Tecnologia, objetividade e superação da metafísica (Livro digital)

July 5, 2017 | Autor: R. Henriques | Categoria: Philosophy, Metaphysics, Communication, Technology
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Editora filiada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu) Av. Fernando Ferrari · 514 · Campus de Goiabeiras CEP 29 075 910 · Vitória – Espírito Santo, Brasil Tel.: +55 (27) 4009-7852 · E-mail: [email protected] www.edufes.ufes.br Reitor | Reinaldo Centoducatte Vice-Reitora | Ethel Leonor Noia Maciel Superintendente de Cultura e Comunicação | Ruth de Cássia dos Reis Secretário de Cultura | Rogério Borges de Oliveira Coordenador da Edufes | Washington Romão dos Santos Conselho Editorial | Agda Felipe Silva Gonçalves, Cleonara Maria Schwartz, Eneida Maria Souza Mendonça, Gilvan Ventura da Silva, Glícia Vieira dos Santos, José Armínio Ferreira, Maria Helena Costa Amorim, Orlando Lopes Albertino, Ruth de Cássia dos Reis, Sandra Soares Della Fonte Secretária do Conselho Editorial | Fernanda Scopel Falcão Comitê Científico de Ciências Humanas | Anna Marina Madureira Barbará Pinheiro, Antonia de Lourdes Colbari, Fábio Vergara Cerqueira, José Pedro Luchi, Marcos Antonio Lopes, Maria Manuela dos Reis Martins, Michael Soubbotnik, Renan Frighetto, Surama Conde Sá Revisão de Texto | Rafael Cavalcanti do Carmo Foto do autor | Re Henri Projeto Gráfico e Diagramação | Izabelly Possatto Capa | Willi Piske Júnior Revisão Final | Rafael Paes Henriques

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) Henriques, Rafael Paes, 1980H519t Tecnologia, objetividade e superação da metafísica / Rafael Paes Henriques. - Vitória : EDUFES, 2014. 174 p. ; 21 cm Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7772-187- 0 1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Nietzsche, Friedrich Wi lhelm, 1844-1900. 3. Tecnologia. 4. Objetividade. 5. Existencialismo. 6. Metafísica. I. Título. CDU: 111

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Vitória, 2014

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A Catarina, meu destino.

Agradecimentos Ao professor Gilvan Fogel, pela generosidade da acolhida. Ao professor Fernando Pessoa, cujas aulas me despertaram para a questão da técnica. À Capes, pelo financiamento desta pesquisa.

“Porque o caminho para o que está próximo é para nós, homens, sempre o mais longo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é um caminho de reflexão”. Martin Heidegger

apresentação Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva. Hölderlin

Um mestre do pensamento sempre dizia que para fazer filosofia é preciso ter chispa. Chispa é dom, um misto de aptidão, vontade e decisão, que confere um talento para a coisa, um querer e saber fazer. Como dom, a chispa é a doação, a entrega, a paixão que, transformando o possível em necessário, descobre a liberdade de deixar o ente ser o que ele é; ela é o que concede ao homem deslindar as suas tarefas com graça, em uma apropriação do destino. Para fazer filosofia é preciso ter chispa porque, ao contrário das ciências que demandam a astúcia do cálculo para resolver os seus problemas, as questões filosóficas precisam ser ruminadas com a serenidade da meditação; ao contrário da volúpia em resolver os problemas, a filosofia impõe o amor às questões. Como afirma Heidegger, acerca de um dito de Nietzsche, a filosofia é a investigação extraordinária do extraordinário. Avessa a todo ordinário, a investigação filosófica busca compreender aquilo que se esconde na evidência das coisas, no óbvio do que é habitual. Por investigar o extraordinário, a filosofia abandona toda e qualquer realidade já conhecida, para interrogar o que o ente é. Ao questionar o ente, a filosofia 11

não se detém nesta ou naquela realidade efetiva, mas busca compreender a totalidade do real, a própria constituição de sua realidade: por que há simplesmente o ente e não antes o nada? Ultrapassando todo particular no questionamento da totalidade, a envergadura da questão filosófica é a mais ampla possível, o seu arco abarca tudo que é e tudo que não é. E ao questionar o ente na possibilidade mais fundamental do nada, a questão da filosofia é também a mais profunda de todas as questões. Por ser a mais ampla e a mais profunda das questões, a investigação filosófica engloba aquele que a investiga, promovendo uma repercussão do que é investigado em quem investiga que transforma as suas compreensões consolidadas no hábito: por sua amplitude e profundidade, a questão filosófica é também a mais originária das questões. A filosofia é a investigação do extraordinário por seu questionamento ultrapassar todo ente particular na interrogação fundamental da totalidade do real; e ela é extraordinária porque transforma originariamente aquele que investiga a sua questão. Assim, por ser a investigação extraordinária do extraordinário, aquela que promove o questionamento mais amplo, mais profundo e mais original da realidade, não se aprende filosofia com o esforço de exercícios intelectuais, com a objetividade dos raciocínios lógicos, mas é preciso ter chispa para a coisa. Mas, como se ensinar a ter chispa? Não se ensina, só se aprende; se o senhor compreende compreende, se não compreende como vai compreender? Isso significa que a filosofia não é uma investigação disponível a todos, mas somente àqueles que amam (filo) conhecer (sofia). Pela própria amplitude, profundidade e originalidade do questionamento filosófico, para fazer filosofia não é suficiente apenas o esforço acadêmico e a obtenção de diplomas, é preciso ter chispa: a chispa é a philia da filosofia, a condição de possibilidade de sua sabedoria. Pois, esse preâmbulo foi para dizer que o Rafael tem chispa para a filosofia!! Com graduação e mestrado em comunicação, e já trabalhando com jornalismo na TV, Rafael não abandonou os seus estudos em filosofia, e foi fazer doutorado com o Gilvan na UFRJ, o mestre do pensamento. Como fruto desse estudo, este texto que tenho a felicidade de apresentar. Todo professor fica feliz ao ver o êxito, a fortuna de seus alunos com aquilo que estudaram em seus cursos; a maior recompensa do magistério em filosofia consiste em saber que as suas aulas despertaram o aluno para uma questão, como Rafael declarou nos agradecimentos de sua tese: “Ao professor Fernando Pessoa, cujas aulas me despertaram para a questão da técnica”. A 12

técnica é uma das mais urgentes e importantes questões filosóficas da atualidade, afirma a última frase da introdução deste trabalho. Se vivemos em uma época caracterizada historicamente como “era tecnológica”, isso significa que a tecnologia constitui o fundamento de nossas compreensões da realidade, ela é o horizonte a partir do qual o homem contemporâneo se relaciona com o mundo e com os outros homens. Sendo o fundamento, o horizonte de nossas compreensões, a tecnologia propõe não só solucionar todos os problemas atuais, mas aperfeiçoar a natureza, corrigindo os seus defeitos. O perigo do monocórdio tecnológico de nossa época é a geração de um homem sem espírito, com o coração máquina. Com o propósito de compreender “o que quer a vontade que impulsiona o homem a buscar cada vez mais tecnologia”, este estudo busca pensar com Heidegger e Nietzsche como a tecnologia moderna surge da própria tradição metafísica do pensamento ocidental, sendo uma destinação de sua história: “identificamos uma consanguinidade da técnica moderna com a própria metafísica, uma vez que ambas partilham uma mesma origem, direção e sentido, qual sejam, a objetivação, representação e controle do mundo em que vivemos”. Tanto Nietzsche, com a caracterização do chamou de vontade de verdade, quanto Heidegger, com a sua crítica ao império do binômio ciência e tecnologia, ambos mostram como há no modo de pensar ocidental moderno uma sanha pelo controle e dominação incondicional de todas as coisas. O trabalho de Rafael tece apropriadamente o pensamento desses dois filósofos, mostrando, por um lado, como a técnica moderna, a tecnologia, descobre o real na perspectiva da objetividade, a fim de dominar e, assim, explorar a natureza; e, por outro lado, como é possível uma superação dessa perspectiva metafísica da atual relação do homem com o mundo. Com título Tecnologia, objetividade e superação da metafísica, Rafael apresenta a questão da essência da técnica moderna (cap. 1), mostrando como ela se constitui em um modo de desencobrimento do real que, a partir de objetividade, representação e certeza (cap. 2), submete toda a realização à bitola da dominação e exploração incondicionais da composição (Gestell): “a composição dispõe e pré-põe a realidade de maneira a torna-la sempre plenamente verificável e controlável pelo homem”. Após fazer essa radiografia de nossa época e diagnosticar o perigo da moderna relação do homem com o mundo, o trabalho ainda busca pensar como é possível uma superação da metafísica que, dando limite à vontade da tecnologia, transforme o homem atual (cap. 3). 13

Em uma escrita acessível, que alia o rigor do pensamento com o prazer do texto, este estudo do Rafael oferece uma grande contribuição à elucidação de umas das questões mais importantes de nossa época, sendo, portanto, de grande valia a sua leitura. Como todo bom trabalho de filosofia, este texto é um convite ao pensamento que, demandando a transformação da relação do homem com o mundo, propõe uma outra destinação de nossa história.

Fernando Pessoa Professor de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo

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SUMÁRIO

Introdução .................................................................. 19 Capítulo 1 – A técnica como questão ........................... 23 1.1- O sentido da técnica ............................................... 26 1.2- A ação da técnica .................................................... 41 1.3- O perigo da técnica ................................................ 55

Capítulo 2 – Objetividade, representação e certeza ...... 69 2.1 - A pergunta pela coisa ............................................. 73 2.2 - A separação sujeito X objeto .................................... 2.3 – Objetivação e pensamento calculador ......................

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Capítulo 3 – Tecnologia e superação da metafísica ..... 121 3.1 Técnica e meditação .............................................. 131 3.2 A medida da ação técnica ........................................ 140 3.3 A superação da metafísica ....................................... 147

Considerações Finais .................................................. 161 Referências Bibliográficas ......................................... 171

Introdução

Além de indicar origem, a noção grega de arché contém também a ideia de envio. É que toda gênese traz em si uma determinada configuração, uma disposição para certo modo de ser, uma forma, uma destinação. É claro que com isso não se quer afirmar nenhum fatalismo ou determinismo da realidade; nem se quer sustentar que não há devir em tudo aquilo que se realiza. Ao contrário, o que essa interpretação do termo pretende apontar é que, além de fazer vir a ser, toda geração transmite uma herança àquilo que nasce: uma espécie de força; um vigor imperante; um certo poder ser. Isso quer dizer, justamente, que a proveniência não somente realiza o que é, como também o faz sempre com um certo encaminhamento, de uma dada maneira e não de outra. Entretanto, investigar a arché não é ficar procurando alguma coisa em algum lugar remoto do passado; não é o esforço de olhar para trás com o intuito de revelar a substância ou a essência da realidade, que estaria esquecida ou escondida pela ação do tempo, mas que, em última instância, seria a causa primeira de tudo que acontece. Antes disso, pensar gênese significa exatamente tentar compreender o que nos é mais próximo: é enxergar, no presente, a força, o vigor e a orientação de nascimento. 19

Nesse modo de se compreender o movimento de realização da realidade, é preciso investigar o jogo de presente, passado e futuro, não como espaços de tempo estanques e em si mesmos, mas justamente como uma complexa relação que inclui, no sendo, a força do ter sido e o envio do assim será que nos sobrevém, isto é, que vem ao nosso encontro e nos toma no presente, como promessa. Assim como o passado não é da ordem do que passa, mas algo que perdura e permanece de alguma maneira no presente, na vigência do ter sido, o futuro também não é um continente, um substrato ou receptáculo no qual se faz projeções, e sim algo que irrompe no hoje. “O hoje tem a sua proveniência no vigor de ter sido, ao mesmo tempo, é exposto ao que sobrevém” (HEIDEGGER, s/d. b, p. 2). É com esse espírito que este trabalho quer investigar a atualidade. Em nossa época, parece haver uma espécie de provocação onipresente; um chamado que nos convoca a revelar a existência segundo um princípio particular de construção do mundo. Somos convocados o tempo inteiro a produzir tecnologicamente o real no qual já estamos sempre inseridos e, para onde quer que se olhe, é possível encontrar manifestações desse direcionamento. Além dos mais evidentes dispositivos eletrônicos, como as novas tecnologias da comunicação e suas ferramentas, como os tablets, smartphones e computadores portáteis, e outros instrumentos maquínicos como os meios de transporte, a técnica moderna já transformou até mesmo as ciências da natureza, segundo seu modo de gestão da experiência. Prova disso é a crescente importância das neurociências, da cibernética e da nanotecnologia. Há também as biotecnologias, fundindo o orgânico e o inorgânico, que autotelizam a técnica e sonham com uma nova criação, de seres híbridos, que corresponderiam a uma superação da própria vida humana, uma vida imaginariamente enriquecida e melhorada biotecnologicamente. Sendo assim, está claro que é bem fácil constatar que a tecnologia está cada vez mais presente em nosso cotidiano. E mais que isso: parece que o desenvolvimento de novos dispositivos e aplicações tecnológicas está, a cada dia, mais acelerado, como se não houvesse limite ou obstáculos capazes de impedir a vontade humana de prever, dominar, controlar, melhorar, corrigir o real e, hoje, de até mesmo substituí-lo pelo virtual. Só que para fazer da tecnologia um objeto de estudo atual, no sentido que expusemos anteriormente, não basta que ela esteja muito presente em nosso dia-a-dia, como se a abordagem ao problema fosse mero detalhe ou uma questão de livre escolha do pesquisador. É necessário investigar a sua arché. Isso porque a técnica moderna pensada tecnicamente, ou seja, a tecnologia por ela mesma, pertence, na verda20

de, à dimensão do cálculo, e não convoca nenhuma questão filosófica; não põe problema algum à nossa capacidade de reflexão. Desse modo, se quisermos, realmente, compreender o seu funcionamento, o esforço deve ser o de procurar qual é o vigor (origem) e o envio (destino) nos quais a tecnologia se estrutura; atualizar a questão é tentar esclarecer de onde vem a associação de técnica e ciência, e o que ela pretende cumprir. Esta pesquisa quer entender o que quer a vontade que impulsiona o homem a buscar cada vez mais tecnologia, esclarecendo a gênese e o encaminhamento desse projeto. Para tanto, o principal ponto de ancoragem deste livro serão as investigações heideggerianas sobre a tecnologia, que problematizam sobretudo a objetivação dos entes operada por esse modo de desvelamento. Ao pensar a essência da técnica moderna, o filósofo a identifica como sendo composição (Gestell), isto é, uma espécie de armação prévia; uma força de reunião que impõe ao homem um desencobrimento (Unverborgenheit) do real bem próprio e específico. Como veremos no desenvolvimento do trabalho, a composição dispõe e pré-põe a realidade de maneira a torná-la sempre plenamente verificável e controlável pelo homem. Sendo assim, a técnica moderna é um modo de dispor dos entes; um vigor imperante; é a expressão de um certo destino (Geschick) que pretende cumprir os ideais de previsibilidade, domínio, correção e asseguramento de tudo, pelo homem. Um projeto que hoje faz das aplicações da técnica moderna um lugar privilegiado e quase único de desvelamento do mundo. A composição tornou-se o signo mais aparente de nossa relação com os entes e a força a partir da qual se articula a sociedade contemporânea. A crítica nietzschiana à metafísica, aos valores e a certos conceitos cunhados pela modernidade, também servirá como sustentação para nossa leitura e análise da tecnologia, mesmo que de modo mais indireto. A pertinência de também se recorrer a Nietzsche encontra-se no fato de podermos fazer a associação da compreensão nietzschiana do envio e promessa do projeto metafísico com a perspectiva heideggeriana da tecnologia como destino do Ser, servindo, portanto, de fundamento para uma efetiva crítica ao projeto tecnológico. Com isso, se quer dizer que identificamos uma consanguinidade da técnica moderna com a própria metafísica, uma vez que ambas partilham de uma mesma origem, direção e sentido, qual sejam, a objetivação, a representação e o controle do mundo em que vivemos. Desse modo, investigar a arché da tecnologia é também procurar desconstruir o envio, isto é, o modo de encaminhamento metafísico, não se podendo separar as duas críticas, sob pena de não se conseguir responder às perguntas que motivam esta pesquisa. 21

Esta é, portanto, uma investigação que privilegia o problema, e não a fidelidade aos autores. O uso das perspectivas de Heidegger ou do horizonte de Nietzsche, neste trabalho, será pontuado, na verdade, pela questão de fundo, a saber, o que é a tecnologia e qual a sua origem e destino: uma questão assaz heideggeriana, é preciso reconhecer. Mas o problema de base desta pesquisa, a preocupação que a motiva, também poderia ser expressa em termos nietzschianos: afinal, queremos saber o que quer a vontade que quer cada vez mais tecnologia. Dessa maneira, não pretendemos realizar a defesa de nenhum dos dois autores ou promover o confronto entre eles, mas sim fazer uso da contribuição que eles dão para aquilo que aqui está em questão. É claro que, desse modo, não é – nem poderia ser – nossa pretensão realizar um exaustivo trabalho de exegese de cada um dos dois autores, ainda mais por se tratarem de filósofos do tamanho e envergadura de Nietzsche e de Heidegger. Nem vamos executar um trabalho de comparação, que se ocuparia de identificar os pontos de convergência e de divergência entre os filósofos. Como ficará mais claro no desenvolvimento deste livro, vamos fazer um uso pontuado de Heidegger e de Nietzsche, com o objetivo de mostrar o direito de colocar a técnica em questão, de operar a desconstrução da tecnologia e de compreendê-la como uma das mais urgentes e importantes questões filosóficas da atualidade.

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Capítulo 1

A técnica como questão Consequentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem não terá mais de responder pelos seus atos, e viver, para ele, será extremamente fácil. Evidentemente todas as ações humanas serão calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, numa espécie de tábua de logaritmos [...] Fiódor Dostoiévski

Os sinais estão por todos os lados e evidenciam o ponto em que estamos. A crescente hegemonia e valorização da tecnologia são cada vez mais visíveis, se manifestando em todas as esferas da experiência contemporânea. O homem se informa, se comunica, se diverte e se distrai por meio de instrumentos tecnológicos: os jornais, as revistas, o rádio, a televisão, o cinema e a internet são exemplos de produtos disponíveis para essas finalidades. O mercado de consumo nos convoca o tempo inteiro para estarmos sempre mais “atualizados”. Numa velocidade progressivamente maior, “novas novidades”, gadgets eletrônicos com diversas aplicações são lançados como forma de nos intimar a também “fazer parte”. Até mesmo as relações pessoais podem, sem embargo, ser instauradas desde a mediação técnica, seja nas comunidades virtuais, seja em conversas online. 23

A própria atividade artística, que sempre pertenceu ao âmbito da técnica, como saber fazer, também está inserida nesse mesmo contexto, no qual tudo, inclusive o que sempre foi técnico, se torna tecnológico. Poemas podem ser gerados automaticamente por meio de softwares de computador; instalações artísticas criam obras audiovisuais com recursos interativos, possíveis graças ao desenvolvimento de dispositivos tecnológicos; shows musicais são realizados sem a presença dos artistas, como é o caso do uso de hologramas ou da transmissão ao vivo, e simultânea, para várias salas de cinema em diversas cidades diferentes. Até mesmo o progresso da ciência se apresenta como algo que depende intimamente dos avanços da tecnologia. Isso quer dizer que ciência e técnica vivem, neste princípio de século XXI, uma relação de interdependência nunca antes experimentada. E há ainda um aspecto curioso e que é bastante sintomático de nossa época: quanto mais aplicada é a investigação e quanto mais indispensáveis são as ferramentas e instrumentos tecnológicos para a sua realização, mais valorizada e importante, mais “de ponta” ela se torna. É o caso das pesquisas em nanotecnologia, neurociências e em cibernética, por exemplo. Como consequência desse parâmetro, em nosso tempo, a tecnologia é a melhor régua, a medida mais certa e segura para a determinação da realidade do real. Mas guardemos essa ideia para desenvolvê-la com mais calma posteriormente. Antes, cabe notar que, no campo do trabalho e da produção, a tecnologia também se faz evidente. Toda e qualquer atividade, mesmo as mais simples, hoje são executadas através de aparelhos e dispositivos tecnológicos. Prova disso são os anúncios de jornal que oferecem vagas de porteiro cujo pré-requisito é o domínio de noções de informática. É que a identificação dos visitantes de muitos edifícios comerciais é realizada por meio de um sistema informático que dever ser operado pelo funcionário. Difícil imaginar uma tarefa ou ocupação que, atualmente, não faça uso de máquinas e aparelhos técnicos, sendo o computador a principal ferramenta de trabalho para uma infinidade de profissões. Isso porque, na era da técnica, o computador é a máquina das máquinas. Computador é justamente o dispositivo capaz de computar, isto é, de contar, calcular a realidade de maneira precisa. É interessante notar que em espanhol e francês, duas outras línguas neolatinas, computador é “ordenador” e que, apesar da diferença, a palavra está apontando exatamente para a execução da mesma função. Computar é enumerar, calcular, mas é também determinar antecipadamente, ou seja, é aquilo com o que conto, no sentido de ser o que posso contar previamente. E ordenador significa o aparelho que põe em ordem, que 24

organiza, ou seja, é a ferramenta desde a qual se estrutura tudo, por antecipação e a partir de uma orientação prévia. Desse modo, os instrumentos tecnológicos, cujo modelo paradigmático é o computador/ordenador, estão sempre nos convocando a realizar as mais variadas atividades, em todas as esferas da experiência contemporânea. Só que a urgência de se pensar verdadeiramente a tecnologia e a sua crescente onipresença não torna a tarefa mais simples ou evidente, mas exatamente o contrário. Seja no âmbito da informação, do consumo, da comunicação, do entretenimento, da arte, da ciência ou do trabalho, todos os afazeres, que se medem a partir da medida das máquinas e aparelhos tecnológicos, parecem nos requisitar sempre do mesmo modo e a partir da mesma medida. Resta saber que encaminhamento é esse, qual é o modo de ser da tecnologia? Talvez aquilo que procuramos com essa pergunta se encontre muito próximo; tão próximo que muito facilmente não o vemos. Porque o caminho para o que está próximo é para nós, homens, sempre o mais longo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é um caminho de reflexão (HEIDEGGER, s/d. a, p. 22-23).

Sendo assim, é sempre indicado darmos um passo atrás, nos afastarmos um pouco na tentativa de enxergar melhor aquilo com o que estamos, o tempo todo, lidando. É que, na maioria das vezes, a proximidade nos faz perder o “foco”. Os diversos dispositivos e ferramentas tecnológicas estão tão perto e tão presentes em nosso dia-a-dia, que é muito fácil se perder em análises que se limitam a defender ou condenar o uso desses instrumentos. De um lado, a tecnologia é compreendida como um mal a se evitar, uma vez que é fonte para a alienação e a escravização do homem, pela máquina: é a tecnofobia em seu grau mais extremo, que enxerga nos aparelhos técnicos a fonte de todos os nossos problemas. Numa outra perspectiva de análise, os dispositivos tecnológicos são instrumentos libertadores do homem, já que são capazes de aliviar os fardos de nossa existência, reduzindo o trabalho e o sofrimento, aumentando o bem-estar e até mesmo expandindo os horizontes da vida humana. Tem-se, assim, a tecnofilia caracterizada por uma intensa apologia da máquina. O passo atrás visa, justamente, à superação dessa falsa dicotomia. Na verdade, tanto um, como outro viés, olham para as diversas manifestações da técnica moderna na preocupação de sua dominação e controle pelo homem. Dessa maneira, até mesmo essas duas perspectivas de análise já 25

são o resultado do modo de funcionamento da tecnologia. São horizontes técnicos, isto é, compreensões da tecnologia que já operam desde o encaminhamento da técnica. Em vez de olhar para as ferramentas e suas aplicações, no horizonte do seu apoderamento, o esforço da investigação deve ser o de refletir sobre a tecnologia, buscar a medida de sua ação, isto é: [...] pensar o sentido do acontecimento subjacente à nossa era técnica: o fenômeno da dominação da máquina ou da mecanização sistemática da vida. Na promoção e intensificação deste processo vai se realizando, isto é, se essencializando, a era técnica ou tecnicismo contemporâneo, o qual se faz e se estrutura como tecnologia (FOGEL, 1998a, p. 92).

Somente nesse encaminhamento, a tecnologia pode se revelar em seu modo próprio de ser. Já indicamos que, apesar de suas mais variadas aplicações, a tecnologia trabalha sempre desde uma espécie de “padrão”, nos convoca de um certo modo. O modelo computar/ordenar evoca e coloca em funcionamento um certo ser/agir. E é exatamente na promoção e intensificação dessa mesma origem que surge a estranha, fascinante e perturbadora força da técnica moderna.

1.1 O sentido da técnica Conferência pronunciada por Heidegger no dia 18 de novembro de 1953, no Auditorium Maximum da Escola Técnica Superior de Munique, e publicada pela primeira vez no ano seguinte, A questão da técnica transformou-se rapidamente num texto de vital importância para todos aqueles que se ocupam de investigar a técnica moderna. Nesse trabalho, o autor busca pensar o sentido (Besinnung) da atualidade e, por isso, desenvolve uma nova maneira de questionar o que é a técnica e as razões para a sua corrente onipresença. Entretanto, essa nova forma de se perguntar pela técnica não tem nada a ver com um modo original, no sentido de ser uma grande novidade ou uma abordagem que se ocupa de investigar os lançamentos mais recentes da indústria tecnológica. Na verdade, é exatamente o contrário: o questionamento heideggeriano é novo porque é originário, isto é, se esforça para retomar, para repetir, a origem e, por isso, não poderia ser nada de mais antigo, de mais arcaico. Isso quer dizer que, no lugar de concentrar sua análise no que está feito, ou seja, em vez de olhar para os diversos usos, aplicações ou dispo26

sitivos tecnológicos e seus acabamentos, todo o empenho de Heidegger vai no sentido, não de objetivar a técnica, transformando-a em uma coisa como outra qualquer, mas de procurar compreender justamente seu vigor de realização. É que, nessa perspectiva, o feito, de alguma forma, esconde exatamente a força do fazer. O que move e promove o que está realizado não é nada de claro e evidente, mas pode ser entrevisto, em toda e qualquer efetivação. Há sempre uma insinuação da dinâmica realizadora, em tudo aquilo que está sendo; são acenos, sinais – para quem pode ver – que devem ser perseguidos, pela investigação filosófica. Dessa maneira, na conferência A questão da técnica, o questionamento apresentado por Heidegger segue o mesmo encaminhamento adotado em outros trabalhos de sua vasta obra, e se ocupa de investigar a essência (Wesen) da técnica moderna. Para não sugerir justamente o contrário do modo de investigação não-objetivante que apontamos anteriormente, a tradução de Wesen por essência precisa sempre vir acompanhada do seguinte alerta: quando faz uso do termo, o filósofo não quer apontar para uma natureza substancial da técnica, ou do que quer que seja, mas sim para uma certa disposição, uma força ou vigor fundamentais que a tecnologia carrega. Para fazer uma diferenciação e tentar evitar essa conotação essencialista de Wesen, talvez fosse melhor utilizá-la com a primeira letra em maiúsculo (Essência) como faz Carneiro Leão, na tradução de Über de Humanismus (Sobre o humanismo). “Esse substantivo não designa no texto essência, natureza, qüididade, mas a estrutura em que vigora, i.é., desenvolve a força de seu vigor, agir” (LEÃO. In: HEIDEGGER, Martin, 2009a, p. 23). Outra solução foi a adotada pela tradutora da edição brasileira de Unterwegs zur Sprache (A caminho da Linguagem), Márcia Sá Cavalcante Schuback, que, além de essência, também utiliza as expressões modo de ser, vigor. A palavra alemã Wesen significa comumente essência. Ao longo de sua obra e muito claramente no presente volume, Heidegger “destrói” o sentido de essência, devolvendo-o para a experiência de realizar o modo de ser, de vigorar, expressa num antigo verbo alemão wesen, vigir, vigorar. Para acompanhar no texto a transformação do sentido eminentemente metafísico de essência para a experiência da simplicidade do vigor, [...] a tradução usou uma espécie de glissando semântico entre essência, modo de ser e vigor. [grifos nossos] (SCHUBACK, Márcia, In: HEIDEGGER, A caminho da Linguagem, 2008, 4. ed., p. 8).

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O fundamental aqui é esclarecer que, no sentido heideggeriano, Wesen deve ser entendida como uma vigência, como uma espécie de movimento processual de essencialização. É preciso ter em conta que se quer reforçar a conotação verbal (capaz de ação) da expressão, retirando o seu sentido de substantivo, que seria algo pronto e acabado. Sendo assim, em vez de uma espécie de miolo fixo e imutável, essência, aqui, está apontando para aquilo que faz com que a técnica moderna venha a ser isso que ela é, da forma como ela é. Ou seja, Wesen é uma dinâmica de realização. E o que esta compreensão diz é que o conceito de essência, em Heidegger, afasta expressamente a noção de quididade, e em seu lugar insere aquela proveniente da fenomenologia. Por essência passa a se entender os modos com que uma coisa vem presentar-se ao homem; isto significa, na verdade, que uma mesma coisa pode possuir, conforme uma determinada época, diferentes essências, bastando para isso que cada qual se manifeste, em um dado momento, diversamente do modo como outrora se manifestou (OLIVEIRA, 2006, p. 106).

Diante da dificuldade de traduzir o termo e para evitar mal-entendidos e ambiguidades, neste livro optamos por utilizar mais de uma palavra ou expressão que, em conjunto, dão conta de indicar, com mais precisão, o que “essência” quer dizer. Neste texto, Wesen vai aparecer como vigor, força de realização, modo de ser ou mesmo, por vezes, Essência, com a primeira letra em maiúsculo. Pois quem investiga a essência de alguma coisa quer saber aquilo que ela é; e mais que isso: quer saber o que algo, realmente, é. Isso quer dizer que, apesar de podermos identificar diversas diferenças na realidade, não é nas características acidentais que devemos focar a análise, mas sim naquilo que é seu fundamento, sua razão de ser. Desse modo, mesmo que se possa facilmente perceber que os cavalos, por exemplo, podem ser pequenos ou grandes, fortes, pangarés, de pêlo bege, branco ou preto, ou portadores de muitas outras características, o que se quer saber é o que faz com que o cavalo seja cavalo, e que o faz da forma como o cavalo é. Expresso em outros termos, o esforço deve ser o de descobrir a cavalidade do cavalo, ou seja, sua natureza. Esclarecemos anteriormente que Heidegger investiga a essência da técnica. E que, na verdade, sua abordagem não tem nada de essencialista, de maneira que o mais indicado é mudar a expressão utilizada para explicitar que o filósofo quer, na verdade, pensar o vigor da técnica moderna, quer encontrar a sua força de realização. É por isso 28

que, apesar de Heidegger querer saber o que é a técnica moderna e investigar o que faz com que ela seja aquilo que é, e da forma como ela é, seu horizonte se distancia bastante das perspectivas instrumental ou antropológica, para as quais a técnica é, respectivamente, um meio para um determinado fim e uma atividade do homem. Não que essas sentenças estejam erradas. A técnica é, de fato, uma ferramenta e uma atividade humanas. Entretanto, para estar correta, esse tipo de determinação instrumental da técnica moderna não precisa descobrir a Essência do que se realiza. Desse modo, para o filósofo, o correto e exato ainda não é o verdadeiro, e, por isso, é preciso, então, voltar a investigação para o cerne do correto e indagar seu direito à existência. Se a concepção instrumental da técnica a determina como sendo um meio para um determinado fim, o caminho do pensamento deve, então, partir da pergunta pelo modo de funcionamento de fim e meio. É dessa maneira que a pesquisa filosófica pode, a partir da problematização do correto, alcançar o que acima chamamos de verdadeiro – ideia que será melhor desenvolvida posteriormente. Tomemos como certo que um meio é aquilo através do que se faz algo para se obter alguma coisa, para se alcançar um determinado fim. Só que a estrutura meio-fim não é tão linear e evidente como distraidamente se pode supor. Nessa relação, o fim não é sempre o último, não é todas as vezes a consequência, visto que também pode ser a própria causa, o fundamento que determina o tipo de meio utilizado para se atingir um certo fim. Se pretendo cortar um pedaço de carne, por exemplo, devo usar uma faca de metal e com serra, não uma colher ou uma faca sem serra ou de madeira. Nesse caso, a carne cortada (um efeito pretendido) é, na verdade, a causa (a razão) que define a escolha (não-contingente) do meio. Sendo assim, “onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí também impera a causalidade” (HEIDEGGER, 2010a, p. 13). A investigação da verdade de fim e meio pertence, desse modo, ao domínio da causalidade. Compreender a técnica passa pela questão de entender a relação causa-consequência. Da doutrina das quatro causas, que remonta a Aristóteles, Heidegger destaca que, para a atividade técnica, a causa finalis é a mais importante de todas. Nela, o fim é identificado como sendo aquilo que determina a forma e a matéria do que é produzido. Isso quer dizer que, no exemplo acima, a faca deve seu modo de ser, não somente ao metal do qual ela é feita, ou ao perfil (faca com serra) no qual o metal é forjado, mas sobretudo a uma terceira causa que reúne as outras duas de maneira prévia e antecipada: a sua finalidade, isto é, faca para cortar carne. “Com este fim, porém, o utensílio não termina ou deixa de ser, mas começa a ser o que será depois de pronto. É, 29

portanto, o que finaliza, no sentido de levar à plenitude, o que, em grego se diz com a palavra telos1” (HEIDEGGER, 2010a, p. 14). A esses três modos de responder e de dever-ser dos utensílios, a saber, causa materialis (de que é feito), causa formalis (sua forma ou figura) e causa finalis (para qual fim), devemos acrescentar a causa efficiens, isto é, o ferreiro que produz o efeito, a faca pronta e acabada. As quatro causas pertencem uma a outra, numa relação de interdependência mútua, sendo que, na experiência do fazer técnico, o que é ontologicamente primeiro é a sua unidade de coerência: para um determinado fazer. É ele que articula e conduz as outras três causas. Quem faz alguma coisa precisa se submeter aqui à natureza daquilo que é feito e a uma série de procedimentos determinados, para que possa produzir algo realmente condizente com a finalidade de produção. Sem uma tal submissão, o produto nunca se mostraria ao final como aquilo que ele realmente é (CASANOVA, 2010, p. 224).

Isso significa que não está na vontade ou no arbítrio do ferreiro fazer uma faca com o material que lhe vier na cabeça, ou na forma que bem entender. Não se pode fazer uma faca de papel e com o perfil de um tijolo, por exemplo, sob pena de o utensílio ou ferramenta não se finalizar, isto é, não ser levado a sua plenitude, não ser aquilo que é. Na dimensão do artesanato, uma faca para cortar carne é de metal e possui serras de modo a cumprir adequadamente com sua função. Na sua lida diária, o ferreiro “apenas” escuta e obedece ao modo de ser daquilo que produz. Como causa efficiens, o ferreiro, ou qualquer que seja o artesão, é sim um elemento fundamental no movimento de trazer algo à vigência, mas isso não significa que ele seja o único responsável pelo que se realiza. Ao contrário, o artesão atua como uma espécie de intermediário que sintetiza as outras três causas, de acordo com o que é próprio a cada modo de ser. No sentido da Antiguidade grega, é na dimensão da produção (poiésis) que esses modos de responder e dever-ser se articulam para fazer com que algo venha a viger, em sua vigência. É somente na atividade de fazer vir a ser aquilo que ainda não é, que os quatro modos de deixar-viger os entes são regidos e atravessados, de maneira uniforme, 1 Apesar de, no original, o termo estar grafado no alfabeto grego, optamos pela sua transliteração para caracteres latinos. O mesmo procedimento foi adotado em todas as demais citações deste livro.

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por um certo modo de condução. “Platão nos diz o que é essa condução numa sentença do Banquete (205b): [...] Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poiésis, é produção” (HEIDEGGER, 2010 a, p. 16). A produção é, assim, a dinâmica de articulação na qual tudo aquilo que ainda não é passa a ser. Isso vale para o artesanato, que cria, por meio de trabalhos manuais, produtos como a faca do nosso exemplo anterior, mas vale também para outras atividades humanas. Há produção operada pela arte, quando esta conforma e faz aparecer a palavra por meio de um romance, por exemplo. Até mesmo a própria natureza é poética (no sentido de poiésis), na medida em que faz aparecer algo que, até então, não existia. Nesse último caso, poiésis é physis: é um tipo de produção que se faz, desde si mesma, como o aparecimento e crescimento de uma flor, para usar de um exemplo lírico, ou o surgimento e disseminação de um novo e mortal vírus, resultado de uma espontânea mutação genética, em um exemplo mais catastrófico. A physis é o único modo de desencobrimento (Unverborgenheit) que eclode desde si mesmo, enquanto a técnica (téchne) é o modo de poiésis que é produção pela mão do homem. Em resumo, pode-se dizer que tanto aquilo que eclode porque emergiu espontaneamente, quanto o que se realiza através do artesanato e da arte são modos de se pro-duzir. A pro-dução conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma pro-dução, enquanto e na medida em que alguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se. Este chegar repousa e oscila no processo que chamamos de desencobrimento. Para tal, os gregos possuíam a palavra alétheia (HEIDEGGER, 2010 a, p. 16).

Conforme já vínhamos indicando, a produção gera o desencobrimento do que outrora ainda não era vigente. Alétheia é o nome grego para esse modo por meio do qual cada ente vem a ser aquilo que é. A palavra é formada pelo prefixo de negação “a” e “létheia”, que significa encobrimento, velamento. Ao contrário do que muitas traduções nos fazem crer, alétheia nada tem a ver com verdade, no sentido de adequação da proposição do “sujeito” ao “objeto”; não se trata de verdade da representação – noção que trabalharemos mais detalhadamente no próximo capítulo, que tratará especificamente das bases para a crítica ao projeto tecnológico. Antes disso, alétheia carrega o significado de uma dinâmica de tensão, um movimento ambíguo que realiza, ao mesmo tempo, tanto o encobrimento quanto o des-velamento de mundo. 31

É desse modo, então, que toda produção acontece. Desde desencobrimento, alétheia faz aparecer, traz à existência aquilo que se realiza, ao mesmo tempo em que encobre a dinâmica de sua própria realização. É por isso que afirmamos anteriormente que, apesar de estar correta, a determinação instrumental da técnica não a diz, em verdade. Reforçamos que não estamos aqui defendendo a existência de uma substância da técnica moderna, no sentido de uma essência objetivada. Não é essa a verdade aqui pretendida. O que se quer indicar é que, como qualquer outro modo de produção, a própria técnica, não é apenas um meio para um determinado fim ou uma simples atividade humana, como as perspectivas instrumentais e antropológicas compreendem. Apesar de corretos, esses horizontes de análise deixam escapar que a técnica – no sentido clássico, ou mesmo como técnica moderna – é uma forma de desencobrimento. Questionando passo a passo a técnica, e analisando detalhadamente a concepção de que ela é um instrumento para que o homem alcance certos objetivos, Heidegger chega à estrutura de desvelamento de mundo. É a partir do desencobrimento que a elaboração produtiva, qualquer que seja, se efetiva. Nessa compreensão, não se pode mais afirmar que a técnica é uma ferramenta isenta e à disposição do homem, como se fosse um simples meio, completamente livre para que ele a utilizasse conforme bem entendesse. A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo um outro âmbito para a essência [Wesen] da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade (HEIDEGGER, 2010a, p. 17).

O filósofo quer chamar a atenção, na passagem acima, para o fato de que, ao contrário do que entende o senso comum, a técnica não é nem poderia ser uma atividade neutra. Isso porque toda e qualquer forma de desencobrimento é, por princípio, uma produção interessada de mundo. O desvelar da técnica é a assunção de uma forma de produção que, como já afirmamos, conduz do não-vigente para a vigência, sempre atravessada por um modo de condução, de articulação dos quatro modos de se deixar-viger. Por definição, cada modo próprio e específico de desvelamento é regido e conformado desde uma perspectiva do aparecer, segundo certa forma particular de fazer vir a ser tudo aquilo que é, e não a partir de outra. E, ontologicamente, esse interesse 32

é sempre primeiro; é aquilo em que sempre já estamos inseridos, pelo que o homem é tomado e tocado, ou seja, nunca é uma escolha dele. É claro que é o homem quem produz as diversas aplicações e dispositivos tecnológicos, mas, por outro lado, o homem não pode se colocar fora de um mundo, de um determinado contexto, desde o qual a técnica já opera uma forma de desvelamento. E é sempre a partir de um determinado interesse que a técnica trabalha. Para entender como esse interesse se realiza, é preciso levar em conta que a ação da tecnologia é um fazer que coloca um tipo de verdade (enquanto alétheia) em funcionamento. É desde essa verdade que sempre já estamos: “Técnica é uma forma de desencobrimento. A técnica vige e vigora no âmbito onde se dá descobrimento e des-encobrimento, onde acontece alétheia, verdade” (HEIDEGGER, 2010a, p. 18). A própria origem da palavra técnica pode ser uma boa fonte para continuarmos seguindo o caminho em direção ao seu vigor, isto é, na busca pelo modo de ser fundamental da técnica moderna e da ação que ela põe em funcionamento. Técnica é uma palavra proveniente do grego (téchne) que indica, justamente, um certo saber fazer que diz respeito não somente à lida artesanal – como, por exemplo, uma técnica indígena de confecção de cestas de palha – como também é valido para um saber artístico, como é o caso de uma certa técnica de uso do pincel para obter um efeito na pintura de telas. Dessa maneira, no pensamento grego antigo, téchne é uma palavra que indica um determinado modo de conhecimento, que aponta para um certo saber-fazer. Assim como a episteme, a téchne é uma palavra para o conhecimento de modo amplo, sendo que a téchne é uma forma que desencobre “o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá e propõe, podendo assim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil” (HEIDEGGER, 2010a, p. 17). É que, conforme já indicamos anteriormente, a téchne é um modo de desencobrimento, cuja dinâmica é poiésis, e que precisa da mão do homem para se presentificar. Dessa maneira, sua principal característica está ligada ao fato de ser uma produção na qual, de acordo com a finalidade (causa finalis), pode-se articular antecipadamente, numa unidade de coerência, a matéria (causa materialis), o perfil (causa formalis) do produto e sua realização (causa efficiens), para, assim, melhor se deixar conduzir, isto é, se guiar pelo que é mais adequado para a consumação de algo, para levar um determinado fazer a sua plenitude. “O decisivo da téchne não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a téchne se constitui e cumpre em uma pro-dução” (HEIDEGGER, 2010a, p. 18). 33

Uma passagem de Einführung in die Mataphysik (Introdução à metafísica) confirma e esclarece essa perspectiva da téchne para o pensamento grego: ela é uma forma de produção ligada a um saber-fazer desde o qual tudo se articula numa condução/orientação. Physis se restringe a partir de sua oposição a téchne – que não significa nem arte nem técnica e sim um saber, a disposição competente de instituições e planejamentos bem como o domínio dos mesmos (Cf. Fedro de Platão). A téchne é criação e construção, enquanto pro-dução sapiente (HEIDEGGER, 1999, p. 46).

O ferreiro, para continuar com o mesmo exemplo, domina uma técnica, ou seja, é portador de um saber. Esse saber diz respeito, não somente à manipulação de metais propriamente dita, ou seja, à sua lida manual, mas também às características de cada metal, de cada liga, além do comportamento das combinações forjadas nos diversos tipos de perfis existentes e seus usos e aplicações. Desse modo, um ferreiro é aquele que conhece o metal, suas utilizações e a melhor maneira de conformá-lo para se atingir uma determinada finalidade. É o profissional que conhece a matéria, suas formas e, por isso, sabe levar as ferramentas a sua plenitude, pensando-as, não a partir de um saber teórico-especulativo, mas desde um determinado fazer. É um saber que não tematiza muito os porquês, mas que sabe muito bem como as coisas são. “Téchne” fala da natureza ou do modo de ser do movimento disso que, não estando ou não sendo encontrado à mão no mundo ou na circunstância, vem à luz, assim se abrindo, se instaurando e se oferecendo ao uso do homem desde a própria ação ou intervenção do próprio homem – por exemplo, a mesa, o papel, a caneta, a casa, o automóvel, o míssil nuclear. O homem só é, só pode ser se fazendo e ele se faz agindo, isto é, lidando com as coisas da circunstância, com o mundo, transformando-o assim em seu lugar, em sua casa, em sua habitação (FOGEL, 1998a, p. 126).

É, então, razoavelmente fácil concordar que esse modo de articulação da técnica (téchne), determinada pelo pensamento grego antigo, dá conta de explicar muito bem a produção artesanal e artística; fica, no entanto, a dúvida se essa compreensão alcança a moderna técnica, que se caracterizaria por estar assentada em uma infinidade de máquinas e 34

aparelhos, o que poderia mudar tudo. Aparentemente, e num primeiro momento, pode-se afirmar que a técnica moderna – justamente aquilo que nos interessa aqui compreender – difere bastante das anteriores. Um ponto que marca uma profunda diferença entre as duas técnicas é que a técnica moderna é tecnologia, cujo sentido (lógos) é o da ciência. Isso porque os modos de operar e os feitos da técnica moderna estão sempre associados à moderna ciência exata da natureza, que determina o seu encaminhamento. Entretanto, não se pode deixar de também indicar que o inverso, da mesma forma, é verdadeiro: como ciência experimental, a física moderna, por exemplo, também depende da existência e do desenvolvimento de aparelhos e dispositivos tecnológicos. Apesar dessas diversas particularidades existentes nas duas modulações da técnica, Heidegger confirma que a técnica moderna também é uma forma de desencobrimento. Só que, em maior grau, a técnica moderna põe em funcionamento um certo desvelamento que não se desenvolve numa pro-dução, no sentido de poiésis. Essa é sua principal diferença na comparação com a téchne grega. Sendo uma forma de desvelamento, a técnica moderna é uma pro-vocação, uma intimação, uma espécie de requisição ou imposição, que opera a partir de um tipo de verdade. Mas que verdade é essa? O desencobrimento que vigora e governa a técnica moderna é o da contínua exploração da natureza para a obtenção de energia e para seu armazenamento. Desse modo, na técnica moderna, o subsolo de vastas regiões passa a se desencobrir como reserva de minério. A brisa do mar se desvela como energia eólica, e até mesmo o próprio sol não nos aparece mais como um deus, nem mesmo como o astro rei ou estrela, mas sim como energia solar pronta para ser captada e armazenada. Conduzir ou reger todas as ocupações à medida da máquina significa pois: Colocar ou sub-por toda a vida, todo existir, sob a ótica do apoderamento e do controle da natureza e assim realizar ou concretizar este existir, este viver. [...] Quem assim vive, promove (ou seja, rege, orienta, conduz) todo processo de afloramento e de realização da vida a partir da dominação da atitude ou da postura que se propõe dominar, apropriar, controlar a natureza, assim, assegurando-se dela e de si próprio (FOGEL, 1998a, p. 94).

Era diferente a relação que a téchne mantinha com a natureza. Téchne é poiésis justamente porque é uma atividade que não subjuga a physis. O agricultor que não fazia uso da tecnologia, mas da técnica (téchne), 35

por exemplo, guardava um respeito muito grande pelo seu fazer e pela própria terra. Cultivar significava sobretudo escutar: isso quer dizer que, antes de mais nada, era preciso conhecer as características do local, como temperaturas médias, regime de chuvas, fertilidade do solo, para, então, semear aquilo que fosse possível, e ainda cuidar e tratar de tudo sem atropelos. Não lhe seria possível plantar eucalipto em uma área muito seca, já que essa é uma planta que necessita de muita água. Também não poderia plantar café arábica em baixas altitudes, pois essa cultura precisa de um clima mais ameno para se desenvolver. Era, então, preciso articular o que havia disponível, a realidade, com determinada finalidade: o plantio de certa cultura. Nesse tipo de condução, tudo é regido e atravessado pelos quatro modos de deixar-viger e se desencobre pela mão do homem, que é quem sintetiza, numa unidade de coerência, a finalidade (certa cultura) e as características do local de plantio, os meios mais adequados. Sem tecnologia, o trabalho do agricultor não provoca, intima ou desafia a natureza. Antes de qualquer coisa, ele é uma produção, e como tal, precisa obedecer à natureza, seu modo próprio de ser. Com o advento da técnica moderna, muita coisa mudou. Surgiu a crença de que, por meio da tecnologia, o homem pode tudo. Se a região é seca, planta-se eucalipto mesmo assim, e desviam-se córregos para alimentar as máquinas e os aparelhos de irrigação. Se a natureza do café arábica é crescer em temperaturas não muito altas, pode-se plantá-lo em áreas quentes, bastando, para isso, realizar uma alteração nessa característica. A pesquisa e o desenvolvimento de espécies transgênicas, os organismos geneticamente modificados, realizam justamente esses “pequenos ajustes”. No desencobrimento da técnica moderna, o homem procura conhecer a natureza, não para se ajustar às suas necessidades, mas para dominá-la por completo, corrigi-la e, até mesmo, substituí-la. Ele provoca e desafia a realidade o tempo inteiro: parece que, na tecnologia, é a natureza quem se ajusta às vontades do homem e não o contrário. Nesse encaminhamento, o cerrado brasileiro, por exemplo, dá lugar à imposição da monocultura da soja, isto é, à indústria mecanizada e multinacional da produção de commodities. Esta dis-posição, que explora as energias da natureza, cumpre um processamento, numa dupla acepção. Processa à medida que abre e ex-põe. Este primeiro processamento já vem, no entanto, pré-dis-posto a promover uma outra coisa, a saber, o máximo rendimento possível com o mínimo de gasto (HEIDEGGER, 2010a, p. 19).

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Isso quer dizer que, ao explorar a natureza, a disposição da técnica moderna não o faz de uma maneira qualquer. O modo como esse desencobrimento é realizado segue uma determinada configuração. É uma pré-disposição que, além de enxergar no cerrado, indústria de commodities, quando assim o vê – e isso vale para qualquer outro exemplo – o vê a partir de uma pré-compreensão na qual é preciso explorá-lo ao máximo, gastando o mínimo possível. Dessa forma, o cerrado não somente é lavoura de soja para exportação, como também deve alcançar alta produtividade, sem que muitos recursos precisem ser dispensados. É por isso que, nas extensas áreas, que serão destinadas à cultura, se faz o uso de correntes puxadas por tratores para limpar o terreno ou ateia-se fogo à vegetação nativa, antes do plantio; estratégia que reduz tudo o que encontra pela frente a obstáculo que precisa ser rapidamente contornado. Além disso, caso o solo não responda mais às necessidades da planta, basta desmatar outra área de floresta depois de esgotar os terrenos já explorados. A Natureza transforma-se num único posto de abastecimento gigantesco, numa fonte de energia para a técnica e indústria modernas. Esta relação fundamentalmente técnica do Homem com o todo do mundo surgiu pela primeira vez no século XVII, na Europa e unicamente na Europa. Permaneceu desconhecida das restantes partes da Terra durante longo tempo. Era totalmente estranha às épocas precedentes e aos destinos dos povos de então. O poder oculto da técnica contemporânea determina a relação do Homem com aquilo que existe. Domina a Terra inteira (HEIDEGGER, s/d. a, p. 19).

Essa dominação não deixa, isto é, não oferece oportunidade e ocasião para os entes se realizarem, fora da perspectiva da exploração. Esse modo de desencobrimento atinge, hoje, até mesmo os rincões mais distantes das grandes cidades. Como obra da técnica moderna, a usina hidrelétrica de Belo Monte, que atualmente está sendo construída no rio Xingu, no estado do Pará, é um exemplo que segue a mesma relação com o seu contexto. A hidrelétrica vai dis-por do rio e das áreas que serão alagadas, para fornecer pressão hidráulica, que, por sua vez, vai dis-por o giro das turbinas, que impulsiona uma série de máquinas e aparelhos. São esses mecanismos que produzirão a corrente elétrica que poderá, então, ser transmitida. Curioso é notar que, nessa cadeia interdependente de dis-posições, o próprio rio Xingu aparece, não como simples rio, mas como dis-positivo. Nesse sentido, talvez seja mais correto afirmar 37

que não é a usina que estará instalada no rio, mas justamente o contrário: é o rio, como dis-positivo, que ficará instalado na usina. Dessa forma, é ele quem deve se adaptar. Torna-se, assim, extremamente legítimo, e mesmo indispensável, passar por cima de interesses indígenas e represar o Xingu, alagar quilômetros de florestas para, assim, produzir a pressão hidráulica e, então, dispor as turbinas a girar. O dis-ponível tem seu próprio esteio. Nós o chamamos de dis-ponibilidade (Bestand). Esta palavra significa aqui mais e também algo mais essencial que mera “provisão”. A palavra “dis-ponibilidade” se faz agora o nome de uma categoria. Designa nada mais nada menos do que o modo em que vige e vigora tudo o que o desencobrimento explorador atingiu (HEIDEGGER, 2010a, p. 20-21).

O rio, a floresta, o solo, a montanha, ou o que quer que seja, se desencobrem, de um modo cada vez mais frequente e em todas as dimensões da atividade humana, como aquilo que Heidegger chama de dis-ponibilidade. O pensador destaca que o sentido do termo extrapola a noção que temos de provisão. É verdade que essa investigação da técnica moderna nos leva à conclusão de que a natureza se revela, nesse modo específico de desencobrimento, como um grande reservatório, um arquivo pronto e à dis-posição, uma espécie de grande e infinita despensa da qual o homem não somente pode, como também deve se servir à vontade. Então, até certo ponto, dis-ponibilidade quer mesmo dizer provisão. A questão chave é que essa forma de se relacionar e de desencobrir o real se tornou, na atualidade, um tipo de categoria particular: é a forma, antecipada, como se organiza tudo o que a vigência da técnica moderna alcançou; é a força a partir da qual se desvela o que é explorado. A técnica moderna [...] promove a ideologia ou a positividade do poder como agigantamento do controle, como gigantismo do apoderamento e da manipulação. A natureza é, então, exclusivamente objeto de apoderamento, de controle, de uso, de manipulação, de consumo – energia para. Dominando a máquina, isto é, a atitude ou postura que traz a máquina à tona e à vigência de dominação, tudo, de repente, se torna ração de engorda, tudo vira gado de corte ou, o que é a mesma coisa, potencial energético, reserva (FOGEL, 1998a, p. 96-97).

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Tudo o que aparece nessa perspectiva se realiza do mesmo modo: como dis-ponibilidade. Chegamos ao ponto em que, sem dúvida alguma, essa é a maneira hegemônica de aparecimento dos entes. O automóvel, por exemplo, se desencobre como dis-ponibilidade à medida que está dis-posto a assegurar a possibilidade de transporte. O computador está dis-posto a fornecer informações, entretenimento e executar as mais variadas tarefas. É interessante notar que mesmo aqueles objetos que não foram produzidos pelo homem, se revelam, em essência, como dis-positivos, isto é, potenciais aparelhos para a exploração humana, como são os casos, já citados, do subsolo, dos rios, do sol ou do próprio vento. Abrimos aqui um pequeno parêntese para, a partir das diferenças linguísticas, olhar com mais atenção para o fenômeno para o qual “estar disposto” quer apontar. Como se sabe, o português falado em Portugal reserva algumas surpresas aos brasileiros. Uma delas pode nos ajudar a entender melhor o sentido dessa expressão, na concepção heideggeriana. No país, é muito comum, no lugar de um simples “bom dia”, ou mesmo logo em seguida a este, ouvir a seguinte indagação: “Estás bem disposto?” No Brasil, a pergunta parece expressar uma preocupação com alguém que está convalescente, isto é, que esteve doente e que ainda não está totalmente recuperado. Nesse horizonte, a questão se interessa em saber se houve melhora; se a pessoa sente-se mais saudável que antes. Não é esse, absolutamente, o uso português da pergunta. Em Portugal, não é preciso ter estado doente para ser questionado sobre a disposição com a qual se acordou e que, talvez, se vai carregar para o resto do dia. Pergunta-se isso a todos, indistintamente. A disposição, nesse último uso, parece apontar para um modo de se portar e de se colocar frente aquilo que vier durante o dia. É um encaminhamento desde o qual se temperam, isto é, se regulam as nossas relações com o mundo. Estar bem disposto, nesse caso, é apresentar uma espécie de estado de desembaraçamento, de distribuição ordenada de energias e esforços. A comparação clama por um esclarecimento. Com o parêntese, não queremos dizer que o homem é o responsável pelo modo como tudo aquilo que é se realiza. Ao afirmar que podemos estar bem ou mal dispostos, não estamos querendo indicar que o tipo de desencobrimento está nas mãos do sujeito, que seria livre para escolher a forma que bem entendesse ou para alterar a vigência daquilo que se desvela de determinado modo. Apesar de ser o lugar de manifestação de toda a realidade, na verdade, o homem não é a sua causa. O homem pode, certamente, representar, elaborar ou realizar qualquer coisa, desta ou daquela maneira. O homem não tem,

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contudo, em seu poder o desencobrimento em que o real cada vez se mostra ou se retrai e se esconde. Não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das ideias. O pensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu (HEIDEGGER, 2010a, p. 21).

É o homem quem realiza os feitos da técnica moderna, ninguém pode negar; mas ao fazê-los, ele não obedece a si mesmo, mas ao próprio desencobrimento da dis-ponibilidade. E mais que isso: nessa tarefa, o homem responde a um chamado, de maneira que não é ele quem tem a técnica, mas justamente o contrário: é a técnica moderna que o tem, isto é, que o alista e convoca de determinada maneira. O homem responde ao apelo do que se realiza e que o atinge. Nesse sentido, até de modo mais originário do que a própria natureza que é explorada, o homem também pertence à dis-ponibilidade. O produtor de café das montanhas do Espírito Santo, por exemplo, que aparentemente cultiva o grão do mesmo modo que os primeiros imigrantes europeus que colonizaram a região, hoje está à dis-posição da indústria exportadora de café verde ou das usinas brasileiras de torrefação. Mesmo que ele não venda diretamente a sua produção para uma dessas indústrias, ele o fará para um atravessador, o chamado corretor de café, que por sua vez, está diretamente à dis-posição dos industriais. Esses industriais, por sua vez, estão à dis-posição da demanda internacional da bebida, que oscila a cotação para mais ou para menos, aumentando ou reduzindo os seus lucros, numa sucessão integrada de dis-posições. Todavia, precisamente por se achar desafiado a dis-por-se de modo mais originário do que as energias da natureza, o homem nunca se reduz a uma mera dis-ponibilidade. Realizando a técnica, o homem participa da dis-posição, como um modo de desencobrimento. O desencobrimento em si mesmo, onde se desenvolve a dis-posição, nunca é, porém, um feito do homem, como não é o espaço, que o homem já deve ter percorrido, para relacionar-se, como sujeito, com um objeto (HEIDEGGER, 2010a, p. 22).

É que o homem é o vivente para o qual chegam os apelos. É ele quem sempre é tomado e tocado e que se vê, a cada vez, imerso em uma possibilidade de desencobrimento. Ao responder ao chamado e à 40

requisição da técnica moderna, o homem é desafiado a dis-por-se de um modo, a se comportar de determinada maneira. E, quando o faz, isso acontece ainda mais arcaicamente do que a própria dis-posição da natureza, e por isso, ele não é apenas mera dis-ponibilidade. Ele é, na verdade, o lugar imprescindível de realização do que se desencobre, seja como dis-posição, seja como qualquer outra forma de desencobrimento, sem, no entanto, se tornar o senhor dessa dinâmica de realização. Mais uma vez, reforçamos que o desvelamento não é um simples feito do homem. É algo ontologicamente anterior a ele próprio como “sujeito” e que também antecede os chamados “objetos”, que supostamente se opõem a ele. Há, na verdade, um poder de sedução que guia o homem e o convoca a desencobrir o real de determinado modo. Por isso, temos que encarar, em sua propriedade, o desafio que põe o homem a dis-por do real, como dis-ponibilidade. Este desafio tem o poder de levar o homem a recolher-se à dis-posição. Está em causa o poder que o leva a dis-por do real, como dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2010a, p. 22-23).

O poder desse tipo de desencobrimento particular, no qual o homem é, de alguma maneira, chamado a dis-por do real como dis-ponibilidade, reside na ação que a técnica moderna é capaz de levar a cabo. Uma ação que difere bastante do agir da téchne, sobretudo com relação aos seus propósitos.

1.2 A ação da técnica Na atualidade, o crescente poder e a onipresença do desencobrimento, como dis-ponibilidade, reside na sua promessa de permitir não o controle do homem sobre esse modo de desvelamento, que já vem “pronto” e é ontologicamente anterior a ele, mas sim de pôr em funcionamento um modo de realização do real que permite ao homem a pre-visão, o domínio, a correção e até mesmo a substituição do mundo em que vive. Com isso não se quer afirmar que a técnica moderna, como modo de realização e de vigência, seja o resultado da vontade do homem, pois ele não é o responsável pela conformação da dis-ponibilidade. Mesmo porque a técnica moderna também o mobiliza e agencia seguindo a mesma medida, ou seja, o homem também pertence, de alguma forma, à dis-ponibilidade. O que se quer, na verdade, apontar é, que o poder que leva 41

o homem a dis-por do real não ganha, do homem, sua existência, pois é maior que ele; mas, por outro lado, não se pode negar que esse modo de desencobrimento funda a sua legitimidade pelas mãos do homem. Em todos os domínios da existência as forças dos equipamentos técnicos e dos atômatos apertarão cada vez mais o cerco. Os poderes que, sob forma de quaisquer equipamentos e construções técnicos, solicitam, prendem, arrastam e afligem o Homem, em toda parte e a toda hora, já há muito tempo que superaram a vontade e a capacidade de decisão do Homem porque não são feitos por ele (HEIDEGGER, s/d. a, p. 20).

Num primeiro momento, a afirmação parece muito estranha, por isso a necessidade de esclarecimento. Ao se dizer que os poderes dos equipamentos e construções técnicas, já há muito tempo superaram a vontade e a capacidade de decisão do homem porque não são feitos por ele, não se está querendo indicar que, na prática, os produtos técnicos estejam se fazendo por si mesmos. Tal proposição poderia ter algo de verdadeiro, na medida em que as linhas de produção de automóveis, por exemplo, atualmente, são tão automatizadas, que robôs realizam boa parte das tarefas; as próprias máquinas já estão programadas para produzir outros aparelhos técnicos, é verdade. Mas, ao empreendermos a interpretação da citação acima, não podemos nos esquecer de que o esforço de Heidegger quer chamar a atenção, não para os produtos tecnológicos, mas sempre para a Essência da técnica. Sendo assim, é para a força de realização da tecnologia que devemos olhar, e é ela que, há muito tempo, superou a vontade e a capacidade de decisão do homem. Pois então que força é essa e qual é o seu modo de funcionamento? Procuramos, portanto, o vigor ou, em outros termos, o modo de ser da técnica moderna. Propondo um uso completamente inusitado de um termo alemão, Heidegger afirma que a Essência (Wesen) da tecnologia é Gestell (composição). De acordo com o uso comum da palavra, Gestell significa esqueleto, no sentido de armação. Mas também se aplica a toda espécie de montagem utilitária, como uma estante de livros, um cavalete, um chassi ou prateleiras. Nesse seu uso vernacular, a palavra quer dizer uma espécie de estrutura, que dá sustentação, que suporta alguma coisa. O termo Gestell é convocado para designar o modo de ser da técnica justamente porque aponta para uma certa organização/disposição, para uma espécie de armação prévia.

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Com-posição, “Gestell”, significa a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade. Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna mas que, em si mesmo não é nada de técnico (HEIDEGGER, 2010a, p. 24).

Gestell é um termo que pode ser dividido em duas partes. Em alemão, o prefixo Ge significa uma força originária de reunião, como nas palavras Gebirg (cordilheira) e Gemüt (ânimo). A segunda parte da palavra tem origem no verbo stellen (pôr). Sendo assim, a simples análise da origem de Gestell, enquanto termo, já nos revela bastante sobre as razões de seu emprego por Heidegger. Avançaremos nesse entendimento, ao analisarmos melhor a presença do verbo pôr (stellen) nesse termo que define a Essência da técnica. O pôr, de com-posição (Gestell), tem sua gênese no dis-por explorador da técnica moderna que desencobre o real como dis-posição. Mas também o pro-por produtivo da poiésis carrega o verbo stellen em sua origem. As duas formas de desencobrimento são fundamentalmente diferentes; são modos distintos de pôr o real em funcionamento, mas que, apesar disso, guardam esse parentesco de essência. Nesse sentido, enquanto a produção (poiésis) é um modo de realização de realidade caracterizado por um deixar-viger essencial, a Gestell é uma forma de desencobrimento que pré-põe, isto é, que põe antecipadamente, desde uma outra força de reunião (Ge), aquilo que se realiza. Enquanto a produção exige escuta e comedimento, numa espécie de sintonia, ou seja, mesmo tonus, tom (força) e sincronia, isto é, mesmo ritmo, cadência, pulso (tempo) com aquilo que se realiza, a provocação da com-posição requer e intima que tudo se realize desde uma certa maneira, a partir do seu modo, desde o que está pré-posto. Assim apropriada, o Ge-stell evoca por seu prefixo Ge uma força de reunião, ao mesmo tempo em que, por seu radical stellen (colocar), [pôr] evoca todas as operações que podem designar em alemão os verbos que comportam este radical: pôr em evidência, representar, encurralar, cometer, intimidar, interpelar (Dreyfus, apud OLIVEIRA, 2006, p. 69).

Sendo assim, a com-posição não tem absolutamente nada de técnico, no sentido de ser um simples meio, pois se trata de uma ativida43

de completamente interessada, isto é, constitui-se como um fazer que desencobre o real de uma determinada maneira, e não de outra. Esse modo de desvelamento faz vir a ser o que se realiza na dis-posição antecipada; de alguma maneira prepara de antemão, define e conforma o real no horizonte do que está pré-configuradamente sempre dis-ponível. O agir da tecnologia é, desse modo, um operar no qual sempre se realiza a ordenação, organização e dis-posição prévias da realidade, para que, assim, toda e qualquer experiência se ofereça sempre da mesma forma, independentemente do contexto, ou de quem a realiza. Isto é, o modo de ser dessa forma de desvelamento de mundo pré-põe o real, na perspectiva do controle, do apoderamento e da previsão dos resultados. O que ele [Heidegger] tem em mente por um tal desencobrimento aponta, por sua vez, para abertura do ente na totalidade, em nossa época e, por conseguinte, para um acontecimento que tem lugar antes do aparecimento de todo ente particular enquanto tal e que não pode ser reduzido a nenhum comportamento do ser-aí humano em específico. A requisição [provocação] técnica surge aqui de uma transformação originária do modo mesmo como o ente em seu todo vem ao nosso encontro e deixa o ente em geral aparecer desde o princípio segundo um determinado caráter ontológico (CASANOVA, 2010, p. 230).

É curiosa e reveladora a outra opção, anteriormente já utilizada, da sempre difícil tradução do termo Gestell. A palavra armação provoca uma ambiguidade que é muito interessante, na medida em que nos ajuda a melhor compreender para onde se está querendo apontar com o termo. Além de significar a dimensão estrutural e estruturante que a Essência da técnica moderna põe em jogo, armação também conota a existência de um truque, de uma armadilha que essa forma de desencobrimento representa para aqueles que estão desprevenidos. É que, conforme já indicamos, a vigência da técnica guarda sempre um risco e é fruto de um modo de funcionamento que tem como artifício garantir antecipadamente o domínio da experiência. Por isso, na citação, o professor Casanova afirma que a tecnologia realizou uma transformação originária do modo mesmo como o ente em seu todo vem ao nosso encontro. Essa mudança é fruto do projeto que cresce e ganha sua força e legitimidade na vontade de domínio e controle do homem sobre a natureza, e que se sustenta em um determinado caráter ontológico. Mas afinal, que caráter ontológico é esse?

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O todo é compreendido aqui como fundo de reserva e o ser de todos os entes se abre deste modo. Se compreendermos a relação entre a requisição [provocação] técnica e a determinação da natureza como fundo de reserva, então a significação da palavra “composição” (Gestell) surge como que por si mesma (CASANOVA, 2010, p. 231).

Caráter ontológico quer dizer o que as coisas são, em última instância; aponta para um modo de compreender a dinâmica de realização do real como um todo. E, na provocação técnica, a totalidade é fundo de reserva. Para onde quer que se olhe, com o que quer que seja, o homem está e estará sempre se relacionando com a natureza como fundo de reserva. Dessa maneira, a partir dessa perspectiva, todos os entes se abrem como dis-ponibilidade. Esse é o modo técnico de fazer vir a ser aquilo que ainda não é. Na tecnologia, é desde composição, desde esse modo de dispor o real, que as “coisas” passam do não-vigente ao vigente. Esse caráter ontológico da técnica moderna deve seu modo de ser, entre outros aspectos que serão analisados no segundo capítulo deste livro, à associação de técnica e ciência moderna, sendo esta última movida pelo sentido cartesiano. Em Descartes, quando penso, só posso ter a certeza de uma coisa: da existência de mim mesmo, que sou sujeito, ou seja, agente desse pensar. É desse modo que o sujeito ganha uma existência, uma res separada do mundo – res cogitans – e transforma-se no único lugar seguro para uma relação com o real baseada na certeza. Foi a partir desse lógos, desse sentido, que a técnica moderna tornou-se sinônimo de instrumento de controle à disposição de um sujeito que tudo pode, a partir de si mesmo. Sobre esta certeza matemático-geométrica, que ganha fundo ou estatuto ontológico, se funda a ciência moderna, a qual se desdobra e se concretiza historicamente como o movimento de auto-asseguramento da subjetividade e do saber lógico-categorial que, em sabendo, isto é, representando, respectivamente, categorizando, se auto-assegura de si mesmo, à medida que realiza e concretiza sua estrutura lógico-categorizante ou lógico-esquematizante – isto é, subjetivo-transcendental –apropriante (FOGEL, 1998a, p. 111).

Estão postas as bases, os fundamentos; fica caracterizado o solo desde o qual a tecnologia se estrutura ontologicamente. É desde a 45

certeza, o autoasseguramento do sujeito, que a técnica, e também as ciências modernas, se organizam para lançar vistas para a realidade. Desse modo, o que aqui se chama de “sujeito” quer significar uma estrutura, isto é, uma disposição que opera pela sua própria promoção e legitimidade. Sendo assim, com o uso do termo não se está querendo apontar para alguma singularidade específica. Não se está indicando que a provocação da técnica moderna é fruto da ação de um homem particular. Desde a com-posição, todo e qualquer “sujeito” intima o real na mesma perspectiva. E essa perspectiva é a do apoderamento, do controle e do domínio do homem sobre a natureza. Representando e categorizando toda a realidade, o homem, lugar da produção do conhecimento, se autoassegura de si mesmo, justamente à medida que põe em funcionamento essa estrutura lógico-categorizante. “Composição” é neste contexto o termo que expressa exatamente o surgimento de uma subjetividade que transcende toda a subjetividade humana e que é simultaneamente responsável pela sua absorção na dinâmica mesma da requisição: “composição” é a subjetividade propriamente dita da requisição [provocação] técnica (CASANOVA, 2010, p. 232-233).

No próximo capítulo deste trabalho, vamos esclarecer mais detalhadamente as origens histórico-filosóficas dessa subjetividade, a saber, a metafísica da representação. Por enquanto, vamos voltar a análise para o agir da técnica moderna, na tentativa de compreender o que esse desencobrimento particular põe em jogo e de que modo atua essa subjetividade que transcende toda a subjetividade humana. Vimos que a tecnologia é uma atividade que coloca um tipo de verdade em funcionamento e que a verdade da técnica moderna é Gestell: composição. Em sua Essência, a técnica moderna quer dis-por do real, como dis-ponibilidade, com o objetivo de se apoderar e de gerir alétheia, na perspectiva da posse e da dominação provocadoras. Para que isso se realize, a tecnologia é um modo de ser que precisa sempre colocar o “sujeito” – enquanto subjetividade da provocação –, antes do aparecimento, como sendo a “causa” de qualquer que seja a ação, isto é, essa espécie de suprassubjetividade é que é o “agente”, é a “responsável” por tudo que se desencobre. Reforçamos que sujeito aqui não está apontando para uma pessoa singular, não se quer dizer que cada sujeito é, a cada vez, responsável pelo modo de desencobrimento desde a técnica moderna. É a subjetividade da provocação que se antepõe como causa e fundamento para o desvelamento desafiador da natureza, vigente na 46

técnica moderna. Nesse horizonte, esse mesmo suprassujeito tem que, necessariamente, “pré-estar” e “subsistir” à própria ação, para que possa, assim, ser a sua origem. Mas, apesar de ser anterior à ação da tecnologia, a subjetividade provocadora da técnica moderna é produzida pela própria Gestell, para realizar a realidade desde um modo específico, cuja decisão não cabe ao homem e cuja existência é ontologicamente anterior a ele. Primeiro há o desencobrimento desde a com-posição que provoca a natureza, depois – ressaltamos que esse antes e depois não são cronológicos, mas sim ontológicos – a subjetividade que atende a esse chamado e desafia a natureza a se manifestar como disponibilidade. Dessa maneira, na técnica moderna, o homem constitui-se como algo provido de uma “existência” e “substância” anterior ao agir, (a subjetividade provocadora) cuja natureza permanece exatamante a mesma depois de cessada a atividade. Essa natureza é determinada pela intimação exploradora da natureza. Nessa ação particular, em que o vigor é a com-posição, não se admite a possibilidade de o resultado, ou o próprio fazer dessa ação, interferir ou transformar, de alguma maneira, aquele que a realiza, pois ele precisa continuar sendo subjetividade da provocação. Nesse modo de ser, o mundo, então, se mostra e se apresenta sempre e somente em uma perspectiva: a dimensão “objetiva”, na qual tudo vira coisa encerrada numa possibilidade pré-vista e sempre disponível ao homem; o “sujeito”, por sua vez, também permanece invariavelmente o mesmo: o “responsável” por atender ao chamado da provocação, que “subsiste” em si mesmo, e desde si mesmo. A requisição [provocação] técnica acontece de maneira ontologicamente anterior a toda e qualquer manifestação do ente. A transformação fundamental do ente na totalidade não se dá aqui a posteriori por meio, por exemplo, de uma intervenção técnica cada vez mais maciça, mas condiciona antes a priori o modo mesmo como uma tal intervenção pode ser efetivamente colocada em jogo. Para que uma transformação deste gênero possa ser de fato realizada, porém, é indispensável que haja ao mesmo tempo um “sujeito” correspondente que estabeleça essa requisição (CASANOVA, 2010, p. 231-232).

Enquanto Essência da técnica moderna, a provocação da composição é o a priori, é o modo desde o qual os entes se presentificam na era da técnica. Isso quer dizer que não foram a onipresença e a valorização 47

dos aparelhos e máquinas técnicas que transformaram o modo como o real se realiza e também o próprio homem, isto é, não foi o uso crescente dos dispositivos técnicos que gerou uma nova forma de desencobrimento. O que veio primeiro, o que foi mais essencial e fundamental, e que se constituiu como a razão para que o desencobrimento da tecnologia se tornasse hegemônico, foi a provocação da técnica moderna. Ela é ontologicamente anterior. É ela que já está em operação quando o ente se desvela como disponibilidade; e esse modo de requerer a natureza é que é o responsável pelo progressivo desenvolvimento dos aparelhos técnicos, e não o contrário. Se a provocação é anterior, se ela se constitui como o a priori do desencobrimento da técnica moderna, e, para cumprir com esse modo de desvelamento, o “agente” da ação da técnica – a subjetividade da provocação – não está, nem pode estar, aberto para o novo; ele nunca deve se entregar ao próprio agir, mas precisa se resguardar dos imprevistos se fechando a outras possibilidades e se orientando a partir da única determinação do real que lhe interessa: o utilitarismo da disponibilidade. É a partir dessa única dimensão que o homem se relaciona com o modo de ser da técnica. Não é ao depois que o homem se relaciona com a essência da técnica. Por isso, formulada nesses moldes, a pergunta, como havemos de nos relacionar com a essência da técnica chega sempre tarde e atrasada. Mas a pergunta nunca chega tarde e atrasada se nos sentirmos, propriamente, como aqueles, cujas ações e omissões se acham por toda parte desafiadas e pro-vocadas, ora às claras ora às escondidas, pela com-posição. E sobretudo nunca chega tarde e atrasada a questão se e de que modo nós nos empenhamos no processo em que a própria com-posição vige e vigora (HEIDEGGER, 2010a, p. 27).

Sendo assim, vale a pena se perguntar qual é o porquê, e de que modo o homem participa da dinâmica de realização de realidade desde a com-posição, perguntas que já estão orientando o encaminhamento deste livro. Se Heidegger compreende a técnica moderna como uma atividade que põe em jogo um modo muito próprio de desvelamento do real, no qual o mundo aparece como algo de uma natureza separada e diferente do homem, a única vocação da natureza é mesmo ser plenamente conhecida e controlada por ele. O ser humano teria por tarefa entender a essência do real para, então, se guiar por uma apropriação do mundo 48

que lhe seja mais útil e conveniente para certas finalidades. Para isso, a técnica moderna precisa reduzir a realidade a uma única dimensão: a objetiva. Com isso, não queremos afirmar que o homem tem a técnica moderna a seu dispor, como se ele tivesse a opção de dirigir seu modo de desencobrimento. Nesse encaminhamento, o homem apenas obedece ao chamado, à convocação própria da tecnologia. O homem, que considera a técnica inicialmente como algo que se acha a seu serviço e sob seu total controle, torna-se ele mesmo por fim fundo de reserva e perde toda independência em relação à composição técnica. A composição vem à tona, então, por assim dizer como a subjetividade incondicionada da maquinação funcional. O que resta ao homem aí, por sua vez, é apenas obedecer a priori a essa subjetividade incondicionada e garantir-lhe constantemente a possibilidade de manter suas estruturas de poder no interior do eterno retorno da colocação de sua própria requisição [provocação] (CASANOVA, 2010, p. 233).

Ao obedecer ao a priori da subjetividade incondicionada da tecnologia, o homem segue um encaminhamento que sempre pré-põe e pro-põe a realidade. Para que todo real se torne simplesmente o somatório de coisas determináveis e à disposição da vontade e do domínio do homem, a tecnologia reifica e planifica a vida. Dessa maneira, mundo passa a significar tudo aquilo que é desde o horizonte de previsibilidade e asseguramento. Esse é o parâmetro e a medida da ação da técnica moderna, e é aí que reside o que anteriormente chamamos de truque, de tramoia dessa forma de desencobrimento. Isso porque nem toda a realidade cabe nessa perspectiva. No chamado da técnica moderna, o homem se empenha de maneira a lidar com a natureza enquanto principal reservatório de energia para a exploração. Mas qual é a origem dessa provocação que hoje ganhou dimensões planetárias? Esse modo de ser como dis-ponibilidade se revelou inicialmente, na aurora das ciências modernas da natureza: O seu modo de representação encara a natureza, como um sistema operativo e calculável de forças. A física moderna não é experimental por usar, nas investigações da natureza, aparelhos e ferramentas. Ao contrário: porque, já na condição de pura teoria, a física leva a natureza a ex-por-se, como sistema de forças, que se pode operar previamente, é que se dis-põe do

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experimento para testar, se a natureza confirma tal condição e o modo em que o faz (HEIDEGGER, 2010a, p. 24-25).

Dessa maneira, a dependência é recíproca: as experiências somente são possíveis porque a ciência já convoca (provoca) o real a se manifestar de determinada maneira – como sistema operativo e calculável de forças – e é somente porque a ciência expõe e dis-põe da natureza, que ela pode ser “expressa” como sistema de forças. É somente porque, já em tese, eu prevejo e pré-determino um certo modo de desencobrimento, isto é, um certo resultado, que posso encontrá-lo e confirmá-lo na natureza, por meio das minhas ferramentas tecnológicas de análise. Essa confirmação, por sua vez, é a legitimação necessária para que se possa seguir produzindo teoria da natureza. Fundamental aqui é compreender que o que vem primeiro, e como base para tudo, é um certo modo de encaminhamento, uma pré-compreensão de realidade que busca a sua “verificação” na natureza. Nesse encaminhamento, a ciência e o saber tornam-se apenas mais um instrumento de provocação de realidade. O saber, a ciência, está inserido neste movimento ou, antes, ele é este movimento e, assim, o saber se faz como o movimento e a promoção de uma concepção, de uma pré-compreensão instrumentalizadora e instrumentalista do saber e do fazer – do pensar e do agir (FOGEL, 1998a, p. 94-95).

As atuais ciências experimentais seguem essa mesma lógica, inaugurada na modernidade, e também clamam pela ex-posição da natureza, desde certos aparelhos técnicos, para, assim, assegurar suas teorias. Prova disso são os experimentos científicos, realizados por meio do acelerador de partículas, na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), conduzidos na Suíça. No dia 4 de julho de 2012, os físicos do CERN anunciaram que haviam descoberto uma partícula nova que poderia ser o bóson de Higgs (partícula de Deus), pré-dito, em teoria, no ano de 1964. Depois de quase cinquenta anos de investigações levadas a cabo em diversas partes do mundo, para provar o que havia sido anunciado em teoria, a pergunta que fica é a seguinte: como essa partícula poderia não ser a partícula de Deus? Na verdade, não há surpresa nenhuma ou qualquer espanto na “descoberta”. Seguindo o mesmo encaminhamento, apesar de as ciências matemáticas da natureza terem surgido bem antes da aparição efetiva 50

da técnica moderna e de suas máquinas e aparelhos, foram elas que abriram caminho, não para a técnica e suas aplicações, mas para a Essência da técnica mesma. Ao investigar a origem da requisição da com-posição, veremos que a força de reunião que articula esse tipo de desencobrimento já movia a física desde o seu nascimento, sendo, até mesmo, anterior a ela. Para a cronologia historiográfica, o início das ciências modernas da natureza se localiza no século XVII, enquanto que a técnica das máquinas só se desenvolveu na segunda metade do século XVIII. Posterior na constatação historiográfica, a técnica moderna é, porém, historicamente anterior no tocante à essência que a rege (HEIDEGGER, 2010a, p. 25).

O que se quer afirmar é que a física moderna é, desde o seu início, e por princípio, um modo de ser desde a com-posição (Gestell). Hoje a física renunciou à observação direta e concreta dos objetos de investigação, como provam os sofisticados aparelhos de medição e experimentação, mas não o fez por uma decisão dos cientistas ou de suas associações. A percepção sensível deu lugar às representações abstratas por uma imposição, justamente, da vigência do desencobrimento como disponibilidade. Não se trata de uma inclinação momentânea, ou moda passageira das modernas ciências da natureza. O modo de ser, isto é, o vigor, desde o qual a física moderna surgiu, sempre procurou pré-ver, controlar e calcular matematicamente aquilo que se desencobre. Por outro lado, apesar de ter renunciado à representação de objetos da natureza, cuja origem era a percepção sensível, a física, assim como todas as outras ciências, nunca deixará de depender da natureza como fonte que fornece dados, isto é, como origem que a abastece das informações necessárias para que ela possa calcular, prever e controlar o modo de realização do real. O mundo se apresenta, nessa perspectiva da ciência moderna, como um sistema dis-ponível de informações, hoje convertidas em bytes, ou seja, em dados apresentados digitalmente na forma de combinações binárias (de 0 e 1), com os quais se pode contar. Contar aqui ganha uma dupla conotação: a mesma que indicamos no início deste capítulo, quando afirmamos que o computador/ordenador é a máquina das máquinas, o paradigma dos dispositivos tecnológicos, o aparelho arquetípico; e, além de ser uma forma de cálculo, de enumeração, contar é também algo que se pode, antecipadamente, prever. Posso contar previamente com os dados que são fornecidos, para posteriormente apenas confirmá-los 51

na experiência. “‘Cálculo’ significa, portanto: por antecipação estar certo e seguro de, que e com; por antecipação contar com – assegurar-se, autoassegurar-se previamente” (FOGEL, 2005, p. 60). Nesse sentido, técnica e cálculo são o mesmo. Agora a natureza já não demonstra nem o caráter de um deixar-viger pro-dutivo nem o modo de ser da causa efficiens ou até da causa formalis. Presumivelmente, a causalidade há de se reduzir a uma notificação provocada pelas dis-ponibilidades que se dis-ponham com segurança contínua ou sucessiva (HEIDEGGER, 2010a, p. 26).

Aqui reside o mais significativo: a dinâmica de realização desde a técnica moderna é um modo de desencobrimento dos entes em que vigora uma concepção cada vez mais alterada da causalidade. Isso porque, provocada desde a com-posição, não há ocasião e oportunidade para a natureza se manifestar desde um deixar-viger pro-dutivo. No lugar de uma pro-dução, a ação da técnica realiza uma pro-vocação antecipada da natureza, o que significa uma alteração de Essência sem precedentes. Nesse sentido, o homem deixou de ser o intermediário (causa efficiens), que providenciava a unidade de coerência na articulação das causas material, formal e final, para se tornar o “agente responsável” por provocar, intimar, isto é, requerer a natureza segundo uma determinada maneira: como disponibilidade. A causalidade não é mais o modo de articulação de um determinado fazer que se quer levar à plenitude desde ele mesmo, isto é, na vigência de seu modo próprio de ser. Isso seria entender a causalidade desde o modo de articulação da causa finalis. Não se escuta mais esse vigor, mas a um outro chamado. Na técnica moderna, a causalidade se resume a uma burocrática constatação, isto é, a um esquematismo da normalidade linear causa-efeito. Causalidade é o resultado do apoderamento da natureza pelo homem, que, de antemão e previamente, pode, por meio da razão, atribuir e determinar, em teoria e tecnicamente, o modo de funcionamento, estruturação e organização da realidade, cabendo aos experimentos científicos apenas a “verificação” ou, melhor, a “confirmação” do esquema. O resultado presumido por essa nova estrutura da vigência da tecnologia é justamente a previsão, dominação, controle, melhoria, correção e até mesmo a substituição do real pelo virtual, que a tudo transforma em bytes.

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A essência da técnica permanece a mesma, ela ainda é um desvelamento, pois ela não deixou de ser um movimento de presentificação. Só que, agora, o homem não permanece com a postura passiva do intermediário, como o ente para o qual e através do qual, o Ser manifestava o seu tornar-se visível. Para o homem que se considera um ente distinto, que tem primazia sobre os demais, o desvelamento é interpretado com um ato consciente e próprio da sua razão, e de acordo com as leis da sua lógica: a técnica não pode mais ser pro-dução, ela é agora pro-vocação [...] (OLIVEIRA, 2006, p. 68).

Essa disposição é a própria Gestell. As máquinas e os aparelhos da tecnologia não são a causa dessa interpelação, mas seu efeito. Apesar de, na dimensão da técnica, como téchne, haver fabricação, no sentido de fazer algo passar do não-vigente para a vigência, ela não era necessariamente contínua, pois a produção podia ser dada como encerrada com a satisfação da necessidade imediata ou a contemplação do trabalho concretizado. Já a técnica moderna representa um modo de ser de mobilização e exploração da natureza em estado permanente. Tecnologia não é mais pro-dução, mas sim uma espécie de pro-vocação contínua, na qual os entes se realizam conforme a determinação humana, e não segundo seus modos de ser próprios. A partir da pergunta pelo modo de funcionamento de fim e meio, Heidegger encontra, no vigor da técnica moderna, uma nova forma de causalidade na qual todos os entes se manifestam como instrumentos à dis-posição do homem. O que aparece como instrumento é visto como meio para (um fim). Na vigência da máquina, vive-se na vigência do instrumento, do instrumental. E se tudo passa a ser instrumento e instrumental, então nada mais tem fim em si próprio, mas só nisso que a vontade ou o querer do instrumento põe, isto é, pré-põe e pro-põe. E esta vontade, querendo segundo a natureza do instrumento, quer ou põe o fim, a meta, sempre para fora e para além disso que é feito e como é feito. Que nada mais se determine em si mesmo ou tenha fim em si próprio, significa que desaparece o caráter de inutilidade e de suficiência de toda e qualquer coisa, de todo e qualquer fazer. Junto pois com a instrumentalidade e o instrumento domina também o funcionalismo e a operatividade ou o operativismo – enfim, o utilitarismo (FOGEL, 1998a, p. 95).

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Pensar o sentido do acontecimento subjacente à nossa era técnica é pensar justamente quais são os propósitos da ação da técnica moderna. E a grande virada, a grande diferença essencial da ação posta em funcionamento pela técnica moderna, isto é, da tecnologia, na comparação com a ação da téchne, é exatamente onde se coloca a meta, o objetivo do agir. No terceiro capítulo deste livro, veremos como essa compreensão é decisiva na superação da técnica, isto é, da metafísica. Na dimensão da téchne, o que se presentifica pode ser determinado em si mesmo, desde a medida de si mesmo, na escuta e no mesmo “compasso” de cada modo de ser, de cada vigência possível. Sendo assim, até mesmo aquilo que tem um fim em si próprio, que é simplesmente inútil, sem porquê nem para quê, também tem direito à existência, eclode, aflora e se dá desde essa gratuidade. Já desde a com-posição, tudo se realiza na forma e na medida do instrumento, e como tal, nada tem fim em si próprio. Na perspectiva utilitária do instrumental, todos os entes tornam-se meios para se atingir um determinado fim. Todo e qualquer ente só é na medida em que serve para alguma coisa. E é a vontade humana, como subjetividade da provocação, o querer do instrumento que põe, isto é, pré-põe e pro-põe o modo de ser do que se presentifica. Nesse sentido, a ação da tecnologia quer ou põe o fim, a meta, sempre para fora e para além disso que é feito e de como é feito. Não pode haver nenhuma entrega ao se fazer, mas toda realização do real deve obedecer às necessidades que se encontram em uma dimensão distinta do próprio fazer. Aqui é decisivo atentar para o fato da estrutura metafísica do instrumento e da instrumentalização: sempre já lançado para fora e para além do que se faz, do que é feito – para fora e para além do fazer, da ação. Daí o modo de insatisfação e de insuficiência – aquilo que sempre de modo algum basta. Nesse esquema está a máquina. A máquina é esse esquema. Pensando a máquina (o aparelho, a aparelhagem, o equipamento) a partir de instrumento clarifica-se um pouco mais o sentido, a natureza e a dimensão do fenômeno da dominação da máquina – a era da mecânica (FOGEL, 1998a, p. 96).

E esse modo de desencobrimento se impõe, na atualidade, como um destino irrevogável que atinge as mais diversas e variadas esferas da existência, solapando tudo aquilo que encontra pela frente. O vigor e o modo de ser da técnica moderna, antes restritos ao Ocidente, alcançaram, já há algum tempo, uma escala planetária, chegando ao 54

ponto de se apresentarem, e de serem compreendidos por muitos, como o único modo possível de desvelamento dos entes. É exatamente esse o perigo da tecnologia.

1.3 O perigo da técnica Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o alerta de Heidegger não se relaciona, de nenhuma forma, com tecnofobia ou propaganda anticapitalista. O autor nem de longe propõe que a solução para o perigo que a técnica moderna e seu encaminhamento representam seria a proibição do uso dos dispositivos tecnológicos. Não é absolutamente nada disso. Mesmo porque, conforme já indicamos, a ameaça não se encontra nas máquinas e produtos técnicos. Na verdade, o risco apontado pelo filósofo reside no fato de que, no desvelamento provocador da com-posição, os entes são convocados a um desencobrimento particular, desde o qual se realizam como dis-ponibilidade. Como a tradução de Gestell por armação sugere, esse desvelamento é não somente uma estrutura que serve como base para um certo vigor de aparecimento, como também tem a conotação de truque, trapaça, ardil do homem que quer total domínio e controle sobre a existência. E o perigo está em deixar de considerar a armação enquanto tal; a ameaça que se anuncia trata-se de o homem, possivelmente, perder a capacidade de ver o modo de funcionamento do esquema e compreendê-lo como algo muito óbvio e até mesmo natural, como se não pudesse ser de outra maneira. Dito de outro modo: “É preciso quebrar a força da obviedade e o seu poder letárgico sobre as possibilidades históricas da tradição” (CASANOVA, 2010, p.83). O problema é que, no quase monopólio da técnica moderna e de seu modo de ser e de intimar o real, estão faltando ocasião e oportunidade para outras formas de desvelamento da realidade. O grande risco apontado por Heidegger é que, na atualidade, a ação da tecnologia tende a ser concebida não apenas como uma das possibilidades de desencobrimento do real, mas como a única maneira necessária, ou mesmo possível, de desvelamento dos entes e de produção da verdade. “A técnica não é perigosa. Não há uma demonia técnica. O que há é o mistério de sua essência. Sendo um envio de descobrimento, a essência da técnica é o perigo” (HEIDEGGER, 2010a, p. 30). Vimos que a Essência da técnica moderna é a com-posição (Gestell). Desde esse modo de desencobrimento, tudo deve ser pré-compreendido e posto antecipadamente na perspectiva da dominação e do 55

controle. Sendo assim, acaba por escapar completamente ao homem uma relação mais arcaica com aquilo que se realiza. A ameaça verdadeira já atingiu o homem em seu ser. O reino do Ges-tell nos ameaça com a eventualidade que ao homem possa ser negado retornar a um desvelamento mais original e de compreender assim o apelo de uma verdade mais inicial [...] Por isso, aí onde domina o Gestell, há perigo no sentido mais elevado (Heidegger, Apud OLIVEIRA, 2006, p. 70).

Mas antes de caracterizar propriamente o que seria essa relação mais originária, velada pelo modo de desencobrimento da técnica moderna, convém dar um passo atrás para melhor compreender de onde vem essa contundente crítica ao encaminhamento desde com-posição. Conforme indicamos anteriormente, a Gestell, como essência da técnica moderna, conduz o homem, em escala planetária, ao caminho de um desencobrimento específico, no qual os entes se revelam enquanto dis-ponibilidade. Levar por um caminho, guiar, conduzir, seduzir, impelir de um certo modo, constrói um encaminhamento. E é isso que é realizado pela com-posição: a condução da técnica produz destino. “Pôr a caminho significa destinar. Por isso, denominamos de destino a força de reunião encaminhadora, que põe o homem a caminho de um desencobrimento. É pelo destino que se determina a essência de toda história” (HEIDEGGER, 2010a, p. 27). História, nesse sentido, está querendo indicar algo bastante distinto de historiografia. “A representação historiográfica toma a história como um objeto em que algo se passa e ao mesmo tempo vai desaparecendo em sua transitoriedade” (HEIDEGGER, 2010b, p.41). Sendo assim, para a historiografia, a história é a sucessão objetiva de fatos e eventos de interesse da ciência histórica, como guerras, eleições ou o desenvolvimento e as alterações nos modos de produção e organização econômica e social, os quais, já tendo se encerrado, podem se tornar objeto de estudo. Ao contrário da historicidade que entifica os eventos e objetiva a realidade, a história, no horizonte heideggeriano, indica a dinâmica originária, o movimento em que vida se faz vida; é justamente o acontecer, ou, num neologismo gaiato, a acontecência. Esse acontecer realiza destino, isto é, produz encaminhamento. A ação humana só se torna histórica quando enviada por um destino. E somente o que já se destinou a uma representação objeti-

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vante torna acessível, como objeto, o histórico da historiografia, isto é, de uma ciência. É daí que provém a confusão corrente entre o histórico e o historiográfico (HEIDEGGER, 2010a, p. 27).

“Destino, nesse sentido, é também a pro-dução da poiésis” (HEIDEGGER, 2010a, p. 27). Isso significa que, em se fazendo, a vida também conduz a si própria do não-vigente ao vigente, do que ainda não é a uma determinada presentificação. Nesse movimento de autorrealização, o acontecer gera destino, produz sentido, dá origem a história. Desse modo, o destino conduz o homem em seu ser, isto é, como todos os outros entes, o homem também se realiza a partir da mesma dinâmica. A essência da técnica moderna repousa na com-posição. Sua regência é parte do destino. Posto pelo destino num caminho de desencobrimento, o homem, sempre a caminho, caminha continuamente à beira de uma possibilidade: a possibilidade de seguir e favorecer apenas o que des-encobre na dis-posição e de tirar daí todos os seus parâmetros e medidas. Assim, tranca-se uma outra possibilidade: a possibilidade de o homem empenhar-se, antes de tudo e sempre mais e num modo cada vez mais originário, pela essência do que se des-encobre e seu desencobrimento, com a finalidade de assumir, como sua própria essência, a pertença encarecida ao desencobrimento (HEIDEGGER, 2010a, p. 28-29).

São duas possibilidades radicalmente distintas. Na primeira, o modo de desvelamento da técnica que a tudo desencobre, como dis-posição, transforma-se na única régua de medida para o que se realiza. Dessa forma, tudo aquilo que não se enquadra nesse modelo, simplesmente perde direito à existência. Não que o homem tenha o poder e o controle sobre todos os modos de desvelamento; muito menos se quer afirmar que a passagem da não-vigência para a vigência seja uma atividade que sempre dependa da autorização do homem para se realizar como produção. Perder o direito à existência está, aqui, querendo dizer que, caso siga ou favoreça apenas o encaminhamento da técnica moderna, o homem terá que tomar como falsa, isto é, não-verdadeira, toda manifestação que não puder ser objetivável, pré-posta e pré-compreendida antecipadamente. Quem só vê e olha para o feito, e mais que isso, quem se compreende como a instância para a qual tudo o que é se realiza, perde a capacidade de enxergar a força de realização do que se desencobre. 57

Perde a segunda possibilidade, anunciada na última citação, que é a de se ocupar, com mais atenção e serenidade, pela força de realização (Wesen) daquilo que se presentifica. Esse é o risco da onipresença da Gestell: no império da técnica moderna, o homem, cada vez mais, perde a capacidade de se perceber como um ente entre todos os entes. É verdade que se trata de um ente bem diferente dos demais, já que ele é o lugar de realização de desencobrimento. O homem é o espaço de articulação (Da-) da verdade do Ser (Sein). Mas isso não significa, de modo algum, que ele não pertença ao desencobrir. “[...] a técnica moderna representa [perigo] não para esse ou para aquele povo ou classe, para esse ou aquele ecossistema ou mesmo para a humanidade como gênero, mas para a própria essência do ser humano” (LOPARIC, 2004, p. 21). A questão destacada por Heidegger é que, na com-posição, o homem se compreende e se coloca como um ente cuja existência é fora e anterior a todo desvelamento, visto que tem a pretensão de ser o senhor ou o controlador do que se realiza. E é justamente esse homem assim ameaçado que se alardeia na figura do senhor da terra. Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem. Esta aparência faz prosperar uma derradeira ilusão, segundo a qual, em toda parte, o homem só se encontra consigo mesmo (HEIDEGGER, 2010a, p. 29).

É esse o risco que a técnica moderna representa. Ela pode criar o ambiente ideal para o desenvolvimento de um homem fechado em si mesmo, que é incapaz de se ver como parte do destino. Encarcerado em si, esse homem passa a se compreender, não somente como o único responsável por tudo aquilo que existe, mas também como o agente exclusivo de sua própria conformação e configuração. Tudo o que aparece, passa, então, a aparecer como um feito do homem, não somente no sentido de ter se tornado presente pelas suas mãos, como também de se ter presentificado em uma vigência determinada pela razão humana. E, dessa maneira, “O deserto cresce: ai daquele que encobre desertos!” (NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, IV, “As filhas do deserto”). Deserto, nessa metáfora, quer dizer justamente solo pobre, quase infértil, cujos frutos são murchos e sem nenhum viço ou frescura. A desertificação se espalha e toma conta de nós como destino. Não pode haver fecundidade e jovialidade em um terreno em que reina apenas o desencobrimento no horizonte da previsibilidade e do assenhoramento. Também fica negada a possibilidade de o real provocar espanto, reduzindo-se a sua determinação objetiva. 58

Desertificação não é uma questão de erosão, nem de guerras mundiais, mas, paradoxalmente, o banimento da necessidade, mais precisamente, do caráter questionável da vida humana. Esse banimento atinge, em particular, a recordação. Ao perder o seu habitat, o homem perde a natureza e a tradição e, assim, o seu passado o seu ter-sido, o seu tempo. Dessa forma, ele perde a si mesmo. Desertificação é o nome nietzschiano para a objetificação terminal (LOPARIC, 2004, p. 28).

A Gestell permite que o homem realize um modo de presentificação dos entes bastante eficiente, na perspectiva do apoderamento e da vontade de estar sempre seguro. Além disso, seu desvelamento é sempre extremamente útil e correto, na medida em que todo o real se apresenta à luz de causa para um determinado efeito e, assim, pode servir às mais variadas aplicações de maneira adequada aos propósitos e projetos humanos. Mas, então, por que Heidegger insiste em sustentar que há um grave perigo no vigor da técnica moderna? A pergunta tem razão de ser apenas para efeito de retórica. O risco já vem sendo aqui esclarecido, e destacamos mais um de seus aspectos: apesar de correto, o desencobrimento da dis-posição pode trancar ao homem a dimensão da verdade. Do mesmo modo, em que a natureza, expondo-se, como um sistema operativo e calculável de forças pode proporcionar constatações corretas mas é justamente por tais resultados que o desencobrimento pode tornar-se o perigo de o verdadeiro se retirar do correto (HEIDEGGER, 2010a, p. 29).

Isso quer dizer que, justamente por sempre “dar certo”, ou seja, exatamente por ser um desvelamento que cumpre ajustadamente com o objetivo de provocar a natureza como sistema calculável e previsível de forças, que o modo de ser da técnica moderna pode deixar escapar a verdade. Já indicamos aqui que, em Heidegger, o que é correto tem uma natureza bem diferente do que é verdadeiro. Para o filósofo, o correto reside na dimensão da exatidão, da adequação e da correspondência de uma sentença ao referente, isto é, da representação ao objeto. Essa compreensão da verdade produz o que anteriormente chamamos de deserto, onde novas possibilidades de desencobrimento dos entes ficam vedadas. Com base no parágrafo 44 de Ser e Tempo, o professor Fernando Pessoa descreve os três pressupostos da verdade, como correção, que vão nos ajudar a entender porque essa perspectiva resulta em frutos sem frescor: 59

Três teses caracterizam a compreensão tradicional da verdade, compondo a definição metafísica de sua essência: 1. A verdade é a adequação do intelecto à coisa (e/ou da coisa ao intelecto); 2. A proposição (o juízo) é o “lugar da verdade”; 3. A verdade exclui de si o seu contrário, a não verdade (PESSOA, 2003, p. 87).

Fica, assim, bem claro que a verdade como adequação é uma concepção judicativa da verdade. Nesse viés, é o intelecto, ou seja, é a razão humana que se constitui como a instância não somente de elaboração, como também de verificação da verdade. Também é preciso notar que a compreensão de que a verdade exclui de sua natureza a não-verdade, representa uma substancialização, uma objetivação de todo o real. Verdade passa a ser algo estanque e plenamente apreensível pelo juízo, que pode, de forma clara e distinta, definir suas bordas e limites. Essa terceira tese é, a bem dizer, apenas a consequência das duas anteriores. Se a verdade é uma adequação do intelecto à coisa e a proposição é o lugar da verdade, torna-se possível a “revelação”/ confecção de uma verdade que exclui de si a não-verdade. Mas há que se acrescentar um importante aspecto da compreensão técnico-científica do funcionamento da verdade. Quando a verificação é dada como correta, isto é, adequada e aceita como verdadeira, a proposição não é entendida simplesmente como mera representação ou imagem da coisa, mas como sua legítima substituta. Por isso, ela pode assumir o caráter de um “assim como”: Cumprindo a verificação, o conhecimento remete unicamente ao próprio ente. É sobre ele próprio que reincide a confirmação. O próprio ente visado mostra-se assim como ele é em si mesmo, ou seja, que, em si mesmo, ele é assim como se mostra e descobre sendo na proposição [...] Confirmar significa: que o ente se mostra em si mesmo. [...] A proposição é verdadeira significa: ela descobre o ente em si mesmo. Ela propõe, indica, “deixa ver” o ente em seu ser e estar descoberto (HEIDEGGER, 2005, p. 286).

Por outro lado, o verdadeiro, no horizonte heideggeriano, não é o correto, mas reside na esfera da alétheia, ou seja, é desencobrimento (Unverborgenheit). Verdade, então, é uma dinâmica de realização que inclui o aparecer, mas também o velamento, o que se retrai, em toda e qualquer presentificação, a saber, a sua força de realização. Com 60

efeito, a verdade é uma espécie de arrancar, de aflorar, um dar-se algo, sempre ao modo do desencobrimento. Verdade, como alétheia, é o resultado não da capacidade da razão humana, mas faz parte da essência do próprio Ser, constituindo-se como um modo como irrompe a physis, o vigor dominante do que surge de si mesmo. Ao contrário do que entende a metafísica, a alétheia, Unverborgenheit, desencobrimento, antes de ocorrer como uma adequação correta do juízo à coisa, consiste na experiência de descoberta original que mostra o sentido de ser que estava oculto, latente, na aparência dos entes (PESSOA, 2003, p. 86).

Sendo assim, a verdade não pertence, nem poderia pertencer ao homem. E até mesmo ele, como ente que é, não é nem pode ser o condutor ou o juiz desse processo, pois também se articula desde alétheia. Ontologicamente, o homem não pode ser anterior à verdade, como a perspectiva, que identifica o seu intelecto como o lugar da produção e verificação da verdade, quer nos fazer crer. A verdade sempre é primeiro, é sempre mais arcaica que qualquer manifestação entificada da realidade. Verdade aqui é Essência (Wesen), o modo de ser desde o qual se desencobre aquilo que vige. “A verdade (descoberta) deve sempre ser arrancada primeiramente dos entes. O ente é retirado do velamento. A descoberta em seu fato é, ao mesmo tempo, um roubo” (HEIDEGGER, 2005, p. 291). É a verdade, como alétheia, que a técnica moderna, baseada na adequação/conformação, pode fazer sucumbir. Não que ela tenha o poder de impedir que a dinâmica de realização da realidade se efetive, já que o desencobrimento não pertence ao homem. Todavia, a onipresença da com-posição como destino desvia o homem da real gênese de toda presentificação, promovendo o seu despertencimento. Nesse processo, o homem não somente se compreende como sendo um ente cuja existência se dá fora de desencobrimento, mas também se eleva a categoria de causa do real. Sendo assim, a pro-vocação exploradora dos entes, como dis-ponibilidade, não somente dissimula outros modos de desencobrimento, como também, e de maneira mais devastadora, oculta o próprio desencobrimento. A composição encobre, sobretudo, o desencobrimento, que, no sentido da poiésis, deixa o real emergir para aparecer em seu ser. Ao invés, o pôr da exploração impele a referência contrária com o que é e está sendo. Onde reina a com-posição, é o dire-

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cionamento e asseguramento da dis-ponibilidade que marcam todo o desencobrimento. Já não deixam surgir e aparecer o desencobrimento em si mesmo, traço essencial da dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2010a, p. 30).

O destino, isto é, o acontecer de vida no encaminhamento da com-posição é o perigo extremo apontado por Heidegger. Esse envio se manifesta, na atualidade, de forma mais plena e evidente, na tecnologia, presente em todas as partes e em cada uma das esferas da atividade humana. Como vimos, a técnica moderna e seu modo de desvelamento estão presentes nas ciências, e até na arte. Até mesmo Deus pode perder, nessa representação, o mistério de sua transcendência, manifestando-se como um objeto sobre o qual se pode predicar inúmeras qualidades, como parece ser o caso da tarefa executada pela Teologia. “À luz da causalidade, Deus pode degradar-se a ser uma causa, a causa efficiens” (HEIDEGGER, 2010a, p. 29). Desse modo, a ameaça que a técnica moderna representa, reforçamos, não se baseia diretamente nas ferramentas e dispositivos tecnológicos, mas: Assenta [-se] no fato de estar em curso há alguns séculos uma reviravolta de todas as representações dominantes. O Homem é, assim, transposto para uma outra realidade. Esta revolução radical da visão do mundo é consumada na filosofia moderna. Daí resulta uma posição totalmente nova do Homem no mundo e em relação ao mundo. O mundo aparece agora como um objeto sobre o qual o pensamento que calcula investe, nada mais devendo poder resistir aos seus ataques (HEIDEGGER, s/d. a, p. 18-19).

O que se chamou de visão do mundo, na citação anterior, não deve ser compreendido como sendo a perspectiva de uma subjetividade particular. Não é uma maneira específica de compreender o mundo, se entendermos com isso uma forma com a qual pessoas singulares concebem a realidade na razão. Isso porque o encaminhamento da com-posição não é o resultado da escolha pessoal de alguém, nem mesmo de grupos, muito menos pode ser decidido pelo intelecto humano, mas representa uma forma de essencialização, um modo de ser de desencobrimento de realidade que produz destino. É verdade que a técnica moderna é o resultado de uma certa postura do homem frente ao mundo, na qual tudo deve ser medido e articulado a partir do horizonte 62

da dis-ponibilidade. Entretanto, esse encaminhamento é fruto de uma época, é produto de história. No nosso tempo, parece que nada mais consegue resistir aos ataques do pensamento calculador, no qual tudo que existe, só existe na medida em que posso contar/calcular. No entanto, aquilo que é verdadeiramente inquietante não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico. Muito mais inquietante é o fato de o Homem não estar preparado para esta transformação do mundo, é o fato de nós ainda não conseguirmos, através do pensamento que medita, lidar adequadamente com aquilo que, nesta era, está realmente a emergir (HEIDEGGER, s/d. a, p. 21).

Lidar adequadamente com o que está realmente a emergir em nossa época significa lidar com o modo de ser desde composição. É pensar o sentido desse encaminhamento que não somente dificulta a efetivação de outros modos de desencobrimento, como também esconde o próprio desvelamento, como força de realização do real, para colocar o homem em seu lugar, como “agente responsável” pela efetivação do mundo como objetividade. Nesse horizonte, como consequência, a verdade é judicativa, é adequação, e seu lugar de realização é a proposição do “sujeito”. Sem acesso à compreensão de que a gênese de tudo aquilo que se realiza, isto é, de tudo que se efetiva de uma determinada maneira, é desencobrimento, um modo mais originário de relacionamento com mundo fica vedado ao homem. A experiência de uma verdade mais inaugural e que nada tem a ver com conformação/adequação também pode estar inviabilizada. Mas, para Heidegger, nem tudo está perdido. “Ao invés, a essência da técnica há de guardar em si a medrança do que salva”. Evocando alguns versos do poeta Hölderlin, o filósofo afirma que: “Ora, onde mora o perigo/ é lá que também cresce/ o que salva” (HEIDEGGER 2010a, p. 31). Com essas palavras, quer indicar que a técnica é um grande perigo, mas também carrega o germe de sua própria contestação e questionamento. Isso porque toda e qualquer forma de desencobrimento, por mais ameaçadora que seja, guarda em si mesma, o brilho de uma pro-dução, isto é, o vigor de um acontecimento, que cria destino. Seja no des-encobrir-se pro-dutor ou no des-velar-se ex-plorador da técnica moderna, há sempre ao menos uma insinuação de origem, um aceno da força que realiza a presentificação. E é justamente nesse aceno que está o que salva, pois nele reside a possibilidade de se experimentar a força de nascimento. Nas palavras de 63

Hölderlin, salvar significa “chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu próprio brilho” (HEIDEGGER 2010a, p. 31). Desse modo, o vigor da técnica moderna guarda em si mesmo uma saída, um caminho para a sua compreensão. O brilho de com-posição é o desvelar desde dis-ponibilidade. Ao mesmo tempo em que o desencobrimento como tal é ocultado, ele tem o poder de revelar sua forma de apropriação. Isso significa que, apesar de representar uma grande ameaça, o domínio da tecnologia não tem o poder de ocultar por completo a sua realização. Todo destino de um envio acontece, em sua propriedade, a partir de um conceder e como um conceder. Pois é a concessão que acarreta para o homem ter parte no desencobrimento, parte esta de que carece a aproximação do desencobrimento. Por ser assim encarecido, o homem se acha apropriado pela apropriação da verdade. A apropriação, que envia para o desencobrimento de uma maneira ou de outra, é o que salva, enquanto tal. Pois é o que salva que leva o homem a perceber e a entrar na mais alta dignidade de sua essência (HEIDEGGER 2010a, p. 34).

Cabe à investigação filosófica, que pensa o sentido do que emerge, numa apropriação, perceber o que vige na técnica. Pensar a técnica é, pois, compreender a sua Essência e não descrever suas diversas aplicações ou se perder na discussão sobre as vantagens e inconvenientes do uso das tecnologias nas sociedades contemporâneas. As pesquisas sociológicas e instrumentais da técnica parecem se perder numa espécie de maravilhamento dos avanços e desenvolvimentos de máquinas e aparelhos ou na denúncia de seus perigos. Como centram a investigação nesses dispositivos e concebem a técnica como atividade humana que é meio para um determinado fim, esses horizontes de análise procuram encontrar formas de dominar a técnica, para afastar seu risco, sem ao menos conhecer, verdadeiramente, seu modo de funcionamento. Na preocupação de dominar e controlar os efeitos dos dispositivos técnicos, a compreensão instrumental da tecnologia já é o resultado do modo de funcionamento da própria tecnologia. Isto é, são horizontes técnicos, compreensões da tecnologia que já operam desde o encaminhamento da técnica. A desconstrução provocada por Heidegger percorre, portanto, uma trajetória circular, muito especial: ela sai do presente tecnicizado, volta a origem grega do primeiro começo do pensamento do ser e vai poeticamente para outro começo desse mesmo pensamento (LOPARIC, 2004, p. 30).

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Heidegger desloca completamente o problema de lugar e volta todos os seus esforços na investigação, não dos produtos tecnológicos, mas em direção à Essência da técnica moderna. Ele parte da análise da instrumentalidade, questionando seu direito à existência, e descobre sua íntima ligação com a causalidade. Desse modo, revela a maneira, o encaminhamento a partir do qual a técnica moderna conduz do não-vigente ao vigente. A ideia é pensar o sentido da técnica, fazer justamente a experiência do modo de ser da tecnologia como destino de um desencobrimento. Se olharmos dentro da essência ambígua da técnica, veremos uma constelação, o percurso do mistério. A questão da técnica é a questão em que acontece, em sua propriedade, em seu desencobrimento e encobrimento, a vigência da verdade (HEIDEGGER 2010a, p. 35).

É na verdade como alétheia, isto é, como desencobrimento, que se localiza a ambiguidade da Essência da técnica moderna. Somente se conseguir visualizar a dinâmica de presentificação e efetivação de realidade, o homem terá acesso a algum tipo de relacionamento com a verdade inaugural. O problema é que, ao desvelar os entes como dis-ponibilidade, a com-posição encobre justamente o próprio desencobrimento, o que, em grande medida, veda essa oportunidade. Mas, como verdade é alétheia, mesmo na com-posição, existe a possibilidade de se compreender a gênese desse movimento. Enquanto modo de realização do real, também a Gestell vige na concessão que abre ao homem a oportunidade e a ocasião de “olhar” e entender origem. De um lado, a com-posição impele à fúria do dis-por que destrói toda visão do que o desencobrimento faz acontecer de próprio e, assim, em princípio, põe em perigo qualquer relacionamento com a essência da verdade. De outro lado, a com-posição se dá, por sua vez, em sua propriedade na concessão que deixa o homem continuar a ser – até agora sem experiência nenhuma mas talvez no porvir com mais experiência – o encarecido pela veri-ficação da essência da verdade. Nestas condições é que surge e aparece a aurora do que salva (HEIDEGGER 2010a, p. 35).

Nessa direção, a própria técnica moderna, na medida em que for percebida em sua dinâmica de realização e desencobrimento, pode ser um 65

caminho que permite uma relação mais originária com a realidade. Nessa outra relação, possível somente ao homem que se ocupa de meditar o sentido da técnica, o esforço não é exercido para que se possa dominar o que se revela, mas sim para que se consiga uma aplicação total ao que se des-encobre e ao seu desencobrimento. O problema é que esse tipo de relacionamento essencial com o real só pode ser realizado quando o homem deixa de se impor como “sujeito” para voltar-se e orientar-se para a coisa mesma; quando ele se põe de modo tal que o objetivo maior não seja prever ou controlar, mas guardar e resguardar o sentido daquilo que se realiza. Precisa ser um andar comedido, ajustado e compassado com o próprio real; uma postura, uma atitude, um modo de ser em que o homem se propõe a pensar junto da coisa e a ficar à espera do inesperado, porque quer experimentar a tensão de participação de gênese. Nesse outro encaminhamento, se efetiva uma total entrega, um não-fazer de raríssima atividade. É uma escuta, uma concessão, uma orientação na qual o homem vivencia um abandonar-se, um deixar-se à mercê da experiência, que permite que ele seja completamente tomado pelo sentido que se apresenta. É por meio de um súbito salto que se vivencia a possibilidade, desde e na dimensão da “própria coisa”. Algo bem distinto de uma relação na qual o poder de determinar o destino e a verdade do mundo é um “direito” do homem. Quando se permite essa experiência de gênese, cabe ao ser humano um estado de concentração máxima, só que não em si mesmo, mas na realidade. Por isso, talvez seja melhor que ele esteja distraído: para que vida se faça vida, a partir de si mesma e para que a subjetividade provocadora perca seu lugar. Essa é a forma na qual o homem pode participar do envio, da gênese da realidade, se fazendo desde si. E, assim, ganha-se a dimensão de que o próprio ser humano não pode ser algo que pré-exista ou que subsista à experiência, mas que também se faz todo nisso e com isso. É claro que essa experiência é muito mais difícil e arriscada que a ação da tecnologia. Nela, certeza e previsibilidade não são mais a boa medida do sucesso; ela exige serenidade. Ao contrário da disposição que pré-determina homem e mundo, a relação arcaica com o real exige muito mais esforço e coragem de quem se propõe a vivenciá-la. Fica, assim, indicado o que querem dizer verdade inaugural e relação originária com aquilo que se efetiva. Trata-se sobretudo de uma tarefa que precisa executar a superação da metafísica. No terceiro e último capítulo deste trabalho, vamos desenvolver mais pormenorizadamente essas ideias e seu encaminhamento. Por enquanto, o importante é remarcar que o mais urgente dessa empreitada é pensar propriamente o sentido da técnica moderna, para, dessa maneira, 66

compreendê-la em sua dinâmica de realização e desencobrimento. É possível – e necessário – ver na armação um truque e, na aparente obviedade e naturalidade com que se determina objetivamente a realidade, apenas um destino de nossa época. O destino ao qual o homem é enviado pelo Ges-tell não determina, então, uma tragédia necessária [...] desde que se saiba considerar como tarefa a dissolução desses modos de objetivação e disponibilidade que marcam a essência moderna da técnica. A técnica, enquanto desveladora dos entes, em nada representaria mais uma ameaça se deixasse permanecer em questão aquilo que a todo ente precede e origina, ou seja, se a técnica não ofuscar e ocupar toda a atenção humana com suas realizações, deixando o homem lembrar-se que é, também, ente entre outros entes (OLIVEIRA, 2006, p. 71).

Ver o perigo e perceber o crescimento do que salva: uma tarefa e tanto que passa pela desconstrução da técnica moderna. O vigor da tecnologia ameaça o desencobrimento, na medida em que se coloca como o único modo válido de desvelamento, além de ocultar o fato de ser, ele também, uma forma de se desencobrir a realidade. Mas o curioso é que a técnica moderna também pode ser um caminho para a compreensão daquilo que, ontologicamente, é sempre anterior a qualquer que seja o desencobrimento: a verdade como alétheia.

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Capítulo 2

Objetividade, representação e certeza “Coisas que têm uma constituição em si” – eis aí uma representação dogmática, com a qual se deve romper absolutamente (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 559).

No capítulo anterior vimos que, em nossa época, todas as ocupações, isto é, as diversas tarefas, atividades e afazeres humanos se medem desde a medida das máquinas e aparelhos tecnológicos, que nos requisitam sempre do mesmo modo. E é nessa lida que aflora e que se realiza a vida; dá-se o existir. Na era da técnica, o viver acontece desde a intimação provocadora da tecnologia, que causou uma transformação originária no modo como os entes vêm ao nosso encontro. Tudo se presentifica na forma de instrumento e, assim, se torna meio para se atingir um determinado fim. Nada tem fim em si próprio. Isso quer dizer que a dinâmica de efetivação desde a técnica moderna é um modo de desencobrimento no qual vigora uma nova causalidade. Nela, a natureza se realiza conforme a determinação humana – de acordo com a subjetividade – e não segundo seus modos de ser próprios. Na atualidade, a tecnologia apresenta-se como a melhor régua, ou seja, a medida mais certa, adequada e segura para a determinação 69

última da realidade do real. Só que a requisição da técnica moderna não chegou a esse lugar privilegiado por obra do acaso; por isso, é preciso investigar suas origens. Já deixamos indicado, anteriormente, que inicialmente a natureza se realizou como dis-ponibilidade na aurora das ciências modernas e matemáticas da natureza. Apesar de serem anteriores às máquinas e aparelhos tecnológicos, foram essas ciências que abriram caminho, não para a técnica e suas aplicações, mas para a vigência da Essência da técnica mesma. Ao investigar de onde vem a requisição da com-posição apontamos que a força de reunião que articula esse tipo de desencobrimento é movida pelo sentido cartesiano. É este o esquema da metafísica moderna, o cartesianismo, a partir de cujo fundamento se instaura, cresce e se essencializa historicamente a ciência moderna e contemporânea. Este esquema-fundamento define o modo de ser da modernidade, o seu “espírito” (FOGEL, 1998a, p. 111).

Com isso, queremos afirmar que é possível identificar uma consanguinidade da técnica moderna com a própria metafísica, uma vez que, fundadas na modernidade, ambas partilham de uma mesma origem, direção e sentido, qual sejam, a objetivação, a representação e o controle do mundo em que vivemos. Assim, investigar a arché da tecnologia é também procurar desconstruir o envio, isto é, o modo de encaminhamento metafísico, não se podendo separar as duas críticas. Compreender bem o sentido e a ação da técnica moderna passa, necessariamente, pela compreensão da metafísica, sobretudo a cartesiana. Esse é o objetivo deste segundo capítulo, que será dedicado à investigação dos valores e de certos conceitos, cunhados pela e na modernidade, cuja crítica também servirá como sustentação para nossa leitura e análise da tecnologia. Vamos apresentar uma contraposição à tradição metafísica no que diz respeito ao seu projeto de dar conta, por completo e de maneira definitiva, da realidade última de todas as coisas, para que se evidencie a consanguinidade entre metafísica e composição. Na verdade, veremos que a metafísica se constitui como um modo de ser que possui justamente uma visão técnica do ente e da essência da realidade. É ela quem, desde o seu nascimento, abre caminho para a determinação tecnológica da existência com a qual estamos tão familiarizados hoje em dia. Mais especificamente, vamos criticar o modo de compreensão que entende que o real pode ser dividido em dois substratos autônomos e 70

independentes, a saber, “sujeito” e “objeto” e descrever, em linhas gerais, uma outra perspectiva com relação à organização e estruturação da realidade. Também vamos refazer o percurso heideggeriano em direção à coisa, ou seja, à “dimensão objetiva” do real, o que implica apresentar as limitações da perspectiva moderna de mundo, além de sua origem e envio. Por último, veremos o papel que o pensamento calculador desempenha nesse processo. Este capítulo servirá de base para que se perceba que uma certa compreensão de mundo nascida no Ocidente foi determinante para que a tecnologia se tornasse hoje instituição privilegiada de manifestação do ideal de melhoramento e substituição da realidade. Para cumprir com essas tarefas, em primeiro lugar, vamos seguir de perto alguns trabalhos nos quais Heidegger problematiza sobretudo a operação de objetivação dos entes, na perspectiva de sua representação e controle pelo homem. Em seguida, vamos interpretar alguns textos nietzschianos para que se evidencie os equívocos, os contrassensos e as limitações, apontados pelo filósofo, no modo de compreensão e estruturação do real manifestado pela expressão “coisa em si” e pelos conceitos de “sujeito” e “objeto”. Essas são ideias-chave na construção da maneira moderna de entender a realidade. No terceiro tópico, voltaremos ao horizonte heideggeriano para explicitar a importância do cálculo na conformação técnica dos entes e da essência da realidade. Para início de conversa, queremos indicar que a epígrafe deste capítulo é um fragmento póstumo que deixa bastante claro aquilo de que o pensamento de Nietzsche pretende se afastar e se diferenciar. O filósofo começa o texto tomando o cuidado de manter entre aspas as primeiras palavras: “Coisas que têm uma constituição em si”. Pode parecer um exagerado rigor formal, mas as aspas servem justamente para marcar que as primeiras palavras não devem ser atribuídas a Nietzsche. São, na verdade, uma espécie de citação, mesmo sem que se esteja citando específica e diretamente algum autor. Tais palavras, que poderiam fazer parte de diversos textos da história da filosofia, expressam, de certa forma, uma inclinação, uma vontade, um programa e uma espécie de meta ou objetivo que a metafísica sempre pretendeu cumprir: conhecer verdadeiramente as coisas na sua “constituição em si”, como se elas fossem dotadas de uma realidade independente e autônoma, cuja vocação fosse ser descoberta pelo homem. Uma vez reveladas pelo sujeito do conhecimento, essas “essências primeiras” poderiam então, logo a seguir, ser re-presentadas, expostas de novo, pelo homem, sendo que, dessa vez, com muito mais clareza e distinção, isto é, sem surpresas acidentais ou mal-entendidos, o que permitiria que se conhecesse a realidade desde o parâmetro da certeza. 71

Além de apresentar esses termos entre aspas, o fragmento expõe, logo na sequência, a forma como o autor classifica essa vontade metafísica: acreditar que possa haver coisas com uma “constituição em si”, não passa de uma “representação dogmática [da realidade] com a qual se deve romper absolutamente”. Com efeito, querer ou atribuir às coisas uma composição e organização nelas mesmas, separadas e apartadas de todo o contexto, só é possível graças a preconceitos ou pressupostos dogmáticos. São certas ideias previamente assumidas por filósofos ou cientistas e reproduzidas sem que se pense e problematize seu direito à existência que abrem caminho para que se busque a estrutura e a organização da realidade “em si mesma”. E com essa postura, com essa perspectiva, não há negociação, pois o texto afirma que é preciso “romper absolutamente”. Isso porque, conforme ficará mais claro no desenvolvimento deste capítulo, a “coisa mesma” não é nem mesmo uma coisa, se por “coisa” se entender um substrato que carrega, dentro de si, uma essência fundadora e acessível a nós, por meio da pesquisa científica ou da especulação filosófica. A “coisa mesma” não é uma substância, não dispõe de unidade e identidade pré-postas. O real não é um “em si” anterior a toda experiência e que sempre subsiste a ela. Na preparação para sua leitura e interpretação do discurso “Do imaculado conhecimento”, de Zaratustra, o professor Gilvan Fogel esclarece que, em Nietzsche, ao contrário, a objetividade é uma perspectiva, uma “pré-ocupação”. Espanta-me que ela [uma coisa qualquer; no exemplo, uma laranja] realmente não é nada em-si – nenhuma coisa final, absoluta, definitiva, mas que ela é um aparecer e mostrar-se ora como isso, ora como aquilo, ora como aquilo outro. Enfim, sempre como isso ou como aquilo, isto é, sempre já desde uma “pré-ocupação” ou desde uma ótica, uma perspectiva, um interesse. A laranja – isto é, uma ou toda e qualquer coisa – é, na verdade, essa “pré-ocupação”, essa perspectiva, esse interesse. É aí que ela é e está; é aí e como esse aí que ela se define, determina-se. Vê-se então que, de fato, isso que aqui se está chamando “pré-ocupação”, perspectiva ou interesse é o lugar da coisa ou sua gênese – enfim, é a “coisa” in statu nascendi. Daí que “coisa” nenhuma é realmente coisa, mas... interesse, perspectiva, “pré-ocupação” (FOGEL, 2005, p. 20).

Desse modo, para Nietzsche, não há, de um lado, um sujeito fadado a conhecer e, de outro, o objeto que oferece a sua “mesmidade” para ser 72

conhecida. Não se trata de negar a contraposição sujeito-objeto, mas sim de afirmar que sua constituição não tem nada de óbvio e imediato e que esses, e outros pares opostos, não são originários – portanto não deveriam servir de parâmetro e critério para a determinação da realidade. Até mesmo para que possamos compreendê-los, é preciso que um determinado “mundo”, quer dizer, um modo próprio de realização da realidade, já tenha se interposto. Uma compreensão bastante distinta da proposta pela metafísica que compreende o real na dimensão da objetividade e representação, baseada na autonomia do “sujeito”. Voltemos a nossa investigação para o modo como esses conceitos se articulam.

2.1 A pergunta pela coisa Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (João Guimarães Rosa) Como primeiro ponto de ancoragem para traçarmos as bases que serviram e ainda servem de sustentação para a autonomia do eu, para a objetivação da realidade e para a consequente legitimidade que a tecnologia conquistou como lugar privilegiado de apropriação, previsão, controle, correção e até mesmo substituição do mundo, vamos refazer o percurso heideggeriano em direção à coisa. O procedimento pretende esclarecer que o modo como boa parte da história da filosofia tentou acessar a natureza do real, quer dizer, a forma como se investigou, e ainda muitas vezes se investiga, o fundamento da realidade, é causa de uma série de implicações. Nossa hipótese é a de que foi a partir de um determinado encaminhamento, cunhado na modernidade, que a associação de técnica e ciência tornou-se a instituição mais importante no ideal de assenhoramento e melhoramento do mundo, e que outras possibilidades de apropriação do real se tornaram cada vez mais escassas. Com isso, se quer apontar que o percurso que se escolhe para tentar responder qualquer que seja a pergunta filosófica é tão importante quanto a própria questão que se coloca na saída. E pode-se mesmo ir um pouco mais além: o caminho tem tanta, ou até mais importância que o resultado, que a resposta à qual se chega, no final da caminhada. Como diz a epígrafe deste subcapítulo, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia”. Em diversas passagens de sua obra, Heidegger apresenta as limitações da perspectiva moderna de mundo, além de criticar justamente sua origem e envio. 73

Vamos nos concentrar, mais especificamente, nas escolhas e justificativas da investigação filosófica na busca de uma suposta objetividade do mundo pré-existente à experiência e em direção à pretendida clareza e distinção na representação daquilo que é “descoberto” pelo homem nesse processo. Nessa tarefa, nos guiaremos, sobretudo, por duas obras: O que é uma coisa? (1962) e Ser e Tempo (1927). Em vez de procurar revelar a substancialidade do real, Heidegger afirma que a atividade filosófica deveria se ocupar em tentar dar conta, de alguma maneira, do movimento que torna possível que todas as coisas se realizem. O que tem mais peso não é o resultado; não se procura uma solução mágica e definitiva para as perguntas. Na verdade, pode-se dizer que o resultado que se procura é outro, que ele se estrutura de uma outra maneira. Resultado significa, aqui, refazer o caminho e, assim se fazendo, descobrir, enxergar e, de alguma forma, compreender seu traçado, suas linhas, sinuosidades e bifurcações. É nesse sentido que perguntas como “Como chegamos até aqui?” passam a ser orientadoras. É justamente refazendo as possíveis trilhas que se encontram as pistas, as marcas que indicam as escolhas, que apontam para decisões. É claro que essas respostas não podem ser assumidas como finais e definitivas. A proposta é, na verdade, tentar revelar a realidade, mas de uma outra maneira e em uma outra dimensão. O esforço não é o de tentar dar cabo de tudo e resolver de uma vez por todas a pergunta que se colocou. Isso seria acreditar em uma estruturação do real completamente distinta da descrita aqui. O que se quer indicar é uma forma de se lidar com as perguntas filosóficas mais primordiais de maneira que se continue a colocá-las, mesmo reconhecendo-se a insuficiência e a provisoriedade dos resultados. Aliás, principalmente por isso: a necessidade da tarefa e a riqueza do caminho advêm justamente dessa condição essencial. É a partir desse horizonte que Heidegger trata uma das questões mais fundamentais da metafísica: a pergunta pela coisa. Ele afirma que, apesar da antiguidade do problema, ainda é preciso colocá-lo e, não somente isso. Para alcançá-lo é forçosamente necessário operar um grande e abissal afastamento. Essa talvez seja a principal característica da filosofia, domínio no qual as representações, opiniões e pensamentos não se alcançam diretamente, pois eles nos exigem um deslocamento de posição e de nível. Antes de entrar propriamente na discussão, é preciso que se faça uma reflexão preliminar sobre a constituição do objeto em questão, para, então, melhor enfrentar o desafio proposto na pergunta. A primeira reflexão necessária diz respeito ao que pensamos quando dizemos “uma coisa”. A resposta indicada por Heidegger aponta 74

para uma multiplicidade de significados. Entendemos a palavra coisa tanto num sentido estrito quanto em um sentido mais amplo. No primeiro, estamos nos referindo a tudo aquilo que é agarrável, visível e que possa estar à mão. Por exemplo, um pedaço de madeira, uma pedra, uma mesa ou uma escultura. Na segunda acepção, coisa é também tudo aquilo que pode ir bem ou mal, um fato ou evento, por exemplo. Como quando dizemos “Tem alguma coisa para fazer hoje?” ou “Há alguma coisa errada...” Uma terceira significação, ainda mais alargada, tornou-se usual na História da Filosofia a partir do século XVIII. Assim, em Kant, por exemplo, há a distinção de “coisa em si”, que seria inacessível para nós por meio da experiência e, de outro lado, a “coisa para nós”, que são os fenômenos. O conceito de “coisa em si” não se encaixa em nenhuma das duas concepções de coisa listadas acima. Para Kant, uma “coisa em si” é, por exemplo, Deus. Desse modo, a antiga e ainda pertinente pergunta “O que é uma coisa?” parece hoje estar mal posta e apresentar uma limitação evidente: o significado justamente daquilo que deve ser posto como objeto, pela questão, é bastante impreciso. Nunca se sabe ao certo por que coisa se está perguntando. Em seu procedimento fenomenológico, Heidegger limita a investigação àquilo que nos é mais próximo e imediato. Sendo assim, ao perguntar pela coisa, se quer investigar aquilo que representa a primeira e mais estreita das concepções de coisa: aquilo que está sempre à mão: uma pedra, uma rosa, um arbusto, um animal ou o que quer que seja da natureza do visível e agarrável. Essa escolha, como qualquer outra, não deixa de ter suas consequências. É que, de algum modo, perguntar pela “coisalidade” de coisas imediatas é justamente aquilo de que se ocupam as ciências, e, num primeiro momento, pode parecer que as autoridades da geologia, por exemplo, dispõem de experiências e métodos que permitem uma resposta muito mais exata para o que seja uma pedra. E pode-se dizer o mesmo para qualquer outra área do conhecimento e seus objetos mais próximos. Mas Heidegger esclarece que, na verdade, a filosofia se ocupa da realidade imediata em um outro nível e dimensão. Não se trata de querer saber a composição química de um mineral ou de procurar classificar as plantas segundo suas diferenças e similaridades. Em vez de querer descobrir as características fisiológicas de um animal como faz a zoologia, quando pergunta pela coisa, mesmo a mais imediata e à nossa mão, seja ela qual for, a filosofia quer saber o que uma coisa é, enquanto coisa. Dito de outro modo: a questão que se coloca é o que faz de algo uma coisa. É justamente da aparente obviedade, da suposta 75

naturalidade com que se pode determinar algo como sendo uma coisa, que a investigação filosófica se ocupa. Questionando assim, nós procuramos isso que faz de uma coisa, coisa, e não o que faz de uma coisa enquanto pedra ou madeira. Procura-se o que precisa e determina a coisa, isso então que é a sua condição. Nós não interrogamos de modo algum no sentido de uma coisa de tal ou tal espécie, mas em direção à coisalidade da coisa [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p.20).

Para Heidegger perguntar pela coisa significa, então, perguntar pelo incondicionado. Isso que faz da coisa uma coisa, o que é a sua condição, não pode, por sua vez, ser também uma coisa. É justamente em direção a um solo, a um “fundamento” para todas as coisas que o filósofo quer caminhar. Trata-se de uma ocupação estranha e de uma dimensão completamente distinta da científica. Com essa orientação, o autor afirma que não se quer substituir nem melhorar as ciências, mas sim contribuir para uma reflexão que traz consigo uma importante decisão: [...] será que a ciência é a medida de todo o saber, ou então há de haver saber no qual se determinam primeiro o fundamento e os limites da ciência, e a partir disso, sua verdadeira eficiência? Esse saber autêntico é necessário a um povo historial, ou então pode-se renunciar a ele e substituí-lo por outra coisa? [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p.20).

Dito, de maneira preliminar, o lugar e a tarefa na qual Heidegger emprega seus esforços, cumpre voltar-se agora para a pergunta inicial com o intuito de refazer o caminho e descobrir seus rastros. Ao se avançar em direção à “coisalidade” da coisa, podem-se encontrar diversas interpretações nas quais a questão sempre passa por uma característica fundamental: a coisa é sempre, e necessariamente “esta coisa aqui” e nenhuma outra. Na medida em que cada coisa tem seu lugar, seu momento e duração, o que faz de algo uma coisa parece estar fundado no espaço e no tempo. As coisas se mostram para nós como singulares e como “estas coisas aqui” agarradas às suas referências temporal e espacial. São sempre “estas aqui” e nenhuma outra. Apesar de as referências nos darem um esboço do que seja a “coisalidade” da coisa, elas ainda não são algo realmente incondicionado. 76

Isso porque o “aqui” de cada “coisa aqui” ou a sua extensão não são uma característica da coisa mesma, mas é sempre algo que foi acrescentado por nós, para quem as coisas são. O que quer dizer que haveria uma dimensão “subjetiva” em tudo o que foi determinado como “isto aqui”: o para quem as coisas aparecem. Por outro lado, pode-se dizer também justamente o contrário: já que objectum quer dizer exatamente aquilo que se objeta para nós, há uma determinação objetiva em todo “aqui” da “coisa aqui”. De que natureza é então este “aqui”? Em que solo funda-se “corretamente” a sua verdade: na subjetividade do sujeito ou na objetividade da coisa? Questões capitais no desenvolvimento do problema e que demandam uma resposta de uma outra dimensão. Finalmente ergue-se a questão de saber se a verdade a respeito da coisa é somente algo que é trazido ou está agarrado à coisa com a ajuda de uma folha de papel, ou então se não é o contrário: é a coisa mesma que se prende à verdade, da mesma maneira que ela sobrevém no espaço e no tempo. Questão de saber se a verdade não é de tal modo que ela não está agarrada à coisa, nem repousa em nós, nem se encontra em alguma parte do céu [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p.41).

É justamente por acreditar que subjetividade e objetividade realmente não são bons parâmetros para se acessar de maneira originária o mundo e para se determinar a verdade última de todas as coisas, que Heidegger desconstrói de maneira exemplar a compreensão de mundo assumida por Descartes. A perspectiva cartesiana, que já esboçamos no capítulo anterior, é um exemplo paroxístico de uma interpretação da realidade, cunhada na modernidade, que opera a partir da disjunção de “sujeito” e “objeto” e que compreende o espaço como propriedade basilar da realidade: Descartes assenta na extensão seu solo ontológico fundamental. É a partir dela que tudo o que é viria a ser. A extensão é a constituição ontológica do ente em causa que deve “ser” antes de quaisquer outras determinações ontológicas a fim de que estas possam “ser” o que são. A extensão deve, portanto, “ser atribuída” em primeiro lugar à coisa corpórea (HEIDEGGER, 2005, p. 136).

Com efeito, nessa perspectiva, por maior que sejam as diferenças acidentais que podemos encontrar na natureza, há algo que subsis77

tiria sempre o mesmo. O que se mostra, em um primeiro momento, como sendo características fundamentais da realidade seriam apenas qualidades acessórias que giram em torno de algo que permanece constante. A ideia desse procedimento é abandonar, de uma vez por todas, tudo o que seja externo a própria coisa, ou seja, do âmbito das aparências, para se concentrar na maneira como elas são “verdadeiramente” constituídas. Uma pedra, por exemplo, pode ser cinza, de superfície rugosa, de formato irregular, pesada e ser composta de certos tipos de minerais. Mas essas características são apenas periféricas. O que se quer realmente saber é o que faz com que todas as pedras, mesmo com todas as diferenças que podem ser identificadas na realidade, continuem sendo pedras. A “coisa mesmo” seria, qualquer que fosse a coisa, um núcleo em torno do qual se pode verificar uma série de propriedades; uma espécie de suporte perene para certas características e não de outras. Na coisa dotada de extensão como tal fundam-se, de início, as determinações que se mostram como qualidades mas que, “no fundo”, são modificações quantitativas dos modos da própria extensio (HEIDEGGER, 2005, p.145).

Dessa forma, em Descartes, antes de mais nada, a coisa é um substrato capaz de carregar e manifestar uma série de atributos que não fazem parte de sua “essência”, mas que podem ser acrescentados à sua “objetividade primeira”. Essa espécie de continente de qualidades nunca muda, é constante e, justamente por isso, constitui-se como o único conhecimento sobre a coisa no qual podemos confiar. Como somatório de uma série de coisas corpóreas, a res extensa é o conjunto de objetos que, num primeiro momento, nos revelam apenas seus atributos secundários e acidentais cuja variação se deve a algo mais profundo e que é anterior a nossa experiência com a realidade: a substância. Como consequência maior dessa interpretação, a extensão é a “coisalidade” de toda e qualquer coisa existente, ou seja, é a possibilidade que permite que tudo aquilo que é se realize. Desse modo, a extensão não é apenas o espaço, que pode ser medido e determinado em sua altura, largura e comprimento, mas ela é o próprio real. A extensio é o caráter ontológico desde o qual o ente, em seu todo, vem ao nosso encontro, e deixa o ente em geral aparecer desde um certo princípio. As substâncias são acessíveis em seus “atributos” e cada substância possui uma propriedade principal a partir da qual a essência

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da substancialidade de uma determinada substância pode ser recolhida. [...] A saber, a extensão em comprimento, altura e largura constitui o ser propriamente dito da substância corpórea que nós chamamos “mundo” (HEIDEGGER, 2005, p.135-136).

Nesse horizonte, as propriedades e características das coisas devem ser investigadas, não porque são a essência daquilo com o que lidamos cotidianamente, mas porque se tornam vias de acesso a uma propriedade principal, ou seja, é preciso, então, buscar a característica primeira, que torna possível a existência de todos os outros atributos. Isso porque cada substância, que subsiste e é constante, possui uma propriedade principal. É para a sua “descoberta” que todo esforço de investigação deve estar voltado. Todo o horizonte de interpretação cartesiano está baseado, desse modo, na extensão como ser propriamente dito daquilo que chamamos mundo. Desde extensão como fundamento de tudo, não é preciso muito esforço para se fazer uma lista das propriedades sensíveis de qualquer objeto palpável. O mais desconcertante na desconstrução operada por Heidegger é a revelação de que boa parte da história da filosofia não disse nada mais além disto sobre a coisa: descrições de atributos. Trata-se de uma severa crítica aos caminhos e ao percurso no qual a pergunta pela realidade última do real se desenhou e foi desenhada pelo Ocidente. O grande problema apontado pelo autor é a esterilidade produzida por uma resposta pronta e acabada que teve por intenção dar conta de maneira cabal e definitiva da pergunta pela coisa. “Então, o que é uma coisa? Resposta: uma coisa é o suporte subsistente de muitas propriedades que nela subsistem e se transformam” [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p.45). É exatamente por apresentar uma resposta pretensamente derradeira para a pergunta pelo modo de estruturação e organização da realidade que, para Heidegger, esse horizonte de compreensão é insuficiente para dar conta da dinâmica de manifestação das coisas. Ele chama essa interpretação de “concepção natural do mundo”, uma vez que ela faz abstração de toda a metafísica profunda e de toda a teoria elevada. E mais que isso: essa perspectiva não questiona sua própria fundamentação ontológica, tomando como pronto o que deveria ser discutido e analisado com bastante cuidado e atenção. O professor Gilvan Fogel destaca o risco contido no esquematismo desse horizonte de análise: o problema é encarar como “evidente”, “óbvio” e “natural” essa determinação da realidade.

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[...] igualmente perigoso é o risco de cair no roldão, no turbilhão da indiferença e da apatia, que define aquela certeza sedimentada, a qual, sob esta crosta ou cascão da sedimentação, vela uma reação afoita e desesperada no intuito de tapar, de exorcizar o perigo rebentado, instaurando assim o “natural” que é a voragem da “evidência”, da normalidade – o liso das coisas, o sem sobressaltos no viver (FOGEL, 1998a, p. 113).

O decisivo, no caminho de Descartes, é que ele igualou o ser à constância do ser simplesmente dado, sem explicar minimamente o direito com que se pode fazer essa gigantesca operação. E foi justamente a partir dessa ideia de ser que a concepção cartesiana prescreveu ao mundo o seu próprio ser. O erro está na base, no princípio ontológico desde o qual se prescreve a definição de todo e qualquer ente que se realiza. Se os entes se efetivam a partir de extensão, temos como consequência “natural” que é com o domínio e o controle da dimensão ôntica da realidade que a investigação filosófica deve se ocupar. Descartes radicalizou o estreitamento da questão do mundo, reduzindo-a à questão sobre a coisalidade da natureza enquanto ente intramundano acessível em primeiro lugar. Consolidou a opinião de que o conhecimento ôntico de um ente, pretensamente o mais rigoroso, também constitui a via de acesso possível para o ser primário do ente que se desencobre neste conhecimento. Trata-se, no entanto de perceber também que mesmo as “complementações” da ontologia da coisa movem-se, em princípio, sobre a mesma base dogmática de Descartes (HEIDEGGER, 2005, p.147).

O problema é que essa descrição fica presa aos entes, é ôntica e não investiga fenomenologicamente o mundo. Não que essa seja uma maneira errada de perguntar pela realidade do real. Ao contrário, ela quase sempre está correta na exposição das características e propriedades da natureza. E o mundo pode mesmo ser “descoberto” seguindo-se caminhos e graus diferentes. A questão radical proposta por Heidegger é que, seguindo esse caminho ôntico, ou mesmo o caminho no qual se busca o ser das coisas naturais entendendo-o como substancialidade, nem ao menos se consegue perguntar ontologicamente pelo mundo.

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Nem um retrato ôntico dos entes intramundanos nem a interpretação ontológica do ser destes entes alcançariam, como tais, o fenômeno do “mundo”. Em ambas as vias de acesso para o ser “objetivo” já se “pressupõe”, e de muitas maneiras, o “mundo” (HEIDEGGER, 2005, p. 104).

É por isso que Heidegger propõe uma leitura do real bastante distinta da cartesiana. Nela, o homem, enquanto ente, é a estrutura ser-no-mundo. Com a expressão, não se quer afirmar que exista uma indistinção ou continuidade entre a presença (Dasein) e os demais entes, muito menos que primeiro exista o “mundo” e que depois o homem se encaixe ao “mundo natural”. O homem não está no mundo da mesma forma como a camisa está dentro do guarda-roupa ou que podemos estar dentro de uma sala, onde primeiro é preciso que exista a sala ou o guarda-roupa, com todas as suas propriedades e características já dadas, e depois exista o homem ou a camisa que também chegam prontos e se inserem dentro da sala e no guarda-roupa. A expressão ser-no-mundo significa, antes de mais nada, um estar familiarizado a. Desse modo, a relação do homem com o mundo é uma espécie de estar sempre e imediatamente já tomado por, sempre já inserido. “É um engajamento pré-reflexivo, que se cumpre independentemente do sujeito por um liame mais primitivo e fundamental do que o nexo entre sujeito e objeto admitido pela teoria do conhecimento” (NUNES, 2004, p. 14). O mundo no qual estamos o tempo inteiro, e do qual não podemos “escapar”, não é um substrato, um receptáculo de objetos. Isso porque é somente em um mundo que os entes se tornam acessíveis para nós, inclusive a própria presença, o próprio homem, não pré-existe a nenhum mundo dado e circunscrito. [...] o índice elementar, o proto-esquema ou o “átomo” de todo real possível é uma estrutura, o complexo de uma unidade simples (é isso a “totalidade”), que se denomina “ser-no-mundo”. O real, todo real possível, o é à medida que se dá ou é para um ente que é ou está na determinação de ser na compreensão do real. [...] “Ser-no-mundo”, esta estrutura, é pois a “hora”, o “instante” do real – de todo real possível (FOGEL, 1998b, p. 133-134).

Dessa maneira, para que o espaço, na forma de extensão, seja a realidade primeira de todo e qualquer ente, é preciso que, antes, uma concepção de mundo já esteja operando. A extensio, como solo ontoló81

gico, padece de explicação e não dá sustentação suficiente para toda a ontologia ao modo moderno, uma vez que desde essa base, não se pergunta originariamente pelo mundo; não há lugar para se investigar a existência de algo que seja anterior. Será mesmo que não nos é possível pensar a realidade fenomenologicamente antes de espaço ou extensão? Ou, ao contrário, a natureza como res cogitans é que, na realidade, já pressupõe e impõe uma perspectiva ao mundo que se realiza? A segunda opção nos parece a mais pertinente. Isso porque o horizonte cartesiano e também quase todas as outras leituras posteriores, buscaram um a priori, se serviram de uma instância anterior a toda e qualquer experiência, para, a partir dela, realizarem ontologias descritivas que se limitavam a executar retratos ônticos do real, por não discutir e analisar a fundo a sua compreensão do ser, ou seja, por não investigar o direito à existência dessa espécie de a priori como possibilidade para que mundo se faça mundo. A realidade como res cogitans já é claramente uma interpretação possível de mundo que precisa ser investigada. Quando, porém, lembramos que a espacialidade manifestamente também constitui o ente intramundano, torna-se, enfim, possível uma “recuperação” da análise cartesiana do “mundo”. Com a explicação radical da extensio como praesuppositum de toda a determinação da res corporea, Descartes preparou a compreensão de um a priori, cujo conteúdo foi fixado posteriormente por Kant, de maneira mais penetrante. Dentro de certos limites, a análise da extensio independe da falta de uma interpretação explícita do ser deste ente dotado de extensão (HEIDEGGER, 2005, p.148).

Na desconstrução dos valores e pressupostos cartesianos operada por Heidegger, tornam-se claros os fundamentos ontológicos da determinação do mundo como res extensa. O esforço revela que, no caminho de Descartes, a ideia de substancialidade não é esclarecida no sentido de seu ser, ou seja, não se pergunta pela fundamentação da orientação que entende que ser é tudo aquilo que permanece o mesmo, que subjaz, pré-existe e subsiste à experiência. Além disso, seguindo o desvio pela propriedade principal da substância, a ideia própria de substância é tomada e apresentada como uma espécie de limite para a investigação filosófica, como algo que fosse, por si só, impossível de esclarecimento e que, por isso, devesse ser admitido por todos como pressuposto. 82

A maior consequência dessa perspectiva é a constituição de um homem com uma substância separada daquilo que são as coisas, ou seja, daquilo que é o mundo. Desse modo, a natureza só existe como uma extensão daquilo que é homem, encontra-se em verdadeira oposição ao espírito e tem como única vocação ser dominada. Com efeito, os subsídios e as bases para que se cumpra a tarefa de controlar e se assenhorar da realidade encontram-se no único lugar seguro disponível: a consciência. A segurança da modernidade europeia é a certeza com a qual ou na qual o eu-sujeito substância se representa a si próprio – auto-asseguramento. Como algo seguro em relação a si próprio e na clareza e distinção de sua auto-representação é esta auto-certeza elevada a critério de verdade – “cogito ergo sum”. Critério de verdade significa: a determinação fundamental a partir da qual é decidido sobre a realidade do real, sobre a consistência ontológica da objetividade do objeto, pois como objetividade do objeto o sujeito-substância já decidiu ser a realidade do real (FOGEL, 1998a, p. 111).

Na tentativa de se estabelecer a ordem, de se evitar o erro e o caos de um mundo mundano e simplesmente aparente, esse horizonte estruturou um outro mundo, na razão. Esse outro mundo – um mundo primeiro – nos seria acessível somente pelo pensamento e seria o fundamento do mundo aparente. É preciso sempre desconfiar das aparências, pois os sentidos podem nos enganar. Como causa essencializada, essa espécie de arquivo com todas as substâncias, seria perfeito, e, portanto, não contaria com a presença do erro ou do engano promovidos pelos sentidos. Por isso, o mundo de essência é mais confortável: nele não há a “sujeira” da dimensão sensível da existência, para nos ludibriar. Sendo assim, somente os conceitos moldados pela razão, as ideias presentes na consciência, é que são as fontes confiáveis de acesso à realidade. Uma estrutura e tanto para calcar o lugar que a tecnologia ocupa hoje entre os diversos modos de apropriação do real. A tecnologia, operando como tecnicismo e tecnocracia (hoje realizando-se como cibernética, informática) é coração-máquina. O “lógos” da tecno-logia, determinando-se segundo o modo da estrutura moderna da representação (isto é, representação como sujeito ou subjectum = “lógos” ou lógica da representação subjetivo-transcendental), constitui-se na ideologia, isto é, na positividade e na legitimidade, da apropriação, do controle da planificação da “téchne” (FOGEL, 1998a, p. 125).

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Uma vez que vai atrás daquilo que permanece o mesmo, esse horizonte de interpretação encontra no conhecimento físico-matemático seu porto seguro. Como consequência nefasta desse encaminhamento, temos que toda e qualquer realidade passa a ter que caber nesse leito de Procusto: o que não convir a esse modelo, o que não puder ser minuciosamente analisado pela matemática não existe, é eliminado da investigação, pois não se constitui como conhecimento verdadeiro: é mito, arte, religião, mística... Por outro lado, tudo aquilo que permanece constante e pode ser acessível pelo pensamento matemático é assumido como o ser dos entes que nos aparecem. Que modo de ser da pre-sença é estabelecido como via de acesso adequada ao que, enquanto extensio, Descartes identifica como o ser do “mundo”? A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecimento, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio, só é aquilo que tem o modo de ser capaz de satisfazer ao ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso, ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui o seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante, como remanes capax mutationum. Propriamente só é o que sempre permanece. E é isso o que a matemática conhece. O que no ente se torna acessível pela matemática constitui, portanto, o seu ser (HEIDEGGER, 2005, p.141-142).

Assim, para entender a origem e o destino desse percurso, Heidegger afirma que é preciso entrar no domínio da essência da verdade. Isso porque não se pode compreender como até hoje, mesmo filosoficamente, coisa seja uma lista de características totalmente apreensíveis as quais podemos controlar antes mesmo de toda e qualquer experiência, sem que se discuta o que se entende por verdade, sem que se questione o modo como determinamos aquilo que pode ser considerado conhecimento válido. Verdade, nessa perspectiva, é uma conformação à estrutura da coisa, uma consonância à própria “objetividade”. Outro ponto fundamental: seu lugar de realização é o enunciado, que, de alguma maneira, re-presenta – apresenta novamente – a própria coisa, revela o real em sua substancialidade. 84

Aqui cabe um parêntese para explicar melhor como funciona a ideia de representação da própria coisa, por meio do enunciado. No parágrafo 33 de Ser e Tempo, “A proposição como modo derivado da interpretação”, Heidegger afirma que o sentido é justamente o que se articula na interpretação, ou seja, é o que se conforma em uma perspectiva possível da lida cotidiana. Só que a proposição se funda em uma compreensão específica, cuja origem não é diretamente a interpretação ontológica, mas uma forma derivada de interpretação. Na proposição, o sentido é definido como algo que ocorre em um juízo ao lado e ao longo do ato de julgar. Nesse ato, cujo paradigma é o juízo lógico-científico, o ente é algo que já está pré-posto, e tem-se a pretensão de apreender e reapresentar essa substancialidade da coisa. A proposição necessita de uma posição prévia do que se abriu a fim de demonstrá-lo segundo os modos de determinação. Ademais, já reside no ponto de partida da determinação uma perspectiva orientada para o que se vai propor na proposição. A perspectiva em função da qual se encara o ente preliminarmente dado assume, no processo de determinação a função de determinante (HEIDEGGER, 2005, p. 214).

Isso significa que o que é anterior, o que é mais determinante na proposição, é que ela presume um caráter ontológico ao ente na totalidade, e é desde essa perspectiva que ela opera. Há sempre uma concepção prévia – e objetivante – do ente em toda e qualquer proposição. Nessa compreensão, a proposição é uma sentença que pré-vê o ente e, por isso, o predica, de maneira a deslocar essa predicação do enunciado, para a natureza do próprio ente a ser “julgado”, isto é, “ajuizado”, objeto da produção de sentido articulada pelo juízo apofântico. Esse deslocamento categoriza a natureza, no seguinte procedimento: se digo que “o martelo é pesado”, tem-se que “o peso é do martelo” e a conceitualização, “o martelo tem a propriedade de ser pesado”. Desse modo, a proposição se recorta duas vezes no discurso. Este, domínio do enunciável, articula a experiência antepredicativa da interpretação. É o como hermenêutico da visão circunspectiva, articulado em palavras frase (isto serve ou não serve, pesado demais etc.) ao qual vai substituir-se o como apofântico da proposição categórica (isto é aquilo), sucetível de ser verdadeira ou falsa. Dado que “sentido” é a compreensibilidade de algo que o discurso articula, toda

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proposição tem uma interpretação subjacente por base. O enunciado predicativo seria uma forma derivada da interpretação (NUNES, 2004, p. 34-35).

Temos, então, que isso que pode ou não estar conforme a objetividade não se encontra em palavras soltas, mas somente no enunciado, como, por exemplo, “a porta está fechada” ou “esse computador é moderno”. Estar-se-á, na verdade, sempre que o predicado é julgado adequado à estrutura do “objeto”, pelo “sujeito”, e está posto e dito na proposição. A sustentação dessa perspectiva reside no ideal de representação como operação na qual se consegue mostrar, de maneira mais clara e distinta, a realidade que se realiza. A partir dessa concepção, representar é justamente a manobra por meio da qual se consegue apreender conceitualmente a coisa – enquanto um substrato autônomo e independente e portador de certas características – que se objeta para nós. A construção da verdade e os elementos dessa construção, quer dizer, a construção da proposição verdadeira (objeto da proposição e enunciado da proposição) são exatamente em conformidade a isso sobre o qual a verdade como tal se ajusta, à coisa como suporte e a suas propriedades [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p.47).

Toda a crítica de Heidegger quer chamar atenção para o fato de que, por trás da naturalidade e da evidência com que se pode determinar a “essência” da “coisa”, existe uma história. O que parece óbvio é, na realidade, sempre historial. A “coisalidade” da coisa se mostra hoje como sendo um substrato (extensão, em Descartes) que carrega um conjunto de propriedades existentes na própria coisa e cuja existência independe de qualquer outra instância. Além disso, a validade do nosso acesso à coisa deve ser medida segundo a adequação de nossas proposições a essas propriedades. Um caminho foi traçado para que se chegasse a isso. A facilidade com que se parte dessas premissas reside na interpretação de que nenhuma outra determinação da coisa pode ser tão fiel e de acordo com a estrutura da própria realidade; é algo que parece funcionar por si mesmo. Essa determinação do mundo como objetividade, quer dizer, esse modo de estruturação da realidade certamente não caiu do céu, mas foi fundado a partir de certos pressupostos e concepções. Heidegger indica que podemos encontrar já em Platão e Aristóteles aquilo que sustenta 86

essa concepção tão enraizada no senso comum e até mesmo nas ciências. Não se trata de dizer que as sentenças baseadas nessa interpretação da “essência” da “coisa” não estejam corretas. Não se está querendo invalidar todo o conhecimento científico, mas se quer apontar que essa é apenas uma das formas de acesso à realidade, não-originária, e que na maioria das vezes serve apenas aos caprichos da vontade utilitária e do desejo do homem de controlar, prever e manipular o mundo. Tal exarcebação é uma hipertrofia do medo frente ao perigo que se abre na hora de vida, no instante de existência. [...] A partir daí passa a viver sob o imperativo da necessidade de subjugação da vida, ou seja, do dever-ser-mais forte, mantendo a força como princípio de subjugação, que é o princípio de auto-asseguramento – insistente e persistente auto-assegurar-se de sua força e poder (FOGEL, 1998a, p. 118).

É justamente a facilidade com que se responde a uma questão tão fundamental para o homem que Heidegger quer por em xeque. Mais que isso: para o autor, uma questão respondida dessa forma não pode mais ser uma questão séria, portanto é preciso retomá-la a partir de uma outra modalidade e dimensão da experiência. Se a legitimidade dessa concepção se sustenta não apenas em uma suposta naturalidade e obviedade de seu procedimento, mas se assenta na essência da verdade, é preciso olhar também para a maneira como se determina – e se determinou – a essência da verdade. Em compensação nós questionamos em direção a essas posições fundamentais e ao “envio” neles mesmos e em direção aos movimentos de fundo que sobrevém ao ser-aí, movimento que aparentemente não são mais, uma vez que já são passado. Mas se um movimento não é constatável, não é preciso que ele tenha cessado; pois pode ser também que ele esteja em estado de repouso [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p. 53).

Para Heidegger, investigar as questões mais fundamentais é enxergar, no presente, a força e a orientação de nascimento. Questionar historialmente um problema é liberar e colocar em movimento o envio que repousa na questão e que está nela encadeado; que de alguma maneira está amarrado na forma e no modo como a própria questão foi colocada e respondida. É ver no começo de tudo, não algo falso ou 87

equivocado e distante, mas sim ver que, na realidade, ao invés de evidente ou banal, a colocação e o desenvolvimento do problema não são neutros ou simples frutos de acaso ou ingenuidade. Eles apresentam uma história cheia de decisões que foram sendo tomadas na história do pensamento. Esse envio, ou l’Avènement, como expresso na tradução francesa, não se encontra em qualquer parte longe de nós no tempo e no espaço, mas ao contrário, opera o tempo inteiro em cada proposição, em cada opinião cotidiana e em cada tentativa de acesso à coisa. O que Heidegger propõe é uma nova forma de questionar e de avaliar, de ver e de decidir uma posição tão fundamental como a da essência da coisa. Para tanto não é preciso – e nem nos é possível – voltar aos gregos. Não é porque se privilegia a historialidade da questão que se deva, necessariamente, tentar remontar a seu início. Na realidade, trata-se de uma questão onde sempre já se esteve, onde não há um começo, ou então onde o começo sempre já se deu. Apesar de estar de alguma forma presente nas concepções modernas de mundo, o começo grego não é mais o elemento principal nesse horizonte de análise. É a ciência moderna da natureza, como tal, segundo alguns de seus traços fundamentais, que se transformou em uma forma universal do pensamento. É verdade que nisso também reina – embora transformado – o começo grego, mas não mais somente ele, e muito menos de maneira preponderante [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p. 53).

Desse modo, ao olharmos para a modernidade como um momento capital na história do pensamento ocidental, procuramos entender o encaminhamento dado para a pergunta pela coisa, investigamos as escolhas e as consequências de alguns caminhos. Vimos que a determinação da coisa como substrato material de propriedades encontra hoje uma presença inabalável, mas, mesmo assim, ainda nos é possível revelar o mundo de um outro modo. Para Heidegger, é justamente no momento de agravamento das posições, modos de conduta e riscos que se torna imprescindível uma outra forma de compreender os fenômenos. Sendo assim, a era da técnica é um excelente momento para darmos um passo atrás e despertarmos outros modos de compreensão da realidade. É exatamente no momento em que a associação de técnica e ciência parece ter conseguido exercer uma espécie de monopólio da apropriação do real que reside a chance de nos relacionarmos com o mundo de maneira menos violenta 88

e mais originária. Relação essa que já foi anteriormente indicada, e que será mais bem explicitada no terceiro e último capítulo deste trabalho. Por enquanto, vamos descrever alguns pontos da crítica nietzschiana à metafísica, aos valores e a certos conceitos cunhados pela modernidade, que também servirão como sustentação para nossa leitura e análise da tecnologia.

2.2 A separação sujeito X objeto A solução metafísica para a irrevogável condição do homem e para a precariedade de seu controle sobre o real é a estruturação de um outro “mundo”, na razão. Nessa perspectiva, a realidade passa a ser compreendida como uma estrutura que pode ser divida em duas partes: o “mundo” ideal, em oposição ao “mundo” da aparência. O primeiro seria acessível somente pelo pensamento e funcionaria como fundamento do segundo, já que o “mundo” das substâncias foi concebido com uma espécie de arquivo onde estariam guardadas as “essências” responsáveis por tudo aquilo que se manifesta no “mundo” aparente. Ao engendrar o “mundo” ideal, o projeto metafísico quis assegurar a existência de uma dimensão do real na qual o domínio e o controle do homem pudessem ser completos. Ela seria possível justamente porque essa concepção da realidade entende que a existência é dotada de substancialidade. Desse modo, mesmo com algumas variações e mudanças que podem ser registradas pelo homem, em tudo aquilo que existe haveria algo que não muda nunca: uma natureza primeira como princípio de todo o real com o qual o homem se relaciona. Com efeito, torna-se plenamente possível ao homem estabelecer uma ordem ao “mundo”; determinar a real identidade de tudo que há; definir as relações de causa e efeito da natureza e ainda esclarecer a verdade dos entes com clareza e transparência, independentemente de condições acidentais que não dizem respeito à “essência” do real. Desse modo, existe uma forma de se evitar o erro ou a incerteza de um “mundo” simplesmente aparente, no qual não se pode ter convicção, isto é, nenhuma garantia de se estar fazendo um juízo correto sobre as coisas. Como causa essencializada da realidade, o “mundo” ideal seria imutável e perfeito, e, por isso, ele é o objetivo, a meta e o refúgio daqueles que querem se livrar de um eventual engano promovido pelos sentidos ou que não querem lidar com a necessidade de refazer o percurso, a cada nova experiência. Se a realidade passa a ser organizada a 89

partir de substâncias, uma vez que se conhece a “essência” de algo, se descobre sua verdadeira verdade: eterna, necessária e universal. Pois é precisamente essa verdade perene e inalterável que Nietzsche quer por em questão, em toda crítica que faz ao projeto metafísico. O autor se pergunta pelo valor da vontade que quer exatamente esse tipo de verdade. Quer saber como e a partir de que processo ficou determinado que o “mundo” ideal vale mais que o “mundo” aparente. Como consequência, deve-se perguntar também, de que maneira a propensão à verdade metafísica, isto é, à verdade equivalente à certeza absoluta, tornou-se mais importante que uma outra vontade que quer, por exemplo, a incerteza. Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente “à verdade”? – De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem dessa vontade – até afinal parar completamente ante uma questão ainda mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade. Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? (NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal, § 1).

Para começar a responder a essas perguntas, Nietzsche aponta que a metafísica é produto da vontade de verdade. Essa vontade não reconhece nem consente com a provisoriedade que existe mesmo nas determinações mais consagradas da realidade, e, por isso, as identifica como sendo a própria natureza das coisas. A vontade de verdade revela, assim, uma atração fatal pela segurança dos valores já estabelecidos, uma inclinação irresistível a tudo aquilo que se refere à perenidade, ao infinito, à necessidade, à substancialidade e à universalidade. Ela é uma disposição, uma espécie de tonalidade afetiva pela qual o homem é tomado e a partir da qual o homem se relaciona com a realidade de uma maneira muito particular: nesse horizonte, o homem é a medida para tudo aquilo que se realiza. Ele é o parâmetro que determina a existência ou inexistência de qualquer manifestação do real.

Podeis pensar um Deus? – Mas é isso que significa o vosso desejo de verdade: que tudo se transforme no que pode ser humanamente pensado, humanamente visto, humanamente sentido! Deveis pensar, até o fim, os vossos próprios sentidos!

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E aquilo a que chamais mundo, é preciso, primeiro, que seja criado por vós: é isso o que a vossa razão, a vossa imagem, a vossa vontade, o vosso amor devem tornar-se! E, na verdade, para a vossa felicidade, vós que buscais o conhecimento! (NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, II, “Nas ilhas bem-aventuradas”).

A realidade passa, então, a ser regida e regulamentada desde a capacidade do homem de ver, pensar, sentir e conhecer. Em um “mundo” assim compreendido, tudo que há pode, e deve, ser conhecido e controlado pelo ser humano. Isso quer dizer que a vontade de verdade acaba por restringir o real a uma única possibilidade na qual o homem não somente é o criador, como também é aquele que, por direito adquirido, tem o domínio e a posse da existência. Como consequência, é desde a vontade de verdade que o mundo ideal passa a ter muito mais valor que o mundo aparente. É a partir dela que o segundo foi classificado como menor, como errado e equivocado. Ele é como não deveria ser, por isso, deve ser negado. Recusa-se o mundo efetivo em favor de um mundo mais real que a própria realidade, em função da verdade como certeza. Assim, a vontade de verdade também promove o superdimensionamento e a hipertrofia da consciência, em um movimento que desconsidera a dimensão dos sentidos, constitutiva da própria existência. Nesse interesse, é preciso desvalorizar, e até mesmo denegrir, tudo o que é da ordem do corpo, para, ao contrário, sobrevalorizar o espírito, isto é, a razão e a consciência. O homem passa a ser algo separado da natureza e seu destino é tornar-se o senhor da Terra. O suspiro do homem do conhecimento. – “Oh, minha avidez! Nesta alma não existe abnegação – mas sim um Eu que tudo ambiciona, que mediante muitos indivíduos gostaria de ver com seus próprios olhos e agarrar com suas próprias mãos – um Eu que também recupera todo passado, que nada quer perder do que lhe poderia pertencer! Oh, essa chama da minha avidez! Oh, que eu ainda renascesse em milhares de seres!” – Quem não conhece por experiência esse suspiro, também não conhece a paixão de quem quer conhecer (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, § 249).

Sem dúvida alguma, o projeto metafísico é uma das mais importantes repostas para a questão da condição humana e para o modo como o real se estrutura. Porém essa não é a única maneira de compreender e de 91

se relacionar com a realidade. Para Nietzsche, o “mundo” não pertence ao homem e nem mesmo se constitui como algo separado dele. O homem não é nada diferente ou autônomo da natureza, já que também faz parte dela. Em última instância, o real não é uma propriedade humana, nem nunca poderá ser totalmente controlado. É que o conhecimento que o homem tem sobre a realidade será sempre finito e limitado pelo devir. Sendo assim, a avidez e a volúpia do ser humano não são nem podem ser o parâmetro para tudo aquilo que existe. Por isso, Nietzsche classifica a vontade de verdade – que quer a certeza, a segurança, a estabilidade e irreversibilidade dos valores estabelecidos – como pura cobiça, é pura hybris. A vontade que quer a verdade metafísica é marcada pela falta de medida, pela sanha e pela gana. Isso porque é uma disposição que atua em total descompasso e desmesura com a existência; é um expediente que o homem utiliza para atropelar, com ânsia de controle, tudo aquilo que se realiza. Para a compreensão nietzschiana, a base que sempre se utilizou para fundar o mundo ideal é o nada, e a substancialidade do real é apenas uma invenção, um delírio da razão. Este foi o maior erro de toda a história da filosofia, a saber, a tentativa de separar para, de alguma maneira, assenhorear-se do “mundo” em que vivemos, excluindo a verdade provisória para conquistar a certeza absoluta. Só que esse erro foi o ponto de partida para boa parte dos investigadores que fizeram, e ainda fazem, a história da filosofia e da ciência. O pressuposto de toda produção metafísica é que a precariedade da existência humana e o modo como o real se estrutura são como não deveriam ser. Por isso, desde Sócrates, o Ocidente cultivou a crença de que, por meio da razão, uma outra maneira de se relacionar com a realidade nos seria possível. Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo, com excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo (NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 15).

Ao fazer essa divisão, ou seja, ao criar o pensamento metafísico, o homem pretendeu que o real seja reorganizado em “essências” determi92

náveis, pela razão. Dessa maneira, o homem tem a possibilidade de, não somente conhecer, como também de corrigir o modo como a realidade se estrutura. Só que, para Nietzsche, fabular acerca de um outro “mundo”, dividir a realidade em essência e aparência, é um projeto daqueles que estão tomados não somente pela vontade de verdade, como também pelo espírito de vingança. Como quer a certeza definitiva, e uma vez que tem sede de verdades absolutas, o homem moderno transforma em culpa aquilo que falta em toda possibilidade ainda não efetivada. Ou seja, a verdade metafísica como meta é obra do seu delírio de vingança. Terceira tese. Não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós: nesse caso vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida “outra”, “melhor” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 6).

Se o real é como não deveria ser, não haveria nada mais legítimo e até mesmo mais justo do que a tentativa de melhorá-lo e corrigi-lo. Essa é a finalidade da vingança: estruturar uma vida em que não reste nenhuma dúvida sobre a realidade. Nesse projeto, a tecnologia é uma arma bastante eficaz. Isso porque, em uma época em que Filosofia, Moral, Religião, e até mesmo as ciências puras perdem valor, hoje ela é a principal atividade que promove a correção da realidade e a “redenção” do homem. Conforme já expusemos, nossa hipótese é a de que a tecnologia assumiu, na atualidade, o lugar de maior instituição de manifestação do ideal de melhoramento do real e de “salvação” da humanidade. A técnica moderna pode, assim, ser compreendida como uma espécie de acabamento, como o ápice do projeto metafísico. O que queremos apontar é que a crítica de Nietzsche à metafísica pode hoje ser atualizada na tecnologia, porque ambas partilham da mesma origem. Assim como a metafísica, a associação de técnica e ciência também tem por objetivo controlar, dominar, corrigir e até mesmo substituir a realidade, livrando o homem da necessidade de fazer esforço. A vontade que quer cada vez mais tecnologia quer verdade e vingança, quer domínio e controle irrestritos do real, quer até mesmo substituir o homem e o mundo. A vontade de verdade e o espírito de vingança estão na origem dessa promessa, só que representam a mais pura hybris, desejo de infinito, presunção e petulância do homem. E é exatamente desse descompasso com a realidade do real que a tecnologia se alimenta. 93

Seguindo essa orientação, a ânsia de cada vez mais novos dispositivos tecnológicos nunca terá fim, já que o que marca a desmedida é a insaciedade e uma eterna insatisfação. Mas para que essa dinâmica fique bem esclarecida, será preciso deter um pouco mais de atenção a alguns aspectos que acabamos de apresentar apenas em linhas gerais. Afirmamos anteriormente, por exemplo, que foi em Descartes que o sujeito tornou-se pela primeira vez a medida e o fundamento de todo o real. E que o caminho para se chegar ao “eu” como substância primeira e única via de acesso à realidade se fundamentou na vontade de certeza. O objetivo de Descartes era estabelecer um procedimento que pudesse garantir, por antecipação, a produção de conhecimento verdadeiro. Nesse esforço, o filósofo colocou radicalmente em dúvida todas as opiniões e pressupostos epistemológicos de sua época. Uma vez que identificava a verdade com a certeza, o resultado de tal exercício especulativo foi a descoberta de uma única garantia: a existência de si mesmo expressa na famosa frase do Discurso do Método: Ego cogito, ergo sum, isto é, Penso, logo existo. É dessa forma que o sujeito (res cogitans) ganhou independência e autonomia em relação a toda a realidade (res extensa) e, como única certeza, o eu conquistou o direito de tornar-se o lugar onde se produz e se averba o conhecimento. O fragmento nietzschiano a seguir questiona justamente o status atribuído ao sujeito, por Descartes. “É pensado: consequentemente há pensante”: a isso chega a argumentação de Cartesius. Mas isso significa postular nossa crença no conceito de substância já como “verdadeira a priori” – que, quando seja pensado, deva haver alguma coisa “que pense” é, porém, apenas uma formulação de nosso hábito gramatical, que põe para um fazer [Tun] um agente [Tater]. Em resumo, aqui já se propõe um postulado lógico-metafísico – e não somente há constatação... pelo caminho de Cartesius não se chega a algo absolutamente certo, mas só a um fato de crença muito forte. Se se reduz a frase a “é pensado, logo há pensamentos”, então se tem uma mera tautologia: e justamente o que está em questão, a “realidade do pensamento” [Realitat des Gedankens], não é tocado – desta forma não se pode repudiar a “aparência” do pensamento. Cartesius, porém, queria que o pensamento não tivesse apenas uma realidade [Realitat] aparente, mas uma em si (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 484).

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A passagem põe em questão aquilo que Descartes pretendia cumprir: livrar-se, por completo, de todas as crenças e opiniões para conquistar o conhecimento seguro, para alcançar a certeza absoluta. Para Nietzsche, a conclusão da argumentação de Descartes, na verdade, também está baseada em um postulado lógico-metafísico muito claro: o conceito de substância. É que por trás do “Penso, logo existo” existe a ideia de que para todo o pensar deva, necessariamente, haver uma causa, um agente que pratica esse pensar. É exatamente por se acreditar que enquanto se duvida, não se pode duvidar de que há alguém ou algo, que esteja operando, realizando a ação de duvidar/pensar, que Descartes conclui que pode, assim, ter a certeza somente da existência de si mesmo. Está aqui expressa a ideia do “eu” como substância. Como causa da ação, o “eu” deve pré-existir à experiência e independer da ação. Essa substancialidade atribuída ao sujeito garante sua existência em si e por si, sua autonomia e subsistência. Ora, mas se a ideia era esvaziar toda a reflexão dos pressupostos da tradição filosófico-científica, a tentativa fracassou. É que o conceito de substância não poderia ter sido adotado como verdade a priori. Também esse conceito deveria ter sido posto em dúvida por Descartes, que não questionou seu direito a existência. Acreditar que para todo fazer sempre há um agente, não é realizar apenas uma constatação. Por isso, o fragmento afirma que no caminho traçado por Descartes “não se chega a algo absolutamente certo, mas só a um fato de crença muito forte”. Nietzsche acaba até mesmo atribuindo o erro a nosso hábito gramatical, pois afirmar que há sempre um sujeito que pratica a ação (verbo) e um predicado que a sofre é, de certa forma, apenas operar gramaticalmente. Para o filósofo, a metafísica é uma crença dogmática na gramática porque se baseia na estrutura linear desde a qual: ou a frase é produzida a partir da voz ativa, onde há sempre um sujeito que é o responsável, o agente de uma determinada ação; ou, então, o sujeito é aquele que sofre a ação, no caso da oração construída desde a orientação da voz passiva. O que se quer indicar é que, nesse procedimento, a estrutura da frase, a saber, “o sujeito realiza (ou sofre a ação de) um verbo e atribui um predicado à realidade”, acaba sendo compreendida como sendo a dinâmica da própria vida, da existência; ela se torna, como num passe de mágica, o paradigma para a determinação do modo como a realidade se efetiva. O que tem razão de ser apenas na gramática extrapola essa dimensão e ganha, equivocadamente, o estatuto de origem, de gênese de real. Esse é um encaminhamento que, distraidamente, atribui verdade ontológica a uma construção que tem 95

sua razão de ser apenas na estrutura da língua e, por isso, não deveria ser projetada automaticamente na maneira como compreendemos a forma como a realidade se organiza originariamente. Pois, para Nietzsche, se a ideia é projetar a estrutura gramatical no modo como o real se organiza, melhor seria resgatar um terceiro modo de a frase articular sujeito, verbo e predicado: é o caso da voz média, existente em algumas línguas antigas como o latim e o grego. Na voz média, o sujeito não é nem ativo nem passivo, de maneira que não é nem o único responsável pela ação, nem aquele que apenas sofre suas consequências, mas as duas coisas ao mesmo tempo. A voz média é uma excelente ilustração para uma estrutura – oposta ao sistema linear causa-efeito, agente-paciente, da gramática convencional – que é circular, e desde a qual o sujeito é e está sempre inserido em uma circunstância, num contexto, isto é, num lugar (ontológico), num “mundo” onde o homem se faz e também faz ao próprio “mundo”. Isso significa que a existência, na verdade, tem um outro fundamento, isto é, sua gênese ou princípio não se localizam no sujeito, muito menos residem na suposta “objetividade”. Esse binômio ativo/ passivo, precisa ser superado para que se compreenda que o viver, ou seja, o existir é encontrar-se subitamente numa determinada situação, num “lugar”, dito em outros termos, num elemento, ou medium a partir do qual tudo aparece, se faz visível para nós. Isso quer dizer que também o homem é fruto do mesmo contexto, sendo assim, é também o resultado desse elemento que instaura e caracteriza, sempre, e a cada vez, um modo de ser. Dessa maneira, não há nem pode haver antes, nem depois de elemento. Não existe homem, não é possível haver experiência que se coloque aquém, além ou atrás dessa estrutura circular de inserção e imersão, nem é possível a existência de qualquer que seja o “objeto”. Isso significa que originariamente não há mediação, isto é, o que se realiza, se dá como e através de um salto. O “mundo”, ou seja, todo e qualquer sentido configurador e integrador ou realizador de realidade, tem ou é essa estruturação arcaico-originária. Portanto, relação arcaico-originária é o nome para dizer a relação, a situação homem-mundo, isto é, o nome para dizer a hora, o lugar e o modo de ser do surgir, do instaurar-se e mostrar-se de tudo quanto há e é – de todo real, de toda “coisa”. O súbito ou o imediato – o “raio que dirige todas as coisas” – não permite que se entenda e assim, mal entenda esta relação como o referir-se de um pólo (um dado, um “subjectum”) a outro pólo (igualmente outro dado, outro “subjectum”), mas, antes,

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o súbito ou o i-mediato fala de uma sempre já acontecida co-pertinência ou co-implicação, a saber, a complicação de sempre ou desde sempre (!!), a amarração, o atamento (a síntese!) que sempre já se deu, sempre já aconteceu – que só pode ter sempre já se dado, acontecido... (FOGEL, 2001, p. 10).

É por isso que o fragmento 484 de A vontade de poder prossegue a argumentação afirmando que sem o conceito de substância, a conclusão de Descartes se transformaria em mera tautologia: “é pensado, logo há pensamentos”. É que se, como já esboçamos – e vamos desenvolver melhor logo a seguir – nem toda ação é, necessariamente, resultado da realização de um agente, e, sendo assim, só se pode ter a certeza absoluta de que “se penso, há pensamentos!”. É verdade que pouco – ou nada – se avança com essa constatação. Mas, para Nietzsche, não é aí que reside o problema. Para ele, o erro está no princípio, no ponto de partida de Descartes, que identificou a verdade como segurança e certeza, e, por isso, “queria que o pensamento não tivesse apenas uma realidade (Realitat) aparente, mas uma em si”. Essa disposição para uma pressuposta objetividade é resultado justamente da definição e da determinação do sujeito como um substrato autônomo e independente. A partir do momento em que separa o “sujeito” do “objeto”, a modernidade passa a se ocupar do seguinte problema: como eu posso captar, apreender e representar a realidade exterior? Eis o problema da cópula, de como realizar a síntese de sujeito-objeto, que também pode ser expresso em outros termos: se a realidade se estrutura e se organiza em dois planos, isto é, dois (sub)estratos autônomos e independentes, como a “coisa” interna pode captar, apreender e, sobretudo, representar a “coisa” externa? Esse problema, também conhecido como “o problema da ponte”, isto é, da junção, da conexão ou da “passagem” do “dentro” para o “fora”, do “sujeito” para o “objeto”, é que propriamente origina a teoria do conhecimento, elegendo ou instituindo este como uma questão à parte, separada, um domínio de problemas em si e por si, enfim, instituiu-se assim a autonomia do problema do conhecimento, visto desde e como teoria do conhecimento, quer dizer, um conhecimento (representação, sujeito) sobre o qual se devesse discorrer, discursar. O conhecimento é, ao mesmo tempo, problema e solução! Parece haver algum mal-entendido e lembra-se a situação da serpente que começa a se comer pela cauda... (FOGEL, 2005, p. 24).

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Como consequência, o conhecimento passa a ser um “problema” e uma questão prévia e preliminar ao próprio conhecer. Antes mesmo de me pôr a investigar a realidade das “coisas”, é preciso definir quais são os limites e as condições de possibilidade desse conhecimento. É daí que nasce a metodologia, uma pré-ocupação que pretende dominar um modo de se fazer; determinar o caminho mais correto e adequado a certo tipo de conhecimento. Antes mesmo de qualquer realização seria preciso ter a certeza e a clareza de que estarei certo, de que o conhecimento que será produzido, a partir de certo encaminhamento, estará ajustado à realidade. Ajustado ou adequado, aqui, significa que a medida do fazer e o critério da verdade é a certeza. Outro aspecto do “problema da ponte” é que a verdade passa a ser compreendida como correspondência, isto é, como adequação à realidade objetiva, que, por sua vez, passa a ser de uma natureza totalmente separada e apartada da certeza do “eu”. Como afirma o fragmento nietzschiano que vínhamos analisando (A vontade de poder, § 484), o pensamento ganha a missão de apreender mais do que uma realidade aparente, mas uma realidade “em si”. É desde a objetivação e substancialização do mundo que se ganha a possibilidade de representá-lo com segurança e certeza absolutas. O fragmento a seguir torna ainda mais claro como se deu a invenção do sujeito, a criação do eu, como substância: Nosso mau costume de tomar como essência um símbolo da memória, uma fórmula abreviada, e, finalmente, tomá-lo como causa, por exemplo, dizer do relâmpago: “ele brilha”. Ou a palavrinha “eu”. Estabelecer uma espécie de perspectiva no ver, por sua vez, como causa do próprio ver: esse foi o passe de mágica na invenção do “sujeito”, do “eu”! (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 548).

Além do hábito gramatical, Nietzsche indica que a crença no “eu” em si, com existência autônoma, é fruto de um mau costume, de uma repetição equivocada. O erro nasce de um descuido cotidiano, uma distração: estabelecer como sendo o modo próprio de estruturação e organização da realidade, o que, na verdade, não passa de “um símbolo da memória”, uma “fórmula abreviada”. Não é porque ordinariamente tomamos como certa a separação de “sujeito” e “objeto” que ela se torna a essência do real.

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O problema apontado por Nietzsche é que, por conveniência, acreditamos que a forma como lidamos com, e compreendemos, o “mundo”, cotidianamente, é, na verdade, sua maneira de funcionamento originária. É que esse modo de organização da realidade funciona bem em nosso dia-a-dia; é bastante eficaz. Não é preciso fazer esforço quando se parte do que já está determinado e cristalizado no habitual. Mas, por outro lado, isso não quer dizer que o real se estruture dessa forma, não se pode tomar o hábito por verdade ontológica. Não é porque dizemos que o “relâmpago brilha”, por exemplo, que sempre há de haver um agente como causa de todo o fazer. Para ser rigoroso deveríamos dizer que o brilho brilha por meio do relâmpago. Isso porque se tomarmos o relâmpago como uma substância, a causa e agente do brilhar, poderíamos inferir que o relâmpago pré-existe e subsiste ao brilhar. Mas será possível imaginar um relâmpago sem brilho? Continuaria sendo um relâmpago? Talvez faça mais sentido acreditar no contrário: o brilhar é que é a causa do relâmpago. Este último é apenas uma de suas manifestações. O que é primeiro é verbo, isto é, uma possibilidade de existência, de um certo acontecer, de um fazer-se de vida. Todo ou cada “é” é o aparecer ou concretizar-se de ser no verbo em que ser, “hic et nunc”, se envia ou se concretiza, a saber, aparece. Assim sendo, todo ou cada verbo, no qual o “é” se faz presente ou aparece, é o aparecer e fazer-se ou concretizar-se de afecção. Verbo, i. é, aparecer, é afecção ou estar afetado, tocado. Melhor: verbo fala sempre a ação, a atividade que é o existir, o viver desde e como a ação ou a atividade de afecção – de experiência (FOGEL, 2001, p. 10-11).

Mas vamos guardar essa ideia para ser melhor desenvolvida no terceiro e último capítulo deste livro. Por enquanto, vamos voltar ao fragmento, que afirma que “o passe de mágica na invenção do “sujeito”, do ‘eu’” foi “estabelecer uma espécie de perspectiva no ver, por sua vez, como causa do próprio ver” (A vontade de poder, § 548). Com isso, Nietzsche quer indicar que é preciso ganhar a compreensão de que o relâmpago – ou qualquer outra “substância” entendida como fundamento da realidade – é, na verdade, uma perspectiva, uma forma de manifestação do brilhar – ou de qualquer outro verbo, possibilidade de existência – e não a sua causa. Assim também é o homem, o “sujeito” ou o “eu”. Ele não é uma instância anterior a cada uma das possibilidades da experiência e que atua sempre como agente, ou seja, 99

como único ator de algo que se realiza. Na verdade, o sujeito é um dos efeitos, uma das perspectivas da ação que sempre já se deu. Foi a inversão desse processo que abriu espaço para a invenção da subjetividade. O fragmento póstumo número 481 é um pouco mais extenso e avança ainda mais nesse ponto: “o ‘sujeito’ não é nada de dado, mas sim algo a mais inventado, posto por trás”. Contra o positivismo, que fica no fenômeno “só há fatos”, eu diria: não, justamente não há fatos, só interpretações [Interpretationen]. Não podemos verificar nenhum fato “em si”: talvez seja um absurdo querer tal coisa. “Tudo é subjetivo”, dizeis: mas já isso é interpretação [Auslegung]. O “sujeito” não é nada de dado, mas sim algo a mais inventado, posto por trás. – É afinal necessário pôr o intérprete por trás da interpretação? Isso já é poesia, hipótese. Tanto quanto a palavra “conhecimento” tem sentido, o mundo é conhecível: mas ele é interpretável de outra maneira, ele não tem nenhum sentido atrás de si, mas sim inúmeros sentidos. “Perspectivismo”. Nossas necessidades são quem interpreta [auslegen] o mundo; nossas pulsões e seus prós e contras. Cada pulsão é uma espécie de ambição despótica [Herrschsucht], cada uma tem a sua perspectiva, perspectiva que a pulsão gostaria de impor como norma para todas as outras pulsões (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 481).

O texto recusa a ideia de que originariamente o real possa ser dividido em dois substratos independentes – “sujeito” e “objeto” – e apresenta um outro horizonte de compreensão ontológica: o que é primeiro, o que funda a realidade são interpretações. Sendo assim, reforçamos que não se trata de negar as ideias de “sujeito” e “objeto”, mas sim de reconhecer que elas são apenas derivadas, são tardias e não primárias e imediatas. Isso só se faz possível ao se descobrir a sua efetiva gênese, sua verdade ontológica. Por isso o texto apresenta-se, logo de partida, contrário ao positivismo quando este afirma que “só há fatos”. Para Nietzsche, acreditar na existência de fatos “em si”, independentes e separados de uma perspectiva, “talvez seja um absurdo”. Não há fatos sem que, antes, tenha se estabelecido uma interpretação, sem que uma perspectiva tenha se interposto para nós. Dessa forma, o homem é o lugar de 100

todo o acontecimento possível, porém isso não quer dizer que ele seja o responsável, a causa de tudo que se realiza. Antecipando-se a esse possível mal entendido, Nietzsche abre aspas e apresenta uma suposta interpelação que seu horizonte ontológico pode provocar. Pois, então, se tudo são interpretações, “Tudo é subjetivo”. Já indicamos que não. Nesse viés, pode-se entender que até para afirmar a subjetividade do mundo, é preciso que uma perspectiva já tenha se dado, já tenha se interposto. Mais uma vez, o fragmento recusa o “sujeito” como algo dado, primário e imediato e estabelece um outro solo, um outro parâmetro para a determinação da realidade. O que é originário e arcaico é o sentido, que sempre já se apresentou, para que algo possa se dar/realizar. Essa perspectiva transforma radicalmente a tarefa do conhecimento. O problema epistemológico muda de lugar, se é que ainda se constitui como problema. É que a cópula sujeito-objeto perde sua razão de ser. Nietzsche não nega a possibilidade de conhecer as coisas, mas, em vez de se ocupar de um “sentido em si”, de investigar a realidade dos fatos, ou a “essência” objetiva de tudo, conhecer passa a significar interpretar o real com o qual nos relacionamos. A realidade, toda e qualquer possível realidade, é o movimento, a dinâmica de transfiguração, isto é, de alteração e diferenciação do afeto, humor – da experiência. É ela que é o mesmo, que se altera, que se diferencia, perfazendo assim o múltiplo, a multiplicidade – tudo quanto há e é. É ela, a experiência, portanto o lógos, o sentido, a força instauradora de todo real. E isso na e como a estruturação de interesse (perspectiva), que é transcendência e, enquanto transcendência, envio e reenvio (portanto, destino, destinação, “viagem”) de possibilidade para a possibilidade (FOGEL, 2005, p. 49).

Uma advertência muito importante deve ser feita nessa altura da argumentação. Não se está afirmando que exista uma realidade “em si” à qual não teríamos acesso. Não se está querendo dizer que exista uma objetividade incognoscível que, por sua vez, possuiria uma perspectiva, uma interpretação que descobrimos ou acrescentamos, no processo de investigação e de conhecimento. Não é absolutamente nada disso. O que Nietzsche quer apontar é que as coisas – a própria realidade – são, em primeiríssima instância, um interesse, uma perspectiva, uma interpretação possível. Elas não possuem uma perspectiva, mas antes 101

são essa perspectiva, um interesse que inaugura e torna possíveis tanto o sujeito quanto o próprio objeto. Justamente por isso que o fragmento afirma que não há “nenhum sentido atrás de si, mas sim inúmeros sentidos. Perspectivismo”. O que está sendo dito é que tudo que aparece, só se mostra, só é, porque já está estruturado em um modo de ver, em uma perspectiva, entre muitas outras possíveis. Sentido e coisa são uma mesma realidade que se dá num único e mesmo ato. Cabe ao investigador filosófico se empenhar em desconstruir esse processo; procurar conhecer suas raízes e origens. É exatamente nesse sentido que o fragmento 555 afirma que não há conhecimento desinteressado ou desperspectivado. – A maior fabulação é aquela do conhecimento. Gostar-se-ia de saber como as coisas em si são constituídas: mas veja, não há nenhumas coisas em si! E mesmo que houvesse em si, um incondicionado, então, justamente por isso, ele não poderia ser conhecido! Algo incondicionado não pode ser conhecido: senão justamente não seria incondicionado! Conhecer, todavia, é sempre “colocar-se em uma condição para com alguma coisa” – –; um tal conhecedor quer que aquilo que queira conhecer não lhe diga respeito em nada, e que o mesmo algo não diga respeito a ninguém em geral: no que, primeiramente, se dá uma contradição, a saber, no querer-conhecer e no exigir que nada deva dizer-lhe respeito (então, para que conhecer!), e, em segundo lugar, porque algo, que não diz respeito a ninguém em nada, absolutamente não é, e, portanto, também não pode ser conhecido. – Conhecer quer dizer “colocar-se em uma condição em relação a algo”: sentir-se condicionado por algo e entre nós – – é, portanto, sob todas as circunstâncias, um estabelecer, designar, tornar-se consciente de condições (não um sondar as essências [Wesen], coisas, “em-si”) (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 555).

O texto acima reafirma a impossibilidade da existência de “coisas em si” a partir de um argumento muito simples. É que mesmo que houvesse uma realidade separada de qualquer contexto ou conjuntura, ou seja, ainda que houvesse um “incondicionado” cuja existência e constituição independessem de qualquer relação, ele “não poderia ser conhecido!”. Seu próprio modo de ser, sua realidade ontológica seria justamente o motivo que impediria, definitivamente, que pudéssemos conhecê-lo em qualquer que fosse a medida. 102

Para o horizonte nietzschiano, conhecer é justamente o contrário: é “colocar-se em uma condição para com alguma coisa”. Isso quer dizer que conhecer é sempre estar em uma conjuntura, um dado contexto, numa determinada relação. Por isso afirmamos anteriormente, que não há conhecimento desinteressado ou desperspectivado. Não há um outro caminho para o conhecimento, não há outro modo de se relacionar com o real que não seja estar já inteiramente tomado por um interesse, uma perspectiva, um sentido que se estabeleceu primeira e imediatamente. Querer uma “coisa em si” seria querer que algo fosse fora de toda e qualquer relação possível; seria querer que as “coisas” fossem desprovidas justamente daquilo que faz com que elas sejam, apareçam, se manifestem e se mostrem para nós. Seria querer que as coisas fossem o que elas não são nem nunca poderão ser. O fragmento é concluído com a afirmação de que conhecer “é, portanto, sob todas as circunstâncias, um estabelecer, designar, tornar-se consciente de condições (não um sondar as essências [Wesen], coisas, ‘em-si’)”. Dessa forma, a investigação filosófica ganha um outro objetivo. Conhecer a realidade das coisas, originariamente, deixa de ser uma busca pela pressuposta “objetividade” do mundo e passa a ser procurar as condições, o interesse e a perspectiva que se realiza e que é justamente o que guia e governa o modo como cada uma das possibilidades do real se mostra e se efetiva. Uma orientação completamente diferente da tecnometafísica. Em vez de um processo que visa à apreensão da “essência” das coisas, conhecer o real, na concepção nietzschiana, é um acontecimento particular de realização da realidade. O tema é bastante abordado, em A Gaia Ciência. A seção 374, por exemplo, afirma que conhecer é justamente o ato de estar, desde sempre, em uma perspectiva: Nosso novo “infinito”. – Até onde vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência sem interpretação, sem “sentido” [Sinn], não vem a ser “absurda” [Unsinn], se, por outro lado, toda a existência não é essencialmente interpretativa – isso não pode, como é razoável ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e auto-exame do intelecto: pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas e perspectivas e apenas nelas. Não podemos enxergar além de nossa esquina: é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haver: por exemplo, se quaisquer outros seres podem sentir o tempo

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retroativamente ou, alternando, progressiva e regressivamente (com o que se teria uma outra orientação da vida e uma outra noção de causa e efeito). Mas penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações. Mais uma vez nos acomete o grande tremor – mas quem teria vontade de imediatamente divinizar de novo, à maneira antiga, esse monstruoso mundo desconhecido? E passar a adorar o desconhecido como o “ser desconhecido”? Ah, estão incluídas demasiadas possibilidades não divinas de interpretação nesse desconhecido, demasiada diabrura, estupidez, tolice de interpretação – a nossa própria, humana, demasiado humana, que bem conhecemos... (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, § 374).

Nietzsche começa a seção perguntando sobre o limite que um mundo, determinado a partir de uma perspectiva, supostamente encerraria. A intenção do filósofo é dialogar com as crenças do senso comum, mas também com a própria tradição metafísica. É fácil reconhecer que a existência possui algum grau de interpretação, mas para o senso comum, e para a boa parte da história da filosofia, existe uma outra dimensão da realidade bem mais confiável e verdadeira: a objetividade. Portanto é esse o âmbito do real que precisaríamos nos esforçar para descobrir. Desse modo, em toda atividade de conhecimento, seria preciso deixar muito claro onde termina a esfera da “coisa”, e onde começa a dimensão da interpretação. Para não se comprometer a produção de saber seguro e verdadeiro sobre o real, não se poderia misturar o que é perspectiva com o caráter substancial da realidade. Para se conhecer o que, de fato, é uma coisa, ou como, realmente, se comporta a realidade, seria necessário separar o que é da esfera da “objetividade”, da “simples” interpretação. Nessa concepção, conhecimento verdadeiro seria algo da ordem da necessidade e universalidade, por isso, não dependeria de perspectiva nenhuma. Já a interpretação seria uma espécie de interferência do sujeito, em um mundo que tem, reconhecidamente, uma existência objetiva, uma essência, e que se organizaria a partir de si mesmo. Com efeito, essa interferência é um excesso que só atrapalharia e que, portanto, deveria ser excluído do processo. Pois é justamente essa compreensão de realidade que a compreende como sendo algo pré-posto e pré-existente à nossa relação com 104

as coisas que o autor quer pôr em suspeição. Na sequência da seção de A Gaia Ciência, Nietzsche afirma que talvez não seja possível determinar o limite do caráter perspectivista ou interpretativo do mundo porque essa pode ser a única dimensão do real. Toda a realidade talvez seja apenas uma interpretação que se faz do real e, desse modo, a tese de uma existência sem interpretação, ou sem “sentido” seria completamente “absurda”. Isso porque, se é assim, o sentido passaria a ser justamente a condição necessária para que haja qualquer experiência. Tudo aquilo que é só se realizaria porque uma perspectiva sempre já teria se instaurado, e somente desde e a partir de um interesse já dado que homem e “mundo” viriam a ser o que são. Essa outra possibilidade de se compreender o modo de funcionamento do real põe em xeque a existência de uma realidade “objetivamente” estruturada, que nos seria acessível de alguma maneira. Todo o método científico pretende ser exatamente o meio pelo qual retiramos a nossa interpretação para acessar o que é o real, o modo como a realidade se realiza e se organiza por “ela mesma”. Entretanto, ao se perguntar sobre a possibilidade de uma outra forma de relação de homem e “mundo”, a garantia de sucesso de um projeto com o propósito de dar conta do real, nele mesmo, também fica inviabilizado. Nietzsche quer chamar atenção para essa vontade humana que talvez esteja querendo mais do que a realidade pode nos dar. Quem sabe “toda a existência não é essencialmente interpretativa”? A pergunta quer saber se não é absurda a intenção de determinar um “mundo” de substancialidades no qual a realidade seria compreendida como sendo o somatório de todas as “coisas em si mesmas”, ideais e anteriores a toda experiência. Talvez essa natureza primeira de todo o real, as essências das coisas tão buscadas pelo sujeito do conhecimento sejam apenas uma criação do homem, que tem o objetivo de prever e manter a realidade sob controle. A experiência pode ser, ao contrário, “essencialmente interpretativa”. Um modo de ser classificado como paradoxal, se for avaliado pelo pensamento metafísico: como algo poderia ser essência e interpretação ao mesmo tempo? Pois é justamente o pensamento metafísico, que estrutura o real em pares opostos, que Nietzsche põe radicalmente em questão. A intenção é tornar possível uma alternativa a essa compreensão disjuntiva da realidade. Nessa outra concepção, não haveria de um lado a “coisa em si” e de outro a sua interpretação, mas uma unidade originária, uma perspectiva arcaica que produz homem e “objetividade”. A diferença fundamental entre essa nova forma de entender o real e o projeto substancialista da realidade é que, ao contrário do que 105

ocorre com este último, nem mesmo em tese, se pode ter a certeza de que a realidade é, de fato, essencialmente interpretativa. Como diz a citação, “[...] isso não pode, como é razoável ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e auto-exame do intelecto”. A aporia é patente: se todo o real não passa de uma interpretação, uma perspectiva a partir da qual se engendra homem e “mundo”, até mesmo essa concepção da realidade não passa de uma possibilidade, um sentido possível para a realidade. Avaliar a certeza dessa organização é uma tarefa irrealizável para nós, “pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas e perspectivas e apenas nelas”. Remetendo-se ao título da seção, Nietzsche afirma que, ao retomarmos o caráter perspectivista do real, o “mundo” se tornou novamente “infinito” para nós, “na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações”. Mesmo afirmando apenas a sua possibilidade, essa nova maneira de entender a realidade transforma o “mundo” portador de causas essencializantes em um movimento de instauração de sentido, no qual o real, que era concebido a partir de substâncias perenes, necessárias e universais, pode ganhar unicamente o caráter de possibilidade. Sendo assim, é preciso ganhar a compreensão de que certos modos de determinação da realidade não são a revelação da “essência” das coisas, mas apenas uma possibilidade possível para esse real, apenas uma perspectiva, uma dimensão dessa realidade. Por mais frequente, corriqueiro, cristalizado e, por vezes, aparentemente imediato que o sentido, para determinadas experiências, possa parecer, ele não deve ser compreendido como sendo equivalente à natureza primeira, como sendo a única verdade do real. Não há dúvida de que existem muitas outras determinações possíveis para a mesma realidade. Desse modo, pode-se restituir à experiência seu poder de espanto, sua condição de ainda não compreendida. Isso significa não reduzir a experiência às possibilidades que já dominamos e conhecemos, não tentar transformar a realidade em um sistema no qual sabemos antecipadamente todas as relações de causa e efeito. O caráter perspectivista do real traz a possibilidade da compreensão da realidade que não está fadada à determinação mais corriqueira, e que, portanto, ainda pode nos surpreender. Para tanto, um esforço precisa ser feito no sentido de não se temer tudo aquilo que ainda não foi conceitualizado, por mais que o medo do que é estranho se faça presente. “Mais uma vez nos acomete o grande tremor – mas quem teria vontade de imediatamente divinizar de novo, à maneira antiga, esse monstruoso mundo desconhecido?”. 106

A virada é radical: de uma compreensão de “mundo” em que o homem procura a certeza de uma determinação, a segurança e o alento de uma “essência”, acessível a todos, como causa para tudo aquilo que é; para uma realidade na qual até mesmo o chamado sujeito cognoscente não pré-existe à realidade, mas, do mesmo modo, é fruto do interesse, da perspectiva que se instaura e realiza tudo aquilo que se realiza. O “mundo” desconhecido é “monstruoso” justamente por isso: não se pode ter nenhum controle sobre ele. “E passar a adorar o desconhecido como o ‘ser desconhecido’? Ah, estão incluídas demasiadas possibilidades não divinas de interpretação nesse desconhecido [...]”. Um desconforto desde o qual nem todos estão dispostos a se relacionar com aquilo que se efetiva. É desse modo que Nietzsche realiza o esforço de superar a dicotomia da compreensão disjuntiva da realidade, cunhada na modernidade. Superar a compreensão metafísica é transpô-la, é realizar o esforço de passar para uma outra dimensão de entendimento da constituição da realidade; significa tentar ultrapassar o que é posto como dado, como óbvio e imediato para viver a experiência de gênese. O fragmento a seguir trata exatamente dessa tarefa de desconstrução, das noções que herdamos e que ganham estatuto de verdades inquestionáveis. “Sujeito”, “objeto”, “predicado” – essas separações foram feitas e agora recobrem, como esquemas, todos os fatos que aparecem. A falsa observação fundamental é a de que creio que sou eu quem faz algo, quem sofre algo, quem “tem algo”, quem tem uma propriedade (NIETZSCHE, A vontade de poder, § 549).

A compreensão de que “sujeito”, “objeto” e “predicado” são os melhores parâmetros para se medir o real nasce da ideia de que esses termos são anteriores a toda e qualquer experiência. Mas, na perspectiva nietzschiana, a constituição do real nasce de um interesse, uma interpretação, uma força, uma perspectiva. Afirmar que não existe o “objeto” como algo anterior à experiência, que há um lado ativo do conhecimento, que dá origem ao “objeto”, não significa dizer que é o homem, a partir de seus caprichos, que cria a realidade a seu bel-prazer, desde sua vontade ou arbítrio. Ao contrário, esse mesmo movimento, a mesma relação que gera o “objeto”, é também responsável pelo “sujeito”. E assim como o “objeto”, o “sujeito” também não pré-existe à experiência. O sujeito cognoscente é, do mesmo modo, o resultado de uma perspectiva que sempre já se instaurou em toda e qualquer relação, em 107

toda e qualquer experiência. “Sujeito” e “objeto” – se é que ainda é adequado utilizar esses mesmos termos para designar uma compreensão tão distinta da relação entre homem e “mundo” – são termos produzidos por um sentido que sempre já se instaurou, um interesse que, de forma alguma, não pode não ser anterior a ambos. Na verdade, a perspectiva é condição necessária para que haja qualquer experiência; para que o real se manifeste. O homem, a vida – nada disso é “coisa” alguma. O homem, originariamente, isto é, “antes de tudo”, não é nem pessoa, nem sujeito, nem razão, nem eu, nem consciência, nem alma, nem espírito, nem si, nem interior e nem tampouco o contrário de tudo isso! Mas... o que, então? O começo é o acontecimento que pode ser dito como abertura, que é a evidência de ser “na realidade de liberdade como possibilidade para a possibilidade” e a ação, a atividade que é isto (FOGEL, 2005, p. 45).

Mais uma vez indicamos que superar a leitura metafísica do real não significa negar a existência de “sujeito” e “objeto”, mas compreender que, ontologicamente, esses termos são tardios, posteriores; são derivados da relação que se realizou. Por isso, não se está querendo dizer que haja uma indistinção entre homem e “mundo”, não se quer colocar tudo dentro do mesmo balaio ou defender a impossibilidade do conhecimento. O que se quer é apontar que, em vez de “descoberta”, a realidade precisa ser apropriada na dimensão da transcendência, conforme esclarece o professor Gilvan Fogel. Enquanto modo de ser fundamental de vida, o conhecimento pode e precisa ser ele mesmo determinado como uma afecção (isto é, nele e por ele mesmo um interesse possível) – um verbo da existência cuja determinação é ser transposição para a dimensão da coisa (do real) nela mesma. A “coisa nela mesma”, note-se, não é nenhum algo subjetivo, objetivo ou intersubjetivo, mas igualmente um afeto ou um interesse, e este, por sua vez, dada a sua constituição súbita ou imediata (salto, círculo), é transcendência (FOGEL, 2005, p. 163).

Sendo assim, conhecer é, para Nietzsche, ser tomado por uma possibilidade cuja origem é da ordem da transcendência. Isso que é o real (o que inclui o “objeto” e também o “sujeito”) não é nada de subjetivo, 108

objetivo ou intersubjetivo. Com efeito, a questão da determinação de “sujeito” e “objeto” deixa de ser um problema para o conhecimento. Não é a partir da disjunção e da demarcação desses termos que se produz conhecimento originário, que se constrói verdade ontológica. Em vez de algo que possui uma ordem, desde sempre dada e que, de alguma forma, se esconde de nós por trás das aparências, real seria o nome para o acontecimento desde o qual toda experiência se realiza. Mas antes de avançar ainda mais na exposição dessa outra compreensão do que é a experiência e dessa outra perspectiva sobre o modo de efetivação da realidade, convém olhar com mais atenção para um último aspecto da organização metafísica de mundo: o pensamento calculador é quem articula o modo de apresentar tudo o que é, e está sendo, na dimensão tecnocientífica.

2.3 Objetivação e pensamento calculador Cumpre agora, então, explicitar melhor o que, anteriormente, foi apenas esboçado: técnica moderna, cálculo e ciência dizem o mesmo. Com isso não se quer afirmar que não existam diferenças entre essas três dimensões da existência, mas se quer apontar que elas são modulações de um mesmo envio, isto é, são variações de uma mesma nota, de um mesmo tom, do mesmo modo de encaminhamento, originado no pensamento moderno, e que é gerido e promovido pela vontade de apoderamento e controle do mundo. Para esse horizonte, a natureza sempre se oferece à representação num sistema que, de alguma forma, pode ser previsto e explicado pelo cálculo. É por isso que cálculo, aqui, quer dizer não somente aquilo que posso enumerar, representar por meio de números, como também é uma espécie de antecipação, é uma forma de estar certo e seguro de algo; é aquilo cuja natureza posso contar previamente. Tudo que é assim determinado pode ser plenamente conhecido e descrito, à exaustão, antes mesmo de qualquer que seja a experiência. E, como veremos, na atualidade, isso vale não somente para a tecnologia, mas também para todas as ciências. A provocação técnica dos entes não se tornou hoje a medida mais certa, adequada e segura para a determinação última da realidade do real por obra da sorte. Neste subcapítulo, vamos investigar, justamente, de que maneira o pensamento calculador contribuiu para esse processo. Queremos aqui esclarecer que tecnologia e ciência são a mesma “coisa” justamente porque bebem na mesma “fonte”: o cálculo. Tanto 109

uma como outra são modos de se determinar a realidade em última instância, e é desde esses dois modos – que são “essencialmente” o mesmo – que o homem atual se move, isto é, compreende tanto o mundo e a maneira como ele se organiza, como também a si mesmo. A forma tecnocientífica de desencobrimento do real tem justamente na dimensão do cálculo, o instrumento de segurança necessário para realizar as suas sentenças sobre o mundo. Como importante manifestação do espírito metafísico, o pensamento calculador permite que o homem estabeleça uma ordem ao “mundo” e torna possível que se opere, com muita eficiência e desde certas expectativas, na determinação da real identidade de tudo aquilo que existe, na definição das causas e efeitos da natureza e na definição de toda sorte de relações, bem como no ordenamento da realidade. O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda a teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma outra coisa. Neste sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos, um sistema de relações e ordenamentos (HEIDEGGER, 2010b, p. 50).

O pensamento calculador promove a objetivação daquilo que se realiza, para previamente se assegurar da sua realização. É que não dá para calcular aquilo que não foi objetivado, isto é, que ainda não foi alçado à condição de objeto de cálculo. Dessa forma, num único e mesmo ato, desde uma mesma origem, esse pensamento objetiva todos os fenômenos que analisa, na perspectiva e no horizonte de descrevê-los antecipadamente, de criar um sistema explicativo que dê conta previamente de tudo. Nesse horizonte, o cálculo não representa a realidade, como se houvesse, de um lado e primeiramente, as coisas nelas mesmas e, de outro, o homem que, por meio do cálculo, pudesse apreender a realidade de maneira imparcial, tal como ela é, e assim reapresentá-la de maneira objetiva. Na verdade, a objetivação, isto é, o processamento calculador é responsável por fazer vir a ser a realidade de um modo particular. Em vez de representar, o cálculo realiza realidade, em uma perspectiva específica. Já indicamos anteriormente que esse destino se manifestou primeiramente nas ciências experimentais, o que pode aparentemente se 110

constituir como um grande contrassenso. Distraidamente, podemos acreditar que justamente as ciências experimentais são o exemplo arquetípico de um saber que precisa, em primeiro lugar, das experiências e de sua coleta de dados e informações, para se construir. Mas um olhar um pouco mais cuidadoso, não para os resultados, conclusões ou para as práticas dessas ciências, mas sim para o modo de ser e o vigor desde o qual esses saberes se realizam, indica exatamente o contrário. É somente porque pré-compreende a natureza como um sistema calculável de forças, que a física experimental, por exemplo, pode, teoricamente, construir modelos, fórmulas gerais, esquemas, que precisam dos experimentos apenas para confirmar, isto é, para servir de prova e demonstração daquilo que já havia sido pré-visto. Ontologicamente, os complexos e cabais sistemas explicativos da natureza do real é que são primeiros, sendo que as demonstrações são tardias, epigonais. A pretensão da ciência segue, então, o mesmo envio metafísico da técnica moderna, a saber, esclarecer e determinar, preliminarmente, tudo aquilo que existe para, dessa forma, manter a realidade sob o controle e o domínio do homem. Isso porque o cálculo é a via de acesso, isto é, o “método” mais “adequado” de apreensão do mundo e a partir do qual se pode ter certas expectativas, algumas pretensões. Antes mesmo de qualquer experiência, o cálculo pode não somente esperar algo, isto é, levar em consideração um possível modo de funcionamento de realidade, como também pode até mesmo descrevê-lo, tematizá-lo, calculá-lo antecipadamente. As observações e experiências somente são importantes à medida que podem ratificar o que já funcionava por si mesmo, o que teoricamente já se justificava e tinha sua “razão de ser” por si só. “Cálculo” aqui está dizendo: a pretensão de instaurar um artifício (a saber, a prova, a demonstração nos termos e moldes referidos), a partir do qual pode-se previamente contar com a coisa. Em outros termos: a pretensão de estabelecer condições preliminares para preliminarmente, quer dizer, sem experiência e sem escuta, assegurar-se da coisa, de toda e qualquer coisa, e assim colocá-la sob controle. A partir daí nasce e cresce o universo tecno-científico ou cibernético da convulsiva vontade de vontade, onde o que interessa é o “valor” ou a “função” de verdade e nenhum sentido ontológico, i. é, nenhuma possível experiência fundadora e orientadora (FOGEL, 2001, p. 17).

Na conferência Ciência e pensamento do sentido (1953), Heidegger apresenta a ciência como sendo uma teoria do real muito particular 111

que, na verdade, não tem nada de espontânea, evidente ou natural. Para o filósofo, “a ciência é uma elaboração do real terrivelmente intervencionista” (HEIDEGGER, 2010b, p. 48). Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração o seu poder e a sua onipresença. Na atualidade, a capilaridade e a força de penetração e desenvolvimento do modo tecnocientífico de determinação da realidade são patentes. Se a origem desse vigor se localiza na Europa ocidental, hoje ele não reconhece mais fronteiras se instalando de maneira decisiva mesmo nos mais longínquos cantos do planeta. O processo de ocidentalização da existência não poupa nem mesmo culturas seculares como, por exemplo, as civilizações indígenas ainda existentes no Brasil. E a força desse encaminhamento, isto é, o que rege essa vontade, não é um inocente desejo do homem de conhecer o mundo com o qual se relaciona. Há algo mais “profundo” e mais essencial dirigindo a tecnociência. Para Heidegger, existe uma conjuntura comum que atravessa e rege todas as ciências, e é com esse contexto, com esse modo de ser específico, que a investigação filosófica deve se ocupar. É no domínio da técnica moderna que se encontra a proveniência disso que dirige e governa as ciências atuais, mas, para se alcançar essa dimensão, não se pode olhar cientificamente para as ciências, pois pensar sua gênese é meditar sobre seu sentido. Por isso, o filósofo afirma que, se ciência é teoria do real, o caminho é ganhar a compreensão do que é o real e também do que é teoria. Nesse caminho, Heidegger afirma que, no pensamento grego antigo, real ou realidade é aquilo que leva ou é levado à vigência, isto é, trata-se do âmbito do que é posto em frente, trazido à luz, que emerge, que é colocado “em funcionamento”, que passa a viger e vigorar numa vigência determinada. “Pensando de maneira bem ampla, ‘realidade’ (Wirklichkeit) significa, então, estar todo em sua vigência, significa a vigência em si mesma acabada do que se pro-duz e se leva ao vigor de si mesmo” (HEIDEGGER, 2010, p. 42-43). Só que o traço fundamental daquilo que se pro-duziu, enquanto “obra pronta” e “acabada”, é o desencobrir e manter desencoberto de algo, que inclusive por vezes é espontâneo, e não uma relação linear em que alguém é sempre pensado e classificado como o responsável ou o agente do que se fez, ou seja, se produziu. Antes da mudança na compreensão do real, provocada pelo pensamento metafísico moderno, a realidade era “apenas” o vigente, isto é, aquilo que vigora e se apresenta por si mesmo e desde a sua força e modo próprio de realização. A mudança radical é que, na modernidade, o real não equivale mais ao que simplesmente, se sucedeu, se deu, se consumou e se re112

alizou de alguma maneira, mas sim ao que se efetivou com sucesso, isto é, a realidade passa a ser desde um único modo de realização, cuja medida e parâmetro é o êxito. Nessa orientação, produção passa a ser sempre e, todas as vezes, o produzir de alguém. O vigente, que perdura numa vigência, é resultado da operação de algo ou alguém, isto é, a única causa efetiva torna-se a causa efficiens. A realidade, então, qualquer que ela seja, somente se torna possível (efetivamente real) se, e somente se, for a consequência de uma ação particular cujo antecedente é a sua causa, e o resultado: a própria realidade (o êxito). Tudo passa a aparecer sob a égide da causalidade linear. “Sendo um resultado, o efeito é sempre feito de um fazer, isto é, de um fazer entendido, agora, como esforço e trabalho. O resultado do feito de um fazer é o fato. A expressão ‘de fato’ indica, hoje em dia, uma certeza e significa ‘certo’, ‘seguro’” (HEIDEGGER, 2010b, p. 44). É desse modo e desde esse encaminhamento que a realidade passa a ser desde certeza e segurança. Aliás, real passa a ser sinônimo de “certo”. Nessa perspectiva, o que é real não se localiza, nem pode se localizar, na dimensão da dúvida, ou da simples possibilidade. Realidade não é, nem pode ser “talvez”. E essa compreensão ontológica que nasceu com a metafísica moderna, pouco a pouco, ganhou uma “evidência” e uma “obviedade”, que hoje pode até ser verificada em expressões da língua cotidiana. Dizer que algo “realmente” é de algum modo, ou que “de fato” se organiza de determinada maneira significa algo absolutamente certo e seguro. É algo do que não se pode duvidar, sob pena de ser classificado de lunático, isto é, alguém que vive em outra “realidade” completamente distinta das demais pessoas “normais”, para as quais vida, existência, se resume ao que se tem a certeza da “evidência”. No sentido de fato e fatual, o “real” se opõe ao que não consegue consolidar-se numa posição de certeza e não passa de mera aparência ou se reduz a algo apenas mental. [...] É que, agora, o real se propõe em efeitos e resultados. O efeito faz com que o vigente tenha alcançado uma estabilidade e assim venha ao encontro e de encontro. O real se mostra, então, como ob-jeto (Gegen-stand) (HEIDEGGER, 2010b, p. 44).

Sendo assim, tudo aquilo que não se realiza desde a medida da certeza e segurança não é real, mas simples aparência ou desvio da consciência. É confusão mental. Isso porque o real tornou-se um “fato”, é o resultado mensurável de uma operação, constituindo-se justamente daquilo de cuja natureza posso me assegurar totalmente. É desde essa 113

compreensão/operação que a realidade, isto é, todo e qualquer vigente, passa a ser representado como objeto. Na linearidade de causa e efeito, a realidade é determinada como sendo o resultado, o efeito de uma ação particular que conforma e configura, de maneira estável e segura, tudo o que se realiza. Nesse processo, o que é e vem a ser, se efetiva como o que seguramente se ob-jeta para nós. “Coisa”, e isso vale para toda e qualquer coisa, é objeto. A crítica heideggeriana a esse horizonte de compreensão de realidade não quer negar a existência da objetividade, isto é, a possibilidade de o real manifestar-se como objeto é mesmo um caráter realizável do próprio vigente. O que se quer apontar é que, na atualidade, esta tem se tornado a única forma, a única visada e perspectiva possível para o modo como os entes se presentificam. Mas antes de explicitar melhor esse aspecto, o autor afirma que é preciso voltar a análise para o outro termo-chave da definição de ciência apresentada anteriormente: ciência é a teoria do real. Nessa frase, para o que se está apontando com a palavra teoria? No sentido grego arcaico, teoria é uma forma de “visualizar a fisionomia em que aparece o vigente, vê-lo e por esta visão ficar sendo com ele” (HEIDEGGER, 2010b, p. 45). Ser com ele significa guardar o que é na medida em que vem a ser, ou seja, é respeitar a dinâmica de realização da realidade em seu movimento e modo de ser próprios. Quer dizer não atropelar, com a vontade ou arbítrio do homem, o vigente em sua vigência. Nesse horizonte, a teoria seria uma espécie de visão protetora da verdade, já que preserva o vigor próprio do que se presentifica e se manifesta, isto é, permite que o que vem a ser, venha sempre a partir de si mesmo e somente desde o modo de ser de si mesmo. Acontece que esse sentido originário não é mais o único que vigora em teoria. Quando se afirma que a ciência é uma teoria do real, não se está querendo dizer que ela representa uma visão protetora da verdade. A ciência não protege nada, nem guarda nada na medida e desde a medida como vigora, pelo contrário. Desde a tradução romana, que por sua vez é oriunda do modo romano de estar no ser (modo metafísico), teoria, progressivamente, passou a significar contemplari: “Separar e dividir uma coisa num setor e aí cercá-la e circundá-la” (HEIDEGGER, 2010b, p. 46). E é justamente essa orientação/inclinação que prevalece na ciência, como teoria, isto é, na atividade de produção de conhecimento, predominam a compreensão e a ação de teoria como um procedimento que se constitui numa observação separada e descolada da prática, cuja intenção é perseguir e alcançar o real definitivamente e de maneira cabal, para dele se apossar. É por isso que afirmamos anteriormente que o modo de encaminhamento da ciência 114

é gerido e promovido pela vontade de apoderamento e controle do mundo. É que a “teoria, como observação, é uma elaboração que visa a apoderar-se e assegurar-se do real” (HEIDEGGER, 2010b, p. 48). Nesse sentido, a ciência não é nem pode ser desinteressada, nem se esforça para, de maneira neutra, apreender as “coisas nelas mesmas”. Exatamente por tratar-se de uma teoria, a ciência nada tem de despropositada, pois se move desde uma pré-compreensão do modo como as coisas se realizam. Não se trata de pura constatação e averiguação do óbvio da natureza, alcançado desde uma observação imparcial. Ao contrário, ciência – e isto vale para toda e qualquer ciência – é uma elaboração (prévia) do real; ela realiza o real de determinado modo. Mas que modo é esse? Na ciência, os entes passam da não-vigência à vigência exatamente do mesmo modo levado a cabo pela técnica moderna. É desde a dis-posição tecnocientífica ex-ploradora da natureza que a ciência, a partir da modernidade, compreende e realiza a vigência do que vige. Sendo assim, a “essência” do que se revelou desde a exploração só pode ser a objetividade. Real, como algo certo, seguro e passível de ser apreendido na forma de um conjunto de operações e processamentos, passa sempre a equivaler à mesma objetividade, não importando qual seja a situação ou experiência. Como cadeia de causas e seus respectivos efeitos, a realidade pode, assim, ser prevista e previamente analisada. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento científico pode, então, processar à vontade. A representação processadora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental da representação com que a ciência moderna corresponde ao real. O trabalho, que tudo decide e que a representação realiza em cada ciência, constitui a elaboração que processa o real e o ex-põe numa objetidade. Com isto, todo real se transforma já de antemão, numa variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas (HEIDEGGER, 2010b, p. 48).

É por isso que Heidegger conclui que, em vez de algo muito óbvio e natural, a ciência moderna, e seu modo decisivo de apresentar tudo o que é e está sendo, não é meramente um simples feito do homem, muito menos de um grupo de homens particulares. Com isso, também não se quer afirmar o seu contrário: essa vigência do real desde a tecnociência não é uma imposição da própria realidade, já que, na verdade, é o próprio real que precisa da provocação tecnocientífica para se expor 115

enquanto objetividade. O que governa e dirige esse modo de desencobrimento é um certo destino pelo qual o homem é tomado e desde o qual sempre já está inserido. Cada uma das ciências, enquanto teoria do real que são, determina e assegura certos aspectos, isto é, uma região da realidade, definindo, desse modo, um domínio próprio de objetos. “A teoria do real se cumpre necessariamente em disciplinas, sendo sempre especializações e especialidades” (HEIDEGGER, 2010b, p. 50). Tudo aquilo que é e existe, ou seja, qualquer que seja o fenômeno que se queira verificar, é analisado e processado até se enquadrar, se ajustar, se encaixar, corresponder a uma delimitação e demarcação, existente para cada uma das ciências. Com o desenvolvimento tecnocientífico, esses limites podem até sofrer alterações, ser alargados ou mesmo restringidos, mas existe uma coisa que nunca muda, independentemente das transformações que todo campo científico possa sofrer: o real como objetividade. “Numa concepção rigorosa, a essência do ‘objetivo’ propicia o fundamento para se predeterminar comportamento e procedimento. Há teoria pura quando um objetivo determina por si mesmo a teoria” (HEIDEGGER, 2010b, p. 49). A objetividade é, desse modo, a fonte segura, e não deixa de ser a meta e o propósito de todo o conhecimento científico. O objetivo constitui-se como aquilo que perdura e é constante, sendo tecnocientificamente identificado como a própria “essência” do real. A objetidade se transforma na constância da dis-ponibilidade determinada pela com-posição. Só assim a relação sujeito-objeto chega a assumir seu caráter de “relação”, ou seja, de dis-posição em que tanto o sujeito como o objeto se absorvem em dis-ponibilidades. Isso não significa que a relação sujeito-objeto desaparece, mas, ao contrário, que somente agora atinge seu completo vigor já predeterminado pela com-posição. Ela se torna, então, uma dis-ponibilidade a ser dis-posta (HEIDEGGER, 2010b, p. 52).

Essa nova atitude do saber, implícita na ciência moderna possui esse traço fundamental que promoveu a transformação no modo como o homem se relaciona com o ente. A ciência moderna não se diferencia da praticada anteriormente porque se ocupa de fatos, porque é experimental ou somente porque se apoia em cálculos e medições do real. O que é decisivo nesse novo encaminhamento é que, no modo de ser tecnocientífico, se tem a compreensão de que o saber deve se construir matematicamente. Matemática aqui é sinônimo do que, antes, chamamos de cálculo, 116

ou seja, é uma maneira de apreender, de representar e de proceder em direção à realidade. A pretensão matemática do conhecimento, então, diz respeito a um conhecimento que não provém da coisa mesma, mas que possuímos porque dele já estamos previamente de posse. Nesse sentido, conhecimento é uma propriedade e exclusividade do homem. Nossa expressão “a matemática” carrega sempre um duplo sentido; ela significa primeiramente isso que pode ser apreendido da maneira que foi caracterizada, e somente assim; e em um segundo sentido, é a própria maneira de apreender e proceder. A matemática é isso no que as coisas estão manifestas, no que sempre nós já nos movemos e desde o que nós as experimentamos como coisas em geral e como tais e tais coisas. A matemática é essa posição fundamental para com a coisa, na qual nossa apreensão nos pro-põe as coisas tendo em conta o modo como elas nos são já dadas e o devem ser. A matemática é, então, a pressuposição fundamental de todo saber das coisas [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p. 87).

A matemática passa a ser, assim, uma espécie de proto-tipo, o modelo, a fôrma desde a qual, atualmente, tudo aquilo que é vem a ser, isto é, se mostra para nós, acontece, se realiza. Isso não significa que de um lado existam as coisas, na sua indeterminação, e num segundo momento a compreensão e determinação matemática do mundo instaure sentido de maneira determinante na realidade. A matemática é hoje o “método” dos “métodos”, se por método se compreender não o meio através do qual se alcança algo, mas o começo de tudo, aquilo que é ontologicamente anterior e que permite que aquilo que é venha a ser do modo e na vigência da técnica e da ciência. Sendo assim, o cálculo matemático passa a ser origem, gênese de realidade. O que se quer aqui indicar é que, num mesmo e único movimento, a matemática, como pressuposto, realiza os entes desde um modo próprio de ser. E esse encaminhamento, que antecipa tudo aquilo que se manifesta na perspectiva do apoderamento e do controle, tem origem na metafísica moderna. Sendo assim, técnica e ciência são matematizações da realidade, isto é, cálculo. “A matemática é um cálculo que, em toda parte, espera chegar à equivalência das relações entre as ordens por meio de equações. E por isso mesmo ‘conta’ antecipadamente com uma equação fundamental para todas as ordens possíveis (HEIDEGGER, 2010b, p. 50). Há ainda um último aspecto a ser considerado. O pensamento e a ciência moderna são matemáticos na exata medida em que exigem a 117

aceitação de pressupostos que não podem ser extraídos, ou seja, que não são derivados das próprias coisas, da própria realidade. São sistemas quase que autossuficientes cuja relação com os fenômenos vai se tornando cada vez mais distante. A matemática fala de coisas que não são apreensíveis por meio da experimentação direta e que, muitas vezes, exigem uma representação que contradiz a nossa representação habitual. Nesse sentido, a matemática é axiomática: “Enquanto axiomático, o projeto matemático é a conquista (tomada) prévia da essência das coisas, dos corpos; por aí se traça, em esboço, a maneira como se constrói toda coisa e toda relação das coisas entre si [tradução nossa]” (HEIDEGGER, 2011, p. 103). O exemplo citado por Heidegger em O que é uma coisa? é paradigmático. De acordo com a representação aristotélica, os corpos se movem segundo sua própria natureza: os corpos leves vão para cima, enquanto que os pesados se movem em direção ao solo, isto é, vão para baixo. Essa seria uma tendência natural, uma propriedade dos próprios corpos. Assim, o que é pesado cai mais rapidamente, na comparação com o que é leve. Nada mais fácil de se concordar. Nada poderia ser mais de acordo e em consonância com a nossa representação habitual. Acontece que Galileu descobriu que, na verdade, os corpos caem com a mesma velocidade e que a diferença que pode ser verificada no tempo de queda de objetos com pesos diferentes diz respeito à resistência do ar e não a uma natureza íntima de cada corpo. Para sustentar essa tese revolucionária, Galileu decidiu realizar uma experiência aberta na torre de Pisa, cidade onde vivia e era professor de matemática. Do alto da torre, e para uma plateia atenta, ele soltou diversos corpos com pesos diferentes, mas o tempo de queda de cada objeto se revelou diferente justamente segundo o peso de cada um. A despeito desse resultado, exatamente contrário àquilo que ele queria demonstrar, Galileu seguiu afirmando e confirmando a sua tese inicial: a velocidade com que os corpos caem é a mesma. A questão é que ele não conseguiu convencer nenhuma das testemunhas do experimento que, ao contrário, continuavam – agora ainda mais vivamente – a acreditar na antiga maneira de ver o comportamento dos corpos. O que é mais pesado cai mais rapidamente no chão! Em função dessa experiência, a oposição a Galileu em Pisa tornou-se tão forte que o professor teve que abandonar a cidade e a cadeira de matemática que ocupava. É numa tal pretensão que reside a matemática, quer dizer, na fixação de uma determinação da coisa que não é gerada, isto é, cuja força não provém da coisa mesma por via da experiência,

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e que, entretanto, está na base de toda determinação das coisas, a torna possível e dispõe seu espaço. Uma tal apreensão fundamental das coisas não é nem arbitrária, nem evidente. Eis porque, aliás, era preciso uma longa luta para assegurar sua dominação. Por vezes era preciso uma transformação no modo de acesso às coisas e a conquista de uma nova maneira de pensar [tradução nossa] (HEIDEGGER, 2011, p. 100).

O curioso é que Galileu e seus adversários haviam visto rigorosamente o mesmo fato; presenciaram o mesmo experimento, os mesmos corpos caindo do alto da torre de Pisa até o chão. A diferença é que os acontecimentos se deram a ver e foram interpretados de maneiras extremamente distintas. Algo completamente diferente para a maioria dos observadores se mostrou como sendo a verdade e a autenticidade do evento. Galileu ficou sozinho. Em sua época, a transformação da via de acesso às coisas, fruto de uma nova maneira de pensar e de compreender o modo de realização de realidade, estava apenas em sua etapa inicial. Chamamos a atenção para o fato de que Galileu e as testemunhas do experimento em Pisa não discordaram apenas nos detalhes. A interpretação do fenômeno, desde o que é mais incontornável e fundamental, foi divergente. Não houve nenhuma conciliação com relação à determinação da natureza dos corpos e da essência do próprio movimento. Isso porque, em Galileu, essa definição é pré-determinada matematicamente, isto é, não provém da coisa mesma, por via da experiência. De partida e antecipadamente, ele avaliava que o movimento de todo e qualquer corpo é retilíneo e uniforme e assim permanece até o ponto em que encontra algum obstáculo ou que uma outra força aja sobre ele. Desde essa sentença, todo e qualquer corpo, independentemente da massa, cairá com a velocidade constante da gravidade, e as diferenças entre o tempo de queda não terão relação com nenhuma característica intrínseca a todo ou a cada um dos corpos particulares. A realidade em Galileu é explicada por meio de um sistema, um conjunto explicativo que não faz menção a nenhum corpo efetivamente existente; ao contrário, é como se ela prescindisse disso. A partir daí nasce e cresce o universo tecno-científico ou cibernético da convulsiva vontade de vontade, onde o que interessa é o “valor” ou a “função” de verdade e nenhum sentido ontológico, i. é, nenhuma possível experiência fundadora e orientadora (FOGEL, 2001, p. 17).

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Com isso se quer afirmar que, nesse tipo de relação com a realidade, isto é, nessa forma específica de desencobrimento dos entes que é a tecnocientífica, o que interessa mesmo é que as coisas deem “certo”. O que se pretende é que os esquemas e sistemas explicativos possam ser aplicados, ou seja, ganhem uma utilização prática e sirvam instrumentalmente para alguma coisa. Essa é a medida e o parâmetro para a verdade. O que tem importância é o valor ou a função de verdade. Se o objetivo é o apoderamento, o domínio e o controle, pelo homem, do real que se realiza, basta que a ciência alcance o domínio do certo e seguro, isto é, basta que a verdade se apresente como correspondência, conformação e adequação da proposição do sujeito ao objeto. Se e quando o modelo, o esquema, o “método” pode assegurar uma certa aplicação e determinados resultados, ele é alçado à condição de “verdadeiro”, isto é, útil e aplicável para um determinado fim. Nesse sentido, o próprio conhecimento não passa de um instrumento para algo, a saber, para o controle e o asseguramento de mundo. É por isso que nesse modo de vir a ser não há mais nenhum sentido ontológico. Se tudo o que é vem a ser pré-determinadamente como instrumento, não há mais nenhuma possível experiência fundadora e orientadora. Com o atropelo da vontade de vontade, perde-se a ocasião e a oportunidade de uma relação mais autêntica com a experiência de origem, de gênese. Só que, mesmo na era da onipresença e onipotência do modo tecnocientífico e matemático de desencobrimento dos entes, é possível uma outra relação com as coisas. E mais que isso: é viável até mesmo alcançar uma outra compreensão até para o que se desvela como composição, conquistando seu limite, visualizando seu real poder ser. É preciso ver a dimensão de não-saber desse saber e, assim, ganhar a medida da ação técnica. Mas esse é um assunto para o próximo capítulo.

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Capítulo 3

Tecnologia e superação da metafísica Num horizonte completamente distinto da compreensão tecnocientífica do modo de realização de realidade e do entendimento de homem como sujeito, pode-se dizer que todo o pensamento de Heidegger realiza sempre um esforço em outra direção: desobjetivar o real para ganhar a sua dimensão fenomenológico-existencial. A ideia é ultrapassar o entendimento metafísico de homem e mundo, que tudo divide, na perspectiva do apoderamento e do controle. Nesse outro encaminhamento, a realidade não é algo dado, pronto ou desde sempre constituído, e o mesmo vale para o homem, que também faz parte da mesma dinâmica de efetivação de tudo o que vem a ser. Se é assim, ele não é dotado de uma natureza que seria anterior à existência e que, da mesma forma, subsistiria a ela, mas, ao contrário, seu modo de ser é forjado desde e na própria vivência, não se localizando antes, além ou por trás da experiência. Como consequência dessa outra perspectiva de análise, nem as “coisas” têm como única vocação serem descobertas, em sua essencialidade objetiva, pela representação racional do homem, nem o próprio homem carrega dentro de si alguma substância perene e imutável, alguma natureza íntima passível de ser identificada. Nesse sentido, o homem também não pode ser definido como o agente responsável, isto é, 121

como autor ou causa de tudo aquilo que se presentifica. Em Heidegger, homem não é espírito, nem “eu”, nem razão, nem consciência, nem res cogitans; ele é simplesmente um oco, um vazio, uma espécie de “buraco”. Com isso se quer apontar que o homem não tem uma estrutura ou textura de “coisa”, de algo dado, pronto e encerrado, mas é uma aptidão, uma disposição, ou seja, é um modo de ser que é apto a ser tocado, que é capaz de ser tomado por uma possibilidade. O homem já é sempre no mundo. Mundo não fala de “coisa” ou “das” coisas, mas de um sentido – um “páthos” –, o sentido-mundo, que instaura uma situação, uma circunstância, a qual define “ser-no-mundo”. Na formulação: “o homem já é sempre no mundo” (isto é, num sentido ou numa circunstância definida) o “já” é partícula do desconcerto, da perplexidade, e ela quer dizer: mundo, unidade-totalidade de sentido situação-circunstância, dá-se sempre de modo tão cedo, que o homem (qualquer percepção-intuição) chega sempre tarde demais para poder surpreendê-lo no seu começo. E mais: o homem só é, só se dá, porque o mundo, que é o lugar ou o horizonte do seu aparecer, a sua “condição de possibilidade”, sempre já se deu (FOGEL, 1998b, p. 134).

O homem é a desconcertante estrutura arcaico-originária ser-no-mundo. Desconcertante porque, nesse horizonte de análise, a existência, em qualquer que seja a efetivação, não pode ser prevista, pré-posta, analisada ou compreendida de antemão. Em certo sentido, essa perspectiva é perturbadora, porque nela o dar-se e realizar-se de vida, de existência, não é o resultado da ação, da vontade ou do livre-arbítrio do homem, pois ele não é primeiro; não é desde o autoasseguramento de si mesmo, do “eu” ou do sujeito que a realidade se estrutura. Na verdade, o sentido, a origem e o envio do real que se realiza é sempre, e a cada vez, anterior a qualquer que seja a percepção ou intuição do homem. É isso que se quer dizer quando se afirma que o homem já é sempre num mundo. O que se quer indicar é justamente que, em vez de causa do real, o homem só é aquilo que é, desde um mundo já determinado. Essa é a “condição de possibilidade” para que homem apareça, para que homem se faça homem, isto é, se hominize. Só que mundo aqui não está falando absolutamente de nenhuma objetividade. Não se está querendo simplesmente inverter a metafísica e afirmar que, ao invés do sujeito, o primado ontológico da realidade são as “coisas nelas mesmas”. Não se está indicando que o homem é o resultado de uma 122

definição e determinação localizada na res extensa. Mundo aqui não é substrato de coisas, não é espaço, muito menos extensão. No horizonte heideggeriano, mundo quer dizer um sentido, uma orientação/disposição primordial, uma gênese, uma força de origem, um páthos. Mundo não é nada da ordem do subjetivo, objetivo ou inter(trans)subjetivo, mas é um sentido-mundo. Esse sim é responsável pela fundação de uma circunstância, um contexto, que por sua vez conforma e configura a estrutura ser-no-mundo. É por isso que a estrutura ser-no-mundo não pode ser compreendida de maneira metafísica, como se de um lado houvesse o homem e de outro o mundo e, a partir desses dois substratos – espécies de continentes autônomos de realidade –, o homem fosse dentro do mundo. Não é nada disso. Não há primeiro o homem e depois o mundo, e nem o seu contrário, primeiro o mundo e depois o homem, fruto e resultado da objetividade já instalada. A estrutura ser-no-mundo também não quer demonstrar que há uma grande confusão, isto é, uma completa indistinção de homem e mundo. O que se quer explicitar é que o que vem primeiro, ou seja, o que é ontologicamente anterior, não é nem homem, nem mundo, nem sujeito, nem objeto, mas sim a relação. Arcaico-originariamente, a relação é primeira, vem antes de homem e antes de mundo. Na verdade, os termos dessa relação é que são derivados da estrutura ser-no-mundo que sempre já se deu. Os relata, sujeito e objeto, são tardios, são epigonais, são o resultado de um sentido, de um páthos, de uma perspectiva ou de um interesse que realiza homem e mundo. Por isso, a saber, porque se faz e se dá como e desde o súbito ou imediato, tal acontecimento elementar, tal salto se determina desde e como afeto. O começo, o fundamento se dá sob a forma de afeto – afeto ou experiência. Isto quer dizer, ser na compreensão e na determinação de todo e qualquer aparecer-mostrar-se é ser sempre já tomado, tocado justo pelo modo de ser disso que assim aparece e se dá. O que marca o afeto, a experiência é que nele ou nela não se entra, não se é intro-duzido, mas nele ou nela nos vemos subitamente, i-mediatamente caídos, decaídos, jogados. Por isso afetados, tomados e assim determinados, quer dizer, perpassados, performados (FOGEL, 2001, p. 10).

Fica assim caracterizada a circularidade da estrutura ser-no-mundo. Círculo porque nela não há começo, ou, em outras palavras, porque o começo sempre já se deu. Por mais que se tente voltar, retornar, alcançar o princípio, por mais que se esforce para se colocar fora, pôr123

-se antes dessa estrutura, a tentativa fracassa. E fracassa justamente porque homem é ser-no-mundo, o que significa que ele e mundo se fazem com isso e desde isso, desde uma experiência. Para alcançar uma dimensão anterior a essa estrutura seria preciso que homem não fosse homem (fosse algo que antecedesse a isso!) e que mundo nenhum tivesse se dado, se efetivado, se realizado. Dessa forma, antes, aquém, além ou por trás da estrutura ser-no-mundo, não há nem tem como haver nada, coisa alguma. É como e desde salto que se define também círculo ou começo circular: no círculo, como no salto, não há fora, não há ponto exterior a ele, ou seja, ele abarca, “circun-screve” e, por isso, eu já estou sempre dentro e desde dentro. É o âmbito, a circunscrição de locomoção, que é começo, a fundação. É sob o fundo desta composição e desta experiência que, em alemão, princípio, origem, diz-se: Usprung, que quer dizer: o proto (Ur) salto (Sprung), o salto arcaico ou originário – enfim: salto (FOGEL, 2005, p. 27).

Ser-no-mundo é essa estrutura de inserção, de imersão; é o elemento primeiro pelo qual homem está desde sempre tocado e tomado, por isso: páthos. O que se chamou de elemento, que também pode ser expresso pelo termo medium, significa a relação arcaico-originária, ou seja, é o modo de ser do surgir, eclodir, irromper, aflorar e aparecer de vida. É a hora e o lugar do instaurar-se e mostrar-se de tudo, exatamente tudo aquilo que há e é. Ser-no-mundo é o próprio fundamento da existência. É a gênese e o princípio do real. O existir é encontrar-se subitamente e imediatamente numa determinada situação, num lugar a partir do qual tudo aparece, isto é, se faz visível para nós. Isso significa que originariamente não há mediação, ou seja, o que se realiza, se dá como e através de um salto. O mundo, quer dizer, todo e qualquer sentido configurador, integrador e realizador de realidade, tem ou é essa estruturação arcaico-originária. É nesse sentido que os pólos sujeito e objeto se constituem a posteriori. O que é antes – e desde sempre – é a síntese, a amarração o súbito e imediato co-pertencimento ou co-implicação de ambos: a relação. [...] o homem não é um sujeito cuja “subjetidade” consiste em sujeitar às forças de suas pro-spectativas técnicas do ser dos entes, transformando-o na objetidade de simples objetos. No

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vigor de sua essencialização o homem é a locanda, em cujo espaço se desdobra a verdade dos entes. É no homem, como locanda do Ser, que os entes encontram lugar para serem o que são. Pois tanto a abertura da locanda como o desdobramento das possibilidades dos entes são instalados pela dinâmica de estruturação do Ser. O Ser é como Ser, estruturando a verdade dos entes na essencialização do homem, enquanto referência do Ser (Carneiro Leão. In: HEIDEGGER, 2009a, p. 13).

O homem é a estrutura ser-no-mundo que se constitui, enquanto tal, como a referência do Ser, ou seja, é o lugar de efetivação de toda realidade. Sendo assim, em vez de sujeito, o homem é, a cada vez, o ponto onde se localiza a irrupção súbita do que se efetiva numa presença (Dasein). Ser homem é ser salto, é estar nesse salto desde o qual tudo se realiza. Como possibilidade para toda e qualquer possibilidade, o homem é referência do Ser, no sentido de ser o lugar onde o tempo se concretiza, isto é, se efetiva como tempo; é a parte visível do movimento de tempo se fazendo tempo. Em outras palavras, pode-se dizer que o homem já é sempre, num sentido, uma certa orientação, uma determinada articulação de um mundo, determinada por uma certa presença. É exatamente por isso que somente o homem é histórico. Todos os outros entes não fazem parte dessa dimensão de vida, de existência. Somente ao homem passam-se coisas, ele é também o lugar de todo acontecimento possível. Ele é o ente para o qual acontece a verdade do Ser como alétheia. O homem nunca é homem, aquém do mundo, como um “sujeito”, quer se entenda sujeito como “eu” ou como “nós”. Nem tampouco o homem é primeiro e somente sujeito enquanto se refere sempre a objetos, de sorte que sua Essência esteja na relação sujeito-objeto. Ao contrário, o homem é, em sua Essência, primeiro ec-sistente na abertura do Ser. E é o que se abre na abertura (das Offene), que clareia o “meio” (das “Zwischen”) no qual pode “ser” uma “relação” (HEIDEGGER, 2009a, p. 79).

É desde esse viés de interpretação que também se ganha a compreensão que vida se faz, se realiza e acontece, desde certas possibilidades. Em vez de algo pronto e acabado, como nos faz crer o envio tecnocientífico, a existência se realiza e se constitui numa espécie de caminho que instaura sentido, produz história, isto é, que cria destino. É nesse 125

caminho que se dispõem as estruturas que articulam as possibilidades de Ser e ente. Destino, então, significa a efetivação de uma possibilidade da existência, é o suceder da história que cria o mundo, ao mesmo tempo em que também produz o próprio homem, que é sempre em um mundo. Destino é a força de reunião encaminhadora que produz História. A Essência da História é a dinâmica dessa estruturação. Heidegger a pensa como ges-chick = destino. [...] Trata-se de uma palavra derivada do verbo schicken, que possui um largo espectro significativo ao longo da evolução semântica do alemão. Seus três significados fundamentais são estruturar, dispor, enviar. No substantivo, Ge-schick, esses três significados são reunidos num conjunto pelo prefixo Ge- (como em Ge-birge = “conjunto de montes”). É na unidade desses três significados que Ge-schick articula o sentido originário de ge-schehen, a saber: vonstatten gehen lassen = “fazer ter lugar” e por conseguinte, “dar-se”, “acontecer”. Ge-schichte, substantivo de ge-schehen é a História (Carneiro Leão. In: HEIDEGGER 2009a, p. 14).

A História é, então, o destinar-se do Ser, no homem. Ela é uma estruturação que dispõe e envia a existência em um certo dar-se, realizar-se, num determinado acontecer. É nessa dinâmica que vida se faz vida, ao mesmo tempo em que o homem se hominiza, isto é, em que ele vem a ser aquilo que ele é. Esse “o que ele é”, já vimos, é uma estrutura ser-no-mundo, é o lugar em que tudo o que é vem a ser. Sendo assim, o homem se faz homem tornando-se a referência e a posição na qual a realidade se efetiva sempre e, a cada vez, em uma possibilidade, numa presença. É por isso que afirmamos anteriormente que o homem é a possibilidade de uma possibilidade, isto é, a hora e a ocasião de toda e qualquer efetivação de realidade. Nunca é demais reforçar e esclarecer que, ao se afirmar que o homem é a hora e o lugar de toda a presentificação do real, não se está querendo dizer que ele é o autor responsável por aquilo que se realiza. O homem é o modo de ser no qual os entes encontram oportunidade e ocasião para serem o que são, sem que com isso se torne o senhor ou a causa desse processo. Essa dinâmica tem seu vigor próprio, seu ritmo e cadência particulares. No dar-se e acontecer de vida, na realização de um destino, em vez de guiar e conduzir a existência ao seu modo, é o homem quem é dirigido e governado pelo que se realiza. Essa orientação é o cerne de tudo, é o miolo, a disposição na qual e desde a qual sempre já estamos inseridos, sendo que o próprio homem, inclusive, também é um 126

resultado desse modo de vigência. É nesse sentido que, numa metáfora, podemos dizer que coração é o que faz acontecer, é o próprio destino, uma vez que tem uma cadência, isto é, um ritmo particular. Coração diz pulso, cadência. Ele fala do toque ou “páthos” que mobiliza, que move e promove a vida. Viver é ser cordialmente – ser na cadência do coração que pulsa e ritma o jogo do aparecer e do dar-se da vida. Viver cordialmente é ser sob o modo da recordação – a re-cordação do pulso, que é repetição de cadência, retomada de ritmo. Por isso coração não é meio, mas destino inteiro. No pulsar cadenciado do coração, no aparecer e no dar-se de vida, dá-se a insistência na repetição desse simples –, desse puro singelo (FOGEL, 1998a, p. 94).

Nesse sentido, coração quer apontar para o modo com o qual e no qual vida se faz vida. É a forma na qual um certo sentido, isto é, determinado afeto (páthos), estrutura um ser-no-mundo. Coração é o pulso, o modo de ser, a cadência que agencia, dirige e promove a vida. Pois o pulso, o ritmo, a cadência do destino que governa e orienta nossa época pode ser expresso pelo vigor da tecnologia. É desde composição, que dispõe e pré-põe a realidade de maneira a torná-la sempre plenamente verificável e controlável pelo homem, que mundo, na atualidade, se mundaniza. O destino tecnológico é a própria metafísica e, dessa maneira, põe a caminho um desencobrimento marcado pelo esquecimento do Ser, que se tornou o signo mais aparente de nossa relação com os entes e a força a partir da qual se articula a sociedade contemporânea. Dissemos esquecimento do Ser porque essa perspectiva entifica não somente a realidade, na perspectiva do controle, como também o próprio Ser nas formas de subjetividade e objetividade. Sendo assim, nessa vigência, se esquece não somente que a provocação da tecnologia é apenas uma das possibilidades de desencobrimento, como também que a própria realidade é sempre a efetivação de uma forma de desvelamento que sempre oculta o Ser, isto é, a sua força de realização. A época da técnica e da Ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade do ente como na subjetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer,

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quanto mais for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor (Carneiro Leão. In: HEIDEGGER, 2009a, p. 16-17).

Nesse esquecimento metafísico-moderno do destinar-se do Ser, o homem é completamente deslocado de si mesmo. De lugar de realização e efetivação de realidade, ele passa a se compreender como causa de tudo que se efetiva. A tecnologia, como composição, é nosso ser-no-mundo, nossa atual situação, contexto e circunstância; é a realidade do real pela qual somos tomados, isto é, somos situados na técnica moderna e somos tomados pelo que é determinado pela orientação tecnocientífica. Isso é o que recebemos como legado; é o que sempre já está posto, dado e determinado como certo e seguro. É nesse sentido que todo ser-no-mundo é uma herança. É a transmissão de um destino, que se constitui e se caracteriza como sendo sempre, e a cada vez, um envio de (origem) e um envio para (encaminhamento). E essa dinâmica de realização de vida, como, a cada vez, uma presentificação e efetivação da existência, é a própria história. É o que anteriormente chamamos de temporização de tempo: tempo se fazendo tempo. Ser-no-mundo é sempre receber o legado de um certo modo de ser, de um certo encaminhamento, uma disposição, perspectiva ou interesse, ou seja, de um sentido-mundo orientador. Só que toda herança é, ao mesmo tempo, servidão, mas também liberdade. Com isso, queremos afastar as conotações fatalistas e deterministas que as expressões destino, herança ou transmissão de um envio de e para erroneamente podem conter. Não se quer indicar que ser-no-mundo é apenas seguir e levar adiante um modo de presentificação e uma determinação dos entes que já está pronta e acabada ou que é dada como certa e correta. Em certa medida, a herança é servidão, porque representa o que é dado, está posto e é imposto na entificação; é o que está aí para todo mundo ver. Ser-no-mundo é estar inserido imediata e subitamente no mundo do que é habitual, isto é, se trata de estar imerso nos usos, costumes e significações cotidianas e coletivas mais consagradas, ou seja, já cristalizadas na força da tradição. A servidão da herança reside justamente no abuso desses valores, na inércia da repetição macaqueada da cultura vigente, do que é o já esperado, do fazer tal e qual “todo mundo faz”. Entretanto, por outro lado, o que nos é transmitido é também liberdade, porque é somente desde herança, é apenas a partir daquilo que nos 128

é legado, que se pode vir a ser realmente livre. Como vimos, o homem não é nem pode ser anterior a experiência de já estar jogado e imerso na estrutura ser-no-mundo. E, sendo essa estrutura, o homem recebe sempre, e a cada vez, o legado de um destino, um certo encaminhamento. É dessa maneira que a liberdade não tem nada a ver com uma escolha do homem, que desde a sua consciência pode optar pelo que quer que seja, pelo que “der na telha”. Liberdade não é o mesmo que a possibilidade de o homem exercer a sua vontade, arbítrio ou caprichos como lhe convier e vier à cabeça. Se o homem está sempre e originariamente em uma situação, circunstância e contexto, não existe a ocasião ou oportunidade para, desde o nada, isto é, como numa página em branco, o homem escrever livremente a sua história, ou, o que dá no mesmo, a História. A essência da liberdade não pertence originariamente à vontade e nem tampouco se reduz à causalidade do querer humano. [...] A liberdade do livre não está na licença do arbitrário nem na submissão a simples leis. A liberdade é o que aclarando encobre e cobre, em cuja clareira tremula o véu que vela o vigor de toda verdade e faz aparecer o véu como o véu que vela. A liberdade é o reino do destino que põe o desencobrimento em seu próprio caminho (HEIDEGGER, 2010a, p. 28).

A liberdade tem a ver, então, com o acontecer da realidade como desencobrimento. Ela dirige a abertura de onde surge qualquer que seja a efetivação dos entes; é uma clareira responsável pelo mistério que se encobre em todo desencobrimento possível, mas que, ao mesmo tempo, desvela tudo o que é. A liberdade é o ainda não presentificado em uma possibilidade particular, o aberto desde o qual e com o qual o desencobrimento se realiza e o véu para o qual retorna. É por isso que Heidegger afirma que: “Todo desencobrimento provém do que é livre, dirige-se ao que é livre e conduz ao que é livre” (HEIDEGGER, 2010a, p. 28). A liberdade reside no âmbito da verdade como desencobrimento e é a condição desse movimento. Além de condição, a liberdade é a dinâmica que conduz e interpela o desencobrimento em um caminho particular. Sendo assim, a herança, isto é, o que fica e é transmitido por meio da estrutura ser-no-mundo, ao mesmo tempo em que é nossa “camisa de força”, é também a possibilidade de nossa liberdade. Isso porque em todo destino e encaminhamento reside sempre um convite, uma espécie de chamado para que se conquiste a força que a herança instaura. A herança nos lega o que está pronto e efetivado em uma determinação, mas é também a liberdade, à 129

medida que sempre pode proporcionar o acesso a uma outra dimensão da existência, a saber, a sua gênese, seu movimento de origem, seu modo de ser e de fazer história, isto é, o envio de um destino no qual estamos sempre lançados. Quando isso acontece, se pode enxergar e entrar no movimento gerador de existência. E é desde o que está feito, que está efetivado de uma determinada maneira e que nos foi legado, que se pode herdar também a força, o vigor de realização do que se presentifica. É por isso que Heidegger afirma, em diversas de suas obras, que até mesmo na era da técnica, até mesmo desde a provocação tecnocientífica que sempre pré-põe a natureza como disponibilidade, é possível, de repente, como que num salto, sermos “tomados por um apelo de libertação” (HEIDEGGER, 2010a, p. 28). No perigo, como esclarecido no subcapítulo 1.3 deste trabalho, reside também o que salva, porque toda e qualquer perspectiva, mesmo a mais objetivadora do real, é capaz de revelar tudo, dá condições de se enxergar a origem, a gênese de todo acontecer, todo suceder de vida. Isso quer dizer que, é próprio do homem, como referência do Ser e local de realização de toda a realidade, perceber e entrever o que, apesar de sempre se encobrir, a cada vez fica indicado e de alguma maneira sinalizado: o próprio desencobrimento, a realidade como movimento, ou seja, dinâmica de retomada e autodiferenciação do mesmo. Isso quer dizer que toda técnica, toda função técnica, está adscrita e circunscrita a um projeto de ser do homem, o qual lhe dá tanto a viabilidade no processo de sua realização, quanto a compreensão ou a inteligibilidade do seu modo de ser, evidenciando assim suas possibilidades e limites. Desse modo, nenhuma técnica é um absoluto em si, mas um co-medimento, que é co-pertencimento (FOGEL, 1998a, p. 127).

A técnica – e seu envio objetivante – também é um destino do Ser, e não poderia deixar de sê-lo. Está certo que, nesse encaminhamento particular, existe a tendência, não somente de determinar a verdade como adequação e conformação da proposição do sujeito ao objeto, o que pode encobrir, ou ao menos dificultar, a possibilidade de uma outra forma de desencobrimento de mundo, como também pode-se dizer que, nesse envio, há uma inclinação para encobrir o próprio desencobrimento, uma vez que a tecnociência localiza a gênese e a origem de todo o real possível na representação objetivante. Mas mesmo assim, a tecnologia é e sempre será apenas uma forma possível de desencobrimento dos entes, cuja análise do modo de ser próprio pode esclarecer e evidenciar perfeitamente sua dimensão e seus limites. 130

Entretanto para que isso efetivamente se realize é preciso, antes, dar um passo atrás. Numa atitude completamente contrária ao modo de ser tecnocientífico, que quer sempre ir para frente, avolumando e agigantando a vontade, é preciso e urgente que se queira menos, ou melhor, que se queira de uma outra maneira. Querer menos, aqui, não quer dizer desejar ficar aquém da experiência, mas ver, enxergar e reconhecer o seu limite. Também não é ultrapassar, ir além daquilo que se realiza no sentido de atropelar tudo com a vontade de controle e apoderamento, o que seria justamente querer demais. É preciso querer menos, querendo melhor: querendo o limite. Quem vai até onde se pode ir e conhece o limite conhece e experiencia a totalidade; conhece tudo o que havia para ser conhecido, vê fronteira, visualiza a borda, que é exatamente onde se define e se determina, ou seja, se decide realidade. Nessa outra disposição, é preciso parar para meditar, isto é, pensar o sentido do que é decisivo. Assunto para o primeiro tópico deste último capítulo.

3.1 Técnica e meditação Força, vigor de realização, movimento gerador de existência são modos de dizer e indicar que estão justamente apontando para aquilo que é o mais digno de ser questionado. Apesar de ser uma ocupação e uma atividade cada vez mais raras em nossos dias, ainda nos é possível olhar para a realidade com outros olhos, desde uma perspectiva que pergunta radicalmente pela suposta “obviedade”, “evidência” e “naturalidade” da existência, ou seja, que se ocupa com aquilo que esses termos querem expressar. Em vez de se contentar com uma explicação e descrição da organização do real que se estrutura desde o efeito de verdade, que já garante que o homem calcule antecipadamente toda e qualquer experiência, esse horizonte de interpretação quer pensar origem, quer desfazer todo o feito para conquistar uma outra dimensão da existência, mais arcaica e originária. É uma pré-disposição desde a qual se quer perder “um” mundo, isto é, a forma já cristalizada e legitimada pelo costume e tradição, para, ao contrário, ganhar mundo. Vimos que, na perspectiva utilitária do instrumental, tudo tem que estar de antemão garantido. Tecnocientificamente, todos os entes, só são na medida em que servem para alguma coisa, ou seja, são meios para determinados fins. Isso porque o querer do instrumento pré-põe e pro-põe, ao seu modo, o vigor do que se presentifica. Desfazer esse encaminhamento, que se apresenta como o próprio destino de nossa época, quer dizer realizar o enorme esforço de retirar a significação prévia de todas as coisas. 131

Sendo assim, a questão não poderia ser mais arcaica, mais aguda. Arcaica e aguda porque querem de alguma forma “resetar”, voltar à estaca zero para, então, se ocupar com a gênese de todos os acontecimentos, com o modo de realização de tudo que é, acontece, se dá e se realiza. A vida, a existência é esse dar-se, o fazer e o acontecer de destino. O abrir-se e cindir-se disso que só se abre e só se cinde em pura espontaneidade (“natura”, “physis”, vida) – este rebento todo exposto e despojado é o poder do perigo que toma ao homem no instante do próprio acontecimento-homem, permeando-o, perpassando-o e perfazendo-o. Este abrir-se é o fato dos fatos, o acontecimento dos acontecimentos. Este abrir-se – é isso mesmo o abrir-se ou nascer do espírito, o fazer-se do homem, do existir (FOGEL, 1998a, p. 112).

Este é o fato dos fatos, o acontecimento de todos os acontecimentos, aquilo que é da maior importância e que, por isso, precisa urgentemente ser pensado. Essa força do que eclode e aflora, que faz vir a ser, isto é, que manifesta e realiza todas as coisas, permeia e perpassa inclusive o próprio homem. É nesse sentido que a citação acima afirma que a existência é o acontecimento-homem. Não porque o ser humano seja sempre a causa ou o responsável pela intimação e gestão de tudo o que se efetiva e pelo modo como se realiza, mas porque o homem é presença. Isso quer dizer que ele é a locanda do Ser, o ente para o qual todas as coisas são. O homem é a referência, ou seja, é o lugar de presentificação e efetivação do que se realiza. Sendo assim, o movimento espontâneo e gratuito que gera a existência se realiza no homem. Isso quer dizer que a dinâmica do abrir-se e cindir-se da realidade sempre, e a cada vez, atravessa, perpassa e perfaz o homem. Por isso, o perigo. Perigo aqui está querendo apontar para o risco que é inerente à existência. Vida como abrir-se e cindir-se de realidade, desde a gratuidade e espontaneidade é, e sempre será, um risco. Risco porque é um balancear, um oscilar que é decidido, cadenciado e “calibrado”, a cada vez, por dois modos de ser: presença e ausência, vida e morte, efetivação e indeterminação. Pois é exatamente esse o perigo. Essa linha, ao contrário do homem, não quer absolutamente nada, mas, mesmo desde esse não-querer, esse limiar onde a existência se decide sempre se altera tendendo ora para um lado, ora para outro, assim modulando vida. O poder desse perigo é justamente o pêndulo, o fiel da balança, a força de oscilação que é responsável por dosar a medida e a proporção realizada em cada acontecimento de mundo. 132

É com esse perigo que a vontade do homem que quer apoderamento, dominação e controle, não sabe lidar. O envio tecnometafísico não respeita essa dinâmica. É que nessa real experiência de origem não se pode ter a garantia ou a segurança antecipada do que as “coisas” são ou de que elas vão se presentificar de determinada maneira. Não se pode ter a certeza absoluta e o controle prévio do modo de manifestação do real. Isso porque, no fazer-se de vida, o homem não é o dono, o senhor ou o agente responsável por tudo aquilo que existe. Para não ter que lidar com o risco, com a possibilidade do erro, para não ter que se recolocar, a cada vez, no vigor daquilo que se realiza, desde composição, a natureza é sempre provocada da mesma maneira. A dinâmica de realização, como movimento gratuito e espontâneo, é sufocada e transformada em algo com o que posso contar antecipadamente. Assim, real passa a ser sinônimo de disponibilidade. Nesse encaminhamento, o homem deixa de se enxergar e de se compreender como referência do Ser, lugar de realização do que se presentifica, para se tornar sujeito autosseguro de si e produtor de realidade, o que concretiza uma transformação radical de sua Essência. Assim se alterando tão radical e tão absolutamente o homem se descaminha ou se desvia de tal modo de sua liberdade, que é a necessidade de seu modo de ser, que cai ou decai na dominação da servidão, da subserviência, que é aniquilação de sua própria essência ou gênese (FOGEL, 1998a, p. 115).

Nesse sentido, o homem não se deixa mais ser tomado e tocado pelo perpassar do acontecimento que ele mesmo é. Por isso a alteração é tão profunda e repleta de consequências. Longe de sua própria Essência ou gênese, o homem se fecha no saber representativo conceitual, instaurando e legitimando a “normalidade” e a certeza da objetividade. O que se constitui apenas como uma das formas de desencobrimento possível, sendo especificamente um modo que oculta e cala a própria origem, se transforma na expressão da própria realidade. E, assim se afastando de origem, o homem se distancia do seu próprio fundamento e decai na servidão da repetição e do abuso irrefletido dos valores tradicionais. Tal e qual todo mundo faz e assim como se espera, a natureza se apresenta “naturalmente” como disponibilidade para a exploração. Essa subserviência irrestrita ao legado que se herda não permite que o homem perceba, visualize e experimente a liberdade que todo movimento de desencobrimento representa. O homem perde a dimensão da 133

clareira, do aberto de cada velar e desvelar realizador; não se dá conta de que o que há é desde desencobrimento, muito menos percebe que o véu que desencobre também sempre encobre a sua força de realização. Longe de tudo isso, o homem encontra-se afastado de si mesmo, distante da gênese que, não somente produz real, como também ao próprio homem. O destino da era da técnica promove o desenraizamento do homem. O enraizamento (die Bodenständigkeit) do Homem actual está ameaçado na sua mais íntima essência. Mais: a perda do enraizamento não é provocada somente por circunstâncias externas e fatalidades do destino, nem é o efeito da negligência e do modo de vida superficial dos Homens. A perda do enraizamento provém do espírito da época no qual todos nós nascemos (HEIDEGGER, s/d. a, p. 17).

E só existe uma maneira de, de alguma forma, “sair” desse turbilhão para, assim, conseguir visualizá-lo enquanto tal. Para compreender esse processo, é preciso parar para meditar, fazer uma pausa, pensar o sentido da existência. É dar um passo atrás, um passo de retorno à origem, em direção à Essência, rumo ao enraizamento, ao “de onde se vem” humano. Pensar o sentido não tem nada a ver com tomar consciência, não é, de modo algum, representar lógico-categorialmente qualquer que seja o “objeto” ou domínio do que se quer compreender. A representação dominadora também não é medida para se perceber a cadência desde a qual vida se faz vida e para se visualizar qual o lugar que o homem ocupa nesse movimento. Não é representar antecipadamente o que é o homem e sua natureza para, num segundo momento, decidir por retornar conscientemente a essa gênese, sua casa ou morada. É preciso esclarecer que o pensamento do sentido não é da natureza do cálculo matemático, por isso não é algo com que podemos contar previamente, nem é um modo de ser/agir que quer produzir uma explicação cabal e definitiva do que é o homem. Meditar não é algo da ordem da introspecção ou ensimesmamento; não é voltar-se para si mesmo, olhar para dentro. Também não significa elaborar um sistema operativo e calculável, como se as forças da natureza ou o modo de ser humano pudessem ser totalmente previstos, dominados e expressos em fórmulas e regras fixas, que dessem conta de todas as relações de causa e efeito e de seus detalhes. O pensamento do sentido é, na verdade, a experiência do lugar onde, desde sempre, nos encontramos, embora, na maioria das vezes, não tenhamos verdadeiramente experienciado e percebido com clareza e evidência essa ocupação. 134

O alemão sinnan, sinnen, pensar o sentido, diz encaminhar na direção que uma causa já tomou por si mesma. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido. Este significa mais do que simples consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser questionado (HEIDEGGER, 2010b, p. 58).

Desse modo, o que Heidegger quer indicar como sendo a meditação, ou o pensamento do sentido não tem nada a ver com antecipação, não é a tentativa de se assegurar previamente de algo. O que é assim pensado, nunca pode ser plenamente descrito à exaustão, pois não se efetiva no processo de objetivação do que se realiza. Pensar o sentido é se entregar ao sentido, e não tomar consciência de algo. Aliás, em vez de ajudar, consciência, nessa perspectiva, pode mesmo atrapalhar bastante, na medida em que pode sobrecarregar a experiência de representações prévias. É que, em certa medida, para se entregar ao sentido, é preciso estar despreparado, distraído ou mesmo desprevenido. Tem que se estar livre de representações. Preparo aqui pode atrapalhar, já que significa dar força e musculatura demais ao homem, o que pode comprometer justamente aquilo a que se visa: que o homem seja tocado ou mesmo tomado pelo aparecer. Se o homem é a locanda do Ser, se ele é o lugar de realização de todo o real e a referência para toda e qualquer presentificação, ele não precisa se preparar para experimentar sentido. Se a dinâmica do abrir-se e cindir-se da realidade sempre, e a cada vez, atravessa, perpassa e perfaz o homem, instaurando História e postulando herança, não é preciso que o homem esteja prevenido ou aparelhado de concepções prévias para ser tomado ou tocado por sentido; ao contrário, é melhor que ele se esforce para estar livre de qualquer que seja a expectativa. Pensar o sentido é experimentar o aberto se encaminhando na direção de um desencobrimento; é se orientar, não desde a vontade do homem, mas sim de acordo, e na mesma disposição, cadência, pulso e ritmo do jogo do aparecer. O que somente se anuncia aparecendo no seu próprio recolher-se – a isso correspondemos, à medida que para isso acenamos e, assim, nós mesmos nos orientamos nisso que se mostra em deixando-o aparecer no seu próprio desencobrimento. Este mostrar-se simples é um traço fundamental do pensamento, o caminho para aquilo que, desde sempre e para sempre, dá ao

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homem o que pensar. Toda e qualquer coisa se deixa demonstrar, isto é, derivar a partir de pressuposições adequadas. Poucas coisas, porém, e estas ainda raramente, deixam-se mostrar, isto é, num aceno, liberar para um encontro (HEIDEGGER, 2010d, p. 115).

O pensamento do sentido fica assim caracterizado por uma atividade de um encaminhamento completamente distinto da representação. Na representação, o que está diante de nós é pré-posto e pré-suposto no horizonte do objeto; ela promove um fechamento antecipado do que é, por natureza, a liberdade do aberto. Recusa-se o perigo da abertura, ao se representar objetivamente na perspectiva do apoderamento, da dominação e do controle da realidade. O pensamento do sentido também não é um atalho para uma descrição exaustiva, não se trata, de modo algum, de um método. Seria método se fosse cartilha, um conjunto de condutas e procedimentos por meio dos quais se busca assegurar-se antecipadamente da verdade. Quem quer método quer segurança e certeza prévias; quer, antes mesmo de fazer, garantir que tudo vai dar certo. O pensamento que medita [ao contrário] exige de nós que não fiquemos unilateralmente presos a uma representação, que não continuemos a correr em sentido único na direcção de uma representação. O pensamento que medita exige que nos ocupemos daquilo que, à primeira vista, parece inconciliável (HEIDEGGER, s/d. a, p. 23).

Pensar o sentido é, então, deixar o que se manifesta aparecer desde o seu modo próprio, a partir de seu próprio desencobrimento. É não atropelar, com a vontade de controle, aquilo que se realiza. É, de alguma forma, se deixar levar, se orientar pela natureza do que se presentifica para nós, num movimento que sempre perpassa, ultrapassa e perfaz o homem. É ver o que se anuncia e seguir o seu aceno, não desde uma medida determinada pelo homem (sujeito autosseguro de si), mas no seu recolhimento particular. Por isso mesmo, quanto menos se esperar, quanto menos expectativas se criam em torno desse momento e dessa hora que define realidade, melhor. “P – Aguardar, pois bem; mas nunca estar em expectativa (erwarten); pois o estar em expectativa prende-se já com uma

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representação e com o seu objecto representado. E – O aguardar, no entanto, prescinde disso; terei de dizer antes: O aguardar nem sequer se deixa aceder (lässt sich... nilcht ein) pela re-presentação (Vor-stellen). Com efeito, o aguardar não tem qualquer objecto (HEIDEGGER, s/d. a, p. 43).

No âmbito do objeto, tudo se deixa demonstrar. Uma vez que é pré-posta, desde certas pressuposições, a realidade passa a se apresentar na proporção e na medida disso que foi posto antecipadamente. O protoesquema, o sistema a partir do qual o mundo previamente se anuncia como objetividade é autossuficiente, isto é, opera para confirmar e reforçar a si mesmo. Demonstrar é justamente isto: autoexposição e comprovação de premissas. Muito diferente, entretanto, é o realizar-se daquilo que se deixa mostrar, ou seja, que ao se realizar, libera para um encontro. Na disposição da meditação, é preciso aguardar, escutar, dar olhos e ouvidos ao que se realiza. O que é bem diferente de criar expectativa, pois o aguardar não se explica pela descrição da representação. Como consequência, quem aguarda não sabe, nem nunca poderá saber muito bem o que é que, na verdade, está aguardando. É uma entrega de tal natureza, que se espera o inesperado, sem ansiedade, vontade ou expectativa. É um modo de ser que corresponde à voz média, explicitada no capítulo anterior. Isso porque, nesse aguardar, ativo e passivo não são bons parâmetros para esclarecer o vigor pelo qual quem pensa o sentido é tomado. Ao meditar, o homem não é nem o único responsável pela ação, nem aquele que apenas sofre suas consequências, mas as duas coisas ao mesmo tempo. Simultaneamente, é preciso realizar uma ação (“ativo”), já que meditar é aguardar, mas também significa ser tomado, tocado, perpassado pela orientação do que se realiza, é um deixar-ser (passivo), quer dizer, é um “fazer-permissivo”, um à toa muito ativo. Então só nos resta uma coisa, Só nos resta esperar – esperar até que “o a-se-pensar” se nos anuncie. Mas esperar aqui não significa, de modo algum, adiar o pensamento. Esperar quer dizer aqui: manter-se alerta e, na verdade, no interior do já pensado em direção ao impensado, que ainda se guarda e se encobre no já pensado. Através de uma tal espera, justamente já pensando, estamos em via de nos encaminharmos para o que cabe pensar. Esta via pode ser um extravio. Ela permaneceria porém marcada pela disposição de corresponder àquilo que cabe pensar mais cuidadosamente (HEIDEGGER, 2010d, p. 120).

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O pensamento do sentido vai ao encontro da “coisa” enquanto que o pensamento calculador do envio tecnocientífico vai de encontro ao real. Este último constitui-se como um choque, um incidente, um atropelo fundado na desmesura e desmedida da vontade de apoderamento e de dominação. Como promove o encontro, a meditação se mostra como sendo aquilo que mais cabe pensar; o pensamento mais alto e mais arcaico. Seu modo de encaminhamento parte do feito, do dado, daquilo que já foi pensado, para ir em direção ao impensado, ao imponderável da abertura. Ele também se ocupa de realidade, mas, quando o faz, realiza a tarefa de um outro modo: se volta para a gênese e se orienta pela determinação e cadência, pelo toque desde o qual o homem, a cada vez, pode vir a ser tomado. Dessa maneira, o pensamento do sentido é o exercício de experimentação de origem, de desencobrimento. E não existe outra maneira de se vivenciar nascimento, isto é, o puro e gratuito fazer-se de vida, que não seja por meio de um salto. É através de um salto repentino que se pode experimentar a possibilidade de entrar na dimensão da “própria coisa”. É claro que “própria coisa” aqui não está apontando para alguma “essência”, substância ou para a objetividade do real, mas sim para a dinâmica de gênese; a “coisa” é um afeto, um interesse que, subitamente e sem mediação, se instaura, por isso é círculo, transcendência. O salto ilumina, mostra, faz ver, evidencia uma realização em seu modo próprio, ou seja, significa entrar na transcendência de vida se fazendo vida. E, como círculo, o salto é toda a experiência, não havendo começo nem fim. Ou onde começo e fim sempre já se deram. Isso quer dizer que não há nada antes, depois, aquém, além, ou por detrás do salto, da própria imersão na qual sempre já estamos. Por mais que se queira colocar-se fora, antes dessa estrutura, na tentativa de controlá-la, a tarefa apresenta-se irrealizável. Sendo assim, se colocar nessa esfera de transcendência só é possível desde e num salto, e, nesse movimento, cabe ao ser humano um estado de concentração máxima, só que não em si mesmo, mas na origem, na “própria coisa” se fazendo “coisa”. Algo bem distinto de uma relação na qual o poder de determinar o destino e a verdade do mundo é um “direito” do homem. Para que se vivencie e se experimente o salto, como salto, faz-se necessária uma escuta, uma concessão, uma orientação na qual o homem vivencia o abandonar-se, um deixar-se à mercê da experiência. Entregar-se ao salto quer dizer se permitir ser completamente tomado pelo sentido que se apresenta. O salto é uma vivência que se experimenta, mas que não tem muita explicação; não tem um porquê, nem para quê, e não pode ser descrito ou pré-compreendido a partir da representação lógico-conceitual. Na verdade, ele é uma tensão, uma dinâmica desde a qual estamos sempre inseridos. 138

O que se abre com este âmbito é algo que jamais se deixa demonstrar, caso demonstrar signifique: desde pressuposições adequadas, derivar proposições sobre um estado de coisas através de uma cadeia de conclusões. Quem quer ainda demonstrar e ter provado algo que somente se revela à medida que aparece a partir de si mesmo e nisso que, ao mesmo tempo, se recolhe – este, de modo algum, julga segundo um critério mais elevado e mais rigoroso do saber (HEIDEGGER, 2010b, p. 58).

O que se abre na dimensão do pensamento do sentido não se deixa demonstrar porque não opera desde o pensamento calculador. A diferença fundamental entre essas duas disposições é que na meditação, a régua, isto é, a medida e o parâmetro para a legitimidade daquilo que se manifesta não se localiza fora da própria “coisa”. Não é algo que pode ser pré-definido ou pré-determinado pela razão humana, mas que simplesmente se revela à medida que aparece a partir de si mesmo. Não há e nem pode haver critério definido anteriormente, nem fora do acontecimento que instaura sentido. Só o que cabe é pôr-se, serenamente e compassadamente no mesmo tom, no mesmo ritmo e cadência de origem, da espontaneidade e gratuidade do eclodir de real se realizando. Parar para meditar, dar um passo atrás, querer menos e sem a volúpia e a desmedida do arbítrio e da vontade humana de controle, deixar-ser, deixar-viger, escutar, auscultar a dinâmica de gênese, concentrar-se e voltar-se todo para a orientação da “coisa mesma”: todos esses são modos de se tentar dizer/indicar o que pensamento de sentido significa. É um modo de ser e de agir, de se compreender e de se relacionar com a realidade completamente distinto do envio metafísico-tecnocientífico. Nele, o homem se perfaz, isto é, se faz todo junto ao que aparece e se recolhe, sem razão, desde si mesmo. E mais que isso: de algum modo, o pensamento do sentido é uma disposição na qual o homem, não somente respeita o vigor próprio no qual cada coisa se manifesta, como também consegue entrever a força de realização de real. Dessa maneira, o pensamento do sentido é um modo de ver e de olhar que não apenas vê, como percebe que está vendo. Ele é um “olho” que vê, o próprio olhar, isto é, que reconhece origem como tal. O pensamento do sentido permanece, no entanto, provisório, paciente e mais indigente ainda do que a formação de outrora, em sua época. A pobreza do sentido promete, no entanto, uma outra riqueza, cujos tesouros resplandecem no brilho de uma inutilidade, daquela inutilidade que nunca se deixa contabilizar (HEIDEGGER, 2010b, p. 59).

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Indigente porque, como viemos indicando desde o primeiro capítulo deste livro, a tecnologia quer mesmo é simplificar as coisas. Ela promete justamente tornar possível uma relação com a realidade que, apesar de estar sempre correta na determinação do mundo, não se ocupa, em nenhum grau, com o vigor daquilo que se manifesta. Por isso, o pensamento do sentido é hoje tão raro e escasso. Reverter essa tendência do destino da era da técnica não é uma tarefa fácil, mas também não é impossível de ser realizada. Para que isso aconteça, é preciso, num salto, entrar na dimensão da transcendência e se deixar ser tomado pelo apelo de libertação. Para retornar a sua própria Essência, para retomar o seu lugar como referência do Ser, o homem precisa parar para meditar. O pensamento do sentido representa não somente uma nova compreensão como também uma outra atitude, um outro tipo de ação, mas comedida e mais respeitosa. Ação essa que esclareceremos no próximo tópico deste trabalho.

3.2 A medida da ação técnica O que neste livro é apresentado em dois subcapítulos distintos não pode, de forma alguma, ser compreendido separadamente. Já o dissemos anteriormente, mas vamos reforçar: pensar o sentido já é agir; é um outro modo de ser e também de se comportar frente ao que se presentifica. É que ao pensar gênese, ao se orientar e se voltar para o nascimento do que se realiza, a meditação é uma forma de acesso à transcendência da realidade que, por si só, gera transformação; é causa de uma outra atitude. Sendo outra modulação de ação, na qual o homem não é o agente responsável por toda efetivação de real, o pensamento do sentido se constitui como uma forma de se conquistar a medida da ação técnica. Na meditação, torna-se viável alcançar uma outra compreensão até mesmo para o que se desencobre desde composição, e, assim, pode-se enxergar o limite, conquistar a medida, se pode visualizar o real poder-ser da tecnociência. Ganhar a medida da ação técnica é, de algum modo, reconhecer a dimensão de não-saber desse saber. O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo modo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda a produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se (HEIDEGGER, 2009a, p. 25).

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Sendo assim, o pensamento do sentido não é um meio para um determinado fim; não é um instrumento para se alcançar certa finalidade. Meditar não é um exercício teórico-especulativo anterior a toda e qualquer experiência que pudesse ser simplesmente aplicado na realidade, isto é, não é nada que antecede a prática como esforço de determiná-la em última instância. Pensamento como ferramenta para se produzir um efeito previamente definido pelo homem não é pensamento, é cálculo. O verdadeiro pensamento não divide a existência em duas realidades distintas, “teoria” e “prática”. É que o pensamento constitui-se num agir que não é descolado da realidade, que age enquanto pensa, que não é passivo nem ativo, já que trata-se de um deixar-se conduzir pelo que se produz, a partir de si mesmo. É um fazer-permitir, um agir-conceder no qual atividade e passividade não são parâmetros adequados para medi-lo. Mas, para que isso aconteça, é preciso um esforço de uma outra natureza, posto que, no destino da era da técnica, não é preciso se ocupar de pensar o que a ação realmente significa. Nesse encaminhamento, pensamento é lógica, e agir significa efetivar um efeito, ou seja, quer dizer pôr em obra, produzir uma consequência que, antes da ação, não existia. Com isso, queremos dizer que, na tecnociência, pensamento é cálculo lógico-matemático; seria algo da dimensão da teoria, da produção de sistemas explicativos a priori, enquanto que o agir seria apenas exposição/confirmação desses modelos lineares de causa-efeito. É que a composição põe em funcionamento uma forma alterada de causalidade, na qual a natureza passa a se manifestar somente como provocação antecipada. Na provocação, não existe concessão, não se procura entrar na orientação de nascimento. Nesse sentido, o homem não é mais um meio para que certo tipo de produção se efetive, pois passou a ser a causa do agir, que intima o real a se manifestar como disponibilidade. O que precisa estar claro aqui é que, desde a natureza do instrumento, vigente na era da técnica, todos os entes somente existem à medida que servem para alguma coisa, pois nada tem fim em si próprio. E o mesmo vale para toda e qualquer ação. Todo agir precisa produzir um efeito, tem que, necessariamente gerar uma consequência que foi antevista pelo homem, antes de realizar a ação. É por isso que “Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade” (HEIDEGGER, 2009a, p. 23). É assim que a meta e o objetivo da ação precisam estar fora dela, para além da própria ação. Simplesmente fazer não é mais suficiente. Realizar não é o bastante por si mesmo. Agir passa a ter sempre como propósito realizar uma finalidade, provocar um efeito presumido. É que se nada 141

mais se determina por si ou tem fim em si próprio, significa que desaparece da existência o caráter de inutilidade e de suficiência não somente de toda e qualquer coisa, como também de todo e qualquer fazer (ação). É o utilitarismo que se torna a orientação maior da natureza de tudo. Que o trabalho que a ação seja sem esperança, isto é, lassa, entediada, também desesperada e por tudo isso insuportável, quer dizer: esperava-se algo mais que o próprio trabalho, que a própria ação; esperava-se algo fora, para além da ação. A ação, assim, torna-se sem esperança (lassa, entediada, desesperada e insuportável), porque ela não está, não é centrada, não é interessada nela própria, mas em agindo ou fazendo está-se ou é ou é-se voltado para algo que não constitui a ação mesma (seria. p. ex., a recompensa, a gratificação, ou a redenção, salvação) e que, no entanto, nunca se consuma, nunca se realiza, pois a protelação ou o adiamento são infinitos e, por isso, desilude-se, desencanta-se (esmorecimento, desistência, desinteresse) da ação, da atividade (FOGEL, 2010, p. 89).

Na ação técnica, o efeito, isto é, a produção de certa consequência, passa a ser a medida, a régua, o parâmetro de toda e qualquer ação. Isso quer dizer que o agir é sempre avaliado do mesmo modo. Quando se alcança os fins previamente determinados, a ação é válida, caso contrário, é preciso refazer a ação até que se produza o efeito pretendido. E o homem, como agente responsável por essa ação, é justamente quem decide qual será o fim, o para quê de cada ação que realiza. A medida está fora da própria ação e é determinada pelo homem. Na era da técnica, essa decisão é marcada pela hybris. Isso porque o homem projeta o objetivo de seu agir sempre na perspectiva de sua vontade de dominação e controle da natureza, ou seja, ele atua em total descompasso e desmesura com a existência e acaba atropelando, com ânsia de controle, tudo aquilo que se realiza. O triunfo, isto é, a dominação, da máquina corresponde ao triunfo ou à dominação dessa estrutura de remetimento para fora e para além que, uma vez vigindo desde o triunfo, passa a operar como o infinito e o ilimitado do remetimento e, então, com isso, entra no “peito”, na vida, a corrida, a pressa, a sanha – a ânsia, a cobiça, a sofreguidão. É esta a força de instauração e de promoção do instrumentalismo e respectivamente do funcionalismo, os quais são os caracteres marcantes da instância

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de triunfo e de dominação da máquina e que decidem pelo modo de ser em concreto da estrutura de infinito remetimento para fora e para além (FOGEL, 1998a, p. 96).

Pois, para Heidegger, ainda não se pensou decididamente, e num horizonte diferente do funcionalista e instrumental, a Essência do agir. Superar a dominação do destino da técnica e sua visão utilitária do agir passa por rever a ação como produção de efeitos previstos e projetados pelo homem. Em Sobre o humanismo (1947), o filósofo explica que a ação não deve ser compreendida como sendo a produção de um resultado, cuja efetividade é medida pela utilidade. Ganhar a medida da ação técnica passa, necessariamente, pela compreensão de que a Essência do agir está em con-sumar, isto é, seguir a orientação do que se efetiva para deixar a “coisa cheia de si mesma”, ou seja, completa. É seguir o vigor e o modo de ser essencial que a “coisa” é, conduzindo-a até onde ela deve ir para ser aquilo que é. A ação consiste em levar adiante, conduzir em frente, realizar desde o parâmetro da própria “coisa”, a partir de seu vigor particular, aquilo que se manifesta para nós. É exatamente porque a ação humana não é a responsável pela realização, mas “apenas” leva adiante o que se apresenta de um certo modo para nós, que só pode ser consumado aquilo que, de alguma maneira, já é, isto é, que já vigora de uma certa maneira. Quando age, o homem não produz nem efetua nada, mas sim impulsiona, faz eco daquilo que já se revelou em uma certa perspectiva ou interesse que o atravessou. A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude, producere. Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser (HEIDEGGER, 2009a, p. 23-24).

Desse modo, é o Ser que é responsável por tudo aquilo que é. Existindo, o homem reporta-se ao Ser se essencializando como aquele que, na verdade, conduz o que se presentifica à sua consumação, à sua locupletação. Nesse modo de agir, em vez de sujeito responsável pelo real, o homem é aquele que apenas escuta e obedece a vigência do que se desencobre, para levá-la à completude, para devolver ao Ser aquilo que 143

lhe foi entregue pelo próprio Ser. Nesse sentido, consumar é levar o que se efetiva, de uma determinada maneira, ao seu limite. O limite é a satisfação, a perfeição do que se presentifica. Perfeito não deve ser compreendido como algo sem defeito, perfeito vem do verbo per-fazer, ou seja, é aquilo no que foi feito tudo o que havia por se fazer, tudo o que havia para ser feito. Perfeito é a característica daquilo que foi concluído, inteirado, levado à íntegra, completado, enchido todo, conduzido ao limite. Limite, então, não significa alguma falta ou carência; pelo contrário, limite é perfeição, é o lugar onde se é pleno, cheio, completo de si mesmo. Toda ação que é compassada e sincronizada com o vigor daquilo que se realiza é, de alguma forma, uma guarda de limite. O agir que leva as “coisas” até o limite, conduz o ente até onde se poderia ir, até sua máxima realização. Sendo assim, quem conhece o limite, conhece e experiencia a totalidade, conhece tudo o que havia para ser conhecido, vê fronteira, visualiza a borda, que é exatamente onde se define e se determina, isto é, se decide realidade. Na guarda de limite vida não guarda e não assegura coisa nenhuma, mas tão-só a dimensão instauradora de todo o viver nas vicissitudes de diferenciação de seu próprio e incontornável e intransponível interesse: o limite. Assim, no pudor e desde pudor, vida se faz guarda e resguarda do mistério, da “grande alegria”. Na guarda e no resguardo do mistério, vida se concretiza como salvaguarda de liberdade na ação, na atividade de puro singelo, que é movimento do fazer-se de vida – a lida do viver ou as instigações do espírito (FOGEL, 1998a, p. 122).

Guardar limite não é garantir algo, não é contar antecipadamente com alguma coisa. É tão-só respeitar o modo próprio de ser do que se presentifica, é saber ouvir e escutar, e assim, reconhecer o limite, saber até onde se pode e se deve ir. É guardar a perspectiva, o interesse, o vigor desde o qual o que é se manifesta. Uma atitude completamente diferente da ação técnica, na qual a medida da ação está numa finalidade determinada pelo próprio homem. Para superar o horizonte técnico e ganhar a medida de sua ação é preciso um novo gesto de espírito, faz-se necessário se envergonhar de querer mais do que a vida efetivamente pode nos dar. A vergonha, que recupera a medida do limite em fazendo de pudor o ritmo, o pulso, o coração de vida – esta vergonha é, sim,

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a esperança da era da civilização técnica, do tecnicismo e da tecnocracia que se instauram desde a vigência da tecnologia. E é também a espera do homem que se empenha por pensar e compreender, para assim lançar e projetar sua vida, esta mesma era – nosso tempo, nossa hora. Esta espera, como ação ou técnica do pensar, é a tarefa de quem responde por si respondendo pelo tempo, pela hora que lhe foi dada por cumprir como precisando ser sua. Nossa liberdade está nesta espera – na conquista desta espera. Só a tecnologia, na marcha de locupletação que define seu próprio modo e necessário percurso, me devolve a identidade que é a minha (FOGEL, 1998a, p. 128).

Pudor aqui quer dizer cuidado, significa abandono de uma tonalidade afetiva calcada no agigantamento de dominação e controle para se colocar na dimensão de transcendência da própria “coisa”. É a compreensão e o reconhecimento de que é preciso retroceder, recuar e desfazer a presunção e arrogância de achar que toda e qualquer realização de realidade é um instrumento para a vontade humana. No pudor se ganha a percepção de que é preciso parar para meditar, esperar, querer apenas o que se pode querer. Mesmo no império da dominação técnica, ainda nos é possível conquistar a medida de uma ação que resguarda o modo próprio de ser das “coisas”. Nesse outro encaminhamento, o homem retorna a sua Essência como lugar de efetivação de real e guarda de limite. Para que isso se efetive, não é preciso que o homem deixe de utilizar os aparelhos e equipamentos técnicos. Não é necessário que se volte à era pré-industrial, condenando as máquinas e abandonando seu uso. Isso não somente não teria nenhuma serventia, como também não nos seria possível. O solo de um novo enraizamento, quer dizer, de um retorno ao enraizamento que é o próprio homem passa, na verdade, por um outro caminho. Podemos utilizar os objectos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objectos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen) (HEIDEGGER, s/d. a, p. 23-24).

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Mesmo numa época em que a crescente hegemonia e valorização da tecnologia são cada vez mais visíveis, se manifestando em todas as esferas da experiência contemporânea, é possível manter-se numa disposição na qual dizemos ao mesmo tempo um sim e um não para o mundo técnico. Pode-se dizer um sim à utilização dos dispositivos tecnológicos, mas torna-se fundamental dizer um não para o apelo, para a sedução e a capacidade que a tecnologia tem de se apresentar como algo absoluto e, assim, nos desviar do fundamento que nós mesmos somos. O homem é a locanda do Ser e, como tal, precisa reconhecer a técnica moderna como sendo apenas mais uma das possibilidades de desencobrimento, e não a única ou a mais adequada, correta e segura. Heidegger chama essa disposição que diz um sim e não simultâneos de serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen). Nesta atitude já não vemos as coisas apenas do ponto de vista da técnica. Tornamo-nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a utilização de máquinas exigem de nós, na realidade, uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem-sentido (sinn-los) (HEIDEGGER, s/d. a, p. 24).

Serenidade para com as coisas significa visualizar que o modo de desencobrimento tecnocientífico é apenas uma das formas de desvelamento de mundo. É enxergar que o destino da técnica moderna representa não algo de simplesmente neutro e isento, mas que possui um sentido, uma textura ontológica que produz História. Ao se perceber que é desde a composição que a tecnologia engendra homem e mundo como sujeito e objeto, retira-se a naturalidade e obviedade do modo técnico de realização de real para se ganhar a compreensão de que a existência é, e pode ser, muito mais rica do que isso. Isso porque a vida é sempre, e a cada vez, um nascimento; é o aparecer, isto é, o acontecimento gratuito que desvela e revela os entes, ao mesmo tempo em que encobre, a força que a realiza. Esse abrir-se ou dar-se de existência é sempre mais fértil e fecundo do que qualquer que seja a sua determinação. Sendo assim, a técnica precisa ganhar seu limite desde o ressoar e o pulsar dessa determinação fundamental que é a vida. Ir às coisas serenamente é justamente o modo de ser que guarda o limite que cada manifestação do real desde sempre já é. Nesse encaminhamento, o que conduz e orienta limite não é a vontade do homem, mas é o próprio modo de ser do que se manifesta.

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Isso quer dizer que a técnica, a “téchne”, na volubilidade ou na flutuação de suas possibilidades, o que perfaz a dinâmica de sua concretização diferenciadora desde a variável dos possíveis projetos de ser, mede-se, assim ganhando essa medida, com o sentido orientador ou diretor de vida (a determinação e a fundação arcaico-originária desta), que é limite, isto é, a guarda e o resguardo de limite como cuidado e zelo pelo lugar da identidade e da liberdade do homem. Toda técnica, toda “téchne” é e precisa ser sempre, ao mesmo tempo, a realização e a salvaguarda da essência, isto é, a gênese de homem (FOGEL, 1998a, p. 127-128).

Desse modo, a técnica moderna, como modo de desencobrimento, também pode ser um caminho para um novo tipo de enraizamento do homem. Como abertura que desvela o real desde composição, a tecnologia também pode ser um caminho para a compreensão daquilo que, ontologicamente, é sempre anterior a qualquer que seja o desencobrimento. Desde o que está dado e nos é legado pelo destino da técnica, é possível compreender a dinâmica de realidade, isto é, o sem motivo e sem razão, a gratuidade e a espontaneidade do que se presentifica. Em outras palavras: o mistério de sua realização. Porém – a serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério nunca nos caem do céu. Não são fruto do acaso (nichts Zu-fälliges). Ambas medram apenas de um pensamento determinado e ininterrupto (HEIDEGGER, s/d. a, p. 26).

O modo de funcionamento desse pensamento foi explicitado em 3.1. O pensamento do sentido é um pensar/agir que conquista a medida da ação técnica e prepara terreno para a superação dos valores metafísicos. O ultrapassamento da metafísica nos abre a dimensão da existência como clareira do Ser, como veremos no terceiro e último tópico deste capítulo.

3.3 A superação da metafísica Tecnologia e metafísica dizem o mesmo. Com isso não se quer afirmar que esses dois modos de existência são exatamente a mesma coisa, mas que, essencialmente, eles têm a mesma origem, são fruto 147

do mesmo encaminhamento. No destino da era da técnica, o modo de desencobrimento toma o Ser como ente, já que não o pensa em sua Essência desveladora. Por isso, com a expressão “esquecimento do Ser”, Heidegger não quer apontar simplesmente para uma falta de lembrança eventual, ou para o descuido de um homem particular, mas para uma omissão constitutiva. É que a metafísica não pensa, não se ocupa do próprio Ser, porque fundamentalmente o considera como algo de evidente por si mesmo. No desenvolvimento da história da filosofia, pelo caminho da pergunta pelo ente, aquilo que perdura, que permanece e que permite com que todas as “coisas” sejam, foi identificado como sendo a objetividade. Por isso, desde o envio tecnometafísico, o irromper e florescer do que se desencobre é negligenciado em favor do ente. A estratégia permitiu que o homem, antes mesmo de conhecer, já se assegurasse de que a sua representação daria conta de determinar o fundamento último de todas as coisas. Em que medida isso surge da metafísica moderna? À medida que se pensa a entidade dos entes enquanto a vigência para a re-presentação asseguradora. Entidade é agora objetividade. A questão da objetividade, da possibilidade de oposição (a saber, do re-presentar que assegura e calcula) é a questão da possibilidade de conhecer (HEIDEGGER, 2010c, p. 64).

Determinar o fundamento último de todas as coisas, por meio do que se presentifica objetivamente para a representação asseguradora do homem, significa ter em mãos o fiel da balança da verdade. Na metafísica, é o homem quem diz o que é a verdade, associando-a ao que é certo e seguro. É ele quem tem o poder de delimitar e separar o que existe do que simplesmente não existe e não há. É nesse sentido que a tecnociência não é nada de novo, mas é uma modulação de um mesmo envio: na atualidade, ela não somente decide o que é a realidade e qual é o seu modo de organização e funcionamento, como também é capaz e tem o direito de mover esforços para melhorar e substituir o mundo em que vivemos. A técnica moderna, que hoje é tecnologia, pode, assim, ser compreendida como uma espécie de acabamento, como o ápice do projeto metafísico. “Fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supremas” (HEIDEGGER, 2009b, p. 67). E “O acabamento dura mais do que a história da metafísica transcorrida até aqui” (HEIDEGGER, 2010c, p. 61). O fim é, desse modo, não uma espécie de não-mais-ser, mas justamente o contrário: tecnologia é o 148

fim porque é a hora e o lugar que reúne o todo da história da metafísica, em sua extrema possibilidade. A era da metafísica acabada encontra-se em seu início. Apenas para assegurar a si mesma, de modo contínuo e incondicional, a vontade de querer obriga para si mesma o cálculo e a institucionalização de tudo como formas fundamentais de manifestação. Pode-se chamar, numa única palavra, de “técnica” a forma fundamental de manifestação em que a vontade de querer se institucionaliza e calcula no mundo não-histórico da metafísica acabada (HEIDEGGER, 2010c, p. 68).

A inclinação para a tecnologia, como acabamento da metafísica, é a operatividade da vontade de querer, isto é, da subjetividade moderna. Vontade de querer é o autoasseguramento de si mesmo para, a partir dessa certeza, poder determinar de maneira definitiva toda a realidade como objetividade, isto é, como aquilo que é sempre o mesmo e que se opõe ao homem. É um desejo que se baliza e se pauta pelo modo moderno de compreensão e organização de homem e do mundo a partir de substâncias plenamente apreensíveis e determináveis. É por isso que no trecho acima, Heidegger afirma que a vontade de querer “calcula no mundo não-histórico da metafísica acabada”. Se a essência do mundo são as substâncias, ele é desde sempre o mesmo, já que pré-existe e subsiste a qualquer que seja o contexto e situação; assim, não faz parte da história, não se efetiva, a cada vez, na dinâmica do suceder-se e acontecer históricos, mas é algo desde sempre dado. É nesse horizonte que a técnica transforma a realidade em conjunto de “coisas disponíveis”. A orientação tecnocientífica segue esse modo de funcionamento, no qual a verdade é a correspondência do juízo do sujeito à coisa, e seu lugar de verificação é a proposição. O Ser é esquecido, abandonado em favor justamente da possibilidade de asseguramento e apoderamento da natureza. Toda e qualquer experiência de Essência, de gênese ou de origem não tem mais a menor importância ou mesmo validade quando o parâmetro, que entra definitivamente no destino do Ser, é a previsão e a pré-determinação humana do que se realiza. Verdade aqui passa a ser simplesmente um caminho para controle e domínio de real. A falta da indigência consiste justamente em achar que se tem na garra o real e a realidade, e que se sabe o que é o verdadeiro, sem que se necessite saber onde vigora a essência da verdade (HEIDEGGER, 2010c, p. 79).

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Falta de indigência aqui quer apontar justamente para soberba, quer indicar um modo de ser que se acha no direito de querer mais do que vida pode ser. A metafísica e a tecnologia querem o que não têm o direito de querer, visto que a natureza do homem é finitude, contenção e limite, isto é, homem constitui-se como um ser que é e que precisa assumir sua indigência. Isso porque o homem não é previamente e antecipadamente nada. Nem razão, nem emoção, não é corpo, nem espírito, não é consciência nem sensibilidade. Antes e além da experiência, de uma existência fática, o homem não é absolutamente nada. É por isso que Heidegger afirma que a Essência do ser humano é sua ec-sistência. Isso quer dizer que o que é o mais profundo, o mais fundamental e indispensável da natureza humana é aquilo que reside mais fora, o mais externo e superficial: a textura e as vicissitudes de uma lida, uma atividade, um por se fazer. Nesse sentido, nada está garantido por antecipação. A morada do ser humano, aquilo que ele tem de mais próprio, é apenas uma forma, a possibilidade de vir a ser tomado e tocado por um interesse, por um verbo que realiza a existência; homem é tão-somente a possibilidade para qualquer que seja a possibilidade realizável. É desse modo que não é o corredor, por exemplo, que, como corredor, realiza a ação de correr, porque é primeiramente e antes da experiência um atleta. Ser atleta, corredor, não é algo do já previamente conquistado. O corredor só é corredor à medida e à proporção que corre. E isso vale para qualquer outra possibilidade da existência. Homem se hominiza, vem a ser aquilo que ele é, quer dizer, a possibilidade que ele é, desde que se realize numa atividade possível. O carteiro somente é carteiro à medida que entrega cartas. O escritor se faz escritor em escrevendo. São as obras, os romances publicados que fazem o escritor, ou seja, não é ele que faz a obra, mas justamente o contrário: é a obra, em se fazendo obra, que o faz, que o efetiva numa possibilidade: escritor. Dessa maneira, para Heidegger, não há nada mais próprio no homem do que a necessidade de precisar fazer-se. Essa é sua Essência. O homem é o ente que não é absolutamente nada, e que, por isso mesmo, precisa vir a ser. Como é um poder-ser por fazer, o homem deve pôr-se em ação, em uma lida própria. Só que, ao invés de celebrar e acolher essa condição, na atualidade, a tecnologia se apresenta como uma decisão do homem que traz a oportunidade e ocasião de preencher a falta, a carência e a deficiência (o a se fazer) que ele é. No destino tecnometafísico, em vez de lugar de realização de real, locanda e referência do Ser, homem é sujeito cuja substância pré-existe e sub-siste à experiência. Esta última, por sua vez, é simplesmente o resultado de um efeito produzido por ele. 150

A disposição desde a vontade de vontade, ou vontade rebelada, quer mais do que vida pode dar, porque acredita que vida é menos do que deveria ser. É o querer do “bípede ingrato” (Dostoiévski), que, em vez de querer e aquiescer com o possível, mira no impossível, no irrealizável, sonhando com a perpetuação do sétimo dia sobre a Terra – quando não mais se precisará realizar qualquer tipo de esforço – e acordando com uma eterna insatisfação, insuficiência e ansiedade. O homem, o ente que é por natureza atividade, esforço, quer ser dispensado da lida, quer o que não pode querer: quer ser dispensado de ser homem, quer manipular e alterar aquilo que é sua própria condição. Nesse encaminhamento, o homem somente age no intuito de não precisar mais agir. Nenhuma ação tem a leveza da gratuidade e do sem por quê nem para quê, pois passa a ser sempre apenas um meio para se atingir um determinado fim. Nesse sentido, a ação da tecnologia desde a subjetividade da provocação coloca a meta da ação sempre para fora disso que é feito e como é feito. Não pode haver nenhuma entrega ao se fazer, mas toda realização do real deve obedecer às necessidades que se encontram em uma dimensão distinta do próprio fazer. Essa dimensão é a vontade de produzir um efeito pré-determinado, isto é, a meta da ação está em querer o impossível. A terra, porém, permanece abrigada na lei inaparente de seu possível. A vontade impinge o impossível como meta do possível. O apoderamento que instaura essa exigência e a mantém em vigor provém da essência da técnica, palavra aqui idêntica ao conceito da metafísica em sua superação. A uniformidade incondicionada de todos os povos da terra sob a dominação da vontade de querer evidencia a insensatez da ação humana colocada como absoluto (HEIDEGGER, 2010c, p. 86).

No vigor da técnica moderna, um novo absoluto paira sobre a Terra. Desde o que foi pré-concebido e arquitetado pela vontade de querer, a ação humana transformou-se em algo incondicionado, isto é, apresenta-se como a força capaz de, qualquer que seja a situação e o contexto, ser a fonte absoluta, a verdadeira origem para a efetivação de tudo aquilo que se presentifica. No acabamento da metafísica, o esquecimento do Ser atinge seu grau máximo e, assim, a ação, orientada pela vontade humana de infinito, substitui o mistério do imponderável como causa de toda presentificação. A ação humana, como absoluto, é compreendida como atividade capaz de levar a cabo o projeto de realizar o irrealizável: cumprir com todos os desígnios e estultícias da vontade de querer. 151

Essa vontade quer exatamente o que não é possível, aquilo que não se pode querer. O problema, e a limitação desse projeto, é que vida é um jogo (uma dinâmica) no qual sempre vai haver alguma dimensão de insegurança ou incerteza, e em que não há sucesso e conquista definitivos. Nem todo o real cabe na concepção tecnometafísica do mundo e, assim, muitas outras possibilidades de realização da realidade ficam de fora. O jeito, então, é lidar com o mundo da forma como ele é. É claro que se homem é esforço, a ação da tecnologia não dá conta de cumprir com o que a metafísica um dia pretendeu: controlar e corrigir o real. Só que em vez de reconhecer o erro, naquilo que fundamenta essa vontade, o homem acredita que não há nenhuma falha de projeto, mas apenas alguns erros de execução que podem, e precisam, ser solucionados. Por isso, quer cada vez mais tecnologia, na esperança de que um dia seu esforço seja reduzido a zero. A lei inaparente da terra a resguarda na suficiência sóbria do nascer e perecer de todas as coisas, no círculo comedido do possível a que tudo segue e ninguém conhece. A bétula nunca ultrapassa o seu possível. As abelhas moram no seu possível. Só a vontade que, a toda parte, se instala na técnica, esgota a terra até a exaustão, o abuso e a mutação do artificial. A técnica obriga a terra a romper o círculo maduro de sua possibilidade para chegar ao que já não é nem possível e, portanto, nem mesmo impossível. As pretensões e os dispositivos técnicos possibilitaram o êxito de muitas descobertas e inovações. Mas isso não prova, de modo algum, que as conquistas da técnica tenham tornado possível até mesmo o impossível (HEIDEGGER, 2010c, p. 85).

É por isso que, no início deste capítulo dissemos que é preciso e urgente que se queira de uma outra maneira, desde uma outra vontade. Querer fora da vontade de querer – que quer a qualquer custo o impossível – não significa querer de menos. É preciso acolher e querer o limite. Reconhecer limite é reconhecer que a vontade de querer é descabida e atua em total descompasso com o modo de realização de realidade. Quem reconhece o limite passa a querer o possível. O que está aqui sendo tratado por possível ao homem não é nem deve ser encarado como algo do âmbito da contingência ou da ordem da eventualidade. Isso quer dizer que não se trata de uma questão de poder, ou não, ser. O possível não é da esfera da escolha do ser humano, e sim da necessidade e urgência, do que é inadiável e essencial. Aquilo que “pode” ser deve ser tomado e assumido pela vontade como algo da dimensão do que é absolutamente necessário. 152

Em se cumprindo esse outro querer, executa-se o primeiro e decisivo passo para o caminho da superação da metafísica. Em pouquíssimas palavras, superar a metafísica é, sobretudo, reconhecê-la como tal. É desnaturalizar o que não tem nada de óbvio; é visualizar o esquema da linearidade causa-efeito retirando sua carga e conotação de algo evidente por si mesmo. A metafísica não se desfaz como se desfaz uma opinião. Não se pode deixá-la para trás como se faz com uma doutrina em que não mais se acredita ou defende. [...] Sendo assim, não devemos imaginar, com base num pressentimento qualquer, que podemos ficar fora da metafísica. Depois da superação, a metafísica não desaparece. Retorna transformada e permanece no poder como a diferença ainda vigente entre ser e ente. Crepúsculo da verdade dos entes diz: a abertura manifestativa dos entes e somente deles perde a exclusividade de sua reivindicação determinante (HEIDEGGER, 2010c, p. 61-62).

O que Heidegger quer apontar é que superar a metafísica não é negar a sua existência. Não dá para fingir que ela nunca existiu ou que ela pode deixar de existir, de um dia para o outro, desde que assim o homem o queira. Afinal, são mais de dois mil e quinhentos anos de história, que criaram um destino, um encaminhamento baseado no esquecimento do Ser e na determinação última do ente. A metafísica forjou uma certa verdade do Ser igualando-a à mesmidade da objetividade. Essa compreensão não será esquecida como se fosse apenas fruto da opinião de certos homens ou como se a sua superação estivesse no âmbito do arbítrio de algumas pessoas. E mais que isso: depois de superar a metafísica ainda nos movimentaremos dentro dela. Isso quer dizer que estamos e, mesmo depois de superá-la, estaremos dentro do destino tecnometafísico, pois ele não vai simplesmente “sumir do mapa”. A grande e radical transformação reside no fato de que, no impulso de superação da metafísica, se torna viável a lembrança do esquecimento do Ser. Quando se conquista a compreensão da diferença ontológica, isto é, de que o Ser não pode ser igualado ao ente, a composição provocadora de natureza perde a sua exclusividade na determinação do real, apesar de continuar trabalhando e operando desde o que é correto. Isso significa que ciência e tecnologia continuam produzindo as suas sentenças e interpretações do modo de funcionamento de vida. Se superada, a metafísica perde “apenas” o monopólio da determinação da verdade de todos os entes, mas, ao mesmo tempo, continua com o poder de produzir realidade desde a diferença entre Ser e ente. 153

Com isso se quer dizer que não é porque se pode conquistar a medida da determinação técnica do mundo, isto é, se pode visualizar que nem toda realidade cabe nessa forma de desencobrimento, que ela vai deixar de existir para dar lugar a uma preocupação exclusiva com o Ser. Superar a metafísica não é negar a entificação promovida por ela para voltar-se apenas para a força de realização do real. Ocupar-se somente com o Ser seria simplesmente inverter a orientação metafísica. E metafísica invertida continua sendo metafísica, e não a superação dela. Por isso, além de não ser de nenhum proveito, um movimento simplesmente contrário ao envio metafísico permanece pertencendo a ele. É por isso que é preciso explicitar melhor o que superar a metafísica significa, para se evitar qualquer tipo de mal-entendido. A superação da metafísica é pensada na dimensão da história do ser. Ela prenuncia a sustentação originária do esquecimento do ser. Mais antigo embora também mais escondido do que o prenúncio é o que nele se anuncia. Trata-se do acontecimento do próprio. O que, do modo de pensar da metafísica, aparece como prenúncio de uma outra coisa, chega e toca como o brilho derradeiro de uma clareira mais originária. A superação permanece digna de ser pensada somente enquanto se pensa a sustentação. Esse pensamento insistente ainda pensa a superação. Tal pensamento faz a experiência do acontecimento singular da des-apropriação dos entes, em que se iluminam a indigência da verdade do ser e a originariedade da verdade, e também transluz com desprendimento o vigor essencial do humano. A superação é a trans-missão da metafísica em sua verdade (HEIDEGGER, 2010c, p. 68).

A superação da metafísica, então, não tem nada a ver com a retirada de uma disciplina dos currículos dos cursos de filosofia. Não significa que certo conhecimento tenha ficado obsoleto e, por isso, não deve mais ser objeto de estudo nas universidades. Ao contrário, superar a metafísica quer dizer estudá-la e conhecê-la a fundo, significa voltar-se para a metafísica com o intuito de tentar compreender de onde vem esse acontecimento apropriador em que o Ser se sustenta como objetividade; quer dizer tentar desconstruí-lo na tentativa de compreender o que ele pretende cumprir. Nesse esforço, a superação da metafísica passa, necessariamente, pelo pensamento do sentido da história do Ser. É desde essa história que se pode ganhar a real dimensão que esse envio faz parte do destinar-se do Ser, isto é, que a metafísica é uma figura, uma forma da 154

verdade do Ser, cristalizada em anos de tradição e que precisa ser posta em crise, pois não representa a determinação “natural” da realidade. O pensamento do sentido da metafísica pode promover a experiência de desnaturalização do modo habitual de entificação do real, permitindo que o homem reconheça o brilho da clareira originária, vigente numa outra dimensão da existência. Desse modo, a superação da metafísica não é a negação dessa forma de desencobrimento, não significa que nunca mais se vai “perder tempo” com ela ou que o pensamento deva deixar de se ocupar de metafísica. Ao contrário, a superação passa pela transmissão da metafísica em sua verdade, isto é, como e na forma de um desencobrimento particular; é o reconhecimento e a promoção/ vulgarização de metafísica como um dar-se e acontecer que se apropria, de maneira velada e decisiva, do esquecimento do Ser. O pensamento supera a metafísica, enquanto, re-gressando, desce à proximidade do próximo. Descer, principalmente, quando o homem se perdeu nas alturas da subjetividade, é mais difícil e perigoso do que alçar-se. A descida leva à pobreza da ec-sistência do homo humanus. Na ec-sistência abandona-se o âmbito do homo animalis da metafísica. O império e predomínio desse âmbito é o fundamento mediato e profundo (weitzurü) da obliteração e da arbitrariedade do que se designa como biologismo, mas também do que se conhece pelo título pragmatismo (HEIDEGGER, 2009a, p. 82).

É claro que não é fácil sair dessa estrutura na qual o homem se encarcerou. Livrar-se da camisa de força da subjetividade significa abrir mão do conforto e da segurança habituais, e quer dizer lançar-se numa outra perspectiva, projetar-se em uma outra direção, isto é, abrir-se para o novo. Tudo isso implica riscos e, para que se realize, precisa haver uma total entrega à condição humana, à ec-sistência. Para realmente descer à proximidade do próximo, é preciso renunciar ao biologismo, no qual o homem é animal racional, e ao pragmatismo, em que verdadeiro é tudo aquilo que funciona e serve para alguma coisa, e isso somente pode ser viável se for resultado de uma de-cisão. Decidir é uma ação que realiza sempre uma cisão, ou seja, é, de alguma forma, uma atividade que desune e separa. Trata-se de uma distinção que resulta na saída da situação confortável na qual já se tem tudo consolidado, certo e seguro; de onde se tem clareza e distinção de tudo aquilo que é e se realiza. Superar a metafísica é abandonar a ga155

rantia do já sabido, do conquistado e conformado desde uma natureza já dominada, onde tudo parece funcionar por si mesmo. Para que essa decisão realize uma outra possibilidade de existência, é preciso se deixar ir com ela, isto é, faz-se necessária uma entrega a essa orientação/ disposição particular. Na decisão é preciso estar à espera do inesperado, na escuta ao modo próprio de ser das “coisas”. É preciso ater-se a uma nova lida com o mundo, adequar-se, pôr-se, oportunamente, na mesma cadência do dar-se, do acontecer de realidade. Dessa forma, superar a metafísica não é negá-la, mas conquistar a sua força geradora. É transportar-se para uma outra dimensão, isto é, um outro estado de tensão vital, um estado de alerta, mais aceso, mais vivo e menos “certo e seguro”. Estar aceso e vivo aqui não tem nada a ver com estar super consciente. Não significa fazer bom uso das faculdades da razão e do entendimento. Aceso e vivo quer dizer estar fora da distração na qual o homem automaticamente pré-compreende e pré-determina toda a realidade desde si mesmo. E a facilidade dessa estrutura calcada na subjetividade é justamente a oportunidade e a ocasião perfeita para a promoção de uma relação do homem completamente descompassada com o jogo do aparecer e dar-se de vida. Só que a decisão não é uma deliberação da vontade; não é o resultado do arbítrio do homem. A decisão que efetivamente se lança numa outra perspectiva e que realiza uma nova orientação não é uma escolha, mas uma obediência. Decidir aqui significa atender a um outro chamado; acatar uma convocação distinta, isto é, de uma outra natureza. Esse chamado constitui-se como uma espécie de indicação ou sinal do destino. Em vez de livre opção, como se fosse a escolha de qual roupa se vai vestir, decisão é o movimento de liberação, ou seja, é a libertação de uma outra possibilidade de vida, de um outro poder ser e precisar fazer. Liberação porque esse outro encaminhamento nunca é determinado desde a vontade do homem, mas, antes, trata-se de uma destinação possível do próprio Ser. É como se o homem simplesmente despertasse, nascesse para um outro destino, acordasse para uma nova possibilidade que, por sua vez, já se encontrava na história do Ser. A superação da metafísica é esse despertar, o nascimento do homem para um outro destino do Ser. É a lembrança do esquecimento e o atendimento a um outro chamado; é a obediência a um outro encaminhamento e destinação. Desse modo, a ultrapassagem da metafísica exige um estado de atenção não em si mesmo, mas na “própria coisa”. Esse esforço não se consuma da noite para o dia, pois a metafísica é um modo de ser que se manifesta em todas as esferas da experiência contemporânea e cuja utilidade é inquestionável. 156

O acabamento da metafísica, que constitui o fundamento do modo planetário de pensar, fornece a armação para uma ordem da terra, provavelmente bastante duradoura. Esta ordem já não mais precisa da filosofia porque de há muito a ela já sucumbiu. Com o fim da filosofia, porém, o pensamento não está no fim, mas na ultrapassagem para um outro começo (HEIDEGGER, 2010c, p. 72).

Fim da filosofia aqui está justamente indicando o fim da metafísica, isto é, a conquista da força de realização do modo de desencobrimento dos entes que, na representação do homem, pré-põe o real na perspectiva do apoderamento e do controle. Depois da filosofia, há de se abrir a possibilidade de um outro fundamento. É que o reconhecimento de que a existência é uma dinâmica, um movimento no qual tudo aparece e se mostra desde uma abertura do Ser, abre a possibilidade de um outro princípio de realização de real. Está aqui em jogo o livre espaço, a clareira na qual tudo o que é vem a ser. Essa clareira é o aberto; é o mistério que, apesar de se encobrir em todo desencobrimento possível, é ao mesmo tempo, responsável por tudo aquilo que se desvela, por tudo o que é. Sem a filosofia, a tarefa do pensamento é justamente reconhecer essa clareira do Ser. Impõem-se ao pensamento a tarefa de atentar para a questão que aqui é designada como clareira. Ao fazer isto, não se extraem – como facilmente poderia parecer a um observador superficial – simples representações de puras palavras, p. ex., “clareira”. Trata-se muito antes de atentar para a singularidade da questão que é nomeada, de maneira adequada à realidade, com o nome de “clareira”. O que a palavra designa no contexto agora pensado, a livre dimensão do aberto, é, para usarmos uma palavra de Goethe, um “fenômeno originário”. Melhor diríamos: uma questão originária (HEIDEGGER, 2009b, p. 76).

Clareira é, então, um termo que deve ser compreendido em sua Essência, isto é, não representa uma simples palavra, mas aponta para a livre dimensão do aberto. A clareira do Ser é a questão originária, é a pergunta pelo que é mais arcaico e fundamental na existência. Depois de superar a metafísica, a filosofia – que desde Platão foi metafísica – pode se transformar em pensamento. Nessa outra disposição ou modo de ser, o esforço de investigação se ocupa radicalmente de realidade, e, exatamente por isso, também deve se voltar para a gênese de todas as “coisas”. Isso significa que o pensamento deve se perguntar não 157

somente pelos entes e seu modo de funcionamento, como também pela origem de tudo aquilo que se realiza, isto é, precisa se debruçar sobre a força em que vigora tudo aquilo que vige e perdura. O esforço deve ser o de retirar a significação prévia de tudo o que se realiza, é perder um mundo – o mundo tecnometafísico – para ganhar mundo. O pensamento é uma atividade que põe em funcionamento um modo mais originário e inaugural de relacionamento com mundo, que se orienta desde verdade como desencobrimento (alétheia). Isso significa que verdade aqui nada tem a ver com conformação/correspondência. Não se trata de adequação da proposição do sujeito ao objeto. A alétheia não carrega nenhuma conotação desse tipo de verdade metafísica: Na medida em que se compreende verdade no sentido “natural” da tradição como concordância, posta à luz ao nível do ente, do conhecimento com o ente; mas também, na medida em que a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza do saber a respeito do ser, a alétheia, o desvelamento como clareira, não pode ser identificada à verdade. Pois a verdade mesma, assim como ser e pensar, somente pode ser o que é, no elemento da clareira. Evidência, certeza de qualquer grau, qualquer espécie de verificação veritas, movem-se já com esta no âmbito da clareira que impera (HEIDEGGER, 2009b, p. 80).

Pois, se a tarefa do pensamento é pensar o sentido de tudo que se realiza, é preciso se voltar para o âmbito da clareira que impera e que conduz desencobrimento. Nessa orientação, não se pode ter pressa, pois é preciso vagar. Demorar-se na dimensão do aberto, na tentativa de visualizar nascimento. Com o fim do monopólio metafísico da determinação do mundo como disponibilidade, o pensamento precisa expor-se ao que se presentifica, precisa atender ao chamado de um outro destino do Ser, deve obedecer a um outro envio no qual se torna possível perceber a origem, como origem. Nessa outra experiência, se tem a dimensão de que é a clareira que realiza o que se desencobre. Nossa atenção volta-se agora para outra coisa. Quer seja experimentado aquilo que se presenta, quer seja compreendido e exposto, ou não, sempre a presença, como o demorar-se dentro da dimensão do aberto, permanece dependente da clareira já imperante. Mesmo o que se ausenta não pode ser como tal, a não ser que se desdobre na livre dimensão da clareira (HEIDEGGER, 2009b, p. 78).

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Nessa disposição, se entra na dinâmica, se experiencia uma outra possibilidade de real. O que interessa continua sendo o ser das “coisas”, isto é, ainda se quer saber/compreender o que é a realidade, mas desde parâmetros que não residem na vontade de vontade. O mundo não é uma propriedade, não é o latifúndio do homem. Nesse sentido, pensamento não significa seguir o que é determinado pela lógica, mas é pôr-se uma dimensão da “coisa”: é, assim, experimentar o mistério da transcendência.

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considerações finais Este trabalho pretendeu apontar que, no envio da tecnologia, o projeto é permitir uma apropriação eficaz e automatizada do real que elimine a necessidade de esforço. Se tudo pode ser plenamente controlado, disposto e pré-posto pela subjetividade, até mesmo o homem transforma-se numa substância pronta e acabada, anterior a qualquer que seja a experiência e que também subsiste a ela. É por isso que, para Heidegger, a técnica moderna tira do homem o que ele tem de mais fundamental: sua incompletude, sua indeterminação, sua necessidade de vir a ser. Todos conhecem os feitos da produção técnica. Admiramo-nos e os admiramos. E, no entanto, ninguém sabe o que isso na verdade é. Ninguém sabe através de que o homem atual, de maneira crescente, é provocado e impulsionado para o trabalho e o empreendimento (Betriebsamkeit) sem fronteiras. O que impulsiona o homem de um modo tão poderoso não pode ser um mero feito (Gemächte) do homem. Por isso, permanece enigmático e insólito (unheimlich). Precisamente este insólito (dieses Unheimliche) é o que impera no fora de casa (no lugar de um despertencimento/ im Unheimischen) e assim

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vem ao encontro do homem e determina seu futuro. O amanhã não é tão só o amanhã que sucede ao hoje, mas ele já domina no interior do hodierno (HEIDEGGER, s/d. b, p.4).

O que se quer apontar é que, por trás de todos os equipamentos e dispositivos técnicos, existe algo que não tem absolutamente nada de técnico. A Essência da técnica não é um mero feito do homem, mas algo que vige no interior de um destino do Ser que determina o presente e o futuro do homem, tirando-o de sua casa, levando-o para longe de sua pátria. Um esclarecimento com relação ao que pátria, lar, morada, lugar de onde se vem, casa ou ainda terra-natal querem aqui dizer, precisa ser feito. Com esses termos, Heidegger não está se referindo a nada que tenha caráter político ou social. Na verdade, o autor não quer apontar para nada da ordem do que é materializável, mas pretende indicar aquilo que é a Essência do homem, seu fundamento abissal. A pátria do homem ou lugar de onde se vem é o seu fundo sem fundo. Não é nem mesmo um algo, se por algo se compreender uma coisa pronta e acabada, passível e à espera de ser descoberta. Como fundamento, a pátria possui um apelo irresistível, um chamado muito forte: o lar é justamente o lugar onde se é de maneira mais plena o que se é; é onde se fica mais à vontade. Esse lugar próprio do homem é sempre uma obra, uma ocupação, uma lida, uma tarefa: é a realização de um destino. Sendo assim, o que é mais fora do homem, o que lhe é mais impátrio, é justamente a postura de não assentir com a necessidade de ação; é a opção por não consentir com a irrevogável tarefa humana de precisar se fazer. Mesmo assim, é esse o projeto da tecnologia. Ele quer tornar possível uma nova pátria, um novo lugar de constituição do homem que signifique não precisar fazer mais nada: nem o mundo, nem a si mesmo. Por esse motivo, o impulso para o fora do lar permanece tão enigmático e insólito. A promessa da tecnologia irrompe no hoje sem que todos se deem conta e, apesar disso, toma conta do presente de maneira visceral. A associação de técnica e ciência se transformou na nova casa do homem. Uma casa imprópria; um lar que, na verdade, leva o homem para fora de sua pátria. A crítica de Heidegger quer expor as consequências da universalização dessa nova morada do homem. Esse outro lugar de constituição humano, na verdade, puxa-o para fora de si mesmo, para o sem pátria. Longe de seu fundamento, ele fica sem rumo, sem nenhum enraizamento. 162

Não só para esta cidade, não só para a nossa terra natal, não só para a Europa, mas para todos os homens da Terra surgirá a pergunta se, sob a dominação da técnica moderna e junto às transformações do mundo por ela provocadas, ainda haverá lar, lugar de onde se vem (Heimat) em algum sentido. Talvez o homem venha a fazer sua casa no não ter casa (in der Heimatlosigkeit/ talvez venha a fazer seu lugar no sem lugar). Talvez desapareça a relação com o lugar de onde se vem. Talvez desapareça da vida (“Dasein”) do homem moderno o traço do lar (do lugar de onde se vem/ den Zug zur Heimat) (HEIDEGGER, s/d. b, p.4-5).

A associação de técnica e ciência quer dominação a qualquer custo; quer nos livrar do esforço, nos tirar de casa, nos subtrair de nós mesmos. É que, para a pré-compreensão humanista greco-cristã, o esforço é culpa, expiação, tem origem no débito, no não cumprimento de obrigação. Nesse sentido, precisar se esforçar vira sinônimo de castigo, indenização, compensação de dívida. É uma falta a se pagar. O nosso ponto de partida precisa ser a consideração, segundo a qual a vida, de acordo com a compreensão habitual, em sendo esforço (i.é, ação, trabalho), é maldita (“Vais comer o pão com o suor da tua fronte”, dita e impõe a voz da transcendência absoluta ou da absoluta substância!), ou seja, vida é tal como não deveria ser. Por isso, em si, punição e expiação...! Assim sendo, esse tipo vive na espera, na expectativa de que tal esforço, tal ação (o devir, a história) deve e mesmo precisa trazer uma compensação, uma recompensa. Na verdade, a compensação, a grande recompensa ou paga pela ação, pelo esforço, deve ser a redenção da própria ação, do próprio esforço (FOGEL, 2010, p. 86-87).

O produto dessa vontade é o tédio profundo no qual mergulhou o homem contemporâneo. Quando o para fora da ação passa a operar um pouco mais claramente para nós como o inatingível ou inalcançável, vem o tédio. A ação passa a ser sem esperança, sem brio. Faz-se demais, para se distrair, ou faz-se de menos, porque não vale a pena. É que a nostalgia do lar, da qual esse homem padece, pode ser convertida tanto em maquinação quanto em inércia. Numa vida sem sentido, muitos desistem de agir, enquanto outros se distraem do tédio por meio de um fazer compulsivo, cuja finalidade é apenas fazer passar o tempo. Quando 163

ação passa a ser apenas reação à condição humana de precisar fazer, está em pleno vigor um estado de revolta e rebeldia com a vida como ela é. Essa revolta com a condição humana foi exemplarmente expressa na história de Sísifo, personagem da mitologia grega. Considerado um mestre da malícia e dos truques, ele não consentiu com seu próprio fado e natureza de mortal e ofendeu os deuses ao enganar a Morte, por duas vezes, durante sua longa vida. Sísifo morreu somente de velhice. No Tártaro, foi considerado um grande rebelde e, dessa forma, acabou condenado a passar toda a eternidade a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que, toda vez que ele chegava ao topo, a pedra rolava novamente, montanha abaixo, até o ponto de partida. Podemos interpretar o castigo de Sísifo como sendo, na verdade, uma sentença para todos os mortais, um fundamento da existência humana: estamos todos fadados a sempre reconstruir o movimento de vir a ser aquilo que somos. Para o homem, nada está garantido e, por isso, ele sempre precisa repetir o esforço e refazer a ação, pois nunca obtém direito de posse definitiva dos estágios alcançados. Aquilo que conhecemos ou realizamos não representa uma conquista, se por conquista se entender algo que já foi plenamente dominado ou que está sob total controle. É que quando o homem alcança o cume, a pedra sempre rola, mais uma vez, até o sopé da montanha; o que o força, invariavelmente, a retomar a mesma tarefa. Nessa compreensão do mito de Sísifo, a história quer nos mostrar que o domínio humano sobre o mundo é sempre inseguro, precário e provisório. É sempre um tatear no qual o que se efetiva se perde logo a seguir. Se é assim, a necessidade de refazer o que já havia sido feito é algo da própria condição humana. Este livro quis apontar que a maneira como o homem lida com esse fardo, e que as respostas que ele apresenta frente à fragilidade do conhecimento e ao débil poder que tem sobre a realidade são pontos decisivos para investigação da arché da tecnologia. No interesse em que o próprio homem é determinado previamente e, por isso, não se esforça para vir a ser, a vida fica completamente sem sentido, e sem motivação, sendo o tédio sua manifestação. O tédio profundo é essa tonalidade afetiva da era da técnica; é precisamente a dor que denuncia a ausência do lar, que indica a lacuna deixada pela recusa daquilo que é mais próprio do homem. O tédio é resultado da negação de vida enquanto ação necessária; é a marca da falta de lar, do não acolhimento de origem. Esse humor ou disposição toma o homem de assalto e se constitui como uma categoria que revela a vontade que o impulsiona cada vez mais para a tecnologia. 164

Uma vez tomado pelo tédio, o homem pode entrar em um crônico quadro de inércia. Isso porque, na ausência de uma tarefa que lhe seja própria e que dê sentido para a existência, o homem perde o ímpeto e o impulso para a ação. Nessa perspectiva, vida passa a ser uma longa espera de nada, que parece não passar nunca. O homem não realiza nada e desiste de toda e qualquer ação, porque nenhuma vale a pena, inclusive aquela que poderia fazê-lo vir a ser o que ele é. Outro sintoma do tédio que pode ser diagnosticado no homem contemporâneo é a maquinação. Nesse horizonte, vida se transforma em sôfrega ação compulsiva, um fazer frenético e descompassado com a realidade. É o fazer por fazer, cujo objetivo é ocupar o homem para fazê-lo esquecer do tédio provocado pela ausência de lar; é uma tentativa desesperada de distraí-lo. É curiosa a consanguinidade de nostalgia e maquinação. A dor causada pela ausência do lar é uma manifestação do tédio que busca olhar para trás, que procura encontrar, em algum ponto do passado, o lugar de onde se vem, enquanto que a ação compulsiva é uma forma de projeção que olha para frente, que sonha com um futuro de dominação completa sobre o real, com uma nova pátria para o homem. Esses dois modos nos quais o tédio se apresenta hoje são o resultado de uma mesma vontade infinita de infinito. No primeiro caso, deixa-se de fazer, simplesmente porque não vale mais a pena: é a derrocada completa do poder do espírito. No segundo, ao contrário, cultua-se a pura “fazeção”: é o ápice da crença no poder da consciência, a partir da qual se quer agir, o tempo inteiro, com o propósito de não mais precisar agir. É claro que as duas manifestações do tédio profundo no qual se encontra o homem não são as únicas formas possíveis de se relacionar com o real, na contemporaneidade. O que queremos apontar é que o tédio, como disposição do domínio da tecnologia, se manifesta de dois modos que se parecem opostos, mas cuja origem é o mesmo encaminhamento no qual homem se afasta cada vez mais daquilo que lhe é mais próprio. Nenhum equipamento técnico, nenhuma de suas realizações e fomentos, nenhuma imaginação superdesenvolvida, também nenhum empreendimento alucinado e ilimitado (grenzenlose Betriebsamkeit) – enfim, nada disso pode nos dar o lugar de onde se vem, um lar (Heimat), ou seja, aquilo que, no próprio cerne (Kern) de nossa existência, (unseres Daseins), nos sustenta, determina e faz crescer (HEIDEGGER, s/d. b, p.7).

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A proibição da tecnologia não seria de nenhuma valia ou utilidade na tentativa de fazer com que o homem recupere a sua morada. O que é realmente fundamental é que o homem passe a reconhecer a técnica moderna enquanto tal: é preciso que ele se aproprie da compreensão de que a tecnologia não é o único modo de desencobrimento do mundo, mas apenas um deles. É necessário que se tenha em conta que esse interesse particular não é a maneira mais originária, e nem mesmo a melhor ou mais interessante, de realização de realidade. Quando entende as características e limitações da tecnologia, enquanto perspectiva de desvelamento do mundo, o homem pode superar a metafísica e ganhar a possibilidade de reincorporar à vida a dimensão do mistério e do extraordinário. É assim que o real pode recuperar o horizonte de tudo aquilo que não se submete ao controle e asseguramento do homem. A superação do tédio profundo deve passar, então, necessariamente, por uma nova assunção do mundo pelo homem. É preciso o entendimento de que o homem não é a causa, e a realidade não é sempre um mero efeito do agir do homem como sujeito responsável pelo que se manifesta. Quando não compreende sua própria natureza, o homem se estrutura como aquele que pode dispor do mundo da maneira que quiser e, assim, iguala a existência à sua vontade. Talvez, em meio ao impulso do fora do lar, do não lugar do despertencer (Unheimischen), prepare-se um novo relacionamento para com o lar (para com o pertencer). É possível que uma festa como esta nossa possa interferir nesta preparação e assim atuar no amanhã (HEIDEGGER, s/d. b, p. 5).

A irrupção do futuro se dá numa decisão do hoje a partir do ter sido. É desde esse discernimento que se pode interferir no presente e atuar no amanhã. A era da técnica como ápice da metafísica e como promotora de desvelamento do mundo desde composição foi uma consequência da saturação da modernidade. Esse encaminhamento foi determinante na modulação do que vida significa hoje. Mas essa decisão pela técnica moderna não se tornou o modo mais importante de apropriação da realidade por um ato voluntário de uma singularidade. Esse tipo de destinação não é nada que esteja no domínio do arbítrio do homem. A decisão é sempre o resultado de um movimento que se move desde o que já está posto e proposto no presente. Logo, não é a livre escolha de alguém, e sim o contrário: o homem também é um produto desse processo. 166

O que se pretendeu apontar no decorrer deste trabalho é que, em plena época do acabamento da metafísica, pode haver um outro modo de ser; o homem pode agir a partir de uma tonalidade afetiva que não seja o tédio: nem nostalgia, nem maquinação. Essa é uma questão que precisa ser posta e cuja urgência é incontornável. Para visualizar essa outra possibilidade, é preciso investigar o que busca e como se comportam certas disposições. O desafio é liberar um modo de ser que não modula e engendra a existência somente a partir de uma de suas possibilidades; a questão essencial é não querer do mundo aquilo que não se pode querer, o que não é possível. A serenidade, a boa consciência, a ação feliz, a confiança no que está por vir – tudo isto depende, tanto nos indivíduos como no povo, de que haja uma linha separando o que é claro, alcançável com o olhar, do obscuro e impossível de ser esclarecido; que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo, uma cultura (NIETZSCHE, Segunda consideração intempestiva, §1).

No segundo capítulo, vimos que, em vez de tentar reconhecer e determinar essa linha que consegue separar o que é alcançável daquilo que é impossível de ser esclarecido, vontade de verdade e espírito de vingança dividiram a realidade em mundo de essência e mundo de aparência, com a finalidade de tornar tudo claro e absolutamente reconhecível, em última instância. A era da técnica é o ápice, o acabamento da metafísica; é fruto da mesma vontade que quer a verdade definitiva e universal e também a substituição da existência. Em vez de ajudar a esquecer tão bem quanto nos faz lembrar, a tecnologia tem o objetivo de se apresentar como uma memória pronta e à disposição da vontade e do domínio do homem: é uma lembrança de tudo sempre à mão. Essa determinação do mundo como disposição pode inviabilizar a efetivação de uma experiência originária da realidade. Não se trata de negar a tecnologia, mas de ganhar a medida da ação técnica. Para ganhar esse critério, é preciso que o homem não se deixe tomar pela má consciência. Nietzsche chama a atenção para o fato de que é preciso que o ser humano tenha a percepção do possível e que 167

saiba ganhar, mas também perder; que consiga lembrar, mas que também saiba esquecer o que precisa ser esquecido. É que nos tornamos mais ricos todas as vezes que esquecemos o feito para lembrar o movimento de realização do real, para nos dispor ao por fazer. Se o homem é o vivente capaz de ação, essa possibilidade precisa ser compreendida como uma radical necessidade. Em sendo homem, é preciso se esforçar, mas ele tende a conspirar para não assumir essa tarefa. Entretanto, em meio à atração do fora do lar, é possível, e portanto necessário, uma relação de acolhimento e celebração do limite e da necessidade de esforço. Para Nietzsche, isso se torna possível quando se toma a vida como construção na qual se procura fazer de todo foi assim um assim eu quis; assim eu quero e hei de querer. Para longe eu vos levei dessas cantigas quando vos ensinei: “A vontade é criadora.” Todo o “Foi assim” é um fragmento, um enigma, um horrendo acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis!” – Até que a vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo!” (NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, II, “Da redenção”).

Não se devem entender essas sentenças como se elas estivessem promovendo a defesa da vontade ou do arbítrio do ego. Não se quer aqui reforçar a má compreensão de que o homem é o responsável por qualquer que seja a ação. Cada ato, como gesto de real criação, é a repetição da seguinte forma: ter sido, mais o que nos advém, mais o agora. Isso é que funda uma temporalidade. Como estrutura ser-no-mundo, o homem já é sempre num sentido (ter sido), uma certa orientação, uma determinada articulação de um mundo, que se projeta para frente numa certa realização (o que nos advém), que se efetiva numa determinada presença (agora). Para ultrapassar o tédio, então, é preciso, nesse processo, atribuir um sentido próprio para a vida, numa tarefa que não significa simples distração. Esse sentido não pode ser qualquer um, não é uma livre escolha do sujeito, mas, ao contrário, é a atividade necessária e que se impõe, irreversivelmente, a cada um. Em Nietzsche, o resultado desse processo é chamado de intensificação, a efetivação do grande estilo. É fazer do meu possível o necessário: num mesmo ato e momento poder-ser e precisar-ser. O homem só é verdadeiramente livre justamente se tiver um fardo, 168

uma carga que precisa ser dele, somente dele. A ação é assim, criadora, quando é transformadora do homem. Então a missão alegra, e o peso da tarefa é algo plenamente suportável. Por essa via, cumpre-se liberdade. Essa é a solução anunciada por Zaratustra. A cura do tédio e da falta de sentido na ação reside precisamente em fazer de todo agir algo absolutamente necessário. A atividade deve ser finita, precisa ser um fazer que é bem pouco, mas que, mesmo assim, é o suficiente e, portanto, é também o necessário. O sentido do agir precisa estar na própria ação e somente nela. Começo, meio e fim se dão num único e mesmo ato. E é aí que reside a sua dificuldade. É que em todo agir, na era da técnica, a tendência é colocar a finalidade, a meta e o propósito da ação, justamente fora dela mesma. Na tecnologia, o fim da ação é não agir. Já a ação realmente plena não é uma ação gigante: pode até ser escassa, mas é algo do âmbito do possível e necessário e, por isso mesmo, é sempre cheia e completa. É um agir que se move a partir de si mesmo e que não resulta em busca sôfrega. Para isso, é preciso que não se veja, na condição humana de precisar se fazer, motivo para pavor ou rebeldia. O decisivo, nessa perspectiva do grande estilo, é que, naquilo que se faz, se faz tudo o que era possível de ser feito: é esse fazer que afirma identidade. A ação criadora vale por si, por isso, mesmo quando se acredita poder julgá-la como completamente inútil, ela precisa ser feita. Não importa qual é a avaliação que se faça desde outro interesse, que não seja o da própria ação. Assim é ouvido e obedecido-acolhido o mandamento, o princípio vital “Vem a ser o que tu és”. Essa cumulação não é o preenchimento de uma meta, de um propósito ou de uma intenção voltada para um fim pleno e fora (além) do próprio fazer, porque nada mais cabe fazer, uma vez que tudo ouvido-entendido somativa ou quantitativamente, já foi feito ou realizado. Não. Cumulação fala da satisfação (alegria) do/no encher-se toda da vida (plenificar-se) a cada passo, a cada realização finita (singular) necessária e cumprida aqui e agora. Vida tem, assim, a alegria e a satisfação no e do pouco, no e do finito. Foi feito tudo que é (era!) possível-necessário fazer. Isso é bom! Perfeito! (FOGEL, 2010, p. 162).

É preciso celebrar, satisfazer-se, saciar-se com o limite e a falta. Fazer tudo o que tinha que ser feito é, no possível, levar a tarefa ao cúmulo. Mas não a um cúmulo de quantidade, mas de intensificação, no qual se 169

conquista a clareza do que precisa ser feito. Como consequência, consumar as coisas passa a ser, desde e com elas mesmas, levá-las ao sumo. A alegria precisa se renovar passo a passo, a cada vez que cumprimos com tudo o que precisava ser feito. A cada tombo, a cada vez que se é necessário reiniciar o esforço, é preciso ter a mesma alegria que Sísifo ao chegar ao cume da montanha. É preciso abençoar a perda, a insuficiência, em toda e qualquer ação que é necessária. Como vida é ação possível, é preciso encontrar e assumir a ação inútil, mas absolutamente necessária. Uma ação comedida, compassada e escassa, mas na qual há tudo que tinha para ser feito: o pouco passa a ser a totalidade. Pensar, recordar e lembrar a origem como sendo exatamente nada, coisa nenhuma: isso dá o fundo da existência humana como doação, gratuidade, uma espécie de sem por quê nem para quê, desde nada e para nada. E a era da técnica, compreendida por Heidegger como saturação do projeto moderno de homem e mundo, é justamente a hora privilegiada para buscar a pátria, para se regressar ao lar, pois é nesse momento em que a vontade de vontade se vê exaurida. A recuperação do pátrio é a recordação do lugar onde se pode fincar o pé, mesmo na finitude constitutiva do homem. Esse lugar tem que ser acolhido serenamente, sem resignação, revolta ou rebeldia.

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