Tax & Ethics. Trying to engace Tax Sociology and Phsycology/Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais

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PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 Sugestão de Citação: PIRES, Rita Calçada (2011). Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal. Coordenação: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58

ÉTICA E IMPOSTO Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais RITA CALÇADA PIRES RESUMO As raízes sociológicas e psicológicas dizem-nos que o indivíduo tenderá a aceitar melhor uma realidade se a compreender, se os traços determinantes lhe forem explicados. Ou seja, se perceber o porquê e o para quê. Por isso, no imposto é de extrema relevância que o contribuinte possa compreender o fenómeno da tributação e nele possa igualmente encontrar o dever-ser adequado aos olhos da estrutura ético-moral maioritária da sociedade em que se insere, dependendo a eficácia da tributação da adesão do contribuinte ao tributo. PALAVRAS-CHAVE: Imposto; Tributação; Cumprimento Fiscal; Ética; Sociologia

ABSTRACT The effectiveness of taxation mostly depends on the taxpayer will to comply. Sociological and psychological roots tell us that the citizen will tend to better accept a reality if he understands it. Therefore, it is extremely important that the taxpayer can understand the phenomenon of taxation, recognizing on it the ethical and moral structure of the society. KEY-WORDS: Tax; Taxation; Tax Compliance; Ethics; Sociology

O imposto – limitação da liberdade - é, as mais das vezes, um fenómeno da realidade organizacional socialmente contestado, mal-amado e indesejado. Não é raro descobrir quem o rejeite, o contrarie e o critique. O imposto provoca sensação de desagrado, muitas das vezes acompanhada por uma interrogação sobre qual a sua verdadeira utilidade, pois verifica-se um grande afastamento entre a contribuição de cada um para o erário público e a visibilidade dos efeitos positivos que a acção do Estado, através do 1 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 imposto, tem na sociedade e na vida do cidadão individualizado e até como membro da colectividade. Gera-se um profundo afastamento entre os agentes sociais e o Estado Fiscal. Está-se perante um crescente fosso entre os contribuintes e os poderes tributários, fosso onde as pontes de comunicação rareiam. Ainda que ambos falem a mesma língua, pode mesmo falar-se na existência de uma diferente linguagem atribuída a cada um dos dois lados. Em face da crescente despersonalização do fenómeno impositivo e, em consequência, da cada vez maior fricção entre o contribuinte e a administração fiscal, acompanhada de um consequente afastamento e isolamento dos dois sujeitos da relação jurídica fiscal – os contribuintes, por um lado, e a administração tributária, por outro –, a questão da ética no imposto assume crescente importância. As raízes sociológicas e psicológicas dizem-nos que o indivíduo tenderá a aceitar melhor uma realidade se a compreender, se os traços determinantes lhe forem explicados.1 Ou seja, se perceber o porquê e o para quê. Por isso, no imposto é de extrema relevância que o contribuinte possa compreender o fenómeno da tributação e nele possa igualmente encontrar o dever-ser adequado aos olhos da estrutura éticomoral maioritária da sociedade em que se insere. A sociologia do imposto2 assume-se como factor preponderante pela importância que tem para a aceitabilidade desse tributo e, portanto, para a sua eficácia. A forma como o tributo é encarado pela sociedade, tal como a fundamentação da sua exigibilidade, apresenta implicações determinantes na efectiva prossecução das funções fiscais. Obter as receitas públicas necessárias, 1

André Barilari, Le consentement à l'impôt, Presses des Sciences PO, 2000

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A sociologia do imposto surge como uma área raramente valorizada na fiscalidade, mas que assume

cada vez mais importância no espaço de articulação entre o poder tributário e os contribuintes. A aproximação normativa dominou e continua a dominar a tributação. Raramente se atende, valoriza e se aposta no imposto como um facto social, privilegiando o contribuinte como um actor social concreto. Como apresenta MARC LEROY (La sociologie de l’impôt, PUF, 2002, pág. 5 e ss), a sociologia do imposto propõe uma abordagem teórico-empírica dos factores sociais das políticas fiscais, da racionalidade da situação do contribuinte e da justiça social do imposto. A sociologia do imposto procura criar um diálogo fluido e crítico com as teorias jurídicas e económicas dominantes que reduzem a realidade fiscal a artefactos meramente normativos. Nas palavras de JUAN J. FERNÁNDEZ CAINZOS (El Estado y los Contribuyentes: la resistencia fiscal, Instituto de Estudios Fiscales, 1986, pág. 62), a sociologia fiscal tem a missão de medir o grau de tolerância em face da tributação. Sobre a sociologia do imposto, cfr a obra clássica, em dois volumes, Gabriel Ardant, Théorie Sociologique de l’impôt, Éditions Jean Touzot, 1965 2 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 redistribuir a riqueza e intervir económica e socialmente, tudo através do imposto, apenas será verdadeiramente eficaz caso o tributo tenha aceitabilidade, pois só através da aceitabilidade do imposto as receitas vão verdadeiramente ter os níveis adequados – mercê de se atenuar a vontade de fugir ao imposto –, a redistribuição vai realmente acontecer – em virtude de o dinheiro ser de quem realmente tem de ser e não de quem o Estado consegue realmente cobrar – e a intervenção económico-social vai adequadamente verificar-se. O imposto terá maior aceitabilidade quanto mais o contribuinte sentir uma melhor afectação da sua contribuição. A ideia do justo retorno tem um papel assaz definitivo na legitimação do imposto.3 Não se pode deixar continuar crescer a ideia de insensibilidade do imposto4, sob pena de se gerar um espaço de ruptura definitiva entre o contribuinte e o fisco. É neste âmbito que me parece ser importante colocar a questão da ética no imposto. Será através da implementação e do maior desenvolvimento (no caso de já existirem) dos elementos de ética nos sistemas de tributação que se encontra uma das vias para a reaproximação entre o contribuinte e o fisco, entre o imposto e a sociedade. A ética no imposto surge como forma de apaziguamento das tensões cada vez maiores e mais profundas entre os intervenientes fiscais. A ética tem uma profunda relação com a legalidade. Ainda que, à partida, a ética esteja no plano das concepções sociais e a legalidade no plano das concepções jurídicas, o facto é que o ordenamento jurídico tem, nos seus princípios e nas suas opções legais, a influência da ética. Pode mesmo falar-se de incorporação da ética pela regra jurídica,

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André Barilari, Le consentement à l’impôt, Presses de Sciences PO, 2000, pág. 115. Note-se que a

referência à ideia de justo retorno e de correcta afectação das receitas arrecadadas pelo imposto não se pode confundir com a ideia de contrapartida directa existente nas taxas. Não se trata de defender uma contrapartida directa para o imposto, mas antes a visibilidade e a sensação de correcta aplicação dos montantes arrecadados pelo Estado com o imposto, trata-se da visibilidade de uma boa e adequada gestão das receitas fiscais pelo poder público na prossecução do bem comum e na concretização das suas tarefas públicas. 4

Expressão utilizada por Thomas Berns e Jean-Claude K. Dupont, “Postface: les insensibilités de

l’impôt”, em Philosophie de l’impôt, Bruylant, 2006, pág. 241 e ss 3 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 estando a ética, em rigor, implícita na legalidade5. Se é o homem que cria as leis, então, nada mais natural do que as suas estruturas ético-sociais influenciarem a construção legal de um sistema jurídico, incluindo um sistema fiscal. É a influência do dever-ser no ser. Pelo nosso ordenamento jurídico fiscal existem múltiplos exemplos de regras onde a ética está patente. A transposição da ética para a regra jurídica tem, na fiscalidade, um longo poder de alcance. Pode chamar-se a isto o fenómeno de “jurisdificação” da ética nos sistemas fiscais. Todavia, nem em todos os momentos há espaço para se proceder a esta “jurisdificação”. Muitas vezes os interesses e entendimentos divergentes podem minar a introdução da ética nos sistemas fiscais pela via da hard law. Por isso, para dar espaço ao apaziguamento das diferenças e para permitir a conciliação das diversas posições, sem impor através de um elemento legal rígido, a solução da soft law deverá ser amplamente considerada. Com o impacto produzido pela globalização no direito e nas suas formas tradicionais de se formalizar, a figura da soft law tem-se desenvolvido e tem ganho defensores. Por isso mesmo, aproveitando os benefícios desta forma flexível e conciliadora de gerar direito, a ética pode ser através dela integrada legalmente.6 Indicam-se, de seguida, a título de exemplo, uma panóplia de artigos da Constituição e da Lei Geral Tributária que demonstram a absorção da ética nos ditames fiscais. Na Lei Fundamental, o artigo 13º, relativo ao princípio da igualdade, e o artigo 22º da responsabilidade das entidades públicas, ainda que de carácter geral, demonstram, também quando aplicados ao imposto, a presença de preocupações éticas por parte do legislador. Nos quadros ético-sociais maioritários, a igualdade entre os contribuintes e a responsabilidade da administração fiscal pela sua actuação surgem como valores que devem ser implementados e prosseguidos. Também no campo da Constituição económica, em especial, para o que ora nos importa, no artigo 104º, ao se apelar à redistribuição e à justiça social, igualmente se está a implementar um princípio de ética no sistema fiscal.

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Hugo de Brito Machado, “O princípio da moralidade no direito tributário” em O Princípio da

Moralidade no Direito Tributário, coordenador Ives Gandra da Silva Martins: Conferência Inaugural José Carlos Moreira Alves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pág. 62 e ss 6

A propósito do papel e do impacto da soft law no direito fiscal e na figura cada vez mais premente do

consensualismo fiscal, cfr. Rita Calçada Pires, Consensualismo Fiscal – Notas para reflexão, in Fisco nº 122/123, pág. 79 e ss 4 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 Na Lei Geral Tributária, múltiplas são as regras que se revelam norteadas pela ética. Logo no artigo 4º, ao falar-se na capacidade contributiva como a regra determinante para a tributação do rendimento, assume-se a preocupação com a justiça e com a equidade como algo que deve ser preservado, preocupação enfatizada no artigo 6º, ao se desenvolver a forma como a tributação familiar deve ser operada. A propósito dos fins da tributação refere-se a necessidade desta orientar-se quer em função da justiça social, quer da garantia de igualdade de oportunidades, bem como da obrigação de efectuar as necessárias correcções das desigualdades, sem esquecer a generalidade, a igualdade, a legalidade e a justiça material (artigo 6º, nº 1 e nº 2 da LGT). O limite da não discriminação (artigo 7º LGT), a par da possibilidade de existirem e serem concedidos benefícios fiscais (artigo 14º LGT) e de se poder considerar a hipótese de o pagamento da dívida fiscal ser efectuado em prestações (artigo 42º LGT), enunciam-se como reflexo da justiça e da equidade, corolários que se envolvem profundamente na ética. Contrariando a possibilidade de casuísmo fiscal em general, protege-se o contribuinte não faltoso proibindo a administração fiscal de conceder moratória no pagamento das obrigações tributárias, salvo quando a lei o permitir (artigo 36º, nº 3 LGT). Nos artigos 35º, 43º e 44º da LGT encontram-se os símbolos da responsabilidade dos sujeitos fiscais. Quando os pagamentos forem tardios, faltarem ou forem indevidos, a essa acção opõe-se uma consequência, o pagamento de juros compensatórios ou de juros de mora, para o caso de falta por parte do contribuinte, ou de juros indemnizatórios, no caso de o Estado ter cobrado ao contribuinte impostos indevidos. A uma acção eticamente contrapõe-se uma condenação da conduta. O mesmo espírito é revelado na tributação dos rendimentos ilícitos (artigo 10º LGT) e está aproximado a propósito do confronto entre os dados declarados e as manifestações de fortuna e outros acréscimos patrimoniais não justificados (artigo 89º-A LGT). Além das demais implicações que a lei estabelecer para a ilicitude da actuação negocial dos particulares, fiscalmente, como forma de censurar a conduta, penalizando-a, tributa-se os rendimentos independentemente da actividade que os gerou ser considerada ilícita. A censura e a reprovação éticas estão bem presentes. O mesmo raciocínio parece estar presente igualmente a propósito das consequências fiscais quando se trata de acto ou negócio jurídico ineficaz, com a cláusula geral anti-abuso (artigo 38, nº 2 LGT), ou quando se está perante simulação de negócio jurídico (artigo 39º LGT). Consegue-se ainda descobrir a ética em outros artigos. A presunção da boa fé do contribuinte e da administração fiscal (artigo 59º, nº 2 LGT) supõe o suporte da ética nas acções destes sujeitos, tal como a obrigatoriedade da confidencialidade (artigo 64º LGT) e o facto de as informações prestadas serem vinculativas (artigo 68º, nºs 5 e 6 LGT) revelam essa presença, tal como o evidencia o recurso a perito independente no procedimento de revisão da matéria colectável, a par dos peritos designados pelo contribuinte e pelo fisco (artigos 91º, nº 4, 92º e 93º LGT).

5 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 A par da legislação fiscal nacional, também no plano comunitário encontramos a presença da ética. A meu ver, o caso paradigmático, de entre a múltipla actividade reguladora fiscal da comunidade europeia, encontra-se no Código de Conduta para a fiscalidade das empresas. Reconhecendo “a necessidade de um código de conduta no domínio da fiscalidade das empresas destinado a eliminar as medidas fiscais prejudiciais”7, em nome de uma concorrência leal e de uma consolidação da competitividade internacional da União Europeia, o Código de Conduta, como gentlemen’s agreement que é, revela uma preocupação ética na actuação dos Estados, a propósito da tributação das empresas. Os conceitos apontados nas resoluções do Conselho ECOFIN e no próprio relatório do Código de Conduta demonstram a intenção ética na forma como os Estados criam a sua regulação para a fiscalidade empresarial, atendendo ao resultado que tal pode provocar. Igualmente no âmbito do direito internacional fiscal deparamo-nos com o mesmo tipo de preocupações. Designadamente, no Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos (MCOCDE), o princípio da não discriminação artigo 24º do MC-OCDE), a implementação das propostas sobre o procedimento amigável para resolver os casos em que a tributação operada seja desconforme com a tributação estabelecida pela convenção (artigo 25º do MC-OCDE), o procedimento de troca de informações (artigo 26º do MC-OCDE), bem como o regulado para a assistência em matéria de cobrança de impostos (artigo 27º do MC-OCDE) demonstram, notoriamente, a preocupação com uma adequada forma de agir entre os Estados contratantes, fundada nos quadros éticos do relacionamento entre os sujeitos

Certo é estar a ética ligada à legalidade, mas não necessariamente limitada a esta. Podem existir regulamentações e comportamentos fiscais legais mas que, do ponto de vista ético, do ponto de vista do dever-ser, não são os adequados. Todavia, espelhar claramente o específico conceito de ética fiscal não se assume como tarefa simples. O sentido axiológico da ética, no plano do imposto, liga-se a realidades como a solidariedade, a não discriminação, a boa fé, a adequada utilização e gestão dos recursos, a redistribuição, a equidade, entre tantos outros conceitos que revelam a

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Resolução do Conselho dos Representantes dos Governos dos Estados Membros Reunidos no Conselho

ECOFIN de 1 de Dezembro de 1997, relativa a um código de conduta no domínio da fiscalidade das empresas, JO nº C2 de 06.01.1998 6 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 influência dos parâmetros éticos na construção do sistema fiscal.8 Identificar exaustivamente as manifestações da ética na tributação não é tarefa fácil, precisamente pela dificuldade de delimitar o conteúdo axiológico da ética no mundo social. Certo é a ética gerar uma expectativa no modo de actuar9. Quer por parte dos contribuintes quer por parte da administração fiscal. O que a ética propõe é uma espécie de código de conduta entre os intervenientes na relação jurídica fiscal. O que a ética espera alcançar é a harmonização dos ensejos, de forma a criar um espaço onde as necessidades de cada um são satisfeitas da forma mais pacífica, apaziguadora e adequada. É obvio que todos gostariam de não pagar impostos, mas sendo esta a forma privilegiada de o Estado obter as receitas necessárias à satisfação das necessidades comuns e defesa do interesse público, então o que se pretende é a criação de uma estrutura o mais adaptada aos interesses de cada um dos lados que intervêm nesse processo. Procurando concretizar a presença da ética no imposto surge como essencial desvendar quais os reflexos fundamentais que se encontram e devem nortear a relação dos sujeitos fiscais entre si. Os níveis de interacção entre os vários agentes fiscais podem ser diferenciados em quatro patamares: a relação entre o Estado e o Contribuinte, a relação do Contribuinte com o Estado, a relação entre os Contribuintes e, finalmente, a relação 8

No caminho para a construção de um imposto ético podemos referir os ensinamentos de ADAM SMITH

na sua obra Riqueza das Nações. Para este pai da organização económica, existem quatro máximas a respeito dos impostos em geral: a qualidade, a certeza, a conveniência de pagamento e a economia na cobrança. Ou seja, a contribuição para a manutenção do governo deve ser feita em função da capacidade contributiva de cada um, devendo o imposto ser certo e não arbitrário, lançado no tempo ou no modo mais provável de ser conveniente para o contribuinte o pagar, tal como deve ser construído de forma a tirar o mínimo possível. Como o próprio autor afirma, todos estes ditames não revelam mais do que profundas preocupações com a utilidade e a justiça, como máximas que devem ser atendidas por todas as nações. Esta construção, raiz do pensamento fiscal moderno, reflecte a necessidade de o imposto estar mergulhado na ética e de a ética ser tónica dominante na sua construção, análise e aplicação. Adam Smith, Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, volume II, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 485 a 489 9

A respeito da moral, já se escreveu, “A moral se manifesta em expectativas e exigências de

comportamento como standards, modelos ou ideias de valor e pautas de conduta.” Celso Ribeiro Bastos, “O princípio da moralidade no direito tributário” em O Princípio da Moralidade no Direito Tributário, coordenador Ives Gandra da Silva Martins: Conferência Inaugural José Carlos Moreira Alves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pág. 83 7 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 dos Estados entre si, bem como do Estado com os entes infra-estaduais e supraestaduais. Em qualquer destes patamares é detectável e desejável a presença da ética. O imposto, em qualquer uma das suas vertentes, tem e deverá ter a si ligado uma forte influência ética, pois é dessa ligação que se conseguirá, como atrás já deixei explicitado, uma harmonização das vontades, das expectativas e dos resultados pretendidos pela figura tributária. 1.Perspectiva da relação do Estado com o Contribuinte Múltiplos podem ser os exemplos de medidas que o Estado poderá tomar como forma de aproximar o contribuinte, imprimindo carácter ético na sua actividade legislativa, executiva e judicial.10 No plano da ética, julgo serem cinco as principais medidas a serem tomadas. A primeira das acções a dever ser tomada pelo poder tributário prende-se, na minha perspectiva, com um esforço adaptativo em face das modificações operadas no e pelo tecido social e económico, sempre fiscalizado pela jurisdição constitucional. E aqui não me refiro a um esforço por parte da administração fiscal em cercar cada vez mais o contribuinte, diminuindo a sua liberdade de acção e impondo-lhe mais pesos no cumprimento dos seus deveres tributários. Não. Quando menciono o esforço adaptativo não penso em manter o sistema em tudo como está, enxertando modificações para alargar o espectro de alcance. Penso antes num verdadeiro esforço de modificação e transformação. Os meios e os mecanismos da tributação na actualidade global não podem ser os mesmos que marcaram uma era de escassa mobilidade. A ética no imposto impõe mesmo que, em face dos avanços no tecido social e económico, as estruturas do poder tributário se actualizem e se modernizem. A globalização torna a fiscalidade ainda mais precária, amplificando as desigualdades e aumentando a debilidade dos Estados11. As bases de tributação detectáveis pela administração fiscal já não são tão amplas como anteriormente. A mobilidade transformou o contribuinte que pode ser 10

Cfr igualmente, Klaus Tipke, Moral Tributaria del Estado y de los Contribuintes, Marcial Pons, 2002,

pág. 27 a 108 11

Philippe Van Parijs, “Philosophie de la fiscalité pour le troisième millénaire” em Philosophie de

l’impôt, Bruylant, 2006, pág. 233 e ss 8 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 efectivamente tributado, sendo aquele que não tem mobilidade aquele que é sobrecarregado, deixando-se solto o contribuinte que tem o privilégio de se poder deslocar conforme as vantagens fiscais passíveis de serem obtidas, por ineficácia dos actuais mecanismos em fazer face a essa transformação. A família e a empresa, como instâncias de redistribuição, entram em declínio12. E a reacção que tem sido verificada passa por manter todas as estruturas actuais, enxertando modificações, conforme os problemas vão surgindo, de forma a resolvê-los através dos mecanismos já existentes. Talvez não seja despiciendo iniciar-se uma interrogação sobre a viabilidade da manutenção tout court dos actuais sistemas fiscais em face das novas realidades económicas. E um exemplo do que pode ser ponderado será remodelar as bases de tributação em face da extrema mobilidade e do impacto que têm as novas tecnologias. Pois, eticamente não faz sentido continuar a sobrecarregar quem não tem mobilidade apenas porque é mais fácil e a forma mais efectiva de continuar a obter receitas fiscais garantidas. Refundir as estruturas fiscais para a nova economia global é um passo sério, ético e de extrema relevância que merece ser encarado como prioridade máxima por parte do poder tributário. A segunda acção relaciona-se com uma tentativa de desdramatizar o imposto, relegitimando-o. Raro é o contribuinte que encara o imposto de forma leviana. As mais das vezes estão presentes as sensações de insatisfação, revolta ou de conformismo. O imposto é verdadeiramente um drama para os contribuintes que vêem o seu dinheiro ser levado sem consequências de maior para o seu dia-a-dia. Gera-se uma ideia dramática sobre esse tributo, com alguns mitos e ideias erradas que se vão criando a seu propósito.13 Por isso é tão importante desdramatizar o imposto. Para isso, como é apontado por DUBERGÉ, cabe ao poder tributário desmistificar o imposto. Tal objectivo seria alcançado, através de uma correcta e clara informação, da diminuição dos custos psicológicos para o contribuinte, da redução, sempre que possível, dos impostos e, igualmente, da aplicação da técnica da anestesia fiscal, de forma a retirar a dor

12

Philippe Van Parijs, “Philosophie de la fiscalité pour le troisième millénaire” em Philosophie de

l’impôt, Bruylant, 2006, pág. 232 13

Sobre o tema, conferir Luigi Einaudi, Mitos y Paradojas de la Justicia Tributaria, Ediciones Ariel,

1963 9 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 tributária,14. Com a desdramatização, que pode auxiliar no aumento da aceitabilidade do imposto, deverá também conseguir-se relegitimar o imposto aos olhos do contribuinte, garantindo uma desmistificação do mesmo, possibilitando uma aderência ao tributo, precisamente porque se conhece e se percebe a realidade. Tornar a legitimar o imposto é, inclusivamente, uma tarefa intrinsecamente ligada com o desafio europeu15. As demandas provenientes da União Europeia forçam as barreiras do imposto, transformam a sua importância e agudizam a sua necessidade. Se, no plano político da União Europeia, se vai admitindo um deficit democrático que afasta os cidadãos do projecto Europa, também no plano fiscal, em especial em face do cerco económico-financeiro feito pelas regulações comunitárias em torno das opções nacionais, o deficit de aderência, de ética, de moral e de justiça é notório. Conjugar a renovação democrática europeia com a renovação de legitimação da fiscalidade surge como uma boa oportunidade de se redesenhar o processo europeu, aproximando-o das populações, simultaneamente dotando-o de maior profundidade fiscal, visível na boa prática dos deveres financeiros dos Estados e da União, quer na obtenção das receitas quer na aplicação das mesmas. Este processo de relegitimação assenta necessariamente no fomento de acções tendentes criar mais cedo e a revitalizar a já existente educação fiscal. É importante que a formação da personalidade do cidadão tenha como parcela também essencial a consciência ético-fiscal, como parâmetro da consciência cívica.16 E quando se menciona cidadão, menciona-se a criança e o jovem em idade escolar, o contribuinte que já está envolvido numa relação fiscal, bem como os funcionários da

14

Jean Dubergé, Dédramatiser l’impôt, Presses Universitaires D’Aix-Marseille, Faculte de Droit et de

Science Politique d’Aix-Marseille, 1994, pág. 21 e ss 15

Philippe Van Parijs, “Philosophie de la fiscalité pour le troisième millénaire” em Philosophie de

l’impôt, Bruylant, 2006, pág. 237 e ss 16

Magin Pont Mestres (El problema de la resistencia fiscal, Bosch, 1972, pág. 257) defende ser

importantíssima esta ligação entre a fiscalidade e a educação fiscal, pois a transcendência da educação fiscal radica, precisamente, no facto de se poder incutir no cidadão que a convivência social, a responsabilidade consequente e o bem que tudo isso faz na formação da personalidade, serão bons valores para o cumprimento tributário. O autor alia as ideias de educação e justiça, sendo um óptimo para a vivência no mundo tributário e para a existência de uma verdadeira responsabilidade ético-moral. 10 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 administração fiscal.17 Ultrapassar a resistência fiscal só será conseguida com estas acções educativas.18 No terceiro lugar das acções a serem empreendidas pelo Estado na sua relação com o contribuinte defendo uma maior ética e moralização da administração fiscal na sua conduta, aliada a uma fiscalização judicial.19 As mais das vezes verifica-se exigir a administração fiscal ao contribuinte comportamentos e acções extremamente exigentes, sem que, em muitos casos, do lado do fisco, haja o mesmo grau de exigência na sua actuação e no cumprimento dos seus deveres. Um exemplo disso é o que SOUTO MAIOR BORGES apelidou de “princípio da ilegalidade eficaz, dizendo ser este princípio tão útil para a Administração Pública quanto o da legalidade tributária, pois a quantia indevida que entrou nas burras oficiais e não foi devolvida, para efeitos de finanças públicas tem a mesma eficácia que a de tributo devido, razão pela qual o Fisco usa das imposições indevidas constantemente, visto que não são todos os contribuintes que discutem incidências ilegais, no mais das vezes restringindo-se a discussão a uma pequena minoria”20. Tal comportamento é altamente reprovável. Se se exige ao contribuinte a exactidão no cumprimento das obrigações, espontaneamente o fisco deve igualmente primar pela ética nas suas actuações. Prolongar “litígios” no tempo, apenas para se aproveitar da disponibilidade imediata das quantias, mesmo que indevidas, atrasando a devolução desses montantes, mesmo pagando juros, surge como uma acção altamente reprovável, sendo ética e moralmente de imediata condenação, como é também o condicionamento, directo ou indirecto, do direito de reclamar. Um outro caso que deve, a par da negação do princípio da ilegalidade eficaz, ser atendido neste domínio de uma maior ética e moralização do imposto é a consciencialização dos riscos presentes nas soluções casuísticas construídas pela 17

Magin Pont Mestres, El problema de la resistencia fiscal, Bosch, 1972, pág. 252 e ss

18

Cidália Maria da Mota Lopes, Maximizar o cumprimento dos impostos e minimizar os custos: Uma

perspectiva internacional, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano III, 03 10, 1, pág. 192 e ss 19

Klaus Tipke, Moral Tributaria del Estado y de los Contribuintes, Marcial Pons, 2002, pág. 81 a 83

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Citado por Ives Gandra da Silva Martins, “O princípio da moralidade no direito tributário” em O

Princípio da Moralidade no Direito Tributário, coordenador Ives Gandra da Silva Martins: Conferência Inaugural José Carlos Moreira Alves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pág. 30 11 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 administração fiscal. Diferenciar contribuintes é complicado, gerador de desacordo e potencial de criação de revolta por parte dos outros contribuintes. Em última análise, pode criar no contribuinte a justificação para o não cumprimento da obrigação principal do imposto. Um caso a meu ver notório é o caso dos clubes de futebol que constantemente se têm visto habilitados a não pagar os impostos no tempo devido ou a negociarem com o fisco o valor da dívida. A opção casuística por parte do Estado, presente no ordenamento português com planos como o Plano Mateus21, provoca, desnecessariamente, fricções entre os contribuintes e o Estado. Qual a legitimidade diferenciadora de contribuintes nos seus deveres de pagar impostos? Porquê desonerar contribuintes não cumpridores, insistindo em onerar os cumpridores? Apostar em soluções casuísticas no campo fiscal assume-se como um risco elevadíssimo e que, do ponto de vista ético-fiscal, não é, a meu ver, aceitável. A responsabilização do fisco, a par da responsabilização do contribuinte, deve ser um passo seguro a aprimorar.22 A igualdade, a legalidade e a justiça tributárias assim o exigem. Tal como se exige uma maior ética profissional por parte do servidor público tributário. O papel do funcionário fiscal na desdramatização do imposto, na sua relegitimação é preponderante. É da

21

Decreto-Lei nº 124/96, de 10 de Agosto, em que se admitiu o diferimento de pagamento de impostos e

de contribuições para a Segurança Social (pagamento em prestações), bem como, redução de valor e conversão em capital das entidades devedoras ou de alienação (artigos, nomeadamente, 1º, 4º, 5º e 8º). Todavia, não é este o único exemplo de medidas do género. Basta recordar o Decreto-Lei nº 248-A/2002, de 14 de Novembro, em que se estabeleceu a dispensa dos juros de mora e dos juros compensatórios, tal como a redução das custas e das coimas, para quem regularizasse as dívidas de natureza fiscal (artigos, nomeadamente 1º, 2º e 3º). Inclusivamente, no artigo 6º deste último diploma, não só se refere o diploma correspondente ao Plano Mateus, “bem como das autorizadas [condições de regularização] em quaisquer outros regimes da regularização prestacional” (artigo 6º, nº 1). E mais, “o presente diploma não prejudica a aplicação de outros regimes legais vigentes mais favoráveis aos infractores ou executados” (artigo 6º, nº 2). 22

Daí ser também importante que, quer o contribuinte quer a administração fiscal, devam poder ser

condenados como litigantes de má fé com todas as consequências inerentes a essa condenação, o que foi aceite na legislação portuguesa (artigo 104º da Lei Geral Tributária). É uma forma de a ética sobressair e de a responsabilidade do agente fiscal ser fomentada. 12 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 actuação ética desse funcionário que a administração fiscal pode, efectivamente, tornar o sistema fiscal dotado de mais ética, mais justiça e mais eficácia.23 Além dos aspectos agora apresentados, tornar a conduta da administração fiscal mais ética e moral passará, igualmente, por desenvolver adequadamente a diferenciação entre os interesses principais e os interesses secundários do fisco, implementando uma mais permanente primazia dos primeiros sobre os segundos. Uma coisa serão os interesses principais, consubstanciados nos interesses da colectividade, no interesse público da comunidade, outra coisa serão os interesses da pessoa jurídica que procura alcançar os objectivos preconizados pelo interesse comum24. O primeiro jamais poderá ser esquecido, pois o Estado, e o Fisco especificamente para o que ora nos releva, não pode impor os seus interesses próprios apenas e por si só. Esses interesses só devem prevalecer no caso de coincidirem com os interesses da colectividade. A função da administração fiscal está vinculada à legalidade e ao bem comum, sendo apenas depois, e na medida que se compactuem com estes últimos, que os interesses da própria administração fiscal devem ser prosseguidos.25 Esta articulação entre os interesses primários e os interesses secundários demonstra igualmente uma acção notória que deve ser efectuada pelo Estado, de forma a reconquistar o contribuinte: a melhor gestão dos dinheiros públicos, aliada ao aumento da transparência sobre a aplicação efectiva das receitas fiscais obtidas. Os deveres financeiros do Estado verificam-se tanto por referência à obtenção das receitas, quanto por referência à forma como as receitas são aplicadas26, e estes deveres devem ser enfatizados, responsabilizando-se mais o Estado pela forma como aplica e gere os 23

Sobre as razões da Administração e do contribuinte, cfr. Cidália Maria da Mota Lopes, Maximizar o

cumprimento dos impostos e minimizar os custos: Uma perspectiva internacional, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano III, 03 10, 1, pág. 196 e 197 24

Diva Malerbi, “O principio da moralidade no direito tributário” em O Princípio da Moralidade no

Direito Tributário, coordenador Ives Gandra da Silva Martins: Conferência Inaugural José Carlos Moreira Alves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pág. 59 25

Diva Malerbi, “O principio da moralidade no direito tributário” em O Princípio da Moralidade no

Direito Tributário, coordenador Ives Gandra da Silva Martins: Conferência Inaugural José Carlos Moreira Alves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pág. 59 26

Mário Perez Luque, Deberes tributários y moral, EDERSA, 1980, pág. 143 e ss 13 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 rendimentos fiscais obtidos. Certamente, se uma melhor aplicação dos recursos transparecer, os contribuintes terão mais razões para aceitar o imposto, não o tomando como um fundo perdido que em pouco beneficia o seu quotidiano. Aceitar a presença de alguns critérios típicos da gestão privada, transportando-os para a gestão pública, na medida da sua adequação com o interesse público, pode ser uma forma de dinamizar e optimizar a acção do Estado, oferecendo oportunidades ao fisco para se modernizar e edificar um sistema fiscal mais eficiente, eficaz e económico. Como contribuinte, caso possa perceber e sentir que o dinheiro com o qual contribuo para os cofres do Estado é bem aplicado, verificando-se um aumento da qualidade do bem comum, então terá muito mais sentido a contribuição que faço, o esforço que tenho e a expectativa que crio para a actuação do Estado. Na esfera das acções do Estado em face do contribuinte, existe ainda uma outra via que me parece ser útil apontar. Passa esta por não sobrecarregar mais o contribuinte, apostando antes em bons mecanismos de fiscalização. Na actualidade, a administração fiscal depende em grande medida daquilo que o contribuinte a informa, daquilo que o contribuinte declara. O sistema fiscal contemporâneo tem os seus alicerces construídos nos deveres declarativos do contribuinte, estando este onerado com múltiplas obrigações acessórias, além da obrigação principal de pagar imposto. Não tendo meios para actuar por si só em face da quantidade de contribuintes, o fisco faz depender a sua acção, as suas receitas e as suas expectativas da informação que lhe for disponibilizada. Mas mais do que isso, os deveres acessórios, precisamente para assegurar a veracidade das informações obtidas e para permitir o cruzamento dessas, assumem um peso cada vez mais crescente para a esfera do contribuinte e de terceiros. Ora, depender quase exclusivamente daquilo que o contribuinte – e, embora em menor medida, de terceiros - quiser ou não dar a conhecer, apostar na ética de cidadãos, que estão profundamente revoltados com a forma como a tributação ocorre, tal como com a forma como o Estado desempenha os seus deveres financeiros, não parece ser uma aposta que se possa considerar eficaz. A dependência do contribuinte e de terceiros, é certo, terá sempre uma forte presença no sistema fiscal, a partir do momento em que os tipos de rendimentos são diferentes, móveis e autónomos, porém, há medidas que podem auxiliar a desonerar um pouco da carga exigida aos contribuintes e terceiros. A primeira passa pela construção de sistemas eficazes de cruzamento de dados entre os 14 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 vários âmbitos governamentais, designadamente, dentro da área dos vários impostos e da área dos impostos com a área dos registos, especificamente predial e notarial. A segunda medida passa pela formação adequada dos fiscalizadores e reformulação dos mecanismos de fiscalização, de forma a termos controlo fiscal aos contribuintes infractores, ou potencialmente infractores, e não aos contribuintes cumpridores, tal como a conseguir-se um elemento eficaz de determinação de incorrecções e ilegalidades agregadas a movimentos de fraude e evasão. 2. Perspectiva da relação do Contribuinte com o Estado Ao nível da ética e o imposto, sob o prisma do contribuinte na sua relação com o Estado, em face dos abusos muitas vezes cometidos pelo poder tributário, deveria potenciar-se, desde logo, a existência de escusas ao pagamento de impostos não éticos. Os limites do poder tributário surgiriam como os direitos éticos e legais de os contribuintes recusarem a contribuição pela via do imposto. Assim, eticamente o contribuinte deveria recusar um imposto que representasse um confisco27, tal como deveria resistir a leis fiscais e a impostos injustos e ilegais.28 Porém, a questão do imposto ético e do imposto justo não oferece um espaço correctamente delimitado, o que naturalmente, sem mais desenvolvimento, geraria incerteza e discriminações, ou seja, resultados igualmente indesejados pela ética fiscal. Para que se possa socorrer da ética no plano da resistência por parte do contribuinte, há que atender a uma correcta delimitação daquilo que se entende por escusas legítimas a impostos. Aquilo que o contribuinte deve ter sempre bem ciente é a existência da figura do direito de resistência fiscal. Tal como existe o direito de resistência geral, em oposição a condutas estatais inconstitucionais, também no domínio do direito fiscal se construiu a

27

Por exemplo, Klaus Tipke, Moral Tributaria del Estado y de los Contribuintes, Marcial Pons, 2002,

pág. 65 28

Aquilo a que Mario Perez Luque apelida de princípio da legitima defesa. Deberes tributários y moral,

EDERSA, 1980, pág. 88 e ss. Cfr. igualmente Klaus Tipke, Moral Tributaria del Estado y de los Contribuintes, Marcial Pons, 2002, pág. 71 15 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 figura do direito de resistência fiscal29. Este é uma importante arma de defesa, à disposição do contribuinte, para fazer frente ao imposto inconstitucional ou ao imposto ilegalmente liquidado ou cobrado.30 É um direito constitucionalmente consagrado na nossa Lei Fundamental – artigo 103º, nº 3 –, assumindo crescente relevância quer porque cada vez mais há uma maior pressão fiscal quer porque, como afirma MARGARIDA MESQUITA, a complexidade do sistema fiscal supõe o alargamento de poderes fiscalizadores da Administração, pois o fisco é cada vez mais um ente limitador e interventor na esfera privada do cidadão.31 O direito de resistência fiscal traduz-se em duas modalidades: o direito de resistência passiva e o direito de resistência defensiva.32 A primeira modalidade e a mais comum de acontecer e de se perspectivar, passa pela recusa de pagamento de imposto inconstitucional (ou seja, de imposto não gerado em conformidade com os ditames exigidos pela Constituição Fiscal) ou de imposto ilegalmente liquidado ou cobrado. O contribuinte deve recusar-se a cumprir com o pagamento da prestação, não devendo pagar a dívida fiscal. No âmbito da segunda modalidade, o direito de resistência defensivo, o que existe é um “direito de defesa

29

O direito de resistência fiscal diferencia-se do conceito de resistência fiscal tout court. Este último

enquadra-se no âmbito da sociologia do imposto e revela a contrariedade que a sociedade tem em face do tributo, analisando igualmente o impacto que tal animosidade tem. Já o direito de resistência fiscal assume-se como uma garantia constitucional e como consequência da necessidade de o princípio da legalidade tributária ser cumprido. Para a evasão fiscal como forma moderna de resistência ao imposto, André Barilari, Le consentement à l'impôt, Presses des Sciences PO, 2000, pág. 71 a 81 30

Para os casos de ordens que violem um direito, liberdade ou garantia ou direito análogo, a propósito

dos deveres tributários acessórios, e já não no âmbito de imposto inconstitucional ou imposto ilegalmente liquidado ou cobrado, o direito de resistência já não se subsumirá ao direito de resistência previsto no seio da Constituição Fiscal, mas antes ao direito de resistência em geral, previsto no artigo 21º da nossa Constituição, como defende Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo 106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, págs. 98 e 99 31

Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo

106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 10. Para a análise da raiz histórica da figura em Portugal e a sua evolução, cfr. a mesma obra, pág. 72 e ss 32

Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo

106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 97 e ss 16 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 perante qualquer tentativa da administração fiscal tendente à respectiva cobrança”.33 Aliás, hoje o Código de Processo e Procedimento Tributário prevê medidas cautelares a favor do contribuinte quando a actuação da Administração possa causar-lhe lesão irreparável (artigo 147º, nº 6).34 Como decorrência do direito de resistência fiscal, em especial do direito de resistência fiscal passivo, surge como útil indicar alguns aspectos fundamentais a ter em conta para que a análise do cidadão sobre o imposto e sobre o acto tributário que lhe sugere o exercício do direito de resistência possa efectivamente acontecer, de forma a ser realmente dotada de eficácia jurídica.35 A primeira das considerações a ser apresentada está ligada com a necessidade de fundamentação do acto tributário. À semelhança do que se passa com o acto administrativo geral, o acto tributário deve igualmente ser fundamentado, pois só assim o contribuinte pode avaliar apropriadamente a correcta aplicação da lei pela administração fiscal.36 A ética manifesta-se igualmente na transparência e no conhecimento das motivações e das causas que suscitam determinada realidade. O segundo aspecto a ser evidenciado passa pela recusa peremptória do princípio solve et repete. Isto é, a ética, ligada à real possibilidade de um correcto exercício do direito de resistência, impõe que o contribuinte possa sempre recorrer das decisões e actuações da administração, independentemente de ter pago ou não a importância que o fisco considera devida, mas que o contribuinte pode não achar.37

33

Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo

106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 105. E como refere a autora, esta segunda possibilidade requer mais prudência, pois será muito mais difícil a concretização clara de todas as condições exigidas para tal acontecer. 34

Sobre a natureza dos impostos e resistência ao fisco, cfr. André Barilari, Le consentement à l'impôt,

Presses des Sciences PO, 2000, pág. 83 a 87 35

Adopto em seguida o pensamento e as propostas expostas e defendidas por Maria Margarida Cordeiro

Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo 106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 105 e ss 36

Como é consagrado na lei portuguesa, por exemplo, artigo 77º da Lei Geral Tributária.

37

Daqui decorrerá, naturalmente, a consequente defesa da suspensão do processo de execução fiscal

enquanto esteja a ser decidida uma impugnação ou oposição. 17 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 Porque se discorda justificadamente, diz-nos a ética que a defesa própria deverá ser feita independentemente de condições exigidas por aquele contra quem se procede. A par destas duas notas encontram-se ainda outras duas referências que devem ser feitas de forma a dotar o direito de resistência, especialmente na modalidade passiva, de verdadeira eficácia jurídica. A questão da devolução de impostos indevidos, acrescido de juros indemnizatórios é um delas. No caso de o contribuinte ter pago a prestação da dívida fiscal e ter desenvolvido todos os esforços subsequentes para demonstrar a inocuidade, inconstitucionalidade ou ilegalidade do imposto pago, a ética exige a devolução dos montantes indevidamente entregues, tal como, como forma de responsabilizar a administração fiscal pela conduta indevida, faz todo o sentido serem pagos juros indemnizatórios por esta e, nalgumas circunstâncias, até juros de mora (artigo 102º, nº 2 da Lei Geral Tributária). É que o instituto da responsabilidade patrimonial não deve ser apenas encarado como um instituto unidireccional, virado só para o contribuinte, pois, essa responsabilidade cabe tanto ao contribuinte como ao outro sujeito da relação fiscal, o fisco. Assim, depois de “declarada a inconstitucionalidade da norma criadora ou regulamentadora da espécie tributária ou a ilegalidade do acto de liquidação ou cobrança”38 o reembolso deve acontecer. A última das

questões

a

ser

colocada

está

situada

no

âmbito

da

declaração

de

inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional. Para que o direito de resistência possa ser efectivamente ser exercido, em nome da ética, na área fiscal, o Tribunal Constitucional não deve restringir os efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade, devendo antes a norma ser declarada inconstitucional desde a sua entrada em vigor39, pois só dessa forma não se limitará o direito de resistência e se garantirá que a finalidade deste direito não é subvertida.

38

Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo

106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 147 39

Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Direito de Resistência e Ordem Fiscal. Reflexões sobre o artigo

106º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, pág. 180 18 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 Mas se a ética produz uma expectativa no modo de a Administração Fiscal actuar, também na esfera do contribuinte essa expectativa é gerada. A presunção de boa fé (artigo 59º, nº 2 LGT) é reflexo disso mesmo.40 Ou seja, não cabe apenas à administração fiscal a correcta actuação, nem cabe apenas ao contribuinte a resistência a impostos inconstitucionais ou ilegalmente liquidados ou cobrados. Sobre o contribuinte recaem igualmente um vasto escopo de expectativas na forma de agir e de se relacionar com a fiscalidade e o papel dos consultores fiscais e dos advogados reveste-se, neste domínio, de primacial importância.41 A ética gera a necessidade de existir uma forte consciência cívico-fiscal, fruto da existência efectiva de cultura fiscal no cidadão.42 Um dos mais importantes deveres que recai sobre o contribuinte assenta na veracidade dos dados fornecidos ao fisco. Faz parte do grupo de deveres éticos derivados da declaração fiscal43. Actualmente a administração fiscal faz depender a sua actuação, em grande medida, da informação que lhe for fornecida pelo contribuinte. Há uma grande dependência do contribuinte. Todavia, com o actual estado de coisas, e precisamente por existir esta forte dependência daquilo que o contribuinte quer dar a conhecer, um dos maiores problemas para a fiscalidade é a questão da fraude e da evasão fiscais. A fuga aos impostos é uma realidade diária e permanente na sociedade contemporânea. Para tal em muito contribuem as amplas possibilidades oferecidas pela globalização e pelas novas tecnologias que dão espaço ao contribuinte para se deslocar fiscalmente para zonas mais favoráveis, tecnologias essas que permitem também a exploração maximizada das lacunas ou das redacções imperfeitas das legislações fiscais.

40

Sobre a boa fé, Amelia González Méndez, Buena fé y derecho tributário, Marcial Pons, 2001

41

Ronald D. Rotunda, Legal ethics, Thomson West, 2006; Donald B. Tobin et al, Problems in tax ethics,

Thomson West, 2009; Entreprise Éthique, Fisc: redistributeur ou prédateur?, Éditions Seli Arslan, 2001; Louis Eisenstein, The ideologies of taxation, Harvard University Press, 2010 42

Utilizando expressões de Domitília Diogo Soares, Percepção Social da Fiscalidade em Portugal. Um

estudo exploratório, Almedina, 2004, pág. 83 43

Na terminologia utilizada por Mario Perez Luque, Deberes tributários y moral, EDERSA, 1980, pág.

119 e ss 19 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 A figura do planeamento fiscal está igualmente muito em voga. Um espaço de gestão fiscal dos riscos, dos custos e das vantagens fiscais é deixado aos contribuintes para estes aproveitarem e exercerem as escolhas mais favorecedoras para a sua esfera jurídica, mas aqui sempre dentro dos limites oferecidos pela lei e pela ética fiscal. O problema não está em cercear o planeamento fiscal, como alguns podem pensar. Algo como planeamento fiscal agressivo, contrário à lei, é figura que, do ponto de vista dogmático, não existe, pois, o planeamento fiscal, por definição, é uma figura que se encontra dentro do espaço permitido pela lei fiscal e não se remediará a situação substituindo terminologia como mitigação do imposto, esta não agressiva. Em tudo o que ultrapassar já se trata de evasão ou fraude fiscais, sendo estas as verdadeiras preocupações para a administração fiscal.44 Como já foi apontado, na sociedade contemporânea vive-se uma fase de desgaste da figura impositiva, aliás, como noutras épocas. O imposto é criticado, mal-amado, incompreendido e indesejado. Por isso mesmo não pagar impostos ou pagar o menos possível, mesmo que de forma contrária à lei e à ética fiscal, surge como uma reacção “normal” nos nossos dias. Hoje, não pagar impostos surge ora como reflexo de egoísmo ora fruto de reacção social45. Ou se entende que não se quer “perder” dinheiro, dinheiro esse que deve estar única e exclusivamente afecto às escolhas privadas, ou se entende que, porque o Estado não aplica bem os quantitativos obtidos, existindo um profundo descontentamento com as políticas públicas, e como reacção a esse descontentamento, não se deve pagar os impostos devidos.46-47 Compreende-se que assim seja. Todavia, tal 44

Mário Perez Luque (Deberes tributários y moral, EDERSA, 1980, pág.155) defende serem três as

regras para lutar contra a fraude de um ponto de vista ético: orientar esforços para controlar e descobrir as bases reais de tributação, redução dos tipos tributários para facilitar o pagamento voluntário e aplicação efectiva de sanções dissuasoras. 45 46

Mário Perez Luque, Deberes tributários y moral, EDERSA, 1980, pág. 64 e ss “[…] embora existam algumas divergências entre os diversos grupos estudados relativamente à

extensão do défice de consciência fiscal, pode afirmar-se que existe consenso em torno da ideia de que as diferenças entre os diversos grupos sociais, não residem tanto no grau de consciência fiscal, mas no cumprimento real e efectivo das obrigações tributárias. Emerge, assim, em todos os colectivos, tanto de criadores de opinião como de contribuintes, um forte consenso em torno da ideia de que existem desigualdades no cumprimento das obrigações tributárias, e que essa desigualdade se deve a que as actividades de uns grupos de contribuintes estão fiscalmente mais controladas do que outras e que, por 20 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 jamais pode ser aceite pela comunidade.48 Em face da organização político-económica e social que temos nas sociedades ocidentais, o imposto é e será sempre uma forma privilegiada de fazer face às necessidades colectivas, sejam elas financeiras, sejam elas de justiça. Pagar impostos e contribuir para a satisfação das necessidades comuns surge como uma questão fundamentalmente ética, ainda que legalizada49. Por isso, no escopo

isso, ainda que todos quisessem praticar a evasão fiscal, uns podem ocultar com mais êxito do que outros, os rendimentos que têm de declarar.” Domitília Diogo Soares, Percepção Social da Fiscalidade em Portugal. Um estudo exploratório, Almedina, 2004, pág. 97 47

Este é o fenómeno da resistência fiscal, já atrás mencionado. Nas palavras de PIERRE BELTRAME (La

résistence à l’impôt et le droit fiscal, In Revue Française de Finances Publiques, 5, Les résistence à l’impôt, 1984, pág. 21 e 22) a resistência fiscal surge como uma recusa deliberada do imposto, imposto esse que é sentido como algo opressivo, revelando esta rejeição da obrigação fiscal, em última instância, uma inadaptação do sistema fiscal ao meio sócio-económico a que se aplica. Como refere JUAN J. FERNÁNDEZ CAINZOS (El Estado y los Contribuyentes: la resistencia fiscal, Instituto de Estudios Fiscales, 1986, pág. 23 e ss), o impacto da resistência fiscal passa pela desagregação e perversão do direito fiscal, pois os comportamentos consequentes da resistência geram a proliferação de regras fiscais obscuras, circulares e demasiado flexíveis para fazer face às tentativas de contornar e contrariar regras tendencialmente mais simples e mais rígidas, desadequadas a sistemas económico-sociais complexos. 48

Até porque a tendência será para o Estado reagir e a sua reacção nem sempre se pauta por objectivos

éticos, uma vez que o comportamento do contribuinte que dá origem à reacção não é, em si mesmo, ético. Exemplo disso foi o caso do aumento fictício do montante dos rendimentos de capitais tributáveis, pressupondo que o declarado não correspondia à realidade, efectuado no Reino Unido. Esta medida, entretanto já abolida, assentava na ideia de que tradicionalmente os rendimentos de capital, por oposição aos rendimentos do trabalho, eram aqueles que tecnicamente estavam mais sujeitos a fuga. Todavia, hoje, também os rendimentos provenientes do trabalho, designadamente, aqueles gerados pelo trabalho independente e pelo trabalho dependente de média e superior qualificação (em grande medida através das enormes possibilidades oferecidas pelos fringe benefits) são alvos privilegiados da possibilidade de fuga. A continuar assim, mais medidas semelhantes às tomadas pelo Reino Unido podem continuar a surgir, e essas medidas não são eticamente adequadas, já que, além de o contribuinte cumpridor suportar o incumprimento do contribuinte incumpridor, essas são medidas que desvirtuam a verdade dos factos, dos rendimentos e da real capacidade contributiva de quem cumpre. 49

No próprio catecismo da Igreja Católica se verifica a condenação da figura da fraude: “Todo o processo

de tomar e deter injustamente o bem alheio, mesmo que não esteja em desacordo com as disposições da lei civil, é contrário ao sétimo mandamento. […] São também processos moralmente ilícitos: […], a fraude fiscal, […].” (ponto 2409). É sequência da discussão de séculos atrás sobre se o não pagamento dos impostos violaria ou não o mandamento “não roubarás”. Aliás, nas perguntas para a preparação da 21 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 de análise do contribuinte em face do Estado, o que resultará num bom caminho a ser seguido será criar incentivos a uma mudança de mentalidade por parte dos contribuintes. As medidas acima indicadas, a propósito da relação Estado – Contribuinte, serão medidas fundamentais neste percurso, pois, através delas conseguirse-ia uma revitalização da figura. Um importante papel cabe, deveras, ao Estado, na tentativa de voltar a fazer aceitar, acreditar e credibilizar o imposto. Porque, repete-se, é da aceitabilidade, da sensibilidade e da sua legitimação aos olhos da sociedade que o imposto renasce e pode efectivamente cumprir com os seus propósitos. Contudo, não apenas ao Estado cabe um papel activo nesta reformulação. Em face da tendência quotidiana para fugir aos impostos, a mudança de mentalidade terá igualmente de operar no seio dos contribuintes, cabendo-lhes a vontade de operar uma profunda renovação dos seus conceitos de solidariedade e de consciência fiscal. É aquilo a que podemos apelidar de reeducação fiscal. Procura-se aprofundar a consciência e a cultura fiscais dos contribuintes. O imposto no espaço contemporâneo assenta numa ideia de solidariedade.50 Aquilo que se convenciona como solidariedade fiscal assume-se como um importante pilar da tributação. A fundamentação desta deriva, em grande medida, da existência de uma consciência social de dever colaborar para atingir e manter o Bem Comum. A organização em sociedade supõe a existência de um bem geral, de um bem comum, sendo necessário protegê-lo, fomentá-lo e ampliá-lo. É daqui que nasce o conceito de solidariedade, encarado como “um sentimento que impele o individuo a prestar auxílio moral ou material a outrem”, como “responsabilidade mútua entre os membros de uma comunidade, classe, empresa” 51, não sendo promovida pela existência de contrapartida. Origina-se e fundamenta-se num dever de responsabilidade mútua.52 A solidariedade

confissão, a Conferencia Episcopal espanhola abrangia a interrogação: “pagaste os impostos que devias?”. A questão está em saber, em certas situações, quais os impostos devidos. 50

Marco Aurelho Greco e Marciano Seabra de Godoi (coord.), Solidariedade social e tributação,

Dialética, 2005 51

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001

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Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, volume 17, entrada “Solidariedade” 22 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 está historicamente ligada à cidadania nacional53, a um sentir comum que resulta da convivência no mesmo território, e mesmo hoje, com todas as transformações na delimitação territorial na nação, a verdade é que me parece continuar a existir uma profunda ligação entre a consciência e a responsabilidade solidárias, por um lado, e a ocupação de um espaço determinado, por outro, seja esse qual for, hoje independente da nacionalidade, mas profundamente ligado à cidadania. A existência de solidariedade fiscal apela à equidade fiscal, quer na participação daquilo com que se contribui para a comunidade, quer naquilo que se recebe da comunidade. Como consequência da solidariedade fiscal surge, inevitavelmente, a ideia de responsabilidade de cada contribuinte pelo bem comum, estando, por sua vez, esta ideia de responsabilidade ligada àquilo que CASALTA NABAIS54 apelidou de dever fundamental de pagar impostos. Não há, como defende o autor, um direito fundamental a não pagar impostos55, o que há é o dever de cada um contribuir, na medida da sua capacidade contributiva, para as despesas realizadas pelo Estado, despesas essas tendentes a garantir e a desenvolver a liberdade e a existência de uma sociedade civilizada. Será aquilo que mais se aproxima da concretização da justiça relativa.56 Cabe, pois, ao contribuinte, relembrar toda esta contextualização, para que também daí possa retirar a motivação para cumprir com as expectativas que sobre si recaem quanto à forma como age e se relaciona com a fiscalidade. 3. Perspectiva do relacionamento do Contribuinte com o Contribuinte Com o objectivo de dotar de mais ética o imposto e de actuar conforme a ética no imposto, nos dias que correm parece ser fundamental a relação do contribuinte com o contribuinte. Será uma forma de “evangelização da ética fiscal” entre sujeitos em paridade. O dever de solidariedade pode ser enfatizado se todos contribuirmos com o 53

Cfr. Mauro Ceruti, Fondamenti epistemologici della solidarietà, in Il Dovere di Solidarietà, organizado

por Barbara Pezzini e Claudio Sacchetto, Giuffrè Editore, 2005, pág. 3 e ss 54

José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, 1998

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Como aliás foi já tratado, o direito a não pagar impostos só existe através do direito de resistência

fiscal, direito esse que, como apontado, está intimamente ligado, designadamente, à presença de imposto inconstitucional ou de imposto ilegalmente liquidado ou cobrado. 56

José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, 1998, págs. 186 e 187 23 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 devido. Na senda de que cada um dos contribuintes contribua com aquilo que legalmente lhe é exigido, nas relações entre si, os contribuintes podem entreajudar-se. Há uma espécie de igualização entre os contribuintes. Actualmente há espaço para o contribuinte ser um dos apoios da administração fiscal. É, aliás, prática fiscal nacional e internacional recorrer ao contribuinte como agente auxiliador do Estado. Se, no plano actual, já as instituições financeiras e outras entidades podem ser encaradas como intermediários financeiros do Estado, cabendo-lhes proceder à retenção na fonte nos casos exigidos por lei, não resulta estranho que, perante uma nova economia global, onde múltiplos são os novos possíveis parceiros do fisco57, a administração fiscal recorra a estes de forma a obter informações essenciais e a conseguir cobrar os tributos. Todavia, numa atitude menos complexa do que a construção de uma rede de parceiros legalmente constituídos como tal, o simples gesto de pedir comprovativos de pagamento nas aquisições de bens e serviços é, já por si, reflexo de uma actuação ética fiscal. Se todos pagarem aquilo que é devido, o Estado não terá tanta necessidade de ter taxas de imposto tão elevadas, nem terá tanta necessidade de cobrar quantias tão elevadas. Precisamente porque nem todos os contribuintes pagam o que devem é que, para fazer face às necessidade financeiras públicas, o poder tributário se vê obrigado a manter um nível de esforço fiscal elevado. Daí já se poder pensar que o nível dos impostos é fixado tendo em consideração a fuga ao imposto. Por isso, caberá ao contribuinte estar atento e zelar pelo interesse comum, interesse esse que passa, naturalmente, pela utilização dos mecanismos à sua disposição para incentivar/forçar o pagamento dos impostos devidos pelos outros contribuintes. Não quero com isto dizer que se defenda a criação de uma espécie de “contribuinte-polícia” que se sente com legitimidade para fiscalizar o outro e exigir do outro o cumprimento dos seus deveres fiscais ou, por maioria de razão, de uma sociedade de delatores. O que pretendo defender passa por uma maior consciencialização dos direitos de cada um e pelo impacto que o exercício desses direitos pode ter de positivo na acção tributária estatal e no bem comum. Se, naquilo que a lei nos permite, actuarmos, a liberdade do outro fica salvaguardada, mas o nosso 57

Os novos agentes tecnológicos, em face da nova economia tecnológica, são um exemplo do que podem

vir a ser um dos novos auxiliares do Estado, pois esses agentes tecnológicos podem ter acesso a muita da informação necessária à administração fiscal para saber qual a base de tributação e para efectivar a cobrança do imposto 24 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 dever ético igualmente fica cumprido, sendo certo que com tal actuação temos a certeza de estar a colaborar para um sistema fiscal mais ético, mais justo e mais eficiente. 4. Perspectiva do relacionamento do Estado com outro(s) Estado(s), do Estado com os Entes Infra-estaduais e do Estado com os Entes Supra-Estaduais Nos dias de hoje o Estado nacional não pode apenas contar consigo. As teias de interdependências e níveis de poder são múltiplos. Por isso, quando se apela à ética no imposto, sendo que a fiscalidade acompanha todos estes níveis de interdependências e de poder, é essencial lançar também um olhar a estas diversas realidades. Aliás, o próprio conceito de solidariedade fiscal distingue semelhantes patamares. Se acima, a propósito da perspectiva Contribuinte – Estado, recorri ao conceito de solidariedade para justificar o imposto e motivar o contribuinte a cumprir com as expectativas geradas em torno dele na fiscalidade, também aqui, a propósito da perspectiva entre os Estados e entre o Estado e outros níveis de poder, recorrer ao conceito de solidariedade faz todo o sentido, pois a solidariedade fiscal, além da solidariedade interna entre os Contribuintes e o Estado, tem igualmente outras ramificações, designadamente, a solidariedade interna entre os vários níveis de poder do Estado, a solidariedade internacional e a solidariedade comunitária.

4.1. Perspectiva do Estado e a sua relação com os vários níveis internos de poder Na organização do território e no relacionamento entre os diversos níveis de poder interno também o imposto e a ética fiscal devem ter um importante papel. É aquilo a que podemos apelidar de solidariedade interna vertical. No caso português a relação do Estado com as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores – o poder regional –, bem como com as autarquias – o poder local –, devem ser pautadas pela ideia de ética quer na participação desses níveis de poder nas receitas do Estado, quer na permissão para a diferenciação de tratamento entre si, de modo a operar-se uma adequada redistribuição para que a igualização possa ser atingida. Obviamente que tudo aquilo que foi afirmado a propósito da relação entre o Estado e o Contribuinte deve ser aplicado às instancias de 25 RITA CALÇADA PIRES

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Hoje também apelidadas de práticas fiscais prejudiciais 26 RITA CALÇADA PIRES

PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 essência, ao procurar assegurar uma maior atracção fiscal, asfixiem de forma agressiva as outras jurisdições fiscais. Aquilo que é contestado nas medidas símbolo de concorrência fiscal prejudicial passa pela tendencial perda de receitas e pela perda de investimento. Mas aquilo que a concorrência fiscal prejudicial implica parece-me ser igualmente grave: a criação de espaços de guerrilha internacional entre as jurisdições fiscais. Tal impacto necessariamente contribui tanto para a perda do consenso internacional, tão indispensável, quanto para o crescente afastamento entre os Estados, criando-se blocos entrincheirados de apoiantes e opositores, quase como num esquema semelhante ao existente no período da guerra-fria, com todas as más implicações daí decorrentes, incluindo o chamado race to the bottom.59 Através da troca de informações conseguem os Estados obter conhecimento dos dados dos contribuintes que, de outro modo, em face da sua deslocação para outras jurisdições fiscais, não conseguiriam conhecer. É, portanto, um reflexo da ética na relação entre as administrações fiscais o permanente contacto entre si, trocando informações, seja automaticamente, seja espontaneamente ou ainda seja dependente de um pedido, mas sempre de forma recíproca, e não apenas de jure, revelando ser uma relação de dependência biunívoca. A ética no imposto, do ponto de vista internacional, no relacionamento entre diferentes jurisdições fiscais, tem também um outro importante elemento. O auxílio, pela via fiscal, ao investimento privado nos países em vias de desenvolvimento revela-se uma das facetas do princípio da solidariedade, especificamente da solidariedade internacional. A responsabilidade global, de uns pelos outros e por cada um de si próprio, é um reflexo inultrapassável da ética no comando da organização internacional. As economias desenvolvidas apenas têm a ganhar caso as economias em vias de desenvolvimento evoluam, cresçam e se desenvolvam mediante o seu auxílio. Não só 59

Todavia, não deve ser confundida a concorrência fiscal prejudicial com a concessão de benefícios aos

contribuintes por parte dos países em vias de desenvolvimento, pois esta concessão visa a atracção de investimento e não a erosão das bases de tributação dos mais desenvolvidos. Obviamente que esta realidade não deve ser encarada como justificativa para se camuflar a prática de medidas que distorcem a concorrência internacional por parte das economias menos desenvolvidas. A análise a ser efectuada deve partir de parâmetros objectivos e neutrais. 27 RITA CALÇADA PIRES

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Refiro-me as Organizações Não Governamentais de âmbito internacional. 28 RITA CALÇADA PIRES

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PUBLICADO COMO: Rita Calçada Pires, Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal (Tax Ethics). Coordination: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58 imposto dever ser mais considerada no plano comunitário, procurando neutralizar-se a luta dos interesses, com solução quase sempre a favor dos Estados Membros com mais poder decisório e financeiro. Talvez a regra da unanimidade fiscal, tão acusada de travar o aprofundamento dos sistemas fiscais comunitários, não seja assim tão má, sendo antes o último reduto para que a ética fiscal possa realmente ser considerada. Rita Calçada Pires Lisboa, Maio de 2010 Sugestão de Citação: PIRES, Rita Calçada (2011). Ética e imposto. Reflexo de uma preocupação com a valorização da Sociologia e da Psicologia Fiscais. Ética Fiscal. Coordenação: Manuel Pires. Colecção Ensaios. Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2011, páginas 33-58

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