ir contra minha natureza! Entende papai... Pai: Tão moreninho, se comportando como se fosse um crioulo! Todo dinheiro gasto, toda educação. .. Filho: Não adianta pai...Eu sou um negro! Mãe: Meu filho, nós podemos mandar você para a Europa. Você pode ir para Suíça! Filho: Que Suíça! Eu quero ir para o Congo. Quero encontrar a nossa terra, a nossa gente. Pai: Nossa, nossa...Que nossa terra! Só se for a sua! Mãe: Meu filho! Diz pra sua mãe porque que você está assim? Por que você não alisa o cabelo assim como o Michael Jackson? Você viu? Ele ficou tão bonitinho, tão clarinho... 6

“Planeta Diário” era um tablóide mensal criado por Reinaldo, Hubert, Cláudio Paiva em 1984. Ele fazia referência ao jornal “Planeta Diário” no qual o Clark Kent (Superman na sua forma “cotidiana”) trabalhava.

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O Casseta Popular era um fanzine de humor criado por Beto Silva, Hélio de La Peña e Marcelo Madureira em 1978. Em 1980 era é transformado em tablóide.

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Filho: Pai, eu posso arrumar um pagode lá no quintal? Pai: Pagode, samba? Aquela zoeira, aquela confusão aqui no quintal? Filho: Não, Não! Mãe: Alvinho, não fale assim... Filho: Alvinho não, o meu nome agora é James Brown!”8

No elenco do programa TV Pirata não havia nenhum ator negro. Por isto, para completar o processo humorístico, os atores que participaram desta cena (Diogo Vilela era o filho; Ney Latorraca era o pai; e Regina Casé interpretou a mãe) pintaram a pele com um pigmento preto, tornando a caricatura mais grotesca e visível. Neste esquete, no entanto, também percebemos uma sátira aos negros que não aceitavam sua cultura e características físicas. Para compor o esquete, os autores se apropriaram dos estereótipos que rondam o imaginário popular e confirmam o racismo - inclusive no trecho que o pai comenta que samba e pagode são “zoeira” e “confusão”. A própria piada rotula e confirma o pensamento de que exista uma cultura negra e outra branca, como se fossem isoladas. O conceito do “desconcerto e esclarecimento” de Freud pode ser observado no exemplo acima. Quando o filho fala para a mãe que não se chama mais Alvinho e sim James Brown, precisamos conhecer o sentido e a intenção das palavras na piada, para que o processo cômico se realiza. A consciência é responsável por completar o sentido. Sabe-se que o significado da palavra “alvo” se relaciona com “claro”, “branco”, e a ironia é feita quando um personagem negro possui um nome que lembra “branco”. O telespectador precisa de alguns segundos para entender o jogo de palavras e a piada que foi feita (esclarecimento). Outro exemplo interessante que o programa mostra está localizado em dois quadros diferentes, que rotulam os negros com relação à sua cultura. No primeiro, percebemos a ironia aos cultos afro-descendentes (candomblé) e a figura que representa esse ritual - mãe-de-santo – que é representada por uma atriz negra. (Mãe-de-santo mexe e os búzios) Mulher: Então mãezinha, e então? Mãe-de-santo: O negócio ta sério! Tu ta mais carregada que pilha alcalina. Tu vai ter que botar um ebó pro santo lá na encruzilhada. (Mãe-de-santo faz sons com a boca) Mãe-de-santo: Anota aí: Mulher: Um momentinho. Eu não tempo para ficar dando comida pra santo não! (Aparece um som de trovão e o ambiente que antes era escuro fica claro) Mãe-de-santo: Se seu problema é esse não se preocupe. (Ambos os personagens olham para a câmera)

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As transcrições de esquetes e quadros da TV Pirata foram retiradas da coletânea de melhores momentos do programa lançado em 2004, pela Rede Globo.

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Mãe-de-santo: Chegaram os congelados orixá. No sabor frango com farofa e pipoca com marafo. Congelados Orixá, o seu santo vai adorar!

O segundo exemplo está no quadro fixo “Black notícias”. Os atores Luís Fernando Guimarães e Guilherme Karan interpretam dois âncoras de telejornal vestidos como rappers9 que falam gírias e apresentam as principais notícias do dia em forma de música. Neste mesmo quadro aparece a cobertura policial de um seqüestro, na qual o raptor e sua equipe são negros vestidos com camisa do Flamengo10. O negro neste momento aparece ligado à imagem de violência (idéia de que “negro é bandido”). (Antes de começar o telejornal, apresentadores danças e fazem coreografia atrás da bancada.) Apresentador 1:Alô mundo black, “rapeize” legal. Hoje nós vamos ter reportagem especial. Apresentador 2: Você dona de casa ou operário honesto! É melhor tomar cuidado com esta onda de seqüestro. (Aparece cena da polícia tentando invadir um cativeiro. Diálogos musicados com ritmo de RAP continuam) Policial chefe – Tu ta na minha mira, seqüestrador. Tu vai entrar numa de horror. Eu não vou dar mole para nenhum meliante. É melhor cair fora neste instante. (Até agora tudo era cantado em forma de RAP. Quando o bandido começar a cantar, a fala será marcada pelo ritmo da música “Me dê motivo”) Bandido: Me dê motivo, para eu ir embora. Chegou a hora, da decisão. Mande o resgate, senão eu corto e mando agora a orelha e o dedão. Refém – Obedeça todas as instruções! Só na minha conta tem dez milhões. Esse cara pode até me matar, não dê motivo. (O tiroteito começa ao som da música “Vale Tudo”) Policial-chefe: Vale tudo! Vale, vale! Vale escopeta, vale o três-oitão. Só não vale dedo no olho, nem granada de mão. (Policiais conseguem invadir o cativeiro e prender os bandidos. A refém aparece como se fosse um boneco – ela estaria morta) Policial secundário – Chefe, o que eu faço com a refém? Policial chefe – Joga fora no lixo!

No quadro “Piada em debate”, que imita e ironiza os programas de debate em televisão, a anedota é o foco principal que estimula a discussão entre os convidados (uma socióloga, interpretada por Regina Casé; um economista, por Ney Latoraca, um líder de torcida do Botafogo11, por Guilherme Karan; e um papagaio, que faz o papel do vice-presidente do sin-

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A termo RAP significa rhythm and poetry ( ritmo e poesia ). Este gênero musical foi criado nos Estados Unidos, mais especificamente nos bairros pobres de Nova Iorque, na década de 1970, por jovens de origens negra e espanhola. Na maioria das vezes, as letras falam das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres das grandes cidades. 10 Time de futebol carioca que possui a fama de ter a maior torcida do Brasil e ser o mais popular. 11 Outro time de futebol carioca.

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dicato das anedotas de salão). A piada que é alvo de discussão neste quadro mostra uma cena dentro de um avião. (Cena se passa dentro de um avião. Uma mulher começa a se sentir mal até começar a vomitar) Aeromoça: Foi comida? (Aeromoça pergunta para a mulher que está ao lado da que está vomitando. Pelos trajes parece ser a mãe da mulher) Mãe: Foi, mas casa amanhã. Aeromoça: No civil ou no religioso? Mãe: Na delegacia

Quando piada acaba os participantes do programa começam a discutir seu contexto e os elementos que a envolvem (todos de maneira irônica, reproduzindo jargões utilizados nestes tipos de quadros televisivos). Após alguns minutos de conversa, os participantes solicitam ver a cena outra vez para poder analisá-la melhor. Quando a reprise aparece, a cena ocorre de outro ângulo, dando visibilidade às outras pessoas que estavam no avião. Setas indicativas aparecem mostrando alguns indivíduos que não apareciam antes: um negro com uma camisa do Flamengo segurando um revólver, um homem vestido como português e um judeu. Os convidados do programa discutem a piada (que não necessariamente precisa ser explicitada) e nenhum momento comentam o estereótipo dos tipos descritos anteriormente (inclusive do negro ligado à imagem de violência). A década de 90 foi marcada pelo pensamento neoliberal, por problemas políticos e corrupção, principalmente. O programa Casseta e Planeta Urgente! surge em 1992 como uma continuação da TV Pirata, com roupagem menos dramática e mais dinâmica. O grupo formado por Reinaldo, Hubert, Bussunda, Beto Silva, Hélio de La Peña, Cláudio Manoel, Marcelo Madureira e Maria Paula12 (esta última entrou em 1994 para substituir Katia Maranhão) está na grade da TV Globo até hoje nas noites de terça-feira. Sua maior diferença em relação à TV pirata é o próprio conteúdo do programa. O humorístico da década de 80 era mais caricatural e tinha como base de suas críticas principalmente os problemas sociais, incluindo preconceito racial, de gênero, de religião e outros. Ele também faz piada sobre as novelas da Rede Globo, os políticos, a corrupção, notícias do mundo, e um de uma maneira mais sutil, chega a comentar o preconceito racial. No vídeo que mostra os melhores momentos de seu programa, podemos perceber que o Casseta e Planeta Urgente! prima por fazer a piada através do jogo de palavras, principal-

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Eles atuam e são roteiristas do programa.

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mente com relação aos homosexuais e à política.

Havia um quadro fixo no programa cujo

título era “Pretexto para chamar gaúcho de boiola”, reiterando a discussão sobre sexualidade. Outros quadros que marcaram o programa foram ET de Varginha, Organizações Tabajara, Maçaranduba e Montanha, Coisinha de Jesus e Copa do mundo. Além do entretenimento, o programa que concentrava seus esforços também na crítica social, sofreu adaptações e se foca hoje em dia na piada política e na diversão aleatória. No material analisado, apenas três trechos que abordavam o racismo chamaram a atenção. O primeiro mostrava o racismo através da sutileza e da comparação. Repórter Casseta e Planeta: Estamos aqui no aeroporto para recepcionar um dos convidados mais ilustres do nosso programa, o rei Pelé. (O ex-jogador aparece sendo assediado por jornalistas) Repórter: Pelé, eu sou Reinaldo do Casseta e Planeta, e a minha missão é levar sua majestade neste veículo aqui para os nossos estúdios em total segurança. Pelé: Espere aí! Em primeiro lugar, deixa eu colocar um disfarce para parar com esse negócio de autógrafo. (Coloca boné) Pelé: Em segundo lugar, se é em total segurança quem vai levar este carro sou eu. (Pelé pega as chaves da mão do repórter e vai caminhando em direção ao carro. Enquanto faz isso pessoas aplaudem e ele acena com a mão) (O cenário muda e aparece uma blitz policial) Policial: Aí negão! Documentos! (Pelé passa a carteira para o policial. Ele abre e começa a olhar) Policial: Edson Arantes do Nascimento. Ei! Edson Arantes do Nascimento é o Pelé! Pelé: Eu sou o Pelé. Sou ele mesmo. Policial: Aí “ô rapá”! Todo negão no Brasil é chamado de pelé. (Faz movimento com a mão chamando outro policial) Policial: Ô Pelé, chama o Pelé e coloque este outro Péle aqui no caçapa. Pelé: Que isso seu guarda! O senhor está cometendo um grande engano. Eu sou o Pelé de verdade. Policial: Tu ta em cana por dirigir sem documento, desacato a autoridade e falsificação. 13

No Brasil, geralmente as pessoas ricas são consideradas brancas. Isso ocorre por que a cor é um fator que influi no status social. Apesar disso, o ex-jogador de futebol de Pelé, que ao longo dos anos conseguiu adquirir uma fortuna considerável, não “superou” esta regra e, é uma exceção no país. Ele é alvo de preconceito pelo fato ter conseguido dinheiro através do esporte, que também pode ser inserido em um dos pólos de discriminação racial. Os negros 13

Os trechos mostrados do programa Casseta e Planeta foram retirados das coletâneas intituladas “Melhores Momentos” com quadros dos anos de 2005 e 2006.

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são ligados a habilidades inatas. Para muitos, todo negro sabe jogar futebol, sambar ou é integrante de alguma religião afro. O Casseta e Planeta confirmam esta idéia em outro esquete:

(Locutor fala enquanto aparecem imagens de um mulato andando na praia) “O mulato é um tipo muito comum no Brasil. Não é nem preto nem branco, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem rico nem pobre, nem feio nem bonito. (aparece uma mulher sambando na praia com muitos homens em volta) Mas em compensação a sua irmã, a mulata, é uma loucura”

Esta cena faz parte do quadro “Tipinhos, típicos, brasileiros” no qual cada episódio mostrava e ironizava rótulos existentes no país. Mais uma vez o negro aparece ligado à música. Apesar de ter intenção de criticar com humor, essas situações acabam por confirmar os estereótipos que envolvem os negros. No esquete “Rio: cidade calamitosa” os humoristas criaram uma música em forma de piada para satirizar a violência no Rio: “Minha arma canta Sou do Rio de Janeiro A capital da criminalidade Rio um tiroteio que não tem fim Quero um assaltante só para mim (...)”14

Neste trecho, enquanto a música é cantada, aparecem imagens de violência no Rio, inclusive de um negro segurando armas e assaltando pessoas. Confirmando e ligando o negro à violência. Os exemplos citados mostram que através dos anos a imagem do negro sofreu algumas alterações, mas ele ainda continua sendo visto de maneira discriminada. Apesar de ter a intenção de criticar, cada exemplo ratifica os principais rótulos que envolvem os negros. Através do riso, cada telespectador compactua (conscientemente ou não) para que a imagem de discriminação e inferioridade continue.

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Este texto é uma paródia construída sobre a música “Cidade Maravilhosa”, atual hino da cidade Rio de Janeiro.

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Seja através da sutileza ou do grotesco, os programas nos mostraram o que a sociedade vê, já que nada se perpetua ou continua na televisão sem que seja antes aprovado pelo grande indicador de aceitação popular: a audiência.

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5. CONCLUSÃO Após estas análises sobre a formação e composição racial no Brasil e sua manutenção dentro da esfera social, percebemos o tamanho da complexidade de classificar o racismo e o preconceito em um território tão repleto de misturas, culturas e conceitos sobre a própria identidade na nação. Realizamos comparações entre as principais correntes teóricas que pretenderam estudar e discutir a desigualdade racial em diversas esferas da população, e percebemos que ao contrário do que é tão disseminado, a miscigenação não é tão concreta como pensamos. Ela é uma “virtude de vitrine”, ou seja, é uma idéia propagada entre a população e “vendida” para o exterior como nossa principal bandeira, que, contudo, não condiz integralmente com a realidade do país. Quando dizemos integralmente, queremos dizer e assumir que parte dela é real e existe, mas não é tão abrangente. Pudemos perceber ao longo do trabalho que as idéias defendidas por Ali Kamel não eram completamente verdadeiras. Sua postura defensiva do ideal da plena miscigenação, por exemplo, foi desfeita quando apresentamos os argumentos do sociólogo Edward Telles. Para ele, não é possível totalizar este gradiente de mistura já que ela não ocorre entre classes sociais diferentes. Os casamentos inter-raciais que o jornalista cita como exemplo, só ocorrem numa mesma classe social e, geralmente, nas camadas mais desfavorecidas economicamente. Kamel, para ratificar seus argumentos, diz que o Brasil simplesmente importou o modelo norte-americano sem se preocupar com as conseqüências que isto traria para o país. A reserva de vaga, criação de órgãos governamentais específicos, organização do movimento negro, são algumas dos itens que ele cita que seriam responsáveis por criar nos brasileiros um sentimento de separação que “nunca” habitou o país. Já Telles, autor que embasou os estudos teóricos deste trabalho, alega que o Brasil é composto por tantas influências que a delimitação e classificação do racismo, engloba tantos fatores que talvez só em alguns países da América Latina encontremos exemplos semelhantes. As desigualdades sociais, miséria e pobreza são características de países menos desenvolvidos e, por isso, nossas relações sociais são marcadas pela influência deste subdesenvolvimento. Em outras palavras, Kamel declara que o racismo no Brasil não é tão acentuado como nos Estados Unidos, já que aqui os negros e brancos não se organizam em guetos e se relacionam harmoniosamente. O pensamento de Telles nos mostra que apesar de existir certa fluidez

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racial, o país também é exclui os negros de maneira “invisível”, ou seja, ele perpetua no seu inconsciente a imagem de inferioridade e de submissão herdada da época escravocrata. Prova disto se confirma em nosso estudo de caso. Resolvemos analisar dois programas humorísticos de televisão em duas épocas distintas, pois acreditamos que o humor tem o poder de mostrar os pensamentos e idéias implícitas, já que o cômico se aproveita da falta de inibição e censura que o rodeia para lançar sua piada. Ao comparar os esquetes e, principalmente os diálogos, percebemos que, excluindo o contexto histórico, ou seja, a época que cada um foi ao ar, o discurso permanece praticamente inalterado. O estereótipo do negro ligado ao samba (música), candomblé, violência e exclusão continua. Se todos declaram que a televisão retrata a realidade para agradar seus telespectadores, ao longo destes anos o público quer assistir o preconceito e os rótulos que já existem na sociedade. Quando escolhermos falar sobre os chistes no capítulo dois, pretendíamos perceber como o discurso humorístico se posicionava aos longos dos anos e até mesmo de acordo com sua época. Quando discutimos os chistes no terceiro capítulo, pretendemos mostrar como o ato falho e a falta de censura presentes no discurso cômico revelam o preconceito velado e o estereótipo da sociedade brasileira. Quando se faz uma piada preconceituosa, seja contra negros - ou gays, português, judeus, árabes e outros – e esta piada estimula o riso no telespectador, ele se manifesta como um ato falho do inconsciente que declara naquele momento que aquela cena, para ele, é cômica ou provoca algum tipo de prazer que tem por conseqüência a risada. Mesmo quando posto em exagero e com a roupagem do cômico, os rótulos e estereótipos provocam estas reações nos indivíduos tornando claro que os rótulos e as imagens do preconceito estão arquivados na memória das pessoas. Apesar do intervalo entre programas como a TV Pirata e o Casseta e Planeta Urgente! ser de vinte anos, quase nada mudou. Pelo contexto da época, o programa da década de 80 se prendia mais à crítica política e social, e hoje o Casseta e Planeta Urgente! concentra suas piadas mais no próprio entretenimento (crítica às pessoas famosas, novelas, e grade de programação da rede Globo) se concentrando em denunciar ou criticar de maneira mais sutil. De qualquer forma, as duas maneiras nos mostraram que a realidade brasileira deixa claro que apesar de suas interações ela é racista, e ainda faz distinções entre as pessoas usando a raça como critério. E nem sempre estas manifestações são sutis como os chistes. Muitas vezes, elas se exteriorizam através de insultos e ofensas tão visíveis como nos Estados Unidos. 35

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