Tecnologia lítica do sítio Santa Clara, Quaraí, Rio Grande do Sul

August 17, 2017 | Autor: Bruno Gato | Categoria: Tecnología Lítica, Rio Grande do Sul, Préhistoire, Chaîne Opératoire, Industrias Liticas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS HISTÓRIA LICENCIATURA PLENA E BACHARELADO

TECNOLOGIA LÍTICA DO SÍTIO SANTA CLARA, QUARAÍ, RIO GRANDE DO SUL

MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO

Bruno Gato da Silva

Santa Maria, RS, Brasil 2014

TECNOLOGIA LÍTICA DO SÍTIO SANTA CLARA, QUARAÍ, RIO GRANDE DO SUL

Bruno Gato da Silva

Monografia apresentada ao curso de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para a obtenção do Grau de Graduado em História: Licenciatura Plena e Bacharelado.

Orientador: Professor Julio Ricardo Quevedo dos Santos

Santa Maria, RS, Brasil 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS HISTÓRIA LICENCIATURA PLENA E BACHARELADO

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Monografia de Graduação

TECNOLOGIA LÍTICA DO SÍTIO SANTA CLARA, QUARAÍ, RIO GRANDE DO SUL

Elaborada por Bruno Gato da Silva

Como Requisito Parcial para a obtenção do grau de Graduado em Historia Licenciatura Plena e Bacharelado

Comissão examinadora: Julio Ricardo Quevedo dos Santos, Dr. (UFSM) (presidente/orientador)

André Luis Ramos Soares, Dr. (UFSM)

Flamarion Freire da Fontoura Gomes (UFSM)

Santa Maria, 14 de Agosto de 2014.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho monográfico ao recentemente falecido orientador e amigo Professor Saul Eduardo Seiguer Milder como uma forma de agradecimento pela confiança e pelos ensinamentos que me foram dirigidos. E por ter sido um marco referencial tanto na formação de meu perfil acadêmico quanto pessoal. Fica com Deus meu amigo! Sei que a estas horas deve estar pelos pagos de Quaraí descobrindo os segredos e mistérios do Jarau.

"Quando o violão na tarde, juntando saudade vai Lembro da velha querência, lindeira do Uruguai. Vejo o rio que vem do Salso, quebrando lá no Perau Ao longe o taita dos cerros, guapo e lendário Jarau."

"Quaraí, zona do Passo, da usina e lá da ramada. Briga de adaga e milonga, na velha 4º Brigada. Quaraí do Arranca Toco, Povo Novo e Saladeiro. Quaraí, canto de terra, do piazito carreteiro."

(Luiz Menezes, Luiz Menezes e Suas Cantigas, 1977)

AGRADECIMENTOS

Ao longo desta jornada pelos caminhos tortuosos do passado humano, muitas foram as pessoas que contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, portanto seria inviável fazer referências a todos, que mesmo indiretamente, influenciaram no conteúdo presente nas linhas desta monografia. Sendo assim, desde já, deixo meus mais sinceros agradecimentos a todos aqueles que ajudaram e viabilizaram a condução deste trabalho. Primeiramente agradeço de coração aos meus pais, Graciliano Amaro da Silva Filho e Carmem Rejane Gato da Silva, por todo o amor e carinho que me deram, e por serem os maiores incentivadores de meu gosto pelo mundo dos livros. Espero que este trabalho seja um retorno e prova do compromisso que possuo com vocês, que ao longo de minha vida privaram-se de inúmeras coisas para garantir a mim uma educação de qualidade acima de tudo. Agradeço também a Jaqueline Ferreira Pes por todo o apoio, motivação e por sempre me ajudar a levantar nos momentos difíceis. Mais que uma namorada, uma companheira e confidente, que torna meus dias mais felizes e vivos. Não poderia esquecer de agradecer (mesmo que postumamente) ao meu eterno orientador e amigo Saul Eduardo Seiguer Milder, por ter sido um marco referencial em minha vida e por ter me conduzido por entre as veredas do mundo acadêmico. Seu legado não acaba aqui, ficará para a posteridade na ponta de nossas canetas. Reservo também um agradecimento especial ao meu atual orientador, professor Julio Ricardo Quevedo dos Santos, por ter me acolhido enquanto orientando nesse momento e por ter contribuído diretamente para a concretização deste trabalho. Agradeço de coração a todos os colegas do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (LEPA), tanto alunos quanto técnicos, por formarem esta incrível equipe que participo, e por fazer com que todos os trabalhos sejam sempre frutos de um esforço coletivo. Dentre estes faço um agradecimento especial ao meu grande amigo Jaime Paim, companheiro de sábias conversas e viagens pelo "Rio Grande a fora", as quais sempre "regadas" a litros de um bom chimarrão e companheirismo. Agradeço também ao colega Lucio Lemes por ter desde cedo me mostrado o inspirador universo da tecnologia lítica e me fornecido bibliografia de qualidade assim como profundas discussões teóricas.

Outra pessoa decisiva em minha formação enquanto estudante de lítico e que agradeço muito é o amigo Anderson Marques Garcia, com quem realizei meus primeiros lascamento experimentais e que foi responsável por me "viciar" nesta nobre prática. Não poderia deixar de agradecer a duas grandes pessoas que conheci mais recentemente, a Professora Maria Élida Farías Gluchy e o professor Eric Boëda, que foram responsáveis por uma verdadeira revolução científica em minha forma de conceber as indústrias líticas e os esquemas operatórios. Agradeço ao proprietário da Fazenda Santa Clara, Ivo Wagner, por sua disponibilidade, interesse e contribuição, tanto para o andamento das pesquisas arqueológicas e consequentemente para o progresso científico das pesquisas acerca da pré-história Riograndense. Por fim, mas não menos importante ficam aqui meus agradecimentos a dois grandes amigos pessoais. O meu quase irmão Pedro Simom Ramos, amigo desde o ensino fundamental e sem dúvida o companheiro das maiores "gauchadas" de todos os tempos desde bandas de "corcelão 75", pescarias, mateadas e "carpetas" de truco. E agradeço também ao meu inseparável companheiro de faculdade, Assis Rodrigues Nunes uma verdadeira lenda viva do "prédio 74".

(...) tout l'histoire des Hommes repose sur la critique de leurs vestiges (LEROI-GOURHAN, 1949, p. 436).

RESUMO Monografia de Conclusão de Graduação Curso de História Licenciatura Plena e Bacharelado Universidade Federal de Santa Maria

TECNOLOGIA LÍTICA DO SÍTIO SANTA CLARA, QUARAÍ, RIO GRANDE DO SUL AUTOR: BRUNO GATO DA SILVA ORIENTADOR: JULIO RICARDO QUEVEDO DOS SANTOS. LOCAL E DATA DA DEFESA: SANTA MARIA, 14 DE AGOSTO DE 2014.

Este trabalho apresenta os principais resultados obtidos a partir da análise tecnológica do material lítico proveniente do sítio Arqueológico Santa Clara. Situado no sudoeste do Estado Rio Grande do Sul no município de Quaraí, próximo da fronteira do Brasil com o noroeste do Uruguai. O sítio apresenta um horizonte ocupacional datado pelo método de LOE entre 2.135 ± 330 e 12.870 ± 2.050 A.P, o que situa o mesmo na transição do Pleistoceno-Holoceno. No trabalho é realizada uma revisão das principais indústrias líticas existentes na região entre fronteiras, assim como uma discussão crítica sobre as mesmas, visando uma contextualização do sítio Santa Clara. Para a análise do material lítico foi utilizada a metodologia tecnológica da escola francesa, buscando romper com os estudos tipológicos tradicionais que predominaram até então na região de estudo. Proporcionando uma melhor compreensão dos processos de lascamento ocorridos no sítio, como por exemplo, a configuração dos núcleos e suas respectivas formas de exploração relacionadas como os esquemas de débitage "C" e "D" e inclusive a identificação do método Kombewa, inédito para a região até então.

Palavras-chave: Sítio Arqueológico Santa Clara. Sudoeste do Rio Grande do Sul. Tecnologia lítica. Transição Pleistoceno-Holoceno. Quarai, Esquemas de débitage.

ABSTRACT Monografia de Conclusão de Graduação Curso de História Licenciatura Plena e Bacharelado Universidade Federal de Santa Maria

LITHIC TECHNOLOGY OF SANTA CLARA ARCHAEOLOGICAL SITE, QUARAÍ, RIO GRANDE DO SUL

AUTHOR: BRUNO GATO DA SILVA PROFESSOR MENTOR: JULIO RICARDO QUEVEDO DOS SANTOS. DATE AND PLACE OF DEFENSE: SANTA MARIA, AUGUST 14, 2014.

This work shows the main results obtained by the technological analysis of lithic material from the Archaeological Site Santa Clara. Situated in the southwest of the State of Rio Grande do Sul, in the city of Quaraí, near the border of Brazil with the northwest of Uruguay. The site presents an occupational horizon dated by the method of LOE between 2.135 ± 330 e 12.870 ± 2.050 A.P., placing it in the Pleistocene-Holocene transition. At work is conducts a review of the main lithic industries available in the region between borders, well as a critical discussion of the same, aiming to contextualize the site Santa Clara. For the analysis of lithic material was employed the French technological methodology aim to break with traditional typological studies that prevailed until now in the study area. Providing a better understanding of the processes of knapping occurred at the site, for example, the configuration of cores and their forms of exploitation related with the schemes of débitage "C" and "D", and inclusive the identification of the Kombewa method, unheard of for the area until now.

Keywords: Archaeological Site Santa Clara. Southwest of Rio Grande do Sul. Lithic technology. Pleistocene-Holocene transition. Quaraí. Schemes of débitage.

LISTA DE ANEXOS Anexo A – Carta topográfica com a localização dos sítios Santa Clara, Areal e Severo em Quarai. Elaborada partir da junção das folhas SH.21-Z-A-II-3 (Quaraí), SH.21-Z-A-II-4 (Cerro das Cacimbas) e SH.21-Z-A-V-1/2 (Barra do Sarandí e Passo do Ricardinho) Escala 1:50.000 (Ministério do Exército – Diretoria de Serviço Geográfico, 1975).........................150 Anexo B – Gravuras Rupestres Sítio Areal (RIBEIRO & FÉRIS, 1984)...............................151 Anexo C - Gravuras Rupestres Sítio Areal (RIBEIRO & FÉRIS, 1984)...............................152 Anexo D - Carta topográfica com a localização do Cerro do Jarau, e do acampamento de Balduíno Rambo em Quarai. Elaborada partir da junção das folhas SH.21-Z-A-II-1 (Baltazar Brum) e SH.21-Z-A-II-2 (Severino Ribeiro), Escala 1:50.000 (Ministério do Exército – Diretoria de Serviço Geográfico, 1975)..................................................................................153

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................12 CAPÍTULO 1 - AS INDÚSTRIAS LÍTICAS NO SUDOESTE DO RIO GRANDE DO SUL E NO NOROESTE DO URUGUAI.........................................18 1.2 Componentes paleoindígenas na região entre fronteiras..............................................24 1.2.1 O Paleoíndio no Rio Grande do Sul.................................................................................25 1.2.1.1 Fase Ibicuí.....................................................................................................................27 1.2.1.2 A Fase Uruguai.............................................................................................................29 1.2.2 O paleoíndio no Uruguai..................................................................................................30 1.3 A indústria Catalanense...................................................................................................32 1.4 A indústria Cuareimense..................................................................................................38 1.5 A Tradição Umbu e os Caçadores-coletores "Especializados"....................................43 1.6 Os complexos arqueológicos no Sudoeste do Rio Grande do Sul.................................45 1.6.1 O Complexo Itaqui...........................................................................................................45 1.6.2 O Complexo Areal...........................................................................................................49 1.7 Os estudos pioneiros na campanha sudoeste..................................................................55 1.8 Discussão............................................................................................................................60

CAPÍTULO 2 - NORTEADORES TEÓRICO-METODOLÓGICOS...................68 2.1 Porque um estudo Tecnológico? .....................................................................................68 2.1.1 A perspectiva tecnológica................................................................................................69 2.2 André Leroi-Gourhan e seu modo original de pensar...................................................71 2.3 O comportamento técnico................................................................................................73 2.4 Compreender a ação técnica: o estudo das cadeias operatórias...................................75 2.5 Técnica e Método..............................................................................................................78 2.6 O mito de Procrustes e o problema da tipologia............................................................79 2.7 Os esquemas de débitage...................................................................................................80 2.7.1 Como pensamos os núcleos.............................................................................................81 2.7.2 O processo de concretização e o estado de evolução estrutural......................................83 2.7.3 Os sistemas de débitage...................................................................................................83 2.8 Como vemos os instrumentos...........................................................................................85

CAPÍTULO 3 - O SÍTIO ARQUEOLÓGICO SANTA CLARA............................87 3.1 Localização e aspectos fisiográficos.................................................................................87 3.2 As campanhas de campo...................................................................................................90 3.2.1 Estratigrafia e cronologia do sítio Santa Clara.................................................................96 3.3 Tecnologia lítica do sítio Santa Clara............................................................................102 3.3.1 As primeiras etapas da cadeia operatória.......................................................................102 3.3.2 A débitage no sítio Santa Clara......................................................................................106 3.3.2.1 Os núcleos...................................................................................................................107 3.3.2.2 O método Kombewa....................................................................................................110 3.3.2.3 Os núcleos poliédricos................................................................................................114 3.3.3 Os instrumentos..............................................................................................................116 3.3.4 As lascas........................................................................................................................123

CONCLUSÃO....................................................................................................................130 REFERÊNCIAS.................................................................................................................137 ANEXOS..............................................................................................................................149

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INTRODUÇÃO

Antes de adentrarmos na temática proposta neste trabalho, faz-se necessário realizar algumas considerações acerca dos testemunhos materiais e do tempo, pois, fundamentalmente os objetos que estudamos, independentemente de suas matérias primas e contextos cronológicos não pertencem ao passado, mas sim ao presente, portanto: Los objetos no pueden contarnos nada acerca del pasado por que el pasado no existe. No podemos tocar el pasado, verlo, o sentirlo; ha muerto e desaparecido. Nuestros amados objetos pertencen en realidad al presente. Existen em ela hora y aqui. [...] Hasta que inventemos una máquina del tiempo, el pasado existe unicamente em las cosas que decimos sobre el mismo (JOHNSON, 2000, p.29-30).

Isso não quer dizer que não possamos interpretar os objetos, ou mesmo compreender o modo como foram produzidos ou utilizados, porém estas informações não são contadas pelos objetos, mas sim pelos pesquisadores que os analisam, e são influenciadas por seus referencias teóricos aqui e agora, fazendo com que suas respectivas interpretações não estejam isentas de parcialidade e traços de personalidade. A pesquisa tem como tema principal a análise e interpretação do material lítico lascado proveniente das cinco campanhas de campo realizadas entre 2009 e 2013 no Sítio Arqueológico Santa Clara. O sítio está localizado a aproximadamente 30 km sudeste da cidade de Quaraí, próximo a fronteira com o Uruguai, estando situado no interflúvio entre os arroios Areal e Cati e o Rio Quaraí. A coleção possui um total de 989 peças líticas, que estão relacionadas a grupos de caçadores-coletores que ocuparam a área que hoje abrange as regiões que conhecemos como sudoeste do Rio Grande do Sul e Noroeste do Uruguai, pelo menos

desde o final do

Pleistoceno. Cada matéria prima demanda um arcabouço técnico bastante particular para que possa ser explorada, diretamente relacionado com suas propriedades físicas e estruturais. As rochas não fogem a regra e podem ser classificas enquanto "sólidos estáveis" ao lado dos ossos, do marfim e das conchas. Os "sólidos estáveis" são aqueles materiais que devido a suas qualidades não podem ser modelados nem deformados, somente lhes é possível dar forma fracionando a matéria partir de um bloco inicial cujas propriedades físicas não variam antes durante e nem depois de seu tratamento (LEROI-GOURHAN, 1984a).

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A utilização de rochas como matéria-prima para o lascamento exige um conhecimento aprofundado de seus caracteres intrínsecos, demandando do lascador habilidade, experiência, reconhecimento visual, tátil e inclusive auditivo, estando tudo isso imerso numa ritmicidade própria da atividade técnica e as concepções mentais de determinada coletividade no tempo e no espaço. O ato de lascar1 é antes de tudo um processo físico de propagação de ondas em meios sólidos, que resultam em uma determinada gama de estigmas nos objetos, que possibilitam aos pré-historiadores, reproduzir (por meio da experimentação) e interpretar as características específicas de cada conjunto lítico. Os artefatos lascados são produzidos a partir de rochas de fratura conchoidal que possuam propriedades quase isotrópicas, possibilitando o exame da curvatura das ondulações, dos traços de propagação de onda, a sobreposição das retiradas e a ordem dos gestos técnicos (DAUVOIS, 1976, p. 165). Estes processos físicos são oriundos dos seguintes princípios:

Soumettre un bloc de matièr premièr à un choc ou à une pression pour en detacher un mourceau, c'est solliciter le bloc par un effort déterminant des contraintes (les deformations élastiques dues à une même contrainte sont cependant variables avec la dírection des axes cristallins dans le cas des roches comme le Quartzite). Les liaisons assurant la cohésion de la matière telle les forces de Van der Waals, sont soumises à une tension, si celle-ci est telle qu'elle l'emport sur la force d'attraccion des liaisons, la distance intermoléculair grandit et liaisont est rompue. La rupture de la liaisont entraîne l'augmentation de l'énergie des molécules libérées sous forme d'énergie superficielle de la nouvelle surface libre créée, ou énergie cinétique sous forme d'ondes élastiques lancées dans le solide e responsable de certaines interférences avec le phénomène de fracture généralisée qui pourrait accompagner cette rupture individuelle de liaison. La multiplication de la rupture d'équilibre des liaisons entraîne la fracture de la matière première suivant une ligne ou front de fracture réunissant tous points où la rupture des molécules s'est produit simultanément; cette ligne de contemporanéité de points represénte ainsi un moment précis de la propagation de la fracture (DAUVOIS, 1976, p. 165, 166).

A partir destes princípios, os lascadores utilizaram as matérias primas que estivessem a sua disposição, lhes testando e selecionando segundo sua aptidão para o lascamento, sua abundância e sua forma (INIZAN et al. 1995, p. 21). Entretanto, muitas vezes a estrutura das rochas pode limitar o emprego de determinadas técnicas ou então um mesmo bloco possuir qualidades internas diferentes (INIZAN et al. 1995, p. 23). Esta relação entre a matéria prima e a técnica empregada para sua transformação não se limita apenas as rochas, para André Leroi-Gourhan, o tipo de matéria acaba impondo uma série de limitações às técnicas, não

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Conforme a definição de Inizan et al.: "Le terme "taille" est le plus général pour désigner toute action de fractionnement intentionnel de la matière première. Le façonnage, le débitage et la retouche qui, tous trois, procèdent de la taille, ont un sens plus restrictif" (1995, p. 30).

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sendo à toa que geralmente materiais diferentes, mas que possuam as mesmas propriedades físicas, tendem a possuir técnicas de manufatura semelhantes (1988, p. 147). E por isso nos propomos a um estudo tecnológico do material lítico, onde o que está em jogo não é um mero descritivíssimo de artefatos e técnicas, mas antes de tudo é uma análise estrutural dos testemunhos materiais visando atingir o que de conceitual nos ainda pode ser dito sobre os mesmos, ou seja, quais são conceitos norteadores da ação técnica que encontram-se dissimulados sob o manto de variabilidades dos componentes de uma indústria lítica. Neste trabalho optaremos por utilizar o termo "indústria" para nos referirmos de forma geral aos conjuntos líticos de determinada área geográfica, em detrimento de termos como "culturas" ou "tradições". Segundo Schobinger, não é licito supor que um conjunto de objetos materiais possa ser tido como sinônimo de cultura, portanto a utilização da palavra indústria torna-se mais coerente, pois na maioria dos casos, lidamos apenas com elementos ergológicos (1969, p. 57). Para Marcel Mauss as indústrias eram uma forma de classificação dos diferentes conjuntos técnicos de uma sociedade, e ao mesmo tempo, uma forma de classificar estas em relação as suas indústrias, ou seja, por seu grau de materialidade (MAUSS, 2004 p.436). No entanto isto não significa que estes objetos não guardem traços característicos do conhecimento dos grupos que os produziram, mas sim que não podemos reduzir o todo de uma cultura a seus objetos materiais. Os vestígios materiais, para Gallay, representam uma fração da cultura material de uma coletividade, contudo alguns de seus aspectos são praticamente indestrutíveis dependendo das condições de conservação de cada região e guardam aquilo que pode ser chamado de "memória material dos povos" (GALLAY, 2002, p.36). Este trabalho justifica-se pela necessidade e urgência de estudos tecnológicos, propriamente ditos para as indústrias líticas tanto do Sudoeste do Estado quanto para o Rio Grande do Sul como um todo, visto que a maior parte das interpretações seguiram (e ainda seguem) pressupostos tipológicos. Atualmente esta metodologia, herdada do históricoculturalismo e largamente difundida pelo PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas) 2 em nosso país, não é capaz de ir além dos modelos criados nas décadas de 2

O Pronapa foi um projeto de levantamento arqueológico em nível nacional, promovido pelo Smithsonian Institution, pelo CNPq e pelo Iphan. O programa durou entre 1965 e 1970, dirigido por Betty Meggers e Clifford Evans e nele participaram arqueólogos de quase todos os estados brasileiros, realizando um levantamento de sítios nas diferentes regiões brasileiras assim como o estabelecimento de Tradições, fases e subfases (DIAS,1995; BARRETO, 1999/2000).

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60 e 70 do século passado para a pré-história brasileira, não dando mais conta da complexidade latente das indústrias líticas quer em um nível regional ou nacional. A pesquisa contribui também para o enriquecimento referente ao passado pré-colonial no sul do Brasil, pouco estudado em comparação ao intervalo de tempo que compreende o período pós-colonial. O que por si só reflete, mesmo que de uma forma indireta, a invisibilização da história e cultura das populações nativas frente àquelas de origem europeia. Desta forma o estudo dos testemunhos materiais permite trazer à tona elementos que foram soterrados pelo tempo, mas que guardam em si as informações acerca da totalidade da história da ocupação humana na região. Mais que um estudo de tecnologia lítica este trabalho acaba por assumir o papel de um estandarte frente à desvalorização das pesquisas de arqueologia pré-colonial, triste realidade que pode ser facilmente percebida nos eventos arqueológicos realizados nos últimos anos, onde dificilmente são encontradas salas temáticas exclusivamente voltadas para estudos como os de material lítico ou cerâmico, e quando estas existem contam com um número bastante reduzido de participantes. O sítio Santa Clara destaca-se por ser um dos poucos sítios arqueológico estratificados e datados na região, situado em um depósito eólico não erodido em um topo de interflúvio, estando afastado dos terraços fluviais e planícies de inundação. As datações obtidas pelo método de LOE (Luminescência Opticamente Estimulada) para o sítio apresentam um horizonte ocupacional cronologicamente situado entre 12.870 ± 2.050 e 2.135 ± 330anos antes do presente. Desde já é importante frisar que mesmo que o sítio apresente uma datação situada no final do Pleistoceno, como será visto nos próximos capítulos, a maior parte da ocupação do local é Holocênica. Tradicionalmente os testemunhos líticos da região eram relacionados a grupos "précerâmicos" de caçadores-coletores ditos "não especializados" (pré-pontas de projétil) expressos sob a forma das indústrias líticas conhecidas como Catalanense e Cuareimense ou então aos chamados caçadores-coletores "especializados" detentores de pontas de projéteis líticas conhecidos como Tradição Umbu no Brasil. Os primeiros pesquisadores que se debruçaram sobre estas indústrias seguiam pressupostos do histórico-culturalismo, o que fez com que suas interpretações estivessem fortemente amarradas a pressupostos evolucionistas e difusionistas. Atualmente existe uma tendência processualista em negar a existência de indústrias líticas na região e considerá-la enquanto uma grande fonte de matéria prima utilizada por

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grupos caçadores coletores da tríplice fronteira desde o final do pleistoceno até o passado précolonial recente. O foco principal deste trabalho é tentar traçar um panorama tecnológico do sítio Santa Clara assim como uma contextualização do mesmo com o que foi dito acerca das indústrias líticas regionais, não tentando encaixá-lo nestas, mas problematizar as mesmas. Visando compreender quais eram os conceitos norteadores das escolhas existentes nas operações de lascamento, tais como: o quesito de escolha da matéria prima, sob que forma esta é trazida ao sítio, quais os métodos utilizados para explorá-la, qual relação entre os suportes produzidos e o modo de exploração dos diferentes núcleos. Visto que procuramos uma abordagem mais coerente, que dê conta da complexidade do sítio estudado, assim como uma alternativa as propostas histórico-culturais e processuais que predominaram até então, utilizaremos a metodologia, do que ficou conhecido no Brasil enquanto escola "Escola Francesa". Segundo Reis, esta denominação é uma particularidade da discursividade arqueológica brasileira, não havendo tal "escola" na França (2010, p.63). Essa abordagem escola, na verdade, utiliza-se dos conceitos de tecnologia cultural da etnologia francesa, aplicados aos contextos pré-históricos. Esta teve origem, sobretudo, com Marcel Mauss e seus estudos sobre as técnicas (principalmente as do corpo), e teve continuidade com seus discípulos, dentre os quais destacamos André Leroi-Gourhan, famoso etnólogo e préhistoriador, sendo considerado um verdadeiro renovador dos estudos de pré-história. Tanto Mauss (1948) quanto Leroi-Gourhan (1949) irão insistir que a tecnologia deveria ser um campo de estudo específico e indispensável das Ciências Humanas, para o primeiro esta deveria ser uma ciência das técnicas, já para o segundo uma disciplina. Ambos os autores alertavam para a necessidade de uma compreensão do fato técnico enquanto matriz do conhecimento do próprio homem, tanto enquanto ser zoológico como sociológico. Visto que em seus 2,5 milhões de anos hominização, a tecnologia esteve sempre presente, acompanhando initerruptamente toda história do homem e, portanto, a única fonte de conhecimento que permitiria acessar a totalidade da história humana seria a tecnologia, as demais desaparecem progressivamente nos primeiros 10.000 anos A.P. Nesta perspectiva, a tecnologia não é vista enquanto um meio de adaptação, mais sim enquanto um meio de emancipação, fugindo assim daquelas perspectivas evolucionistas de viés darwinista, que veem a cultura enquanto um sistema aberto, que funciona mediante estímulo-resposta. No primeiro capítulo foi feita uma revisão das principais publicações realizadas acerca das indústrias líticas tanto do sudoeste do Rio Grande do Sul como do Noroeste do Uruguai,

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caracterizando e problematizando a construção das mesmas para que seja possível compreender o contexto pré-colonial em que o sítio se insere. No segundo capítulo, iremos expor o referencial teórico adotado para a interpretação dos materiais arqueológicos, explicando a importância e necessidade dos estudos tecnológicos, bem como o contexto em que surgiram e as principais ferramentas metodológicas adotadas para a interpretação dos dados. O terceiro capítulo está subdividido em duas partes, uma primeira que apresenta o sítio Santa Clara, contemplando sua localização, os aspectos fisiográficos da região, as campanhas de campo, a estratigrafia e a cronologia do sítio; e uma segunda parte direcionada para os principais resultados obtidos com a análise do material lítico do sítio Santa clara.

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1 AS INDÚSTRIAS LÍTICAS NO SUDOESTE DO RIO GRANDE DO SUL E NO NOROESTE DO URUGUAI

Para que possamos compreender como se dá historicamente a construção das indústrias líticas na região que abrange o sudoeste do Rio Grande do Sul e o noroeste do Uruguai, é fundamental que antes tracemos um breve panorama das teorias que estavam em voga nas décadas de 60 e 70 e que tentavam dar conta do "paleolítico americano". De acordo com Eiroa (2006), os arqueólogos Willey e Philips estabeleceram um esquema composto por cinco períodos para a pré-história americana que até certo ponto continuaria vigente na atualidade, sendo eles: o período lítico (caçadores da época glacial), o arcaico (caçadores do pós-glacial), formativo (início da agricultura), clássico (civilizações urbanas) e o pós-clássico (impérios pré-hispânicos). Segundo Hilbert, no escopo de classificar as tradições líticas, Gordon Willey dispôs cronologicamente as tradições com instrumentos de lascas (flake tradition) como mais antigas que as tradições de bifaces (biface tradition), seguidas das tradições paleoindígenas com pontas de projétil acanaladas (fish-tail) (Imagem 1) (1994, p. 138). Estas seriam um produto típico do pleistoceno americano, sendo tão especializada que não poderia ser interpretada como fruto de desenvolvimento independente no norte e no sul do continente, existindo, portanto uma suposta relação entre as pontas Clóvis e Folsom e as variantes sul-americanas com pedúnculo em forma de rabo-de-peixe (HILBERT, 1991, p.14).

Imagem 1 - Pontas de projétil acanaladas Gruta Fell, níveis inferiores (EMPERAIRE et. al. 1963, p. 205).

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Alex Krieger que se dedicou ao estudo do período lítico subdividiu o mesmo em três fases: Estágio Pré-Pontas de Projétil (pre-projectil stage), Estágio Paleoíndio e o Estágio Protoarcaico. O primeiro seria o mais antigo e equivaleria fisionomicamente ao paleolítico inferior europeu, devido aparente "simplicidade" das peças e a utilização da percussão direta para o lascamento. O segundo estaria caracterizado pela presença de pontas de projéteis bifaciais e o último corresponderia ao aparecimento dos "implementos de moenda" (EIROA, 2006, 261). Nesta última forma de classificação, o estágio pré-prontas de projétil até 1962 não fazia menção a toda a América, somente aos territórios do oeste dos Estados Unidos, porém a partir de 1964 Krieger estendeu este esquema ao restante do continente, dando prioridade ao critério morfológico sobre o cronológico (EIROA, 2006, 261). Conforme J. Eiroa, o mais importante detrator de Krieger, Junius Bird, em 1965 negou a possibilidade de aplicação deste estágio pré-pontas para costa do Pacífico no Chile, pondo em dúvida a aplicabilidade deste modelo a América como um todo. Mais tarde entre 1966 e 1977, Willey propõe a utilização do termo "lítico inferior" para denominar uma etapa onde os instrumentos seriam raederas e choppers elaborados por caçadores coletores que seriam supostamente "pouco especializados" e "lítico" propriamente dito, para o período de ocorrência de pontas de projétil (2006, p.262). Sem dúvida é uma tarefa árdua tentar sintetizar os principais dados que vem sendo produzidos a pelo menos cinco décadas na região. Mas ao mesmo tempo é uma necessidade urgente realizar esta tarefa, principalmente sem deixar que as atuais fronteiras nacionais sobreponham-se aos dos dados arqueológicos, uma vez que: É obvio que os primeiros ocupantes da região não conheciam as fronteiras e limites como agora demarcados, mas os arqueólogos construíram uma fronteira, uma barreira que impede o livre entendimento dos dados proporcionados pelas pesquisas (MILDER, 1994, p. 98).

Tradicionalmente o território uruguaio foi dividido em duas porções com base em suas indústrias líticas, uma centro-meridional e outra setentrional (Imagem 2). O limite dessas áreas seria relativamente permeável, e passaria entre os Departamentos de Salto, Tacuarembó e Cerro Largo. Na primeira porção estariam concentrados os conjuntos líticos relacionados aos chamados "caçadores inferiores" ou "não especializados" detentores supostamente de uma "baixa tecnologia" representados pelas emblemáticas indústrias Catalanense e Cuareimense. Enquanto que na segunda concentrar-se-iam as evidências dos ditos "caçadores superiores" ou "especializados", com pontas de projétil (BÓRMIDA, 1964; TADDEI, 1987).

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Quanto a esta classificação, Hilbert (1991) afirma não existirem provas conclusivas que atestem a antiguidade das indústrias "pré-pontas" no Uruguai, pois todas as datações antigas obtidas pelo método radiocarbônico estão associadas às tradições de caçadores com pontas de projétil, o que poderia sugerir um desenvolvimento paralelo de ambas (1991, p.140).

Imagem 2 - Divisão tradicional das indústrias líticas de caçadores coletores para o Uruguai (TADDEI, 1987, p. 76).

Desde o final da década de 90, existe uma tendência inaugurada por Suarez (2003, 2010) em considerar que os sítios da região do arroio Catalán seriam na verdade sítios de aquisição de matéria prima, relacionados com sítios residenciais no médio rio Uruguai. O autor tem se destacado na revisão das indústrias líticas do noroeste do Uruguai, e uma de suas principais metas é romper com a visão micro, até então predominante, e realizar uma arqueologia de cunho regional, que leve em conta a territorialidade assim como as diferentes modalidades de utilização do espaço pelos caçadores-coletores na paisagem (SUÁREZ, 2010b). Suárez (2003, 2011, 2010b) será um dos primeiros pesquisadores a tentar romper drasticamente com os paradigmas vigentes até então, questionando inclusive a existência de indústrias como o Catalanense e Cuareimense, que segundo ele não passariam de unidades

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abstratas. Segundo o autor, existiria uma relação entre os conjuntos de sítios do médio rio Uruguai e do Quarai inferior com aqueles clássicos sítios das imediações do Arroio Catalán Chico. Estes últimos devido a sua abundância de rochas com boa aptidão para o lascamento, destacando-se o arenito silicificado e a ágata translúcida, tratar-se-iam na verdade do que ele chama de canteras-talleres, que poderiam integrar um núcleo de circulação de matéria prima em escala regional para contextos arqueológicos da Argentina e sul do Brasil (SUÁREZ, 2010b, p.48). Contudo essas canteras-talleres, não se limitariam as imediações do Arroio Catalán Chico, mas se estenderiam ao longo de uma faixa de aproximadamente 80 km de comprimento por 30 km de largura, desde a desembocadura do Arroio Catalán Grande até as nascentes do Rio Arapey Grande, sendo este perímetro denominado de Región Arqueológica Catalanes-Nacientes Arapey (RACNA) (SUÁREZ, 2010b, p.47). Quanto aos sítios localizados no Médio Uruguai e Quarai inferior, como o Pay Paso e o K87, o autor afirma que se tratariam na verdade de sítios residenciais ou logísticos, que apresentariam artefatos bifaciais manufaturados em ágata translúcida em estágios de “adelgaçamento secundário”, o que atestaria a alta mobilidade desses grupos, e reforçaria a hipótese dos sítios da chamada "RACNA", serem canteras-tallers, onde seriam encontrados bifaces em estágios inicias de produção, sendo estes bastante espessos, e apresentando acidentes de lascamento que indicariam seu abandono (SUÁREZ, 2010b, p.58). A partir destas informações Suárez acredita que isso atestaria um translado de matéria prima entre a "RACNA" e os sítios logísticos do Médio Uruguai e do Quaraí Inferior (Imagem 3), o que demandaria um deslocamento de entorno de 140 e 170 km (SUÁREZ, 2010b, p.60).

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Imagem 3 - Translado de matéria prima da "RACNA" ao médio Rio Uruguai (SUÁREZ, 2010b, p.60).

Particularmente, não estamos completamente de acordo com a proposta do autor em negar a existência das indústrias líticas. Mesmo estes modelos estando caducos, não podemos adotar uma postura de simplesmente passar por cima de quase cinco décadas de discussão sobre o tema. É preciso problematizar a construção destas indústrias e elencar quais pontos ainda são válidos e quais não são mais aplicáveis, ou seja, é preciso que façamos, se possível, uma reorganização dos dados. Além disso, o ato de negar a existência de indústrias, acaba por refutar a existência de particularidades coletivamente elaboradas e expressas na materialidade. Já o Rio Grande do Sul foi palco de intensas investigações arqueológicas entre os anos de 1965 e 1971 com o objetivo de estabelecer um perfil espaço-temporal dos testemunhos arqueológicos, bem como sua adaptação ao meio ambiente (SCHMITZ, 1982, p.110). Como resultado disso as indústrias líticas foram classificadas sob uma óptica bipolarizada baseada principalmente em aspectos tipológicos e geográficos como critérios distintivos de duas englobantes tradições, que ficariam conhecidas na literatura arqueológica como Umbu e Humaitá (SCHMITZ, 2006; KERN, 1981; RIBEIRO, 1990), o que a nosso ver contribuiu apenas para suprimir as variabilidades e particularidades sub-regionais. As tradições Umbu e Humaitá teriam em comum o fato de serem classificadas como pré-cerâmicas (KERN, 1981; PROUS, 2012) e associadas a grupos de caçadores coletores. Enquanto a Tradição Umbu se caracterizaria pela ocupação de áreas de campos abertos e teria como artefato mais característico as pontas de projétil pedunculadas, a Humaitá se

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concentraria nas áreas de floresta subtropical (Imagem 4) e sendo caracterizada pela presença de grandes artefatos bifaciais.

Imagem 4 - Dispersão das tradições Umbu e Humaitá (NOELLI, 2000, p.230 e 238).

Como podemos ver a construção destas tradições, guarda certo paralelismo com a das indústrias uruguaias ao utilizar como critério distintivo a presença ou ausência de pontas de projétil, principalmente no que diz respeito à tradição Umbu e os "caçadores superiores", consideradas por muitos, como Bórmida (1964) e Ribeiro (1990), indústrias de vinculação patagônicas. Enquanto a tradição Umbu possuiria um horizonte cronológico situado entre 11.500 e 300 A.P., a tradição Humaitá estaria situada entre 8.700 e 1.130 anos A.P. (HOELTZ, 2005, p. 10). Podemos ainda problematizar outro aspecto, que diria respeito ao reconhecimento de uma terceira tradição, a Paleoindígena de Miller (1987), subdividida em fase Ibicuí3 e Uruguai. Muitos autores, como Ribeiro (1990), Kern (1981), Schmitz (2006) e Noelli (2000) veem na Fase Uruguai a origem da Tradição Umbu, porém Milder (2000, p. 80) afirma que 3

A qual foi desconstruída por Milder (1994, 1995).

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ambas seriam aparentemente distintas no tocante a ambientes e tecnologia, e que os autores ao fazerem este tipo de correlação acabariam não fazendo revisões das mesmas. Acompanhando os discursos destes autores percebemos uma postura demasiadamente difusionista, pois utilizam como critério de inter-relação apenas a cronologia e a presença de pontas de projétil, porém para confirmar tal vinculação seria necessário a realização de um estudo tecnológico comparativo entre o material lítico dos sítios da Tradição Umbu e aqueles paleoindígenas, levando em conta a totalidade das coleções e não apenas fósseis guias. Outra questão que merece ser destacada é a ocorrência de sítios associados as indústrias líticas típicas do Uruguai no lado brasileiro da fronteira. Muitos autores como Rambo (1957), Schobinger (1969), Taddei & Fernández (1982) Ribeiro & Feris (1984), Ribeiro, Féris & Herberts (1994) e Milder (1994, 1994b, 2000, 2003), afirmam a existência de sítios do Catalanense nos municípios de Quaraí, Alegrete e Uruguaiana, o que demonstra uma realidade arqueológica mais complexa para a região, bem como os perigos de deixar as atuais fronteiras se sobreporem ao registro arqueológico. Infelizmente

tal

complexidade

permanece,

a

nível

nacional

relativamente

desconhecida. Isso pode ser percebido ao lermos as grandes sínteses que pretendem dar conta da pré-história brasileira, como Prous (1992; 2012) e Pallestrini & Morais (1982), ou mesmo em um nível mais regional, como Schmitz, (2006) e Noelli (2000), que não fazem sequer menção aos problemas aqui discutidos e que continuam, até certo ponto sem serem solucionados. Tendo em vista a discussão anterior será traçado um panorama das diversas indústrias, tradições, fases e complexos arqueológicos que foram propostos para a região em questão, visando contextualizá-la arqueologicamente e tecnologicamente, como base para as discussões dos capítulos seguintes.

1.2 Componentes paleoindígenas na região entre fronteiras

Dentre os principais autores que se debruçaram sobre temática paleoindígena, em âmbito regional, podemos destacar Eurico Miller (1987), Klaus Hilbert (1991, 1994), Saul Milder (1994, 1995, 2000) e Rafael Suárez (2003, 2010b, 2011).

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No Brasil o conceito de paleoíndio, foi empregado segundo concepções bastante distintas pelos pré-historiadores. Quanto a isso Schimitz (1980, p. 21) distingue três concepções bastante utilizadas, uma primeira relacionada à caça de fauna atualmente extinta, outra que leva em conta o tipo de ponta de projétil lítica utilizada, e uma terceira, de caráter mais genérico, que engloba aqueles sítios situados cronologicamente entre o final do Pleistoceno e início do Holoceno. Para Taddei (1985), a diferença destes sítios intitulados "paleoíndios" aos demais relacionados a caçadores coletores com pontas de projétil (ou superiores, como utilizado por Taddei) reside no fato das datas atingirem uma cronologia muito recuada. Ainda, sobre o conceito de paleoíndio, Ab' Sáber (1980, p. 34) afirma que, se levarmos em consideração que o pleistoceno americano terminaria entre 12.000 e 13.000 anos antes do presente, e que o termo paleoíndio, corresponde a um conjunto de culturas que viveram no Pleistoceno tardio e que praticavam a caça da megafauna, no Brasil, em stricto sensu não teríamos um paleoíndio, pois nenhum sítio, por mais arcaico que fosse, apresentaria uma nítida e inquestionável conexão entre os vestígios humanos e a megafauna. Portanto, a presença destes sítios mais antigos poderia atestar, na verdade, a presença de um paleoíndio "remanescente", ou mesmo "residual". O artefato mais característico dos sítios paleoindígenas seriam as pontas acanaladas com pedúnculos em forma de rabo-de-peixe4, sendo geralmente associadas à caçadores de grandes presas, principalmente da fauna já extinta (HILBERT, 1991, 1994).

1.2.1 O Paleoíndio no Rio Grande do Sul

O pioneiro na busca por sítios paleoindígenas no Rio Grande do Sul, mais precisamente na Fronteira Oeste, foi o arqueólogo Eurico T. Miller. Segundo Milder (1995), a descoberta do sítio RS-I-50, possibilitou, que em um período posterior ao término do PRONAPA, que Eurico Miller desenvolvesse um projeto voltado ao estudo de caçadorescoletores antigos. Este projeto ficou conhecido na literatura arqueológica como PROPA 5 4

Fish tail para o inglês e cola de pescado para o espanhol. Conforme Milder, o plano de pesquisa manuscrito, elaborado para a FAPERGS, era bem mais abrangente: "Programa de Pesquisas sobre o paleoindígena, Paleofauna e Paleoclima do Rio Grande do Sul, Brasil". O que apontava para um programa de caráter multidisciplinar, onde convergiriam várias ciências, sobretudo as da natureza (1995, p. 42). 5

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(Projeto paleoindígena), patrocinado pelo Smithsonian Institution (EUA), pela FAPERGS (Fundação de Amparo a Pesquisa do Rio Grande do Sul) e pelo MARSUL (Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul) (MILLER, 1987). O PROPA não surgiu apenas com o objetivo de estudar a possível associação de restos de fauna pleistocênica e materiais de origem antrópica, mas também visava uma reconstituição ambiental regional. O programa deveria durar de 1972 a 1977, mas estendeu-se ainda por mais um ano. Sua metodologia era de caráter oportunístico, partindo do pressuposto de que nas localidades com ocorrência de fósseis de animais extintos (como o Arroio Touro Passo, o rio Quaraí e a Sanga da Cruz) haveria maior possibilidade de serem encontrados sítios de caçadores-coletores do pleistoceno tardio (MILDER 1994, 1995). As pesquisas desenvolvidas por Miller, nos municípios de Uruguaiana, Quaraí, Alegrete, Itaqui e São Borja, resultaram no estabelecimento de uma tradição paleoindígena composta por duas fases, uma mais antiga denominada Ibicuí, que foi alvo de ferrenhas críticas por parte de Milder (1994, 1994b, 1995 e 2000), e uma mais recente intitulada Uruguai (Imagem 5). Tanto os sítios da fase Ibicuí quanto os da fase Uruguai eram localizados nos terraços fluviais e nas beiras dos rios, e conforme salientado pelo próprio autor (MILLER, 1987), sofriam os efeitos da erosão fluvial e sendo progressivamente destruídos.

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Imagem 5 - Sítios da fase Uruguai ● e Ibicuí ▲ (MILLER, 1987, p.40).

Miller (1987, p.41) utilizando-se da conceituação proposta por Ab' Sáber (1980), acreditava que a Fase Ibicuí correspondesse a evidências paleoindígenas propriamente ditas, porém sem a presença de pontas de projétil líticas, enquanto que a Fase Uruguai, corresponderia a um paleoíndio remanescente com pontas de projétil.

1.2.1.1 Fase Ibicuí

A fase Ibicuí era representada por apenas três sítios arqueológicos, o RS-I-50, o RS-I107 e o RS-Q-2, os dois primeiros situavam-se na margem esquerda do Rio Ibicuí, o primeiro em um dique marginal e o segundo na planície de inundação, enquanto o terceiro estaria

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localizado junto à margem direita do rio Quaraí. As evidências seriam compostas por artefatos líticos e fósseis de megafauna, como Glossotherium robutus (Imagem 6), apresentando-se reunidos em aglomerados descontínuos ao longo dos rios numa extensão de até 160 m (MILLER, 1987).

Imagem 6 - Crânio de Glossotherium robustus, sítio RS-I-50 da fase Ibicuí (MILLER, p.48, 1987).

De acordo com Miller (1987, p.50), o material ocorre em apenas um nível cuja espessura é a dos próprios testemunhos culturais e fósseis, estando recobertos por até 5,5 m de sedimentos aluvionais. Quanto às características do material Miller afirma que: Foram elaborados por percussão e pressão a partir de núcleos basálticos e placas naturais de arenito metamórfico e raramente em quartzito ou calcedônia. As três coleções existentes somam 466 evidências líticas e dois fragmentos de osso fóssil contendo ranhuras paralelas, finas e rasas, além dos demais testemunhos fósseis, animais e vegetais. O rol é composto por lascas secundárias com retoques a pressão com algumas prováveis evidências de uso (micro lascados desordenados nas serrilhas), núcleos com evidências de lascamento e percussão, lascas sem evidência de uso, talhadores tipo chopper, raspadores alguns em ponta e de feitura tosca e aglomerados de seixos sem nenhuma evidência cultural (1987, p. 51).

Milder irá retomar os trabalhos de campo em 1992 juntamente com pesquisadores do Museu de História Ciências Naturais da fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e da PUCRS – Campus II, demonstrando uma série de fragilidades nas interpretações de Eurico Miller, no que se refere a cronologia dos sítios e na associação de artefatos e fauna extinta (MILDER 1994, 1995). 6

Aqui existe um problema, conforme Milder (1995, p. 50-51), somente a coleção do sítio RS-Q-02 registrada no MARSUL possui, 123 peças, incluindo 6 pontas de projétil, o que contrasta com a informação de Miller (1987).

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As fragilidades apontadas por Milder (1995) iniciam já no que se relaciona com o sítio RS-I-107, que não possui acervo registrado no MARSUL, catálogo e muito menos fichas de sítio ou de datação, o que não permite dar ao sítio uma aceitabilidade científica. Na localidade do RS-I-50, situado na foz da Sanga da Cruz (Lajeado dos Fósseis), foi constatado certa esterilidade arqueológica, porém as porções mais elevadas acima de 70 m apresentariam inúmeros sítios, indicando uma ocupação de terrenos altos. Aliado a isso, foi observada a presença de muitos pseudo-artefatos formados pelo choque de rochas desprendidas do leito da sanga e transportadas pelas chuvas torrenciais, podendo ser facilmente confundidos com vestígios antrópicos de aparência "tosca". Quanto ao crânio do Glossotherium robustus, Milder (1995, p. 47) afirma que este foi encontrado na foz da Sanga, em uma porção que recebe carga sedimentar desde 130 m acima, sendo possível que o crânio tenha sido deslocado da cabeceira e redepositado na foz. Ou então que o próprio rio Ibicuí possa ter redepositado o crânio, já que em tempos de cheia o mesmo alaga o local da escavação. E por fim, o sítio RS-Q-02, não possui datação, sua cronologia de 12.690 ± 100 A.P. foi estabelecida na Sanga do Salto, localizado a 4,5 km distante do sítio, o que faz com que sua datação tenha que ser aceita com ressalvas.

1.2.1.2 A Fase Uruguai

A fase Uruguai foi estabelecida a partir de 21 sítios, somando uma coleção com total de 3.240 evidências líticas "in situ" e datada entre 11.555 ± 230 (RS-IJ-68) e 8.585±115 (RS-IJ67) A.P., esta fase abrange geograficamente o baixo rio Quaraí, o baixo Rio Ijuí e o rio Uruguai longitudinalmente entre estes extremos (MILLER, 1987). Até 1974, Miller pensava tratar-se de uma tradição paleoindígena sem pontas de projétil, porém, a partir de 1975, a ocorrência de tais artefatos tornou-se frequente fazendo com que estes fossem interpretadas como os objetos mais característicos desta fase, sendo pedunculadas e elaboradas preferencialmente em calcedônia, possuindo formas bem variadas, mas predominantemente de tamanho médio a pequeno (4,9 - 2,9 cm) e estreitas (1,6- 3,4 cm) (MILLER, 1987). Quanto ao restante do material, Miller afirma estarem presentes "facas bifaciais" retocadas à pressão, raspadores circulares, laterais e terminais, pré-formas lanceoladas, lascas, lâminas, algumas retocadas e outras apenas com marcas de utilização. Miller, não realiza

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descrições detalhadas dos núcleos, apenas especifica que suas dimensões variavam entre 3 e 19 cm e que alguns deles, depois de "esgotados" seriam utilizados como raspadores, o restante do material corresponderia a percutores, pedras de bigorna e talhadores tipo chopper (1987, p. 53-54).

1.2.2 O paleoíndio no Uruguai

As primeiras descobertas de sítios paleoindígenas no Uruguai ocorreram nas décadas de 1970 e 1980, concentrando-se na costa do rio Uruguai médio, nos Departamentos de Artigas e Salto, com as datações dos sítios: K 87, escavado por Klaus Hilbert próximo ao Arroyo El tigre, datado em 10.400 ± 150 A.P; do Sítio Y 85, datado em 11.200 ± 500 A.P., escavado por Niede Guidón na localidade de Isla de Arriba; e Pay Paso datando em 9.990 A.P. por Austral (SUÁREZ, 2010b; BAEZA, 1985). Desde 1999, Suarez (2003, 2010a, 2010b e 2011) vem desenvolvendo um projeto interdisciplinar, que abrange a porção uruguaia da bacia do rio Quaraí e o rio Uruguai médio visando compreender e relacionar dados arqueológicos, paleoambientais e paleoecológicos com a ocupação humana do final do pleistoceno e início do Holoceno. Suárez afirma que os estudos acerca das ocupações humanas antigas no Uruguai, possibilitaram a identificação de dois componentes paleoindígenas. Um mais antigo situado entre 11.000 e 10.000 A.P com as típicas pontas Fell 1, e um mais recente situado entre 9.900 e 8.600 A.P, com a até então inédita ponta de projétil de tipo Pay Paso (Imagem 7) (SUÁREZ, 2003, p.30).

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Imagem - 7 Ponta tipo Pay Paso (A) e ponta Fell 1 (B) (SUÁREZ, 2003, p. 30).

No que diz respeito à relação entre a fauna pleistocênica e as ocupações paleoindígenas, a localidade de Pay Paso, tem trazido informações valiosas. A região que se situa entre as fronteiras do Uruguai, Brasil e Argentina, junto a desembocadura do rio Quaraí, é composta por um total de 9 sítios de interesse arqueológico e paleontológico (Imagem 8). Em especial, o sítio Pay Paso 1 que apresenta peças ósseas de Glyptodon e Equus em associação a artefatos líticos (SUÁREZ, 2010b, p. 28).

Imagem 8 - Mapa com sítios da localidade de Pay Paso (SUÁREZ, 2010a, p.26).

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1.3 A indústria Catalanense

A indústria Catalanense foi descoberta em 1955 pelo arqueólogo Uruguaio Antonio Taddei, em uma campanha de campo organizada pelo Laboratório de Geografia Física e Biologia, da Faculdade de Humanidades e Ciências do Uruguai, com o objetivo de estudar a geomorfologia e a vegetação do Departamento de Artigas (CHEBATAROFF, 1961, p. 78). Lá Taddei iria descobrir um conjunto de sítios que mais tarde ficariam internacionalmente conhecidos como Indústria Catalanense. Tendo seu trabalho de investigação durado mais de 30 anos, e lhe rendido publicações de importância científica, reconhecidos tanto na América como na Europa (SUÁREZ, 2010b). Em uma área de aproximadamente 27 km², Taddei identificou 17 sítios (Imagem 9) bem agrupados entorno da nascente do Arroio Catalán Chico (Imagem 10), na Cuchilla Belén, que somariam, apenas em sua coleção, mais de 19.962 peças líticas. Os resultados das primeiras investigações foram apresentados no 33º Congresso Internacional de Americanistas na Costa Rica (TADDEI, 1987; HILBERT, 1994).

Imagem 9 - Localização dos Sítios do Catalanense (TADDEI & FERNÁNDEZ, 1982, p.140).

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Imagem 10 - Arroio Catalán Chico. Acervo pessoal.

Estes sítios também ocorreriam no lado brasileiro, e segundo afirma Milder (2000), concentrar-se-iam nos municípios de Alegrete, Quaraí e Uruguaiana, sendo um exemplo disso, os sítios encontrados pelo Padre Balduíno Rambo na década de 40 em Quaraí junto à desembocadura da sanga Nhanduvai no rio Quaraí-Mirim, nas proximidades do Cerro do Jarau (RAMBO, 1957; 2014). Já Schobinger (1969, p. 91) acreditava que os sítios encontrados pelo naturalista B. Rambo seriam na verdade similares ao do Catalanense, porém com instrumentos sobre lasca com retoques mais aprimorados. Esta indústria tradicionalmente foi caracterizada como "pré-cerâmica", e associada a caçadores-coletores, que não possuiriam pontas de projétil líticas em seus inventários, o que lhe conferiria uma aparência bastante "primitiva" ou mesmo "tosca" (TADDEI, 1987; BÓRMIDA, 1964; HILBERT, 1991). Contudo quando as pontas se faziam presentes, os autores recorriam geralmente a explicações externas. Ora eram contextos arqueológicos distintos que se misturaram (um de grupos com pontas e um de grupos sem pontas), ora por contato de populações em períodos mais tardios. Um exemplo claro deste tipo de raciocínio pode ser ilustrado no caso do Sítio 35-S-Perdices coletado por Taddei: [...] al que hemos siglado 35-S-Perdices, entre sus 2621 piezas recogidas en un área concreta de 85 x 45 m aproximados, creemos que ha sido el producto de un grupo “catalanense” influenciado en buen grado por los cazadores superiores, puesto que entre los muestreos allí efectuados hemos recogido: siete puntas de proyectil líticas pedunculadas con aletas (seis completas y uma fragmentada) y 34 puntas de proyectil líticas apedunculadas (10 completas, lanceoladas y foliáceas de base convexa y 24 fragmentadas de las que 11 son distales y 13 bases convexas).(...) Pensamos que en este caso particular del sitio 35-S Perdices, en una etapa

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transicional de sus ergologías, los “catalanenses” han tenido reales contactos, elaborando entonces puntas de proyectil líticas. La mayoría de ellas son de tosca factura y asimétricas, y parecen ser el producto de una talla inhábil, pero ejecutadas ya sobre bifaces delgados (TADDEI, 1987, p.68).

Como podemos observar mesmo Taddei encontrando um sítio com número bastante elevado de pontas, mas com "típicas" características do Catalanense, não questiona a possibilidade de estes artefatos pertencerem aquele contexto. O que demonstra como os autores estavam demasiadamente amarrados aos modelos teóricos propostos na época para o "paleolítico americano". A matéria prima para o lascamento seria toda de origem local, sendo utilizado preferencialmente o arenito silicificado (99%) e em menor proporção a calcedônia (1%). (TADDEI, 1987; BÓRMIDA, 1964; HILBERT, 1991; MILDER, 2000). Quanto aos aspectos técnicos, os autores irão divergir consideravelmente de opinião. De fato, cada tentativa de síntese levava a uma nova gama de atributos e "tipos" supostamente característicos. Enquanto que para Taddei (1987) o grupo tipológico predominante seria o das "raederas" (em suas múltiplas variáveis), Bórmida (1964) acreditava que seria o das "muescas" e das "puntas entre muescas". Quem irá colocar em xeque pela primeira vez este problema, será Klaus Hilbert (1991; 1994), ao salientar que a indústria Catalanense poderia ser mais bem caracterizada por seus elementos técnicos do lascamento do que através de classificações detalhadas das morfologias das peças ou de suas porcentagens. Isso além de nos mostrar a fragilidade das análises tipológicas (principalmente as mais tradicionais), que reduzem a particularidade dos conjuntos a números e formas, mostra quão flexível são alguns aspectos desta indústria, sobretudo no que diz respeito a morfologia das peças e a localização dos retoques. Segundo Taddei (1987, p. 66), a principal técnica de lascamento seria a percussão direta, porém, esporadicamente, ocorreriam retoques por pressão. Sendo isso interpretado pelo autor a partir de um viés evolucionista, pois acreditava que estes deveriam estar relacionados a fases mais recentes do Catalanense, onde ocorreria um aumento dos instrumentos ditos "especializados7". Para os autores mais clássicos como Taddei (1987) e Bórmida (1964), esta seria por excelência uma indústria de lascas, onde a presença de lâminas e bifaces seriam bastante escassas. Contrariamente, Hilbert (1991; 1994) acredita que o elemento mais distintivo desta 7

Quanto à expressão especializados, que frequentemente aparece na literatura arqueológica regional, somos extremamente reticentes. Como é possível atribuir especialização a instrumentos que em 99% dos casos não sabemos a funcionalidade exata? Além disso, o simples fato de um objeto técnico ser produzido com um objetivo determinado por si só o caracterizaria como especializado.

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indústria seria justamente o lascamento bifacial. O que justificaria a presença de lascas com talão facetado e com negativos de orientação centrípeta. Estes produtos, segundo o autor, seriam típicos do lascamento de núcleos discóides, tal como um Proto-Levallois8 (Imagem 11). E provavelmente as lâminas encontradas nestes contextos seriam provenientes de núcleos discóides, com características que remeteriam às lâminas Levallois, mas apesar destes indícios não haveria uma produção intencional de lâminas, pois não seriam encontrados núcleos preparados para esta finalidade.

Imagem 11 – Núcleo discoidal indústria Catalanense (HILBERT, 1991).

Um aspecto interessante de se observar, é que enquanto para os dois primeiros autores, os bifaces são sinônimos de instrumentos, o segundo irá relativizar esta questão, atribuindo a estes, sobretudo, a função de núcleos. E se observarmos a própria descrição de Taddei para os "instrumentos" bifaciais, nos convencemos mais ainda de que talvez muitos destes seriam núcleos: Es escaso y variable el trabajo bifacial, el cual produjo piezas en general espesas y de variada morfología. Hay entre ellos: elipsoides, cordiformes, lanceolados, circulares e irregulares. Estos bifaces han recibido retoques a percusión en casi todo su perímetro, y resultan ser, por ello, artefactos ya terminados. Tipológicamente serían raederas de filos convexos convergentes (TADDEI, 1987, p. 67).

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Não devemos estranhar tal comparação, por sinal bastante pertinente por parte do autor, visto que Flavia Morello (2005) identificou a existência do método Levallois na Patagônia Chilena, na coleção de Cabo San Vicente I.

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Quanto aos demais núcleos, possuiriam variedades como, piramidais, poliédricos, facetados e "amorfos" (TADDEI, 1987, p. 67). Ainda existiria outra modalidade bastante interessante apontada por Hilbert (1991), que seriam núcleos elaborados sobre espessas lascas, cuja face inferior seria convertida em plano de percussão (Imagem 12).

Imagem 12 – Núcleos sobre lasca, indústria Catalanense (HILBERT, 1991).

O Catalanense exibiria uma variedade considerável de retoques (diretos, denticulados, inversos, em "focinho", etc.), cujos mais característicos seriam os de posição alterna e alternante (Imagem 13), assim como as "muescas" e "puntas entre muescas" (Imagem 14) (TADDEI, 1987; BÓRMIDA, 1964; HILBERT, 1991, 1994). Estes últimos correspondem aos retoques com delineação "em entalhe" ou "en coche", conforme a classificação de Inizan et. al. (1995).

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Imagem 13 – 1 e 2 instrumentos com retoques alternantes, 2 instrumentos com retoque em entalhe (HILBERT, 1991).

Imagem 14 – Instrumentos com retoques em entalhe (TADDEI, 1987, p.78).

As muescas podem ocorrer em sua forma simples, com apenas a retirada de uma lasca ou então serem formadas por uma pequena sequência de retoques que dão uma morfologia côncava. Enquanto as puntas entre muescas" em seu sentido mais tradicional seriam uma espécie de "perfurador entre entalhes" (muitas vezes alternos). Hilbert (1991, p.10-11) acredita que a grande maioria dos retoques não seriam intencionais e muitos estariam relacionados a processos pós-deposicionais (lembrando que a maioria dos sítios são superficiais). Assim, segundo o autor a maioria das muescas, principalmente as com concavidade bastante pronunciadas, poderiam ter se formado durante o ato da utilização, e as puntas entre muescas, levando em conta suas características, dificilmente seriam utilizadas como perfuradores.

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Esta abundância de instrumentos com retoques côncavos, para Taddei, testemunhava o uso da madeira pelos "primitivos caçadores" da indústria Catalanense, onde os entalhes serviriam para formatizar, por exemplo, hastes de lanças e flechas (1987, p.67). A cronologia estipulada ao Catalanense, sempre foi motivo de discussão entre os autores, pois as datações realizadas foram sempre com base na posição estratigráfica dos achados em relação com fenômenos geográficos conhecidos, como as realizadas por Bórmida (1964) e Chebataroff (1961), utilizando como marco cronológico o fenômeno da reativação na bacia do Quarai. E levando em consideração as características da indústria Catalanense, descritas anteriormente, o perfil evolucionista cultural dos autores da época e o comparativismo exagerado ao paleolítico do "velho mundo", não é de surpreender que lhe fossem atribuídas cifras muito recuadas. Um exemplo disso seriam as estimativas propostas por Ibarra Grasso e H. Muller de 37.000 e 15.000 anos A.P. respectivamente (CHEBATAROFF, 1986, p. 79). Bórmida (1964, p.108-109) estipulou que o Catalanense estaria constituído por quatro fases (A, B, C e D) possivelmente diacrônicas, até então pouco definidas devido a maioria dos sítios serem superficiais. Esta distinção seria baseada no tamanho das peças, na técnica de retoque empregada e na presença ou ausência de certos "tipos de instrumentos". Como podemos ver, o estabelecimento de ditas fases é puramente especulativo, apoiado unicamente na hipótese de M. Bórmida de que os artefatos mais antigos eram mais "toscos" e maiores, enquanto que o mais recente é menor e mais "especializado". Para Bórmida (1964) esta indústria dataria entre 9.000 e 8.000 anos a.C., e se levarmos em conta que o autor utiliza como referencial o nascimento de Cristo, temos uma idade entre 11.000 e 10.000 A.P. O geomorfólogo Jorge Chebataroff também realizou um estudo estratigráfico junto aos terraços do Arroio Catalán Chico nas porções com ocorrência de material lítico Catalanense, e estimou uma antiguidade entorno dos 10.000 A.P. (1961, p. 90).

1.4 A indústria Cuareimense

O Cuareimense, assim como o Catalanense, seria uma indústria "pré-cerâmica" sem pontas de projétil. Esta também se localizaria no Departamento de Artigas e restringiria às margens do médio curso do Rio Quarai e junto aos baixos cursos de seus afluentes (Imagem 15). Ao contrário dos sítios do Catalanense que se encontrariam dispersos por todo o noroeste

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do Uruguai, o Cuareimense limitar-se-ia as imediações do rio Quaraí, ocorrendo principalmente nas barrancas voltadas para o lado brasileiro. Esta região já havia sido alvo de pesquisas de J. Chebataroff em 1961, porém tal indústria foi diferenciada do Catalanense entre 1962 e 1964, pelo arqueólogo argentino Marcelo Bórmida9, durante duas expedições ao departamento de Artigas, destinadas a esclarecer problemas morfológicos e cronológicos próprios das indústrias líticas desta região (CHEBATAROFF, 1961; BÓRMIDA, 1964; TADDEI, 1987; HILBER, 1991, 1994).

Imagem 15 - 1-Rio Quaraí e seus afluentes; 2-Sítio de Artigas; Sítio do Guabiyu; sítio do Carapé (BÓRMIDA, 1964, p.128).

Além da posição geográfica, a diferença principal em relação ao Catalanense, não diz respeito tanto ao tipo de matéria prima utilizada, mas sim a forma como esta se encontra na natureza. Enquanto que no Catalanense eram utilizados blocos para o lascamento, no Cuareimense seriam predominantemente utilizados os seixos de arenito silicificado (92%) ou basalto (8%), provenientes do rio Quaraí (BÓRMIDA, 1964; TADDEI, 1987; HILBERT, 9

Conforme o próprio autor afirma, Antonio Taddei esteve presente nas duas campanhas de campo, visto que era um grande conhecedor da área e por ser o primeiro a realizar estudos sobre as indústrias líticas do norte do Uruguai (BÓRMIDA 1964, p. 103).

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1991, 1994). Hilbert afirma existir uma grande dificuldade em se distinguir os núcleos dos instrumentos elaborados em seixos: La dificuldad del Cuareimense se presenta en lo trabajoso que resulta distinguir entre núcleos y herramientas, ya que em este contexto la definición de estos dos tipos de artefatos es, en principio, flexible. Si reconocemos como herramienta aquellos núcleos que posteriormente recibieron retoques, entonces pudo ser utilizado cualquier núcleo como instrumento (HILBERT, 1991, p.13).

Entretanto Hilbert (1991, 1994) acredita que os menores seriam destinados a produção de instrumentos tipo chopper, enquanto que os de maiores proporções seriam aproveitados na produção de núcleos. Sendo os núcleos mais típicos elaborados sobre grandes lascas de arenito silicificado, obtidas a partir do lascamento de seixos mais volumosos. Esta abundância de artefatos em seixos iria, segundo Taddei (1987, p.68), conferir a esta indústria uma fisionomia mais "tosca" do que a do Catalanense10 (Imagem 16).

Imagem 16 - Artefatos elaborados sobre seixo, indústria Cuareimense (TADDEI, 1987, p.85).

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Mais uma vez, podemos observar no discurso de Taddei uma menção aos modelos da pré-história do velho mundo, pois o único fator que levaria o autor a firmar que a utilização dos seixos daria uma aparência primitiva ao Cuareimense seria a utilização do Paleolítico inferior como referencial, onde predominariam os artefatos elaborados sobre seixo (tipo chopper). E como veremos mais adiante a própria cronologia desta indústria seria mais recente que a do Catalanense.

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O Cuareimense foi considerado uma indústria essencialmente unifacial, cuja técnica de lascamento predominante seria a percussão direta, e os instrumentos típicos seriam "nucleiformes" arredondados, com finos retoques acompanhando o perímetro da peça, parecendo obedecer a um padrão. Também existiriam lascas retocadas, definidas claramente como instrumentos, porém os retoques em geral eram grandes e distanciados (Imagem 17) (HILBERT, 1991, 1994).

Imagem 17 - Instrumentos retocados sobre lasca, indústria Cuareimense (HILBERT, 1991).

Outro instrumento típico do Cuareimense são as lenticulares, apresentando em sua superfície marcas de picoteamento e de abrasão, o que poderia indicar sua utilização enquanto percutor (retocador) ou então como moedor de grãos (HILBERT, 1991; 1994). Tais objetos, são conhecidos na literatura arqueológica regional desde os tempos de Ameghino (1877) como piedras de honda, porém sua real funcionalidade permanece desconhecida. Entretanto, a hipótese de Hilbert, nos parece a mais coerente, visto que tais objetos foram descritos com tal funcionalidade por Semenov (1964 p.62), para o sítio Kostenki IV. Enquanto que a maior parte dos autores estava inclinada a considerar o Cuareimense como uma indústria de caçadores-coletores "primitivos", M. Bórmida (1964, p. 124) acreditava que esta estaria vinculada a culturas de "agricultores primitivos" ou "proto-

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agrícolas". Segundo Bórmida (1964), aqueles instrumentos supostamente típicos de sociedades caçadoras não estariam presentes nos sítios da indústria Cuareimense, tais quais os "raspadores" e as "facas", não se enquadrando ao trabalho do couro, mas sim ao corte de madeira ou remexer o solo. A indústria Cuareimense seria cronologicamente posterior ao Catalanense, Bórmida (1964) estimou a antiguidade de tal indústria a partir da localização dos respectivos artefatos nos terraço do rio Quaraí, tendo como referencial cronológico a reativação erosiva das barrancas, fixada por volta de 7.000 A.P., situando a indústria entorno de um milênio ou um milênio e meio antes desta data.Conforme Schobinger (1969, p. 190) os grupos detentores da indústria Cuareimense teriam ocupado a região do médio curso do rio Quaraí durante um intervalo de 2.000 anos, aprimorando sua tecnologia e absorvendo traços técnicos que não possuiriam inicialmente. Porém por causas desconhecidas, mas possivelmente ligadas a mudanças nas condições de vida na costa do rio Quaraí, teria ocorrido um lapso ocupacional que viria a ser preenchido por portadores da indústria Catalanense por volta de 6.000 A.P. Hilbert foi um dos poucos a realizar escavações em sítios típicos do Cuareimense e obter datações por C14. Em 1979 o autor realizou datações a partir de amostras de carvão e que resultaram na data de 1.560±50 A.P. resultando em uma cronologia incompatível com o conceito de tradição pré-pontas de projétil, mas harmoniosa com as cronologias da tradição Humaitá (1991, p. 14). Bórmida (1964) e Schobinger (1969), consideravam uma possível relação do Cuareimense com a indústria Altoparanaense da Argentina por ambas serem vinculadas a grupos "proto-agrícolas", mas o Cuareimense não possuiria os típicos instrumentos como os "talhadores" e "bumerangoides". Devido a tratar-se de uma única datação, Hilbert salienta a importância de não realizar generalizações quanto a cronologia da indústria como um todo (1992, 1994). Segundo Bórmida (1964, p. 115), esta indústria mesmo possuindo uma fisionomia bastante definida apresentaria duas variantes contextuais diacrônicas denominadas, fases "A" e "B". A delimitação destas fases basicamente baseava-se na posição estratigráfica dos artefatos e em seus aspectos tecnológicos. Enquanto que na "Fase A" predominariam peças de maior porte, e seriam escassos os artefatos sobre seixo, lascas espeças, pontas-de-projétil e bifaces; na "Fase B" seriam mais comuns as peças de menores dimensões assim como uma maior porcentagem de artefatos elaborados sobre seixos, lascas pouco espessas, pontas-deprojétil e bifaces.

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1.5 A Tradição Umbu e os Caçadores-coletores "Especializados"

Estes dois conjuntos, sob uma ótica tradicional, poderiam ser entendidos como uma mesma tradição de caçadores coletores que ocorreria em ambos os lados da fronteira e que teriam como principal objeto diagnóstico as pontas de projétil líticas, assim como as boleadeiras e "quebra-coquinhos". No sul do Brasil, estes sítios foram classificados como tradição Umbu, enquanto no Uruguai, foram associados aos ditos "caçadores especializados". Para o Uruguai, Hilbert (1991, 1992) dividiu os "caçadores especializados" em duas tradições. Uma "antiga", que englobaria aqueles sítios que apresentavam inventários e cronologia semelhantes aos da tradição paleoindígena, mas que careceriam das pontas "rabode-peixe". E uma "tardia" que exibiria um grande paralelismo com a tradição Umbu no Rio Grande do Sul e cujas pontas teriam uma grande similitude com às patagônicas dos períodos de Magallan III e IV. Como já discutimos anteriormente, no sul do Brasil a maior parte dos autores (KERN, 1981; RIBEIRO, 1984; NOELLI, 2000; HOELTZ, 2005; SCHMITZ, 2006) estavam inclinados a considerar a tradição Paleoindígena de Miller (1987) como ponto inicial da tradição Umbu, recuando esta para a transição do Pleistoceno para o Holoceno. Consequentemente ao se estabelecer esta ligação, mesmo que de uma forma indireta, acabamos por justificar o modelo mais tradicional de povoamento americano, aonde o homem chega por Bering durante o tardiglaciário com pontas de projétil de grande tamanho e especializadas na caça de megafauna. Quanto mais essas populações se deslocariam para o sul do continente, onde paralelamente vão ocorrendo mudanças climáticas, mais as pontas vão diminuindo de tamanho em resposta as imposições naturais (CLARK, 1975; LAMINGEMPERAIRE 1981). Como podemos observar este modelo está alicerçado em pressupostos do difusionismo e do determinismo ambiental (TRIGGER, 2011; JHONSON, 2000). Sendo que para o difusionismo, quanto mais longe do "centro irradiador" mais modificado se apresenta determinado aspecto cultural, como se sofresse uma "degeneração" (em termos difusionistas). E para o determinismo ambiental os aspectos da mudança cultural são sempre atribuídos a fatores externos, como o clima ou a fauna que determinariam o ritmo da mudança cultural, mediante um mecanismo de estímulo-resposta.

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Levando em consideração a carência de estudos de tecnologia comparada entre o material lítico dos sítios paleoindígenas e aqueles relacionados a tradição Umbu, acredita-se ser mais coerente adotarmos a postura de Milder (2000), que estudou a paleopaisagem da fronteira sudoeste e os sítios de E. Miller (1987), e que considerou estas tradições como distintas. Entretanto, é importante salientar que dentre as tradições aqui citadas, a Umbu é a que apresenta os maiores problemas em sua construção, sobretudo por seu caráter demasiadamente genérico e englobante no que se refere aos critérios de identificação e classificação. Primeiramente nota-se que os autores brasileiros tendem a impor uma grande amplitude à tradição Umbu. Alguns como Kern (1981), Prous (2012) limitam a relacioná-la aos estados mais meridionais do Brasil, outros como Noelli (2000), englobam tanto o sul do Brasil quanto o território uruguaio, e por fim ainda há aqueles como Ribeiro (1984) que creem em uma dispersão que vai desde o Paraná a Patagônia argentina e da costa atlântica ao nordeste argentino. Já os autores que estudaram os sítios no Uruguai, como Hilbert (1991, 1994) e Taddei (1987) mesmo reconhecendo ligações entre a tradição Umbu e seus "caçadores especializados" são mais prudentes e evitam vinculações tão abrangentes. Este caráter englobante pode ser visto na própria definição do termo "Tradição Umbu" apresentada por A. Kern: "Le terme Tradition Umbu désigne d'une façon hypothétique tous les sites ayant des industries caractérisées par des pointes de flèche lithiques à péndoncules et ailerons trouvés dans les trois états méridionaux du Brésil" (KERN 1981, p.266). Levando em conta que Kern (1981, 1982, 1991 e 1994) é um dos principais autores que se debruçou sobre o tema juntamente com Schimitz (1982, 1987, 2006) e Ribeiro (1984), esta definição diz muito a respeito da construção desta tradição, pois quando Kern nos diz que o termo tradição umbu seve para designar todos os sítios cujas indústrias se caracterizam pela presença de pontas de projétil acaba por lhe atribuir um caráter englobante e generalista que reduz toda a complexidade dos conjuntos líticos a um único objeto. Quanto aos aspectos técnicos, segundo Kern (1981), Ribeiro (1982) e Shmitz (2006) esta tradição utilizaria tanto a percussão direta (dura e macia), percussão indireta, pressão e lascamento sobre-bigorna como técnicas de lascamento.

Quanto aos instrumentos

característicos, exceto a suposta homogeneidade das pontas de projétil, existiria uma grande variabilidade de artefatos dentre eles:

Les outils dela Tradition Umbu sont les pointes de flèche péndonculées (à base droite, concave et convexe), avec ailerons et en forme triangulaire, les pointes sans péndoncules (lancéolées, triangulaires et foliacées), les éclats, les lames, les

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couteaux bifaciaux (simples, trapezoïdes, lancéolés), les grattoirs de petite et moyenne taille (terminaux, latéraux, plano-convexe, circulaires, avec pédonculé et plus rarement discoïdales, avec encoche, elliptiques, unguiforme, angulaire, en pointe, quadrangulaires e triangulaires), les perçois en pierre et en on os, les feilles bifaciales, les percuteurs, les retouchoirs, en bois decerf et on os, et les petits bifaces. Plus rarement il exite des limaces, des burins, des pointes de javelot des talhadores, des grandes bifaces, des enclumes, des hemeçons en os, des aiguilles en os, des spatulesen os, des meules et des quebra-coquinhos. Probablemente les bolas, les haches polies, les polissoirs, les pierres à encoches, les pointes et les pics ne font pas partie de l'industrie, toute ces éléments étant d'une extrême rareté (KERN,1984, p. 284).

Por fim se fossemos considerar a cronologia atribuída a esta tradição, a sua dispersão, as técnicas empregadas no lascamento e os artefatos característicos, poderíamos considerar qualquer sítio associado a caçadores-coletores no Cone-Sul como associado em maior ou em menor grau à tradição Umbu, o que sem dúvida é algo preocupante e precisa ser debatido.

1.6 Os complexos arqueológicos no Sudoeste do Rio Grande do Sul

Para a região sudoeste do Rio Grande do Sul, conhecemos dois complexos arqueológicos, o Itaqui (Miller 1969) e o Areal (RIBEIRO & FERIS, 1984), (RIBEIRO, FERIS & HERBERTS, 1994). Esta denominação provém do fato de estes sítios serem constituídos por conjuntos distintos de indústrias geralmente líticas e cerâmicas, segundo Kern, na metodologia do PRONAPA, locais com esta heterogeneidade de indústrias eram denominadas de "complexos" (KERN,1981, p. 230).

1.6.1 O Complexo Itaqui

Em 1968, valendo-se da metodologia do PRONAPA, Eurico Miller encontrou 81 sítios (Imagem 18), a maioria a céu aberto, na bacia do Médio Rio Uruguai. E a partir destes definiu duas fases arqueológicas ceramistas (Ibirapuitã e Icamaquã) e um complexo11 précerâmico denominado Itaqui (MILDER, 2000).

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Segundo A. Kern (1981 p.230) a heterogeneidade desta indústria lhe rendeu o nome de "complexo", típico na abordagem do PRONAPA.

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Imagem 18 - Conjunto de sítios Identificados por Miller (1969, p.14).

Este complexo estaria representado por 61 sítios, tanto superficiais, como recobertos por aluviões de até 3 metros de espessura. Os artefatos eram lascados por percussão e confeccionados a partir de núcleos, lascas de grande porte e lâminas geralmente em arenito silicificado, basalto e calcedônia. Os principais instrumentos (Imagem 19) seriam os raspadores, facas-raspadores, lâminas-facas, lascas com traços de uso e pontas de projétil. Estas últimas se destacariam pela confecção do pedúnculo, apresentando formas características e distintas das até então encontradas no Rio Grande do Sul (Imagem 20) (MILLER, 1969, p.15). Também seriam comuns os talhadores, mas menos frequentes os bifaces e as bolas de boleadeiras, assim, esta pluralidade artefatual, na visão de Miller, indicaria influências culturais distintas (Kern, 1981, p. 230).

Imagem 20 - Artefatos Complexo Itaqui. Pontas de projétil e instrumentos bifaciais (MILLER, 1969, p. 25).

Imagem 19 – Artefatos do Complexo Itaqui (MILLER, 1969, p. 26).

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Mais tarde, Schimtz & Brochado (1982) realizaram estudos nas margens esquerdas do Rio Uruguai entre a desembocadura do Rio Ibicuí e do Quarai e propuseram uma nova reflexão para o "Complexo Itaqui", dividindo-o em duas fases diferentes, Itaqui I e II. Segundo os autores, o complexo Itaqui, guardaria muitas semelhanças com a indústria Cuareimense do Uruguai, mas apresentaria bifaces semelhantes aos da indústria Altoparanaense da Argentina e pontas de projétil semelhantes as da fase Rio Pardinho, sendo datada em 3.527±145 A.P (SI – 800) (SCHIMTZ & BROCHADO, 1982, p.152). A fase Itaqui I teria um material de maior tamanho e com mais pátina que o da segunda fase, os instrumentos característicos seriam os choppers, raspadores nucleiformes, pontas grandes elaboradas nas bordas dos seixos, lascas corticais e semi-corticais. Os sítios apareceriam profundamente enterrados nas barrancas dos rios Uruguai e Quarai. A fase Itaqui II provém de profundidades muito menores, mas possuiria material mais diversificado, apresentando mais núcleos de arenito silicificado do que seixos. Os instrumentos mais característicos serão os choppers-raspadores (melhores trabalhados e em menor número que os da outra fase), grandes raspadores nucleiformes, raederas, denticulados, facas, pontas entre entalhe, lascas primárias e preparadas, lâminas e lascas retocadas, facas bifaciais, bifaces e unifaces, pontas de projétil pedunculadas e lanceoladas e peças lenticulares. Os sítios em geral estariam no interior, em encostas de pequenos rios e arroios (SCHIMTZ & BROCHADO, 1982, p.152). Este complexo ocuparia as quatro camadas superiores da sequência estratigráfica estabelecidas por Miller (Imagem 21) ao longo do Rio Uruguai e da desembocadura do Rio Ibicuí. Mais tarde, em 1972, Miller criaria a fase Ibicuí, a partir da datação de 12.770 ± 220 A.P do sítio RS – I – 50 (Lajeado dos Fósseis) não podendo mais ser considerado pertencente ao complexo Itaqui, que seria bem mais recente (KERN, 1981).

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Imagem 21 - Estratigrafia de Miller para o Rio Uruguai (MILLER, 1987, p.60).

1.6.2 O Complexo Areal

Entre os anos 1982 e 1992 Mentz Ribeiro e sua equipe realizaram várias visitas aos conjuntos de sítios da região do Areal em Quarai, definindo-os como "Complexo Areal" devido à ocorrência de vestígios cerâmicos e "pré-cerâmicos" juntamente com gravuras rupestres (RIBEIRO & FÉRIS, 1984; RIBEIRO, FÉRIS & HERBERTS 1994). A região do Areal em Quaraí é formada por depósitos eólicos erodidos associados à ocorrência de substratos areníticos oriundos da formação Mesozóica Botucatu (220 milhões de anos). É uma área que sofre os efeitos do fenômeno da arenização, bastante comum na campanha sudoeste, sendo o Areal de Quaraí o quarto maior da região (SUERTEGARAY, 1989).O "Complexo Areal" está localizado no divisor de águas entre os Arroios Catí e Areal (UTM: 21J 575778 6630174) (Anexo A), a aproximadamente 21 km da cidade de Quaraí, a esquerda da RS 293 (no sentido Quaraí-Santana do Livramento). Ribeiro não realizou nenhum corte experimental, limitando-se a coletas sistemáticas em locais de maior concentração e coletas assistemáticas de objetos "mais trabalhados" fora destas concentrações. Na época, foram identificados cinco concentrações em uma área de

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diâmetro menor do que 1 km, junto ao monólito, somando um total de 2051 peças líticas e 259 fragmentos cerâmicos. Dentre os artefatos coletados estavam: núcleo, núcleos com marcas de utilização, raspadeiras, raspadores-talhadores, raspadores nucleiformes, raspadores elipsoides, lascas retocadas, lascas com traços de uso, 17 pontas de projétil (Imagem 22), 135 lenticulares, 24 bolas de boleadeiras e 3 bigornas (RIBEIRO, FÉRIS e HERBERTS, 1994).

Imagem 22 - Pontas de projétil e instrumento bifacial, Areal.

Para os autores o material lítico possuiria características compatíveis com os da tradição Umbu, das indústrias Catalanense e Cuareimense, enquanto a cerâmica se assemelharia a da fase Ibirapuitã. A partir disto foram levantadas duas hipóteses, uma diacrônica e a outra sincrônica, deste modo, ou teria ocorrido uma sobreposição de distintas indústrias ou se trataria de uma "Tradição cultural" única, bem delimitada espacialmente. Por levarem em conta a questão do Areal ser um depósito erodido e pelo fato dos sítios serem superficiais os autores optaram pela primeira proposição (RIBEIRO & FÉRIS, 1984; RIBEIRO, FÉRIS e HERBERTS, 1994). Em 1999 Milder retomou os trabalhos de campo no "Complexo Areal", valendo-se de uma metodologia bastante minuciosa, realizou um Survey na área, identificando novas concentrações de materiais, delimitando e quadriculando uma área de 96 por 84 metros, onde coletou sistematicamente o material, tendo cada peça recebido um número individual em um plano cartesiano (MILDER, 2000). Milder critica a postura tradicional dos autores em desprezar a importância de sítios superficiais, acreditando que as evidências encontradas seriam atribuíveis à caçadores

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coletores pampeanos com cerâmica incipiente (Charruas e Minuanos) (MILDER, 2000, p.149). Mais tarde as 4382 peças líticas coletadas por Milder no Areal serão alvo dos estudos tecnológicos de LEMES (2008), que por meio da reconstituição das cadeias operatórias de lascamento percebeu que no Areal a dualidade entre Catalanense e Cuareimense não se sustentaria, pois os gestos técnicos se equivaleriam e a produção de instrumentos sobre seixo ou sobre bloco possuiriam um caráter de complementaridade, levando-o a crer que os grupos que ali habitaram seriam portadores de um mesma tradição tecnológica. Recentemente no inicio de 2014 foram realizadas novas prospecções no Areal sob a coordenação do Professor Saul Milder. Na ocasião, em um raio de 1,5 km entorno do monólito com gravuras rupestres, foram identificadas 5 grandes fontes de matéria prima (Imagem 23), sendo duas delas afloramentos (imagem 24) e três cascalheiras (Imagem 25). Isso nos mostra em primeiro lugar que a matéria prima é toda de origem local e em segundo lugar que não seriam utilizados seixos, mais sim pequenos blocos arredondados originários destas cascalheiras, portanto não poderia existir um "Cuareimense", pois a aquisição de matéria prima para o lascamento não ocorreria no rio Quaraí, mas no próprio areal.

Imagem 23 - Fontes de matéria prima identificadas no Areal.

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Imagem 24- Afloramento de arenito silicificado, Sítio Areal (UTM: 21J 0575740 6629180).

Imagem 25 - Cascalheira de arenito Silicificado, Sítio Areal (UTM: 21J 0576444 6631008).

A ocorrência de material arqueológico no Areal coincide com os solos arenosos de coloração avermelhada (Imagem 26), isso não quer dizer que em todos os locais com solo avermelhado existirão sítios, mas que os sítios somente ocorrerão onde existirem estes solos, que segundo Milder (2000), corresponderiam a paleopedons.

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Imagem 26 – Material lítico em associação ao solo arenoso de coloração avermelhada. Ao fundo, o Cerro da Panela.

Quanto às concentrações de materiais arqueológicos, estas são constantemente modificadas pela remobilização eólica das dunas, que segundo Milder (2000, p.148), decapa áreas imensas onde aparecem os sítios arqueológicos. O Areal ainda se sobressai regionalmente pela presença de um bloco testemunho (Imagem 27) em arenito Botucatu, medindo 5m de altura por aproximadamente 7 m de diâmetro, apresentando gravuras rupestres (Anexos B e C) em quase todo o seu perímetro. As gravuras foram alvo de uma publicação de Ribeiro & Feris em 1984, onde os autores expõem os principais resultados. Mesmo que este trabalho foque-se nas indústrias líticas, achou-se importante dedicar algumas linhas as gravuras rupestres, pois são as únicas representações simbólicas conhecidas na região de Quaraí. De acordo com Ribeiro & Feris, a técnica empregada na confecção das gravuras seria o "alisamento". E entre os motivos mais característicos estariam os traços isolados e os paralelos, seguido dos "gradeados" e dos traços unidos que formam bifurcações, existiriam também linhas "ziguezagueadas", tridáctilos, arcos e retângulos (RIBEIRO & FERIS, 1984, p.8).

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Imagem 27 - Monólito e suas gravuras, Areal, Quaraí.

Sucintamente, podemos afirmar que as gravuras formam produzidas mediante abrasão, por meio de um instrumento de dureza superior a do bloco de arenito. Também é possível observar que existe uma predominância de símbolos alongados α, em relação aos símbolos cheios β (LEROI-GOURHAN, 2007), onde os primeiros parecem obedecer a certa ritmicidade, aparecendo agrupados em número de 2, 4 e 5, não parecendo haver acoplamento dos conjuntos α e β. Ainda que o significado de tais símbolos se quede inacessível e perdido no tempo, não podemos perder de vista a capacidade humana em converter o ambiente circundante em símbolos assimiláveis, pois: Mesmo nas obras menos figurativas e mais desprovidas de sentido religioso, o artista é o criador de uma mensagem; exerce através das formas uma função simbolizadora que penetra mais longe que a música e a linguagem. Esta mensagem refere-se à necessidade ao mesmo tempo física e psíquica, de assegurar a apropriação do universo pelo indivíduo ou seu grupo social, de realizar a inserção do homem através do aparelho simbólico, no campo movediço e aleatório que o envolve (LEROI-GOURHAN, 2007, p.81-82).

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Mas o fator que mais chama atenção é que estas representações simbólicas encontramse em uma área de relevo bastante aplainado, que permite uma visualização do monólito a pelo menos 3 km de distância. Isso pode indicar que local tenha sido escolhido justamente por sua visibilidade, servindo como um marco na paisagem onde os grupos que ali habitaram materializaram seu pensamento sobre a forma de símbolos de linguagem.

1.7 Os estudos pioneiros na campanha sudoeste

A existência de materiais líticos em Quarai foi atestada pela primeira vez há sete décadas, mais precisamente em dezembro de 1944, pelo naturalista Padre jesuíta Balduíno Rambo. A descoberta se deu durante sua segunda viagem ao sudoeste do Rio Grande do Sul, quando este buscava novas espécies vegetais12. Na ocasião, Rambo e um grupo de escoteiros estavam acampados próximo à margem direita da desembocadura da Sanga do Nhanduvaí, no Arroio Quarai-Mirim a aproximadamente 7 km a sudoeste do Cerro do Jarau (Anexo D). Em uma de suas caminhadas diárias, o padre Balduíno se deparou na "descida de um barranco" com a metade de uma ponta de projétil e em seguida com um considerável número de lascas. Nos 17 dias que seguiram a quantidade de achados somente aumentou, estando espalhados em ambas as margens deste curso d'agua, dentre os quais ele descreveu como "lascas grosseiras", "pontas de flechas13", boleadeiras14, lenticulares e instrumentos (RAMBO, 2014). Em seu diário de campo (RAMBO, 2014), recentemente publicado pela Editora da UFSM, o naturalista não apresenta quantas peças coletou, porém mais tarde em 1957, em um artigo intitulado "Arqueologia Rio-Grandense", ele nos apresenta as seguintes informações: Durante mais de duas semanas explorei a região, reunindo uma coleção de mais de mil peças. Acham-se disseminadas pelo campo, acumulando-se ao longo de um dique de arenito metamórfico azul (glauconítico), que aflora numa extensão de mais

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Em um comentário irônico, devido à empolgação dos achados ele afirma: "Minha coleção não para de crescer. Tenho a impressão de que essa coleção tem mais valor que as plantas que reúno" (RAMBO, 2014, p. 75). 13 Aqui é preciso algumas ressalvas, pois o próprio Rambo (2014, p.67) acredita que muitas destas "pontas de flecha" são demasiadamente "grosseiras" e pesadas, para tal finalidade. Por isso acreditamos que estas poderiam ser na verdade, instrumentos ou núcleos bifaciais. Até porque ele afirma que algumas destas peças lembravam "machados de punho", fazendo referência aos bifaces do paleolítico do Velho Mundo. 14 Na verdade, Rambo foi presenteado com 12 bolas de boleadeiras pelo então proprietário da Estância do Jarau Aldo Pereira Giudice (RAMBO, 2014, p.64).

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de 5 km, com 2,5 de largura, um pouco atrás do lado sul deste rio e atravessando sanga antes mencionada (RAMBO, 1957, p. 35).

Mesmo não tendo uma formação arqueológica, Rambo já em campo faz algumas considerações interessantes sobre o material, muitas das quais seriam sugeridas por arqueólogos nas décadas seguintes. Por exemplo, inicialmente ele pensava tratar-se de "instrumentos dos índios", fazendo assim uma direta associação com as populações Charruas e Minuanas, porém conforme ele vai tomando contato com o material começa a crer que corresponderiam a ocupações bem mais antigas: De resto, todo esse material causa-me cada vez mais a impressão de semelhança com instrumentos paleolíticos. Pela primeira vez começo a pensar na possibilidade deque aqui se trata de uma cultura que não tem nada a ver com os charruas, mas pertencente a um estágio anterior (2014, p. 67).

Este raciocínio seria praticamente o mesmo empregado na interpretação das indústrias da região do arroio Catalán Chico quase duas décadas depois por arqueólogos como Bórmida (1964), Taddei e Fernández (1982), Taddei (1987) e Hilbert (1991, 1992), no que se refere a antiguidade destes conjuntos. Rambo (2014, p. 58) também percebeu que a matéria prima preferencial seria o arenito silicificado (chamado de arenito cozido por ele). Característica salientada por praticamente todos os pesquisadores nas sete décadas que se seguiram, como Bórmida (1964), Schmitz et. all (1968), Taddei & Fernández (1982), Ribeiro e Féris (1984), Taddei (1987), Hilbert (1991; 1994), Milder (1994, 1995, 2000), Suárez (2003, 2010, 2011), dentre outros. Outro aspecto interessante percebido por Rambo (2014, 1957), é que as populações que por ali passaram, por algum motivo não ocuparam o Cerro do Jarau, limitando-se aos arredores deste, ao longo dos arroios Guarupá e Quaraí-Mirím. Acreditamos que isso possa estar relacionado com aspectos simbólicos atribuídos ao cerro, pois além de proporcionar uma ampla visão da paisagem é o único local, segundo Milder (2000, p. 16), que apresenta abrigos sob rocha na região. O Cerro do Jarau está localizado no interflúvio entre o Arroio Garupá e o Rio Quaraí-Mirim, a aproximadamente 25 km noroeste da cidade de Quaraí, quanto a seus aspectos fisionômicos: A estrutura apresenta forma circular e estruturalmente complexa, medindo cerca de 14 quilômetros de diâmetro. O núcleo central da estrutura está soerguido e tem forma circular com 7 quilômetros de diâmetro, com desníveis de cerca de 160 metros entre as porções mais elevadas de sua borda até os níveis mais profundos da sua porção externa. A feição circular exibida por esta estrutura é composta por um conjunto morfológico de anéis concêntricos constituídos por depressões topográficas nas áreas externas e central, separadas na porção centro-norte da estrutura por uma

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crista soerguida em forma de meia lua. Estas feições são remanescentes do processo erosivo de uma cratera de impacto gerada pela colisão de um corpo celeste de grandes dimensões. Os efeitos do impacto sob as rochas sedimentares da Formação Botucatu e basálticas da Formação Serra Geral originou um conjunto de zonas de falhas normais e zonas de cisalhamento rúpteis, além do soerguimento estrutural dos arenitos eólicos na porção central. As feições indicativas do metamorfismo de impacto são brechas de impacto, brechas de injeção e arenitos e basaltos impactados, com formação de feições de deformação planares em quartzo, feldspatos e piroxênios. A partir das rochas afetadas podemos indicar que a geração da cratera é de idade pós-Cretáceo (PHILIPP et . al, 2010, p. 468).

Além dos aspectos geomorfológicos que sempre destacaram o Cerro do Jarau (Imagens 28 e 29) como um marco paisagístico e estratégico na região de fronteira, mesmo no período pós-colonial, o local sempre foi envolto de uma atmosfera mítica. De acordo com Alves, isso se deve ao fato do cerro ter sido palco de uma das mais célebres lendas da literatura Rio-Grandense, que foi imortalizada por Simões Lopes Neto em "A Salamanca do Jarau". E ainda em meados do século XIX, Bento Manoel Ribeiro, general farroupilha e então proprietário da Estância do Jarau, segundo a crença popular, também teria entrado na gruta do cerro e feito um pacto com a Teiniaguá, saindo do local com "o corpo fechado" (2010, p. 11). Para Alves (2010, p.13) tanto a personalidade histórica do local e seu misticismo, podem ser entendidos como induzidos por uma realidade física que se impõe na paisagem regional, favorecendo interpretações sobrenaturais em um dos locais mais emblemáticos da cultura sulina.

Imagem 28 - Cerro do Jarau, visão geral (Acervo LEPA/UFSM).

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Imagem 29 - Cerro do Jarau, vista do topo (Acervo LEPA/UFSM).

Mais tarde, no final da década de 1960, a região de Quaraí será novamente alvo de estudos, desta vez realizados por Pedro Ignácio Schmitz, Itala Basile Becker, Fernando La Salvia e Guilherme Naue, em um projeto de prospecções na campanha rio-grandense, até então pouco explorada arqueologicamente. Os resultados foram apresentados na XIX Reunião Anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) em 1968, sob a organização de Paulo Duarte (SCHMITZ et. all, 1968). A expedição tinha por objetivo fazer um levantamento pormenorizado da área e um estudo dos sítios que fossem localizados. Porém apenas sete foram encontrados, sendo um deles o mesmo descrito por Balduíno Rambo na década de 40. Ainda segundo os autores, os sítios seriam raros, e o material mais ainda, encontrando-se disperso superficialmente no campo, nas encostas dos cerros, ou nas proximidades dos arroios e por isso seria difícil determinar "fases" e "culturas" (SCHMITZ, et. all. 1968, p. 182). Por algum motivo, Schmitz et all (1968) não descreve com clareza os achados nem a localização dos sítios, utilizando termos bastante vagos e imprecisos para referenciar os mesmos, por exemplo: "em uma coxilha perto de uma sanga" ou então "em um caminho na encosta de um Cerro". As únicas referências que possuímos sobre os locais são o próprio subtítulo do artigo "Pré-cerâmica de Quarai e Livramento" e as menções feitas aos sítios

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encontrados por Rambo próximo ao Cerro do Jarau. Contudo apresenta-se a seguir uma síntese dos dados dos sete sítios encontrados (SCHMITZ, et. all. 1968, p. 183-184).

Sítio 1: Em uma colina próximo a uma "sanga" 20 boleadeiras, 4 lenticulares, 2 pontasde-projétil, 3 raspadores baixos, 1 pedra com entalhe, 4 pontas diretas e lascas.

Sítio 2: Localizados em uma plantação na encosta de uma colina nas proximidades de uma várzea próxima ao mesmo "arroio", 1 plaina, 1 raspador alto carenado, 1 faca, 1 ponta de flecha e lascas.

Sítio 3: A beira da estrada, numa colina perto de um "rio". Dois raspadores grandes, 5 pontas diretas, 3 pontas entre entalhes. Sítio 4: Na encosta de um "cerro15", na proximidade de uma "sanga". 11 facas pequenas, um raspador alto, 2 pontas com entalhe, 3 pontas diretas, lascas e núcleos.

Sítio 5: Em um caminho, na encosta de um cerro, na proximidade de um pseudo-dique de arenito cozido, perto de um "arroio", 2 raspadores baixos, 1 biface quebrado, 3 pontas diretas, e 2 em entalhe16.

Sitio 6: Está em um caminho, na encosta de um "cerro", longe de qualquer sanga ou arroio, 1 ponta direta, 1ponta entre entalhes, 1faca e lascas. O autor se refere que segundo a população local, teriam sido encontradas contas de pedra17 perfuradas, bem como crânios.

Sitio 7: Supostamente o sítio mais rico, situado sobre um pseudo-dique de "arenito cozido", nos arredores de uma mata de galeria, junto de uma "sanga" na desembocadura de um "Rio"18. 10 raspadores grandes, 1 raspador pequeno, 35 facas, 64 pontas diretas e 4 pontas semelhantes a buris, 28 pedras com entalhe, além de núcleos lascas e resíduos de 15

Possivelmente o Cerro do Jarau. Segundo Schmitz et al (1968, p.184) haveriam mais materiais, mas um pesquisador uruguaio, do qual não cita o nome, haveria coletado. 17 Possivelmente estejam se referindo a "Sanga das contas", localizada próximo ao Cerro do Jarau. Segundo RAMBO (2014, p. 80) esta seria constituída por um banco meláfiro decomposto, formando uma fenda de até 5 m de profundidade e que em alguns pontos possuiria apenas um metro de largura. 18 Aqui fica claro que os autores se referem à Sanga do Nhanduvaí e ao Arroio Quarai-Mirim. 16

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lascamento. O material é de arenito cozido, em diversas tonalidades de vermelho, azul, verde e cinza.

1.8 Discussão

Agora que já realizamos um panorama geral do que foi pensado acerca das indústrias líticas na região de estudo iremos realizar algumas reflexões problematizando alguns modelos e hipóteses propostas pelos autores. De acordo com Milder a terminologia conceitual utilizada pelos autores para descrever os materiais encontrados é extremamente hermética e entendida somente pelos próprios pesquisadores, estes acabaram por converter as entidades vivas do passado em aspectos de suas técnicas, acidentes geográficos e atributos mensuráveis, da forma mais cartesiana possível (MILDER, 2000, p.65). Como foi possível observar cada autor utilizava quase que uma terminologia própria, fazendo com que a descrição de uma mesma indústria fosse realizada de formas variadas por diferentes autores, segundo Kern: [...] os pesquisadores que trabalharam na Argentina, os que realizaram prospecções nos quadros do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas arqueológicas), ou os que trabalharam de maneira mais independente, ligados a instituições locais (museus e universidades), não estão sempre de acordo com a terminologia a utilizar. Algumas vezes um objeto é descrito por vocábulos diferentes (uma plaina definida como raspador, um furador definido como ponta entre entalhes, etc.) ou um mesmo termo define objetos dissemelhantes (o uso e abuso do termo talhador) (KERN, 1990, p.111).

Isso fica explícito quando observamos o caso da indústria Catalanense onde as descrições realizadas por Taddei (1987), Bórmida (1964) e Hilbert (1991) variam largamente, gerando dificuldades na interpretação desta. Em consequência isso acaba por dificultar o diálogo entre os autores e ao mesmo tempo impõem grandes obstáculos aos trabalhos de revisão e síntese. Outro fator que torna ainda mais complexa as discussões diz respeito ao fato da grande maioria dos sítios serem superficiais19, o que dificulta a identificação de horizontes

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Fator reconhecido por autores como BÓRMIDA (1964); SCHOBINGER (1969); HILBERT (1991, 1994), RAMBO (1957, 2014), TADDEI (1987), MILDER (2000).

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cronológicos para estes e ao mesmo tempo deixa os arqueólogos inquietos com a grande possibilidade de justaposição de indústrias, visto que a região foi ocupada pelo menos desde o final do Pleistoceno. Entretanto a questão que nos parece bastante preocupante é a atenção demasiada que os autores dirigem às pontas de projéteis, colocando estas em um patamar de superioridade em relação aos demais instrumentos, suprimindo assim toda a complexidade de uma indústria a apenas um objeto. Acredita-se que esta atitude esteja relacionada ao que Böeda (1997) chama de "memória esquecida" e "memória deformada", pois a maior parte da função técnica dos objetos "pré-históricos" assim como seus papéis enquanto objetos sociais permanecem inacessíveis e incompreensíveis para nós. Entretanto alguns artefatos, como as pontas de projétil e as boleadeiras, continuam em nossa memória devido aos relatos étnico-históricos, mesmo que de uma forma deformada, e isso leva os autores a focarem-se naquilo que eles acreditam compreender e conhecer. Podemos dizer que esta problemática tomou dimensões tão amplas que a presença de tais objetos em sítios arqueológicos vem sendo utilizada como elemento diagnóstico da economia de caça e coleta. Isso pode ser visto quando Ribeiro (1990, p. 131) afirma que a principal modalidade econômica da Tradição Umbu é a caça, devido à presença de pontas de projétil. Em primeiro lugar as pontas de projétil líticas são apenas um dentre um universo de objetos que podem ser utilizados na caça, um exemplo disto pode ser visto no estudo de Lustig-Arecco (1979, p. 41), no qual a autora, a partir de amostras heterogêneas de 46 sociedades distintas, mostrou que existem pelo menos 800 formas diferentes de se abater as presas. E em segundo lugar, as pontas de projétil não necessitam ser obrigatoriamente feitas em pedra, outros materiais poderiam ser utilizados como a madeira ou o osso (Imagem 30), tal qual os Bosquímanos da África que utilizam pontas de flecha feitas em madeira (LEROIGOURHAN, 1984, p.336).

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Imagem 30 - Ponta em madeira do paleolítico médio, proveniente de Clacton (Essex) (CLARCK, 1969, p. 32).

Para além das pontas de projétil, outros objetos podem ser feitos em materiais menos duráveis que os de origem litológica, como as azagaias (Imagem 31) e os arpões tridentados utilizados pelos aborígenes australianos (Imagem 32) (CLARCK, 1969).

Imagem 31 - Australiano utilizando azagaia (CLARK, 1969, p. 96).

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Imagem 32 - Australiano utilizando arpão para pesca (CLARK, 1969, p. 97).

A título ilustrativo elaborou-se uma lista com algumas técnicas e utensílios empregados por sociedades do universo etnográfico, tendo como base o inventário organizado por LeroiGourhan (1984a e 1984b) nos dois volumes de Evolução e Técnicas, que além de representar um marco na escola francesa de etnologia das técnicas, constituem uma grande enciclopédia das técnicas pré-industriais, elaboradas a partir da descrição de sociedades de todos os cantos do globo.

Captura Manual: É praticada em relação a todos os animais imóveis ou lentos, tanto em terra como em águas pouco profundas, sendo utilizada na busca de crustáceos, répteis, ovos (particularmente de pássaro) e insetos (gafanhotos consumidos na África) (LEROIGOURHAN, 1984b, p.58).

As flechas: São constituídas basicamente por três partes, a ponta, a haste (ou fuste) e o penacho. Suas dimensões podem variar segundo sua utilização ou em função do grupo que as elaborou, medindo desde cerca de vinte centímetros, como as utilizadas nas zarabatanas malaias, ou até atingir dois metros, como as da América tropical. O equilíbrio entre as partes é muito importante, geralmente o centro de gravidade se localiza perto do

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primeiro terço, podendo o penacho servir para corrigir qualquer desvio. O penacho é quase universalmente feito de penas (ainda que na Malásia e entre os Moi, este possa ser feito de folhas de palmeira, ou então como na África negra, que não possui qualquer tipo de penacho), o que irá vaiar é a forma como este é disposto na haste (LEROIGOURHAN, 1984, p.50-52). As pontas podem ser divididas em 3 grupos, os bancons (Imagem 34 a), possuindo morfologia globular, utilizados na Sibéria e entre os esquimós para atingir pequenos animais sem lhes estragar a pele. As pontas propriamente ditas (Imagem 34 b), e finalmente as com corte transversal ou bifurcadas (Imagem 34 c), que são bastante comuns na Ásia central e no Extremo Oriente (LEROI-GOURHAN, 1984, p.50-52).

Os arcos: Podem ser simples (Imagem 34 g, h, i), quando feito sob uma única peça de madeira, que são os mais comuns e encontrados em todas as partes do globo. Ou compostos (Imagem 34 j, k), quando resultam da união de várias partes, podendo ser elaborados de várias lâminas ou de placas de madeira, um exemplo são os arcos japoneses de bambu. Quanto a sua forma, podem ser classificados enquanto regular (Imagem 34 g), semi-reflexo (Imagem 34 h) ou reflexo (Imagem 34 i) (LEROIGOURHAN, 1984b, p.52).

Zarabatana: É uma arma bastante comum na Melanésia e na América tropical, seu projétil é uma pequena seta, na maioria das vezes envenenada, com alcance de até 20 m (quando feita de bambu e desprovida de ponta metálica) (LEROI-GOURHAN, 1984b, p.53).

As redes: Estas podem ser divididas em dois grandes grupos, as terrestres e as aquáticas. As primeiras podem ser fixas ou móveis, geralmente são utilizadas para caçar pássaros, lebres e perdizes ou então colocadas na entrada das tocas. As redes aquáticas (Imagem 34 q, r, s) podem ser divididas em dois conjuntos: as fixas e as móveis. As fixas são instaladas no início da pesca aprisionando o peixe que nelas se junta. Em água doce se utiliza delas tal como uma barragem, obrigando o peixe a sair por uma estreita passagem que o conduzem a uma bolsa. Já as móveis são deslocadas durante a utilização, podendo ser divididas segundo seu movimento em verticais, como por exemplo, as tarrafas circulares; ou as de movimento horizontal, como o covo ou rede de colher, que possuem

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formas extremamente variáveis e bastante utilizadas na Oceania e na Austrália (LEROIGOURHAN, 1984b, p.71-73).

Venenos: A preparação e uso de substâncias tóxicas desempenha um importante papel nos meios das ações mortíferas. Mais frequentemente são de origem vegetal, com as quais se untam as flechas de arcos, as de zarabatanas, as lanças, e por vezes, até mesmo as facas de arremesso. Já os de origem animal são mais raros, feitos a partir de venenos de serpente, sangue, fígado ou entranhas putrefatas, entrando na composição do veneno como quantidade suficiente para se obter uma pasta que adira a arma. Ainda neste conjunto podemos inserir o fogo, quando é utilizado para capturar a caça, ou os homens, assim como as substâncias fumígenas, ervas ou folhas de odor forte, cujo fumo intoxica as abelhas selvagens ou expulsa de suas tocas os animais fuçadores (Imagem 33) (LEROI-GOURHAN, 1984b, p.57-58).

Imagem 33 - Aborígenes Australianos ateando fogo ao mato para desentocar a presa (CLARK, 1969, p. 12).

Engodos: Deve-se entender por engodos todos os processos, objetos ou parte de objetos que, criando na mente do animal cobiçado a imagem de uma presa ou a impressão de segurança, o atraem a um dispositivo de captura. O engodo, portanto não passa de um

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órgão de sedução sempre completado por um dispositivo mortífero ou de captura que pode ser a mão humana. Sua eficácia baseia-se em três atitudes da presa, a simpatia, a gula e a indiferença, completadas por vezes, pela curiosidade ou pela combatividade (LEROI-GOURHAN, 1984b, p.61-62).

Armadilhas: Aqui iremos elencar três tipos básicos, as armadilhas de mola (Imagem 34 l, m), as de queda e as de recipiente (Imagem 34 n). As primeiras são aquelas cujo disparo acarreta na queda de uma parte móvel preenchida com pesos. Constituída por loisas simples, grandes ou pranchas que esmagam o animal ao caírem, servem tanto para caça miúda ou mesmo como para os grandes carnívoros, na África são capturadas hienas e os leopardos, e na Ásia aos ursos. As armadilhas de mola são compostas normalmente por um ramo ou um arco que funciona como órgão motor. As de recipiente são aquelas para encerrar a caça, quer para capturar viva, quer para matá-la mais facilmente. Os mecanismos de recipiente baseiam-se todos no sistema de alçapão: o animal ao entrar numa caixa ou numa gaiola liberta uma porta de guilhotina que fecha atrás de si (LEROIGOURHAN, 1984b, p.68).

Com esse sucinto inventário, além de percebermos que a atitude de reduzir a economia de caça e coleta a apenas um tipo de utensílio é sem dúvida uma tremenda simplificação. Indiretamente podemos perceber que a maior parte destes utensílios descritos são elaborados em materiais de origem orgânica, como a madeira e o osso, e por isso necessitam de uma gama de instrumentos de dureza maior para poderem ser produzidos, e no caso das sociedades caçadoras-coletoras, eram os instrumentos líticos. Isso já nos dá noção da variabilidade de instrumentos necessários para a produção de cada parte dos objetos citados. E ao perceber isso, compreende-se porque existe nos sítios arqueológicos associados a esses grupos uma grande quantidade de instrumentos com características variadas.

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Imagem 34- Utensílios empregados por sociedades caçadoras-coletoras do universo etnográfico para a aquisição de recursos alimentícios. Elaborado a partir das imagens e informações presentes nos inventários de técnicas préindustriais dos dois volumes de "Evolução e Técnicas" (LEROI-GOURHAN, 1984a e b).

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2 NORTEADORES TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1 Porque um estudo tecnológico?

Esta questão é frequentemente dirigida aos que se aventuram pelo complexo universo da tecnologia. De certa forma isso revela o lugar periférico que estes estudos ocupam no quadro cientifico brasileiro, sendo, portanto, preciso ressaltar seu papel enquanto fonte de conhecimento indispensável dentro das Ciências Humanas. O termo tecnologia, segundo Inizan et al. é reservado a uma abordagem de cunho conceitual da cultura material, fundamentado sob um estudo racionalizado das técnicas e dos gestos (1995, p. 13). Não devemos imaginar a tecnologia enquanto um complemento secundário ou menor do estudo do homem e nem mesmo reduzi-la a um mero tecnicismo limitando-nos a classificar os objetos como em uma coleção de curiosidades, pois assim, seu estudo teria um fim em si mesmo. É fundamental que os pesquisadores abram-se a critica dos testemunhos materiais e reconheçam a importância da tecnologia enquanto elemento constituinte da humanidade e como documento antropológico, histórico e sociológico, pois "the role of technics in the history of humankind and in the differentiation of societies is so obvious that no mythology, ideology or philosophy has managed to ignore it altogether" (SIGAUT, 2003 p.420). A questão reside no fato de que a tecnologia é tão banalizada em nossas vidas que periodicamente perdemos de vista sua importância e o quanto somos dependentes do mundo material que criamos ao nosso redor, já que: O grupo humano comporta-se no seio da natureza como um organismo vivo; tal como o animal ou a planta, para quem os produtos naturais não são imediatamente assimiláveis, exigindo antes a intervenção de órgãos que preparam os elementos, também o grupo humano assimila o seu meio ambiente através de uma cortina de objetos (utensílios ou instrumentos). Consome sua madeira através da enxó, a sua carne através da flecha, da faca, da panela e da colher. Envolto nesta película interposta ele alimenta-se, protege-se, descansa e se desloca. Diferentes das espécies animais, que possuem um capital fixo de meios de aquisição e de consumo os homens são todos sensivelmente iguais na sua nudez, aumentando por meio de atos conscientes a eficácia das suas unhas e da sua pele. O estudo desse involucro artificial é a tecnologia, as leis de desenvolvimento pertencem à economia técnica (LEROI-GOURHAN, 1984b, p. 253).

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Como vimos, não podemos cair no erro bastante comum de reduzir a tecnologia aos objetos derivados do período industrial, pois, por mais paradoxal que possa parecer, todos os produtos da mão humana são técnicos, visto que “a tecnologia, palavra precisa no vocabulário industrial moderno, estende-se progressivamente do aparelho de televisão ao sílex lascado” (LEROI-GOURHAN, 1984a, p. 231). Para compreendermos seu papel e importância enquanto documento, precisamos voltar nossos olhares ao intervalo de tempo que vai desde os dias atuais até a aurora do Gênero Homo. Deste modo, fica claro que tecnologia é a única fonte de conhecimento que dá conta da totalidade da história humana, uma vez que apenas ela acompanhou e testemunhou initerruptamente o processo que culminou com a nossa constituição biológica atual. Em relação ao comportamento das fontes em função do tempo, Leroi-Gourhan nos afirma o seguinte: [...] as tradições orais desaparecem com a última geração que as transmitiu, as tradições escritas depressa escasseiam, e o século XVI é já mudo para a grande maioria dos povos e são apenas os produtos das técnicas e da arte permitem recuar mais no tempo, sempre que as circunstâncias permitiram sua sobrevivência. A própria arte desaparece bem de pressa e para além dos -50.000 anos, somente as técnicas permitem subir a corrente humana até as suas origens, a um ou dois milhões de anos (1984a, p.11).

Além disso, não podemos perder de vista que um dos critérios definidores de humanidade é a produção de instrumentos, aliado a estação vertical, a face curta e mão desprendida da motricidade. Critérios que segundo Leroi-Gourhan (1985, p. 26) excluem completamente qualquer comparativismo com os primatas ou com os demais seres zoológicos. Assim sendo, não é atrevimento dizer que a tecnologia, expressa sob a forma dos testemunhos materiais, é onipresente em nossas vidas, pois “desde o nosso nascimento até à morte, e mesmo além, nós não escapamos da cultura material, nem mesmo por um breve momento” (WARNIER, 1999, p.6).

2.1.1 A perspectiva tecnológica.

É sem dúvida uma tarefa difícil traçar o desenvolvimento dos estudos tecnológicos no seio das ciências do homem, mesmo assim iremos realizar um breve relato acerca de seu desenvolvimento na França.

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Os estudos tecnológicos, como aqui os concebemos, tem origem na etnologia francesa ainda na primeira metade do século XX a partir dos trabalhos de Marcel Mauss e seus discípulos. Conforme Mauss (2004), mesmo que os estudos das técnicas fossem de origem francesa, tanto os Estados Unidos e a Alemanha haviam desenvolvido verdadeiras escolas destinadas a seu estudo. Enquanto que na França, mesmo nos seus famosos estabelecimentos científicos, como o Conservatoire des arts et métiers, o estudo destas, e por consequência a ciência da qual elas seriam um capítulo, não possuiria seu lugar de merecimento. Segundo Boëda:

La technologie telle qu’elle fut développée par ses fondateurs, Mauss (1947) et Leroi-Gourhan (1943, 1945, 1964, 1965, 1983), avait pour objectif de replacer l’Homme au coeur du débat à partir de ce qui nous était accessible : sa réalité technique. Non pas une technique technicienne qui serait un regard de « l’intérieur de l’objet », mais une technique englobant l’Homme et son milieu extérieur dans une relation symbiotique où la culture, qui en est sa traduction, est le médiateur, créant ainsi ce que Leroi-Gourhan appelle le milieu extérieur (BOËDA, 2013, p.27).

Mauss defendeu que a tecnologia deveria ser uma ciência e como tal pretenderia "à juste titre étudier toutes les techniques, toute la vie technique des hommes depuis l’origine de l’humanité jusqu’à nos jours" (2004, p. 434). Era preciso demarcar qual era o papel desta ciência e "combien ele est essentielle pour toute étude de l’homme, de sa psyché, des sociétés, de leur économie, de leur histoire, du sol même dont vivent les hommes et, par conséquent, de leur mentalité" (MAUSS, 2004, p. 434). Leroi-Gourhan (1949), discípulo de Mauss, já alertava, na década de 1940, a necessidade um estudo rigoroso e científico dos "fatos da atividade material" e para isso seria preciso que os pesquisadores abrissem-se à crítica dos testemunhos materiais, pois para ele a tecnologia seria uma disciplina indispensável nas Ciências do Homem, que teria como vocação desmascarar falsos testemunhos cuja universalidade não significaria nada. Um exemplo disso seria o do sabre "que em todos os seus tipos se concretiza num conjunto harmonioso, apresenta, contudo numerosas formas, sendo umas condicionadas pela matéria e as outras pelo uso específico da arma, os costumes da esgrima local, as tradições mentais, etc." (LEROI-GOURHAN, 1984, 257). Segundo Leroi-Gourhan (1947), a crítica dos testemunhos materiais necessitaria do desenvolvimento simultâneo de três vias inter-relacionadas: A sistemática, que como em todas as ciências seria periodicamente alvo de revisões. A crítica interna dos documentos. E a

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terceira, a via histórica, que seria uma critica estendida das técnicas, que desenrolaria diretamente na história.

2.2 André Leroi-Gourhan e seu modo original de pensar

André Leroi-Gourhan (1911-1986) foi um etnólogo e pré-historiador francês, considerado um renovador dos estudos de pré-história e possuidor de um pensamento extremamente original, marcado por sua multidisciplinaridade. Este último aspecto citado, pode ser relacionado à própria formação acadêmica diferenciada do renomado autor. Conforme Françoise Audouze, Leroi-Gourhan perdeu o interesse pela educação formal cedo, deixando aos 14 anos o secundário e indo trabalhar em uma biblioteca, sempre se considerou um autodidata, porém isso não impediu que recebesse muitos diplomas. Iniciou sua carreira como filólogo, obtendo em 1930 a graduação em russo com 20 anos, e nos anos seguintes em chinês e humanidades. Em 1945 defendeu sua dissertação em etnologia para o doutorado de humanidades, e nove anos mais tarde apresentou uma dissertação em paleontologia (2002, p. 280). Em seu caminho nas ciências do homem, fez parte e testemunhou a efervescência de grandes debates, o que certamente marcou profundamente seu pensamento. His years as a student of Marcel Mauss and Paul Rivet before the Second World War were crucial. Leroi-Gourhan participated in the intense theoretical debates of the times as well as their direct application to the reorganization of the Musée de l’Homme. At the Musée de l’Homme, Leroi-Gourhan followed the seminars of these two great social anthropologists together with a generation of bright students who would later become major social anthropologists, such as Claude Lévi-Strauss, Marcel Griaule, André-Georges Haudricourt, Georges-Henri Rivière, and Jacques Soustelle (AUDOUZE, 2002, p. 280).

Segundo F. Audouze, Leroi-Gourhan (2002, p. 278-279), está longe de ser famoso no mundo anglo-saxão, como alguns de seus contemporâneos como Claude Lévi-Strauss ou mesmo François Bordes, seu impacto maior foi sem dúvida no velho continente. Isto estaria associado, a muitos fatores, como por exemplo, seu principal trabalho "O gesto e a palavra" de 1964, ser traduzido para o inglês apenas em 1993. Ou então ao seu estilo de escrita, com uma ausência de definições epistemológicas, combinado descrições em vez de definições assim como discussões em progressão dialética, tornando sua leitura, para muitos, difícil. E

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por fim, sua abordagem que pegava emprestado20 conceitos da filosofia, antropologia social, paleontologia, pré-história, tecnologia e biologia, teve como resultado que os antropólogos funcionalistas de língua inglesa, preferiram escolher como oponente Lévi-Strauss, enquanto na arqueologia, Binford se digladiava com François Bordes. Isso tudo associado ao desenvolvimento da "Nova Arqueologia" nos anos 60 e 70, fez com que os arqueólogos norte americanos se preocupassem com suas próprias inovações teóricas, minimizando as influências vindas da Europa. Leroi-Gourhan buscava uma abordagem global para a diversidade da humanidade, visando compreender o fenômeno humano em sua totalidade. E por insistir que para estes estudos era necessário a inserção de uma dimensão diacrônica, acabou ficando aparte de muitos dos pesquisadores da época. Isso fica explicito na seguinte passagem:

Périodiquemente, on perd de vue que que l'etnologie est une Science historique, au même titre que les Sciences Naturelles, et qu' elle tend, non formallement àl'histoire des États et des Hommes, mais à la mise en situations sucessives du complexe humain. [...] il fault revenir à une conception historique des Sciences de l'homme (LEROI-GOURHAN, 1949, p.435).

Seu enfoque multidisciplinar emergiu em um momento onde muitos acadêmicos buscavam delimitar as fronteiras entre cada disciplina. Entretanto, ele estava convencido da necessidade de existência de uma ciência holística da humanidade, refutando a criação de barreiras entre as disciplinas (AUDOUZE, 2002, p. 28). Para além de seu pensamento multidisciplinar, A. Leroi-Gourhan assume um postura distinta da maior parte dos pré-historiadores de seu tempo, indo de frente as ideias difusionistas, que segundo Trigger, alimentavam um ceticismo frente ao potencial criativo do homem, por acreditarem que o comportamento humano era predominantemente determinado biologicamente (2004, p.147). Pode-se perceber nas principais obras de Leroi-Gourhan, tais quais "Evolução e técnicas" (1984a, 1984b); "O gesto e a Palavra" (2002a, 2002b) e "Os Caçadores da pré-história" (2001), que para o autor a história humana é marcada não por uma estática criativa, mas sim por um grande potencial criador e que permite ao homem emancipara-se constantemente, tanto das imposições biológicas quanto das de cunho social.

20

Mas que sempre se manteve coerente dentro de sua diversidade.

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2.3 O comportamento técnico

Considera-se que o comportamento técnico do homem, se manifestaria em três níveis, o específico, o sócio-étnico e o individual (LEROI-GOURHAN, 2002, p. 21). O primeiro estará relacionado aos comportamentos ligados à natureza biológica, herdados de nossa constituição enquanto homo sapiens, e frutos de um longo processo evolutivo que culminou em nossa estrutura biológica atual. Por exemplo, nos níveis inferiores do sistema nervoso e no sistema simpático encontramos comandos reguladores de comportamentos elementares. Com isso o leitor deve estar perguntando-se se tais atos poderiam refletir algum tipo de manifestação instintiva. Quanto a isso acreditamos que a citação a seguir responde claramente a indagação: Com efeito, sendo o homem um ser que a visão e a audição são dominantes, os seus atos são geneticamente diferentes dos de um animal que tivesse o olfato e o tato como referências fundamentais; se o instinto existe de fato na execução de atos em relação aos quais os instrumentos se encontram geneticamente condicionados, então uma parte importante da atividade humana é instintiva (LEROI-GOURHAN, 2002, P.18).

O nível específico serve como um plano de fundo, onde a educação imprime os dados da tradição, porém, é ultrapassado ainda nos primeiros anos de vida, por um comportamento socialmente construído. No nível sócio-étnico a inteligência humana se manifestaria de uma maneira única, forjando um organismo coletivo, embasado em uma memória socialmente construída. Para entendermos isso, é preciso ter em mente, que ao nível do homo sapiens presenciamos cada vez mais a passagem de uma evolução cultural regida pela ritmicidade biológica, para uma dominada pelos fenômenos sociais (LEROI-GOURHAN, 2002a, p.144). Em relação a isso acabamos por presenciar: [...] a aparição de um dispositivo social baseado em valores culturais, que fracionam em etnias a espécie zoológica humana deixou-se finalmente entrever, implicando um tipo novo de relação entre o indivíduo e o dispositivo de agrupamento onde vai buscar sua eficácia (LEROI-GOURHAN, 2002a, p.147).

No nível individual, mais uma vez a espécie humana apresentaria um caráter único, a capacidade de se emancipar simbolicamente tanto dos laços específicos quanto dos sócioétnicos. Isso está diretamente relacionado, conforme Leroi-Gourhan (2002 p. 17), com a evolução do nosso sistema nervoso onde os trajetos enriquecer-se-iam progressivamente com

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as novas séries de elementos conectivos aptos a relacionar situações experimentadas e as situações novas. A capacidade de emancipação dos laços sócio-étnicos é de fácil e rápida compreensão, sobretudo em nossa sociedade "moderna", onde os ritmos cotidianos mudam continuamente e vivenciamos a cada geração transformações culturais profundas. Como o nosso modo de vestir, pensar falar, que se difere largamente dos de nossos pais ou mesmo avós, podendo situar ao passo de cada uma delas uma emancipação parcial em relação às anteriores. Do mesmo modo ocorre com o nível específico, graças ao magnífico advento da tecnologia no gênero homo, que permitiu desde os primórdios da humanidade que nos libertássemos de certas limitações biológicas. Pois diferentemente dos demais seres zoológicos, que possuem todos seus meios de aquisição de recursos e de sobrevivência biologicamente condicionados, os homens revestiram-se de um invólucro tecnológico para assimilar os recursos do meio natural. Para sermos mais claros, os homens em suas estruturas físicas são relativamente frágeis e dispõem unicamente do corpo como meio técnico, desta forma a tecnologia assume o papel de potencializadora de suas aptidões, não sendo à toa que Jean-Pierre Warnier irá considerar os objetos como uma "prótese": Uma prótese, conforme a acepção médica do termo, é um aparelho – dentadura ou perna mecânica – que vem substituir um órgão incapaz ou ausente. No caso do esquema corporal (ou “síntese” ou “condutas motoras”), não há ausência nem incapacidade, mas sim a falta essencial da cultura material, a incompletude constitutiva do sujeito humano forjado por quatro milhões de anos de um processo de hominização mediado pela relação dinâmica com a matéria, com o próprio corpo e aqueles de seus congêneres. O objeto pode ser assim uma prótese de condutas motoras em todas as circunstâncias nas quais, através de um sistema de controles dinâmicos, o sujeito “forma corpo” com o objeto (WARNIER, 2003, p. 5).

Para Warnier (2003) cada objeto possui uma "dinâmica" própria, que decorre de sua constituição enquanto objeto técnico. Para utilizarmos eficazmente um objeto é precisamos "incorporar sua dinâmica" a tal ponto de "formar corpo com o objeto". Quando isto ocorre o indivíduo desenvolve um estereótipo motor relacionado às maneiras de utilização de cada objeto, pois os atos tornam-se extremamente maquinais exigindo apenas um mínimo de apelo reflexivo.

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2.4 Compreender a ação técnica: o estudo das cadeias operatórias.

O termo cadeia operatória (chaîne opératoire no original) pode ser visto enquanto um método analítico voltado para a interpretação da tecnologia cultural a partir da decomposição da ação técnica em sequências e operações, permitindo identificar estratégias e escolhas que traduzem conceitos das sociedades que as desenrolaram. Atualmente este conceito pode ser definido enquanto: [...] totalidade das etapas técnicas, desde a aquisição da matéria prima até o seu descarte, passando pela sua transformação e utilização. A análise tecnológica também nos permite determinar o saber fazer (savoir faire, knowhow) e os conhecimentos (connaissance, knowledge) necessários para a realização da cadeia operatória. Cada etapa técnica reflete conhecimentos técnicos específicos (BOËDA, 2006, p. 43).

Contudo tal conceito possui um desenvolvimento próprio e percorreu um longo caminho, desde sua origem na etnologia francesa até os dias de hoje. É possível situar as raízes da cadeia operatória no Manual de Etnografia de Marcel Mauss. Pode-se assinalar essa noção em pelo menos dois momentos de sua obra, um primeiro, quando o autor fala sobre as técnicas mecânicas21 e explica seus princípios de observação: Tout objet doit être étudié : 1° en lui-même; 2° par rapport aux gens qui s'en servent; 3° par rapport à la totalité du système observé. (...)Étude des différents moments de la fabrication, depuis le matériau grossier jusqu'à l'objet fini. On étudiera ensuite de la même façon le mode d'emploi et la production de chaque outil (MAUSS, 1926, p. 27).

E um segundo momento onde este estava explicando a dificuldade de distinguir fenômenos estéticos de fenômenos técnicos:

[...] une technique est toujours une série d'actes traditionnels; une série, c'est-à-dire un enchaînement organique destiné à produire un effet qui n'est pas seulement un effet sui generis, comme dans la religion, mais un effet physique (MAUSS, 1926, p. 65).

Contudo o primeiro a utilizar termos como "Chaîne de fabrication" ou "d'opérations" será Marcel Maget, ele insistiria na necessidade de decompor as atividades técnicas em

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Mauss utiliza o termo "técnicas mecânicas" que refere-se diretamente a aquelas relacionadas aos utensílios, instrumentos e máquinas, e que seriam opostas aquelas físico-químicas, mesmo as do corpo (MAUSS, 1926).

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"cenas", como em um filme, até encontrar o "gesto elementar", ou o "átomo da ação técnica" (DESROSIERS, apud, MAGET, 1991). Leroi-Gourhan insistirá na necessidade de compreender as cadeias operatórias a partir de uma inter-relação entre o patamar conceitual e o operacional. Segundo ele, enquanto o comportamento operatório animal seria predominantemente hereditário, os homens mesmo sendo seres zoológicos, seriam criadores de uma memória social.

A formação das cadeias operatórias leva, nas suas diferentes etapas, o problema entre o indivíduo e a sociedade. O progresso está submetido à acumulação das inovações, mas a sobrevivência do grupo é condicionada pela inscrição do capital coletivo, apresentado aos indivíduos no âmbito de programas vitais de caráter tradicional. A constituição das cadeias operatórias baseia-se no jogo de proporções entre a experiência, que faz eclodir no indivíduo um condicionamento por "ensaio e erro" idêntico ao do animal, e a educação, na qual a linguagem ocupa um lugar variável, mas sempre determinante (LEROI-GOURHAN, 2002, p. 25).

O autor irá distinguir duas modalidades de cadeias operatórias, as "maquinais" e as "periódicas" ou "excepcionais". Tendo em vista que todas as ações que o sujeito pratica, são inscritas em sua memória operatória, variando segundo sua intensidade, pressupondo diferentes níveis de intervenção intelectual e relações indivíduo-sociedade, quer tratem-se de práticas quotidianas, periódicas ou excepcionais.

Cadeias operatórias maquinais: Constituídas de práticas elementares de cunho vital, a partir de sequências de gestos estereotipados que garantem a sobrevivência do indivíduo enquanto membro de uma coletividade. A formação destas cadeias de atos tradicionais dá-se nas primeiras partes da vida sob a influência da aprendizagem por imitação, da experiência por tentativa e pela comunicação verbal. Estes tipos de cadeias exigem uma fraca intervenção consciente, desenvolvendo-se não no âmbito do automatismo, pois este implicaria em uma ausência de consciência, mas sim como em uma penumbra psíquica, da qual o indivíduo só sai mediante um imprevisto (LEROI-GOURHAN, 2002 p.27).

Cadeias operatórias periódicas ou excepcionais: São elas que marcam radicalmente a separação da sociedade humana do restante do mundo zoológico. Está relacionada com aquelas atividades que são desenvolvidas sazonalmente ou mesmo uma única vez em toda a vida. Por exemplo, a construção de um edifício, a elaboração de um determinado ritual, a preparação de ciclos agrícolas, etc. Contudo, nas sociedades animais, existem tais

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atos periódicos, mas estes estão submetidos a ritmos estacionais ou pela maturação fisiológica.

Mais uma vez aqui a linguagem assume um papel determinante, como forma de fixação de tais cadeias operatórias. Um exemplo são as sociedades sem escrita que utilizam-se de provérbios, ou narrativas, geralmente reservadas a memória de alguns indivíduos como uma forma de transmitir o conhecimento de uma geração para outra (LEROI-GOURHAN, 2002 p.30). Segundo Hélène Balfet, este conceito de cadeia operatória que devemos a Mauss, Maget e Leroi-Gourhan pode ser visto enquanto um encadeamento de fatos técnicos, cujas operações são articuladas como elos de um processo, com um objetivo próprio, de modo que o observador possa relacionar um ato técnico, mesmo isolado da série que é originário (1991, p.12). O uso do conceito de cadeias operatórias, por pré-historiadores, sobretudo aqueles que se debruçam sobre as indústrias líticas está relacionado com a mudança de uma perspectiva tipológica para uma tecnológica. Onde o foco principal não seria demasiadamente o objeto final como indicador crono-cultual, mas sim os processos técnicos que estariam envolvidos em sua produção. Na França, até então os estudos de pré-história eram dominados pelas abordagens tipológicas como de François Bordes. Porém com o impacto dos trabalhos de A. LeroiGourhan, aliado os estudos de lascamento experimental, ocorrerá definitivamente uma consolidação e renovação dos modos de perceber a pré-história e mais precisamente as indústrias líticas. Segundo Karlin, Bodu e Pelegrin, o etnólogo pode observar a construção das cadeias operatórias antes de interpretá-la, já o pré-historiador deve primeiro interpretá-las para depois as reconstruir. Isso levaria a necessidade de organizar os vestígios arqueológicos dispersos, os quais traduzem traços de uma atividade técnica de modo coerente, não apenas a relação entre os elementos conhecidos, mas também daqueles desconhecidos, tal como um puzzle, onde cada peça está atrelada a outra em sua leitura (1991, p.105). Dentro dos estudos líticos a noção de cadeia operatória, não pode jamais ser confundida com a de reduction sequence, pois existe uma grande diferença semântica e conceitual entre as duas, pois:

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The term “reduction sequence” implies a subtraction of matter, which is appropriate for chipped stone and more broadly for other types of lithics processing. It is inappropriate, however, when dealing with ceramics, basketry, or metallurgy, where adding matter is part of the production process (AUDOUZE, 2002, p. 287)

Assim a utilização do conceito de cadeia operatória pelos estudiosos de tecnologia lítica pode ser atribuída à convergência de vários fatores de mudança, tanto nos domínios arqueológicos como nas disciplinas adjacentes, onde se pode destacar a melhoria nas técnicas de escavação, as remontagens e a prática da arqueologia experimental.

2.5 Técnica e Método

Aqui iremos reforçar uma distinção fundamental entre dois termos, técnica e método, que não podem ser tomados como sinônimos. A distinção entre os dois conceitos já havia sido estabelecida em 1965, em um colóquio de pré-historiadores realizado na Áustria, organizado pela Wenner-Gren Foundation (INIZAN, et. al, 1995, p.30). Em primeiro plano temos as técnicas, digo em primeiro plano, porque estas podem ser percebidas como meios de ação direta sobre a matéria. Para Mauss, "les techniques se définiront comme des actes traditionnels groupés en vue d'un effet mécanique, physique ou chimique, actes connus comme tels" (MAUSS, 1926, p. 22). Porém, para Leroi-Gourhan (1984a, p. 39), antes de abordarmos as técnicas enquanto conjuntos destinados à fabricação, aquisição e consumo é preciso pensá-las enquanto "meios elementares de ação sobre a matéria". Primeiramente viriam as preensões, por serem as bases da tecnicidade humana, com o corpo assumindo o papel de primeiro meio técnico do homem. Em seguida viriam as percussões, que se caracterizam como aquelas ações onde o homem coloca em encontro o utensílio e a matéria. E por fim os elementos que estendem e complementam a as atividades técnicas do homem, como o fogo, a água e mesmo o ar. Por método, entendemos:

[...] l'agencement suivant une marche raisonnée d'un certain nombre de gestes exécutés chacun grâce à une (ou des) technique. Le terme méthode implique le plus souvent un schéma conceptuel élaboré menant à l'obtention de produits prédéterminés, qu'il s'agisse de façonnage ou de débitage (INIZAN, et. al, 1995, p.30).

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O método, desta forma, assume um papel de gestor da ação técnica a ser desenvolvida, ou seja, como um mediador que garante a concretização do objetivo desejado conforme a coerência interna, ordenando a ação transformativa. Como afirma Boëda (1994, p.15), podemos pensá-lo enquanto uma ligação entre a representação abstrata dos objetivos e sua concretização.

2.6 O mito de Procrustes e o problema da tipologia

Procrustes era um bandido da mitologia grega, que vivia no caminho que levava de Mégara a Atenas. Ele obrigava os viajantes a deitarem em seu leito, se a pessoa fosse muito grande, ele cortava seus pés, se fosse muito pequena, a esticava para que se adaptassem a este. Na verdade, Procrustes possuía dois leitos e induzia viajantes a deitarem-se naquele inversamente proporcional a sua estatura de modo que nunca alguém saísse ileso (GRIMAL, 2008, p.454). Do mesmo modo vemos a tipologia, com suas imensas listas de atributos extremadamente limitadoras, nas quais os pesquisadores são praticamente obrigados a encaixar seus objetos de estudo. A tipologia pode ser de uma forma geral definida enquanto: [...] um conjunto ordenado de tipos aos quais se reduzem os objetos a serem classificados. Estes tipos são criados a partir dos atributos (= características) considerados relevantes, pelo autor da classificação, para tratar do seu universo de pesquisa (PROUS, 1986, p. 2).

Esta abordagem está fundamentada de um modo geral na suposta inter-relação entre morfologia e função nos artefatos, onde os "tipos" corresponderiam então a uma suposta realidade objetiva, de cunho universal22. Além disso, esta classificação deveria manter certo paralelismo com a sistemática das ciências naturais, sendo considerados no entanto como representantes de unidades culturais e cronológicas. Isso fica explícito claramente no clássico manual de Annette Lamming-Emperaire de 1967, onde a autora afirma que a tipologia possibilitaria o estudo da evolução de uma dada cultura nas camadas de um sítio, assim como a delimitação geográfica de áreas culturais (p.13).

22

"(...) os tipos gerais são praticamente universais, aparecem em todas as culturas e não caracterizam nenhuma" (LAMMING-EMPERAIRE, 1967, p.15).

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Segundo Leroi-Gourhan (1981, p. 219), tais facas, machados, raspadores, etc, jamais haveriam desempenhado as funções que lhe foram atribuídas, fazendo com que o vocabulário arqueológico ficasse carregado de expressões errôneas, mas formadoras de imagens que a tradição mantém. Desta maneira corre-se o risco de se atribuir uma "funcionalidade fantasma" (BOËDA, 2013, p. 27) aos artefatos o que consequentemente gera dramáticas implicações ao restante das interpretações. Prous (1986), mesmo propondo uma forma de análise tipológica, explicita talvez uma das maiores limitações desta forma de estudo. Com isso o autor faz o seguinte questionamento: "... deve a definição do tipo ser muito precisa e rigorosa? Neste caso, haverá muitas peças "não classificadas", prejudicando a operacionalidade da tipologia. Será muito ampla? Os tipos perderão valor de "revelador" cultural e comportamental" (PROUS, 1986, p.3). Contudo não podemos esquecer que todo o autor, de certo modo, é refém de seu tempo, e a tipologia foi durante décadas um marco nos estudos de pré-história, principalmente para os histórico-culturalistas. Porém hoje, esta forma de análise mostra-se insuficiente, e mesmo que tenha tido, até certo ponto, um papel importante na classificação geral dos materiais arqueológicos, não dá mais conta da complexidade que reveste as coleções arqueológicas, em nosso caso, mais especificamente líticas.

2.7 Os esquemas de débitage

Como o presente trabalho, fundamenta-se no estudo dos processos de débitage, é conveniente explicitar com clareza como a concebemos, assim como irão ser interpretados seus produtos. Convencionalmente podemos definir a débitage enquanto "une action qui consiste à fractionner la matière première afind'obtenir des supports" (INIZAN et all, 1995, p.59). Não sendo aplicável aos casos de quebra, mesmo esta sendo intencional, ficando reservada ao processo de obtenção de suportes, quer por percussão quer por pressão. Em consequência a débitage irá separar a matéria prima em duas categorias complementares de objetos técnicos, os núcleos e os produtos de débitage. Algumas etapas principais passam geralmente por uma formatação da superfície de débitage ou do plano de percussão, depois por uma fase inicial, uma optimal e posteriormente

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uma final, podendo ao longo do processo haver reformatações e nova preparação. Portanto os produtos de débitage podem ser classificados segundo seu papel na cadeia operatória: lascas de formatação, lascas de preparação, lascas suportes e lascas residuais.

2.7.1 Como pensamos os núcleos

Para a identificação dos sistemas de produção nas indústrias líticas, mais especificamente nos de débitage, os núcleos assumem um papel particularmente importante, pois a estruturação e concepção volumétricas destes condicionam a gama de produtos a serem obtidos. De uma forma mais clássica, os núcleos são vistos como aqueles blocos de matériaprima que portam em sua superfície os negativos das lascas (ou lâminas) que lhe foram destacadas. Não importando sua matéria prima, os métodos e técnicas de débitage empregados assim como a natureza de seu suporte (INIZAN et all, 1995, p.59). Neste trabalho preferimos utilizar uma concepção estrutural de núcleo, inaugurada por Eric Böeda (2013), um pouco distinta, da anteriormente citada, acima de tudo, por responder mais satisfatoriamente às problemáticas das coleções líticas de Quarai. Segundo o autor, para conseguirmos os produtos desejados, basicamente o núcleo precisa ser configurado, apresentando uma superfície de plano de percussão e uma superfície de débitage adjacente que formem um ângulo igual ou inferior a 90º e apresentar uma relação direta entre seu volume, os produtos e a quantidade de retiradas buscadas (BÖEDA, 2013, p. 83). O modo de pensar os núcleos, proposto por INIZAN et all, (1995), por mais tecnológica que seja sua posição, ainda conduz a pensarmos estes, de um modo um tanto quanto tradicional,

onde os núcleos são vistos enquanto a integralidade do bloco, e

classificados morfologicamente a partir desta. Enquanto que Böeda irá relativizar dita integralidade (bloco = núcleo), afirmando que todo o bloco de matéria prima não pode ser sistematicamente assimilado enquanto núcleo, pois para ele o "volume útil/configurado" é representante do próprio núcleo, pois este é o volume necessário e suficiente para a realização e para a obtenção dos produtos desejados (2013, p. 83).

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É preciso ter em mente que os núcleos que estudamos, são resíduos de débitage, e chegam até nós geralmente em sua última fase de exploração, desta forma, seu estudo não pode estar dissociado dos produtos brutos e dos suportes que lhe são procedentes (INIZAN, et. al. 1995, p.60). Nesta lógica um bloco pode portar um ou mais núcleos em sua superfície ou então ser configurado de modo que seu volume total seja o próprio núcleo. Com isto os núcleos podem ser classificados em dois conjuntos, segundo diferentes concepções de configuração dos blocos, aqueles de estrutura adicional e aqueles de estrutura integrada.

Núcleos de estrutura adicional ou abstrata: Neste caso o bloco a ser "debitado" é composto por dois subconjuntos independentes, portando um volume útil, que é o núcleo propriamente dito, e um volume residual, não útil, ou seja, que não recebeu investimentos técnicos (BÖEDA, 2013, p. 83). Este conjunto de núcleos engloba os volumes úteis de Tipo A, B, C e D. Estes podem ser vistos enquanto entidades mistas compostas de duas subunidades independentes, uma o "volume útil" e a outra "inerte ou residual". Porém há possibilidades desta estrutura "inerte" ser novamente investida para a realização de um novo esquema de débitage, não havendo nenhuma ligação direta com a primeira, portanto são independentes. Sendo como uma exploração de volumes sucessivos, mais precisamente uma adição de esquemas operatórios (BÖEDA, 2013, p. 97).

Núcleos de estrutura integrada ou concreta: Este conjunto abrange os volumes úteis de tipo E e F. Neste caso o "volume útil" é igual ao volume do bloco a ser debitado. Fazendo com que sejam integradas séries de critérios técnicos de configuração, de modo que toda a estrutura esteja inter-relacionada (BÖEDA, 2013, p. 88). Desta forma, torna-se uma mesma entidade integrada em uma sinergia produtiva, onde as características tecno-funcionais dos instrumentos já são em sua maioria obtidas durante a produção (BÖEDA, 2013, p. 132).

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2.7.2 O processo de concretização e o estado de evolução estrutural

Conforme Boëda, o processo de concretização, assim como para o utensílio, conduzirá ao que é chamado por Deforge de linhagem técnica. Esta linhagem pode ser percebida enquanto um conjunto de objetos que tem a mesma função de utilização e funcionam mediante um mesmo princípio. A noção de princípio é uma ferramenta de análise que proporciona a percepção de uma dada linhagem. Para a pré-história, mais especificamente no material lítico, pode ser um princípio de produção (débitage/façonnage), um caractere estrutural, de produção de lâminas, de suportes mistos, ou ainda modalidades de funcionamento (BÖEDA, 2013, p. 90-91). Quando percebida na longa duração, podemos perceber ciclos (sucessivos e/ou contemporâneos) de transformação das linhagens de objetos. Em um plano macroscópico, cada linhagem passa de uma estrutura abstrata para uma concreta, onde o ritmo "evolutivo" de cada linhagem é particular ao seu próprio ciclo. Sendo o desenvolvimento de cada um destes ciclos, sua frequência, sua interrupção, sua retomada, expressões socioculturais (BÖEDA, 2013, p. 91). E. Böeda, irá estabelecer para a débitage 6 níveis de estruturação, capazes de responder a uma demanda de suportes cada vez mais estruturados, que refletirá ao mesmo tempo diferentes graus de concepções de débitage, próprios de cada grupo e cada cultura (BÖEDA, 2013, p. 91). No que se refere a isso, o autor ira apontar que esta a evolução estrutural dos núcleos responderia na verdade paralelemente a uma dos instrumentos, portanto não existiria um, mas dois processos de concretização, não necessariamente sincrônicos, um sobre os instrumentos, e outro sobre os meios de produção (BÖEDA, 2013, p. 92).

2.7.3 Os sistemas de débitage

Volume útil de tipo "A": Tem como objetivo principal a obtenção de um gume, independentemente dos critérios técnicos, ou o tipo de suporte obtido, portanto, o fundamental é produzir um fio incisivo. Para a realização deste objetivo, existiriam duas modalidades de débitage. Uma primeira que não privilegiaria nenhuma parte específica do bloco, sendo a produção do suporte cortante obtido por percussões tecnicamente pouco ou mal controladas. A segunda maneira responderia a um esquema operatório

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simples, que levaria em conta um plano de percussão e uma superfície de lascamento adjacente com angulação menor que 90º.

Volume útil de tipo "B": Este permite uma série de retiradas recorrentes, sem que a superfície de débitage possua previamente nenhum critério técnico suscetível de criar normalizações morfológicas ou técnicas. Esta recorrência vai pela primeira vez permitir configurar alguns critérios do gume, como o comprimento, a inclinação e sua morfologia.

Volume útil de tipo "C": Parte da escolha de uma superfície de débitage com os caracteres de predeterminação e de convexidade naturalmente presentes no bloco. Deste modo, sua inicialização consiste em escolher uma superfície de débitage propícia a obtenção instantânea dos produtos desejados, sem intervenção, a não ser na superfície de plano de percussão, mas que também pode ser natural. Podendo ser obtido um suporte por volume útil ou uma série de 2 ou 3 retiradas.

Volume útil de tipo "D": Nesse caso, o volume útil é objeto de uma preparação, diferentemente do tipo "C" onde são aproveitadas as características naturalmente presentes, agora o volume antes de ser "debitado" precisa ser preparado. Este "manejo" ocorrerá preferencialmente na superfície de débitage, e eventualmente sobre a superfície do plano de percussão. Conforme os objetivos do lascador, este pode ser investido parcialmente ou mesmo totalmente, a partir de séries de retiradas subsequentes, mantendo o controle para manter-se operacional.

Volume útil de Tipo E: Aqui está em jogo a adoção de uma recorrência de retiradas organizadas, que permitem colocar no núcleo os critérios de convexidade necessários para a obtenção dos suportes buscados. Para isso o bloco precisa ser explorado pela mesma gama de retiradas, do contrário pode perder seus caracteres predeterminantes, e modificar sua estrutura volumétrica operacional.

Volume útil de Tipo F: Consiste em um planejamento prévio da integralidade do bloco a fim de lhe conferir critérios técnicos particulares, de modo a proporcionar uma dimensão preditiva as características técnicas e morfológicas das retiradas do porvir. Aqui, o volume total do bloco confunde-se com o volume útil preparado prestes a ser debitado,

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sendo este em sua integralidade o próprio núcleo. Assim é possível distinguir claramente dois momentos, uma fase de inicialização e uma de exploração global do núcleo. Dentre as concepções volumétricas deste grupo as mais conhecidas são o Levallois e também algumas concepções laminares do paleolítico superior e neolítico.

2.8 Como pensamos os instrumentos

Todas as operações de lascamento convergem para um objetivo específico, a produção de instrumentos (INIZAN et al. 1995, p. 29). O termo instrumento, conforme Karlin & Pelegrin (1997, p. 823), é empregado geralmente àqueles objetos produzidos pelo homem com finalidade de prolongar e especializar a funcionalidade das mãos, tendo em vista um objetivo técnico a cumprir. Podendo serem compostos por um ou vários elementos, produzidos por diferentes métodos, apresentarem retoques ou apenas macro e/ou micro traços de utilização. O conceito de instrumento está relacionado: [...] à toute pièce dont nous pouvons assurer l'utilisation, sans prétendre à l'identification d'une fonction. Il s'agit de pièces retouchées sur support débité (exemple : grattoir sur lame) ou sur support non débité (exemple : racloir sur plaquette). Il s'agit de pièces brutes de taille dont l'utilisation est prouvée par la tracéologie (exemple : éclat ayant servi à découper de la viande ). Il s'agit d'"objets" naturels modifiés par des traces macro- ou micros copiques d'utilisation ou d'emmanchement. Il s'agit de pièces lustrées intentionnellement, avec ou sans retouche. Il s'agit d'outils dont on sait qu'ils servaient à fabriquer des outils de pierre dure (percuteur, boucharde, punch, etc.) (INIZAN et al. 1995, p. 154).

A partir das definições acima, é possível perceber que os instrumentos não podem ser reduzidos aquelas peças retocadas sobre suportes debitados ou não debitados, mas que muitas peças são identificadas enquanto instrumentos por apresentarem micro ou macro traços de utilização em seus gumes ou superfícies. Esta utilização de superfícies obtidas durante o lascamento não necessariamente deve ser confundida como sinônimo de simplicidade nos conceitos de lascamento, visto que a ausência de trabalho de retoque em um suporte pode indicar na verdade que a estruturação de todas as características (como: inclinação e morfologia do gume; volume, forma e dimensões do suporte) da peça foram previamente elaboradas ainda na configuração do núcleo, a partir de uma combinação específica de negativos condicionantes.

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Estes traços de utilização não apenas possibilitam evidenciar a direção dos gestos, mas também as características dos materiais utilizados. A natureza dos traços varia em função de diferentes fatores, como a dureza do material que o instrumento é feito, a forma da parte ativa, o tempo de utilização, a força aplicada, a velocidade de uso e o ângulo de utilização da peça (SEMENOV, 1964). Segundo S.A Semenov a utilização enquanto um processo físico pode ser dividida basicamente em duas categorias. Uma primeira que engloba aqueles traços mais destacados de alteração da superfície de utilização, como o desprendimento de componentes do gume, descoloração, estilhamentos, criação de "cicatrizes", "dentes" e quebras. Enquanto a segunda compreende aqueles traços que não podem ser percebidos a olho nu, sendo unicamente evidenciáveis a um nível microscópico, como micro-polimentos e estriamentos, que não apenas ajudam na identificação do sentido da utilização, mas também a revelar quais materiais foram trabalhados (SEMENOV, 1964, p.14-15). Para o estudo do material lítico do sítio Santa Clara, optou-se por realizar uma análise a nível macroscópico das peças com auxílio de uma lupa binocular, pois o foco principal do estudo era compreender a coleção a um nível técnico-produtivo e não funcional, visando apenas a identificação das características dos suportes buscados pelos lascadores, em outras palavras, a identificação dos objetivos centrais das cadeias operatórias. Para além destas questões, os instrumentos devem ser pensados não apenas por seus gumes, mas também por outros elementos estruturais. Assim, Boëda (2013, p.40) irá propor que pensemos estes enquanto entidades mistas, constituídas por três elementos: o objeto enquanto tal, seu esquema de utilização e a energia que o coloca em ação (Instrumento = Artefato + Esquema de utilização + Energia).Um instrumento, de acordo com Boëda (2007, p. 18), pode ser decomposto em três partes, uma transformativa, uma receptiva de energia e outra preensiva. Esta decomposição do instrumento não deve ser percebida como uma redução do objeto a uma de suas partes, mas que estas unidades estão inter-relacionadas na estrutura do instrumento. O autor aponta para a necessidade de teorizar os instrumentos, pois estes são detentores de demandas funcionais e culturais. Este será considerado como elemento de um sistema, onde o sujeito/ator, a matéria trabalhada, e os meios natural e social são elementos estruturantes. Contudo não podemos pensá-los enquanto unidades estáticas, mas levar em conta que "o utensílio só existe realmente no gesto que o torna tecnicamente eficaz" (LEROI-GOURHAN, 2002b p.33).

87

3 O SÍTIO ARQUEOLÓGICO SANTA CLARA

3.1 Localização e aspectos fisiográficos

O Sítio Santa Clara se caracteriza por ser continental e a céu aberto, estando localizado na região sudoeste do Rio Grande do Sul, próximo a fronteira com o noroeste da República Oriental do Uruguai, no interior do município de Quarai a aproximadamente 30 km sudeste da cidade (21J 565138.31 m E 6627182.90 m S). Está situado em um interflúvio de canais de hierarquia distintas, sendo balizado a norte pelo Arroio Areal, a sul pelo Rio Quarai e a sudeste pelo Arroio Cati (Anexo A). De acordo com Milder, as formas de relevo, na área interfluvial dos arroios Cati e Areal, são representadas por:

[...] colinas associadas a relevos degradados com uma série de residuais de topos planos com diversas dimensões e estão relacionados ao substrato de arenitos da Formação Botucatu, a solos Podzólicos vermelho-escuros abrúpticos e à cobertura vegetal de Savana Estépica Gramíneo-Lenhosa, de modo geral. Os processos de erosão acelerada ocorrem com desenvolvimento de ravinas e voçorocas e áreas com riscos de desertificação. As áreas com riscos de desertificação representam a característica peculiar da Unidade Geomorfológica Planalto de Uruguaiana e estão associadas à presença do arenito da Formação Botucatu, referindo-se a campos de areia fina e solta, de coloração rosa-alaranjada. A ação do vento mobiliza as partículas do material inconsolidado, entulhando-as em forma de dunas que avançam e encobrem estradas (MILDER, 2000, p. 16).

Hidrograficamente o sítio está inserido na área de abrangência da Sub-Bacia hidrográfica do Quarai (Imagem 35), que é tributária da do Rio Uruguai, limitada a norte, leste e oeste com a bacia do Ibicuí e ao sul com o Rio Quarai (República do Uruguai). Está situada a oeste-sudoeste do Estado, na região fisiográfica da Campanha, entre as coordenadas geográficas 29°40' a 30°30' (latitude Sul) e 56°30' a 57°40' (longitude Oeste), possuindo uma área de aproximadamente 6.471,77 Km², abrangendo os municípios de Barra do Quarai, Quaraí, Santana do Livramento e Uruguaiana. Seus principais cursos de água são os arroios Moirões, Sarandi, Quaraí-mirim, Garupa, Capivari e o Rio Quaraí. Limita-se ao norte, leste e oeste com a bacia do Ibicuí; e ao sul com o Rio Quarai (República do Uruguai). O Rio Quaraí tem nível muito baixo e pode, eventualmente, secar revelando um leito pedregoso (SEMA) (UFSM/Hidrografia).

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Imagem 35 - Bacias e Sub-Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul (SEMA, 2014).

Geomorfologicamente sítio localiza-se na Unidade Geomorfológica Cuesta do Haedo (Imagem 36), delimitada ao norte pelo rio Ibicuí e ao sul, em território Uruguaio, pelo Rio Negro. Geologicamente esta unidade se integra a província arenítico-basáltica, com litologia disposta em sequência, apresentando basalto de pouca espessura, proveniente da formação Serra Geral e os arenitos eólicos da formação Botucatu (denominada Tacuarembó no Uruguai) (SUERTEGARAY, 1989; SUERTEGARAY & SILVA, 2009).

A formação Botucatu (do tupi ïbï'tu 'vento'+ ka'tu 'bom') está constituída, predominantemente, por arenitos de estratificação cruzada, resultante, da deposição eólica, com inclinação de 30º. Os grãos que o compõe são arredondados, os maiores com mais de 0,5mm, tendo a superfície fosca e repleta de orifícios diminutos (outro vestígio da ação eólica). Essa formação arenítica se estende por toda a bacia do Paraná, raramente ultrapassa 100m de espessura. A formação do Botucatu é Mesozóica (Triássico) de 220 milhões de anos (A.P.), momento em que o clima da

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Terra fica lentamente mais quente e seco culminando no período Jurássico (SUERTEGARAY & SILVA, 2009, p.117).

A Formação Serra Geral é constituída por componentes basálticos oriundos do derramamento sucessivo de lavas no período de vulcanismo do Jurocretácio, que originou o capeamento basáltico da Bacia do Paraná. A formação Serra Geral capeia o reverso da formação Cuesta do Haedo, com ocorrência de afloramentos da formação Botucatu (Janelas Botucatu), sendo nestes que geralmente ocorrem os areias do Sudoeste do estado (SUERTEGARAY & SILVA, 2009, p.117-118).

Imagem 36 – Unidades Geomorfológicas do Rio grande do Sul (CEPSRM/UFRGS, 2001).

No que se refere à geologia da área entre os arroios Catí e Areal, Suertegaray afirma existirem duas unidades passíveis de diferenciação, uma denominada Unidade A com características deposicionais de ambiente fluvial, e outra denominada Unidade B, constituída

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em ambiente eólico (1989, p.22). Em relação a estas unidades, segundo a autora, as condições ambientais do passado recente da região podem ser divididos em 3 fases:

Úmida: Ocorrida entre o final do Pleistoceno e início do Holoceno, cujo indicador são os depósitos fluviais encontrados sobre as formações areníticas Mesozóicas (Botucatu). Esta unidade está vinculada aos horizontes mais profundos e hidromórficos escuros, provenientes de uma deposição fluvial ou lacustre, devido ao clima mais úmido relacionado ao pós glacial.

Ressecamento Climático: Constituída durante o Holoceno, não necessariamente mais fria que as fases glaciais, datada entre 4.000 e 2.400, onde teriam ocorrido depósitos eólicos relacionados a Unidade B, podendo ter ocorrido ao longo das vertentes processo áridos ou semi-áridos, favorecendo a formação de pavimentos detríticos, tendo como indicativo as concreções de CaCo3.

Umidificação: Corresponde a fase atual, com continuidade da pedogênese, mas com maior lixiviação, acidificação dos horizontes atuais e o início da transformação das argilas de 2:1 para 1:1, iniciando a dissolução das concreções. Geomorfologicamente corresponderia a fase de arredondamento das vertentes e colonização vegetal mais efetiva.

3.2 As campanhas de campo

O Sítio Arqueológico Santa Clara foi alvo de um total de cinco campanhas de campo, porém as três primeiras, ocorridas em abril de 2009, junho de 2009 e fevereiro de 2011, foram essencialmente voltadas para as ocupações pós-coloniais que ocorreram no local e foram alvo do trabalho de Pes (2013), fazendo parte de uma série de trabalhos voltados para a reconstituição da ocupação estancieira na região de Quarai, juntamente com os de Gomes (2001), Santi (2004 ), Nobre (2011), Toledo (2010) e Thomasi (2008). A primeira intervenção limitou-se ao reconhecimento do potencial arqueológico da área, com a identificação de estruturas coloniais (como mangueiras de pedra e ruínas de habitações), mas já neste trabalho de campo foi identificada a ocorrência de material lítico

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superficialmente. Na segunda intervenção, em junho de 2009, foi efetuado um Full Couverage Survey (Imagem 37), visando à identificação de áreas de concentração de materiais arqueológicos, assim como a abertura de duas sondagens controladas. Uma na frente das ruínas (Sondagem controlada 1) (Imagem 38), onde ocorria maior concentração de materiais líticos e uma nos fundos (Sondagem controlada 2) onde havia sido identificado uma grande quantidade de materiais coloniais.

Imagem 37 - Full Couverage Survey, junho de 2009.

Imagem 38 – Inicio da escavação na "Sondagem controlada 1", Junho de 2009.

Entre os meses de fevereiro e março de 2011 foi realizada uma campanha de campo voltada para a escavação de uma área situada nos fundos das ruínas, que aparentava ser um

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local de descarte de lixo do século XIX, e paralelamente foi retomada a Sondagem controlada 1, com dimensões 2x2, na frente das ruínas, onde havia sido evidenciada a maior concentração de materiais líticos. Esta sondagem foi aprofundada até 110 cm, visto sua grande ocorrência de materiais líticos e devido a profundidade atingida foram retiradas 4 amostras de sedimento (Imagem 39) para serem realizados ensaios com LOE (Luminescência Opticamente Estimulada), que revelaram a seguinte sequência: Amostra I: 5.050 ± 560; Amostra II: 6.880 ± 750; Amostra III: 7.300 ± 675; Amostra IV: 12.870 ± 2.050.

Imagem 39 - Posição das amostras de sedimentos no perfil estratigráfico, março de 2011.

Com estes resultados foram realizadas mais duas campanhas de campo, uma em setembro de 2012 e a outra em fevereiro de 2013, mas agora especificamente voltadas para as ocupações pré-coloniais. Estas duas escavações somaram uma total de 20 dias de trabalho de campo, onde foi sobreposta à antiga "sondagem controlada 1" uma malha com eixo X (SulNorte) medindo 12 m, e com o eixo Y (Leste-Oeste) medindo 8 m (Leste-Oeste) tendo cada quadrícula dimensões de 2 x 2 m e sendo referenciada alfanumericamente. Todas as peças forma plotadas possuindo referência tridimensional (X, Y e Z) em um plano cartesiano (Imagem 40).

93

Imagem 40 - Plotagem do material arqueológico, fevereiro 2013.

A campanha de escavação de 2012 proporcionou um total de 449 peças, enquanto a de 2013 proporcionou um total de 283. Estas intervenções possuíam um caráter de complementariedade uma em relação à outra, o que possibilitou a escavação das quadrículas B1, B2, B3, C2, C3, C4, D1, D2, E1, E2, F1 e F3. O

sítio

apresenta-se

bem

conservado,

com

ocorrência

de

materiais

até

aproximadamente 110 cm de profundidade (Imagem 41). Os sinais de bioturbação, como tocas de Ctenomys spp (tuco-tuco) e formigueiros limitam-se as porções mais superiores da escavação e os materiais líticos eventualmente encontram-se depositados em posição vertical.

Imagem 41 - Escavação nos níveis inferiores do Sítio.

94

A ocorrência de materiais arqueológicos é bastante densa, ocorrendo quase que initerruptamente entre 0 e 1 metro de profundidade, e bastante dispersa ente 1 e 1,10 metros (Imagem 42), intervalos que correspondem a camada arenosa de formação eólica. Mesmo que todo o material lítico tenha sido referenciado tridimensionalmente até o momento não foi possível uma clara delimitação de intervalos ocupacionais. Isso se deve tanto a fatores estratigráficos como metodológicos, primeiramente esta dificuldade de identificação de intervalos ocupacionais relaciona-se com o próprio processo de formação do registro arqueológico, pois o sítio está inserido em uma depósito eólico, implicando que as peças ficassem alheias aos fenômenos decorrentes da dinâmica da duna até que a mesma tenha se estabilizado. Esta dificuldade também decorre dos objetivos norteadores da metodologia de campo, onde foi optado pela realização de uma escavação demasiadamente verticalizada, visando atingir mais rapidamente os níveis inferiores da escavação para verificar a ocorrência de materiais e conseguir elementos para a datação dos mesmos.

Imagem 42 – Concentração das peças em função dos eixos X e Z, escala em metros.

A grande quantidade de peças também pode ser percebida ao observarmos os croquis de dispersão (Imagens 43 e 44) bidimensional, onde a própria concentração de materiais reflete as porções escavadas da malha.

95

Imagem 43 - Dispersão geral dos materiais líticos da escavação de setembro de 2012.

Imagem 44 - Dispersão geral dos materiais líticos da escavação de fevereiro 2013.

96

Juntamente com as atividades de escavação e plotagem das peças foram realizados desenhos de seis perfis estratigráficos, em relação aos quatro pontos cardeais: B2 (perfil oeste), B2 (perfil sul), C1 (perfil leste), C2 (perfil norte), D1 (perfil leste) e F1 (perfil oeste). Além disso, as duas campanhas de campo, proporcionaram um total de 52 amostras de sedimento, das quais 10 foram enviadas para datação pelo método de LOE (Imagem 45).

Imagem 45 - Desenho de perfil estratigráfico e retiradas das amostras de sedimento, respectivamente.

3.2.1 Estratigrafia e cronologia do sítio Santa Clara

A estratificação do sítio Santa Clara pode ser dividida basicamente em três camadas estratigráficas distintas: I, II e III (Imagem 46). Os testemunhos antrópicos ocorrem até cerca de 110 cm de profundidade, abrangendo as duas primeiras camadas. As três camadas guardam paralelismos tanto com as Unidades A e B como com as três fases descritas por Suertegaray (1987) para a região onde o sítio se insere.

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Imagem 46 - Perfil estratigráfico Sul da quadrícula B2 do Sítio Arqueológico Santa Clara.

Camada I: Ocupa os 10 primeiros centímetros da estratigrafia do sítio, possui uma coloração escura e corresponde ao período mais tardio da ocupação dos grupos caçadores coletores e o mais antigo da ocupação pós-colonial conforme os testemunhos encontrados.

Camada II: Ocorre entre 10 e 100 cm de profundidade, trata-se de um depósito eólico arenoso não erodido, que abriga uma complexa alternância entre estratos arenosos de coloração clara (com espessura variável) e delgadas nervuras horizontais areno-argilosos com coloração marrom escura e variáveis entre 1 e 2 cm (Imagem 47). Esta camada é a que abriga a maior densidade de vestígios associados às ocupações de caçadores coletores, e parece guardar paralelismos com a Fase II descrita por Suertegaray (1989), caracterizada pelo ressecamento climático e formação de depósitos eólicos.

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Imagem 47 - Camada II, detalhe nas finas nervuras horizontais.

Camada III: Corresponde a uma camada areno-argilosa bastante compacta (Imagem 48), com coloração avermelhada e abundância de pequenos seixos, estando muitos destes hidroxidados. Começa a partir de aproximadamente 110 cm, não sendo mais evidenciados os vestígios de ocupação humana e entorno dos 210 cm de profundidade já se atinge o lençol freático. Essa camada parece corresponder ao horizonte B do solo, formado pela percolação de argilas que se acumulam próximo da base rochosa que sustenta a geologia local, estando relacionada com a fase úmida do final do pleistoceno, descrita por Suertegaray (1989), e composta por depósitos aluviais sobre a formação arenítica Botucatu.

Imagem 48 - Sondagem na camada III, visão externa e interna do perfil leste, respectivamente.

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Com base na geomorfologia local e na estratrigrafia, podemos dizer que o sítio está inserido em uma paleoduna, portanto um depósito eólico tal qual o Areal (Anexo A), porém que não está erodido. Onde as pequenas nervuras horizontais, com espessura variável entre 1 e 2 cm, podem representar vairações pluviométricas ou então níveis de paleopedons (Imagem 49), identificados por Milder (2000) no sítio Areal onde ocorre um sincronia entre os níveis arqueológicos e os paleosolos, entretanto as nervuras existentes no sítio Santa Clara não apresentam a mesma potência que as do Areal.

Imagem 49 - Materiais in situ, associados às nervuras horizontais e às camadas eólicas, respectivamente.

As datações do sítio foram realizadas por meio da Luminescência opticamente estimulada (LOE), todas efetuadas pelo laboratório "Datações Comércio e Prestação de Serviços LTDA" (São Paulo, SP). Quanto às características e aplicabilidades da Luminescência, Guedes et. al. afirma que: A datação por luminescência é um dos métodos de geocronologia absoluta que, juntamente com o C14, mais vem sendo aplicado em estudos do Quaternário, tanto na geologia como na arqueologia. Na geologia, o método tem sido utilizado na determinação de idades de depósitos eólicos, praiais e fluviais, no Brasil (Suguio et al., 2003; Sallun et al., 2007; Sawakuchi et al., 2008). Por basear-se na luminescência de minerais comuns em sedimentos detríticos, como quartzo ou feldspato, ele pode ser empregado na grande maioria dos depósitos sedimentares, principalmente os arenosos. Dessa forma, é aplicável em sedimentos onde normalmente não se encontra matéria orgânica, sendo, sob esse aspecto, método complementar ao do C14. Além disso, diferencia-se da datação C14 por sempre fornecer idades de deposição de sedimentos e pela sua maior amplitude temporal (GUEDES et. al., 2011, p. 1).

Como podemos ver as características do método de luminescência vem ao encontro das particularidades estratigráficas do sítio, visto que este se caracteriza por ser

100

predominantemente constituído por um depósito eólico arenoso e pelo fato da acidez do solo não favorecer a preservação de matéria orgânica que possibilite datações por C14. Em relação à acidez do solo nos depósitos eólicos de Quarai, Suertegaray afirma que: A fragilidade vegetal que recobre o neossolo raso com textura arenosa e siltearenoso, típico dessa região, se defronta com um substrato de pH ácido, com excesso de alumínio e carência de fósforo e potássio. Em termos de efeitos sobre essa vegetação a carência de fósforo (P) dos neossolos resultará numa diminuição dos processos energéticos do metabolismo vegetal, restringindo o crescimento vegetativo, a floração e a formação de ramos novos. Quando nos remetemos à importância do potássio (K) no metabolismo vegetal, comprovaremos as grandes restrições impostas à comunidade vegetal nas regiões sujeitas a arenização (SUERTEGARAY & SILVA, 2009, p.118).

As quatro primeiras amostras são originárias da Sondagem controlada 1 (Tabela 1), realizada na campanha de campo de 2011 e resultaram em um intervalo ocupacional entre 12.870 ± 2.050 e 5.050 ± 560 A.P.

Tabela 1: Amostras de sedimentos datadas por LOE em 2011, Sondagem controlada 1. Código

Amostra

Profundidade

Idade A.P

3356

I

50 cm

5.050 ± 560

3357

II

70 cm

6880 ± 750

3358

III

85 cm

7.300 ± 675

3359

IV

110 cm

12.870 ± 2.050

Levando em consideração a cronologia obtida, durante a escavação de 2012 foram enviadas para datação mais 10 amostras de sedimento, 5 oriundas da quadrícula C3 (Tabela 2) e 5 da quadrícula F1 (Tabela 3). Os resultados obtidos na segunda série de datações como podemos ver não são tão recuados quanto os da série de 2011, porém nenhuma das amostras de 2012 foram coletados a 110 cm, mas sim a 100 e a 90 cm. Um fator positivo a ser observado nas séries datadas é que todas as sequências cronológicas obedecem a uma coerência deposicional, não havendo datações invertidas. E levando em conta que as amostras provem tanto de quadriculas distintas quanto de campanhas de campo diferentes as profundidades e os resultados mantém um relativo paralelismo entre si. Diferentemente dos sítios paleoindígenas de Miller (1987) que estão localizados nas barrancas ou nas planícies de inundação, o sítio Santa Clara situa-se no em um topo de

101

interflúvio, distante cerca de 3 km da margem do Rio Quaraí (Imagem 50), portanto fora da planície de inundação. Isso corrobora com a hipótese de Milder (2000, p.114), que afirmava que se existissem ocupações humanas antigas na região estas não deveriam ser procuradas próximas aos canais, mas sim nos altos dos interflúvios.

Tabela 2: Amostras de sedimentos datadas por LOE em 2012, Quadrícula C3. Código

Amostra

Profundidade

Idade A.P

3765

4

26 cm

2.900 ± 330

3766

5

41 cm

4.000 ± 570

3767

6

58 cm

4.370 ± 585

3768

7

71 cm

6.300 ± 800

3769

8

90 cm

8.000 ± 985

Tabela 3: Amostras de sedimentos datadas por LOE em 2012, Quadrícula F1. Código

Amostra

Profundidade

Idade A.P

3770

14

55 cm

2.135 ± 330

3771

15

65 cm

2.750 ± 400

3772

16

75 cm

3.080 ± 420

3773

17

90 cm

5.090 ± 730

3774

18

100 cm

7.150 ± 980

102

Imagem 50 - Localização sítio Arqueológico Santa Clara em relação ao rio Quarai.

3.3 Tecnologia lítica do sítio Santa Clara

A coleção proveniente de todas as campanhas de campo do sítio Santa Clara soma um total de 989 peças líticas, porém 61 destas não foram lascadas, tendo sido coletadas por fazerem parte do contexto em que as 928 restantes compunham. A coleção como um todo, é composta por peças de arenito silicificado, calcedônia, basalto, arenito e quartzo, contudo apenas as três primeiras foram utilizadas para o lascamento. Existe na coleção um total de 541 lascas (débitage e retoque), 74 instrumentos, 14 peças nas quais foram elaborados núcleos, 181 fragmentos de lascas (mesiais e distais) e 117 detritos de lascamento.

3.3.1 As primeiras etapas da cadeia operatória

Em relação a matéria prima utilizada para o lascamento, o sítio Santa Clara mesmo possuindo 5 tipos diferentes de rocha, não foge a regra das demais indústrias da região sudoeste do rio grande do sul e do noroeste do Uruguai, sendo sua coleção constituída

103

predominantemente por arenito silicificado (70%), seguido da calcedônia (26%) e do basalto (4%) usado em quantidades bem menores (Gráfico 1).

4%

26%

A. Silicificado Calcedônia Basalto 70%

Gráfico 1 - Porcentagem das matérias primas utilizadas para o lascamento no sítio Santa Clara.

Podemos afirmar que a variabilidade de rochas presentes no sítio reflete diretamente a formação geológica regional, estando o arenito silicificado relacionado com a formação Botucatu enquanto a calcedônia e o basalto com a formação Serra Geral. Sobretudo as duas primeiras rochas forneciam uma boa matéria prima para os grupos caçadores coletores que habitaram a região. Segundo Araujo, os arenitos silicificados são rochas de origem sedimentar formadas mecanicamente, constituídas basicamente por grãos de quartzo juntamente com minerais de caráter acessório, como o feldspato e o zircão. O termo silicificado se relaciona com o fato de estas rochas passarem por um diagenético de cimentação, denominado silicificação, que resulta em uma rocha coesa onde os grãos de quartzo e o cimento possuem uma mesma composição (SiO2). Quanto maior a coesão entre os grãos, melhor será a silicificação e mais apto o arenito será para o lascamento, proporcionando uma melhor propagação das ondas de choque que atuam durante o processo de lascamento (ARAUJO, 1992, p.64). No noroeste do Uruguai, Suárez (2010b, p. 38) realizou um estudo petrográfico das fontes de matéria prima da região do Arroio Catalán Chico e observou que a estrutura dos arenitos silicificados é 90% composta por grãos de quartzo, e entre os minerais secundários estão presentes o feldspato, clorita e óxido de ferro. Seu estudo permitiu precisar o motivo da variabilidade de colorações desta matéria prima, sendo as de cor verde devido à presença de

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clorita; as de coloração vermelha estão relacionadas com a presença de óxidos e hidróxidos de ferro, enquanto as de cor marrom provém da combinação de minerais, tais como o óxido de ferro e clorita. No que se refere aos arenitos aproveitados pelo homem, Araujo (1992, p. 65) afirma que a existência de diferenças granulométricas intra-rocha são indesejadas, pois agirão de forma anisotrópica, respondendo de maneiras diferentes às ondas de choque que percorrerão a estrutura da rocha durante o lascamento. Os arenitos silicificados do sítio Santa Clara variam entre tons de marrom, verde e cinza. E no que se refere aptidão da matéria prima para o lascamento há uma preferência por peças com granulação extremamente fina (70%) em relação com as médias (27%) ou grosseiras (4%), o que já demonstra um critério técnico de escolha das melhores rochas disponíveis (Gráfico 2).

3%

27%

Fina Média 70%

Grosseira

Gráfico 2 – Porcentagem das granulações dos arenitos silicificados lascados.

A segunda matéria prima mais frequente nos contextos arqueológicos da região é a calcedônia. Segundo Suárez (2011), existiria uma variante de calcedônia específica no norte do Uruguai, "Uruguay Type", que seria a ágata translúcida. O termo ágata, segundo o autor, é utilizado para distinguir uma variedade de calcedônia bandeada, formada pelo acréscimo sucessivo de bandas concêntricas de sílica amorfa microcristalina. As bandas, nas ágatas, podem ser estruturais ou marcadas por impurezas, como o Fe, Mn, Co, Cr e As, que atuam como pigmentos, gerando diferentes cores nas mesmas. As existentes no norte do Uruguai possuem bandas de cor cinza, amarelo e branco, com espessura variando de milímetro a centímetros e disposição concêntrica, aflorando em abundância nos sítios "canteras-talleres"

105

da Región Arqueológica Catalanes, Nascientes Arapey (RACNA) (SUÁREZ, 2011, p.363364). Uma das primeiras coisas que se percebe ao analisar o material do sítio Santa Clara é que os processos que compreendem as primeiras etapas da cadeia operatória foram realizados fora do sítio. Isso se confirma com a baixíssima presença de peças corticais ou que apresentam córtex em sua superfície, o que demonstra que a matéria prima chega ao sítio parcialmente preparada. A partir da análise do material pode-se afirmar que a matéria prima é transportada ao sítio sob duas formas distintas, que denominamos "Volume Inicial I" e "Volume Inicial II" (Imagem 51). O primeiro modo equivale a formas naturais como pequenos blocos e seixos cujas características presentes servirão como base para a débitage ou em alguns casos para a produção de instrumentos. No segundo modo, ao invés de serem escolhidos blocos por suas características naturais, são produzidas grandes e espessas lascas (entorno de 15 cm por 5 cm) sobre as quais posteriormente se desenvolverá o trabalho de débitage. É preciso deixar claro que, sob a perspectiva de Boëda (2013), estas peças não são núcleos, mas sim volumes sobre os quais em um momento posterior podem ser elaborados um ou mais núcleos.

Por conseguinte, percebe-se que, no primeiro caso, são buscadas as

características naturalmente presentes para que posteriormente se inicie a débitage, enquanto no segundo caso há uma "produção" de um volume com as características técnicas desejadas. Se levarmos em consideração que a produção dos Volumes Iniciais II obrigatoriamente necessita de um processo de lascamento anterior, isso sugere que existem sítios com vestígios líticos de proporções maiores que poderiam ter sido interpretados como de indústrias distintas, mas que na verdade estariam diretamente relacionados, porém possuiriam traços técnicos distintos.

106

Imagem 51 - Volume Inicial I e Volume Inicial II (esse produzido experimentalmente), respectivamente.

3.3. 2 A débitage no sítio Santa Clara

A operação de lascamento pela qual são produzidos os suportes para os instrumentos do sítio é unanimemente a débitage. Não estando presentes vestígios associados à façonnage23. Porém esta não está ausente na região de estudo, visto que tanto na literatura arqueológica regional e nos sítios da fronteira sudoeste, são frequentemente encontrados instrumentos elaborados mediante este processo, tais como os bifaces e as pontas de projétil. Como podemos observar no capítulo anterior, a débitage divide a matéria prima em duas categorias de objetos complementares, os núcleos e os produtos de débitage (lascas/lâminas, suportes para instrumentos e os resíduos de lascamento), ambos fundamentais para a compreensão das escolhas e soluções técnicas pelos grupos lascadores.

23

Operação de lascamento que consiste em produzir um objeto "esculpindo" a matéria prima segundo a forma desejada. A façonnage pode se inserir dentro de qualquer fase de uma cadeia operatória, geralmente é aplicada a objetos bifaciais, mas é igualmente aplicável a objetos de outras morfologias, como os poliedros ou triedros (INIZAN, et. al. 1995, p. 43).

107

3.3.2.1 Os núcleos

Levando em conta que utilizamos a concepção estrutural de núcleo, proposta por Boëda (2013), podemos afirmar que na coleção existe um total de 24 núcleos elaborados a partir de 14 volumes iniciais, sendo 6 destes de Volume Inicial I, 6 de Volume Inicial II, e 2 de Volume Inicial de estrutura indeterminada, sendo 13 de arenito silicificado e apenas 1 de calcedônia. Todos os núcleos do sítio são de estrutura adicional (ou abstrata), portanto sendo compostos por dois volumes independentes, o volume útil, ou seja, o núcleo propriamente dito e estruturado em uma determinada superfície, e um volume residual, que em um primeiro plano é inerte e não possui papel técnico algum na estruturação do núcleo. Nestes casos o volume útil é diferente do volume do núcleo, o que implica que todos os núcleos presentes no sítio se limitem a explorações superficiais e não volumétricas. Em alguns casos os volumes residuais servem como base para a elaboração de outros núcleos, porém que não possuem ligação alguma com os demais núcleos presentes no Volume Inicial. No sítio, 6 Volumes Iniciais possuem 1 núcleo, 6 possuem 2 núcleos e 2 possuem 3 núcleos. A morfologia das peças é extremadamente variável, apresentando formas globulares, tabulares, poliédricas, piramidais e tronco-piramidais, que em grande parte dos casos refletem apenas a forma de seu volume originário, portanto não servindo como critério de classificação ou de diferenciação tecnológica. Quanto aos tipos de volumes úteis, podemos afirmar que no sítio estão presentes os de volume úteis de tipo "C" e "D". O primeiro vai englobar todos aqueles núcleos que foram elaborados sobre "Volumes Iniciais I", onde a débitage será realizada com base na escolha de uma superfície com critérios de inicialização que já estejam naturalmente presentes no bloco. Para os núcleos de volume "C" existentes no sítio Santa Clara não está em jogo a escolha de uma morfologia específica de bloco para iniciar a débitage, mas sim a presença de uma superfície naturalmente plana que possa ser aproveitada como plano de percussão, juntamente com uma superfície adjacente com inclinação necessária para ser convertida em superfície de débitage. Em alguns casos onde a superfície que vai ser convertida em plano de percussão não se encontra suficientemente plana podem ser realizadas algumas retiradas visando a preparação do mesma (Imagem 52).

108

Imagem 52 - Núcleos com volume útil de "Tipo C". a) Com plano de percussão natural e b) Com plano de percussão "preparado".

A configuração deste núcleo demanda quanto muito de 2 a 5 retiradas, porém isto não os caracteriza como núcleos pouco explorados, mas muito pelo contrário, pois seu volume útil, aquele necessário à produção dos suportes desejados, já foi esgotado. Deste modo nas coleções de Quaraí é preciso ser cauteloso em tentar realizar uma associação maquinal entre núcleos com poucos negativos como sinônimo de abandono ou de pouca exploração. Além da presença de uma superfície plana, outro aspecto característico dos blocos que foram escolhidos para a produção destes núcleos é a seleção de peças com córtex extremamente fino, possuindo quanto muito de 2 à 3 mm de espessura. A principal consequência deste critério de escolha dos blocos acaba por dispensar etapas mais intensas de descorticagem e formatação dos núcleos. Os núcleos de volume útil de Tipo "D" do sítio Santa Clara estão diretamente relacionados com os Volumes iniciais II, apresentando maiores variações nas formas de exploração e possuindo mais de 1 núcleo por volume inicial (Imagem 53).

109

Imagem 53 - Núcleos de volume útil de Tipo D, sob Volume Inicial II.

Neste grupo há, portanto um predomínio de núcleos elaborados sobre lasca que particularmente acredita-se que representem um traço técnico bastante distintivo na região de Quaraí, mas que por muito tempo foram interpretadas apenas como instrumentos (planoconvexos, raspadores tronco-piramidais, etc.), fazendo com que esta afirmação assumisse um caráter quase dogmático, inquestionável, passando despercebido pelos pesquisadores. Isso se relaciona com o fato de que nas perspectivas demasiado tradicionais os conceitos de núcleo e de lasca não são permeáveis, quanto a isso Newcomer e Hivernel-Guerre (1974) afirmam que: En general le terme de nucleus évoque un bloc de matière première d'où ont été tirés, éclats, lames et lamelles, et cette définition amène à l'esprit l'image des formes traditionnelles, par exemple du Moustérien ou du Paléolithique supérieur, ainsi que de la technique Levallois. Mais le terme de nucleus peut aussi s'appliquer à des formes non traditionnelles, comme par exemple un produit de débitage à partir duquel ont été détachés des éclats, lames et lamelles (NEWCOMER e HIVERNELGUERRE, p.119, 1974).

Os núcleos de volume útil tipo D (Imagem 54) são alvos de um maior investimento de critérios técnicos de preparação, sobretudo na superfície de lascamento, apresentando uma noção de recorrência de retiradas voltadas para a criação e combinação de características necessárias para se obter os suportes desejados. E contrariamente aos núcleos de volume C, onde predominava o aproveitamento das características naturais, há uma preparação de uma série de critérios condicionantes, que fazem com que estes núcleos apresentem uma quantidade bem maior de retiradas, entre 5 e 9.

110

Imagem 54 – Núcleos sobre lasca de volume útil de tipo D.

Os núcleos elaborados sobre lasca do sítio podem ser divididos em duas categorias, uma primeira que utiliza a face inferior como plano de percussão e a face superior como superfície de lascamento; e uma segunda que utiliza a face superior como plano de percussão e a face inferior como superfície de lascamento. Quanto a esta diferenciação, acredita-se estar relacionada com o tipo de suporte buscado em relação aos critérios predeterminantes presentes na face explorada. No primeiro caso, parece ao que tudo indica, existir uma busca por suportes com perfil mais retilíneo, obtidos mediante uma série de retiradas paralelas ou convergentes, dando origem a lascas quadrangulares, triangulares e retangulares. Enquanto que no segundo caso, parece estarem sendo buscadas superfícies mais convexas. É o caso da face inferior das lascas que servem como base para os núcleos, que pela ausência de nervuras e por sua curvatura tendem a formar lascas de morfologia semicircular ou mesmo circular e perfil biconvexo, originando muitas vezes inclusive suportes e núcleos Kombewa, até então inéditos para a região.

3.3.2.2 O método Kombewa

Mesmo que inserido dentro dos esquemas de lascamento dos Volumes úteis de Tipo D, iremos dedicar separadamente algumas linhas para este método que é encontrado nos sítios arqueológicos de Quaraí, como Santa Clara, Areal e Severo (Anexo A), sendo sua descrição até então inédita para a região. O método Kombewa (Imagem 55) é reconhecido

111

mundialmente por suas inconfundíveis características, que segundo Inizan et al (1995) aliam a originalidade e a simplicidade. Este método é característico do continente africano, sendo também encontrado em outras partes do mundo como na Europa. Foi identificado pela primeira vez em 1938 no Quênia por W. E. Owen e recebe nome da região onde foi encontrado (NEWCOMER e HIVERNEL-GUERRE, 1974; TURQ, 2000). Ele consiste basicamente em realizar a débitage sobre a face inferior de uma lasca espessa, aproveitando as características de convexidade presentes, originando suportes circulares, semi-circulares ou ovalados, com contorno regular e perfil biconvexo (Imagem 55), sendo possível também retirar várias lascas sucessivamente (Imagem 56). Portanto no momento da débitage, a face inferior desta lasca serve como superfície de débitage, enquanto a inferior assume o papel de plano de percussão (INIZAN et al. 1995, p. 71).

Imagem 55 - Método Kombewa (NEWCOMER e HIVERNEL-GUERRE, 1974).

Imagem 56 – Núcleo Kombewa do sitio Santa Clara com exploração total da superfície inferior da peça.

112

Os suportes obtidos pelo método Kombewa são predeterminados pela produção de um bulbo pronunciado ainda no momento da débitage da lasca que vai servir como núcleo. Uma das características marcantes destes suportes obtidos é a aparência de possuírem "duas faces inferiores", nenhuma das duas possuindo nervuras (INIZAN et al. 1995, p. 149). Devido a isso, é frequente que alguns destes suportes guardem na face superior o ponto de percussão e inclusive parte do talão que pertenciam à lasca que serviu como núcleo para a débitage (Imagem 57).

Imagem 57- Instrumento elaborado sobre típico suporte Kombewa, sítio Santa Clara.

Quanto a sua relação com o método Levallois A. Turq afirma o seguinte:

Ce concept se différencie du concept Levallois par le fait, qu'ici, il n'y a pas de mise en place, par enlèvements des convexités, mais utilisation des convexités de la face inférieure de l'éclat initial, cet éclat qui sert de nucleus. Dans sa conception, l'éclat Kombewa s'apparente donc à l'éclat Levallois principal, mais en diffère dans la mesure où le débitage peut se poursuivre sans nouvellepréparation. Après le détachement de cet éclat Kombewa, comme après celui de l'éclat levallois linéal, l'exploitation de l'éclat-nucléus peut se poursuivre (TURQ, 2000, p. 375).

Por fim cabe salientar que os produtos Kombewas não podem ser confundidos com aquelas lascas "parasitas" provenientes do esquilhamento de grandes bulbos. Em primeiro lugar por possuírem bulbo pronunciado e talão, o que atesta que foram destacadas mediante percussão direta, ao contrário dos esquilhamentos de bulbo que são processos involuntários causados pelo choque da percussão, que acabam por fazer com que parte interna do bulbo se desprenda da lasca.

113

Na coleção possuímos 5 instrumentos produzidos mediante este método, e somente 2 núcleos, com um deles apresentando remontagem simples (Imagem 58). Tal método não é exclusividade do sítio Santa Clara, o que colocaria em dúvida sua existência enquanto tal, mas se faz presente em outros sítios como Severo (Imagem 59) e Areal. Quanto a isso, destaca-se que Saul Eduardo Seiguer Milder em 1998 (comunicação pessoal 2013), afirma que quando analisou as coleções dos sítios RS-I-66 (Milton Almeida) e RS-I-96 (Fagundes), ambos em Uruguaiana e associados a fase Uruguai, identificou 68 peças elaboradas sobre lasca que tiveram seus bulbos removidos, certamente estas peças tratar-se-iam de núcleos relacionados ao método Kombewa.

Imagem 58 - Remontagem simples, método Kombewa, Sítio Santa Clara.

114

Imagem 59 - Remontagem simples, método Kombewa, Sítio Severo.

3.3.2.3 Os núcleos poliédricos

Ainda existe uma terceira forma de núcleo, bastante comum na região de Quarai, relacionada aos esquemas de exploração dos volumes de Tipo D, que são os núcleos poliédricos (Imagem 60). No sítio Santa clara possuímos 4 exemplares, em dois ainda é possível identificar que seu Volume Inicial é de tipo II, porém na maior parte dos casos este não é reconhecível. Frequentemente esta forma de núcleo era concebida como núcleos em estágio final de exploração ou esgotados, mas a partir da análise realizada percebe-se que na verdade o que ocorre é uma série de sobreposição de núcleos, aproveitando as características de convexidade formadas pela série anterior.

115

Imagem 60 – Núcleos poliédricos sítio Santa Clara.

Entretanto estas características não são suficientes para classificá-lo enquanto um núcleo de estrutura integrada ou concreta, onde o volume útil seria igual ao volume do próprio núcleo, justamente por se tratar de uma constante sobreposição de núcleos, que não estão operacionalmente relacionados, apenas sobrepostos. E os produtos de cada sequência podem ser variados, assim como a morfologia do núcleo que é alterada constantemente, fazendo com que a orientação dos negativos seja bastante variável para cada peça (Imagem 61).

Imagem 61 – Exploração de núcleo com volume útil de "Tipo D", Sítio Santa Clara

116

3.3.3 Os instrumentos

Na coleção existe um total de 74 artefatos identificados enquanto instrumentos, sendo 54 elaborados em arenito silicificado, 21 em calcedônia e somente 1 em basalto. A partir da análise do material pode-se afirmar que os suportes preferenciais para a produção dos instrumentos são os "debitados", mais precisamente são as lascas em (95%) enquanto que os "não debitados"24 são utilizados em proporções bem menores (5%). Os instrumentos que utilizam lascas como suporte podem ser divididos em dois grupos, os retocados e os não retocados. Os primeiros somam um total de 34 peças e como o próprio nome sugere, são aqueles suportes que tiveram sua parte transformativa confeccionada por meio de retoques. É importante salientar que considera-se esta divisão entre os instrumentos elaborados sobre lasca como extremamente arbitrária, uma vez que os retoques são extremamente discretos e acompanham a morfologia do próprio suporte, não impondo mudanças drásticas na estrutura do gume, o que muitas vezes dificulta a diferenciação entre retoques intencionais e aqueles acidentais decorrentes da utilização do instrumento. As características dos retoques são extremamente variadas (Imagem 62) e de difícil esquematização, o que nos leva a supor que grande parte destas peças tenham sido primeiramente utilizadas sem retoques, e posteriormente foram retocadas com a finalidade de revitalizar o gume. A delineação dos retoques (Gráfico 3), é preferencialmente em entalhe e irregular a repartição dos mesmos é parcial (96%) e descontínua (31%); quanto a extensão dos retoques, não estão presentes os invasivos nem os englobantes, abundando os curtos (83%) e em bem menor proporção os longos (17%). No que se refere à morfologia, há um relativo equilíbrio entre os retoques paralelos (59%) e os subparalelos (41%); a posição (Gráfico 4) é majoritariamente direta e inversa com ocorrência eventual de retoques alternos, e a inclinação (Gráfico 5) dos gumes é preferencialmente semi-abrupta e abrupta.

24

Corresponde àqueles suportes geralmente de origem natural, como seixos, placas, etc. (INIZAN et al. 1995, p.96).

117

Imagem 62 – Instrumentos retocados: a), b) e h) retoques em entalhe; c) e f) retoques inversos; d) retoque denticulado; e) retoque serrilhado; g) retoques diretos; i) suporte Kombewa com retoque direto.

118

Irregular 3% 6%

6%

3%

Entalhe

3%

Serrilhado 28%

6% 5%

Diretos

26%

Denticulado

Inversos

Côncavo 43%

71%

Convexo

Alternos

Ombro Retilíneo Gráfico 4 – Posição das retiradas.

Gráfico 3 - Delineação dos retoques.

6% Abrupto 38%

56%

SemiAbrupto Rasante

Gráfico 5 - Inclinação dos gumes retocados.

O segundo grupo totaliza 35 peças e corresponde àqueles instrumentos que foram produzidos e utilizados sem terem sidos retocados, aproveitando as características naturais do gume formado durante a débitage do suporte, apresentando unicamente macro-traços de utilização. Acredita-se, no entanto, que a presença deste tipo de instrumentos onde o suporte debitado confunde-se com o instrumento final, não pode ser encarado sob hipótese alguma como um sinônimo de simplicidade tecnológica, mas justamente o contrário, pois a ausência de retoques sugere que todas as características estruturais do futuro instrumento foram préestabelecidas ainda durante a configuração do núcleo. A um nível macroscópico foi possível identificar duas modalidades de traços de utilização (Imagem 63), predominando os macro-lascamentos (89%) e em menor quantidade os de abrasão do gume (11%). A maioria dos traços concentra-se ou em ambas as faces dos

119

instrumentos ou na face superior (Gráfico 6), predominando gumes com inclinação semiabrupta e rasante (Gráfico 7).

Imagem 63 – Macro-traços de utilização nos instrumentos; a), b), c) macro-lascamentos; d) abrasão por uso.

10% Rasante 43%

48%

Superior Inferior Ambas

35%

55%

Semiabrupto Abrupto

9% Gráfico 6 – Face do instrumento com presença de traços de uso.

Gráfico 7 – Inclinação do gume.

120

Com a análise foi possível identificar que a maior parte dos suportes não apresenta apenas uma parte ativa, mas que predominam peças com duas unidades ativas (Gráfico 8), muitas vezes com distintas delineações e inclinações de gume, o que parece apontar para funcionalidades distintas em um mesmo suporte (Imagem 64). É indispensável considerar que a utilização de um gume com delineação côncava dificilmente fosse a mesma de um retilíneo ou de um convexo. E como se pode observar no Gráfico 9, quase metade da coleção é composta por gumes retilíneos (Imagem 65 a) e em menor quantidade por gumes côncavos (Imagem 65 b) e convexos (Imagem 65 c).

Imagem 64 - Instrumentos não retocados com diferentes inclinações e delineações de gume.

Imagem 65 – Instrumentos utilizados sem retoque; a) Gume retilíneo, b) Gume côncavo, c) Gume convexo.

121

11% 18% 46% 43%

1 2 3

Gráfico 8 - Quantidade de partes ativas por instrumento.

Retilíneo 49%

33%

Côncavo Convexo

Gráfico 9 - Delineação do gume.

A outra categoria de instrumentos corresponde àqueles produzidos sobre suportes naturais (Imagem 66), geralmente sendo elaborados em pequenos blocos e seixos. Para a confecção desses instrumentos é utilizado o mesmo princípio de escolha do Volume Inicial I para os núcleos do sistema "C", que consiste na utilização de uma superfície naturalmente plana para servir como plano de lascamento, mas a principal diferença é que na produção dos instrumentos são utilizados volumes inicias de menores proporções. Portanto o que está em jogo é a escolha de volumes naturais que apresentem características mais parecidas com as dos futuros instrumentos, necessitando apenas a criação de um gume, não sendo preciso mais do que duas ou três retiradas.

Imagem 66 – Instrumentos elaborados em suportes naturais, Sítio Santa Clara.

Em relação aos conjuntos de instrumentos, a análise do material sugere que os suportes preferenciais estão relacionados aos instrumentos não retocados, onde sua estrutura

122

aparentemente simples não pode dissimular sua real importância, pois o fato desta não ser modificada é porque suas características estruturais atendem aos requisitos buscados pelos lascadores. Enquanto que os que receberam retoques, são peças que parecem, ou terem sido utilizadas anteriormente sem retoques e posteriormente foram retocados visando revitalizar o gume gasto, ou ainda podem tratarem-se de lascas provenientes de distintas etapas da cadeia operatória, mas que foram retomadas como instrumentos. Outro fator observado é que os instrumentos elaborados sobre suportes naturais são geralmente de maior tamanho que os elaborados sobre suportes "debitados", o que pode sugerir funcionalidades distintas para os dois conjuntos. Ao mesmo tempo, a questão do tamanho pode implicar em modalidades preensivas distintas para as peças, ou seja, em diferentes gestos de utilização. As preensões podem basicamente ser divididas em duas categorias, as de força e as de precisão. Conforme Napier (1983), a preensão de força é aquela em que o objeto é pressionado contra a palma da mão pela superfície dos dedos, onde o polegar atua como agente amortecedor e intensificador da força. Já as preensões de precisão são aquelas onde o objeto é segurado entre a almofada terminal do polegar e as almofadas das pontas dos dedos, sendo empregadas quando a ação exige delicadeza do manuseio e a justeza do trabalho. Assim, os instrumentos elaborados em suportes "não debitados" parecem ter sidos utilizados por meio das preensões de força, portanto utilizado para trabalhos onde se exige mais força do que precisão, ao contrário da grande maioria dos instrumentos elaborados sobre suportes debitados, que apresentam dimensões bastante reduzidas e sugerem preensões de precisão, portanto relacionados com trabalhos mais suaves, que requerem maior precisão do que a força (Imagem 67).

Imagem 67 - Preensão dos diferentes conjuntos de instrumentos, de força e precisão, respectivamente.

123

3.3.4 As lascas.

Muitas vezes os pré-historiadores acabam por não dar a atenção devida a este conjunto de peças por acreditarem que estas não passam de resíduos de lascamento, sendo, portanto, secundários na interpretação de uma coleção, porém as lascas podem trazer valiosas informações e devem ser estudas em um patamar paralelo aos das demais peças de uma coleção lítica, possibilitando assim uma melhor compreensão de seu papel nas cadeias operatórias. A coleção é composta por um total de 541 lascas, porém um dos maiores problemas existentes é a diferenciação entre as pequenas lascas de débitage, associadas a processos como os de eliminação de cornija, preparação dos planos de percussão e das superfícies de lascamento, com as lascas de retoque. Como foi possível ver anteriormente, os retoques existentes nos instrumentos são extremamente discretos e variáveis, o que torna difícil traçar um padrão característico para os mesmos, o que nos obriga (pelo menos momentaneamente) a considerar as pequenas lascas da coleção como relacionadas às etapas de débitage, tendo em vista o papel distintivo que tal processo ocupa na coleção. A primeira questão que pode-se observar com a análise do material é que a coleção lítica do sítio Santa Clara está vinculada majoritariamente a uma indústria de lascas, sendo as lâminas25

demasiadamente

escassas,

deste

modo,

salvo

exceções,

existe

uma

proporcionalidade entre o comprimento e a largura das lascas. A coleção como um todo não parece nos dar indícios de uma busca recorrente por produzir suportes laminares, pois segundo Inizan et al (1995, p. 73), uma débitage laminar propriamente dita é aquela organizada e preconcebida a fim de gerar produtos laminares em série sobre um mesmo núcleo. Segundo os autores, a presença esporádica de lâminas em uma coleção (como ocorre no Sítio santa Clara), não é fator diagnóstico de uma débitage laminar, mas sim uma produção sistemática destas. Outra característica que podemos observar é que a coleção apresenta peças relativamente de pequenas dimensões (Gráfico 10), onde as maiores lascas dificilmente ultrapassam os 90 milímetros de comprimento. Entretanto estas dimensões não parecem estar relacionadas a uma limitação imposta pelas proporções das matérias primas disponíveis, pois 25

Por convenção, são consideradas lâminas aquelas lascas cujo comprimento é igual ou superior ao dobro da largura (INIZAN et al, 1995, p. 73). Contudo alguns autores como Leroi-Gourhan (1981 p.228), tendem a considerar como "lasca laminar" aquelas lascas mais longas que largas, no entanto, sem que seu comprimento ultrapasse o dobro de sua largura (PELEGRIN, 1988, p.344).

124

como já havia sido demonstrado anteriormente, a região de estudo apresenta uma grande diversidade de formas e tamanhos das matérias primas. Acredita-se que a proporção das peças está relacionada na verdade a forma como são estruturados os núcleos, sobretudo aqueles elaborados sobre lascas, revelando escolhas técnicas por parte dos lascadores, pois a dimensão dos produtos de lascamento parecem estar muito mais relacionados aos métodos de débitage e o modo de estruturação dos núcleos do que supostas "imposições naturais".

90 80 70

Milímetros

60 50 40 30 20 10 0 Comprimento

Largura

Espessura

Gráfico 10 – Dimensão média das lascas.

Com a análise das peças foi possível identificar que a coleção possui uma variada gama de formas das lascas (Gráfico 11), sendo as mais recorrentes as retangulares, seguidas das quadrangulares e triangulares, ocorrendo em menores quantidades peças com formato circular, semi-circular e trapezoidal.

125

3% 11%

Circular

8%

Semi-Circular 18% 25%

Quadrangular Retangular Triangular Trapezoidal

35%

Gráfico 11 – Formato das lascas.

Estes formatos mais recorrentes obviamente não são mera obra do acaso, mas na verdade reflexos da maneira como era organizada e gerida a débitage. Esta relação pode ser facilmente percebida quando se compara o formato das lascas (Gráfico 11) com a orientação dos negativos presentes nas mesmas (Gráfico 12). A maior parte das lascas apresenta negativos paralelos e de mesmo sentido ou então negativos paralelos convergentes. A convergência de negativos parece possibilitar a implantação de critérios técnicos que permitam a retirada de lascas triangulares; enquanto que o ato de realizar retiradas paralelas possibilita na maior parte dos casos a obtenção de produtos de forma tanto quadrangular quanto retangular, onde o comprimento da peça está diretamente relacionado com a extensão da superfície de lascamento da qual esta foi desprendida (Imagens 68 e 69).

Paralelos de mesmo sentido Convergentes

4% 3%

0%

10%

Perpendiculares 7% 14%

Centrípeto 62%

Paralelos de sentido oposto Corticais Indeterminados

Gráfico 12 – Orientação dos negativos.

126

Imagem 68 - Formato das lascas em relação com a orientação dos negativos. Quadrangular e retangular com negativos paralelos de mesmo sentido e triangular com negativos convergentes de mesmo sentido.

Imagem 69 – Formato do suporte dos instrumentos do sítio Santa Clara em função das combinações de negativos.

127

Os principais tipos de talões observados são os lisos, abrangendo mais da metade da coleção, porém sob uma óptica geral, esta apresenta uma grande variabilidade de tipos (Gráfico 13) que mesmo em menores proporções demonstra que os lascadores dominavam diferentes formas de preparação, configuração e manejo dos núcleos. A análise destas peças sugere que existia uma preferência por iniciar a débitage a partir de superfícies planas, e sem córtex. Isso está diretamente relacionado com a produção de núcleos sobre lasca onde, na maioria dos casos, a percussão parte da face inferior de uma grande lasca, portanto de uma superfície plana, sem córtex ou negativos, e ao que tudo indica vinculando a coleção a uma indústria unifacial.

2% 4%

4% Puntiforme 8%

Facetado Diédro

16%

Linear Cortical

66%

Liso

Gráfico 13 – Tipos de Talão.

Quanto a dimensão média dos talões (Gráfico 14), foi possível perceber que são espessos e largos, sendo proporcionais ao tamanho médio das lascas. Isso nos indica que a percussão da débitage era muito mais interna do que periférica, o que pode sugerir um uso preferencial da técnica de percussão direta com percutor duro. Do contrário seria necessário que a percussão fosse realizada mais na extremidade do plano de percussão, o que resultaria em proporções menores dos talões (largura e espessura) e bulbos menos salientes.

128

80 70

Milímetros

60 50 40 30 20 10 0 Largura

Espessura

Gráfico 14 – Dimensão média dos talões.

Outro fator que parece corroborar com a hipótese de utilização preferencial de percussão dura é que os bulbos das lascas são majoritariamente salientes e apresentam ponto de percussão bem marcado, sendo rara a presença de bulbos difusos. Assim, ao relacionaremse as dimensões dos talões das lascas (Gráfico 14), os tipos de bulbo (Gráfico 15) e a preferência por superfícies planas para o lascamento (fator atestado pela predominância de talões lisos), o que tudo indica é que a técnica de lascamento preferencial empregada na débitage seja a percussão direta com percutor duro (Imagem 70).

3%

30%

Saliente Difuso 67%

Gráfico 15 - Tipos de Bulbo.

Duplo

129

Imagem 70 - Percussão dura com percutor de pedra (SEMENOV, 1964, p. 41).

130

CONCLUSÃO

Agora é chegado o momento de sintetizar e refletir acerca das principais conclusões e hipóteses que puderam ser obtidas durante a análise do sitio arqueológico Santa Clara e seus testemunhos líticos. Aliado a uma densa revisão bibliográfica da literatura arqueológica do sudoeste do Rio Grande do Sul e do noroeste do Uruguai, a coleção foi pensada a luz dos conceitos analíticos da perspectiva tecnológica francesa, onde os diferentes elementos constituintes de uma indústria lítica são pensados em termos estruturais e não tipológicos. Dessa forma foi possível perceber que a tipologia ao longo de cerca de cinco décadas de tentativas de esquematização não foi suficientemente heurística para dar conta da realidade das indústrias líticas da região e classificá-las satisfatoriamente. Pois grande parte dos estudos realizados visavam encaixar ou transpor modelos tradicionais da pré-história à realidade regional. Mesmo que em um primeiro momento essa atitude tenha servido para classificar sumariamente a fisionomia destes conjuntos, por outro lado acabou por menosprezar a complexidade dos mesmos, que acabaram sendo rotulados muitas vezes como "toscos" ou "primitivos". Antes de tudo e independentemente da vertente teórica empregada para a interpretação do material, é indispensável que as atuais pesquisas busquem compreender as indústrias líticas da região a partir de seus próprios elementos constituintes e não tentar encaixar "modelos prontos", ou continuaremos a repetir os erros das gerações anteriores de pré-historiadores, e acabaremos fazendo novamente o papel de Procrustes. Tendo em vista o panorama arqueológico traçado com a revisão bibliográfica (Capítulo 1), acredita-se que estamos inseridos em um período não apenas de revisão destas indústrias, mas de reinterpretação das mesmas, pois os trabalhos das últimas décadas já vem mostrando o quanto são frágeis os critérios que foram empregados para a classificação e construção das diferentes indústrias, tradições, fases e complexos. Além disso, o vocabulário até então empregado pelos arqueólogos no estudo do material lítico da região é demasiadamente hermético e carece de definições conceituais, dificultando o diálogo entre os pesquisadores e impondo barreiras a livre interpretação dos dados. Outra questão importante a se discutir, diz respeito à necessidade de integração de dados e de diálogo entre os arqueólogos de ambos os lados da fronteira sem deixar que os

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atuais limites nacionais se sobreponham a interpretação e a compreensão desta grande região arqueológica situada na intersecção das fronteiras entre Brasil e Uruguai. Outro aspecto que se mostrou extremamente prejudicial à interpretação dos dados no passado, foi a demasiada atenção dada por parte dos arqueólogos a determinados objetos (fósseis-guia), tomando-os como elementos definidores de uma determinada "tradição" ou "indústria", ao invés pensarem as coleções em sua totalidade, levando em conta as principais técnicas, métodos e conceitos de lascamento identificáveis. Com isso foi criado o hábito de considerar, a "tradição Umbu", o "Catalanense", o "Cuareimense", por exemplo, como entidades étnicas. Sendo nítida essa atitude quando diz respeito a certos objetos facilmente reconhecíveis, como as "pontas de projétil líticas". Estes objetos acabaram tornando-se rapidamente testemunhos de uma cultura e seriam encontrados nas áreas de dispersão das mesmas, o que levava os arqueólogos a chamarem de "os Catalanenses" ou os "Umbus". Ora, estes testemunhos, tratam-se de modos de fabricar determinados objetos, portanto é preciso abandonar a presunção de procurar a personalidade íntima de uma etnia a partir de determinados utensílios, mas pensá-los como matrizes de uma diversificação étnica. Este trabalho não tinha como objetivo realizar uma vinculação do material lítico do sítio Santa Clara às indústrias da região, não por uma questão de impossibilidade, mas justamente por acreditar-se que é urgentemente necessária uma reinterpretação e problematização dos critérios classificatórios destes conjuntos. Além disso, seria uma atitude demasiadamente tradicional e perpetuadora dos estereótipos fisionômicos destas indústrias, uma vez que o sítio traz em si elementos, que em maior ou menor grau, poderiam ser passíveis de associação a qualquer indústria lítica da fronteira sudoeste. Por exemplo, o sítio apresenta instrumentos com retoques em entalhe (muescas, na literatura regional), núcleos elaborados sobre lasca e suportes "proto-levallois", produtos que seriam tipicamente associados à indústria Catalanense; ao mesmo tempo apresentaria tanto núcleos e instrumentos elaborados em seixo, que são artefatos característicos do Cuareimense. Por outro lado ofereceria elementos associáveis aos sítios paleoindígenas, como uma datação situada na transição do Pleistoceno para o Holoceno (12.870 ± 2.050 A.P) e instrumentos não retocados (chamados de "lascas utilizadas" na literatura regional) descritos para a fase Ibicuí, porém estariam ausentes as "típicas" pontas acanaladas (fish-tail) assim como a associação à megafauna. Ainda, se fosse adotada uma postura inspirada nos pressupostos do PRONAPA, seria possível classificar tal variabilidade de elementos de distintos conjuntos, como pertencentes a um "complexo arqueológico" como o Itaqui ou mesmo o vizinho Areal.

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Isso tudo sem recorrer ao grande "coringa arqueológico" do Brasil Meridional que é a Tradição Umbu, pois mesmo que o Santa Clara não apresente pontas de projétil26, tal tradição conta com elementos extremamente englobantes que de uma forma ou de outra permitiriam uma vinculação sem grandes esforços. Como foi visto no item 1.5 do Capítulo 1, para além da suposta homogeneidade das pontas de projétil pedunculadas, os demais critérios desta tradição são extremamente vagos e dilatados. A tradição Umbu segundo os principais autores (KERN, 1984; Ribeiro, 1982; Shcmitz, 2006), supostamente, possuiria percussão direta (dura e macia), indireta, percussão sobre bigorna e lascamento por pressão, ou seja, praticamente todas as técnicas de lascamento empregadas na pré-história. Caracterizar-se-ia por ser uma tradição de lascas, mas ao mesmo tempo de lâminas, apresentando tanto pontas com pedúnculo quanto sem, possuiria tanto instrumentos unificais quanto bifaciais. Tudo isso somado a uma grande amplitude espacial e temporal, que leva a pensar que dentre os conjuntos descritos no Capítulo 1, a Umbu é a que apresenta os maiores problemas em sua construção, sobretudo por seu caráter demasiadamente genérico e amplo no que se refere aos critérios de identificação e classificação. Se fossemos considerar a cronologia atribuída a esta tradição, a sua dispersão, as técnicas empregadas no lascamento e os artefatos característicos, poderíamos considerar qualquer sítio associado a caçadores-coletores no Cone-Sul, em maior ou em menor grau associado à Tradição Umbu. Sendo assim, acredita-se que já está mais do que na hora de abandonarmos a cômoda utilização desta grande falácia arqueológica que é a tradição Umbu. No que se refere às características do sítio Santa Clara, podemos afirmar que sua cronologia é predominantemente holocênica, apresentando uma série de 13 datações (LOE) entre 26 e 100 cm de profundidade, com um intervalo de ocorrência de materiais líticos situado entre 2.135 ± 330 e 8.000 ± 985 anos antes do presente. E somente uma datação (LOE) que recua a cronologia do sítio para a transição do Pleistoceno para o Holoceno em 12.870 ± 2.050 A.P, a 110 cm de profundidade. Sendo assim, mesmo que o sítio apresente um grande potencial arqueológico, por ser estratificado27, localizado em um topo de interflúvio e possuir uma datação recuada para a região, é preciso que os pesquisadores tenham cautela antes de bradar aos quatro cantos da comunidade científica a antiguidade deste, pois os trabalhos ainda encontram-se em fase inicial. E, portanto, sendo necessário dar continuidade aos trabalhos de campo, priorizando

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Pelo menos não na área escavada do sítio. Lembrando que a grande maioria dos sítios da região são superficiais, fator que sempre dificultou a classificação de seus testemunhos materiais. 27

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escavações mais horizontalizadas e voltadas para a identificação (com clareza) de camadas ocupacionais e para a busca de outros elementos para datações absolutas, para ai sim estabelecer um panorama técnico-cronológico para o sítio e poder considerá-lo como um referencial para a ocupação humana regional. Por outro lado, também já está mais do que na hora dos pesquisadores pararem de se espantar com a existência de sítios com datações situadas na transição do Pleistoceno para o Holoceno na fronteira sudoeste, pois historicamente, tanto o sudoeste do Rio Grande do Sul, quanto o Noroeste do Uruguai, apresentam as datações mais antigas da área. Por exemplo, no Uruguai temos os sítios K – 87, Y – 85 e o Pay Paso, enquanto para o Rio Grande do Sul temos o RS – I – 50, o RS – Q – 2, RS – I J - 68, todos relativamente próximos ao Santa Clara. Em relação às características dos testemunhos líticos do sítio, a análise do material permitiu identificar que a coleção pode ser vinculada a uma indústria preferencialmente de débitage, cujos principais suportes buscados para os instrumentos são as lascas de morfologia triangular, quadrangular e retangular. Eventualmente são encontrados suportes laminares, entretanto, estes não parecem ser o objetivo principal do lascamento, pois na coleção estão ausentes os núcleos voltados exclusivamente para a produção sequencial destes produtos, o que leva a crer, que tais lâminas sejam na verdade variações alongadas dos suportes de morfologia retangular, cujos núcleos possuiriam uma superfície de débitage mais longa. A grosso modo, os instrumentos do sítio podem ser divididos em dois conjuntos com base no modo de como formam produzidos. O primeiro conjunto corresponde a 96 % dos instrumentos e abarca todos aqueles produzidos a partir de suportes "debitados", ou seja, sobre lascas, mas eventualmente sobre lâminas. Os 4% restantes, equivalem àqueles instrumentos elaborados em "suportes naturais", como seixos e pequenos blocos. Como é possível perceber, ambos os grupos de instrumentos obedecem a lógicas produtivas distintas, pois enquanto no primeiro existe um investimento técnico maior visando, por meio da débitage, produzir suportes com características específicas, no segundo caso está em jogo a busca por critérios técnicos naturalmente presentes nos blocos, bastando unicamente a produção de um gume para finalizar o instrumento. Os instrumentos elaborados sobre lasca apresentam uma peculiaridade interessante e pouquíssimas vezes descrita (ou mesmo utilizada como critério classificatório) para os materiais líticos da região, que é a presença de instrumentos não retocados, conhecidos na literatura regional como "lascas utilizadas". Estes instrumentos cujo gume produzido durante o lascamento não foi restruturado por meio retoques corresponde a 51% dos instrumentos

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sobre lasca. Contudo, realizar uma divisão entre instrumentos retocados e não retocados para o caso do Santa Clara, é uma atitude arbitrária e unicamente com função analítica, pois os retoques dos instrumentos da coleção são extremamente irregulares, distanciados e curtos. Sendo assim, e salvo exceções, o trabalho de retoque na coleção é periférico e não altera drasticamente a estrutura do suporte originário, parecendo apenas acompanhar a delineação de seu gume. Isso não pode ser tomado como sinônimo de uma simplicidade técnica na coleção, mas justamente o contrário, pois a produção de instrumentos cujas características do suporte não são alteradas, implica um esquema de lascamento bastante complexo. Onde todas as características do futuro instrumento (como forma, tamanho, morfologia e inclinação do gume) precisam ser pensadas ainda na concepção e estruturação volumétrica do núcleo, neste caso existindo uma equivalência entre o suporte e o instrumento final (Suporte ⇔ Instrumento final). A análise dos instrumentos, dos núcleos e dos produtos de débitage, permitiu identificar que existe uma recorrência na morfologia dos suportes produzidos, destacando se os triangulares, os quadrangulares e os retangulares (que podem transicionar para laminares). O estudo dos negativos presente na face superior destas peças, permitiu identificar que suas morfologias estão relacionadas a combinação de nervuras durante a preparação da superfície de lascamento, onde geralmente as peças triangulares decorrem da convergência de negativos, enquanto que as demais provém da combinação de negativos paralelos de mesmo sentido. Quanto aos núcleos do sítio, estes podem ser mais bem classificados em reação a seus volumes inicias e suas estruturas do que por descrições morfológicas. Levando em conta a concepção estrutural de núcleo, proposta por Boëda (2013), pode-se afirmar que todos os núcleos da coleção são de estrutura adicional (ou abstrata), estando ausentes aqueles de estrutura integrada (ou concreta). Os núcleos de estrutura adicional são compostos por dois volumes independentes, o volume útil, ou seja, o núcleo propriamente dito e estruturado em uma determinada superfície, e um volume residual, que em um primeiro plano é inerte e não possui papel técnico algum na estruturação do núcleo. Nestes casos o volume útil é diferente do volume do núcleo, o que implica que todos os núcleos presentes no sítio se limitem a explorações superficiais e não volumétricas. Podendo em alguns casos os volumes residuais servirem como base para a elaboração de outros núcleos, porém que não possuem ligação alguma com os demais núcleos presentes no "Volume Inicial".

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Com isso foi possível perceber que existem duas grandes categorias de núcleos no sítio, aqueles produzidos sobre pequenos blocos ou seixos e aqueles elaborados sobre grandes lascas. Os primeiros estão relacionados a um esquema de débitage de "Tipo C", e cuja forma originária denominamos de "Volume Inicial I", neste caso parece haver uma busca por caracteres técnicos naturalmente presentes no bloco, como a existência de superfícies naturalmente planas, a partir dos quais é iniciada a débitage e configuração do núcleo. O segundo grupo apresenta um processo de débitage de "Tipo D", sendo aqueles cuja estrutura sobre a qual será configurado o núcleo é uma grande lasca, a qual denominou-se de "Volume Inicia de tipo II". As cadeias operatórias relacionadas a exploração de núcleos sobre lasca obrigatoriamente guardam a particularidade de apresentarem um momento de ruptura em seu curso, devido ao fato de que para se produzir o "Volume Inicial II"28, é necessário que exista obrigatoriamente antes um processo de débitage voltado para sua obtenção. Neste caso o objetivo desta primeira etapa de débitage, seria orientado para a obtenção de uma grande lasca, que em uma segunda etapa de débitage, seria retomada como base para a elaboração de um núcleo, aí sim, com a finalidade de se obter suportes para instrumentos. A coleção do sítio Santa Clara apresenta apenas vestígios desta segunda etapa de débitage, o que leva a crer que a primeira etapa tenha ocorrido em outros sítios da região, cujas características técnicas dos testemunhos líticos sejam distintas das presentes na coleção do Santa Clara. Provavelmente tais sítios apresentem peças de proporções maiores, com uma maior presença de córtex em suas superfície e cuja exploração pareça ser voltada para a obtenção de lascas. As cadeias operatórias da exploração dos núcleos sobre lasca podem ser divididas em dois grupos, segundo o método de exploração e os suportes obtidos. No primeiro grupo, a face inferior do "Volume Inicial II" é utilizada como plano de percussão enquanto que a face inferior deste assume o papel de superfície de débitage. O segundo tipo corresponde ao mundialmente conhecido e até então inédito para a região, método Kombewa, neste caso a face superior da lasca assume o papel de plano de percussão enquanto que a face inferior é convertida em superfície de débitage. O objetivo consiste em explorar a convexidade presente na face inferior de uma grande lasca (Volume Inicial II) realizando para isso retiradas na altura do bulbo, fazendo com que os suportes "debitados" assumam uma morfologia circular ou semi-circular e muitas vezes guardem em sua face superior o ponto de impacto que estava

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Ou seja, a lasca que vai servir como base para a configuração de um núcleo.

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presente no "Volume Inicial II". Isso faz com que muitas vezes os suporte obtidos por meio do método Kombewa deem a impressão de possuírem duas faces inferiores. Como o sítio Santa Clara é estratificado e os trabalhos de campo não permitiram identificar com clareza intervalos ocupacionais, é importante salientar que este trabalho buscou isolar as diferentes cadeias operatórias que se encontravam justapostas no registro arqueológico, por isso, ainda não podemos afirmar definitivamente se estas diferentes cadeias operatórias são sincrônicas ou diacrônicas. E da mesma forma não podemos dizer se estas constituem uma ou mais indústrias líticas, sendo assim é necessário que os trabalhos futuros sejam direcionados a busca de sítios que possibilitem uma clara identificação de horizontes cronológicos para a região de Quaraí, para que possamos começar a relativizar e problematizar as classificações das indústrias líticas da região entre fronteiras.

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ANEXOS

ANEXO A - Carta topográfica com a localização dos sítios Santa Clara, Areal e Severo em Quarai.

150

151

ANEXO B: GRAVURAS RUPESTRES AREAL

152

ANEXO C: GRAVURAS RUPESTRES AREAL

ANEXO D - Carta topográfica com a localização do Cerro do Jarau, e do acampamento de Balduíno Rambo em Quarai.

153

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