TERRA PAPAGALLI: HIBRIDISMO ESTÉTICO E RESISTÊNCIA

July 24, 2017 | Autor: Pedro Mandagará | Categoria: Literature, Brazilian Literature
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TERRA PAPAGALLI: HIBRIDISMO ESTÉTICO E RESISTÊNCIA Pedro Mandagará Mestrando em Letras (Teoria da Literatura) PUC-RS [email protected] Resumo: O presente ensaio discute as relações entre gênero literário e hibridismo cultural a partir do livro Terra papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Depois de discutir algumas formas de aplicação do conceito de hibridismo a obras literárias, escolhe-se a formulação de um certo hibridismo estético como mais adequada. A partir da classificação da obra como romance híbrido, considera-se o uso da paródia nela como forma de resistência, a partir do célebre ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, de Silviano Santiago.

1 O livro O livro Terra papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, apresenta um desafio de classificação ao pesquisador. O vício contemporâneo (e a ficha catalográfica) nos diz que é um romance. Afinal, o livro contém uma só ficção de 190 páginas, o que elimina contos, ensaios e poemas. Além disso, trata-se da “luxuriosa, irada, soberba, invejável, cobiçada e gulosa história do primeiro rei do Brasil” (Torero, 2000: capa), o que prepararia o leitor para um ambiente de intrigas palacianas e vícios, tão próprias de certo romance do início do século XIX. Já nos agradecimentos nossa expectativa é subvertida: o narrador está “a escrever uma carta e não um livro” (Torero, 2000: 5). O agradecimento dessa carta, por sua vez, não é aos pais, amigos ou quejandos, mas “a meus dentes”. Então nossa referência muda para o fim do século XIX, lembrando do início das Memórias póstumas de Brás Cubas: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (Assis, 1967: 5). Um livro que fingia ser as reais memórias do finado Brás, assim como agora outro livro que finge uma carta. O grau desse fingimento é vário, e não se estende à totalidade do livro. O texto começa com um agradecimento e uma dedicatória. Logo, não se trata aqui do tradicional romance epistolar, como o Werther, de Goethe. Esse é formado por cartas como que transcritas, com a tradicional abertura endereçada ao narratário (“Querido amigo”, etc), e o fechamento com “Saudações” ou algo assim. Não se dedicam cartas, pois estas são destinadas a um só leitor: com elas não se dá voz pública a uma admiração ou gratidão. Sigo agora o percurso do livro, mostrando outras características que fogem ao romance epistolar. Na página 9, Cosme Fernandes, dito Bacharel, começa a narrar sua vida pregressa, desde seus pais até a véspera do seu embarque como degredado na frota de Pedro Álvares Cabral (página 22). Há uma certa linearidade na narração, embora a fragmentação extrema (sete capítulos em 13 páginas: de novo nos lembramos das Memórias Póstumas). O trecho é estruturado da seguinte forma: o narrador fala de suas origens judaicas, de sua vida confortável como favorito no mosteiro e de sua transgressão com a jovem

Lianor, que o leva a ser condenado ao degredo. Fica assim estabelecida a situação inicial que o levou ao Brasil. Com isso tudo se cria uma formatação própria ao romance autobiográfico ou memorialístico. Tal formatação é quebrada na página 23, quando começa o “Diário de Viagem de Cosme Fernandes”. Este em tudo lembra um diário, desde o “Primeiro dia, 9 de março, segunda-feira” (Torero, 2000: 25), até o primeiro de maio final (na página 42). O diário é introduzido pelo narrador dizendo que tomará “a liberdade de acrescentar tais páginas a esta carta, pois acredito serem a mais eficaz e eloqüente descrição daqueles dias.” (Torero, 2000: 22) A pouca extensão do trecho é explicada assim: Infelizmente, bom conde, aí se acaba meu diário, porque no dia seguinte, quando estava a escrever no convés, passou por mim o próprio Pedro Álvares e tomou a folha e a pena de minhas mãos, dizendo, depois de dar-me um soco no nariz, que aquela era uma viagem mui secreta e aquilo podia servir para que espiões castelhanos descobrissem as novas terras. (Torero, 2000: 43) Daí em diante volta a narrativa da história de vida de Cosme, com algumas interrupções, como uma lista de biografias curtas dos outros seis degredados deixados com ele no Brasil (pp. 46-9), a narração de um sonho (pp. 52-3) e um capítulo sobre os hábitos dos tupiniquins (p. 58). Logo antes deste capítulo o narrador insere o “Primeiro mandamento para bem viver na terra dos papagaios”: Na terra dos papagaios é preciso saber dar presentes com generosidade e sem parcimônia, porque os gentios que lá vivem encantam-se com qualquer coisa, trocando sua amizade por um guizo e sua alma por umas contas. (Torero, 2000: 58) (Grifo do original) Outros mandamentos vão ser inseridos ao longo do texto, até que se perfaça o número bíblico de dez. A narração segue normalmente até a página 63. Então, na página 65, é inserido o “Breve e sumaríssimo dicionário da língua que falam os tupiniquins”, de apenas três páginas mas que merece um frontispício ilustrado. O dicionário se compõe de uma introdução à fonética da língua (em 18 linhas) e de 39 definições. Da página 70 à 111 temos de novo a narração, com mais três mandamentos, algumas digressões e a inserção de uma paródia da “Canção do exílio”, poema que o narrador atribui a seu amigo Jácome Roiz. Na página 113 começa o “Liber monstrorum de diversis generibus por Cosme Fernandes”, um bestiário das terras brasileiras que inclui seres como o dragão e o zepardo (mistura de zebra e leopardo). A lista, precedida por um intróito, acompanha descrições de cada um dos seres e termina à página 126. Da página 127 até o fim do livro temos de novo a narração. Neste trecho se encontram os restantes seis mandamentos, uma lista das filhas de Cosme Fernandes organizadas de acordo com as diferentes mães (pp. 143-4), três bilhetes, duas cartas, um convite e grande número de digressões. Há também um capítulo extremamente interessante, exemplo do gênero hagiológico, em que se narra a vida de Santo Ernulfo, que inventou o dogma da trindade e fazia

hóstias de três sabores, a saber, alho, arenque e toucinho (Torero, 2000: 156). Voltamos então à questão inicial: como classificar este livro? Notamos a presença de diversos elementos que poderiam levar outras tantas classificações. Há nele o gênero epistolar, o autobiográfico, o biográfico, o hagiográfico, o poético e o gnômico, além de discursos que não constituem gêneros próprios, como o diário, o dicionário e o bestiário. Pode-se pensar em todos esses gêneros como subsidiários do epistolar, por estarem inseridos na carta que Cosme Fernandes escreve. A complicação, como já referi antes, é a presença do agradecimento e da dedicatória, que são característicos de gêneros públicos. Uma explicação da presença de ambos pode estar nas datas encontradas no texto. A dedicatória é datada de 1536, e presume-se que o agradecimento, aparecendo antes, também o seja. Já o corpo do texto é datado de “hoje, nove de outubro da era de 1535” (Torero, 2000: 189). Esta discrepância pode querer dizer que no intervalo o narrador decidiu publicar a carta, que originalmente seria o conteúdo que vai da página 9 à 189. Por que então no agradecimento negaria estar escrevendo um livro? Seria então um livro que finge ser um livro que finge uma carta? Isso é bastante confuso, e um indício de que o autor quer mais é nos confundir mesmo. 2 Hibridismos A resposta à pergunta classificatória pode estar na nova categoria do híbrido. No seu livro Hibridismo cultural, o historiador Peter Burke descreve este termo como uma metáfora apropriada da botânica, “tendo surgido a partir de expressões insultuosas como ‘vira-latas’ ou ‘bastardo’ e dado origem a sinônimos como ‘fecundação cruzada’” (Burke, 2003: 51-2). Esta metáfora é utilizada para análise de fenômenos diversos de interação cultural: onde houver a mistura de elementos vindos de culturas diversas, que vão realizar efeitos diversos, aí se encontra a categoria do híbrido. Burke, um tanto aristotelicamente, analisa o conceito de hibridismo a partir de seus objetos, de suas terminologias, de suas situações, das reações que causa e de seus resultados. Disso, o que nos interessa são os objetos1. Os objetos híbridos, diz Burke, são “encontrados em toda parte, não apenas em todo o globo mas na maioria dos domínios da cultura” (2003: 23). Os exemplos iriam da arte à religião, da culinária à filosofia: culturas diversas interagem em todos os campos da realização humana. Burke considera que num tal número de fenômenos não pode haver uma só significação para “hibridismo”, e assim divide os objetos híbridos em três categorias: artefatos, práticas e povos. Povos híbridos são, por exemplo, os povos em diáspora e os grupos de refugiados. As práticas podem ser religiões sincréticas, festas como o carnaval, línguas crioulas, etc. Os artefatos podem ser obras arquitetônicas, como igrejas espanholas com arabescos, assim como imagens e o que nos 1

As terminologias são várias, incluindo termos como imitação, acomodação, mistura, tradução e crioulização. Burke vê um problema no termo hibridismo pois “evoca a cultura como se fosse a natureza e os produtos de indivíduos e grupos como se fossem espécimes botânicos” (2003: 55). Mesmo assim, vou me ater a esse termo, pois parece ser o de uso mais freqüente nos estudos literários.

interessa diretamente, que é o texto. Burke fala de dois casos de hibridismo textual. O primeiro é a tradução, que implica tornar um produto culturalmente estranho palatável aos novos leitores. Quanto ao segundo: “Há também gêneros literários híbridos. O romance japonês, o africano e possivelmente também o latino-americano devem ser encarados - e julgados pelos críticos - como híbridos literários e não como simples imitações do romance ocidental.” (Burke, 2003: 27) Este hibridismo de gêneros tem duas manifestações: a do uso de uma linguagem híbrida, que traz termos e convenções lingüísticas de outras culturas, e o hibridismo de gêneros propriamente dito, trazendo, por exemplo, o conto popular para dentro do romance. O hibridismo textual de que fala Burke não é necessariamente literário. Para o caso específico da literatura, a professora Zilá Bernd tentou uma classificação mais rigorosa. No seu artigo “Em busca do terceiro espaço”, Zilá fala de quatro níveis de hibridismo, que podem ocorrer separados ou simultâneos em um texto literário. O primeiro deles é a inserção do maravilhoso popular em textos eruditos. Neste nível há uma polarização entre eles, que se intercalam mas não se mesclam realmente, mantendo sempre um lado como positivo e outro como negativo.2 O segundo tenta inserir o popular, enquanto cultura de massas, no erudito de forma orgânica, sem valorizar mais um ou outro. O terceiro é o hibridismo de gêneros ou de códigos semióticos (por exemplo figuras que fazem parte da narrativa de um romance, ao invés de apenas ilustrá-lo). O quarto é o da “metaficção historiográfica ou paródia pós-moderna” (Zilá, 1998: 266). Neste caso há um texto modelo que é subvertido. Há alguns problemas nesta divisão em níveis. Para começar, a divisão entre um “maravilhoso popular” e a cultura de massas, o que já introduz uma valorização. Ademais, não há lugar aí para o hibridismo de registros lingüísticos (o que já indiquei em nota). O que creio que se deve fazer é uma separação entre características formais e temáticas. O maravilhoso popular inserido no romance latinoamericano, por exemplo, é um dado temático. Dentro do universo temático pode-se pegar todas as classes de hibridismo de que fala Peter Burke — artefatos, práticas e povos — e aplicar, vendo como o texto, primeiro, traz representações de interações culturais e, segundo, como ele próprio configura possibilidades de interações novas. Assim o texto a ser analisado pelo viés temático é não só um documento para a análise de hibridismos pré-existentes mas uma forma de ação. Já no universo formal se encontram o terceiro e o quarto níveis de hibridismo da classificação de Zilá Bernd. Em um temos os gêneros e códigos semióticos, em outro a metaficção e a paródia. O hibridismo de gêneros e códigos parece bem claro, e já tinha mesmo sido apontado por Peter Burke. Agora, por que a paródia seria algo de híbrido é mais complexo. Penso que 2

Neste nível Zilá fala apenas do maravilhoso, mas creio que se poderia inserir também uma análise do dado lingüístico, naquelas obras em que há a presença da variedade lingüística mas ela é confinada a espaços delimitados, como os diálogos.

pela presença intertextual: a própria interpenetração de textos singulares, do texto-base e da criação paródica em cima deste, seria um híbrido. Este híbrido do universo formal, Daniela Silva da Silva, em sua dissertação de Mestrado, na qual analisa o romance contemporâneo brasileiro (inclusive o próprio Terra papagalli), chama de hibridismo estético. Neste hibridismo, ela pensa a agregação ao romance dos seguintes elementos: a biografia, a autobiografia, a história, os registros visuais, as canções e a poesia, a carta, as memórias, o diário, o dicionário, o texto bíblico, o texto científico e a crônica jornalística, além da relação entre verdade e ficção — a dúvida colocada pelo próprio romance sobre a sua verdade (Silva, 2006: 204). Esta lista é um tanto eclética, e não entendo em que divirja a autobiografia do livro de memórias, por exemplo. Dá no entanto idéia da variedade possível de fenômenos. Já os dados que chamei de temáticos, Daniela nomeia de forma diversa, como hibridismo étnico, de religiões, de classes (Silva, 2006: 206-9). Resta o caso especial do que ela chama de hibridismo lingüístico. Tendo a pensar nele como parte desse hibridismo estético, pela sua importância sintagmática no texto, e a pensar suas significações culturais como sendo expressão do hibridismo étnico. É esse hibridismo estético que pode nos ajudar a classificar Terra papagalli. O livro traz em si elementos de diversos dos gêneros citados, utilizados de certa maneira hierarquicamente. No livro não há a presença de registros visuais ou de outros códigos semióticos integrados à narrativa. As poucas ilustrações apenas destacam títulos, imitando frontispícios. Os gêneros aparecem assim: a) hierarquicamente superior, por englobarem toda a extensão do livro, temos o gênero epistolar, o autobiográfico e o próprio romanesco; b) logo a seguir, temos as três inserções de gênero no texto que merecem uma parte para si, com título e frontispício: são o diário, o dicionário e o bestiário; c) em seguida, temos os que merecem capítulo separado. Por maior número de aparições: o gnômico (dez mandamentos), o epistolar de novo (três bilhetes, duas cartas e um convite), o biográfico (um capítulo com seis pequenas biografias) e o hagiográfico (um capítulo com a vida de Santo Ernulfo); d) por fim, há o gênero poético (paródia da Canção do exílio), que não ganha um capítulo próprio. A partir do item a) poderia se pensar numa classificação genérica para Terra papagalli algo parecida com: romance autobiográfico-epistolar. Porém, a presença de todos os outros gêneros que estão nos itens de b) até d) nos faz pensar na nova classificação de romance híbrido. 3 Paródia e resistência Além dos elementos de gênero literário, foi pensado no hibridismo estético como incorporando a paródia, a metaficção historiográfica e o intertexto. Separo aqui a análise destas características para entendê-las como forma de resistência.

Silviano Santiago, no seu ensaio “O entre-lugar do discurso latinoamericano”, caracteriza a dominação colonial por uma violência brutal expressa principalmente pelos códigos lingüístico e religioso, inter-relacionados na noção da divindade como palavra. “Um só deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua.” (Santiago, 1978: 16) Nesse contexto, a dominação nunca é total, mas é entremeada por estratégias de resistência. Os códigos perdem o seu estatuto de pureza e pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário de da Gramática europeus. O elemento híbrido reina. (Santiago, 1978: 18) Estas estratégias muitas vezes não são conscientes, podendo ser mesmo uma obediência fingida. É preciso assinalar a diferença, diz Santiago. E conclui assim a primeira parte do seu ensaio: “Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.” (Santiago, 1978: 19) Passando ao estritamente literário, Santiago propõe o abandono do estudo de fontes para uma valorização dessa diferença discursiva. Segundo ele, o discurso latino-americano privilegia a estratégia de tomar textos-base para sua produção: privilegia, dizemos, a paródia. O resultado é um texto aberto, escrevível e não apenas legível, que convida o leitor à dúvida e à reformulação. São características deste texto escrevível a digressão e o compromisso com o já-escrito. Segundo Santiago, O texto segundo se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original nas suas limitações, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado de início pelo original. O escritor trabalha sobre outro texto e quase nunca exagera o papel que a realidade que o cerca pode representar na sua obra. (Santiago, 1978: 22) O trabalho crítico sobre tais textos, continua Silviano Santiago, se compõe: a) da análise do uso de textos e técnicas pré-existentes; b) da descrição da técnica criada na “agressão contra o modelo original”. (Santiago, 1978: 22-3) Em Terra papagalli, Torero e Pimenta usam uma gama variada de técnicas e estilos, muitos dos quais se pode ver na análise já feita da presença de diferentes gêneros literários na obra. Seus recursos paródicos — sua agressão — se volta contra uma construção colonial da identidade brasileira, para tal retornando ao princípio, à descoberta mesma do Brasil. Esta paródia já começa nos próprios gêneros literários, que nos fazem lembrar obras da construção identitária. A carta de Cosme Fernandes remete imediatamente à carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro documento relacionado ao Brasil. O diário presente no texto pode estar em analogia com

os Diários da descoberta da América, de Cristóvão Colombo, ou qualquer outro de um grande número de diários de bordo dos navegadores da época. Quanto ao dicionário, pensamos imediatamente em José de Anchieta, e a descrição das bestas está presente em muitos textos dos viajantes quinhentistas. Mas os recursos paródicos abrangem um espectro temporal muito mais amplo que os anos 1500. Vejam-se diversos extratos temporais, com a presença de diferentes textos referidos: a) a Bíblia, com os dez mandamentos; b) a hagiografia medieval e a filosofia escolástica, nos ensinamentos de Santo Ernulfo; c) os já citados textos quinhentistas, aos quais somo a narrativa de Hans Staden; d) os romances da ascensão da burguesia, em especial o Robinson Crusoe, quando os degredados desembarcam e devem sobreviver na “ilha”, e o Tristram Shandy, pelo estilo digressivo; e) o Romantismo, no próprio tema indianista e pela paródia da Canção do exílio, que reproduzi na íntegra algumas páginas atrás; f) as Memórias póstumas de Brás Cubas, por vários fatores, como o agradecimento, os títulos irônicos de capítulos curtíssimos e mesmo a presença de um personagem de nome Brás Cubas, escudeiro de Lopo de Pina; g) o modernismo brasileiro, pela catarse antropofágica do final do livro. Em todo este percurso se percebe como é desconstruída uma identidade judaico-cristã, relativizando-se todos os seus valores, ao mesmo tempo em que não se substitui ela por nada: não há mais, como no Romantismo, uma construção ideal do gentio como modelo. Tanto o heroísmo dos descobridores quanto o dos índios guerreiros torna-se função de relações econômicas ou de uma vingança vazia. O resultado não é, como no Modernismo, uma valorização da antropofagia como assimilação, mas como sobrevivência. O “Décimo mandamento” de Cosme Fernandes diz: “E o resumo de meu entendimento é que naquela terra de fomes tantas e lei tão pouca, quem não come é comido.” (Torero, 2000: 189) O próprio sabiá da Canção do exílio é cozinhado, como visto no último verso da paródia (página 4 do presente trabalho). Desta forma, deve o leitor ele mesmo escolher seus valores: ele é levado a simpatizar com Cosme Fernandes, mas não pode aceitar sua falta de princípios, que o leva a atividades como o tráfico de escravos. O brasileiro, e por conseqüência o Brasil, é mostrado como o homem cordial mas que quer mesmo é levar vantagem (lembrando a famosa Lei do Gérson). Não há identidade que se sustente. Considero esta sátira total e aniquiladora como uma forma de resistência. O relativismo moral apresentado nada mais é que um relativismo cultural e a negação das leis absolutas dos códigos morais em favor da situação particular com suas variantes infinitas. O romance não entrega nada pronto ao leitor, deixando a seu cargo a escolha identitária. A técnica criada pelo romance na sua agressão, para voltarmos a Silviano Santiago, é a de uma negatividade paródica que chega a negar o próprio texto, pois ele não se pode construir como modelo de nada — não pode nem se constituir como gênero, pois se diz e nega ser livro e carta. É algo que

se poderia chamar de uma paródia autofágica, à semelhança dos zepardos citados no texto, híbridos com corpo de zebra e cabeça de leopardo, que na falta de alimento comem o próprio corpo (Torero, 2000: 125-6). Romance híbrido, paródia autofágica: a fuga às classificações, sejam estéticas ou morais, é a própria regra de construção de Terra papagalli e sua garantia de inscrição no quadro híbrido e fugidio do romance pós-moderno. Referências ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Melhoramentos, 1967. BERND, Zilá. “Em busca do terceiro espaço”. In: BERND, Zilá (Org.). Escrituras híbridas: estudos em literatura comparada interamericana. Porto Alegre: UFRGS, 1998. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003. SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. in: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. SILVA, Daniela Silva da. Romance contemporâneo brasileiro: a terceira margem do rio. Dissertação de mestrado defendida na PUCRS. Porto Alegre, 2006. TORERO, José Roberto; PIMENTA, Marcus Aurelius. Terra papagalli. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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