TELENOVELA EM MÚLTIPLAS PLATAFORMAS E CATEGORIAS FENOMENOLÓGICAS DE PEIRCE

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TELENOVELA EM MÚLTIPLAS PLATAFORMAS E CATEGORIAS FENOMENOLÓGICAS DE PEIRCE1

Ligia Maria Prezia Lemos2

Resumo: A telenovela brasileira é alvo de estudos e análises no Brasil e no exterior devido à penetração social e à especificidade narrativa que possui em nosso país. Produto da indústria cultural, a telenovela é um elemento da composição do ambiente cultural do telespectador e da própria sociedade brasileira. Atualmente, pode ser exibida e reapresentada na TV aberta, reprisada na TV paga, acessada via dispositivos móveis, pode possuir um site “oficial”, um ou diversos blogs, estar nas redes sociais como Twitter, Youtube, Instagram ou Facebook, surgir resumida e legendada no interior de ônibus e metrôs de muitas cidades, sem mencionar sua presença maciça em revistas, jornais e demais canais de TV. Isso, apenas se levarmos em conta as estratégias do produtor / emissor / criador, pois vivenciamos um momento em que as fronteiras entre produção e recepção se esgarçam e se misturam. Atualmente, o produtor, além de oferecer todos esses meios, ainda proporciona diferentes níveis de interatividade em termos de disponibilização de jogos para diversas habilidades, quizzes, enquetes e pesquisas, sem contar os produtos de consumo ligados às tramas como livros, viagens, objetos pessoais. Um ambiente mutável, dinâmico, em que, ainda, o espectador, independentemente das propostas do produtor, tem condições de se apropriar de conteúdos e os manipular, fazendo sua própria e pessoal construção de sentidos. Atropelando, assim, as tradicionais e rígidas definições de emissor e receptor, esse espectador produz e, a partir de suas criações, são geradas recepções de recepções, infinita e indefinidamente. Tal ambiente enseja estudos inter e transdisciplinares e, neste artigo, a título de experimentação teórica, buscamos aproximar os estudos de ficção televisiva e, mais especificamente de telenovela em múltiplas plataformas, das categorias universais do signo indicadas por Charles Sanders Peirce – que propõe a semiose enquanto conceito de desenvolvimento e evolução passível de ser categorizado. Palavras-chave: Peirce, telenovela em múltiplas plataformas, transmidia, transmidiação, telenovela. Abstract: A Brazilian telenovela is the subject of studies and analyzes in Brazil and abroad due to social penetration and narrative specificity that has in our country. Product of the culture industry, the telenovela is an element of the composition of the cultural environment of the viewer and the Brazilian society. Currently, it can be displayed and resubmitted in TV, replayed Trabalho apresentado no Seminário Temático “Serialidade e Narrativa Transmídia”, durante a I Jornada Internacional GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de São Carlos. 2 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ECA - USP. Bolsista CNPq. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela, CETVN/USP e do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva, OBITEL. Mestre em Ciências da Comunicação e Especialista em Gestão da Comunicação - Políticas, Educação e Cultura também pela ECA - USP. Redatora, roteirista e arte-educadora. Emails: [email protected] e [email protected] 1

on pay TV, accessed via mobile devices, can have an "official" one or several blogs, being on social networks such as Twitter, Youtube, Instagram or Facebook, website and summarized arise subtitled inside buses and subways in many cities, not to mention its massive presence in magazines, newspapers and other TV channels. This, only if we take into account the strategies of producer / sender / creator, as we experience a time when the boundaries between production and reception fray and mingle. Currently, the producer, in addition to offering all of these facilities, yet provides different levels of interactivity in terms of availability of games for various skills, quizzes, polls and surveys, without counting consumer products linked to plots such as books, travel, personal items . A dynamic, changing environment where even the viewer, regardless of the proposals of the producer is able to appropriate and manipulate the contents, making your own personal construction of meaning. Thus trampling the traditional and rigid definitions of sender and receiver, this viewer and produces, from their creations, receptions receptions, endlessly and indefinitely are generated. Such an environment gives rise to inter-and transdisciplinary studies and, in this article, as a theoretical experiment, we seek to approach the study of television fiction and more specifically the telenovela on multiple platforms, the universal categories of the sign indicated by Charles Sanders Peirce - that proposes semiosis while the concept of development and evolution that can be categorized. Keywords: Peirce, telenovela on multiple platforms, transmedia, transmidiação, telenovela.

Notas sobre a vida e o pensamento de Peirce

Charles Sanders Peirce, cientista, matemático, historiador, lógico e filósofo nascido em 1839, em Cambridge, Massachusetts, propõe a semiose enquanto conceito de desenvolvimento e evolução, reflexões recorrentes em sua época, fértil em ideias sobre regularidades e padrões, que são sempre relações e estão em relação, ainda, com outras relações. Seu pensamento mescla ideias de Lamarque, que postulava que o que é utilizado pelo organismo se desenvolve, enquanto o não usado se atrofia (hipertrofia versus hipotrofia), com as ideias de Darwin, da sobrevivência do mais adaptado, da seleção natural. Para ele, nos processos relacionais entre seres vivos, há reforços, hábitos, experiências. Graduado em química, com louvor, pela Universidade de Harvard, Peirce vive em um ambiente intelectual muito rico, a começar por seu pai, matemático em Harvard, e convive com a elite do pensamento de então: Comte, John Dewey, Boltman em Cambridge, região de Boston. Como “lógico”, na juventude, Peirce foi discípulo de Kant, filósofo alemão iluminista, do ápice do racionalismo. Tem paixão pela lógica e pelas regularidades da natureza e pensa que é necessário compreender seus padrões, estudá-los e classificá-los para perceber o mundo, afinal, as ciências também visam regularidades, leis que regem os fenômenos. Ao capturar, representar esses padrões, é possível haver uma aproximação, também, da estética, do conceito da beleza, em que arranjos, designs, certos modos de ser, 1

participam de um universo de relações. Peirce foi, em sua vida, durante muitos anos, responsável pelo estudo da gravidade, do comprimento de ondas e de diversas outras medições pela agência “Levantamento Topográfico e Geodésico” (Geodesic Survey), que atuava em questões relativas a normas e padrões de pesos e medidas para aplicação em pesquisas empíricas. Um trabalho que o levou a realizar inúmeras viagens pelo mundo. Peirce, ao longo de seu percurso intelectual, sente limitações relacionadas a demandas práticas e, talvez, esse tenha sido o motivo de sua busca da construção de uma resposta às preocupações metafísicas fundamentais propostas por Kant e que desafiavam as questões científicas por invadirem os limites nos quais a razão se aplica, questionando a experiência empírica e, propriamente, o tratamento lógico dessa experiência. Para o filósofo, era importante determinar a fronteira entre o pensamento científico e a metafísica para alcançar o território seguro da razão, sem dogmas e sem teologia. Assim, o pensamento científico verdadeiro precisaria ser universal, sem filiações a opiniões e pensamentos dogmáticos. Daí surge a pergunta que, para Peirce, coloca um cadeado na porta da filosofia: Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Façamos um parêntese para nos deter neste ponto. Em sua lógica, Kant separa os juízos em classes:

1. Analíticos: em que o predicado, o atributo já está contido em sua definição. O juízo analítico deduz a partir de conceitos gerais como, por exemplo, “a caneta é um objeto para escrever”. 2. Sintéticos: os que atribuem uma qualidade que é contingente. O juízo sintético é empírico, fundado na experiência como, por exemplo, “esta caneta é preta”.

Os juízos também podem ser:

1. A posteriori: juízo dado após a experiência no mundo. 2. A priori: juízo que ocorre internamente ao sujeito que cria, sem precisar realizar nenhum experimento.

Assim, os juízos analíticos, porque são predicados, não ocorrem a posteriori, apenas a priori. Já os juízos sintéticos a posteriori representam tudo o que é dado no mundo. Mas como 2

são possíveis os juízos sintéticos a priori? Para Kant, isso se dá porque esses representariam formas de sínteses de predicados e atributos sem o auxílio da experiência e, dessa maneira, são juízos sintéticos a priori, por exemplo, os seres mitológicos, a criação estética, a arte, as ficções, as hipóteses científicas. A forma que a metafísica, a arte e a ciência realizam esse processo é questão fundamental da estética, domínio da faculdade da imaginação em que o múltiplo da experiência é sintetizado pelas categorias do espaço e do tempo. Somos seres dotados, portanto, de duas importantes faculdades que produzem conceitos:

1. A imaginação, ligada ao espaço e ao tempo, é a síntese do múltiplo da experiência estética; por exemplo, temporal, como a música; espacial, como a escultura; e combinada entre espaço e tempo, como o teatro. É a imaginação consolidada do artista que organiza a experiência sensível nas formas de espaço e tempo. 2. O entendimento, que envolve a cultura e os conceitos. A pergunta de Kant, que Peirce busca responder – ponte entre Aristóteles e Platão, entre Bacon e Descartes – é um reflexo da cisão do pensamento ocidental e sua proposta é, justamente, unir esses opostos. Unir as categorias a priori à impressão de sentido pela produção de conhecimento e criação artística. Surge, então, o conceito hipotético, uma certeza, um conhecimento, sujeitos à revisão, sujeitos a um processo continuado de arranjo constante, processo baseado na estética. Peirce era aluno de Kant. Mais do que aluno, era uma espécie de fã, pois era capaz até de declamar a “Crítica da Razão Pura” de cor. Mas chegou o momento em que começou a questionar o mestre e, aos 26 anos publica “The new list of categories” em que propõe as categorias universais do signo. Para ele, há três tipos de representações: Primeiro. Aquelas cuja relação aos seus objectos é uma mera comunidade nalguma qualidade, e estas representações podem ser chamadas Semelhança. Segundo. Aquelas cuja relação aos seus objectos consiste numa correspondência de facto, e estas podem ser chamadas Índices ou Signos. Terceiro. Aquelas nas quais o fundamento da relação com os seus objectos é uma característica imputada, que são o mesmo que signos gerais, e estas podem ser chamadas Símbolos (PEIRCE, 1868).

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Ou seja, a Primeiridade, original, a que é em si mesmo, independentemente de qualquer coisa. Associações livres, fruição. A Segundidade, o choque, reação, esforço. O que é em relação a outro, o que depende de um correlato; o contraste, o estado irritante, a fração de tempo em que ocorre o susto. E a Terceiridade, a regularidade, o padrão. O terceiro que nasce do choque entre os segundos. O choque é interpretado e passa a ter significação. A busca cognitiva da intervenção. Perceber algo não requer apenas ver, mas estar diante de algo que se apresenta como um todo, que deve ser apreendido através de todos os sentidos, tanto do sensorial como do cognitivo. Assim é que a filosofia peirciana entende a realidade fenomenologicamente, ou seja, o real e tudo aquilo que se exterioriza, que aparece e se coloca à experiência, por meio de três categorias denominadas de primeiridade, segundidade e terceiridade (WANNER, 2010: 29).

As três categorias, os três estados do signo, estão em contínua relação. Para Peirce, nada é a priori. Há os juízos sintéticos e os juízos analíticos, mas não a priori; tudo depende das relações, do momento, do olhar. Ele repropõe as categorias e, assim, a segundidade somada à terceiridade dá lugar à semiose. As regularidades existem independentemente do que se pensa sobre elas e, então, ele publica “A razão das coisas”. Não podemos conhecer imediatamente a verdade das relações entre as coisas, mas há entre a razão das coisas e a nossa um mesmo fundamento lógico, o princípio da causação e do contínuo, que autoriza a crença de que nossas hipóteses mais cedo ou mais tarde se conformarão com a forma que rege os processos naturais (ROMANINI, s/d: 16).

Os acasos, as reações, os padrões da natureza independem de nós. A experiência estética nasce das relações, é um processo comunicativo, participativo, semiótico, ontológico. É um processo de comunicação de significação que produz o real, independentemente de nós. Quando Peirce foi demitido da Geodesic Survey passou a viver em um ambiente hostil, sem emprego, sem trabalho. Aos 50 anos, pobre e endividado, ao lado de sua mulher, Juliette, muda-se para Milford, Pensilvânia, para uma propriedade herdada de sua tia, a qual dá o nome de Arisbe, em busca de contatos produtivos naquela que era uma área próspera. Mas esse projeto não dá certo, era homem sem espírito prático, comprava livros e mais livros, sofrendo com a pobreza, a idade, a doença. Embora Peirce tenha amadurecido como um filósofo original, jamais dominou a arte de se fazer simpático. Sempre prolífico, cada vez mais excêntrico, foi se 4

afastando mais e mais de amigos e de oportunidades de ganhar a vida. Em 1897, escreveu a James que “um mundo novo do qual eu nada sabia, e do qual ninguém que já tenha escrito algo sabe muita coisa, tem sido revelado a mim, o mundo da miséria” (CREASE, 2013).

Peirce era espírito irreverente, foi criança prodígio, teve muitas aventuras, casou-se cedo, divorciou-se, teve paixões arrebatadoras, ficou pobre, morreu em 1914, aos 74 anos, em meio a uma profusão de escritos e livros: “Peirce deixou nada menos do que 12 mil páginas publicadas e 90 mil páginas de manuscritos inéditos. Os manuscritos foram depositados na Universidade de Harvard” (SANTAELLA, 2001: 6). Estudos de ficção televisiva – Telenovela brasileira

A telenovela brasileira vem sendo alvo de estudos e análises no Brasil e no exterior desde meados do século XX devido à penetração social e à especificidade narrativa que possui em nosso país. Na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo foi criado, em 1992, o Centro de Estudos de Telenovela, CETVN, com o objetivo apoiar e desenvolver pesquisas na área de ficção televisiva promovendo e realizando seminários, cursos e outras atividades de natureza científica objetivando desenvolver e divulgar estudos que realiza individualmente ou em parceria com outros centros de pesquisa nacionais e internacionais sobre telenovela e outros formatos de ficção televisiva (minisséries, microsséries, séries, unitários, etc). Também coordena desde 2005, o projeto Obitel, Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva, rede internacional de pesquisa. O Obitel conta atualmente com investigadores de doze países da América Latina e da Península Ibérica e realiza monitoramento e análise anual da produção, audiência e repercussão sociocultural dos programas ficcionais em televisão aberta produzidos nesses países. O monitoramento abrange: produção, exibição, consumo, comercialização e o fenômeno da “transmidiação”. A incorporação desta última explicita a preocupação com o processo de observação e análise das transformações do espaço de circulação dos produtos ficcionais de televisão cada vez mais envolvidos na cultura das redes digitais. Com metodologia comum, em

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processo de aperfeiçoamento sistemático, publica resultados no Anuário Obitel, editado em português, inglês e espanhol e distribuído gratuitamente em meio impresso e digital3. E, por fim, a rede Obitel Brasil de Ficção Televisiva constituída em 2008 no Brasil a partir da experiência internacional, incorpora pesquisadores de diversas universidades brasileiras que se dedicam ao estudo da ficção televisiva e, bienalmente, publica seus resultados 4 : “Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira” (2013); “Ficção televisiva transmidiática no Brasil: plataformas, convergência, comunidades virtuais” (2011); “Ficção televisiva no Brasil: temas e perspectivas” (2009). O CETVN, o Obitel e a Rede Obitel Brasil dedicam grande parte de seu trabalho à metodologia de monitoramento, coleta e pesquisa de dados da ficção televisiva e, com esse objetivo, realiza experimentos referentes aos dados distribuídos em rede, métricas, algoritmos e visualização de resultados. Produto da indústria cultural, a telenovela é um elemento da composição do ambiente cultural do telespectador e da própria sociedade brasileira. Lopes (2009) reflete sobre a telenovela a partir de dois eixos: como narrativa da nação, incorporada à cultura e à identidade do país, e como recurso comunicativo, ou seja, espaço público de debates que gera um repertório comum, compartilhado e que vem a representar a comunidade nacional imaginada de Anderson (2008)5. O grande poder da telenovela no Brasil fez com que ela se transformasse em um objeto que se impôs imperativamente à pesquisa. Principal produto da indústria televisiva de nosso país, a telenovela, atualmente, pode ser exibida e reapresentada na TV aberta, reprisada na TV paga, acessada via dispositivos móveis, pode possuir um site “oficial”, um ou diversos blogs, estar nas redes sociais como Twitter, Youtube, Instagram ou Facebook, surgir resumida e legendada no interior de ônibus e metrôs de muitas cidades, sem mencionar sua presença maciça em revistas, jornais e demais canais de TV. Isso, apenas se levarmos em conta as estratégias do produtor / emissor / criador pois vivenciamos um momento em que as fronteiras entre produção e recepção se esgarçam e se misturam. Atualmente, o produtor, além de oferecer todos esses meios, ainda proporciona 3

Disponível em: http://OBITEL.net/. Acesso em Jan/2014. Livros disponíveis para download em: http://obitelbrasil.blogspot.com.br/2013/12/download-de-livros.html. Acesso em Jan/2014. 5 Para Lopes (2009), nesse sentido de comunidade nacional imaginada veem-se muitas vezes na telenovela exemplos da família brasileira, do homem brasileiro, da mulher brasileira, da corrupção brasileira e nela criam-se, constantemente, novas representações sociais do cotidiano. 4

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diferentes níveis de interatividade em termos de disponibilização de jogos para diversas habilidades, quizzes, enquetes e pesquisas, sem contar os produtos de consumo ligados às tramas como livros, viagens, objetos pessoais. Um ambiente mutável, dinâmico, em que, ainda, o espectador, independentemente das propostas do produtor, tem condições de se apropriar de conteúdos e os manipular, fazendo sua própria e pessoal construção de sentidos. Atropelando, assim, as tradicionais e rígidas definições de emissor e receptor, esse espectador produz e, a partir de suas criações, são geradas recepções de recepções, infinita e indefinidamente. O conjunto dessa movimentação cria o que, para Jenkins6, seria um verdadeiro universo ficcional que ultrapassa e tricota novos e criativos tecidos que, por sua vez, podem ser recortados e remontados, num movimento multiplicador de significados. Para esse autor, as narrativas transmidiáticas (transmidia storytelling) nasceram de uma expansão técnica e mercadológica que trouxe também a necessidade de alargamento das telas narrativas, ou seja, gerou uma busca estética que oferecesse suporte para tal ambiente no sentido de ampliar a relação do público com a história e com os personagens. O termo transmedia storytelling define esse processo como aquele em que os “elementos integrantes da ficção se multiplicam pelos canais de distribuição, com a finalidade de criar uma experiência de entretenimento unificado e coordenado” (JENKINS, 2009). Os universos transmídia, com desdobramentos e transbordamentos das narrativas, produzidas originalmente para a televisão em direção a outras plataformas digitais como internet, celular e redes sociais englobam “de maneira sucinta, a circulação do conteúdo ficcional por diferentes mídias e plataformas, convidando a hibridizações de gêneros e formatos” (LEMOS, 2012:40). Atualmente, a produção nacional de ficção seriada de televisão passa por transformações que vêm ocorrendo de maneira cada vez mais marcante na linguagem audiovisual, sobretudo com a introdução de plataformas digitais que hibridizam gêneros e formatos por meio de desdobramentos e transbordamentos das narrativas produzidas originalmente para a televisão. Tais transbordamentos configuramse como parte integrante do fenômeno de transmidiação (LEMOS, 2012:44).

Por outro lado, a telenovela em geral, e a ficção televisiva em particular, até parece carregar uma linguagem única, mas, do ponto de vista da autoria, há apenas uma aparência de unidade, pois é possível perceber um amplo conjunto de códigos, fragmentados nas instâncias da Em conferência assistida pala autora, no Rio de Janeiro, durante o V Seminário Internacional Obitel – Observatório Iberoamericano da Ficção Televisiva, em 10 de agosto de 2010. 6

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produção e criação para a TV como o dos autores, atores, diretores, cenógrafos, figurinistas e, somados a esses, temos ainda designers de sites, roteiristas de navegação, programadores visuais, criadores de players de vídeo, curadores de redes sociais. É um todo formado por partes criadas pelos artistas e profissionais envolvidos sendo que cada uma dessas partes possui uma função e uma representação no todo: uma rede dinâmica e entrelaçada. Estudar a telenovela brasileira em múltiplas plataformas é analisá-la enquanto fenômeno complexo. Em sinal aberto, a telenovela brasileira, pode ser assistida no aparelho de TV analógico ou digital. Muitas vezes está disponível nos sites das emissoras ou mesmo no YouTube, também pode ser vista por meio do computador pessoal ou mídias móveis (mobiles) como notebooks, celulares e tablets. Paralelamente, o polo emissor da telenovela oferece produtos que ampliam os sentidos da narrativa de cada telenovela e essa oferta vem aumentando com o passar dos anos. Entre esses produtos destacamos trilhas sonoras, livros e diferentes objetos de consumo que vão de bicicletas a joias, de roupas a objetos de decoração, que são expostos ou oferecidos no interior da própria trama ou em intervalos comerciais ou em sites, revistas, jornais. Em termos de linguagem, abre-se, assim, um diálogo entre o consumidor, que responde trajando-se como seu personagem predileto e opinando, o fabricante do produto que é parte do processo de construção desse personagem, uma empresa comercial que realiza as vendas, a emissora de TV que exibe a telenovela e, ainda, utiliza outras mídias e, finalmente, a própria ficção e seus personagens (LEMOS, 2012:72).

A ficção televisiva deixa de ocupar tanto a linearidade do espaço do televisor, expandindo-se por mídias que envolvem o cotidiano de maneira quase generalizada, quanto o tempo restrito ao horário de exibição determinado pela emissora. A telenovela passa a exibir textos complementares, derivados, adaptados, readequados. E o espectador, por sua vez, passa a interferir no texto, ou seja, no próprio sentido da telenovela.

Telenovela em múltiplas plataformas e categorias fenomenológicas de Peirce

Nosso objetivo ao iniciar a escritura deste artigo, era compreender a telenovela brasileira em múltiplas plataformas a partir do pensamento de Peirce. Ideia que se revelou de uma ingenuidade sem tamanho, pois o trabalho passou a exibir uma arquitetura monumental 8

filosófica, epistemológica, estética, da qual não daremos conta, o que é coerente com a amplitude do pensamento de tal autor, pois seu conceito de signo é de: algo que cresce, gera novos signos, novos conhecimentos, e rompe com limites e dicotomias, tais como corpo versus mente. Ao pensar em qualquer parte constituinte da obra, todos os componentes de sua estrutura, desde os primeiros insights ao objeto finalizado, são indissociáveis (WANNER, 2010:20).

Seguiremos, portanto, indicando muito resumidamente alguns pontos significativos em termos de ponto de partida para o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa sobre telenovela em múltiplas plataformas a partir desse autor. Para isso, não vamos analisar o texto, a produção, os detalhes, mas sim o contexto do projeto finalizado. Cumpre estabelecer, de antemão, que, apesar de correntes vozes dissonantes, consideramos a telenovela como objeto passível de análise estética, pois, o conceito peirciano de estética, como sendo o que é admirável, também afasta as discussões subjetivas sobre o que é e o que não é belo. Ao sabor dessas teorias, podemos ver a arte como um jogo semiótico e estético, um ir e vir, uma necessidade de conhecer o que nos aparece, e a flexibilidade de pensar, que desperta um encantamento, pela possibilidade de entender o processo de crescimento do signo. E por meio de seu conceito de hábito, Peirce nos leva a reconhecer um dos mais difíceis e ao mesmo tempo o mais nobre de todos: o hábito estético (WANNER, 2010:21).

Tendo isso em mente, e sem qualquer ambição de sermos abrangentes como o objeto de pesquisa ou as teorias de autor de tal porte exigiriam, e como primeiríssimo passo, gostaríamos de analisar a telenovela em múltiplas plataformas em termos de sua categorização. Por não ser estática, a categorização triádica proposta por Peirce permite e estimula a observação e a experimentação com o objeto em busca de todas as linguagens possíveis e de todos os fenômenos de produção de sentido. Assim, em sua amplitude, consideramos a telenovela em múltiplas plataformas como um fenômeno que produz sentido per se, sentido esse, maior e mais dinâmico do que sua simples exibição no aparelho de TV em determinada época. Então, poderíamos dizer, grosso modo, com grande liberdade criativa, e tentando aplicar os conceitos de Peirce no tempo, da historicidade da obra; e, também, no espaço, em que surgem as mediações, que:

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1. A Primeiridade poderia ser representada pelo olhar que um espectador lança hoje para uma telenovela de, por exemplo, Jorge Amado, nos anos 70, vamos sugerir, “Gabriela”

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. Com códigos estéticos e criativos relativos à autoria, direção,

cenografia, figurinos, interpretação dos atores, etc., captados por câmeras, editados conforme a técnica e estética de então, a telenovela era transmitida para todo o Brasil pela TV Globo, recebida nos aparelhos de TV e assistida pela família na sala de casa por um espectador que podia, ainda, ouvir as trilhas sonoras, ler revistas com artigos sobre a diegese ou a vida pessoal dos atores da telenovela, conversar no trabalho ou com estranhos sobre a trama. Consideramos, pois, todo esse conjunto como uma possibilidade qualitativa, um conjunto sensível e tomamos a liberdade de nomeá-lo como pertencente à categoria da Primeiridade. Nesse sentido, vemos um todo com os olhos de hoje, sua qualidade absoluta, de signo presente e imediato. Um conjunto “iniciante, original, fresco e livre” (SOUZA, 2008: 2).

2. A Segundidade poderia ser representada pelo olhar que um espectador daquela primeira versão de “Gabriela” lança para o remake do original em 2012, em choque, em confronto com sua impressão primeira, pois a segundidade refere-se ao par açãoreação. Reiteramos nossa liberdade de considerar a obra como um todo, completo e fechado em si. “No momento em que se identifica o sentimento relacionando-o a algum fato, ele se torna segundo, singular e passa a existir. A secundidade é a categoria do reagir e interagir, é o plano da interação dialógica” (SOUZA, 2008: 3). Esse espectador está em contato com aquele primeiro conjunto original e fresco e pode, agora, confrontá-lo com o novo em que, também, vicejam códigos estéticos e criativos relativos à autoria, direção, cenografia, figurinos, interpretação dos atores, etc., captados por câmeras, editados conforme a técnica e estética de agora. Essa telenovela é transmitida para todo o Brasil pela TV Globo, recebida nos aparelhos de TV e assistida por um espectador que também pode ouvir as trilhas sonoras, ler revistas com artigos sobre a diegese ou a vida dos atores, conversar no trabalho ou, 7

Neste artigo, não vamos tratar de reapropriações, adaptações, etc. e sim da obra em si, completa enquanto texto. Texto aqui compreendido no sentido dado por Fávero e Koch (1983), ou seja, o texto “em sentido amplo, designando toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano (uma música, um filme, uma escultura, um poema etc.)” (p. 25) e que, além da forma per se, inclui contextos e componentes de seus significados sociais, expressivos, comunicativos e representacionais.

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até, com estranhos sobre a trama e hoje, ainda, a telenovela oferece a possibilidade de ser assistida em diversas telas, em horários móveis; comentada em redes sociais; transformada em aplicativos, jogos interativos e muito mais. Temos, portanto, um fenômeno que “se incorpora e passa a existir em algum lugar, em relação a alguma coisa” (SOUZA, 2008: 3).

3. A terceiridade poderia ser representada pelo olhar do espectador que interpreta as relações entre o primeiro e o segundo e elabora uma síntese explicativa. As múltiplas plataformas em que a telenovela está inserida permitem tal relação interpretativa. Dessa maneira, surge a mediação entre o intérprete e o fenômeno. Não se trata apenas de apropriação de conteúdo, mas de uma maneira de recontextualizar esse conteúdo, pois a terceiridade “é a camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo” (WANNER, 2010: 21). Essa representação do mundo, por sua autonomia simbólica, poderia, até “regressar ao seu estado de primeiridade, com seus atributos virtuais (remáticos), para recomeçar toda uma outra semiose” (SOUZA, 2008: 7). Um pequeno blog como,

por

exemplo,

o

WTG,

que

realiza

redublagens

de

telenovelas,

independentemente da qualidade ou valores atribuídos aos trabalhos expostos, fez a redublagem de “Gabriela”, entre muitas mais, com o título de “Gabriquenga” (Fig.1). Vemos, então, uma síntese explicativa que remete à categoria de terceiridade, a ponto de iniciar uma nova semiose.

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Figura 1. Print de player de Gabriela, do blog de redublagens WTG8.

A aplicação dos conceitos de categorização de Peirce dessa maneira carrega uma visão particular das obras enquanto todo textual. Nesse sentido, poderíamos, também, ter utilizado outros pontos de partida como, por exemplo, se considerássemos a telenovela “Gabriela” apresentada em 2012 em termos de primeiridade, frescor; poderíamos encarar o site da telenovela, os jogos, as outras telas e sua presença nas redes sociais como segundidade, choque, reação e interação. Mesmo assim, ainda categorizaríamos a redublagem “Gabriquenga” como fenômeno de terceiridade.

Considerações finais

Como vimos anteriormente, para Peirce os signos operam em movimento constante, sempre se transformando e, dessa maneira, o pensamento não está em nós; pelo contrário, nós estamos no pensamento. Em Peirce, a semiótica não é um quadro aplicado á realidade. Ela dá conta de um processo de aquisição de saberes. E se o saber é pensado como uma eterna pesquisa, a noção de falibilidade se instaura no seio da semiótica peirceana (SOUZA, 2008: 2).

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Redublagem disponível em < http://wtgredublagens.blogspot.com.br/search/label/Gabriquenga>. Acesso em Jan/2014.

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Um pensamento científico universal, sem filiações a opiniões e pensamentos dogmáticos busca compreender padrões, estudá-los e classificá-los. A telenovela brasileira em múltiplas plataformas, a ficção televisiva transmídia, apresenta extensas possibilidades de estudo, pois suas regularidades, seus padrões ainda não estão claramente determinados. Mas, certamente, novos conteúdos dela decorrentes podem ser capturados e indicar alguns padrões, pois os signos crescem, e na medida em que eles alcançam a categoria da terceiridade, do conhecimento, inteligibilidade, eles estão no processo de semiose, de crescimento para gerar novos signos. O prazer estético é pura sensação de qualidades. Então como podemos definir essa qualidade presente nas artes visuais e nas imagens dos meios de comunicação? (WANNER, 2010: 147).

Nos meios de comunicação, o emprego da semiótica para o exame tanto das narrativas, como dos universos audiovisuais enquanto unidades passíveis de análise auxilia a revelar as regularidades presentes no fenômeno da telenovela em múltiplas plataformas.

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Referências: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CREASE, Robert. A Medida do Mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2013. FÁVERO, Leonor; KOCH, Ingedore Grunfeld. Linguística textual: introdução. Cortez, 1983. LEMOS, Ligia Maria Prezia. Transmidiação, linguagem, discurso e experiência de criação de universo narrativo. 2012. Dissertação (Mestrado em Teoria e Pesquisa em Comunicação) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27152/tde-04032013-112336/. Acesso em: outubro de 2013 LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. (org.) Ficção televisiva no Brasil: Temas e perspectivas. São Paulo: Globo, 2009. PEIRCE, Charles Sanders. Sobre uma Nova Lista de Categorias. (Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences 7 (1868), pp. 287-298. Tradução de Anabela Gradim Alves, Universidade da Beira Interior. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/peirce-charles-listacategorias.html. Acesso em Nov/2013. ROMANINI, Vinicius. A contribuição de Peirce para a Teoria da Comunicação. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: http://disciplinas.stoa.usp.br/mod/resource/view.php?id=42021. Acesso em dez/2013. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e do pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2001. SOUZA, Licia Soares de. Contribuições da Semiótica de Peirce para os estudos da narrativa. Caligrama. Revista de Estudos e pesquisas em linguagem e mídia. Vol. 4, Nº2. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes. ECA/USP - CJE: 2008. Disponível em: http://www.eca.usp.br/caligrama/n_4/02_LiciaSoares_opB.pdf. Acesso em Dez/2013. WANNER, Maria Celeste de Almeida. Paisagens sígnicas: uma reflexão sobre as artes visuais contemporâneas. [online]. Salvador: EDUFBA, 2010. SciELO Books. Disponível em: http://books.scielo.org . Acesso em Nov/2013.

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