Teorias feministas de justiça na globalização.

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1 TEORIAS FEMINISTAS DE JUSTIÇA NA GLOBALIZAÇÃO SOUZA, Rubens Hess Marins de (Direito/UNIBRASIL)

O fenômeno da globalização se constitui dentro das tensões paradigmáticas típicas da hipermodernidade, e é marcada por contradições, paradoxos e perplexidades. O movimento feminista contemporâneo também vivencia essa mesma realidade, logo, está-se a tratar de um movimento multifacetado, composto por perspectivas heterogêneas e contraditórias, especialmente no que diz respeito às teorias de justiça. Diante disso, o objetivo do trabalho é estabelecer uma proposta de articulação e composição entre a pluralidade de linhas de pensamento feministas nas questões envolvendo demandas de justiça na sociedade global. Assim sendo, a problemática envolve o seguinte questionamento: face à heterogeneidade e complexidade do movimento feminista, é possível estabelecer um mecanismo de seleção das demandas prioritárias de justiça tanto em instância local quanto em instância global? O desenvolvimento do trabalho está constituído em quatro etapas: Em primeiro lugar, é apresentado um diagnóstico de tempo acerca da globalização, situando-a em um contexto mais amplo de hipermodernidade, Em segundo lugar, é realizado um recorte do objeto de conhecimento, limitando-o às teorias feministas de justiça. Em terceiro lugar, é delineado um retrato panorâmico analítico das principais perspectivas feministas de justiça, traduzindo o problema da concorrência de perspectivas de justiça dentro do movimento feminista. Em quarto lugar, é esboçada uma proposta de compatibilização das perspectivas feministas de justiça que se exterioriza de um lado, pela definição de um plano estratégico de mudança da realidade social inspirado na “guerra de posição” e; de outro lado, pela esquematização de um mecanismo de composição de diferenças e seleção das posições prioritárias, inspirado no “consenso sobreposto”. Por último, são apresentadas as principais conclusões: a inconsistência entre as várias perspectivas feministas de justiça; coerência entre as várias perspectivas feministas de justiça; a possibilidade de arranjos e articulações entre as várias perspectivas de justiça, utilizando-se de um plano estratégico de guerra de posição e de um mecanismo de composição sustentado no consenso sobreposto. Palavras-chave: globalização; feminismo; teorias de justiça; hipermodernidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. Diagnóstico de tempo: pré-modernidade; modernidade e hipermodernidade. 2.1 A transição do paradigma pré-moderno para o paradigma moderno. 2.2 A ascensão do paradigma hipermoderno. 2.2.1 A dimensão pós-moderna. 2.2.2 A dimensão hipermoderna. 2.3 Globalização e a terceira mulher. 2.3.1 Notas sobre a globalização. 2.3.2 A terceira mulher na globalização. 3. Movimento feminista e perspectivas de justiça: um recorte necessário. 3.1 Um recorte: demandas de justiça. 3.2 Truísmos e teorias feministas de justiça. 4. Perspectivas feministas de justiça. 4.1 Perspectiva liberal. 4.2 Perspectiva libertária. 4.3 Perspectiva socialista. 4.4 Perspectiva culturalista. 4.5 Perspectiva radical. 4.6 Perspectiva crítica. 4.7 Perspectivas pós-colonial. 5. Guerra de posição e consenso sobreposto. 5.1 Guerra de posição. 5.2 Consenso sobreposto. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

O movimento feminista é um dos grandes responsáveis pela crítica e transformação da realidade social na contemporaneidade, seja como movimento político-social, seja como movimento acadêmico.

Todavia, é

preciso reconhecer que se trata de um movimento multifacetado, composto por perspectivas heterogêneas e contraditórias e, essa fragmentação provoca –

2 potencialmente –o enfraquecimento da força de mobilização na defesa e na pretensão de direitos. Diante disso, o objetivo do trabalho é estabelecer uma proposta de articulação e composição entre a pluralidade de linhas de pensamento feministas nas questões envolvendo demandas de justiça na sociedade global. Como bem acentua WRIGHT, a grande questão do feminismo contemporâneo é a articulação entre teoria e prática e a definição da voz do feminismo, ou seja, quem pode falar como feminista e se há uma voz que possa ser identificada corretamente como a voz do feminismo 1. Assim sendo, a problemática a ser enfrentada envolve o seguinte questionamento: face à heterogeneidade e complexidade do movimento feminista, é possível estabelecer um mecanismo de seleção das demandas prioritárias de justiça tanto em instância local quanto em instância global? O desenvolvimento do trabalho está constituído em quatro etapas: Em primeiro lugar, é apresentado um diagnóstico de tempo acerca da globalização, situando-a em um contexto mais amplo de hipermodernidade, com base nos contributos de LIPOVETSKY. O diagnóstico possibilita um recorte fenomênico e a análise histórico-culturalmente situada do arquétipo de mulher que se procura construir na vida concreta da realidade social. Em segundo lugar, é realizado um recorte do objeto de conhecimento, qual seja, o movimento feminista. O recorte envolve a limitação do estudo às perspectivas feministas de justiça compatíveis com uma realidade heterogênea e pluralista. Em terceiro lugar, é delineado um retrato panorâmico analítico das principais perspectivas feministas de justiça, traduzindo o problema da concorrência de perspectivas de justiça dentro do movimento feminista. Em quarto lugar, é esboçada uma proposta de compatibilização das perspectivas feministas de justiça que se exterioriza em dois prismas. De um lado, pela definição de um plano estratégico de mudança da realidade social inspirado na “guerra de posição”. De outro lado, pela esquematização de um mecanismo de composição de diferenças e seleção das posições prioritárias, inspirado no “consenso sobreposto”. 1

WRIGHT. Patriarchal feminism and the law of the father. Feminist legal studies. v.1, n.2, 1993, p. 115-140. p. 116.

3 Findas as etapas de desenvolvimento, são apresentadas as principais conclusões: a) a complexidade,

a heterogeneidade e a paradoxalidade da

realidade social no mundo globalizado; b) os reflexos dessa complexidade, heterogeneidade e paradoxalidade no movimento feminista; c) a inconsistência entre as várias perspectivas feministas de justiça; d) a coerência entre as várias perspectivas feministas de justiça, porque vinculadas ideias intuitivas compartilhadas; f) a possibilidade de arranjos e articulações entre as várias perspectivas de justiça, utilizando-se de um plano estratégico de guerra de posição e de um mecanismo de composição sustentado no consenso sobreposto.

2. DIAGNÓSTICO DE TEMPO: PRÉ-MODERNIDADE; MODERNIDADE E HIPERMODERNIDADE2

A problemática aqui colocada exige um diagnóstico do cenário contemporâneo3. Para tanto, adotar-se-á o diagnóstico de LIPOVETSKY, como referência para a proposta de articulação entre as várias perspectivas feministas de justiça face à globalização. Deveras, o diagnóstico de LIPOVETSKY apresenta uma conjuntura contemporânea heterogênea. Em um mesmo espaço concorrem – como em um campo de tensões – perspectivas de mundo plurais, rotuladas por paradigmas diferentes: pré-moderno; moderno e hipermoderno4-5.

2

Este capítulo é uma reformulação do diagnóstico já apresentado no meu SOUZA. Direito dos idosos e vulnerabilidade: entre o paternalismo e emancipação. Relatório do seminário geral do Doutoramento na Faculdade de Direito de Coimbra, apresentado em janeiro de 2015. 3 O diagnóstico aqui apresentado não é universalizável, pelo contrário, é focado no contexto cultural e civilizacional de matriz europeia-ocidental. 4 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 99. 5 “Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; Indiferente como nunca antes foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer” (CHARLES. O individualismo paradoxal: introdução ao pensamento de Gilles Lipovetsky. In. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 26). Também, “O que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das instituições modernas: é também a memória revisitada, a remobilização das crenças tradicionais. a hibridização individualista do passado e do presente. Não mais apenas a desconstrução das tradições, mas o reemprego delas sem imposição institucional, o eterno rearranjar delas conforme o princípio da soberania individual” (LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 98).

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2.1 A

TRANSIÇÃO

DO

PARADIGMA

PRÉ-MODERNO

PARA

O

PARADIGMA MODERNO

O paradigma moderno se estabiliza entre os séculos XVIII e XX, momento em que houve o esforço para a superação do modelo pré-moderno de patriarcalismo tradicional6, pela conformação à razão universal e à ciência, pela confiança no progresso e pela consolidação dos ideais de liberdade e igualdade entre os cidadãos, sobretudo no aspecto formal.

2.2 A ASCENSÃO DO PARADIGMA HIPERMODERNO

Já o paradigma hipermoderno toma as primeiras feições na segunda metade do século XX, momento em que os ideais de liberdade e igualdade – já consolidados no plano formal – ganharam densidade material a partir da consolidação do Estado Providência. Embora, apenas em meados de 1980 as suas características mais marcantes

– a liberdade hiperbólica e

o

individualismo – se façam presentes de forma mais efetiva, estabelecendo um distanciamento cada vez maior em relação às instituições tradicionais que freavam o desejo individualista do sujeito – agora atomizado –. Analiticamente, pode-se identificar duas dimensões que se entrelaçam dialeticamente no paradigma hipermoderno, portanto, não são dimensões sucessivas, mas sim dimensões concorrentes: pós-moderna e hipermoderna.

2.2.1 A dimensão pós-moderna

Em primeiro lugar, uma dimensão pós-moderna, que eclode com a falência da modernidade em alcançar os objetivos de libertação do sujeito. O que se viu foi a subjugação do homem por uma razão instrumental-dominadora 6

O paradigma pré-moderno é voltado ao tempo passado, ou seja, o tempo presente ganha sentido a partir da aproximação ao modelo de vida de Cristo. Assim, a ordem social prémoderna é marcada pela decadência do presente (desde sempre maculado pelo pecado original), estruturando-se em torno de uma teologia que submete / aliena a subjetividade das pessoas aos arautos de um poder tradicional de legitimação metafísica. Cf. CHARLES. O individualismo paradoxal: introdução ao pensamento de Gilles Lipovetsky. In. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 14).

5 e o seu adestramento por um sistema burocrático-disciplinar. Mais que isso, a confiança no progresso científico que conduziria o homem a um futuro otimista foi sepultada pelas catástrofes da Segunda Grande Guerra –– frutos da razão científica7 –. Diante da renúncia ao tempo passado e, agora, também ao tempo futuro, caberá à pós-modernidade uma ode ao tempo presente – a primazia do aqui-agora8–. Viver o hoje (carpe diem) é o slogan exemplar dessa dimensão9. A realidade plural e fluida, a relativização de valores, as incertezas do porvir, a ascensão da comunicação em massa, a expansão do consumo, a difusão informático-tecnológica e a centralização no tempo presente10 são elementos constitutivos do sentido pós-moderno de sujeito: o sujeito-Narciso – individualista, flexível, hedonista e libertário –. O sujeito-Narciso é cunhado sob o ideal de personalização – a passagem do individualismo limitado para o individualismo total 11 –. Trata-se do sujeito / sociedade que se arranja com o “mínimo possível de coacção e o

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CHARLES. O individualismo paradoxal: introdução ao pensamento de Gilles Lipovetsky. In. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 16. 8 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 51. 9 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 62. 10 Neste sentido, a pós-modernidade representa “uma mudança de direção, uma reorganização em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas Rápida expansão do consumo e da comunicação de massa: enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto de individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário; descontentamento com as paixões políticas e as militâncias – era mesmo preciso dar um nome à enorme transformação que se desenrolava no palco das sociedades abastadas, livres do peso das grandes utopias futuristas da primeira modernidade” (LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 52). 11 O processo de personificação promove a aspiração de realização do projeto pessoal de vida do indivíduo. A liberdade aqui defendida é total porque não se limita à economia, à política, à cultura, passando a abranger os costumes e o cotidiano. Em síntese, a liberdade se traduz nas prerrogativas de ser absolutamente si mesmo; de realização pessoal; de respeito à singularidade; da personalidade incomparável. (LIPOVETSKY. A era do vazio. Lisboa: Antropos, 1989. p.9-10). Um exemplo da liberdade total é dada pela significação da moda: “Longe de aparecer como um vetor de reprodução das diferenciações sociais, o sistema da moda ampliada permitiu, mais que qualquer outro fenômeno, prosseguir a trajetória secular da conquista da autonomia individual [...] Institucionalizando o efêmero, diversificando o leque dos objetos e dos serviços, o terminal da moda multiplicou as ocasiões da escolha individual, obrigou o indivíduo a informar-se, a acolher as novidades, a afirmar as preferências subjetivas: o indivíduo tornou-se um centro decisório permanente, um sujeito aberto e móvel através do caleidoscópio da mercadoria” (LIPOVETSKY. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.175).

6 máximo possível de opções, com o mínimo de austeridade e o máximo de desejo, com o mínimo de constrangimento e o máximo de compreensão” 12. Até então, a modernidade funcionava enquadrada ou entravada por todo um conjunto.de contrapesos, contramodelos e contravalores. O espírito de tradição perdurava em diversos grupos sociais: a divisão dos papéis sexuais permanecia estruturalmente desigual; a Igreja conservava forte ascendência sobre as consciências: os partidos revolucionários prometiam outra sociedade, liberta do capitalismo e da luta de classes; o ideal de Nação legitimava o sacrifício supremo dos indivíduos: o Estado administrava numerosas atividades da vida económica. Não estamos mais naquele mundo. A sociedade que se apresenta é aquela na qual as forças de oposição à modernidade democrática, liberal e individualista não são mais estruturantes; na qual periclitaram os grandes objetivos alternativos; na qual a modernização não mais encontra resistências organizacionais e ideológicas de fundo. Nem todos os elementos pré-modernos se volatilizaram, mas mesmo eles funcionam segundo uma lógica moderna, desinstitucionalizada, sem regulação. Até as classes e as culturas de classes se toldam em benefício do princípio da individualidade autónoma. O Estado recua, a religião e a família se privatizam, a sociedade de mercado se impõe: para disputa, resta apenas o culto à concorrência económica e democrática, a ambição técnica, os direitos do indivíduo. Eleva-se uma segunda modernidade, desregulamentadora e globalizada, sem contrários, absolutamente moderna, alicerçando-se essencialmente em três axiomas constitutivos da própria modernidade anterior: o mercado, a eficiência técnica, o indivíduo. Tínhamos uma modernidade limitada, agora, é chegado o tempo da modernidade consumada13.

Convém ressaltar que o momento pós-moderno não é harmônico e consistente, pelo contrário, está repleto de paradoxos e contradições, ora pendendo para o excesso – desregrado, desequilibrado e caótico –, ora pendendo para a responsabilidade – prudente e calculista –. CHARLES exemplifica esse paradoxo citando o comportamento da alimentação. Ausentes os controles tradicionais na ordem social no que tange à alimentação – e.g. jejum; quaresma –, cabe ao indivíduo exercer sua liberdade ao se alimentar. Diante dessa possibilidade, têm-se tanto comportamentos responsáveis – e.g. alimentação moderada; monitoramento do peso; ginástica; cuidado; busca por alimentos funcionais ou uma dieta saudável –, quanto

12

LIPOVETSKY. A era do vazio. Lisboa: Antropos, 1989. p. 8-9. LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 52-53. 13

7 comportamentos excessivos – e.g. disfunções alimentares como a bulimia e a obesidade –14-15. O efeito imediato dos relativismos e particularismos do sujeito-Narciso –marcado pelo culto ao tempo presente, pelo individualismo e pela inclinação de privilegiar o “eu” – é a desagregação comunitária, a indiferença pelo bem público e pelo senso de dever coletivo16. Ao amplificar exageradamente a liberdade e a igualdade, o dimensão pós-moderna debilitou a fraternidade17. Também, na perspectiva de LIPOVETSKY, o dimensão pós-moderna acaba por padecer de um esgotamento. O imediatismo, a fluidez exagerada e a instabilidade propugnadas pelo dimensão pós-moderna sofrem um choque de realidade18.

14

CHARLES. O individualismo paradoxal: introdução ao pensamento de Gilles Lipovetsky. In. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 21. 15 Importante atentar que a ausência de mecanismos de controle institucionalizados – formais ou coercitivos – não implica a ausência de controle, antes a sua ressignificação. A violência física se transforma em uma violência simbólica. Por exemplo, não se faz necessária a proibição legislativa de bebidas do tipo refrigerantes, basta a comunicação em massa informando os malefícios para o sujeito: obesidade; saúde bucal comprometida; aumento das chances de desenvolver patologias; envelhecimento precoce etc. 16 Cf. LIPOVETSKY. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.176 e ss. 17 Neste sentido, BAUMAN explica que o individualismo pós-moderno renega o preceito tradicional de “amor ao próximo”. O amor incondicional dá lugar a um amor pragmático ou utilitário. Os relacionamentos só devem perdurar pelo que cada um pode ganhar e se continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que têm satisfações suficiente para manter a relação. Uma inédita fluidez, fragilidade e transitoriedade em construção (a famosa "flexibilidade") marcam todas as espécies de vínculos sociais que, uma década atrás, combinaram-se para constituir um arcabouço duradouro e fidedigno dentro do qual se pôde tecer com segurança uma rede de interações humanas. Hoje, entregar-se a um vínculo sem contrapartidas significa abrir mão se sua individualidade em benefício do outrem, algo inconcebível no sentido pós-moderno de personalização. (BAUMAN. O amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004 p. 96-98). Em sentido semelhante, ELIAS escreve sobre a estrutura psicológica do sujeito marcado pela personalização “O resultado, a distorcida auto-imagem de uma pessoa como ser totalmente autônomo, pode refletir sentimentos reais de solidão e isolamento emocional. Tendência desse tipo são bastante características da estrutura de personalidade específica das pessoas de nossa época em sociedades altamente desenvolvidas e do tipo particular de individualização que nelas prevalece” (ELIAS. A solidão dos moribundos, seguido de Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 66). 18 O momento denominado pós-moderno coincidiu com o movimento de emancipação dos indivíduos em face dos papéis sociais e das autoridades institucionais tradicionais, em face das limitações Impostas pela filiação a este ou aquele grupo e em face dos objetivos distantes: aquele momento é Indissociável do estabelecimento de normas sociais mais flexíveis, mais diversas, e da ampliação da gama de opções pessoais. Disso resultou um sentimento de “descontração, de autonomia e de abertura para as existências individuais. Sinónimo de desencantamento com os grandes projetos coletivos, o parêntese pós-moderno ficou todavia envolto numa nova forma de sedução, ligada à individualização das condições de vida, ao culto do eu e das felicidades privadas. Já não estamos mais nessa fase: eis agora o tempo do desencanto com a própria pós-modernidade, da desmitificação da vida no presente,

8 O ambiente social se modificou: As crises financeiras, a falência do Estado Providência, a globalização, o ambiente competitivo, o desenvolvimento tecnológico, a precarização do emprego, a virtualização do mundo e o próprio incremento da expectativa de vida exigem a retomada do projeto moderno que também olha para o futuro. O medo de um futuro incerto transforma o sujeito que vivia a emancipação em um sujeito sob tensão nervosa permanente 19.

2.2.2 A dimensão hipermoderna

Assim, em segundo lugar, ao lado do dimensão pós-moderna, desenvolve-se uma dimensão hipermoderna de remobilização dos parâmetros modernos, de ressignificação da tradição, de integração entre presente e futuro. O individualismo é característica marcante também na dimensão hipermoderna. Assim como no momento pós-moderno, o individualismo é paradoxal, ao mesmo tempo em que se centra no “eu-egoístico” e nos projetos individuais, também possibilita a consolidação de valores como tolerância e respeito ao outro (aos projetos individuais de cada um) 20, “recusando todas as confrontada que está com a escalada das inseguranças. O alivio é substituído pelo fardo, o hedonismo recua ante os temores, as sujeições do presente se mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarretada pela individualização da sociedade. De um lado, a sociedade-moda não para de instigar aos gozos já reduzidos do consumo do lazer e do bemestar. De outro, a vida fica menos frívola, mais estressante, mais apreensiva. A tomada das existências pela insegurança suplanta a despreocupação pós-moderna. É com os traços de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade, que se desenha a modernidade do segundo tipo (LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 64-65). 19 Ao tratar do desvanecimento do carpe diem pós-moderno LIPOVETSKY escreve: “pois o que é que, em nossos dias, não está cercado de ameaças, de incertezas e riscos? O emprego, o planeta, as novas tecnologias, a globalização, a vida sexual, a escolha dos estudos, as aposentadorias, a imigração, os ‘subúrbios’, quase tudo é suscetível de alimentar os sentimentos de inquietação. Enquanto não se crê mais em um futuro necessariamente melhor que o presente, elevam-se novos medos ligados ao presente e ao futuro. Quanto mais felicidade hedonista é exibida, mais é acompanhada por ‘temores e tremores’: o que se propaga é menos o carpe diem do que o sentimento de insegurança” (LIPOVETSKY. Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.237-238). 20 Exemplo disso é a afirmação dos direitos humanos no ambiente democrático-liberal típico do contexto cultural e civilizacional europeu ocidental. Neste sentido, “Para mim, o individualismo equivale ao desenvolvimento da emancipação. Implica tolerância, liberdade de escolha e comprometimento sem imposição. Não é verdade que estejamos desinteressados de tudo. A luta pelos direitos humanos está aí para demonstrar o contrário. Em contraposição, experimentamos uma época de menor regulamentação moral. Não cabe a mim ditar o padrão sexual de meu vizinho. Não tenho razão para crer num valor sexual universalizável”

9 formas de desdém, de depreciação, de interiorização do eu, exige o reconhecimento do outro como igual na diferença 21”. Em contraposição ao ceticismo e ao subjetivismo moral afirmados na dimensão pós-moderna, a hipermodernidade é marcada pela releitura da moral e das instituições tradicionais. Os laços tradicionais – típicos do paradigma prémoderno – são rompidos, mas há a defesa de uma nova regulação deontológica em nível social, econômico e midiático baseada na livre associação, portanto, como exercício da autonomia individualista 22. De igual forma, há a recuperação da fraternidade23-24, não mais de natureza tradicional – e.g. dever familiar; caridade religiosa; comprometimento comunitário –, mas sim como atos voluntários de solidariedade, que convergem para a execução de fins escolhidos pelo indivíduo. Além disso, as novas tecnologias de comunicação em massa permitem a (re)aproximação das pessoas a partir de identidades e interesses comuns 25.

(LIPOVETSKY. Sedução, publicidade e pós-modernidade. Revista Famecos, Porto Alegre, n, 12, p. 7-13, jun./2012. p. 10). 21 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 6. 22 Note-se, por exemplo, no Brasil, a criação do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária que, como instituição não governamental, estabelece um código de ética a ser observado pelos seus associados. Também, a instituição do Novo Mercado pela BMFBovespa, uma espécie de selo de qualidade conferido àquelas empresas que, voluntariamente, tenham adotado um determinado padrão de transparência e governança corporativa. 23 Em sentido semelhante, BAUMAN reconhece a necessidade de tratar a perspectiva individualista concorrentemente a uma perspectiva comunitária, embora nunca plenamente harmonizáveis. “Há um preço a pagar pelo privilégio de ‘viver em comunidade’ — e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada ‘autonomia’, ‘direito à auto-afirmação’ e ‘à identidade’. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as ‘comunidades realmente existentes’ foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar” (BAUMAN. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 10)”. 24 A retomada da fraternidade por Lipovetsky é bastante otimista – objetiva o melhor de dois mundos. Todavia, o elemento comunitário tradicional guarda poucas relações com a retomada da fraternidade hipermoderna. Nesta a fraternidade é a expressão de uma vontade para satisfação de um interesse particular do indivíduo (sentir-se bem consigo mesmo), naquela a fraternidade expressa a noção de caridade ao outro. 25 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p.82-84.

10 Ainda, a hipermodernidade apresenta uma reaproximação com o tempo futuro26 em dois planos: Em um primeiro plano, na retomada do projeto moderno do progresso: Aquela fé inabalável no progresso contínuo – típica da modernidade – é desencantada. Todavia, o fato de não podermos crer no progresso contínuo não significa dizer que não devermos aspirar a aplicação do saber científico para o aprimoramento da condição humana. Deve-se sim levar em conta que o “progresso” é ambivalente, ou seja, tanto pode nos conduzir a uma situação melhor quanto pode nos conduzir a calamidades e desgraças27. A fé no progresso é substituída por uma confiança instável e oscilante em razão dos contextos que se apresentam. O investimento em aparatos e modelos de simulação de cataclismos, de análise de riscos e cálculos probabilísticos são reflexos dessa confiança instável que aspira, por meio de previsões e prevenções, conduzir o homem para um aprimoramento 28. Em um segundo plano, no reconhecimento da finitude humana: O indivíduo se dá conta da sua vulnerabilidade no tempo, seja no futuro próximo seja no futuro remoto.

26

“Este ponto já foi evocado mais acima: instalou-se um novo clima social e cultural, a cada dia distanciando-se um pouco mais da tranquilidade descontraída dos anos pósmodernos. Com a precarização do emprego e o desemprego persistente, crescem os sentimentos de vulnerabilidade, a insegurança profissional e material, o medo da desvalorização dos diplomas, as atividades subqualificadas, a degradação da vida social. Os mais jovens; temem não achar lugar no universo do trabalho; os mais velhos. perder definitivamente o deles. Donde a necessidade de nuançar muito perceptivelmente os diagnósticos que se fazem de uma cultura neodionisiaca que se basearia na preocupação exclusivamente presentista e no desejo de gozar o aqui-agora. Na realidade, o que caracteriza o Zeitgeist é menos um carpe diem que a inquietação diante de um futuro dominado por incertezas e riscos. Nesse contexto, viver sem olhar para o futuro significa não tanto conquistar uma vida independente, livre dos grilhões coletivos, quanto sofrer as restrições impostas pela de· desestruturação do mercado de trabalho. É bem verdade que a febre consumista das satisfações imediatas e as aspirações lúdico-hedonistas não desapareceram de modo algum, pois elas se desencadeiam mais do que nunca; estão, contudo, envoltas por um halo de temores e inquietações” (LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 71). 27 LIPOVETSKY. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. LIPOVETSKY; CHARLES. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 67-70. 28 BECK também associa o processo de personalização e de emergência de um paradigma de modernidade reflexiva [hipermodernidade] à sociedade de risco. Com efeito, a crise do paradigma moderno de crença na ciência deve-se a uma série de eventos calamitosos na primeira metade do século XX (especialmente, as guerras mundiais). A partir daí, o sujeito se dá conta que os riscos e conflitos não são eventos excepcionais e isolados; fato é que a sociedade está em constante estado de emergência, portanto de que o “estado normal da sociedade” é um estado catastrófico, ameaçado por riscos e incertezas. (BECK. Risk society: towards a new modernity. London: Sage, 1992, p. 78-79; 87-90).

11 Os riscos e incertezas que permeiam o tempo presente inundam o sujeito da hipermodernidade de desconfianças e medos.

É difícil sustentar

uma perspectiva irresponsável e centrada no tempo presente se há o risco do desemprego, da doença, da obsolescência. Em suma, a dimensão hipermoderna remobiliza os parâmetros modernos para lidar com a volatilidade e fluidez do cenário contemporâneo, tendo em vista um sentido de sujeito individualista mas, ao mesmo tempo, responsável, organizado, eficiente e flexível.

2.3 GLOBALIZAÇÃO E A TERCEIRA MULHER

O fenômeno da globalização se constitui dentro desse conflito paradigmático, em especial com a emergência do paradigma hipermoderno. E, tal como a hipemodernidade, a globalização também é marcada por contradições, paradoxos e perplexidades.

2.3.1 Notas sobre a globalização

Pode-se dizer que a globalização, no seu fluxo de contradições, guarda um aspecto universalizante e um aspecto particularizante. Em primeiro lugar, o aspecto universalizante:

que implica

a

reconfiguração do mundo pela transcendência de fronteiras e a desconstrução das

dicotomias

modernas



economia/imaginário;

produção/representação; marca/arte; cultura comercial/alta cultura

real/virtual; 29

–.

Ressalte-se que afirmar um aspecto universalizante não significa afirmar a homogeneidade. Pelo contrário, o mundo global é caracterizado como um mundo hipertrofiado de diversificação e pluralização – de mercadorias, informações, imagens, marcas, serviços e produtos –, que é acompanhado da intensificação da circulação de mercadorias, pessoas, informações e serviços30.

29

LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 11-12. 30 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 20-21.

12 Assim, está-se diante um universo técnico-mediático-mercantil que envolve todo o globo e se estrutura em quatro pilares: o hipercapitalismo: “motor da mundialização financeira”; a hipertecnicização: “grau superlativo da universalidade técnica moderna”; o hiperindividualismo: “que concretiza a espiral do átomo individual”; e o hiperconsumismo: “forma hipertrofiada e exponencial do hedonismo mercantil”31. Além

disso,

diante

da

consciência

dos

riscos

globais,

do

desenvolvimento de um sentimento cosmopolita e da interdependência cada vez

maior,

afirma-se

mais

um

elemento

caracterizador

do

aspecto

universalizante: os direitos humanos32-33. Ora, é corolário do hiperindividualismo, a recusa em ver os outros povos como figuras inferiores34, garantindo ao indivíduo o papel central nas questões de direito e de justiça. Todavia,

a

universalidade

dos

direitos humanos

abandona

a

perspectiva moderna e abstrata e assume um caráter concreto e social 35, ou seja, trata do indivíduo concreto e social, criando pontes entre o caráter universal dos direitos e as particularidades culturais dos indivíduos. Mais que isso, essas pontes entre universal e particular ultrapassam o caráter meramente formal dos direitos humanos e edificam uma fonte de legitimação que afeta o sistema internacional interestatal – justificando, por exemplo, a ingerência humanitária e a justiça penal internacional –36. Em segundo lugar, o aspecto particularizante: que se caracteriza pela manifestação de comunitarismos e particularismos culturais e identitários – étnicos, religiosos e infranacionais37 –. 31

LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 40. 32 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 22 e 28-31. 33 LIPOVETSKY. O reino da hipercultura: cosmopolitismo e civilização ocidental. In. LIPOVETSKI; JUVIN. O ocidente mundializado: controvérsia sobre a cultura planetária. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 22 e 67. 34 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 13. 35 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 13. 36 LIPOVETSKY. O reino da hipercultura: cosmopolitismo e civilização ocidental. In. LIPOVETSKI; JUVIN. O ocidente mundializado: controvérsia sobre a cultura planetária. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 67-69. 37 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 64.

13 Com efeito, a dialética entre os momentos da hipermodernidade leva o indivíduo a buscar mecanismos de estabilização que haviam se perdido na fluidez do hiperindividualismo. Um desses mecanismos de estabilização é a reconstrução e ressignificação de um sentimento de pertença coletiva. Nas palavras de LIPOVETSKY: “Qualquer que seja o poder da globalização, ela não irá impedir as sociedades de estarem mergulhadas na sua história, na sua língua e na sua cultura”38. Entretanto, ao contrário do paradigma pré-moderno, essa vinculação à tradição se dá nos moldes da estrutura global, no caso, pela livre escolha do indivíduo. Há, dessa forma, uma tensão constante entre o aspecto universalizante – capitalismos e direitos humanos – e o aspecto particularizante – heterogeneidade cultural – da globalização39-40. Por conseguinte, justamente para compatibilizar todas essas dissonâncias que há o reforço ao respeito à ordem democrática pluralista41, como espaço privilegiado de discussão das tensões que se apresentam. Daí se aponta a necessidade de se pensar o problema das contradições e tensões a partir de mecanismos de “glocalização”, integrando os aspectos “universal e particular; o racional e o tradicional; a unidade moderna e a diversidade dos costumes”42, refletindo sobre as prioridades e os rumos em direção a um mundo melhor.

2.3.2 A terceira mulher na globalização

Por fim, dentro do diagnóstico apresentado, é possível delinear a construção de uma significação de “mulher43” própria da hipermodernidade, à 38

LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 80. 39 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 31-37. 40 LIPOVETSKY. O reino da hipercultura: cosmopolitismo e civilização ocidental. In. LIPOVETSKI; JUVIN. O ocidente mundializado: controvérsia sobre a cultura planetária. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 21-22. 41 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 64. 42 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 141. 43 Nesse trabalho, ao designar a mulher ou o homem, os vocábulos sexo e gênero assumem significação intercambiável, visto que nem todas as perspectivas feministas adotam a distinção entre os conceitos. Contudo, convém salientar, com apoio em CASE, que o

14 qual se dirigem as teorias feministas de justiça nas demandas por justiça – seja na reivindicação de um direito, seja na concretização de um direito –. Para precisar essa significação, LIPOVETSKY constrói três arquétipos: a primeira mulher; a segunda mulher e a terceira mulher. A primeira mulher é o arquétipo dominante no Ocidente até o fim do século XI: caracteriza-se pela superioridade natural e universal do homem sobre a mulher, ou seja, a ordem natural dotaria o masculino de um valor superior ao feminino44. Neste sentido, cabe aos homens as tarefas honrosas e as atividades nobres da guerra e da política, relegando-se às mulheres as tarefas subalternas e o cuidado do lar. Mesmo em termos simbólicos, ao homem se atribuem os valores positivos e às mulheres se atribuem os valores negativos – a mulher é considerada um mal necessário –. De um lado o homem representaria o bem; a ordem; a razão; e, de outro lado, a mulher representaria o mal; o caos; o impulso. A segunda mulher é um arquétipo construído a partir do século XII e que persiste até o século XVIII: caracteriza-se pela idealização da mulher pelo homem. A mulher é colocada em um pedestal e passa a ser contemplada como uma musa inspiradora, o mais próximo possível de uma divindade, que orienta e ilumina a vida dos homens 45. Não obstante, esta idolatria à mulher se restringe a um imaginário masculino, não há, realmente, o empoderamento das mulheres na vida concreta. São mantidas as dependências econômicas e intelectuais das mulheres em relação aos homens, assim como, o lugar da mulher continua restrito ao espaço doméstico. pensamento jurídico feminista tende a atribuir significações diferentes para “sexo”, “gênero” e “orientação sexual”. Neste sentido, “sexo” refere-se às distinções anatômicas e fisiológicas entre homens e mulheres; “gênero” refere-se à sobreposição discursiva, atitudinal e cultural sobre as distinções anatômicas e fisiológicas e; “orientação sexual” refere-se à relação entre o “sexo” e o objeto de desejo do sujeito, ou seja, se o objeto de desejo de alguém é do mesmo sexo ou de sexo diferente. (CASE. Disaggregating gender from sex and sexual orientation: the effeminate man in the Law and feminist jurisprudence. Yale Law Journal, v. 105, 1, 1995, p. 1106.Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2099&context=journal_articles. Acesso em: 27/06/2015. p. 10-13). 44 LIPOVETSKY. La terceira mujer: permanência y revolución de lo femenino. 6.ed. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 214-216. 45 LIPOVETSKY. La terceira mujer: permanência y revolución de lo femenino. 6.ed. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 216-218.

15 A terceira mulher é um arquétipo construído a partir do século XIX: caracteriza-se autonomização da mulher em relação ao homem. Se a primeira mulher está sujeita à ordem natural das coisas – ordem masculina –; se a segunda mulher está sujeita à criação ideal pelo homem; a terceira mulher pressupõe a autocriação e autodeterminação feminina46. O lugar da mulher não é mais pré-estabelecido pela ordem natural ou pela ordem social, mas é construído pela própria mulher47. Será esse o arquétipo dominante nos tempos hipermodernos. A mulher passa a participar e a comandar todos os estágios de sua existência, em outras palavras, ela deixa a margem e passa a ocupar o centro de sua própria história48. Deveras, são manifestações dessa terceira mulher: a legitimidade para estudar e para trabalhar; o direito à participação política; a liberdade sexual; o controle sobre a procriação; o direito de casar-se, divorciar-se ou viver em concubinato; a possibilidade de negociar os papéis sexuais nas relações sociais49. Isto significa dizer que não há mais papéis sexuais diferenciados entre homens e mulheres? Ou que há plena igualdade entre homens e mulheres? A resposta é negativa. Se, de fato, cabe à mulher a construção do seu próprio ser, isto não se dá a partir de uma ruptura com o passado. A terceira mulher não escapa às contradições e aos paradoxos da hipermodernidade. Ao governar a si mesma e a comandar a condição feminina, a terceira mulher procura construir sua significação transitando entre autonomia individualista e a herança histórica da tradição – ressaltando que o apego à

46

LIPOVETSKY. La terceira mujer: permanência y revolución de lo femenino. 6.ed. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 218-219. 47 LIPOVETSKY; SERROY. A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2013. p. 67. 48 Nas palavras de TAVARES: “‘A tensão entre as margens e o centro é uma imagem recorrente dentro da teoria feminista’, na medida em que o feminismo como movimento político procura que as mulheres deixem de ocupar as margens da sociedade e se situem no centro do conhecimento e da política. As preocupações em tornar visíveis as mulheres na história, reflectir sobre suas experiências, devolver-lhes a palavra, fazer ouvir as suas vozes, recuperar memórias silenciadas, insere-se neste movimento teórico ‘das margens ao para o centro’” (TAVARES. Feminismos: percursos e desafios (1957-2007). Alfragide: Textos, 2010. p. 541542). 49 LIPOVETSKY. La terceira mujer: permanência y revolución de lo femenino. 6.ed. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 219-221.

16 tradição não é mais uma determinação mecanicista e necessária, mas sim um ato de livre escolha e de pertença –.

3. MOVIMENTO FEMINISTA E PERSPECTIVAS DE JUSTIÇA: UM RECORTE NECESSÁRIO O próprio rótulo “feminista” espelha a luta do movimento feminista, visto que foi / é utilizado em sentido pejorativo, correspondendo a mulheres sexistas, emasculadoras e andrófobas. A compreensão do movimento feminista não escapa do diagnóstico da hipermodernidade. Trata-se de um movimento abrangente50, complexo, heterogêneo e contraditório, que abarca uma pluralidade de abordagens, enfoques e propostas. Como bem acentua RICOY, “não há apenas um único feminismo, mas sim feminismos, assim como não há mulher, mas sim mulheres, pois somos tão diversas quanto os homens51”. Com efeito, pode-se afirmar que o movimento feminista compreende diversos feminismos – muitas vezes contraditórios – mas que tem sua unidade firmada em três ideias comuns centrais52: a) o patriarcalismo – a sociedade é moldada e dominada pelos homens –; b) a subordinação – a sociedade enxerga a mulher subordinada ao homem53; c) a defesa da dignidade humana.

50

Como bem acentua DAHL, o movimento feminista abrange um segmento muito vasto da população, que comporta subgrupos muito diversificados. Ao mesmo tempo que constitui um movimento destinado a combater as formas de opressão da mulher, também comporta áreas de confluência com outros movimentos ou grupos sociais. Por exemplo, as mulheres idosas, as mulheres imigrantes, as mulheres encarceradas, as mulheres deficientes, as mulheres consumidoras, as mulheres operárias, as mulheres jovens etc. (DAHL. O direito das mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista. Lisboa: Calouste Gulbenkian 1993. p. 27-28). 51 RICOY. Teorias jurídicas feministas. In. ZAMORA; VAQUERO. Enciclopedia de filosofia y teoria del derecho. v. 1. Mexico: UNAM, 2015. p. 460-499. p. 461. Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/8/3875/16.pdf. Acesso em: 15/05/2015. 52 MINDA. Postmodern legal movements: law and jurisprudence at century’s end. New York: New York Universiy Press, 1995. p. 128. 53 É mister salientar a reflexão de FISS para que a ideia de subordinação se refere às questões de hierarquia – e não necessariamente de discriminação –. Neste sentido, são condenáveis as práticas que criem ou perpetuem uma situação de subordinação a um grupo ou pessoa em condição desvantajosa. Ao associar a ideia de subordinação à hierarquia e não à discriminação, torna-se possível a compatibilização entre as teorias de justiça que enfatizam a igualdade e as teorias de justiça que enfatizam as diferenças entre homem e mulher. (FISS. What is feminism? Faculty Scholarship Series. Paper 1331, 1994, p. 413-428. p. 416-419. Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/1331. Acesso em: 20/12/2014).

17

3.1 UM RECORTE: DEMANDAS DE JUSTIÇA

Esta primeira noção do movimento feminista ainda lega uma grande variedade de campos de pesquisa. Logo, faz-se necessário circunscrever ainda mais o objeto de estudo. Desta forma, o recorte específico abrange as demandas feministas de justiça, ou seja, a reivindicação de direitos e a concretização de direitos já reconhecidos54. Como destaca SMART, a demanda por justiça possui caráter normativo e transcende o mero predicado moral, logo, se está afirmando uma pretensão legítima, exigível e transformadora da realidade social, em oposição a uma resposta benevolente ou caridosa que apenas perpetua o patriarcalismo e a subordinação55. Consequentemente, ao limitar o recorte às demandas de justiça, enfatiza-se o papel das teorias feministas de justiça na formulação dessas demandas, assim como se questiona até que ponto o Estado e o Direito são instituições conservadoras – de manutenção da hegemonia – ou se são instituições emancipatórias – transformadoras das relações sociais56.

3.2 TRUÍSMOS E TEORIAS FEMINISTAS DE JUSTIÇA

Especificado o recorte do movimento feminista que será analisado, é preciso eleger as teorias feministas de justiça compatíveis com a realidade social plural e complexa.

54

A experiência moderna deixou evidente que o mero reconhecimento de direitos é insuficiente se desacompanhado de sua concretização e de instituições que façam frente aos casos de transgressão (RICOY. Teorias jurídicas feministas. In. ZAMORA; VAQUERO. Enciclopedia de filosofia y teoria del derecho. v. 1. Mexico: UNAM, 2015. p. 460-499. p. 488. Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/8/3875/16.pdf. Acesso em: 15/05/2015). 55 SMART. Feminism and the power of law. London and New York: Routledge, 1989. p. 152-153. 56 DAHL. O direito das mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista. Lisboa: Calouste Gulbenkian 1993. p. 7.

18 O critério de compatibilidade adotado importa a conformidade com alguns truísmos57, inspirados em RAWLS, distintivos das sociedades plurais e complexas: a) o truísmo do pluralismo razoável; b) o truísmo da opressão; c) o truísmo do domínio político; d) o truísmo das ideias intuitivas compartilhadas; e) o truísmo do desacordo razoável. O primeiro truísmo, o pluralismo razoável, insinua que pessoas razoáveis podem adotar concepções de justiça conflitantes e irreconciliáveis 58, mas ainda assim razoáveis59 – visto que coexistem e concorrem em sociedade –. O segundo truísmo, a opressão, implica afirmar que a permanência de apoio a uma única teoria de justiça só é possível mediante o uso da força 60. Do contrário, as teorias de justiça concorrem entre si pela adesão dos membros do movimento social, assim como pela estabilidade dessa adesão. Ressalte-se que “adesão” e “estabilidade” sugere a variação ao longo do tempo e no espaço, assim, a preponderância de uma ou outra teoria estará sempre sujeita a rediscussão. O terceiro truísmo, o domínio político, sugere a legitimação democrática para a definição dos rumos do movimento social. Assim, uma demanda por justiça será encarada como um pleito do movimento se contar com a adesão justificada da maioria dos seus membros 61. O quarto truísmo, as ideias intuitivas compartilhadas, alude à existência de ideais compartilhadas pelas várias perspectivas feministas de justiça, em especial: o combate ao patriarcalismo – sociedade moldada e dominada pelos homens –; o combate à subordinação da mulher em relação ao homem; a proteção da dignidade humana. Tais ideias compartilhadas garantem coerência ao movimento, apesar das inconsistências internas.

57

Os truísmos aqui elaborados são releituras dos parâmetros postos por Rawls de uma sociedade plural estável. Cf. RAWLS. Justice as fairness: a restatement. London: Harvard University Press, 2001. p. 33-38. 58 RAWLS. Justice as fairness: a restatement. London: Harvard University Press, 2001. p.33. 59 As teorias de justiça razoáveis são marcadas pelo caráter relativo e não-totalizante; e pela tolerância a concepções concorrentes de justiça. 60 RAWLS. Justice as fairness: a restatement. London: Harvard University Press, 2001. p. 34. 61 RAWLS. Justice as fairness: a restatement. London: Harvard University Press, 2001. p. 34.

19 O quinto truísmo, o desacordo razoável, refere-se às dificuldades de formação de consensos estáveis entre pessoas razoáveis, ainda que em um debate aberto de ideias. Este desacordo entre as várias perspectivas de justiça pode ser fruto: da existência de evidências empíricas complexas e de difícil avaliação; da discordância a respeito da hierarquia de valores para a avalição de uma situação ou evidência; da indeterminação e vagueza das ideias compartilhadas; da diversidade de experiências de vida e de contextos que influenciam a compreensão da realidade social; a existência de teses igualmente fortes, mas contrárias, a respeito de questões em discussão 62. Posto isto, as teorias feministas de justiça devem acolher um olhar “relativo”, admitindo a concorrência com outras teorias; “não-totalitário”, admitindo um espaço público de debate, para o apoio justificado a uma ou outra tese; “não-excludente”, admitindo que as vozes dissonantes continuarão a participar das discussões e, que embora minoritárias naquele momento, isto não implica a sua irracionalidade; e “coerente” com os fins compartilhados pelo movimento social. 4. PERSPECTIVAS FEMINISTAS DE JUSTIÇA

Uma vez determinado o critério de eleição das teorias feministas de justiça, convém estabelecer um retrato panorâmico analítico das principais perspectivas feministas de justiça Utiliza-se o vocábulo “perspectivas” porque cada uma delas encerra um número indeterminado de teorias de justiça. De resto, o ponto principal é destacar os aspectos comumente compartilhados pelas teorias de justiça que participam – preponderantemente – daquela perspectiva de justiça.

4.1 PERSPECTIVA LIBERAL

A perspectiva de justiça liberal assume como pressuposto a igualdade formal entre homens e mulheres na titularidade de direitos e liberdades, ou

62

2001. p. 35.

RAWLS. Justice as fairness: a restatement. London: Harvard University Press,

20 seja, as mulheres são sujeitos autônomos e livres com os mesmos direitos dos homens. Esta perspectiva de justiça tem suas raízes na concepção universal de homem, assim como na racionalidade moderna neutra, universal e imparcial. Neste sentido, MILL no ensaio “The subjection of women” destaca que a “subordinação de um sexo ao outro é um erro em si mesmo; [...] e deve ser substituído pelo princípio da perfeita igualdade; não admitindo qualquer tipo de poder ou privilégio para um dos lados, ou debilidade do outro lado 63”. Mais que isso, os preconceitos oriundos do patriarcalismo e da subordinação teriam raízes no costume e no sentimento tradicional arraigado na sociedade, mas careceriam de fundamento racional – universalidade e neutralidade –. Em outras palavras, a dependência da mulher em relação ao homem seria fruto de condições sociais contingentes e desarrazoadas que não se sustentariam face ao reconhecimento racional da igualdade e liberdade entre as pessoas64. Após sofrer a crítica de que as teorias liberais feministas de justiça apenas defendiam a assimilação das mulheres ao modelo dos homens – ou seja, que a igualdade entre os gêneros se dava sempre com base em uma norma masculina65– a academia liberal feminista se reconstruiu com a releitura da teoria de justiça de RAWLS66 – assumindo um caráter preponderantemente liberal igualitário –. É mister destacar o pensamento de NUSSBAUM que procura justamente fazer uma ponte entre o feminismo e o liberalismo igualitário.

63

Tradução do autor. No original. [...] subordination of one sex to the other—is wrong itself, [...]; and that it ought to be replaced by a principle of perfect equality, admitting no power or privilege on the one side, nor disability on the other. (MILL. Collected Works of John Suart Mill. v. 21. Toronto: University of Toronto Press, 1984. p. 261.). 64 MILL. Collected Works of John Suart Mill. v. 21. Toronto: University of Toronto Press, 1984. p. 263-264. 65 MINDA. Postmodern legal movements: law and jurisprudence at century’s end. New York: New York Universiy Press, 1995. p. 134. 66 A teoria de justiça de Rawls compreende dois princípios. O primeiro deles privilegia a igualdade entre as pessoas; e o segundo deles fornece critérios para o tratamento desigual, objetivando a correção de distorções sociais. Cito: “(1) Cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e direitos básicos iguais para todos, compatíveis como um mesmo sistema para todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e posições abertas a todos em condições de justiça (fair) igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade” (RAWLS. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 207-208).

21 NUSSBAUM67 sugere uma releitura do princípio da justiça de rawlsaniano: (1) Cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e direitos básicos iguais para todos, compatíveis como um mesmo sistema para todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e posições abertas a todos em condições de justiça (fair) igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade68.

A releitura do princípio envolve três pressupostos. O primeiro pressuposto questiona o sujeito autônomo do liberalismo, dado que na realidade concreta o ser humano é dependente em vários momentos de sua vivência69, seja quando criança até a idade adulta, seja nos momentos de velhice. Assim, o sujeito a ser considerado não pode se limitar a uma ótica do sujeito autônomo e independente, mas sim do sujeito real e concreto. O segundo pressuposto aponta que a dependência do ser humano é variável de acordo com os momentos de sua vivência, ou seja, a dependência tem graus diferentes70. O terceiro pressuposto alude a esferas de dignidade diferentes71 para os momentos assimétricos de dependência e incapacidades da trajetória de vida do ser humano. Diante desses pressupostos, NUSSBAUM sugere que o sistema adequado de liberdades e direitos não deve conferir apenas igualdade e distribuição fundadas nos critérios de direitos, liberdades, oportunidades, renda e riqueza72, mas sim que a igualdade e distribuição dos bens primários devem ser mediados por critérios dependência e incapacidades, garantindo a

67

NUSSBAUM. El futuro del liberalismo feminista. Areté: revisa de filosofia. v. 13(1), 2001. p. 59-101. p. 59. 68 RAWLS. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 207-208. 69 NUSSBAUM. El futuro del liberalismo feminista. Areté: revisa de filosofia. v. 13(1), 2001. p. 59-101. p. 66-68. 70 NUSSBAUM. El futuro del liberalismo feminista. Areté: revisa de filosofia. v. 13(1), 2001. p. 59-101. p. 75-77. 71 NUSSBAUM. El futuro del liberalismo feminista. Areté: revisa de filosofia. v. 13(1), 2001. p. 59-101. p. 79-80. 72 Trata-se da concepção de rawlsiana de bens sociais primários. (RAWLS. Uma teoria da justiça. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 110-111).

22 dignidade do ser humano em toda a sua trajetória de vida – não se limitando, portanto, a um juízo de vantagem ou desvantagem –. Diante do exposto, pode-se dizer as perspectivas liberais feministas de justiça ganharam novo fôlego, sem abandonar as suas premissas básicas.

4.2 PERSPECTIVA LIBERTÁRIA

A

perspectiva

de

justiça

libertária

tem

por

pressuposto

o

hiperindividualismo tão simbólico da hipermordenidade, o que significa dizer que a mulher deve ser considerada um fim em si, permitindo-lhe seguir o seu próprio projeto de vida, sem a interferência do Estado e de outros cidadãos, privilegiando a autonomia da vontade e as liberdades – daí o caráter libertário – . Nesta esteira, PATERSON – uma das precursoras do libertarismo – afirma que liberdade é uma condição natural; a vida do homem só ganha sentido em virtude de sua capacidade de ação independente; a igualdade formal decorreria do simples fato de que as qualidades e atributos de cada pessoa não são possíveis de serem comparados ou medidos, a pessoa seria uma entidade espiritual; e a propriedade seria a principal garantia das liberdades da pessoa contra o agir dos outros e do Estado73. Trata-se, em suma, de uma perspectiva caracterizada pela propriedade do próprio corpo, por um núcleo inviolável de liberdades e pela igualdade formal entre homens e mulheres. Este núcleo de direitos – que compreende o direito à propriedade e direito às liberdades – é identificado pelas seguintes qualidades: a) direitos negativos, direitos de não-interferência; b) direitos exaustivos, pois derrotam qualquer outra consideração moral; c) direitos que atuam como restrições laterais às ações dos outros cidadãos e do Estado, assim, a esfera dos direitos deve ser inviolável ante as pretensões dos demais, independentemente das consequências que a proteção possa gerar74.

73

126.

74

PATERSON. The god of the machine. New York: Putnam’s sons, 1943. p. 121NOZICK. Anarchy, State, and utopia. Oxford: Blackwell, 1999. p. 28-35.

23 Por vezes, as representantes da perspectiva libertária são taxadas de anti-feministas, pois são críticos à concessão de privilégios às mulheres, assim como da leitura moral feminista como superior à masculina. À guisa de exemplo, YOUNG75 cita o caso da mobilização “feminista” de exposição dos homens que se sentam com as pernas abertas nos transportes públicos, ocupando mais espaço que o necessário. Segundo YOUNG, isso reflete um “feminismo” obsessivo, visto que as mulheres, muitas vezes, ocupam tanto espaço quanto os homens com suas bolsas, sacolas e mochilas. Mais, que isso, a preocupação maior deveria ser a utilização sem autorização das imagens dessas pessoas nas redes sociais – direito derivado da propriedade do próprio corpo –. Entretanto, é preciso ressaltar que o libertarismo feminista compartilha sim as ideias centrais do feminismo, já que admite que o patriarcalismo domina as principais instituições sociais. Assim, a resposta para combater o patriarcalismo e a subordinação se dá pela limitação da atuação das instituições sociais – em especial o Estado e o Direito – ao mínimo possível, cabendo-lhes apenas a garantia de um núcleo central de direitos básicos invioláveis – segurança, propriedade e liberdades –, o que daria condições à mulher de se colocar em situação de igualdade com o homem. Desse modo, qualquer Estado maior que o mínimo implicaria uma potencialização do patriarcalismo. Também, qualquer norma jurídica que superasse esse núcleo de liberdades, estabelecendo diretrizes de caráter moral, paternalista ou redistributivo, estaria fomentando a subordinação da mulher em relação ao homem, visto que o conteúdo dessas normas levaria em consideração a hierarquia de valores e o pensamento dominante masculinos.

4.3 PERSPECTIVA SOCIALISTA

A perspectiva socialista feminista de justiça assume a concepção de justiça marxista “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo

75

YOUNG. The gender battlefield: the good, the bad, and the ugly. Disponível em: http://reason.com/archives/2014/01/05/the-gender-battlefield-in-2013-the-good. Acesso em: 20/05/2015.

24 suas necessidades76” como critério de atuação para superação da luta de classes, potencializando a transição do capitalismo para o socialismo e do socialismo para o comunismo. As mulheres são uma classe explorada, cujo trabalho e liberdade sexual são expropriados pelo homem, especialmente no contexto interno da família77. Também, a família monogâmica patriarcal seria um reflexo do modo de produção capitalista, visto que os papéis sociais do homem e da mulher seriam atividades de criação e reprodução da existência de um modelo de sociedade. Nas palavras de ENGELS: Não é melhor o estado de coisas quanto à igualdade jurídica do homem e da mulher no casamento. A desigualdade legal que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher. No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com seus filhos, a direção do lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto a busca de viveres, de que ficavam encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada mais tinha a ver com ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se em primeira criada, sem mais tomar parte na produção social. Só a grande indústria de nossos dias lhe abriu de novo - embora apenas para a proletária - o caminho da produção social. Mas isso se fez de maneira tal que, se a mulher cumpre os seus deveres no serviço privado da família, fica excluída do trabalho social e nada pode ganhar; e, se quer tomar parte na indústria social e ganhar sua vida de maneira independente, lhe é impossível cumprir com as obrigações domésticas. Da mesma· forma que na fábrica, é isso que acontece à mulher em todos os setores profissionais, inclusive na medicina e na advocacia. A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas são as famílias individuais. [...] Hoje, na maioria dos casos, é o homem que tem que ganhar os meios de vida, alimentar a família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso lhe dá uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário [...] Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a. reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade económica da sociedade78.

76

MARX. Crítica ao programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 33. JACKSON. Making sense in Jurisprudence. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1996. p. 322-323. 78 ENGELS. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. p.79-81. 77

25 Com efeito, KOLLONTAI aponta que as conquistas das mulheres proletárias dentro da ordem da estrutura da ordem burguesa são relevantes, entretanto, o sistema capitalista tende a tolher tais conquistas. Daí porque as conquistas das mulheres na ordem burguesa seriam apenas passos para a verdadeira revolução da mulher – verdadeira liberdade e igualdade – que se daria no mundo de trabalho socialista79-80. Trata-se, em síntese, de uma teoria da justiça da igualdade, visto que as diferenças estabelecidas entre homens e mulheres foram postas pela infraestrutura econômica que se reflete na estrutura familiar. Assim, apenas uma revolução que rompesse com infraestrutura econômica seria capaz de modificar a posição da mulher na sociedade81.

4.4 PERSPECTIVA CULTURALISTA

A perspectiva culturalista feminista de justiça assume a base teórica da antropologia cultural, cuja abordagem salienta os fatores histórico-culturais que privilegiam os homens em relação às mulheres. O patriarcalismo e a subordinação teriam suas raízes em fatores histórico-culturais próprios de determinados períodos, mas que se viram naturalizados no tempo pela tradição, afetando inclusive o modelo cognitivo de compreensão do mundo, restrito à ótica dos homens.

79

KOLLONTAI. The Social Basis of the Women's Question, Disponível em https://www.marxists.org/archive/kollonta/1908/social-basis.htm. Acesso em 18/04/2015. 80 Neste sentido, várias das conquistas do direito do trabalho da mulher seriam passos intermédios para esse processo de transformação tanto do trabalho quanto da família, ou seja, da mulher esposa-operária, por exemplo: a) o direito à licença maternidade; b) e o direito à aposentadoria por idade, com critério etário inferior ao dos homens em razão da dupla jornada da mulher. 81 Embora anacrônico, um trecho da obra “A letra escarlate” Hawthorne é bastante ilustrativo em relação a esse processo de revolução: “Na verdade, essa mesma lúgubre questão com frequência vinha à sua mente com relação a todas as mulheres. Valia a pena aceitar a existência como era, mesmo para a mais feliz delas? No que concernia à sua própria existência individual, ela havia muito respondera negativamente à pergunta [...]. Ela [mulher] vê diante de si, talvez, um desafio impossível. Como primeiro passo, teria de pôr abaixo todo o sistema social e reconstruí-lo do zero. Depois, a própria natureza do sexo oposto ou um longo hábito hereditário tornado como que sua natureza [ideologia] precisaria ser essencialmente mudada para que a mulher pudesse assumir o que parece ser uma posição mais justa e conveniente. Por fim, com todas as outras dificuldades vencidas, não poderia usufruir dessas primeiras reformas até que tivesse passado, ela mesma, por uma mudança ainda maior; e pela qual sua essência mais etérea, o que havia de mais verdadeiro nela, talvez acabasse por evaporar” [transição do ser individualista para o ser comunista]. (HAWTHORNE. A letra escarlate. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2010. p. 184).

26 Destarte, a perspectiva culturalista reconhece que: a) o patriarcalismo reflete uma sociedade primitiva, mas, cujos fatores que estruturavam a dominação masculina não são mais relevantes na sociedade contemporânea; b) o patriarcalismo não era a única forma de estruturação social, pelo contrário, há sociedades da antiguidade que se estruturavam em matriarcados, por conseguinte, o patriarcado não é uma forma natural de estruturação da sociedade; c) é preciso resgatar o a cultura das mulheres e o modelo cognitivo de compreensão da mundo pela ótica das mulheres, como oposição ao patriarcalismo82. Merece destaque a posição de GILLIGAN acerca do desenvolvimento de modelos cognitivos diferentes entre homens e mulheres, estabelecida por meio de testes de tomada de decisão em dilemas aplicado a crianças do sexo masculino e feminino. Um primeiro exemplo, duas crianças com oito anos de idade: a) o menino enfrenta o dilema de brincar com os amigos ou ajudar a mãe a limpar o porão; o raciocínio dele é pensar nos amigos – desejo – e pensar na mãe – dever – a fim estabelecer uma ordem hierárquica porque um deles deve prevalecer aos demais; b) já a menina enfrenta o dilema de escolher com quais amigos brincar considerando que são muitos; a resposta dela é pensar em dividir o tempo entre os amigos mas, se algum deles estiver se sentindo solitário, brincaria com este, portanto, relacionando elementos analíticos e emocionais83. Um segundo exemplo, um menino e uma menina de 11 anos deve responder o seguinte dilema: Um homem considera furtar um remédio que ele não pode comprar, mas que é necessário para salvar a vida da esposa. Ele deve subtrair o remédio? O menino respondeu que sim porque a vida humana vale mais que dinheiro – um raciocínio dedutivo baseado em uma ordem hierárquica de valores –. A menina respondeu que ele não deveria furtar o medicamento, mas que também não deveria deixar a esposa morrer, devendo construir uma alternativa ao furto, possivelmente um empréstimo ou um pedido de doação, visto que se condenado pelo crime não poderia ajudar a esposa 82

JACKSON. Making sense in Jurisprudence. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1996. p. 324-325. 83 GILLIGAN. In a difference voice: psychological theory and women’s development. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 32-33.

27 futuramente – trata-se de um raciocínio relacional baseado em um sistema difuso de valores84 –. A partir desses exemplos, é possível afirmar que os homens e as mulheres concebem as relações entre fenômenos e formam juízos de forma diferente. De um lado, os homens pensam o mundo por meio de uma ética de direitos centrada na separação e na dominação. De outro lado, as mulheres pensam o mundo por meio de uma ética de cuidado centrada na responsabilidade e nos afetos85. Nota-se, portanto, que a perspectiva culturalista constitui uma teoria da diferença, visto que homens e mulheres compreendem o mundo de forma diferente, cabendo ao movimento feminista resgatar os aspectos femininos que foram suprimidos na compreensão do próprio direito e na formulação de demandas por justiça86.

4.5 PERSPECTIVA RADICAL

A perspectiva radical feminista de justiça objetiva questionar não o conteúdo das normas jurídicas e processos institucionalizados, mas sim o domínio masculino subjacente ao modelo jurídico e institucional, isto é, a perspectiva é radical porque questiona as raízes – o fundamento – das instituições e práticas sociais. Expoente da perspectiva radical, MACKINNON afirma que “o Direito, estruturalmente, adota o ponto de vista masculino: a sexualidade diz respeito à natureza e não à arbitrariedade sexual; às relações interpessoais e não às distribuições sociais de poder; à diferença entre os sexos e não à discriminação sexual” 87.

84

GILLIGAN. In a difference voice: psychological theory and women’s development. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 28-28. 85 MORRISON. Jurisprudence: from the greeks to post-modernism. London: Cavendish, 2000. p. 499-502. 86 Exemplos do resgate da racionalidade feminista seriam: a adoção da justiça restaurativa como mecanismo de composição de conflitos criminais; a consolidação da conciliação e da mediação como formas alternativas de resolução de conflitos; a valoração jurídica das emoções como o perdão e o envergonhamento; a construção de salas lúdicas para a oitiva de crianças vítimas de abusos, evitando maiores traumas. 87 Tradução do autor. No original. “Law, structurally, adopts the male point of view: sexuality concerns nature not social arbitrariness, interpersonal relations not social distributions

28 Resta evidente que uma tal perspectiva contesta a possibilidade de o Direito,

contaminado

intrinsicamente

pela

dominação

masculina,

ser

instrumentalizado como lugar de transformação da realidade em benefício de uma ótica feminista. De igual forma, ao desvelar a dominação masculina na estrutura do Direito, a perspectiva radical denuncia a fantasia de uma racionalidade neutra, imparcial e universal. Afinal, não há neutralidade se uma ótica – a masculina – é declarada a representação da razão. Ademais,

essa

dominação

masculina

subjacente

repercute

na

institucionalização do paternalismo e da dominação. Logo, não se pode dizer que o tratamento desigual entre homens e mulheres seja fruto de uma construção desarrazoada, mas sim de uma sistemática dominação estrutural das instituições. Em síntese, a perspectiva radical feminista de justiça identifica obstáculos à emancipação da mulher dentro de um enquadramento de dominação masculina, restando-lhe desvelar essa naturalização do padrão masculino, com o fim de possibilitar a emergência de uma verdadeira perspectiva feminina do direito e da justiça.

4.6 PERSPECTIVA CRÍTICA

A perspectiva crítica feminista de justiça assume dois princípios distintivos de análise: em primeiro lugar, um diagnóstico do tempo presente; em segundo lugar; um conjunto de orientações emancipatórios88. O diagnóstico do tempo presente retrata a realidade social temporal e espacialmente situada, baseado em tendências estruturais do modelo de organização

social

vigente,

objetivando

identificar

os

obstáculos

à

89

emancipação da pessoa.

of power, the sex difference not sex discrimination” (MACKINNON. Toward a feminist theory of the State. Massachussetts: Harvard University Press, 1989. p.216.) 88 NOBRE (org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008 p. 9-12; NOBRE. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 p. 26-27; MELO. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. Caderno Centro Recursos Humanos. Salvador. V. 24. N. 62. p. 249-262, mai./ago. 2011. p. 249-252. 89 Emancipação no sentido de autonomia moral e política do indivíduo que pressupõe, portanto, independência em relação ao mundo do dinheiro.

29 A partir desse diagnóstico, busca-se formar um prognóstico sobre os rumos do desenvolvimento histórico e construir ações capazes de superar os obstáculos à emancipação. Também, as teorias críticas se definem pelo: caráter reflexivo, porque questiona seus próprios fundamentos e renova seus diagnósticos; caráter situacional, porque ela se coloca no processo histórico de análise, ou seja, não se assenta afastada do objeto de estudo e; caráter transformador, porque não se limita a uma ótica descritivo-explicativa, mas adota a relação teoria-prática para transformar a realidade político-social pela liberação dos potenciais emancipatórios latentes ou bloqueados. Posto isto, as teorias críticas feministas compartilham o ideal emancipatório de construir os melhores meios e estratégias de se alcançar uma distribuição socialmente mais justa e igual, diante da sociedade patriarcal. Merecem destaque as teorias de justiça de FRASER e YOUNG. Para FRASER, a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros –adultos – da sociedade interagirem entre si como pares. São necessárias pelo menos três condições para que a paridade participativa seja possível. Em primeiro lugar, deve haver uma distribuição de recursos materiais que garanta a independência e voz dos participantes. Em segundo lugar, requer-se que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração social90. Em terceiro lugar, todos os interessados ou possíveis atingidos por uma decisão política devem participar da comunidade política responsável por essa decisão91. Dessa forma, a justiça requer a superação de obstáculos de: a) redistribuição: obstáculos econômicos (negação de recursos) que decorrem da estrutura

de

classe

da

sociedade



dimensão

econômica92

–;

b)

reconhecimento: obstáculos culturais (negação de status ou rotulação por estigmas), que decorrem do falso reconhecimento – dimensão cultural93 –a; c) 90

FRASER. A justiça social na globalização. Revista Crítica de Ciências Sociais. v. 63, 2002, p. 7-20. p.13. 91 FRASER. Redefiniendo el concepto de justicia en um mundo globalizado. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, v. 39, 2005, 69-87. p. 74. 92 Por exemplo, o trabalho doméstico não-remunerado das mulheres. 93 Por exemplo, a dominação masculina que culmina na estigmatização da mulher como sexo frágil e inferior ao homem.

30 participação: obstáculos políticos que decorrem do mau enquadramento na determinação dos sujeitos da comunidade política – dimensão política 94-95–. Para YOUNG, a justiça refere-se a todas as “condições institucionais necessários ao desenvolvimento e exercício das capacidades individuais, da comunicação coletiva e da cooperação96”. Há dois principais obstáculos à concretização das demandas por justiça pelos grupos sociais97 nos termos colocados por YOUNG, a opressão e a dominação98. Esses obstáculos se exteriorizam de cinco formas 99: a) exploração: que implica a transferência dos resultados do trabalho de um grupo social em benefício do outro – e.g. o trabalho doméstico realizado exclusivamente pela mulher no decorrer do matrimônio –; b) marginalização: que implica a exclusão de um grupo social do sistema de trabalho, impossibilitando-o de participar ativa e utilmente da vida social – e.g. a impossibilidade de trabalhar sem a autorização do pai ou marido –; c) carência de poder: que implica a diferença de poder entre aqueles que são profissionais especializados (função de planejamento) e aqueles que não o são (função de execução), gerando condições extremamente desiguais no sistema trabalho – e.g. o pequeno de número de mulheres na quadro de direção das grandes empresas –; d) imperialismo cultural: que implica a universalização e naturalização da cultura do grupo social dominante ou privilegiado como critério ou norma imposta ao grupo social oprimido – e.g. o estigma de que as 94

Por exemplo, a representação deficiente das mulheres nas questões envolvendo a obrigatoriedade do uso do véu ou o direito ao aborto. 95 FRASER. Redefiniendo el concepto de justicia en um mundo globalizado. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, v. 39, 2005, 69-87. p. 72-78. 96 Tradução do autor. No original: “to the institutional conditions necessary for the development and exercise of individual capacities and collective communication and cooperation”. (YOUNG. Justice and politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 39). 97 Grupo Social: é um coletivo de pessoas que se diferencia de outros grupos – portanto requer a referência ao “outro” – em razão de formas culturais, práticas e modos de vida, compartilhando uma série de atributos identitários. Resta evidente que uma mesma pessoa na sua vida concreta participa de vários grupos sociais. (YOUNG. Justice and politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990. p 43-46) 98 “Opressão “consiste em processos sistemático-institucionais que impedem algumas pessoas de aprender e utilizar habilidades em ambientes socialmente reconhecidos; ou que inibem às pessoas de interagir e comunicar com outros ou de expressar a sua visão de mundo na vida social. “Dominação” consiste em condições institucionais que inibem ou impedem as pessoas de participar na determinação de suas ações ou nas condições de suas ações. (YOUNG. Justice and politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 38) 99 YOUNG. Justice and politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 53-63.

31 mulheres são naturalmente inclinadas a cuidar das crianças e a cozinhar –; e) violência: que implica a violência física ou simbólica praticada contra um grupo sexual em razão de seus traços identitários –a violência doméstica contra as mulheres –. Note-se que tanto na teoria proposta por FRASER quanto na teoria proposta por YOUNG, há a aceitação da diferença entre homem e mulher, objetivando-se, portanto, reconhecer a diferença, mas eliminar os obstáculos vinculados ao paternalismo e à subordinação.

4.7 PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL

A perspectiva pós-colonialista feminista de justiça assumira duas frentes de discussão. Em uma frente, combaterá o patriarcalismo e a subordinação. Em outra frente, irá questionar a própria noção de sujeito feminista. De fato, os feminismos pós-coloniais afastam a noção da narrativa única feminista centrada na mulher branca, europeia, ocidental, de classe média e de matriz judaico-cristã100. Assim, emerge uma pluralidade de narrativas envolvendo os eixos norte-sul; centro-periferia; ocidente-oriente; universal-singular; global-local; individual-comunitário. Trata-se, em síntese, de uma perspectiva de justiça que, no pensamento de CELENTANI se refere às diferenças das mulheres como grupo social frente aos homens, procurando subverter a ordem estabelecida, e; se refere às diferenças existentes entre as próprias mulheres, enfatizando a descoberta da mulher concreta no mundo, com suas próprias necessidades, interesses e vivências101. O que se procura então é o enfoque mulher como realidade concreta, vinculando-a às suas relações tradicionais, comunitárias e culturais. Ou seja, é preciso dar voz à singularidade – e.g. Black feminism; Islamic feminism; Asian feminism; Chicana feminism – para que, em um contexto de diferenças, se 100

AMADO. Tiene sexo las normas? Temas y problemas de la teoría feminista del Derecho. Anuario de filosofia del derecho, v. 9, 1992, 13-42. p. 18-21 101 CELENTANI. El feminismo filosófico. In: DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ. El pensamento filosófico latino-americano, del Caribe y “latino” (1300-2000): historia, corrientes, temas y filósofos. México: Século XXI, 2009. p. 418-433. p. 421.

32 possa compreender a realidade social por visões parciais e complementares, construindo um conhecimento mais preciso tanto do patriarcalismo quanto do próprio feminismo. Fala-se então de “feminismos polifónicos” ou multiculturais, onde a variedade de vozes de mulheres se façam ouvir, inter-relacionando a variável género com a “raça” ou etnia, a classe social, idade, orientação sexual, região ou local. É aqui que se coloca os novos desafios para a teoria feministas: a desconstrução do sujeito feminista [...] uma visão multidimensional das opressões e dos sujeitos, cuja materialidade e historicidade são enformadas por diversas variáveis, os conhecimentos situados, pois será na parcialidade que reside a capacidade de configurar uma visão de mundo melhor102

Em suma, as teorias pós-coloniais não defendem apenas a tolerância da cultura hegemônica em relação às culturas minoritárias, mas sim o respeito a essas culturas. Respeito esse que implica o reconhecimento de igualdade e o esforço conjunto entre as culturas na compreensão do mundo.

5. GUERRA DE POSIÇÃO E CONSENSO SOBREPOSTO

Face os capítulos precedentes, cinco proposições podem ser afirmadas. Em primeiro lugar, as perspectivas feministas de justiça, embora plurais, compartilham algumas ideias intuitivas gerais – o patriarcalismo; a subordinação; a dignidade humana –. Em segundo lugar, as perspectivas feministas de justiça apresentam-se como forças contra hegemônicas, ou seja, defendem a transformação da realidade social por meio demandas de justiça – seja reivindicação de um direito, seja a concretização de um direito já reconhecido –. Em terceiro lugar, de acordo com o diagnóstico apresentado, há uma tendência de aumento de adesão ao projeto democrático pluralista, o que possibilita um espaço igualitário de discussão. Este espaço de discussão incrementa a participação do movimento feminista no processo de construção e transformação da realidade social em duas óticas: a) sob a ótica interna, o espaço de discussão permite o embate 102

2010. p. 544.

TAVARES. Feminismos: percursos e desafios (1957-2007). Alfragide: Textos,

33 interno das perspectivas feministas de justiça para definição das prioridades e rumos do movimento; b) sob a ótica externa, o espaço de discussão permite a participação do movimento feminista em concorrência com os outros grupos e forças sociais na construção político-jurídica da realidade social. Em

quarto

lugar,

as

contradições

e

complexidades

da

hipermodernidade se refletem no movimento feminista e, em especial nas perspectivas feministas de justiça. Reflexos dessas contradições são as tensões existentes entre o local e o global; entre o universal e o particular; entre o individual e o social. Em quinto lugar, considerando a pluralidade de perspectivas feministas de justiça, é preciso estabelecer um mecanismo teórico para articulação entre as teorias de justiça e o (re)arranjo das prioridades nas reivindicações por justiça do movimento feminista. As proposições acima sugerem a adoção de um plano estratégico de modificação da realidade social e um mecanismo teórico para articulação das perspectivas feministas de justiça. Dessa forma, de um lado, uma releitura da “guerra de posição” de GRAMSCI encerra um plano estratégico viável de modificação da realidade em tempos hipermodernos. De outro lado, uma releitura do “consenso sobreposto” de RAWLS apresenta-se como um mecanismo viável para articulação das perspectivas de justiça.

5.1 GUERRA DE POSIÇÃO

Admite-se que o movimento feminista é contra hegemônico e, por conseguinte, objetiva a transformação da realidade social com a emancipação do “feminino”. Para tanto, um plano estratégico de modificação da realidade deve ser traçado. A apropriação da concepção de “guerra de posição” – parcialmente ressignificada – pode constituir esse plano. GRAMSCI, no §16 do Caderno 7103, traça uma distinção entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”. É preciso destacar que se trata de uma 103

“Me parece que Ilich comprendió que era preciso un cambio de la guerra de maniobras, aplicada victoriosamente en Oriente en el 17, a la guerra de posiciones que era la

34 distinção

entre

planos

estratégicos

ideais,

na

vida

concreta



a

preponderância de um ou de outro desses planos. A “guerra de movimento” é um plano estratégico de mudança da realidade social que consiste de uma onda revolucionária, portanto, de um movimento violento de ataque frontal às forças hegemônicas dominantes. Por consequência, a nova realidade emancipatória seria edificada após um processo súbito de total aniquilação do modelo de dominação. Esta manobra destinar-se-ia a Estados qualificados como “Oriente”, qualificação essa que não é geográfica, mas contextual. O “Oriente” se distingue pela presença de um Estado forte e autoritário; com escassa legitimação democrática e; uma sociedade civil frágil e desorganizada. Neste contexto, vencida a instituição estatal dominante, abrir-se-ia caminho para a transformação da realidade social. A “guerra de posição” é um plano estratégico de mudança da realidade social que consiste na conquista gradual de posições estratégicas, logo, é formado por um conjunto de ações que objetivam mudanças progressivas no tempo – avanços emancipatórios – para, ao fim, concretizar a transformação da realidade por um processo não-violento de conscientização social. Note-se que “a guerra de posição”

indica um processo de

transformação da realidade em que há a coexistência – em constante tensão – de posições hegemônicas e contra hegemônicas, portanto, lida com uma realidade contraditória e complexa típica dos tempos hipermodernos. Esta manobra destinar-se-ia aos Estados do “Ocidente”, ou seja, a Estados fragilizados, mas com legitimação democrática; instituições sociais consolidadas e; uma sociedade civil organizada e sólida. Neste contexto, a única posible en Occidente, donde, como observa Krasnov, en un breve espacio los ejércitos podían acumular inmensas cantidades de municiones, donde los cuadros sociales eran capaces todavía por sí solos de constituirse en trincheras bien aprovisionadas de municiones. Esto es lo que creo que significa la fórmula del "frente único", que corresponde a la concepción de un solo frente de la Entente bajo el mando único de Foch. Sólo que Ilich no tuvo tiempo de profundizar su fórmula, aun teniendo en cuenta que podía profundizarla sólo teóricamente, mientras que la misión fundamental era nacional, o sea que exigía un reconocimiento del terreno y una fijación de los elementos de trinchera y de fortaleza representados por los elementos de la sociedad civil, etcétera. En Oriente el Estado lo era todo, la sociedad civil era primitiva y gelatinosa; en Occidente, entre Estado y sociedad civil había una justa relación y en el temblor del Estado se discernía de inmediato una robusta estructura de la sociedad civil. El Estado era sólo una trinchera avanzada, tras la cual se hallaba una robusta cadena de fortalezas y de casamatas; en mayor o menor medida de un Estado a otro, se comprende, pero precisamente esto exigía un cuidadoso reconocimiento de carácter nacional”. (GRAMSCI. Cuadernos de la cárcel. T.3. México: Era, 1994. p. 157).

35 instituição social Estado seria apenas mais uma posição de dominação, dentro de um conjunto de posições estratégicas de transformação da realidade social. Diante da qualidade da “guerra de posição” em lidar com uma realidade complexa e contraditória, assim como, com a possibilidade não-violenta de manifestação em espaços públicos de discussão – espaço para conquista de posições / direitos –, este plano estratégico se enquadra nas pretensões do movimento feminista de transformação da realidade em uma sociedade globalizada.

5.2 CONSENSO SOBREPOSTO

Delineado o plano estratégico, é preciso estabelecer um mecanismo teórico de compreensão das posições prioritárias ao movimento feminista. No caso da problemática proposta, um mecanismo teórico capaz de apontar as demandas de justiça prioritárias – reivindicação por direitos ou concretização de direitos –, ou seja, aquelas demandas que congregam mais força dentro do movimento feminista. Nesta linha, o “consenso sobreposto”, teorizado por RAWLS, pode ser adaptado às questões envolvendo o microcosmo das perspectivas feministas de justiça. O “consenso sobreposto” objetiva a composição entre perspectivas concorrentes de justiça em um contexto pluralista104. Esse consenso é sustentado por razões e desenha uma concepção comum a respeito das prioridades das demandas de justiça. Convém destacar que a qualificação “sobreposto” decorre de duas dimensões deste mecanismo teórico: extensão e profundidade 105. A extensão implica a formação de consensos abrangentes e estáveis; de caráter geral; que definem as demandas fundamentais de um movimento social. Portanto, cria-se uma espécie de núcleo consolidado e compartilhado entre as várias perspectivas de justiça. Por sua vez, a profundidade, implica a formação sucessiva de consensos cada vez mais precários e instáveis; de caráter particular – mas 104 105

RAWLS. Liberalismo político. 2.ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 179-186. Cf. RAWLS. Liberalismo político. 2.ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 212-215.

36 relacionado ao núcleo construído no consenso mais abrangente –; que definem as demandas específicas e, por vezes, situacionais, de um movimento social. Importante salientar que ao se afirmar a “estabilidade” dos consensos, está-se falando de graus de estabilidade, assim, ainda que estáveis, os consensos estão permanentemente sujeitos à discussão, envolvendo novos arranjos, concessões e articulações. A releitura aqui apresentada do “consenso sobreposto” configura um mecanismo viável para a articulação e arranjos entre as várias perspectivas feministas de justiça, inclusive envolvendo instâncias globais e locais. Dessa forma, os feminismos podem se articular e formar consensos – expressos ou tácitos106 – que exteriorizarão a voz determinante do movimento feminista em relação àquelas demandas de justiça, iniciando por consensos mais abrangentes – globais – em direção a consensos pontuais – locais –107108

. Feitas estas considerações, é possível ilustrar a aplicação do

“consenso sobreposto” delineado às perspectivas feministas de justiça. Em um primeiro momento, há a formação de um consenso abrangente e estável entre as várias teorias de justiça, formando um núcleo que compreende a) o combate à misoginia; b) o combate ao patriarcalismo; c) o combate à subordinação. A figura abaixo ilustra esse consenso abrangente e estável, formando um núcleo estável e compartilhado entre as perspectivas de justiça. 106

O grau de organização dos vários feminismos pode facilitar a criação de espaços institucionais de discussão, o que implica maior coordenação e sistematização na atuação do movimento. De fato, a institucionalização do movimento feminista, em organizações nãogovernamentais ou em órgãos do poder estatal, possibilita a transformação de um feminismo tácito para um feminismo manifesto, traduzindo-se num posicionamento feminista assumido, que garante maior força político-jurídica e capacidade de organização e mobilização. (TAVARES. Feminismos: percursos e desafios (1957-2007). Alfragide: Textos, 2010. p. 581588), Além disso, o feminismo manifesto possibilita maior articulação e concessões recíprocas entre as várias perspectivas feministas de justiça na especificação das demandas por justiça em determinado lugar e tempo. Por outro lado, não se pode esquecer que a demanda por justiça – que enfatiza o campo político-jurídico – é apenas um dos aspectos de atuação do movimento feminista, devendo-se coordenar essa atuação com ações transformadoras do pensamento, da linguagem e da cultura dominantes. 107 Exemplo dessa articulação é a recente proibição da mutilação genital feminina na Nigéria, em que a pressão local e internacional do movimento feminista, contou com a articulação de diversas perspectivas de justiça em direção a uma demanda de justiça – reivindicação de um direito – compartilhada por todas elas. 108 Embora não seja objeto desta pesquisa, é de se considerar o “consenso sobreposto” como uma ferramenta para compatibilização de posições entre movimentos sociais.

37

Perspectiva crítica

Perspectiva liberal

Perspectiva libertária

Perspectiva culturalista

Perspectiva socialista

Perspectiva radical

Perspectiva póscolonial

Em um segundo momento, há a formação de consensos um pouco menos abrangentes, mas com grande tendência de consolidação de sua estabilidade. Por exemplo, as demandas por justiça envolvendo: a) o combate ao tráfico de mulheres; b) o combate à cultura do estupro; c) o combate à violência e aos abusos domésticos. A figura abaixo ilustra esse consenso um pouco menos abrangente – com um pequeno deslocamento do centro, em razão de algumas posições extremas de teorias feministas pós-coloniais – e a tendência de estabilização.

38

Perspectiva crítica

Perspectiva liberal

Perspectiva libertária

Perspectiva culturalista

Perspectiva socialista

Perspectiva radical

Perspectiva póscolonial

.

Em um terceiro momento, há a formação de consensos pontuais e precários – e.g. direito à barriga de aluguel; ações afirmativas; direito ao aborto – que, por vezes, não conta com a adesão de representantes de outras teorias ou perspectivas feministas de justiça. Nessa situação, a existência de vozes dissonantes não acarreta o afastamento desse grupo de todo o movimento feminista, significa apenas que foram vencidos naquela proposta em especial, logo, participarão ativamente do debate em outras ocasiões. Mais que isso, nada impede à voz dissonante de se unir a outros movimentos ou forças sociais, com as quais identifiquem afinidades acerca de determinadas propostas. A figura abaixo ilustra esse consenso pontual e precário a respeito de uma cota para mulheres na direção de grandes empresas, que não contaria com o apoio da perspectiva libertária de justiça.

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Perspectiva crítica

Perspectiva liberal

Perspectiva libertária

Perspectiva socialista

Perspectiva radical

Perspectiva culturalista

Perspectiva póscolonial

Em suma, o “consenso sobreposto” apresenta-se como um mecanismo teórico apto a lidar com as complexidades do movimento feminista contemporâneo, especialmente para estabelecer as posições prioritárias – demandas de justiça – por meio de uma composição estável dentro do campo de tensões das perspectivas feministas de justiça.

6. CONCLUSÃO

Findo o percurso sugerido na proposta de trabalho, algumas conclusões podem ser apontadas: Em primeiro lugar, que o fenômeno da globalização é parte de uma realidade bem mais complexa denominada de hipermodernidade. Ademais, a globalização, longe de ser um fenômeno uniformizante, caracteriza-se pela pluralidade, heterogeneidade e paradoxalidade. Em segundo lugar, os reflexos da hipermodernidade e da globalização atingem tanto o movimento feminista como o sujeito mulher. Quer-se dizer que o movimento feminista se encontra multifacetado e repleto de inconsistência; ao passo que o sujeito mulher busca uma significação transitando entre o individualismo e a tradição. Em terceiro lugar, o caráter multifacetado do movimento feminista e realidade social hipercomplexa implicam a pluralidade de compreensões

40 acerca das demandas de justiça. Mais que isso, as várias teorias de justiça feministas reverberam as inconsistências internas do movimento feminista, apresentando critérios de justiça contraditórios e inconciliáveis prima facie. Em quarto lugar, apesar das inconsistências, ideias compartilhadas do feminismo – patriarcalismo; subordinação; defesa dos direitos humanos – conferem coerência e unidade ao movimento. Em quinto e último lugar, as ideias compartilhadas pelo movimento feminista indicam a possibilidade de arranjos e articulações entre as várias perspectivas de justiça. Para tanto, a releitura da “guerra de posição” de GRAMSCI como plano estratégico de atuação do movimento e a releitura do “consenso sobreposto” de RAWLS como mecanismo de composição e seleção das posições prioritárias dos feminismos, mostraram-se construções teóricas significativas para a redução da complexidade interna, possibilitando a mobilização ordenada e mais efetiva do movimento feminista

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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