«Tangido o nada» [posfácio], in Jussara Salazar, Fia, São Paulo, Selo Demônio Negro, 2016, pp. 60-64.

May 27, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Brazilian Literature, Poesia, Poesia Brasileira
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TANGIDO O NADA [Posfácio: Fia, de Jussara Salazar] PEDRO SERRA A poesia como exaltação mística da vida tem, neste Fia, uma estação incontornável, valendo para o conjunto de poemas aqui congregado o que María Zambrano assentou para uma outra genial interlocutora da poesia mística espanhola, María Victoria Atencia: é verdade tudo o que a poesia toca. Numa redescrição possível, e que pessoalmente me é mais cara: tudo o que tocam estes poemas de Jussara Salazar, vive. A densidade e segurança poéticas que se tornam perceptíveis do primeiro ao último poemas do volume – mestria feita de sustentadas recorrências vocabulares e imaginísticas com um efeito global de concentração expansiva, ofício afeito a uma ampla gama de análogos do poema (cantiga, oração, loa) e dado à variedade estrófica e a recortes ecfrásticos singulares (azulejos, vestidos, tapeçarias), pondo em prática, enfim, múltiples e insólitas soluções sintáticas e métricas – manifestam-se, decerto, no facto de o conjunto obviar aquele modo, algo cansado (e paradoxalmente muito realista) de uma poesia obcecada com a tematização das sagezas e emperros da linguagem. Em Fia, sublinho, a auto-reflexão acontece, sim, mas sem sobredeterminar o livro a um exercício de teoria literária e é esta, afinal, a condição maior de uma poesia sempre “à revelia” – uma poética mística, justamente –, como nos propõe a poeta de Pernambuco. Outros casos que vão povoando o actual campo poético, ao invés, carecem deste modo de dizer que não diz que é o do sujeito lírico de Fia. Escrever, enfim, para o modelo de poeta que se concretiza nos poemas aqui reunidos, é um rito ancestral sempre renovado, sendo este um ditame que em apenas um escasso grupo de poetas se manifesta na sua condição de cifra – isto é, quer cifragem, quer deciframento – em que o absoluto singular da experiência sensível e intelectual muito importa para o universal: não porque ao universal se subsuma, mas porque, incorporando-o, o emana. Esta cifra tem vários

nomes no livro de Jussara Salazar, mas o nome que a todos atrela é aquele que dá título ao conjunto: Fia. Declinação verbal – muito genericamente, a poesia como acção –, tanto pode ser conjugação do ‘fiar’ da lavoura de fiação – num livro que é, justamente, dedicado a rendeiras pernambucanas de Gravatá do Gomes, e que amplamente explora lexemas e semas do artesanato têxtil –; como pode ser injunção fiduciária – ‘confiar’ no mundo, ‘confiar’ na arte; por exemplo: ‘confiar’ à leitura este livro de poemas –; como pode, ainda, com alguma licença poética, funcionar como variante diatópica de ‘filha’ – no fundo, refração e síntese de uma poesia cujo trabalho da analogia dimana de um anacrónico ‘universo feminino’, um mundo de ‘filhas’, cujas figurações múltiples (das ‘moiras’ às ‘fiandeiras’) vão fazendo vibrar, sem os constrangimentos de uma doutrina ou militância, o diapasão do poema. Neste sentido, o destaque concedido à Moira Clote é sintomático, precisamente, daquela exaltação mística do contínuo vital, em rigor sempre em tensão agónica com o corte, a ruptura ou, enfim, a “faca”: isto é, com o trabalho negativo do tempo, vulgo da morte. Numa das várias imagens plásticas que trazem à retentiva a imaginação barroca que atravessa Fia – aqui a poder atrair um conhecido quadro de uma Josefa de Óbidos –, a escrita, na sua dimensão de inscrição lenta e geradora dessa continuidade do vivo, é sintetizada no seguinte ícone: “sobre a nascente do rio / segure o bezerro / que sangrou / na faca do tempo” (“À revelia”). O modelo crístico sacrificial do “bezerro”, neste primeiro poema da segunda secção do livro, tem no “caramujo” o pólo contrastivo, figura do rasto rasteiro ou raso de uma existência, seja ela poética ou vital. A mística do vivo, a geração da sua continuidade, é, assim, digamos, um objecto correlativo daquele trabalho de concentração expansiva já aludido. O poema é “mapa das estrelas / se espraiando”. Mais ainda, vai sendo imaginada a poesia e a vida como mapas sublevados, isto é, experiências que supõem elevação e rebeldia contra a morte, justamente. A homenagem à poeta Lenilde Freitas rima com estes termos, como também o fazem os versos recortados de Lezama Lima que antecedem a primeira secção do livro. Se o ‘mote’ recortado da

poeta paraibana anteposto a “De riscos e mapas” responde por uma ignição interior contínua – uma mística de luz e abismo –, na primeira secção “Cantigas de passagem”, de um modo que sabiamente evita o óbvio, o que temos precisamente é a focalização da ruptilidade. Daí a apetência pela “minúcia” tematizada pelos versos do poeta cubano destacados, a vocação pelo pormenor singular onde aninha a dimensão sacramental da arte e da vida. É nos detalhes que habita um deus ou um demónio, nessas lascas, no fundo, separadas do todo que a luz do intelecto impõe à mediação do mundo. Ignição e lucidez, continuidade e ruptura, sagração e sacrifício, amalgamam-se na mística da vida e da poesia que Fia conforma, daí a percepção sensível que vamos amplificando na progressão da leitura de que é todo um mundo autónomo o que temos nos poemas de Jussara Salazar. A lei deste mundo – o nómos, justamente – é o de a sua experiência supor uma alteração perceptiva. Logo no primeiro poema do livro, “Oração do Menino Jesus do Avalós”, se nos diz de uma fulguração aural insólita: “entre as urtigas dolorosas / soa o violino que tu tocas”. No seguinte poema, “Fia esta cantiga”, é de uma vidência que se trata: “Fia esta cantiga / e se vires a vida / fia bem depressa fia”. Mais adiante, no poema “Desbordar a terra estriada e agreste”, fala-se de “escutar o farfalhar seco e sonoro / o andar serpentino no lajedo”, com conspícuo ressaibo barroco. Barroca, no fundo, a “lavoura de mim” do poema “Dos oitis boiando no açude ao meio-dia”, plenitude vácua: “teço artérias em labirinto”. A poesia e o vivo, a arte e o mundo, como sublevação extática quer do espaço, quer do tempo. Poema e vida colapsam na página, que tanto é lavoura de ossos – “aqui se lavram ossos” – como língua aérea – “um voo qualquer”, como lemos no poema “Qualquer vento chega”, título encavalgado com três versos que perfazem uma estrofe que diz ainda, na íntegra, “Qualquer vento chega / leva a toalha branca / e a página aberta / para longe daqui”. Sublevação cuja violência intrínseca – no fundo, a violência da estesia enquanto afecção dos sentidos, modo material da abstracção da temporalidade como passagem ou trânsito – terá decerto um belíssimo ícone naquele outro poema “Estética da

Tempestade”, cujo angelismo seria produtivo contrastar com outros epifenómenos da figura do ‘anjo’ na poesia contemporânea. Transcensão do espaço e do tempo, perceptividade alterada: experiência do tecido, talvez mesmo tecido da experiência, que tem uma cena originária infantil no poema “Sobre para tapeçaria de um certo tintureiro francês”, “o tintureiro de bièvre / [que] fez vir até a minha infância / na pequena casa de uma rua qualquer / naquela parede”. A distância que acontece na “página aberta”, note-se, é mediada por uma ‘toalha’, o que atrai aqui toda uma casuística dos vestidos, da roupa, dos tecidos que nos propõe Fia. A “santa teresa em êxtase” destes poemas é uma tecedeira – o visionarismo tem nos poema “Alonguei a vista” ou “Olhos para quê?” belos exemplos –, e tecer não tematiza propriamente a produção de sentido e suas injunções narrativas. Exercício de orientação, como lemos em “De laço a laço”, este escrever como tecer é mais um mapeamento da ordem do “rendado”, isto é, da tessitura de uma experiência artística e vital que tem como paradigma os já aludidos ‘labirinto’ e ‘serpentina’. Que o poema seja a um tempo “ossos” e “voo” faz dele um análogo do “fruto” – enfim, da Natureza – que apodrece na página. A página é o pudridero, seja-me permitida a voz castelhana, onde “os pássaros os estranhos pássaros” – ou seja: os poemas – ainda varejam hipóteses de um “outro amanhã”, como lemos no poema-prece “Senhor”. E, numa genial volta ainda, este “outro amanhã” é da ordem de um futuro suspenso, o desconchavo daquela tremenda imagem de umas “florações sem futuro” com que deparamos no poema “O céu sangra a tinta vermelha dos frutos”. Suspensão inscrita tanto no mundo – na Natureza – como na arte – na poesia. Assim, tanto a lavoura de tecelagem da poeta como da Natureza são cifras, ou figuras, de uma modalidade geratriz de tempo que “trama mistérios / e o cosmo”. A dimensão mística e ritual da arte e da vida são os atributos de uma obra que se faz contra – negação e encostamento – o cancelamento do futuro. Assim, “os bois prenunciam: a chuva não virá”, como lemos no poema “Sob o sol mestiço desses dias”, composição que não deixa de apontar ‘contextos’ – dos ‘agrestes’ passados e presentes pessoais e colectivos – cuja situação sempre

empurrou à inactualidade, e admitiriam que esta poesia tenha valência alegórico-política. Para concluir, provisoriamente, esta breve nota de leitura, retomo o poema como “mapa / à revelia”, como “mapa de estrelas / se espraiando”, a um tempo ossuário silente e tenebroso e “um sonho tecido / um tangido o nada” (cf. o poema “Sintaxe”). Especialmente felizes estes versos finais de sintaxe habilmente desmanchada e insólita, adensando a mística estésica que é, no fundo, um nada que toca – e por isso está vivo.

«Tangido o nada» [posfácio], in Jussara Salazar, Fia, São Paulo, Selo Demônio Negro, 2016.

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